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A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS:

elementos para uma edição crítica

por
Fábio Frohwein de Salles Moniz
(aluno do Doutorado em Literatura Brasileira)

Trabalho apresentado ao Prof. Dr.


Alcmeno Bastos como parte dos
requisitos para a aprovação na
disciplina “POÉTICAS DA
LITERATURA BRASILEIRA”, LEV
845, curso “Das "vergonhas altas e
çaradinhas" aos pulmões escavados:
representações do índio na literatura
brasileira”

U.F.R.J. / Faculdade de Letras


2º semestre de 2006
RESUMO

Esta monografia expõe os primeiros resultados do cotejo entre edições


d’A Confederação dos Tamoios, poema de Domingos José Gonçalves de
Magalhães (1811-1882). Empregaram-se, portanto, as edições de 1856 e 1864,
além das versões iniciais dos cantos primeiro e quarto, publicadas na Revista
Nacional e Estrangeira em 1839. Observou-se conseqüentemente que, ao
longo de sua tradição impressa, a obra ganhou alterações, ocorrendo variantes
autorais. Tais alterações foram anotadas e interpretadas com base na própria
semiologia do poema. Para a apresentação do texto, tomou-se por base a
segunda edição, conforme o critério moral da última vontade do autor, expressa
na advertência à mesma.

Palavras-chave: crítica textual, crítica das variantes, Gonçalves de Magalhães,


A Confederação dos Tamoios, literatura brasileira, poesia brasileira

ii
SUMÁRIO

1. Introdução.......................................................................................................iv

2. Apresentação.................................................................................................vii
2.1. Introdução.........................................................................................vii
2.1.1. Autor....................................................................................vii
2.1.2. Obra.....................................................................................xi
2.1.2.1. Natureza e índio n’A Confederação dos Tamoios...xxx
2.1.3. Tradição da obra................................................................lvii
2.1.3.1. Percurso histórico.................................................lvii
2.1.3.2. Testemunhos......................................................lxxii
2.1.3.3. Estema...............................................................lxxiii
2.1.3.4. Fortuna editorial.................................................lxxiv

2.2. Texto.............................................................................................lxxvii
2.2.1. Sigla dos testemunhos....................................................lxxvii
2.2.2. Normas de edição..........................................................lxxviii
2.2.3. Texto e aparato crítico....................................................lxxxii
Páginas de rosto.................................................lxxxiii
Dedicatória a Pedro II.........................................lxxxv
Advertência à segunda edição...........................lxxxvii
Canto primeiro.........................................................01
Canto segundo........................................................26
Canto terceiro..........................................................51
Canto quarto............................................................73
Canto quinto............................................................96
Canto sexto...........................................................115
Canto setimo.........................................................132
Canto oitavo..........................................................151
Canto nono............................................................172
Canto decimo........................................................194
Notas.....................................................................214

2.3. Glossário......................................................................................lxxxiii

2.4. Referências bibliográficas................................................................xci

ANEXO A: Carta de Gonçalves de Magalhães a Araújo Porto-Alegre............xciv

ANEXO B: Carta de Gonçalves de Magalhães a Pedro II.............................xcvix

iii
1. INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta algumas das questões enfrentadas na

elaboração da edição crítica d’A Confederação dos Tamoios (1856), de

Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882). Como é sabido, sua

publicação foi imediatamente seguida de oito cartas veiculadas no Diário do

Rio de Janeiro entre 10 de junho 15 de agosto do mesmo ano por José de

Alencar sob o pseudônimo Ig. Em linhas gerais, Alencar reclama da qualidade

do poema, expondo problemas quanto à rima, métrica, língua, construção de

personagens, descrição das belezas naturais do Brasil, argumento central do

poema, dentre outros.

Um dos maiores problemas para a compreensão dos ataques

alencarinos à Confederação consiste no fato de em determinados pontos o

crítico basear-se em passagens da primeira edição que foram modificadas ou

suprimidas por Magalhães na segunda edição (1864). A tradição impressa da

obra, por seu turno, passou a tomar por texto base a segunda edição, de

acordo com a vontade do autor expressa em sua advertência. Neste

experimento de edição crítica d’A Confederação, julgou-se oportuno, portanto,

informar nos aparatos críticos as variantes autorais relativas às primeira e

segunda edições, não só para que se recupere integralmente o sentido da

crítica de Alencar, bem como se recomponham e possam estudar passos da

elaboração do poema.

É mister esclarecer que o trabalho se destina ao cumprimento de parte

dos requisitos para a aprovação na disciplina “POÉTICAS DA LITERATURA

BRASILEIRA”, curso “Das "vergonhas altas e çaradinhas" aos pulmões

escavados: representações do índio na literatura brasileira”, ministrado pelo

iv
Professor Doutor Alcmeno Bastos, no segundo semestre de 2006, na

Faculdade de Letras da UFRJ. O curso teve por ementa:

As representações do índio na literatura brasileira: de José de Anchieta à ficção


contemporânea (Antonio Callado, Darcy Ribeiro e outros). Sucinta apreciação
do olhar dos cronistas e dos viajantes europeus e sua repercussão nas
representações literárias. Breves considerações sobre o encontro cultural. As
tentativas épicas do século XVIII (O Uraguai e Caramuru). O indianismo
romântico (Gonçalves Dias, José de Alencar, Bernardo Guimarães e outros). A
revisão paródica no Modernismo e a ficção contemporânea.

Para que fossem satisfeitos especificamente os questionamentos do

curso, foi criado o segmento “2.1.2.1. Natureza e índio n’A Confederação dos

Tamoios”, dentro da introdução ao texto. Conseqüentemente a análise literária

do texto, orientada pela semiótica greimasiana, tratou de problemas em torno à

representação indígena e da natureza brasileira, explorando ainda a articulação

discursiva do poema e a relação com as ideologias do contexto histórico-

cultural corrente.

Por se tratar de um trabalho de crítica textual, adotar-se-á, na

organização dos capítulos a seguir, o modelo de apresentação de texto crítico

proposto por Cambraia (2005, 162), excluído obviamente o item “Sumário”, que

antecedeu esta introdução:

Sumário
Apresentação
I. Introdução
I.1. Autor
I.2. Obra
I.3. Tradição da obra
I.3.1. Percurso histórico
I.3.2. Testemunhos
I.3.3. Estema
I.3.4. Fortuna editorial
II. Texto
II.1. Sigla dos testemunhos
II.2. Normas de edição
II.3. Texto e aparato crítico
III. Glossário

v
IV. Referências bibliográficas

Assim sendo, o trabalho contará com duas introduções, de aspectos


conteudísticos distintos. Esta, em curso, unidade autônoma, satisfaz as
exigências da estrutura básica de trabalhos acadêmicos, com informações
acerca do corpus, recorte, objetivos, justificativas, metodologia, suporte teórico,
divisão interna, etc.. A segunda, subordinada ao item 2. Apresentação,
contemplará a configuração básica de apresentação de um texto crítico,
informando ao leitor “dados que contextualizem sócio-historicamente o autor e
a obra (…).”1
Em virtude da brevidade do tempo disponível, o glossário limitou-se à
seção “A”. Ainda que incompleto, sua inclusão no trabalho justifica-se pela
oportunidade de ser exposto a críticas e sugestões de melhoramento,
favorecendo-se ainda uma noção integral da proposta de edição crítica. Nos
Anexos A e B, compilaram-se duas cartas de Gonçalves de Magalhães, de
importância capital para as interpretações das modificações no texto de 1856
d’A Confederação. Na primeira, até agora inédita, o autor faz a Porto-Alegre
comentários acerca de quatro das oito cartas de Alencar publicadas no Diário
do Rio de Janeiro. A segunda, enviada a Pedro II, traz informações precisas
sobre as alterações e foi publicada por Hélio Viana.2
Com relação aos procedimentos filológicos e ecdóticos, consultaram-se,
além de Cambraia, Houaiss (1967), Laufer (1980), Spina (1994), Spaggiari &
Perugi (2004). Foram ainda de grande valia as discussões e o material
generosamente oferecido pelo Professor Doutor Alcmeno Bastos no referido
curso.

1
CAMBRAIA: 2005, 163
2
VIANA: 1970, 69-70

vi
2. APRESENTAÇÃO

2.1. Introdução

2.1.1. Autor

Domingos José Gonçalves de Magalhães nasceu no Rio de Janeiro, em

13 de agosto de 1811, e morreu em Roma, em 10 de julho de 1882. Ao longo

da carreira, além da literatura, ocupou postos de prestígio político e foi

agraciado com distinções, que o tornaram célebre ainda em vida. Escreveu

poemas líricos, epopéia, peças de teatro, ensaios filosóficos, históricos e

psicológicos, folhetim, discursos, projetos de lei, etc., dedicando-se a gêneros

diversificados.

Em 1828, começou os estudos de Medicina no Colégio Médico-Cirúrgico

do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, do Rio de Janeiro. Deu-lhes

prosseguimento no curso de Medicina, pela mesma instituição, com a

aprovação a 21 de janeiro de 1832, ano em que publica o primeiro livro,

Poesias, antologia de poemas juvenis. No mesmo ano, conheceu, como aluno-

ouvinte do Seminário Episcopal de São José, o frei Francisco de Monte

Alverne, com quem aprofundaria os conhecimentos de filosofia.

A primeira participação em periódicos data de abril 1833, quando

publicou a “Ode pindárica” n’O Independente. Em julho, viajava para Paris,

onde os amigos Manuel de Araújo Porto-Alegre e Francisco de Sales Torres

Homem já se encontravam. Magalhães permaneceu na França um ano. Fez

cursos de Direito, Química e Economia Política. Seguiu depois para a Suíça e

Itália. Por volta de 1835, atravessava problemas financeiros, tendo sido

vii
ajudado pelo Ministro José Joaquim da Rocha, graças às indicações de Porto-

Alegre. Retornou a Paris ainda em 1835.

Em 1836, iniciou o cursus honorum no cargo de adido de primeira classe

à legação brasileira, junto ao conselheiro Luís Moutinho de Lima Álvares e

Silva. Perdeu o cargo no mesmo ano. Foi à Bélgica. Tornou à França,

dedicando-se à organização de uma antologia com poemas escritos durante as

viagens, intitulada Suspiros poéticos e saudades, marco do Romantismo

brasileiro. Juntamente com Porto-Alegre e Torres Homem, fundou a revista

Nitheroy, em cujo primeiro número publicou o “Ensaio sobre a história da

literatura do Brasil” e uma resenha sobre Voyage pittoresque et historique au

Brésil, de J. B. Debret. No segundo, publicou “A filosofia da religião”, uma

resenha de “A liberdade das repúblicas”, de Montezuma, e um juízo crítico de

Torres Homem acerca dos Suspiros poéticos e saudades.

Voltou ao Brasil em 1837. Inaugurou o teatro brasileiro com a encenação

de sua peça Antônio José ou o poeta e a Inquisição, a 13 de março de 1838.

Integrou o primeiro corpo docente do Imperial Colégio de Pedro Segundo,

instituído no mesmo ano, como professor de desenho, cargo de que abriu mão

em favor de Porto-Alegre. Em 1839, publicou na Revista Nacional e Estrangeira

os cantos primeiro e quarto d’A Confederação dos Tamoios, que na verdade

começara a escrever no início de 1837, conforme noticiado pelo Guanabara de

setembro de 1854:

o sr. doutor Domingos José Gonçalves de Magalhães pediu uma licença ao


Govêrno Imperial para vir ao Rio de Janeiro, e traz consigo o seu poema da –
CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS – obra que começou em Bruxelas em
1837, depois da tragédia Antônio José. (BARROS: 1973, 112)

viii
Ainda em 1839, sua segunda peça, Olgiato, foi encenada. Na qualidade

de Secretário do Governo, foi para o Maranhão, ao lado de Luís Alves de Lima

e Silva, futuro Duque de Caxias, incumbido de acabar com a revolta da

Balaiada. Magalhães regressou ao Rio de Janeiro em 1841, recebendo o título

de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro. Em 1842, tornou ao Colégio de

Pedro Segundo, na cadeira de Filosofia, do qual se afastará no fim do mesmo

ano em definitivo para acompanhar Luís Alves de Lima e Silva ao Rio Grande

do Sul por conta da Guerra dos Farrapos.

Em 1843, publicou a peça Otelo ou o Mouro de Veneza, traduzida da

versão francesa de Jean François Ducis, e ingressou ao Conservatório

Dramático do Rio de Janeiro. Em 1844, na Minerva Brasiliense, publicou

Filosofia. A origem da palavra e a novela inacabada Amância. Elegeu-se

deputado da Assembléia Geral Legislativa em 1845, ainda no Rio Grande do

Sul, ano em que obteve também a comenda da Ordem de Cristo. Foi nomeado

Encarregado de Negócios e Cônsul Geral, interino, no Reino das Duas Sicílias

em 27 de setembro de 1847.

Recebeu em 1851 a comenda da Ordem de Francisco Primeiro do Rei

Francisco II, do Reino das Duas Sicílias. Em 1854, foi designado Encarregado

de Negócios do Império do Brasil na Sardenha, ano em que A Confederação foi

concluída e lida para o imperador Pedro Segundo pelo próprio Magalhães,

antes de partir em missão diplomática. Foi agraciado com a comenda da

Ordem da Rosa em 1855. Publicou finalmente A Confederação em 1856,

sendo veementemente criticado por José de Alencar, que, sob o pseudônimo

Ig, publicou uma série de oito cartas no Diário de Rio de Janeiro, denominadas

Cartas sobre A Confederação dos Tamoios. No ano seguinte, seguiu para São

ix
Petersburgo, na qualidade de Encarregado de Negócios do Império do Brasil

na Rússia. Também em 1857, saiu a reimpressão d’A Confederação.

Em dezembro de 1858, voltou à Europa como Encarregado de Negócios

do Império do Brasil na Espanha. Em 1859, foi nomeado Ministro Residente de

Áustria-Hungria, ano em que a segunda edição de Suspiros poéticos e

saudades foi lançada em Paris. Em 1862, publicou Urânia e Cântico à

inauguração da estátua eqüestre do fundador do Império do Brasil. Dois anos

depois, editou-se em Portugal A Confederação, ao que parece à revelia de

Magalhães, que acertara contrato com B. L. Garnier para a publicação das

Obras completas. De 1867 até o fim da vida, o autor acumulou outras funções

e distinções, a exemplo do título de Barão (1872) e Visconde (1874) de

Araguaia. Nesse ínterim, publicou apenas três obras: “Instrução secundária e

superior da República da Argentina” (1872), A alma e o cérebro (1876) e

Comentários e pensamentos (1880).

Postumamente saíram duas edições italianas d’A Confederação

respectivamente de 1882 e 1885. No Brasil, depois da republicação revista e

modificada no tomo V das Obras completas pelo editor Garnier (1864), o

poema voltou a ser publicado na 1.ª edição da antologia Grandes Poetas do

Romantismo Brasileiro (1949), organizada por Antônio Soares Amora. Foi

suprimido, contudo, na 2.ª edição (1959). Em seguida, na mais atual edição, a

obra foi publicada em 1994 pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio de

Janeiro.

x
2.1.2. Obra

A Confederação dos Tamoios baseia-se no episódio histórico homônimo

ocorrido entre 1554/5-1567, em que índios do norte de São Paulo e sul

fluminense reuniram-se com o objetivo de expulsar os portugueses da região. A

obra organiza-se em dez cantos de estrofes assimétricas de decassílabos

heróicos e brancos, somando um total de 6104 versos. Traz inicialmente uma

carta ao imperador Pedro II e, a partir da segunda edição, uma advertência.

Conta ainda com notas informativas de naturezas diversas, desde

esclarecimentos lexicais até comentários acerca da cultura e costumes

indígenas.

