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Mal-estar do algoritmo:
notas sobre o arte-ativismo digital 1
Daniel Hora
Ao final, o criminoso comete suicídio e é identificado utilizam. Em uma analogia com a obra psicanalítica
como um artista, que pretendia usar a sua chanta- de Sigmund Freud (1989), poderíamos dizer que os
gem para se manifestar sobre o consumo e as rea- impulsos psicossomáticos de amor e destruição, re-
ções obsessivas ante as mensagens da mídia. sultantes da existência social e ambiental, são trans-
Em retrospectiva, os exemplos de trapaça na duzidos aos códigos e circuitos eletrônicos como
realidade e na ficção parecem premonitórios da forças igualmente contraditórias. Ora propiciam ma-
recente ascensão das notícias falsas (fake news) nutenção e ampliação da dialogia relacional ou dis-
que distorcem o juízo e as decisões coletivas. Tal cursiva, ora geram apagamento entrópico, por meio
fenômeno é impelido pela disseminação algorítmica da sobrecarga de interações que esvazia a diferença
de informações destinadas a forjar consensos de ou da imposição que interdita o diálogo, segundo os
pós-verdade. O que nos leva a uma dupla questão: termos utilizados por Flusser (2002).
No contexto recente das notícias falsas, o re-
1. As táticas de sedução traiçoeira do ativismo ha- curso crescente ao embuste é direcionado para lu-
cker, encontradas fora e dentro da arte, teriam como dibriar e prejudicar interesses públicos. Simula uma
contraparte, mais ou menos simultânea, a sua per- dialogia que, no fundo, só reverbera um discurso de-
versão em gestos deliberados de violência e opres- sejado e destrói vínculos. Falseia um discurso coleti-
são? vo que, no fundo, não contém nem promove diálogo.
Tal situação faz com que as táticas do arte-ativismo
2. A propagação mal-intencionada da falsificação hacker tenham de ser reconsideradas e atualizadas
seria um efeito adverso da ardilosidade humana que ante os arranjos estabelecidos entre os impulsos.
fundamenta o próprio desenvolvimento da tecnologia Nesse sentido, parece haver três eixos poéticos e
e da arte – no sentido em que Vilém Flusser (2007) estéticos de confluência: a contravigilância, a visu-
articula ambos os termos à significação da palavra alização e mineração de dados e a desconstrução
design? dos consensos forjados.
Na primeira vertente, propõem-se dispositivos
que lidam com a inviabilidade quase absoluta do
Códigos e impulsos
não rastreamento de dados de identificação dos
Trata-se aqui de um mal-estar derivado de uma praticantes do arte-ativismo hacker. Para escapar
constatação cada vez mais recorrente. A utopia civi- ao controle total, adotam-se táticas sub-reptícias de
lizacional da interação cooperativa e irrestrita de co- translucência e da saturação. Com elas, propagam-
munidades virtuais, formadas por pessoas e agentes -se métodos de encriptação ou de ação sem vestí-
inteligentes artificiais, sustenta-se em algoritmos que gios, em uma “tática de não existência”, permeável e
se mostram inversamente nocivos às condições de esvaziada de identidades representáveis, conforme
possibilidade de convívio justo e existência ambien- Alexander Galloway e Eugene Thacker (2007). As-
talmente sustentável. sim, o arte-ativismo hacker tenta agir sem tropeçar
Pois os algoritmos não se isentam das pul- nas malhas de vigilância ubíqua.
sões que afetam aqueles que os desenvolvem ou
de vídeos postados na internet por participantes das FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado: por uma
ações. Filosofia do Design e da Comunicação. São
8
Por sua vez, em Paulista Invaders (de 2013), Paulo: CosacNaify, 2007.
projeto de Suzete Venturelli e Media Lab / UnB, o
videogame clássico Space Invaders serve de refe- FREUD, Sigmund. Civilization and Its Discontents.
rência gráfica para uma modificação em que ciclistas New York: W.W. Norton, 1989.
devem escapar dos automóveis para cruzar uma via
de tráfego intenso. O jogo é apresentado na fachada GALLOWAY, Alexander; THACKER, Eugene. The
do edifício da Fiesp na Av. Paulista, local emblemáti- Exploit: A Theory of Networks. Minneapolis:
co do poder e influência das empresas da indústria University of Minnesota Press, 2007.
brasileira.
STRÖHL, Andreas (org.) ; EISEL, Erik (trad.) .
Algoritmia e biopolítica Writings: Vilém Flusser. Minneapolis: University
of Minnesota Press, 2002.
Os casos mencionados apontam como o arte-
-ativismo hacker tem assumido orientações corres- VIRILIO, Paul. The original accident. Reprinted ed.
pondentes aos usos recentes do algoritmo. Em lugar Cambridge: Polity, 2007.
da mera denúncia paródica, os projetos são voltados
a gerar efeitos diretos de conscientização e trans- WARK, McKenzie. A Hacker Manifesto. Cambridge:
formação da vida comunitária. São propostas que Harvard University Press, 2004.
reconhecem e tentam reduzir o impacto da perver-
são acidental ou premedita das operações baseadas
algoritmos. Notas
Procuram também diminuir os efeitos adversos 1 Prof. Dr. – UFES
do agenciamento astucioso que viabiliza a arte e a 2 Ainda segundo a autora Tijen Tunali, “Not all
tecnologia. Nesse sentido, abre-se aqui a perspecti- the producers of tactical media on the Internet
va de uma investigação que amplie a compreensão call themselves artists but their practices are
often seen as a form of art, in their creative
das implicações biopolíticas atreladas aos códigos
and subversive uses of form and content, and
que automatizam o mundo contemporâneo. their symbolic, representational and practical
work that intervenes, disturbs and challenges
Referências the commercial and corporate power in the
cyberspace.”
DOMINGUEZ, Ricardo et al. Geo_Poetic_Systems 3 http://www.ireneposch.net/the-knitted-radio/ e
(GPS) : Fragments, Fractals, Forms and http://ebrukurbak.net/the-knitted-radio/
Functions Against Invisibility. Trans-Scripts, 4 https://wwwwwwwwwwwwwwwwwwwwww.bitnik.
Irvine, v. 3, p. 290–304, 2013. org/s/ e http://chess.bitnik.org/
5 http://artisopensource.net/persona-non-data/
6 https://julianoliver.com/output/harvest
7 https://www.desvirtual.com/portfolio/odiolandia-
hateland/
8 https://paulistainvaders.wordpress.com/