Na carta, Magalhães manifesta gratidão e admiração ao imperador, em

função da prosperidade favorecida ao povo brasileiro. Louva-lhe os feitos, que

tornaram o Brasil uma nação fundada no humanismo com

instrução pública propagada e protegida, a completa liberdade da imprensa, a


independência da tribuna, a tolerância dos cultos, os públicos empregos
franqueados a todas as capacidades e talentos, o desentravamento do
comércio (…).

A advertência à segunda edição aborda questões em torno à revisão da

obra e à estética adotada. O autor afiança ter revisto o poema em virtude de

“louvores e ainda mesmo a crítica benévola” que o obrigaram a eliminar

incongruências ocultas no manuscrito original, que não foram revistas a tempo

na primeira edição pelo fato de se encontrar afastado. Dentre os defeitos,

assume que na editio princeps há lapsos de língua, problemas de estilo e

versos mal construídos. Declara que acrescentou versos, alguns dos quais já

presentes no manuscrito autógrafo mas que se perderam na “confusão do

primeiro autógrafo”.

xi
Com relação à opção estética, rebate as críticas que recebeu por não ter

se utilizado da oitava-rima, alegando que preferiu compor um poema épico que

desse vazão à dinâmica das paixões. Sendo assim, em lugar da oitava-rima,

optou por estrofes assimétricas de versos brancos, já que o

poema épico, encerrando em si todos os gêneros de poesia, e sendo a


composição mais longa e difícil do espírito humano, exaltado pela inspiração,
devera talvez, adotar todas as formas poéticas, para melhor exprimir a parte
heróica, a lírica, a trágica, a didática, a descritiva e a dialógica (…).

Magalhães argumenta ainda que não é a oitava-rima que sustenta a

épica, nem tão pouco expressa eficazmente a sonoridade da língua

portuguesa. Lembra que outros poetas épicos, a exemplo dos antigos e de

Dante, empregaram estrofação e métrica distintas sem prejuízo da qualidade

da obra.

As notas, consoante a tradição legada pelos épicos setecentistas,

elucidam o sentido de palavras de origem indígena, oferecem elementos

histórico-geográficos, etno-teológicos e, por vezes, como um diferencial,

refutam críticas. À guisa de exemplo, no canto segundo, a primeira nota

disserta sobre a divindade Monan; a segunda questiona a afirmação dos

cronistas acerca da inexistência de lei, governo e religião entre os brasílicos; as

terceira e quarta explicam o significado das palavras tacape e inúbia; a quinta

localiza o Curultai, assembléia dos Tártaros; a sexta aborda a crença nos

prêmios e castigos no post mortem; a sétima informa sobre a ilha de

Villegagnon; e a oitava explica o significado das palavras Tupaçunanga e

Tupaberaba. A última nota do poema, referente aos versos 6041-6045 do canto

décimo, rebate uma afirmação de Varnhagen a respeito da importância do índio

para a história brasileira.

xii
Acerca do poema propriamente dito, começa o canto primeiro pela

invocação ao Sol e aos Gênios dos bosques do Brasil. Enquanto astro

responsável pela vida, o Sol favorecerá a energia necessária à imaginação do

poeta. Os Gênios, testemunhas oculares da luta dos índios contra os

portugueses, não só estimularão a memória, bem como o amor à pátria, lugar

de privilegiada beleza. O Brasil é, pois, estimado um cantão sem igual no

mundo, em que a Natureza abunda complexidade de recursos minerais,

vegetais e animais.

O sujeito poético louva em seguida os rios Amazonas e Paraná. Símbolo

natural da grandiosidade da nação e limite do país ao norte, o Amazonas

rivaliza com o Oceano e supera os maiores rios do mundo, ainda que se

juntassem o Kiang, o Nilo, o Volga e o Mississipi num mesmo leito. Ao sul, o

Paraná, menor que o Amazonas mas encorpado por muitos afluentes,

fortalece-se paulatinamente até desembocar no Prata. Deixa por onde passa

um rastro prateado, obra de arte da Natureza. A sublimidade da paisagem

brasileira derrota mesmo os cenários bucólicos da antiguidade grega,

eternizados pela imaginação fértil dos escritores.

Lembra o eu poético que, em tempos anteriores à indústria e às artes

trazidas pelo europeu, habitavam o Brasil homens que gozavam de total

liberdade, conquanto não desfrutassem da cultura e da sofisticação das

cidades. Se por um lado o colonizador trouxe a civilização, por outro pôs termo

à liberdade, marca identitária e motivo de felicidade dos íncolas desde a

imemorabilidade. Escravizados, nada temem senão a continuidade do cativeiro

e a perda da terra. Mais do que simples posse, a terra representa para os

indígenas o território sagrado onde repousam as cinzas dos antepassados,

xiii
portanto repleto de história. Sendo a guerra o único meio de tornarem a ser

livres, atiram-se tenazes à luta. Enfrentam canhões e artilharia pesada, se

necessário.

Ante a tirania dos portugueses, Aimbire, o mais valente tamoio, arquiteta

um plano de ataque à colônia de São Vicente, por entendê-la o centro

irradiador do mal praticado contra os índios. Anda de tribo em tribo, buscando a

participação de todos. Hábil no uso da palavra, inteligente, incita o ódio dos

índios a despeito das ações violentas dos lusos e logra obter uma coligação de

chefes. Faltam-lhe, no entanto, o apoio e a experiência de Pindobuçu, chefe de

grande taba.

Ao procurá-lo, Aimbire chega a tempo de presenciar a cerimônia de

sepultamento de Comorim, amigo de infância e filho do cacique. Pede-lhe que

narre as circunstâncias da morte, vindo a saber que se tratou mais uma vez da

atitude despótica do estrangeiro. Na verdade, Comorim nada mais nada menos

tentou proteger a irmã Iguaçu do assédio de colonos. Mortalmente ferido, foi

levado de volta à tribo por alguns tamoios. Viveu o bastante somente para

contar o ocorrido ao pai. Aimbire aproveita-se do momento de profunda dor de

Pindobuçu e convence-o de integrar a coligação anti-lusitana.

No canto segundo, o eu poético procede inicialmente à breve descrição

dos Tamoios. Ressalta-lhes a bravura, a descendência dos Tupis e a

organização. Comparados aos Aimorés, os Tamoios ocupam o território de

maneira ordenada, desde a Serra dos Órgãos até o Cairuçu. Suas tabas

mantêm comércio entre si. Praticam o culto a Tupã e crêem na existência de

um deus criador do universo, Monan. Embora ágrafos, respeitam leis baseadas

na Natureza e nos costumes ancestrais. Durante a guerra, elegem o mais

xiv
valente para chefe, ao passo que em períodos de paz o governo fica a cargo

de um colegiado de anciãos.

A ação central do canto segundo gira em torno à assembléia em que se

delibera o assalto à vila de São Vicente. Antes de discursarem, caracterizam-se

as personagens que tomarão parte no debate. Aimbire, supremo chefe da

confederação, apresenta força descomunal, expressão grave e extrema

habilidade no manuseio do arco e flecha. Pindobuçu traz as marcas da tristeza

decorrente da viuvez e da recente perda do filho Comorim, mas não foge à luta,

mostrando bravura mesmo com o peso da senescência. No jovem Parabuçu,

filho mais novo de Pindobuçu, assinalam-se a impetuosidade do corpo

musculoso e o desejo de causar espanto. Jagoanharo, de bom coração e

astúcia, deseja apenas lavar a honra dos parentes. Ararai, seu pai, exibe

melancolia por antever a inevitabilidade do enfrentamento com o irmão,

Tibiriçá, cacique guaianá cristianizado e defensor dos lusitanos. Além dos

chefes-guerreiros, Coaquira, o guia espiritual, garante o canal de contato com

Tupã e interpreta a vontade divina a ser acatada pelo homem.

Conforme o hábito indígena, a assembléia começará pelos mais novos e

terminará pelos mais velhos. A experiência dos anciãos servirá de eficaz

instrumento para racionalizar a impulsividade e inconseqüência dos jovens.

Enceta o debate Jagoanharo com o exemplo do tamanduá, cuja pele carrega

nos ombros, para mostrar que a astúcia por si só, ante um inimigo que detém

sofisticação bélica, conduz à morte certa. A fala impressiona os demais jovens,

de modo a os anciãos ficarem preocupados. Aimbire rompe a inércia dos

neófitos, provocando-os: saca uma pistola e atira para o alto. Acerta uma ave

negra, que cai aos seus pés, para espanto geral.

xv
Captados a atenção e o temor de todos, desvenda Aimbire o princípio de

funcionamento das armas lusas, que, sem pólvora, de nada servem. Em

melhor situação estariam os índios, pois somente pouquíssimos portugueses

sabem fabricar pólvora. Em contrapartida, qualquer tamoio aprende ainda

criança a fazer flechas. Os estrangeiros, portanto, não devem ser temidos, já

que seus raios não são verdadeiros e dependem de matéria-prima cujo fabrico

é lento e de técnica pouco conhecida. A fim de persuadir a assembléia, o chefe

tamoio utiliza-se da vivência que teve em meio aos combates entre os

portugueses e franceses. Imersos na fumaça causada pela pólvora, os inimigos

ficam cegos e vulneráveis às flechas.

Aimbire discorre sobre a experiência e sabedoria adquiridas junto aos

estrangeiros. O canudo que amplia prodigiosamente a visão. Os pássaros

boiantes de brancas asas. Os sons terríveis dos combates. Fala do pasmo de

ter presenciado índios tupis e carijós, sob o comando de Caiobi e Tibiriçá,

lutarem entre os inimigos. Narra como foi preso numa das canoas monstruosas

e como agilmente conseguiu fugir. Conclui a fala, exortando os tamoios a

levarem adiante a luta contra o jugo colonizador e orientando Jagoanharo a

buscar o apoio do tio Tibiriçá em sinal de lealdade.

No canto terceiro, Aimbire sacia a curiosidade dos chefes acerca dos

europeus. Fala sobre Villegagnon, o calvinista que ambicionou fundar um novo

império na América, a França Antártica. Lembra que adquiriu as primeiras

informações sobre o cristianismo por meio de Léry e Richer, religiosos que

acompanhavam o comandante francês. Expõe rudimentos da religião européia:

o Deus Trino que a tudo governa e que criou o universo através do poder da

palavra; o Filho de Deus, enviado à terra para ensinar aos homens o bem e a

xvi
verdade, ordenando-lhes que se amassem uns aos outros; preceito, que, na

opinião de Aimbire, em nada se verifica no comportamento dos portugueses e

que serve apenas de justificativa para a perseguição religiosa aos índios.

Entrementes chegam à tribo os franceses, amigos dos tamoios,

recebidos com aplausos e felicidade. Trazem a promessa de apoio e fidelidade

na guerra contra os lusos. Aimbire e Ernesto, chefe dos francos que

sobreviveram à destruição do forte de Villegagnon, trocam palavras cordiais.

Segue o ritual de recepção do estrangeiro com a presença de virgens índias

para o conforto dos viajantes cansados, momento em que Ernesto conhece

Potira, filha do chefe tamoio. Os dois enamoram-se, ficando combinado o

casamento para depois da vitória sobre o inimigo comum.

Coaquira, o pajé, entoa um hino de louvor a Tupã, acompanhado de

dançarinos, que completam o ritual de preparação espiritual dos guerreiros

para a guerra vindoura. Lauto banquete congraça tamoios e franceses numa

riqueza de iguarias, raízes, frutas e bebidas: carnes de vários animais,

beijupirás, garoupas, aipim, ananás, caju, camarão, cará, palmito, etc..

Saciados os apetites, os convivas põem-se a cantar e a dançar, entrando pela

madrugada em vigília de alegria.

Com o anúncio da partida, a felicidade cede espaço à tristeza e aflição

nas despedidas entre guerreiros e famílias. Iguaçu, esposa prometida por

Pindobuçu a Aimbire, já dá mostras de angústia em função do iminente

afastamento do amado. O chefe tamoio, por seu turno, manifesta também a

contrariedade de deixá-la, mas uma causa maior, a vingança do opróbrio do

seu povo, exige-lhe incondicional denodo. Frente à inexorável separação,

Iguaçu pede-lhe somente que poupe os inocentes filhos dos portugueses, uma

xvii
vez que foram abençoados pelo Deus que rege os raios e trovões de suas

espadas. Aimbire redargúi, asseverando não recear nem o Deus nem tão

pouco os artifícios do inimigo, e promete não economizar sangue adversário.

No canto quarto, tamoios e franceses partem juntos para o assalto. Os

guerreiros preparam suas armas com esmero: flechas, aljava, arco, maça,

algodão e pequenos galhos secos para, com as setas, levar com rapidez a

morte ao inimigo. Embrenham-se na selva. Na frente, os tamoios, em grande

quantidade, abrem caminho por entre o emaranhado de cipós, seguidos dos

francos, que nem atingem a monta de cem homens. Enquanto avançam,

Iguaçu observa a todos do alto de um monte. Coração tomado de melancolia,

encontra alívio nas canções que entoa, tendo por interlocutor somente o eco

companheiro e cúmplice da natureza.

Os guerreiros atravessam a mata, não sem dificuldades. Parasitas

envolvendo troncos tornam a marcha lenta e a passagem próxima ao

hermetismo. Árvores gigantescas, com copas hirsutas, fazem obstáculo à luz

do sol e reduzem a luminosidade na floresta. Tudo é trevas. Um clima sombrio,

soturno, assenhora-se da paisagem de tal maneira que apavora os homens.

Exaustos da desgastante e demorada caminhada, aproveitam a noite para

descansar. Acendem fogueiras à moda indígena, por meio do atrito entre paus.

O calor do fogo, além de aquecer, atrai as cobras para um mortal combate.

Noite adentro, ouve-se subitamente o roncar de búzios. Logo após, duas

misteriosas luzes surgem do interior da selva e prenunciam a aparição do Pajé.

De imediato, o sacerdote repreende Coaquira e Aimbire por não o terem

consultado quanto à decisão de lançarem-se à guerra contra os portugueses.

Sua voz é fundamental para que Tupã apóie a causa dos tamoios e a

xviii
empreitada logre sucesso. Além disso, a recusa ao vaticínio do Pajé implica em

afronta ao plano divino e na subversão dos costumes antepassados, ou seja,

no desrespeito à tradição indígena.

O Pajé prevê um futuro catastrófico para Aimbire e seus companheiros.

Aconselha, portanto, aos tamoios desistirem da ação contra os lusitanos e

abandonarem Niterói em troca da manutenção da liberdade. Consoante o

sacerdote, fugir e abrir mão da luta representam a única possibilidade de os

guerreiros continuarem livres. Aimbire, por seu turno, refuta ferozmente o Pajé,

alegando que quanto mais os índios se retirarem, mais terras os estrangeiros

possuirão e conseqüentemente mais ainda desejarão açambarcar. Os

Tamoios assim ficariam acuados de modo a cessar por inteiro a antiga

liberdade.

Frente à irrefreabilidade de Aimbire e dos demais, o Pajé emprega,

como último recurso para dissuadi-los, o sortilégio da Tangapema. Trata-se de

um ritual de magia, em que se usam duas forquilhas de pau seco, fincadas no

chão, sobre as quais ficando a clava denominada Tangapema pelos índios. O

sacerdote dá início a uma dança ritualística, acompanhado por tocadores de

cangoeira, procedimento que magicamente lança aos ares a Tangapema. A

clava, que ia a cair longe das forquilhas e manchada de sangue, em sinal de

mau agouro, tem a trajetória consertada por uma flecha certeira de Aimbire. A

atitude do chefe tamoio, no entanto, ofende o Pajé, novamente questionado em

tom agressivo e expulso do acampamento.

No canto quinto, Jagoanharo chega a São Vicente para obter o apoio de

Tibiriçá. O jovem guaianá é levado a uma igreja, onde o cacique assiste ao

culto presidido por Anchieta. Ao fim da cerimônia, tio e sobrinho se encontram.

xix
Tibiriçá estupefaz-se ao notar a presença de Jagoanharo, concluindo

incontinenti a visita inesperada, por obra divina, tratar-se da busca pela

verdade cristã. Pergunta quando irmão virá também receber o batismo. Dá

graças a Deus. Recita um poema de Anchieta em tupi. Leva o sobrinho a

passear pela vila.

Enquanto ciceroneia Jagoanharo por São Vicente, Tibiriçá mostra

pontos que julga mais importantes: a residência de Anchieta e Nóbrega,

sacerdotes que, no seu entender, não enganam o povo com ilusionismos; a

casa de Martim Afonso, seu padrinho, fundador da vila e senhor de todas as

terras que a vista alcança; a casa de João Ramalho, genro e pai dos seus

netos. O cacique apenas evita exibir a prisão, lugar de maus tratos, prova

inconteste da forma humilhante de como os portugueses lidam com os índios.

Nesse ínterim, um jugo de mulheres e crianças passa por Jagoanharo, que

naquele momento prefere nada comentar, dissimulando a tristeza que sente.

Em casa, Tibiriçá tenta impressionar Jagoanharo com as sofisticações

de sua vida de assimilado. Serve a refeição em mesa ricamente adornada. A

presença de escravos, contudo, leva o jovem guaianá a criticar o tio,

comparando-o na atitude de explorar amigos e guerreiros aos portugueses, que

obrigam todos os índios ao servilismo. Após a ceia, Jagoanharo explica a

verdadeira razão pela qual procurou o tio. Assevera que Ararai, Aimbire,

Coaquira e vários outros guerreiros, além dos franceses, já estão prontos para

enfrentar os lusos. Com efeito, a vinda a São Vicente reflete o desejo do pai de

evitar uma briga entre irmãos.

Tibiriçá confessa o profundo desapontamento com o sobrinho. Sequer

imaginaria, quando o avistou na igreja, que vinha lhe trazer propostas de

xx
traição a Deus e ao Rei de Portugal, aos quais se ligava por fé e dever de

lealdade. Recusa terminantemente se unir a Ararai e a Aimbire. Lembra que os

franceses, conluiados aos tamoios, já testemunharam uma vez a desmesurada

fúria portuguesa, sendo expulsos da ilha em que construíram um forte.

Portanto, o melhor alvitre a ser seguido, em sua opinião, é a aliança entre

índios e lusos e a conversão ao cristianismo, única verdade em que crê.

Jagoanharo, por sua vez, não se convence da argumentação de Tibiriçá.

Questiona se o Deus, por quem o tio substituiu Tupã, consentiria em irmãos se

matarem um ao outro. Acaso pensaria agora como os portugueses que os

índios vivem sem lei e fé a ponto de carecerem de governo e religião impostos?

O cacique alega que, assim como no passado os tapuias tiveram que ceder à

força dos tupis, mesmo sendo legítimos descendentes de Tamandaré, o Noé

indígena, é chegada a hora de os tupis reconhecerem a superioridade da nova

raça a governar o território.

A estada de Jagoanharo em São Vicente prossegue no canto sexto. A

conversa com Tibiriçá desestabiliza-o de tal modo, que demora a conciliar o

sono. Quando finalmente consegue dormir, surge em sonho São Sebastião,

que o leva ao alto do morro do Corcovado. Dali o jovem guaianá desfruta de

uma vista panorâmica do Guanabara, tomado de espesso nevoeiro. Aos

poucos a imensa cortina branca se desfaz e irrompe o azul do céu, desvelando

a beleza de Niterói. Emocionado com a visão, o eu poético não se contém,

permitindo-se a uma pequena digressão, em que louva os encantos de Niterói,

sua cidade natal.

São Sebastião indica a Jagoanharo o local onde será fundado o Rio de

Janeiro. A cidade terá importância fundamental, pois representará o futuro do

xxi
Império brasileiro. Aponta a outra margem do Guanabara, vaticinando também

a fundação de muitas outras cidades. Entrementes, aporta o navio que traz a

família real. O Brasil, com a transferência do trono de Portugal para o novo

continente, passa de colônia a Reino, tendo por primeiro monarca D. João VI.

O rei, entretanto, vê-se forçado a retornar a Portugal e deixa em seu lugar o

filho Pedro.

Com o tempo, o segundo monarca brasileiro confere independência à

recente nação, que ganha ares de Império. Pedro, porém, difere dos demais

reis, pois baseia seu governo no respeito à liberdade e no amor ao povo. Tem

ao seu lado, inclusive, os descendentes dos tupis, organizados numa única e

imensa tribo. Igualmente ao pai, abdica ao trono, mas o filho, Pedro Segundo,

ainda é muito jovem e não pode ainda assumir o poder. O Brasil atravessa um

período tumultuado, com a guerra contra o Uruguai e problemas internos no

Amazonas, episódios em que a atuação de Caxias se mostra imprescindível

para a manutenção da justiça.

Com tais profecias, São Sebastião intenta persuadir Jagoanharo de que

os portugueses, a quem deseja combater, são invencíveis. Representam um

poder sobre-humano. Sem embargo, a missão lusitana consiste em disseminar

a palavra de Deus, os ensinamentos de Cristo, pregar a paz, a igualdade, a

justiça e a liberdade entre os homens. Assim sendo, não importa se quem traz

tamanhos bens seja inimigo. Mesmo da crueldade dos homens que maltratam

os índios, ficarão os benefícios que o filho de Deus legou à humanidade. Frente

à argumentação do santo, Jagoanharo aquiesce e roga pela cruz, ainda

dormindo.

xxii
Desperta Jagoanharo do sonho e imediatamente procura o tio. Pede a

cruz, o que enche Tibiriçá de pasmo. Entende o cacique a repentina mudança

no comportamento do sobrinho tratar-se de um milagre do Senhor, que

atendeu às suas preces. Ato contínuo, leva-o até Anchieta, mas no meio do

caminho interceptam um grupo de índios recém-chegados à vila, com as mãos

amarradas às costas. Entre os presos, Jagoanharo reconhece Iguaçu. Luta

para soltá-la, baldando esforços contra as armas dos colonos. Quase morre,

não fosse protegido por Tibiriçá. O episódio neutraliza a magia do sonho com

São Sebastião. Anchieta promete libertar Iguaçu. O jovem guaianá, por seu

turno, não acredita em nada mais que lhe dizem e retorna ao acampamento

dos confederados.

No canto sétimo, Aimbire vai, em companhia de Parabuçu, localizar os

restos mortais do pai. Enquanto isso, os tamoios aguardam ansiosos o

regresso de Jagoanharo. Ararai especula que Tibiriçá não seja insensível a

ponto de ignorar o pedido do sobrinho e do irmão e prefira ficar ao lado dos

estrangeiros. O chefe guaianá, contudo, desconhece o poder do cristianismo.

Não calcula quanto denodo e sangue derramado já se praticaram em nome de

Cristo. Sequer concebe a idéia de ter perdido o irmão para novos amigos como

Anchieta, Nóbrega e para a causa portuguesa.

Do outro lado da floresta, Aimbire e Parabuçu seguem o leito do rio

Paraíba. Temem que o ipê, perto do qual jaz a igaçaba com as cinzas do pai do

chefe tamoio, não exista mais em função do desmatamento causado pelos

lusitanos. Além disso, ambos os amigos confessam ter maus pressentimentos

com relação a Iguaçu. Parabuçu, seu irmão, chega mesmo a recear que ela

possa ter sido capturada e caído em mãos inimigas. O temor de Parabuçu traz

xxiii
a Aimbire péssimas lembranças do tempo em que, para proteger os pais,

esteve no cativeiro e foi escravo. Testemunhou assim a morte do pai,

explorado até a exaustão.

Finalmente o ipê é encontrado. Exultantes de felicidade, Aimbire e

Parabuçu cavam a terra e resgatam a igaçaba. Antes de procurarem novo e

seguro pouso, onde os inimigos não possam desrespeitar a memória ancestral,

o chefe tamoio deseja levar a cabo a vingança contra o algoz de seu pai. Ali

perto se acha a choupana de Brás Cubas, governador de São Vicente e um

dos maiores exploradores de mão de obra indígena. Aimbire reúne maços de

galhos secos estrategicamente ao redor da casa e ateia fogo. Desesperado,

Brás Cubas pula pela janela, porém é capturado.

O português implora por piedade, alegando ser pai. Aimbire, por sua

vez, lembra-lhe justamente que a mesma piedade que agora pede não foi

dispensada ao seu pai, Guaratiba, espancado até a morte num tronco sobre

imenso formigueiro. Recorda ainda de Potira, a esposa grávida perseguida, e

da própria mãe, igualmente vítimas do despotismo de Brás Cubas. Mas, na

iminência de liquidar o algoz de sua família, ouve subitamente o exasperado

pedido de clemência de Maria, filha do português, que consegue lhe cativar o

sentimento de misericórdia.

Aimbire desiste da vingança e ruma com Parabuçu para dar novo pouso

aos ossos do pai no alto do Cairuçu. Em São Vicente, correm rumores de

ataque indígena próximo, deixando todos em pânico. Anchieta, que já

testemunhara a revolta de Jagoanharo ao ver Iguaçu aprisionada, vai a

Francisco Dias negociar a liberdade da índia. Expõe-lhe que a vila corre perigo.

Devolver Iguaçu aos tamoios seria uma forma de abrandar-lhes a cólera. O

xxiv
colono, avesso aos missionários, recusa-se com palavras agressivas a abrir

mão da escrava. Em vão, Anchieta e Nóbrega exortam os demais colonos a

deixarem de capturar índios e se dedicarem ao empreendimento inicial de

divulgação da fé cristã.

No canto oitavo, Satanás influencia os colonos a se insurgirem contra

Anchieta e Nóbrega. Por meio de sofismas, persuade-os de aceitarem como

decorrência normal das lutas entre povos o processo de escravização, ficando

o mais fraco sempre como escravo do mais forte. Ilustra com os exemplos

históricos da Grécia e de Roma, em que aos vencedores era lícito escravizar

os vencidos, e ainda assim foram grandes civilizações. No entanto, o poder de

influência do anjo do mau não dura muito, uma vez que todos acabam por se

mobilizar contra o ataque tamoio que se aproxima. Tibiriçá, em nome da fé e da

amizade pelos missionários, reúne seus guaianás e prepara-se para a guerra.

Regressando ao acampamento, Aimbire toma ciência, por meio de

Jagoanharo, de que Iguaçu é mantida em cativeiro pelos inimigos. A notícia

acende-lhe mais a ira. Imediatamente soa a inúbia e ordena a marcha contra

os portugueses. Uma multidão de canoas abandona as praias de Ubatuba e

atinge o litoral de São Vicente em um único dia, tamanha a vontade dos

guerreiros de se lançarem aos combates. Antes do assalto, o chefe dos

tamoios, orientado pelos franceses, divide a massa de índios em três colunas a

fim de atacar a vila por pontos distintos.

Os tamoios encetam a batalha. Ao som marcial dos tambores, os

portugueses acorrem para defender a vila. Avisado por Anchieta, Tibiriçá

protege a igreja com seis mil homens, ao lado de Caiobi e Cunhambeba. Em

outro ponto, os franceses reforçam estrategicamente a ação bélica e

xxv
desnorteiam o inimigo. Dentro da igreja, os missionários oram em proteção a

todos juntamente às esposas e filhos dos envolvidos no confronto. João

Ramalho, o raptor de Iguaçu, entrega-a finalmente a Anchieta na esperança de

que o batismo a torne mais dócil.

Ensandecido, Aimbire avança, ceifando as vidas dos lusos. Grita por

Tibiriçá, Caiobi e Cunhambeba, mas é Brás Cubas quem lhe responde e

oferece combate. O português tenta desconcentrar o chefe tamoio, aludindo a

Iguaçu. Enfim, Aimbire concretiza o sonho de vingança e trucida o assassino

de seus pais e esposa. Alhures Jagoanharo e Tibiriçá se reencontram. Exige o

sobrinho que o tio lhe entregue Iguaçu, que sabe estar escondida na igreja.

Entram ambos em confronto. O cacique acaba por matar o jovem guaianá, não

sem antes o batizar.

Dentro da igreja, em meio a preces, Anchieta subitamente levanta e se

dirige a Iguaçu, numa espécie de transe, como se tivesse recebido instrução de

Deus. O missionário sai com a índia, estupefazendo a todos. Ruma para o

campo de batalha. Clama por Aimbire, que rapidamente atende ao chamado. O

chefe tamoio comove-se com a visão da amada, enquanto Anchieta pede-lhe

que parta de São Vicente. Misteriosamente, sem que Aimbire ordene, soa ao

longe o toque da inúbia, sinalizando aos guerreiros a hora da retirada. Os

tamoios deixam um rastro de fogo na vila, carregam os mortos e feridos e se

retiram.

No canto nono, realiza-se a cerimônia funeral dos mortos em Iperoig.

Coaquira, profundo conhecedor das ervas medicinais, trata dos feridos.

Aimbire, insatisfeito com o resultado do ataque, anima os guerreiros para uma

nova ação, mostrando a necessidade de vingar Jagoanharo. Por outro lado,

xxvi
cumpre com a promessa feita a Ernesto e concede-lhe a filha Potira em

casamento. Celebra também as núpcias com Iguaçu, mas não consuma o

casamento em respeito à pouca idade da jovem esposa, conforme o costume

indígena.

Iguaçu conta ao pai, Pindobuçu, a Coaquira e ao recente marido as

coisas que aprendeu da esposa de João Ramalho e de Anchieta. Aimbire

emenda com o sonho que ouviu de Jagoanharo, em que se prenunciava o

destino de tamoios e portugueses. Na verdade, o chefe dos tamoios, que já

conhecera a doutrina cristã através dos missionários franceses Léry e Richer,

não duvida da bondade da religião dos estrangeiros. Lastima somente que o

filho de um deus tão bom tenha morrido na cruz por homens maus. Observa

certa contradição entre as palavras e atitudes dos lusos, que pretendem

disseminar os ensinamentos de Cristo acerca da paz e da fraternidade, e no

entanto fazem a guerra e roubam as terras dos índios.

Durante a conversam, avistam uma canoa abeirar-se, trazendo Anchieta

e Nóbrega. Os missionários são bem recebidos pelos tamoios. Emocionada ao

vê-los, Iguaçu beija as mãos dos santos homens e os apresenta aos

confederados como os abarés amigos, os que falam com o Deus deles e

querem sempre praticar o bem. Um humilde mas rico banquete lhes é

oferecido, com frutas e raízes, após o qual se seguem horas de repouso, até o

dia seguinte, quando finalmente é discutido o motivo de os religiosos terem

corajosamente procurado os inimigos dos lusos em território desprotegido.

De manhã, os missionários celebram a missa em improvisado altar.

Iguaçu, com os gestos de Anchieta, recorda-se do que aprendeu em São

Vicente e o imita, o que instiga os demais índios a participarem do ritual.

xxvii
Depois da cerimônia, procede-se finalmente à assembléia de debate sobre o

armistício. Aimbire logo de início propõe que todos os índios mantidos escravos

sejam entregues, além de Tibiriçá, Cunhambeba, Caiobi e Francisco Dias, que

deverão receber punição. Na réplica, Anchieta concorda com a devolução dos

prisioneiros. Comunica que Dias foi punido com a morte em meio aos

combates. Quanto a Tibiriçá, Cunhambeba e Caiobi, argumenta que seria falta

de lealdade entregá-los, uma vez que se trata de amigos.

Não satisfeito, Aimbire impõe que os portugueses fiquem apenas com as

terras ocupadas e não invadam o território dos índios. O missionário lembra

que a causa maior é a salvação espiritual dos indígenas, para tanto convindo a

evangelização e a civilização, com a construção de igrejas e vilas. Intervém o

francês Ernesto, que adverte para os riscos da civilização, como a corrupção

da inocência do ser humano, a tirania e o fim da liberdade. Alerta ainda para o

caráter ilusório das palavras de Anchieta. Conclui o encontro Aimbire com a

reiteração das exigências para o acordo de paz: restituição dos prisioneiros e

que os lusos se mantenham distantes.

O canto décimo inicia-se com a descrição do cotidiano de Anchieta

entre os Tamoios. Enquanto se aguardam notícias de Nóbrega com a resposta

lusitana às reivindicações de Aimbire, o missionário diariamente colhe plantas

medicinais para curar os doentes, trocando conhecimentos com Coaquira. Atrai

a atenção dos índios para os ensinamentos de Cristo, os mistérios da alma e

busca doutriná-los. Mesmo no ócio exercita a fé. Escreve um poema em latim à

Virgem Sagrada nas areias da praia, durante os passeios solitários, e intriga

Aimbire com os arroubos poéticos.

xxviii
Meses já se passavam sem contato da parte de Nóbrega. Franceses e

tamoios começavam a impacientar-se, mas Aimbire confiava em Anchieta.

Além do mais, não acreditava que os portugueses fossem levianos o bastante

a pontos de colocar em risco a vida do religioso. Eis que Anchieta recebe uma

mensagem celestial e comunica a todos que em três dias chegarão notícias, o

que acalma a ansiedade geral e realimenta as expectativas quanto ao

armistício. No prazo previsto, surge Cunhambeba em canoa com gestos

amistosos. Traz tamoios libertos do cativeiro, presentes dos lusos e uma carta

de Nóbrega confirmando o acordo de paz.

Anchieta parte de Ubatuba, para tristeza dos Tamoios, com os quais

estabelecera uma relação de amizade e confiança. Entrementes, os índios

tomam conhecimento da entrada de imensa frota no Guanabara. Trata-se dos

reforços vindos de Portugal e da Bahia sob o comando de Estácio de Sá, que

recebera ordens de banir os franceses de uma vez por todas e fundar a cidade

do Rio de Janeiro. Aimbire incontinenti percebe que fora iludido. Contra a

opinião dos mais velhos de que seria mortal o confronto nas atuais condições,

o chefe dos tamoios ordena o ataque.

Índios e portugueses novamente se vêem em combates. Em dois anos

de conflito, os homens de Estácio de Sá estão cansados e sem munição, ao

passo que os tamoios, não obstante as baixas, resistem bravamente. O capitão

luso envia Anchieta à Bahia, com o fito de pedir mais armas e soldados a Mem

de Sá. Atendendo à solicitação, o próprio Mem de Sá vem em pessoa conduzir

os reforços solicitados pelo sobrinho e lutar ao seu lado. No dia de São

Sebastião, os acampamentos indígenas de Uruçu-mirim e Parnapicuí são

assaltados pelos lusitanos.

xxix
Com superioridade bélica, os portugueses trucidam os tamoios. Iguaçu,

acompanhando o esposo, é atingida no peito por Estácio de Sá, mas Aimbire,

mesmo com a dor da perda da amada, consegue abater o capitão luso. No dia

seguinte, quando da fundação da cidade do Rio de Janeiro, os corpos do chefe

tamoio e de sua mulher são encontrados boiando na praia. Com profunda

tristeza, Anchieta os recolhe e lhes dá sepultura. O canto décimo finda com

uma peroração em que se louvam as virtudes do imperador Pedro Segundo,

defensor do Brasil, patrono das ciências, artes e letras e governante muito

amado pelo povo.

2.1.2.1. Natureza e índio n’A Confederação dos Tamoios

Em linhas gerais, A Confederação narra uma história de resistência, de

luta pela liberdade. O enunciador não hesita em explicitar didaticamente o

fundo moral do discurso e ao fim, no canto décimo, exorta o enunciatário a

seguir o exemplo do herói Aimbire, que:

(…) aqui nascêo, nos lega o exemplo


De como esses dous bens amar devemos.
E quando alguma vez vier altivo
Leis pela força impor-nos o estrangeiro,
Imitemos a Aimbire, defendendo
A honra, a cara patria, e a liberdade.
(vv. 6044-6049)

Os tamoios correspondem, portanto, ao escravizado que se insurge

contra o escravizador. A rebelião tamoia serve, ao nível do discurso, de

ilustração, de artifício de retórica, para se persuadir o enunciatário da

importância da luta contra o despotismo. Ainda que a liberdade não seja

alcançada em definitivo, o que se sublinha no poema é o empreendimento da

libertação, não importando a certeza da vitória. O ato de lutar pela liberdade

xxx
implica em si só num gesto de liberdade, na medida em que o indivíduo não se

curva às exigências, aos moldes vigentes.

O antagonismo entre índios e portugueses diz respeito, na verdade, ao

conflito entre íncola e estrangeiro. Nessa instância, a resistência dá-se contra o

elemento que vem de fora, seja especificamente ao homem alienígena, ou, de

maneira mais abrangente, à religião, aos valores, enfim, à cultura. A luta pela

liberdade, pois, não se circunscreve à libertação física. Tem a ver com o

rompimento de grilhões culturais, simbólicos. Aimbire orgulha-se de ser tamoio

e tamoio deseja ser até morrer.

N’A Confederação, o índio ante de mais nada reveste semanticamente a

categoria /escravizado/ na oposição /escravizado/ X /escravizador/. Aimbire,

chefe supremo da confederação, foi escravo de Brás Cubas e conheceu de

perto os horrores do cativeiro:

Que alluvião de males nos trouxeram


Esses homens crueis, que horrida guerra,
Oh dura escravidão nos dão á escolha!
Irmão de Comorim, ah, tu não sabes,
Não, tu não sabes o que é ser escravo!
Não ser senhor de sí, viver sem honra,
Acordar e dormir sem ter vontade,
Calado obedecer com rosto alegre,
Soffrer sem murmurar, comer chorando,
Não ter filhos, nem pais, não ter amigos,
Trabalhar, trabalhar ao sol e á chuva,
E isto a fim que um senhor tranquillo viva,
No meio da fartura, á custa alheia!…
Ah! tu não sabes o que é ser escravo;
E eu sei o que isso é!… (…)
(vv.3668-3679)

Por isso, emprega todas as energias para livrar os parentes e amigos da

servidão. Quando da negociação com Anchieta, a única condição que reitera é

a libertação dos índios cativos, não insistindo na entrega de Tibiriçá, Caiobi e

Cunhambeba para fins de vindita.

xxxi
Do outro lado, estão os portugueses, na categoria de /escravizador/,

cujas propriedades abundam escravos indígenas. Em momentos diferentes do

poema, Brás Cubas, João Ramalho e Francisco Dias ilustram, cada um à sua

maneira, a subscrição dos colonos lusos ao escravismo. Mesmo instado por

Anchieta a devolver Iguaçu pelo bem de São Vicente, Dias recusa-se:

“O Padre é Portuguez, ou é selvagem?


Que anda aqui contra nós sempre bradando,
Sempre a favor de uns animaes sem alma?
“É suspeita tão grande sanctidade.
Querem á custa nossa, e em nosso damno,
Conquistar o amor desses gentios,
Só para ás suas leis tel-os sujeitos?!
Não tem a companhia Indios escravos?
Dem-lhes embora o nome que quizerem;
Que escravos d’ella são, iguaes aos nossos,
Esses que á força as terras lhe roteam.
Padre, vá-se com Deos pregar aos bosques.
Não dou-lhe a India; si eu a quiz, cacei-a.
Deixe-me em paz.” (…).
(vv.4035-4048)

Uma vez instaurada a oposição semântica entre índios e portugueses

desde o canto primeiro, observar-se-á sistematicamente ao longo da epopéia a

antítese entre ambos. O mecanismo faz com que o que seja valorado

eufemicamente para um disforize-se para outro.

É mister ressaltar que, mesmo com relação a índios, existem grupos a

serem discernidos no tocante à valoração. Igualmente há portugueses

eufemizados e disforizados. O fenômeno ocorre em função da filiação direta ou

indireta à idéia de escravização. Tibiriçá, Caiobi e Cunhambeba aliaram-se ao

escravizador e assimilaram-se, tornando-se eles mesmos escravizadores,

portanto são disforizados. Em contrapartida, Anchieta e Nóbrega preocupam-se

com o bem estar dos índios, sendo euforizados.

xxxii
Como se vê, mesmo com a esquizotimização de cada grupo, a oposição

semântica ainda se verifica e superordena outras valorações no poema. Com

relação às armas, por exemplo, na oposição “flecha” X “arma de fogo”,

euforiza-se a primeira em contraponto à segunda. Qualquer tamoio faz uma

flecha, mas pouquíssimos portugueses sabem fabricar pólvora, quer dizer, a

quantidade de flechas à disposição dos índios supera a de pólvora. As armas

lusas produzem muita fumaça e cegam os próprios soldados, facilitando a ação

dos arqueiros indígenas. Os “trovões” originados das armas lusas são

artificiais, não devendo os tamoios julgar que combatem “deuses”.

Some-se ainda o fato de os tamoios serem mais corajosos por lutarem

de peito aberto contra um inimigo munido de sofisticação bélica. No processo

de representação indígena, enfatizar-se-á a bravura por meio de hipérboles ou

analogias a elementos da natureza a serviço da antítese maior: o índio é forte,

luta com arco e flecha X o português é fraco e só vence em função de armas

sofisticadas.

Na abertura do canto segundo, rico em detalhamentos acerca dos

índios, uma panorâmica anexa a idéia de bravura à causa libertária:

Em defensa da vida e liberdade,


Contra as injustas aggressões continuas
Dos Lusos, confederam-se os Tamoyos.
Nenhum instinto máo á guerra os chama;
Dever, que a patria impõe, os arma e liga.

Bravos são os Tamoyos, e descendem


Da nação dos Tupís, que em tribus varias
Todo este immenso litoral brasilio
Numerosa povôa. (…)
(vv. 593-601)

Nas descrição física das principais personagens indígenas, a tenacidade

sempre se mostra presente. A começar pelo epíteto de “heróico” (v.635),

xxxiii
Aimbire detém força e inteligência incomparáveis. Na menção às suas

habilidades, apresentam-se analogias e hipérboles como:

Nem no rapido pulo lhe escapava


O jaguar mais ligeiro sobre a rocha;
Nem mesmo o gavião alto pairando,
Nem pequenino passaro burlavam
Da setta alada o infallivel tiro. (vv. 646-650)

Em Pindobuçu, a força mostra-se mais psicológica. Além da tristeza da

viuvez, o chefe ancião sofreu, pouco antes de ingressar à confederação, a dura

perda do filho Comorim, ferido mortalmente por apresadores lusos. Sua

caracterização acentua o aspecto triste, até lúgubre, com o traje de penas

negras. Mesmo assim, o cacique é forte o bastante para superar os traumas e

empreender a guerra:

Curvo á mágoa, que mais que as cans lhe pesa,


Nas mãos do que lhe resta digno herdeiro
Descança do commando o sceptro e as honras;
Mas da antiga bravura exemplo dando,
Dos perigos da guerra não se exime.
(vv. 687-691)

Parabuçu e Jagoanharo, filhos respectivamente de Pindobuçu e Ararai,

são os jovens guerreiros que, pelo simples fato de terem juventude, já

ostentam impetuosidade. O primeiro se distingue pela grandeza da estatura,

intensificação simbólica da força indígena; o segundo, pela inteligência. Não é

à toa que Aimbire justamente enviará Jagoanharo a São Vicente ter com

Tibiriçá acerca da confederação. O jovem guaianá se mostra mais preparado

intelectualmente para desempenhar o papel de embaixador e dissuadir o tio do

apoio aos lusos.

xxxiv
Por fim, Ararai, cacique guaianá, traz a expressão assustadora, não

obstante o receio de enfrentar futuramente o irmão Tibiriçá:

Fixos os olhos rubros rutilavam;


Ressumbrava em seu rosto o horror do inferno,
Vontade ardende de vingar insultos,
E a dôr de ir combater o irmão mais velho,
E os da infancia tão caros companheiros. (vv.727-731)

Frente à tradição legada pelos épicos antecessores, A Confederação é o

primeiro poema a colocar o índio na posição de herói, mesmo que combata o

colonizador. De Anchieta a Durão, a única possibilidade de o brasílico ganhar

valoração positiva decorreria de uma ação conjunta com o lusitano. Ainda

assim, em Santa Rita Durão e em Basílio da Gama, descreve-se o selvagem

como um ser ambivalente, fragmentado em intelecto X rudeza ou

espiritualidade X animalidade.

O Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, baseia-se nas ações da

personagem histórica Diogo Álvares Correia, naufragado na Bahia em 1510. O

tempo de enunciado, portanto, corresponde aproximadamente ao d’A

Confederação, com uma diferença em torno de quatro décadas. Em analogia

ao sonho de Jagoanharo, o poema de Durão também traz o maravilhoso, com

a visão de Paraguaçu-Catarina, a esposa de Diogo, acerca do futuro do Brasil,

marcado por batalhas contra franceses e holandeses.

No entanto, em Durão, o tratamento estético conferido ao índio

diferencia-se. Mostra fundamentos ideológicos colonialistas, como não poderia

deixar de ser, dados o momento histórico-cultural e o comprometimento do

poeta com a Igreja, uma das principais instituições envolvidas no processo de

colonização do Brasil. O poema, na sua semiologia, assinala num primeiro

xxxv
momento o antagonismo entre os elementos indígena e europeu traduzido pela

oposição /selvagem/ X /civilizado/, com base na qual se organizam campos

semânticos antitéticos empregados na descrição do índio e do colonizador.

Descrevem-se a aparência e os hábitos indígenas no canto primeiro de

forma assustadora e exótica. Por outro lado, num segundo momento, o

enunciador revê os juízos tanto acerca do índio, quanto do europeu,

praticamente os espelhando. Lembra Durão em nota, ainda no canto primeiro,

que o hábito da antropofagia, em princípio éthos do selvagem, foi praticado

também na Antigüidade européia.

Diogo no canto terceiro se impressiona com a religiosidade de Gupeva,

em conversa mediada por Paraguaçu. A figura do índio ganha, portanto,

dimensão paradoxal. Ainda que fisicamente se mostre bruto, /selvagem/,

espiritualmente quase se irmana ao colonizador, isto é, ao /civilizado/, em

função de religiosidade inequívoca, o que em certa medida revela a visão de

mundo de Durão, nos termos de Antonio Candido.

Durão assevera em nota que os brasílicos têm consciência de Deus: “Os

selvagens do Brasil têm expressa noção de Deus na palavra Tupá, que vale

entre eles excelência superior, cousa grande que nos domina.”3 Entretanto, o

elemento ausente na teologia indígena, que a torna incompleta, é a revelação,

a ser complementada pelo lusitano. Na pequena narrativa sobre a estátua da

Ilha do Corvo, nos Açores, Guaçu, um indígena, reconhece que sua

compreensão da Providência divina esbarra em obstáculos. No paratexto,

Durão desenvolve:

3
DURÃO: 2005, 28

xxxvi
Até aqui são os limites do lume natural, e com ele somente o alcança a
filosofia; porém o remédio da natureza humana, ferida pela culpa, não pode
constar-nos senão pela revelação. (DURÃO: 2005, 31)

Sendo a revelação um ensinamento transmitido por Cristo aos seus

discípulos e seguidores, o período pagão da Europa estaria em termos de

religiosidade equiparado ao universo indígena. Daí Durão comparar a idolatria

dos gregos à crença dos índios na divindade dos europeus: “É certo que a

idolatria dos gregos teve grande ocasião nos inventores das artes; e vimos

outro tanto nos americanos, dispostos a crer imortais os europeus.”4

Nessa instância, o traço cultural determinante de “civilização”, de

“humanidade”, reside no conhecimento da verdade divina. Caramuru, assim,

descreve o processo de civilização do índio, na figura de Paraguaçu-Catarina,

que ao fim adquire elevação espiritual a ponto de estabelecer contato com a

Virgem Maria e receber uma missão divina, tal como os próprios portugueses,

ao serem guiados pela mão de Deus ao continente americano.

No Caramuru, a problemática da religiosidade indígena é explorada com

vagar no canto terceiro. Traduzido por Paraguaçu, o discurso de Gupeva

impacta Diogo, em função do vasto conhecimento da realidade para além da

vida mundana. O herói inquire ao chefe tupinambá sobre seu Deus. Responde

Gupeva:

Um Deus (diz), um Tupá, um ser possante


Quem poderá negar que reja o mundo.
Ou vendo a nuvem fulminar tonante,
Ou vendo enfurecer-se o mar profundo?
Quem enche o céu de tanta luz brilhante?
Quem borda a terra de um matiz fecundo?
E aquela sala azul, vasta, infinita,
Se não está lá Tupá, quem é que a habita? (Idem: ibidem, 83)

4
Idem: ibidem, 65

xxxvii
Lastreado em documentos históricos, tais como os depoimentos de

missionários e as histórias da América elaboradas pelos acadêmicos brasileiros

setecentistas, Durão recupera a teologia indígena, ainda que em muito

misturada aos dogmas católicos. Os argumentos de autoridade, as obras de

Martinière, Simão de Vasconcelos, Rocha Pitta, persuadem o enunciatário de

que, contrariamente ao que afirmam os libertinos, a religião católica não se

afastou da religiosidade natural, uma vez que os brasílicos, nascidos e criados

fora do eixo de influência da Igreja e intimamente ligados à natureza,

demonstram crer em teologia muito similar, com personagens e fenômenos

análogos aos ensinados pelas escrituras, a exemplo de Noé-Tamandaré, do

Dilúvio, de Lúcifer-Anhangá, do paraíso indígena e de Sumé-Tomé. Várias são

as notas em que Durão remete diretamente aos filósofos libertinos, buscando

neutralizar suas afirmações.

Como observou Alfredo Bosi, a ficcionalização do índio no Caramuru

consiste em arma contra os libertinos. Voltaire no Dicionário Filosófico critica a

religião enquanto instituição, enquanto artificialidade imposta por leis

cristalizadas que se distanciaram em muito da inocência mística primeira. A

correspondência entre o acervo simbólico católico e o imaginário indígena,

sistemas que nunca, antes da presença do colonizador, haviam se cruzado,

sustenta retoricamente que os católicos professam uma verdade tão irrefutável,

que mesmo o selvagem imerso na vida primitiva e alheio à filosofia da religião

pôde conhecer.

A religiosidade também ocupa espaço significativo nos versos e nos

paratextos d’A Confederação. Tão importantes quanto os guerreiros indígenas,

franceses e portugueses para a ação central do poema, os missionários José

xxxviii
de Anchieta e Manoel da Nóbrega e os pajés exercem função de suporte

espiritual e guia, uma vez que mantêm o contato com o plano superior e assim

auscultam a vontade divina. No episódio da Tangapema, canto quarto, o pajé

prevê a derrota dos índios. Durante o assalto tamoio a São Vicente, Anchieta,

em êxtase, leva Iguaçu a Aimbire e logra interromper o morticínio. Mais à

frente, o missionário vaticinará quando chegará ao acampamento dos

confederados a resposta de Nóbrega.

O principal motivo da permanência lusa, alegado por Anchieta, é a

missão religiosa. Os portugueses têm a obrigação de difundir a verdade cristã,

os dogmas de Cristo, salvar os indígenas da perdição da alma. Daí, em meio

às negociações para o armistício, no canto nono, o missionário defender a

convivência entre portugueses e índios, para fins de evangelização:

Mas sagrado dever, por Deos imposto,


Nos obriga a tratar das vossas almas,
Que valem muito mais que a terra toda.
Esqueceis-vos talvez que a luz de Christo
Raiar deve entre vós? Que elle nos manda
Prégar-vos a verdade, e conduzir-vos
Á graça, á salvação, e á liberdade?
Não essa que vos faz andar errantes,
Mas a que livra o homem do peccado,
Do dominio do inferno e da bruteza.
E como este dever cumprir podemos,
Si no meio de vós não habitarmos
Para bem vos servir, edificando
Igrejas, casas, villas, onde o exemplo
Acheis das bôas obras co’a doctrina
Que á civilisação guiar-vos devem? (vv. 5197-5212)

O significado da cristianização extrapola os limites do tema da

religiosidade. Há uma relação de mão dupla entre evangelização e civilização.

Para melhor evangelizar, convém civilizar. Na contramão, a evangelização

garante a manutenção da civilização. No processo de cristianização, um eficaz

expediente é o trabalho, a atividade produtiva. Por isso, fazem-se mister a

xxxix
construção de casas, vilas e o cultivo do campo. Ainda é Anchieta que prega

aos tamoios:

Deos, que o mundo criou, e fez o homem


Dotado de razão, e á imagem sua,
Quer que o homem tambem trabalhe e crie,
E por isso nos dêo a terra bruta:
E quem desobedece á lei suprema,
Cultivar desdenhando a sí e a terra,
Quasi que perde a natureza humana.
Vêde que desejais o proprio damno!”
(vv. 5217-5224)

Roque Spencer observou a conexão entre religiosidade, instrução e

ordem no pensamento de Gonçalves de Magalhães. Acerca da situação

caótica no Maranhão, “Magalhães atribui, antes de tudo, essa situação à

“irreligião de mãos dadas com a ignorância dos povos”, “duas calamidades que

consigo arrastam o desregramento da vida”.5 Mas não se esqueça que o

binômio religião-trabalho foi uma estratégia discursiva elaborada pela igreja,

em tempos colonialistas, para justificar a utilização de mão de obra indígena

em suas propriedades, como engenhos de açúcar e fazendas de diversas

culturas. Boris Fausto fala das duas tentativas de escravização indígena. Uma

empreendida pelos colonos.

A outra foi tentada pelas ordens religiosas, principalmente pelos jesuítas, por
motivos que tinham muito a ver com as suas concepções missionárias. Ela
consistiu no esforço para transformar os índios através do ensino em “bons
cristãos”, reunindo-os em pequenos povoados ou aldeias. Ser “bom cristão”
significava também adquirir os hábitos de trabalho dos europeus, com o que se
criara um grupo de cultivadores indígenas flexível em relação às necessidades
da Colônia. (FAUSTO: 2006, 23)

Nessa linha de interpretação, não que A Confederação se subscreva à

crença na redenção pelo trabalho ou pela civilização. O discurso de Anchieta, à

xl
parte o teor religioso, deve transmitir, por coerência histórica, uma visão de

mundo colonialista. No poema, instaura-se, portanto, um conflito não apenas

entre personagens ou grupo de personagens, mas entre ideologias. De um

lado, os portugueses com o colonialismo. Do outro, o anti-colonialismo dos

confederados.

Talvez isso ajude a explicar um fenômeno curioso para uma epopéia.

N’A Confederação, há maior incidência de cenas de agón verbal em detrimento

ao agón físico. De fato, as batalhas entre índios e portugueses principiam

apenas no oitavo canto. Interrompem-se no nono e são retomadas no décimo,

com a derrota dos tamoios. Até o antepenúltimo canto, uma sucessão de

debates e discussões parece procrastinar a ação central do poema e até, em

certa medida, desvirtuá-la em digressões sem fim.

No canto primeiro, Aimbire convence Pindobuçu a participar da

confederação. O canto segundo é dedicado à assembléia entre os principais

chefes. No canto terceiro, há o diálogo entre Aimbire e os franceses. A

discussão entre o chefe dos tamoios e o pajé, que preside o sortilégio da

Tangapema, localiza-se no canto quarto. No canto seguinte, Jagoanharo e

Tibiriçá encontram-se e debatem longamente. A aparição de São Sebastião e

seu discurso pró-rendição dos índios figura no canto sexto.

Um esboço de agón físico irrompe no canto sétimo. Aimbire intenta

vingar-se de Brás Cubas, porém volta atrás por pena, ao ouvir os rogos de

Maria. Mesmo assim, na maior parcela do canto, verificam-se diálogos a) entre

Aimbire e Parabuçu sobre as inquietações de ambos acerca de Iguaçu, a

escravidão e, após o episódio com Brás Cubas, o motivo de recusa à vingança;

e b) entre Anchieta e Francisco Dias, na tentativa baldada de resgate de

5
BARROS: 1973, 116

xli
Iguaçu. Finalmente, no canto oitavo os tamoios invadem São Vicente, mas a

seguir o canto nono é quase todo tomado pelas negociações de paz com os

missionários. Com efeito, trava-se a luta muito mais pela oratória do que pelas

armas, visto que n’A Confederação instaura-se, antes de mais, o embate entre

idéias.

A subordinação ideológica da religiosidade ao colonialismo também vem

à tona no sonho de Jagoanharo com São Sebastião. O santo, entidade sobre-

humana, aconselha que os índios aceitem o jugo colonialista, a despeito dos

maus tratos dos colonos, em nome da causa maior, a verdade cristã:

“Indio! si amas a terra em que nasceste,


E se podes amar o seu futuro,
A verdade da Cruz aceita e adora.
Que importa quem a traz ser inimigo,
Se o bem fica, e supera os males todos!
Bons e máos, tudo serve á Providencia!
Como de um fructo putrido, lançado
Sobre a terra, a semente germinando,
Nova arvore produz, e novos fructos;
Assim desses crueis, corruptos homens,
Que vos flagellam hoje, um sancto germen
Aqui produzirá filhos melhores.
Invencivel poder tem a verdade,
Que o Christo do Senhor, na cruz morrendo,
Legou aos homens todos – que se amassem!
Amor é igualdade, paz, justiça,
Fraternal união, e caridade:
Estas são as lições que a cruz nos dicta.”
(vv. 3381-3398)

Em verdade, Aimbire percebe a grande contradição entre palavras e

atos dos portugueses, que depõe contra a pregação religiosa. Não desgosta

dos ensinamentos de Cristo, propagados pelos missionários. Chegou até a

demonstrar certo interesse quando os ouviu dos calvinistas, de modo a reter as

informações que compartilha com os amigos no início do canto terceiro. O

xlii
problema é que a violência do colonialismo se choca com as premissas cristãs

de igualdade, paz, justiça, união, caridade, etc.

É do conhecimento do chefe dos tamoios que, mesmo em terra

estrangeira, mata-se e morre por causa de Deus. A contradição novamente se

evidencia no diálogo entre Jagoanharo e Tibiriçá. O jovem guaianá não

acredita que um deus tão bom, conforme a propaganda do tio assimilado,

concorde que dois irmãos briguem entre si. N’A Confederação, a vinculação

entre catolicismo e colonialismo, portanto, simula o discurso característico dos

jesuítas, mas ao mesmo tempo é desmascarada, é posta em relevo,

constituindo uma crítica à mentalidade colonialista. A guerra ao anti-

colonialismo se pratica no nível do enunciado e da enunciação.

Esclareça-se que a crítica não se dirige pontualmente à religiosidade,

mas ao discurso católico-colonial que dissimulava os verdadeiros objetivos da

Coroa portuguesa. Os missionários em si, enquanto homens de fé, ganham

envergadura de heróis, na medida em que transcendem os limites do humano.

Atuam em condições precárias, passam fome e sede, enfim, não temem

adentrar desarmados o território “inimigo”. Anchieta, assaz eufemizado pelo

enunciador, talvez se iguale a Aimbire em bravura e importância para a ação

central do poema. Além disso, é poeta e marco zero de uma tradição à qual se

filiam grandes nomes da poesia brasileira:

Mas quem alli seus cantos entendia?


O céo, o puro céo a quem cantava;
Esse céo que o inspirava; e após, mais tarde,
Biblicos psalmos inspirou a Caldas,
E a San-Carlos os cantos numerosos
Da sidérea Assumpção da Sacra Virgem:
Esse céo, onde os Anjos já sabiam
Os nomes de Durão, dos Alvarengas,
De Basilio, e de Claudio, e de outros vates,
Que em seculos futuros assomando,

xliii
A terra do Cruzeiro honrar deviam.
(vv. 5631-5641)

A coerência histórica, no entanto, fala mais alto. Conquanto em muito se

empenhe pela paz entre índios e portugueses, Anchieta viaja à Bahia em busca

do reforço que determinará o esmagamento dos tamoios. Não fosse isso, a

guarnição de Estácio de Sá, que já dava mostras de cansaço e falta de

munição, amargaria a derrota. O missionário, inclusive, ganha condecoração

pela execução da tarefa.

A historiografia ensina que igreja e Coroa estreitaram laços na aventura

ultramarina por uma questão de sobrevivência.

Em princípio, houve uma divisão de trabalho entre as duas instituições. Ao


Estado coube o papel fundamental de garantir a soberania portuguesa sobre a
Colônia, dotá-la de uma administração, desenvolver uma política de
povoamento, resolver problemas básicos como o da mão-de-obra, estabelecer
o tipo de relacionamento que deveria existir entre Metrópole e Colônia. (…)
Nesse sentido, o papel da Igreja se tornava relevante. Como tinha em suas
mãos a educação das pessoas, o “controle das almas” era um instrumento
muito eficaz para veicular a idéia geral de obediência e mais restritamente de
obediência ao poder de Estado. (FAUSTO: 2006, 29)

Os sintomas do comprometimento entre igreja e Coroa na educação

jesuítica estão bem representados n’A Confederação pelo discurso de Tibiriçá.

A argumentação do cacique guaianá, dobra do assimilacionismo, fundamenta-

se no respeito e na lealdade incondicionais ao rei de Portugal. O rei paira

acima de todos, acima de tudo. Dono das terras, destina-as a quem quiser. “O

Rei tira, o Rei dá, o Rei é dono/ Das terras, e do mar; é senhor nosso.”

(vv.2477-2478). Obviamente, pelo preço da catequese, Tibiriçá adquiriu uma

mixórdia de catolicismo e absolutismo, sustentáculo da monarquia por direito

divino.

xliv
Na disputa retórica com Jagoanharo, o cacique não logra vitória. Cala-se

e reza para que uma força superior dissuada o sobrinho de engrossar as

fileiras anti-lusitanas. Segue-se a fala tautológica de São Sebastião em sonho,

ilustrada sedutoramente com recursos maravilhosos. Entretanto, oratória

nenhuma é eficaz para encobrir a realidade. O êxtase do jovem guaianá

esboroa-se com a visão de Iguaçu conduzida como escrava. Eis o verdadeiro

lugar dos índios no imperialismo português.

Em vários níveis, a articulação discursiva d’A Confederação afirma-se

contra a ideologia colonialista. A opção de se colocar o índio como herói por si

só subverte o paradigma da poesia colonial. No De gestis Mendis Saa, de

Anchieta, o herói, como o próprio título sugere, é Mem de Sá, não passando os

índios de bestas-feras. O único momento em que são eufemizados ocorre na

ajuda aos portugueses contra outros indígenas. Na Prosopopéia de Bento

Teixeira, louva-se Jorge D’Albuquerque Coelho, o fundador de Pernambuco, o

civilizador da região. Também na épica árcade de Cláudio Manuel da Costa,

Basílio da Gama e Santa Rita Durão, as figuras de relevo são fidalgos

portugueses: Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, Gomes Freire de

Andrade e Diogo Álvares Correia.

Ao deslocar o índio do antagonismo para a posição de protagonista e

colocar os portugueses como antagonistas, Magalhães transgride

narratologicamente o cânone de até então. O sestro revisionista impregna

inclusive a seleção de recursos poéticos, modelando a camada fônica do

poema. Na advertência à segunda edição, o autor defende de maneira

veemente uma sonoridade anti-tradicional. Recusa-se à monotonia das rimas e

à rigidez da oitava-rima. Prefere a espontaneidade do verso branco e a

xlv
liberdade da estrofação irregular, que servem melhor à complexidade dos

páthoi e subgêneros presentes no poema épico.

Na cronologia da produção literária de Magalhães, A Confederação

localiza-se numa espécie de fecho de ciclo. Eis como o autor avalia a epopéia

na advertência à segunda edição:

O poema epico, encerrando em sí todos os generos de poesia, e sendo


a composição mais longa e difficil do espirito humano, exaltado pela inspiração,
devera talvez adoptar todas as fórmas poeticas, para melhor exprimir a parte
heroica, a lyrica, a tragica, a didactica, a discriptiva e a dialogica; (…).

O primeiro livro de Magalhães, Poesias (1832), consiste numa

compilação poética ainda ao sabor neo-clássico, cujas composições o próprio

autor criticará e reformulará quando da republicação nas Obras completas pela

Garnier em 1864. Em 1836, publicam-se em Paris os Suspiros poéticos e

saudades, marco do Romantismo brasileiro. Quanto ao gênero literário, não há

diferença entre os dois primeiros livros. Ambos trazem poemas líricos. A

discordância fundamental dá-se pela adesão ao movimento romântico, cujos

pressupostos Magalhães já demonstrara ter assimilado no primeiro número da

revista Nitheroy, fundada no mesmo ano.

Por meio dos Suspiros poéticos, transplanta-se para a poesia brasileira a

estética romântica em voga na Europa. No Brasil, os críticos com freqüência se

referiam ao Romantismo como a escola do Dr. Magalhães. Nitidamente o autor

descreve uma trajetória literária fundacionista não somente em vários gêneros,

bem como em tipos textuais e áreas do conhecimento. Luiz Alberto Cerqueira

lhe advoga o status de fundador da filosofia brasileira.

Imediatamente após a publicação dos Suspiros poéticos, Magalhães

lançou-se ao gênero dramático. Concluiu ainda em 1836 Antônio José ou o

xlvi
poeta e a Inquisição, outro referencial do Romantismo no Brasil, dessa feita no

teatro. Encenar-se-ia a peça posteriormente em 1838, com a edição em livro no

ano seguinte. Com as duas obras, o autor contemplou dois dos três gêneros

literários. Restaria, portanto, o terceiro: a epopéia. Note-se que, na nascente

grega, a ordem cronológica dos gêneros vai da lírica para o drama, passando

pela epopéia. Magalhães, porém, avança de acordo com uma compreensão

orgânica acerca dos gêneros, em que a lírica e o drama seriam peças num

quebra-cabeça mais complexo: a épica. A Confederação, assim, encerra um

primeiro segmento do sistema Magalhães sem dúvida voltado à fundação e

reformulação do cânone. Considerados organicamente, Suspiros poéticos e

Antônio José são degraus na escalada de Magalhães rumo a uma realização

maior, A Confederação.

Transgredir o cânone não significa negá-lo por completo. Na dialética do

deslocamento estético, como em qualquer dialética, fazem-se mister alteridade

e identidade. A delimitação das fronteiras dos estilos de época passa antes

pela problemática da conjuntura, isto é, do encontro entre gerações, da

confluência de elementos conservadores e renovadores. Na eleição do índio

como herói, há todo um gesto de ruptura por parte de Magalhães. Contudo,

existem ainda remanescentes classicizantes n’A Confederação, a exemplo do

próprio formato em versos para uma narrativa, criticado por Alencar.

Embora subscreva-se ao Romantismo, Magalhães não esconde raízes

clássicas e conserva algo do sotaque árcade. Foge ao enfado de padrões

rímicos. Critica a oitava-rima. Mas os 6.104 versos d’A Confederação acham-se

rigorosamente no esquema rítmico do decassílabo heróico, com os acentos

xlvii
tônicos mais intensos nas sexta e décima sílabas métricas. Eis a escansão de

alguns versos de abertura:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Oh| sol,| as|tro| pro|pi|cio,| que a|bri|lhan|tas
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Do| cri|a|do u|ni|ver|so al|tos| pro|di|gios;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Que aos| bos|ques| dás| ver|dor,| do|çu|ra aos| fruc|tos,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
E os| pé|ta|los| das| flo|res| vá|rio es|mal|tas!

e de fechamento do poema:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Mo|nar|cha| Bra|si|lei|ro, a|cei|ta o| can|to
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Que| Te| de|di|ca o| va|te a|gra|de|ci|do;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
E| fa|ze| que ou|tros| mui|tos| mais| di|to|sos,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Po|rêm| não| mais| da| nos|sa| ter|ra a|mi|gos,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
E|ter|na| glo|ria| dêm| a| Ti, e| á| Pa|tria.

Dividida em dez cantos, a arquitetura d’A Confederação lembra a

organização d’Os Lusíadas, utilizada também por Santa Rita Durão. Principia a

obra com invocação, morfema da epopéia por excelência clássico. Na euforia

anti-lusitana de uma intelligentsia brasileira ávida por nova literatura, fórmulas

greco-latinas desmereciam a criação e o autor. Magalhães, por seu turno, não

se abalava com os radicalismos dos críticos. Em carta inédita6 a Araújo Porto-

Alegre, sentencia:

Os criticos accusam os poetas de faltas de invenção, quando elles seguem a


risca certas regras, e os exemplos dos que sem ellas primeiro inventaram;
querem até como o meu critico uma poesia toda nova, ainda não pensada, nem
sonhada, escripta com uma penna não sei de que passaro, que elle

6
Cf. transcrição integral da carta no Anexo A.

xlviii
provavelmente conhece, mas que não quiz nomear, para que ninguem possua
o seu segredo de embeber uma dessas pennas garridas nas cores das
palhetas do Brasil. Mas si nos desviamos um pouco da estrada batida, eil-os
que caiem-nos em cima com Homero, Virgilio, Camões e Tasso! Quem póde
ser juiz com taes mordomos, ou mordomo com taes juizes?

A bem da verdade, sob a superfície de signos tradicionais, borbulha o

revisionismo na forma como se opera com o cânone. Na invocação, o sujeito

poético dirige-se não a Mnemósine, como os antigos. Convoca os gênios da

natureza, porque testemunharam as desventuras dos tamoios. Sendo assim,

eles, muito mais que a musa grega, guardam a memória a ser resgatada e

eternizada pela escritura da épica.

Faunos, ninfas, ovelhas, montes e grutas, enfim, o acervo simbólico

clássico é substituído pela cor local. A calmaria estática cede lugar ao

dinamismo. N’A Confederação, mesmo as marcas territoriais, que delimitam o

espaço da ação, são fluidas em sentindo máximo, porque correspondem aos

rios Amazonas e Paraná, balizas nacionais respectivamente ao norte e ao sul.

Os rios serpenteiam em leitos paulatinamente engrossados por afluentes.

Cenário em constante transformação, renovação.

Nas comparações com a Antigüidade, o universal sempre sai derrotado

pela natureza e seres brasílicos. Sozinho, o Amazonas supera o Kiang, o Nilo,

o Volga, o Mississipi, rios de grandes nações. A exuberância da fauna e da

flora americanas vence as imagens da Grécia antiga eternizadas pelos poetas:

Oh vós da Grecia deleitosos campos,


Onde o Alphêo e o Eurotas serpenteam,
E em cujas margens Dryades habitam!
Montes, que dais abrigo em vossos topes,
De loureiros á sombra, ás castas Musas;
Vós não assoberbais a majestade
Destes montes brasilios, destes bosques!
Desdenha este sumptuoso Paraiso
As sonhadas ficções da mente humana;
Malignos Faunos, pudibundas Nymphas

xlix
Nestas virgens florestas não vagueam:
Grande como sahio das mãos do Eterno,
A Natureza é tudo, e excede ao homem,
Que ha de bem cedo emparelhar com ella!
Oh placido remanso!… Aqui a mente
Repousa, e se deleita em contemplal-o;
E no intimo d’alma, que se espraia,
Resôa de seu Deos a voz cadente,
Como resôa em bosques de palmeiras
Vago sopro das auras matutinas. (vv.132-151)

A representação da natureza n’A Confederação não fica apenas no

fascínio pela abundância de recursos naturais. Se assim fosse, nada

acrescentaria ao que se vê desde os primeiros cronistas até os árcades. A

descrição da paisagem que Diogo Álvares Correia faz a Henrique II, no canto

sétimo do Caramuru, por exemplo, estende-se por uma longa enumeração de

peculiaridades vegetais e zoológicas dos trópicos, como quem inventaria itens

interessantes a ser explorados.

Na epopéia de Magalhães, a paisagem é mais do que coisa. É um

organismo vivo, pulsante e dotado de memória. Testemunha tanto a história

coletiva, quanto pequenos episódios da vida privada dos índios. As águas da

Tijuca aplacaram a sede de Aimbire e o banharam. Do rio Catete, o chefe dos

tamoios tirava o alimento através da pesca. As margens do Carioca lembram-

se ainda das cantigas de sua mãe. As terras de Niterói acompanharam-lhe

passo a passo a infância. Guardam agora os restos mortais de seu pai.

Estabelece-se, pois, uma relação de afeto e proteção mútuos entre

íncola e natureza. O índio defende-a da depredação extrativista. Deprime-se ao

vê-la destruída. No canto sétimo, Aimbire teme inclusive que não mais exista o

ipê ao pé do qual sepultou as cinzas do pai. Ainda que exulte de felicidade por

localizá-lo, entristece-se com o avanço do desmatamento. Troncos decepados

l
das raízes jazem ao chão. Aniquilaram-se árvores antiqüíssimas, memoráveis,

apagando-se aos poucos a história.

Na urdidura retórica do poema, constroem-se antíteses entre campos

semânticos em torno às noções de vida e morte. Prosopopéias e

personificações animizam a natureza, para que, por meio do contraste, se

sobressaiam intensa e persuasivamente os efeitos nocivos da exploração

colonialista. No nível discursivo, a tese que atravessa A Confederação de fora

a fora e que se ilustra das mais variadas formas é: o colonialismo português

destruiu nossas matas, nossos índios, aleijou nossa história e nossa

mentalidade.

A terra, por seu turno, retribui o zelo dos indígenas. Frente à tristeza e

solidão, Iguaçu dialoga com a própria natureza, que lhe responde em ecos. O

sabiá comove-se com os sofrimentos da esposa separada do marido pela

guerra. Amiga dos índios, a natureza os protege do inimigo. O sol é implacável

aos portugueses. No terceiro dia de batalha contra os franceses, Aimbire

observa que os lusos se mostram no limite das forças e torcem pela chegada

da noite, quando enfim virá a trégua momentânea das armas e dos raios

solares. Engajadas na causa pela liberdade, as florestas reboam o grito de

guerra dos tamoios, “Como se elas também a nós se unissem!”

O revisionismo também se verifica na forma como as fontes históricas

foram manipuladas nas notas abonadoras do poema. Em princípio, a

paratextualidade d’A Confederação aparenta fazer eco ao discurso

historiográfico colonial, uma vez que se utilizam Gabriel Soares, Rocha Pitta,

Sebastião Vasconcelos, etc.. Em determinado momento, fica a impressão de

que Magalhães retoma Santa Rita Durão e incorre em tautologia.

li
A primeira nota do canto segundo, relativa ao verso 620, explica o

significado da palavra Monan, divindade indígena responsável pela criação do

universo. Magalhães afirma que a informação aparece na Cosmographia de

Thevet, mas não está bem certo onde o religioso se baseia, se nos escritos de

Villegagnon ou no testemunho de um certo Pedro, português quase morto

pelos Tupinambás. De qualquer forma, o interessante é como avalia a fonte:

“[Thevet] mostra-se vacillante, e contradictorio a respeito das crenças religiosas

dos povos brasilios (…).”

Na segunda nota, acerca do verso 624, também no canto segundo,

Magalhães problematiza o antológico juízo de Gabriel Soares quanto a uma

anarquia que haveria entre os indígenas. Simão de Vasconcelos o reproduziu

na Chronica da Companhia de Jesus. Ambos os autores celebrizaram-se por

avaliar que os índios não tinham fé, lei e rei por causa da falta das letras F, L e

R no alfabeto. Após citar Vasconcelos, Magalhães arremata: “Como si em

todas as nações, em todas as linguas sómente assim se devessem chamar as

cousas correspondentes a esses nomes!” Torna a transcrever o cronista e

desdenha de sua argumentação: “Que razão! Que provas!”

Ainda na mesma nota, questiona:

Mas pergunto: si assim tão brutos e independentes eram os selvagens


da raça Tupica; si nada dessas cousas tinham; si em nada criam; si a ninguem
respeitavam e obedeciam; si por nenhuma lei o practica se regiam: como então
acreditavam elles na existencia de um Ente Supremo, a quem denominavam
Tupan?

Em certa medida, Magalhães não é o primeiro épico brasileiro a

discordar da ausência de religiosidade entre indígenas. Durão também

combateu a visão desqualificadora dos cronistas e historiadores setecentistas,

lii
asseverando que havia uma teologia brasílica pré-existente à chegada dos

portugueses. No canto terceiro do Caramuru, o cacique Gupeva explana com

pachorra pressupostos da religião tupinambá, a pedido de Diogo Álvares

Correia.

O diferencial de Magalhães dá-se na desconstrução sistemática do

discurso historiográfico colonial. Não se trata apenas do pormenor da

religiosidade, mas da representação indígena. Da mesma forma que afirma a fé

dos índios, expõe indícios que comprovam uma cultura brasílica munida de

leis, moral, organização sócio-política:

Como viviam em tabas ou aldeias? Como elegiam os seus Caciques,


escolhendo os mais capazes para esse cargo, si o fallecido chefe não deixava
filho ou irmão com as qualidades necessarias para isso, segundo nos assegura
o mesmo Gabriel Soares?

Se na paratextualidade do Caramuru há uma batalha retórica contra os

libertinos, nas notas d’A Confederação se desmonta palmo a palmo a

concepção colonialista de índio. Ao estudar as fontes históricas para a

composição do poema, Magalhães percebe que a historiografia do Brasil está

cheia de lacunas, maniqueísmos, enfim, carece ser rescrita. Por trás do mito da

irracionalidade e da desumanidade, transmitido de colono em colono e de

cronista em cronista, havia o interesse de tornar escravos os brasílicos, como

se capturasse um animal qualquer, sem pena, sem consciência de culpa:

Eis pois revelado o segredo de todas as calumnias contra os pobres Indios!


Cremos que bem se póde louvar a civilisação, e apreciar os serviços prestados
pelos primeiros colonisadores desta parte da America, sem que por isso
necessario seja infamar e calumniar os Indios.

liii
Mesmo a antropofagia, ponto pacífico entre os autores coloniais a

comprovar incontestavelmente a bestialidade dos índios, merece a atenção de

Magalhães. Eis o que diz a segunda nota do canto sétimo, a respeito do verso

4093, em cuja passagem o eu poético sugere que os próprios portugueses

instigavam os indígenas a comerem carne humana:

Para que não cream ser exageração poetica, e para que vejam mesmo que
não me animei a dizer em verso o que sobre isto li em prosa, transcreverei aqui
o periodo de uma carta do respeitavel padre Manoel da Nobrega, dirigida ao
governador Thomé de Sousa, em data de 5 de Julho de 1550. Diz a carta: “Em
toda a costa se tem geralmente por grandes e pequenos que é grande serviço
de Deos Nosso Senhor fazer aos gentios que se comam, e se travem uns com
os outros, e nisto tem mais esperança que em Deos vivo: e nisso dizem
consistir o bem e segurança da terra, e isto approvam os capitães e prelados,
ecclesiasticos e seculares, e assim o poem por obra todas as vezes que se
offerecem, e d’aqui vem que nas guerras passadas que se teve com o gentio
sempre dão carne humana a comer, não sómente a outros Indios, mas a seus
proprios escravos. Louvam e aprovam ao gentio o comerem-se uns aos outros,
e já se acham christãos a mastigar carne humana para dar com isso bom
exemplo ao gentio.”
Esta carta, bastante longa e interessante, acha-se impressa no tomo
6.º dos Annaes do Rio de Janeiro, por Balthasar da Silva Lisboa, da página 63
á 101.

A paratextualidade d’A Confederação ganha autonomia no decorrer do

poema, na medida em que envereda por um (re)fazer historiográfico. Não serve

apenas ao mero objetivo de explicar ou sustentar o que vai nos versos.

Transcende a subordinação à mancha textual e, lida em absoluto, revela-se um

conjunto articulado de pequenos ensaios de gramática, lexicologia,

antropologia cultural e historiografia.

A última nota do poema, referente aos versos 6045 do canto décimo,

registra de forma esclarecedora a preocupação de Magalhães com a

construção do discurso historiográfico. Trata-se de uma extensa crítica à

afirmação de Francisco Adolfo Varnhagen, na História Geral do Brasil (1857),

segundo a qual a civilização do Brasil não deveria nada aos “Aimbires”, ou

liv
seja, ao heroísmo dos indígenas. O autor d’A Confederação interpreta que

Varnhagen se refere pontualmente ao herói do seu poema e, por isso, decide

responder.

Começa exemplificando, com grandes epopéias da literatura universal,

que nas bases das civilizações se acham episódios execráveis. Em Homero,

louvam-se a ira de Aquiles, o incêndio de Tróia e o vilipêndio ao cadáver de

Heitor. O ponto central do poema de Milton é a desobediência de Adão às

ordens de Deus, outro exemplo a ser evitado por um homem civilizado. Sendo

assim, frente a ações tão vis, Magalhães não entende por que não se admirem

os feitos dos índios, que, guiados por nobre sentimento e amor à terra, lutaram

pela liberdade contra o “saguinario trafico do sordido egoismo que se apavona

de meio civilisador.”

Lembra o autor que a fundação do Rio de Janeiro consistiu numa

estratégia lusitana de prevenção contra futuras ações franco-indígenas. De

fato, a intensificação da ocupação territorial na colônia é tardio no século XV.

Ocorre somente a partir da segunda metade, em função de a Coroa temer a

perda das terras de além-mar para franceses ou das vilas para os índios.

Nesse sentido, a análise de Magalhães confere com interpretações da

historiografia contemporânea para o Brasil colonial:

Os franceses entraram no comécio do pau-brasil e praticaram a pirataria, ao


longo de uma costa demasiado extensa para que pudesse ser guarnecida
pelas patrulhas portuguesas. Em momentos diversos, iriam mais tarde
estabelecer-se na Guanabara (1555-1560) e no Maranhão (1612-1615).
Considerações políticas levaram a Coroa portuguesa à convicção de
que era necessário colonizar a nova terra. (FAUSTO: 2006, 18)

Na mesma nota, Magalhães declara não aderir ao maniqueísmo que

dicotomiza índios e portugueses em bárbaros e civilizados. Pondera que os

lv
lusitanos construíram coisas notáveis no Brasil com a ajuda dos indígenas,

empreendimentos herdados pela civilização brasileira. A classificação do íncola

como selvagem e do estrangeiro como civilizador encobre as ações bárbaras

do luso e as virtudes do brasílico, que, como Aimbire, pode legar exemplos de

civilidade, como pietas filial, patriotismo, denodo pela liberdade, respeito, etc..

Conclui o autor que, numa epopéia, o herói regula a unidade de ação,

não passando de convenção artística. “Outro é o fim das Epopéas, e o genero

humano que as applaude, mais se interessa com o canto do que com os

heróes cantados.” Como se afirmou, A Confederação resulta de reflexões

conceituais, experimentos, sucessivas modificações e arremata um ciclo de

obras poéticas. No entanto, o poema indica uma nova etapa, a necessidade do

(re)fazer historiográfico. Já que epopéia e historiografia não se confundem, pois

o poeta se compromete com gozo estético e o historiador, com a verdade

histórica nua e crua, os problemas da historiografia devem ser resolvidos

dentro da própria historiografia.

Não é à toa que, enquanto elabora A Confederação, Magalhães passa a

se dedicar à escrita historiográfica. Publica em 1848, na Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, o ensaio A revolução da Província do

Maranhão desde 1839 até 1840: Memória histórica e documentada. Três anos

após a primeira edição d’A Confederação, tornará a explorar a questão do índio

em Os indígenas do Brasil perante a História, publicação também do IHGB, de

1859.

lvi
2.1.3. Tradição da obra

2.1.3.1. Percurso histórico

Do manuscrito de Antônio José ou o Poeta e a Inquisição, consta um

pós-escrito segundo o qual a redação d’A Confederação começou em 1837.

Por outro lado, não foram localizados até agora indícios materiais da pré-

história do poema, senão as publicações esparsas na Revista Nacional e

Estrangeira de dois anos depois. Da mesma forma, são por enquanto de

paradeiro desconhecido quaisquer originais manuscritos autógrafos. Hélio

Viana alude a um exemplar com anotações de Magalhães enviado a Pedro II,

mas não se trataria propriamente de um original empregado como modelo para

a edição ou reedição da obra.

Embora Magalhães tenha publicado apenas dois itens relativos à

Confederação em 1839, o material já traz o embrião de quatro cantos, a saber,

os primeiro, quarto, sétimo e oitavo. As alterações do estado da Revista

Nacional e Estrangeira para o da editio princeps abrangem desde modificações

micro-estruturais, como acréscimo, supressão e modificação de versos, até

remanejamento da matéria narrada. A rigor, conforme os títulos, os itens dizem

respeito aos cantos primeiro e quarto, porém o cotejo com a edição de 1856

revela que do embrionário canto primeiro se originaram os cantos sétimo e

oitavo. À parte mudanças mais localizadas, o canto quarto foi posteriormente

alongado, mantendo a mesma unidade nos testemunhos posteriores.

Curiosamente a primeira amostra que Magalhães dá d’A Confederação é

o canto quarto, publicado em maio de 1839. Dois meses depois, em julho, o

canto primeiro viria a público. No canto quarto, há a despedida dos guerreiros,

que seguem pela floresta para o ataque à vila de São Vicente, deliberado na

lvii
assembléia do canto segundo. A meio do canto, lia-se originariamente o

subtítulo “IGUASSÚ”, marcando o início do monólogo da esposa prometida de

Aimbire. O lirismo da fala da índia destacava-se de tal forma, que parecia ser o

assunto principal. Entretanto, na editio princeps, o canto passou a abrigar

também o episódio da tangapema, que se sobrepôs ao monólogo de Iguaçu,

pela funcionalidade (elemento maravilhoso), dramaticidade (tensão entre

Aimbire e o Pajé) e extensão em versos (271 contra os 129 da cena da índia).

No estado da Revista Nacional e Estrangeira, o canto primeiro abarcava

elementos dos cantos primeiro, sétimo e oitavo do estado da edição de 1856.

Abrangia a invocação ao sol e aos gênios da natureza, a descrição das belezas

do Brasil, dos rios Amazonas e Paraná, comentários acerca dos indígenas, a

chegada dos portugueses e a escravização dos brasílicos. Além disso,

mencionava o fato de Anchieta e Nóbrega não lograrem êxito ao tentarem

dissuadir os lusos dos maus tratos aos índios e a questão do livre-arbítrio

trabalhada nos versos 4059-4067, ambos remanejados para o canto sétimo.

Remetia ainda aos ardis de Satã para desencaminhar os lusitanos, refundidos

no canto oitavo. Na versão definitiva, o canto primeiro ganhou a cena em que

Aimbire chega à aldeia de Pindobuçu e assiste ao funeral de Comorim, gancho

para o canto segundo.

Na edição de 1856, A Confederação enfim apareceu completa em

público. Em 20 de maio, Francisco de Paula Brito, responsável pela tipografia

imperial Dois de Dezembro, entregou os primeiros exemplares a Pedro II.7 Ao

que tudo indica, havia grande expectativa e ansiedade em se ler o poema de

Magalhães, haja vista os comentários sarcásticos dos críticos que atacaram a

obra e o simples fato de se terem publicado dois anos antes os fragmentos

lviii
mencionados. A qualidade do trabalho tipográfico foi muito elogiada, mas o

texto em si recebeu duras críticas, dando margem a uma das mais famosas

polêmicas literárias do século XIX. José de Alencar, sob o pseudônimo Ig.,

publicou de junho a agosto de 1856 no Diário do Rio de Janeiro oito cartas,

ainda no mesmo ano compiladas no livro Cartas sobre A Confederação dos

Tamoios.

Em linhas gerais, Alencar reclama da qualidade do poema, expondo

problemas quanto a rima, métrica, língua, construção de personagens,

descrição das belezas naturais do Brasil, argumento central do poema, dentre

outros. Os ataques instigaram os defensores d’A Confederação a participarem

do debate. Pedro II e Manuel de Araújo Porto-Alegre saíram em defesa de

Magalhães. Fora demais críticas de menor freqüência nas páginas dos jornais,

o frei Francisco de Monte Alverne quis equalizar a situação, apontando tanto

incongruências das cartas de Ig. quanto problemas estilísticos d’A

Confederação.

À guisa de exemplo, a segunda carta de Alencar, publicada a 11 de

junho, aborda em específico o segundo canto do poema. O crítico de início

manifesta profunda decepção a despeito da descrição das belezas naturais do

Brasil. Compara A Confederação aos Natchez, de Chateaubriand, asseverando

que a natureza brasileira na pena de Magalhães em muito deixa a dever às

regiões e rios da América do Norte.

Alencar critica a abertura do segundo canto. Entende que um poeta

épico precisa alçar as raças e as ações à dimensão divina, para fazer jus ao

uso da épica. Reclama da falta de grandiosidade na descrição do conselho. E

prossegue:

7
VIANA: 1970, 64

lix
P’ra acabar co’os ataques reiterados
Dos Lusos, confederão-se os Tamoyos.

Eis o começo do segundo canto.


Eis a causa d’essa grande confederação que merece uma epopéa! Eis o
motivo d’essa guerra de morte, d’essa vingança estrondosa! Eis o principio de
um drama terrivel que acaba pela destruição de um povo!
Não é pelo odio instinctivo da côr, não é pelo opprobrio e a vergonha de
homens livres reduzidos á escravidão, não é pelo seu bello paiz, dominados
por filhos de terras estranhas; não é para vingar as cinzas de seus pais, não é
por nenhum d’esses incentivos nobres, que os Tamoyos se confederão; é
unicamente para acabar com os ataques reiterados dos Lusos. (CASTELLO:
1953, 11)

Outra crítica diz respeito à insistência na tradição acerca das águas do

rio Carioca e do seu poder de adoçar a voz, já aludida no primeiro canto, e uma

certa “inexatidão historica sobre o territorio habitado pelos tamoyos”8, embora

nas notas reveja o comentário. Compara os heróis de Magalhães aos de

Basílio da Gama e avalia que as personagens d’O Uraguay foram compostas

com mais “força e belleza”9. Observando ainda que o autor d’A Confederação

inspirou-se no poeta setecentista, confronta várias passagens em que se

contrastam a pele de jacaré usada por Aimbire e a pele verde negra do índio

d’O Uraguay; as aljavas; os aspectos agressivos de Pindobuçu e Kobé.

A única concessão que faz é quanto à passagem em que Aimbire fala de

seu pai: “Ia escapando-me citar um trecho do poema que, excepção feita de

algumas palavras communs, achei lindissimo, e repassado d’essa poesia

mysteriosa das lendas e dos mythos.”10 A seguir torna a atacar e reclama da

falta de expressividade das cenas de combate entre lusos e franceses e a

excessiva repetição das palavras fogo e sangue, que torna a descrição um

tanto inadequada a um índio, em tese acostumado “aos combates mortiferos

8
CASTELLO: 1953, 12
9
Idem: ibidem, 13
10
Idem: ibidem, 15

lx
de massa e tacape, e a quem por conseguinte essas idéas de sangue devião

parecer naturaes, e não causar tanta impressão.”11

As cartas sobre A Confederação foram publicadas no Diário do Rio de

Janeiro em duas etapas. A primeira, de 10 de junho a 14 de julho, compreende

cinco cartas. A segunda, de 9 a 15 de agosto de 1856, acrescenta mais três.

Em princípio, a crítica limitar-se-ia às cinco primeiras, já que a quinta se

intitulava “última carta”. No entanto, somente após a quinta, começaram a

surgir as respostas. O primeiro contra-ataque, de Porto-Alegre sob o

pseudônimo O amigo do poeta, foi publicado no Correio da Tarde em 23 de

julho, isto é, 9 dias depois da “última carta”. Ao voltar à carga, Alencar

comentaria a demora da reação:

Sentia que, desprezando-se a nobre e generosa deffeza que offerecia


o duplice estimulo da amizade e da poesia se preferisse atirar á lama o poema
do Sr. Magalhães, para d’este modo salpicar aquelle que teve a ousadia de não
achar bom o que sem razão, sem fundamento, se dizia ser sublime.
Quando pois apareceu ultimamente uma refutação ás minhas cartas, e
não um insulto á pessoa que se presumia havel-as escripto, tive uma
impressão agradavel; apezar de tarde, o espirito litterario revelava-se.
(CASTELLO: 1953, 43-44)

Talvez a morosidade da réplica tenha decorrido da falta de sucesso dos

pedidos de Pedro II. Hélio Viana relata o esforço empreendido pelo Imperador

para obter junto a personalidades de vulto literário comentários favoráveis à

Confederação. Alexandre Herculano e o poeta João Cardoso de Meneses e

Sousa alegaram razões que os impedissem de participar da polêmica.

Espantosamente membros da diplomacia brasileira, colegas de profissão de

Magalhães, como Antônio Peregrino Maciel Monteiro, Francisco Inácio de

Carvalho Moreira, Francisco Adolfo de Varnhagen, Joaquim Caetano da Silva e

11
Idem: ibidem, 16

lxi
Joaquim Tomás do Amaral também se esquivaram da tarefa. O frei Francisco

de Monte Alverne, por seu turno, atendeu à solicitação, ainda que tardiamente.

Redigiu as Considerações críticas, literárias e filosóficas, publicadas no Jornal

do Comércio em 23 de dezembro, cerca de quatro meses depois da oitava

carta de Alencar.

Após a edição de 1856, a obra teve no ano seguinte uma reimpressão,

que freqüentemente figura na tradição crítica como segunda edição. No

entanto, apenas a edição brasileira de 1864 traz na página de rosto a indicação

de segunda edição. A reimpressão de 1857 consiste na verdade num codex

descriptivus e não introduz inovações, podendo portanto ser descartada sem

prejuízo do trabalho filológico. Sua importância histórica circunscreve-se a ter

servido de base para a elaboração da edição portuguesa de 1864, conforme

abona a informação inicial. Por isso, as edições brasileira e portuguesa de

1864 são absolutamente diferentes, uma vez que seguem estados distintos do

texto.

Na advertência à segunda edição, Magalhães assume que alterou o

texto:

Revendo o meu livro com mais vagar, não limitei o meu reparo sómente
aos erros de linguagem, ás imperfeições do estylo, e ás asperezas, ou froxidão
de alguns versos mal torneados, na impaciencia de concluir um longo trabalho,
tantas vezes interrompido por outros; muitos acrescentei em varios logares que
pareciam estar pedindo mais qualquer retoque e realce, ou maior
desenvolvimento; sendo que alguns dos addicionados existiam na confusão do
primeiro autographo, e foram omittidos por descuido, quando, em vesperas de
uma longa viagem, apressadamente o passei a limpo. E com todas essas
numerosas emendas e acrescentamentos sairá esta edição muito melhorada, e
tal como desejo que fique, e sirva de norma a qualquer outra que por ventura
se haja de fazer para o futuro, si alguem se lembrar disso.

As modificações não chegam a ser macro-estruturais como as

observadas anteriormente do estado de 1839 para o da editio princeps. O que

lxii
se nota são acréscimos, supressões e modificações de versos, como o próprio

autor declara. Em carta de 31 de agosto de 1856 para Porto-Alegre, até agora

inédita12, Magalhães diz não se abalar com a crítica:

Que pensas? Que fiquei muito afflicto com a leitura das 4 cartas
empressas no Diario do Rio sobre a Confederação dos Tamoyos? Enganas-te.
Não me surpreendeo, nem muito incommodou-me essa critica assim tão
saturada de fel, que por isso mesmo quase prova o contrario do que diz. Eu
não esperava parabens e louvores: quem os merece entre nós só os recebe de
alguns raros amigos.

Refuta alguns dos principais ataques, como a questão em torno à ação

central do poema. Afirma que o crítico

não leo todo o poema, e que vai expor as suas idéas na mesma ordem em que
as formulou, isto é de canto em canto. Dahi afirma que eu faço derivar a acção
do poema, e a alliança das tribus de um incidente insignificante, como seja a
morte de um indio. O que é completamente inexacto. Quando Aimbire se
apresenta a Pindobuçú, e o acha dando sepultura a um filho, que na defesa de
sua tenra irmã, fora morto por alguns colonos que pertendiam raptal-a, já todas
as tribus, como Aimbire altamente o declara, estão confederadas, para defesa
da propria liberdade, das suas vidas, e das suas terras, unicos bens de homens
incultos; Que razão mais forte? Creio que pelo menos vale o rapto de uma
mulher. Não faço pois depender a acção do poema, e a alliança das tribus da
morte de um indio, como erradamente assevera o auctor das cartas. Faltava
uma só tribu; o que fiz de proposito para começar o poema por um quadro
animado de grandes paixoens, por uma scena pathetica e inesperada de uma
familia, de uma tribu inteira que chora a recente morte do filho do seu chefe,
victima do inimigo commum.

A opinião de Monte Alverne é muito próxima:

A morte do indio Comorim, e os amores do heróe tamoyo para Iguassú não são
o objecto principal do poema, nem a origem da Confederação dos Tamoyos.
Que motivo obrigou Aimbire a apparecer nas tabas da Gavia, induzir o chefe
Pindobuçú, um dos mais poderosos caciques, a reunir-se a outros chefes
tamoyos já confederados, a morte de Comorim, a belleza e as desventuras de
Iguassú não entráram nas previsões de Aimbire; nem elle esperava presenciar
as honras funebres do companheiro de sua familia, nem testemunhar as
desgraças da familia de Pindobuçú. Tudo isto é fortuito; é uma bella invenção
do autor, e ministrou á sua imaginação um lindissimo episodio, que o critico
acha incompleto, mas que o autor não julgou dever sobrecarregar de bellezas

12
Cf. transcrição integral da carta no Anexo.

lxiii
para não fazer de um simples episodio principal do poema, como ainda assim
assevera o critico. (CASTELLO: 1953, 124)

Na advertência à segunda edição, Magalhães não menciona críticas

negativas à Confederação. Acerca da revisão da obra, alude aos “louvores, e

ainda mesmo a critica benevola com que o acolheram os litteratos nacionaes, e

alguns estrangeiros”. Cita em nota os nomes de D. João Guttierrez, Ricardo

Ceroni, Ferdinand Wolf, J. Soares de Azevedo, e Inocêncio Francisco da Silva.

Em carta13 ao Imperador de 12 de julho de 1859, o autor justifica os

melhoramentos de outra maneira:

Conveniente julguei ajuntar um Prólogo, mais duas Notas, e aumentar


a 7.ª, do 4.º Canto, para responder às censuras que me fizeram, e prevenir
outras de igual natureza. O nosso público, e ainda mesmo os nossos críticos,
não são tão instruídos que dispensem explicações. (VIANA: 1970, 69)

De fato, a recepção crítica influenciou nas reformulações para a segunda

edição. No entanto, Magalhães tinha por hábito modificar seus textos quando

de novas edições. A Confederação não é um caso isolado de revisão. Veja-se,

por exemplo, a edição crítica dos Suspiros poéticos, para que se tenha noção

do modus operandi do autor. Logo, seria leviano concluir que as alterações no

texto de 1856 significam em absoluto que Magalhães se abateu com a crítica

desfavorável.

A carta a Pedro II pormenoriza inovações que com efeito se verificam na

edição de 1864:

Seguindo o exemplo constante de Camões, e de quase todos os bons


poetas portugueses, escrevo agora para, em vez de p’ra, mais usado no Brasil

13
Publicada por Hélio Viana em VIANA: 1970. A transcrição integral da carta se encontra no
Anexo.

lxiv
que em Portugal; pelo que foi necessário corrigir muitos versos. (VIANA: 1970,
69)

Nos aparatos críticos ao texto d’A Confederação, ilustram-se várias

passagens em que se substituiu p’ra, variante sincopada da preposição para,

mais de acordo com a oralidade brasileira, pela forma plena. Há quatro

categorias decorrentes da substituição da forma sincopada:

a) simples substituição pela forma plena:

primeira edição segunda edição


Que estende os braços p’ra abarcar a terra! Que estende os braços para abarcar a terra! (v.22)

b) simples substituição por outra(s) preposição(ões) com ou sem refusão

do verso:

primeira edição segunda edição


Donde p’ra seus irmãos o mal saía. Donde incessante mal aos indios vinha

Toscas pedras p’ra o tosco monumento. Toscas pedras em tosco monumento. (v.317)

c) substituição com refusão do verso:

primeira edição segunda edição


Tão grande crime fugirá p’ra sempre? Para sempre será tal crime extincto? (v.179)

d) substituição com refusão do verso e adjacências;

primeira edição segunda edição


P’ra acabar co’os ataques reiterados Em defensa da vida e liberdade,
Dos Lusos, confederam-se os Tamoyos. Contra as injustas aggressões continuas
Dos Lusos, confederam-se os Tamoyos. (vv.593-595)

Sobre o último exemplo, haveria ainda outro fator a ser avaliado. Trata-

se da já mencionada crítica de Alencar à abertura do canto segundo. De certa

lxv
maneira, parece que Magalhães aceita o comentário de Alencar. Na primeira

versão, a articulação dos tamoios é definida na abertura do canto apenas como

um levante contra os ataques dos portugueses. Na segunda, a motivação da

conjura tem por valor maior a “defensa da vida e liberdade”, havendo um

possível influxo das palavras de Alencar: “não é pelo opprobrio e a vergonha de

homens livres reduzidos á escravidão, (…) é unicamente para acabar com os

ataques reiterados dos Lusos.”14

Contudo, a problemática da liberdade desde o canto inicial se apresenta de

forma significativa:

“Toda esta terra é nossa, e nunca falta


Terra para os mortaes. O passarinho
Que nos ares nascêo, nos ares vôa,
E nem n’um tronco só seu ninho tece;
Embora sobre a terra o tronco firme,
Supporte a chuva, e o sol, e o vento, e o raio;
Nem tem membros o tronco que o transportem.
Mas nós, homens, a quem Tupan dêo tudo,
Nós, que livres nascémos nestes bosques,
Porque covardes, sem luctar, escravos
Nos faremos agora do estrangeiro?”
Deste geito discorrem os selvagens.
(vv.210-222)

Como o próprio Magalhães escreveu a Pedro II, “o nosso público, e

ainda mesmo os nossos críticos, não são tão instruídos que dispensem

explicações.”15 Talvez o autor tenha, além da substituição do p’ra, aproveitado

para reiterar que os tamoios se confederavam pela causa libertária, frisando

que o levante era “em defensa da vida e liberdade”. De qualquer forma, quase

todas as censuras de Alencar a versos mal metrificados não foram aceitas. O

autor d’A Confederação fala sobre correções de linguagem e de estilo. Com

14
CASTELLO: 1953, 11
15
VIANA: 1970, 63

lxvi
efeito, há correções métricas. Por exemplo, os versos 124 e 504 tinham

originariamente nove sílabas:

primeira edição segunda edição


O ar é tão nectareo, como o aroma Os ares tão nectareos, como aroma (v.124)

Ah, meu filho! parece o estou vendo! Ah, meu filho! parece que o estou vendo! (v.504)

Magalhães alterou seis dos versos censurados por Monte Alverne em

função de cacofonia:

primeira edição segunda edição


Que nem no ar voando ao tiro escapa. Que nem alto voando ao tiro escapa. (v.1273)

Que a par dos versos teus mais te exhaltassem: Que alêm dos versos teus mais te exaltassem; (v.2019)

Até que á par do tio ajoelhou-se. Até que juncto ao tio ajoelhou-se. (v.2409)

Do leal Camarão a par dos netos, Do leal Camarão junctos co’os netos, (v.3202)

A par da Cruz de Christo que o decora, Juncto da Cruz de Christo que o decora, (v.4669)

A par do rico, que no fausto vive Servo do rico, que no fausto vive (v.5275)

No verso 1273, a contração da preposição com o artigo no junto com o

infinitivo ar forma o som desagradável noar, no entender de Monte Alverne. Os

versos 2019, 2409, 3202, 4669 e 5275 são exemplos em que se ouvem os

cacófatos pardo, parda, pardos, apontados também em outras passagens que

não foram alteradas. Magalhães parece atender mais às observações do frei,

de quem foi discípulo, do que às de Alencar. A quinta carta à Confederação

dos Tamoios traz uma seção dedicada à metrificação, em que se listam onze

versos defeituosos. Modificaram-se somente dois, sendo que um deles muito

provavelmente tenha sido alterado por causa do p’ra, a exemplo da segunda

categoria apontada:

lxvii
primeira edição segunda edição
Facil foi-me o passar p’ra adiante os braços, Facil foi-me o passar adiante os braços, (v.1100)

Magalhães fala da inclusão de um Prólogo. Nas Considerações, Monte

Alverne, sobre a estrutura d’A Confederação, aponta um problema de

organização, constante em poemas épicos: a anteposição da invocação à

narração. Segundo o frei, “a invocação deve ser, portanto, posterior á narração

(…).”16 Para corrigir a inversão dos morfemas canônicos da epopéia, sugere

que a invocação contenha “essencialmente a exposição dos grandes factos

que caracterisam a epopéa (…).”17 Provavelmente o poeta pretendeu fazê-lo

para a segunda edição, ao cogitar em “ajuntar um Prólogo”18, mas depois

voltou atrás e o suprimiu, uma vez que não aparece na edição de 1864. O

exemplar com anotações autógrafas depositado na Biblioteca do Imperador,

Museu Imperial de Petrópolis, esclareceria melhor a questão.

A carta a Pedro II de 1859 revela ainda outras alterações comprovadas

pela colatio dos testemunhos. Magalhães suprimiu pronomes que julgou

desnecessários e operou mudanças na colocação pronominal, reiterando a

opção por um padrão mais clássico de língua portuguesa. Daqui também

derivam categorias de modificação:

a) supressão de pronome com pequenas alterações do verso:

primeira edição segunda edição


“Onde estão? Tu perguntas? Pois não sabes Onde estão? E o perguntas? Pois não sabes

b) mudança da colocação pronominal sem refusão do verso:

16
Idem: ibidem
17
CASTELO: 1953, 128
18
VIANA: 1970, 69

lxviii
primeira edição segunda edição
Só faltava-lhe o braço e a experiencia Só lhes faltava o braço, e a experiencia (v.302)

Tencionou substituir em todo o poema a variante inda da preposição

ainda: “Onde se lê inda, pode-se escrever ainda, sem alterar o metro.”19 Em

alguns versos, a alteração se verifica, mas não é uma regra geral:

primeira edição segunda edição


Inda tudo não é! Mesmo no centro Ainda tudo não é! Mesmo no centro (v.270)

Inda que as aguas suas reunissem, Inda que n’um só leito se ajunctassem, (v.56)

Não concorda com a censura ao verso “Pelos mandiocaes e milharadas”

(v.4302). Naturalmente o autor se referia à crítica de Alencar na quinta carta:

Não posso porém deixar de citar-lhe um verso, irmão de muitos outros,


um verso que assentaria bem em alguma satyra de Nicoláo Tolentino, mas que
um prosador, por pouco amor que tivesse ao seu estylo, não o admitiria em
uma descripção poetica.
Eis o verso:
“Pelos mandiocaes e milharadas.” (CASTELO: 1953,
40)

Ainda que não o altere, Magalhães acrescenta o verso “Que tanto afan,

tanto suor custaram.” (v.4303). Objetiva assim “pintar melhor a idéia”20 da

passagem apontada pelo crítico, que não merecia ser modificada ou

substituída por perífrases. Observam-se também ressonâncias das sanções a

respeito da repetição desnecessária de palavras, sublinhada tanto por Alencar,

quanto por Monte Alverne. A repetição transcrita pelo autor das cartas não é

alterada, conquanto haja um deslocamento de sintagma no verso 214:

primeira edição segunda edição


E nem n’um tronco só seu ninho tece; E nem n’um tronco só seu ninho tece;

19
Idem: ibidem
20
Idem: ibidem

lxix
Embora o tronco firme sobre a terra Embora sobre a terra o tronco firme,
Supporte a chuva, e o sol, e o vento, e o raio; Supporte a chuva, e o sol, e o vento, e o raio;
Nem tem membros o tronco que o transportem. Nem tem membros o tronco que o transportem.
(vv.213-216)

Todavia, a colatio atesta passagens em que se substituíram palavras

repetidas muito proximamente:

primeira edição segunda edição


O corpo sacudio, e os fortes braços, O corpo sacudio, e os rijos braços,
E por terra atirou os dous contrarios: E por terra atirou os dous contrarios:
Como ligeiro e forte era meu filho! Como ligeiro e forte era meu filho! (vv.486-488)

Para a grande vingança, de nós digna: Para a digna de nós grande vingança,
Não ha prazer que ao da vingança iguale. Que a vida e a liberdade nos segure.
Não ha prazer que ao da vindita iguale. (vv.578-580)

Além das correções de estilo e linguagem, nos termos de Magalhães,

houve o aumento da paratextualidade. Os cantos primeiro, segundo, quinto e

décimo ganharam cada qual uma nota, somando um total de 4 novas notas

explicativas. Com relação ao acréscimo de versos, a segunda edição inova

com passagens de implicações semióticas variadas. Observa-se, por exemplo,

que foram enfatizados traços semânticos já presentes nas categorias

narratológicas do poema no estado de 1856. O autor conferiu aos índios um

maior aspecto de heroísmo e bravura, problemática apontada por Alencar. A

descrição das armas dos indígenas, que na primeira edição se limitava a um

verso, desenvolveu-se por mais 6:

primeira edição segunda edição


Arcos robustos, e emplumadas flechas. Arcos robustos, lisos, e lustrados
Pelas lixosas folhas de embahiba;
Carcazes cheios de emplumadas frechas
De ligeiras ubás, tendo por pontas
Dentes de tubarões, e ossos buídos,
Seguros com tucúm, de icíca untado,
Que mais o fio aperta, e sêcca o esmalta.
(vv.628-634)

lxx
Com relação a Aimbire, Magalhães procedeu a retoques em diversas

passagens. Alterou, por exemplo, a adjetivação “forte Aimbire” para “heróico

Aimbire” (v. 635). Além disso, a descrição do chefe tamoio ganhou mais

detalhismo com acentuados matizes de severidade e soberania:

primeira edição segunda edição


Aqui se mostra á frente dos Tamoyos, Dos Tamoyos á frente aqui se mostra,
Pelo voto geral primeiro chefe. Pelo voto geral supremo chefe.
Aimbire desde a infancia se amestrára De vulto herculeo, soberano o porte,
Olhar dominador, severo o rosto,
Bella estatua de bronze parecia,
Qual a de um Marte modelára um Phidias.
Aimbire desde a infancia se amestrára
(vv.638-644)

Aprofundou-se a dimensão psicológica do velho cacique Pindobuçu,

personagem de grande força interior. Na caracterização da segunda edição,

passaram a se mencionar a tristeza da viuvez e a postura encurvada,

metáforas da resistência ao sofrimento e ao tempo:

primeira edição segunda edição


De negras plumas, que a tristeza exprimem Com negras plumas, que a tristeza exprimem
Pela morte do filho, qu’inda chora. Da sua viuvez, e a dôr recente
Pela morte do filho, que ainda chora.
Curvo á mágoa, que mais que as cans lhe pesa,
Nas mãos do que lhe resta digno herdeiro
Descança do commando o sceptro e as honras;
Mas da antiga bravura exemplo dando,
Dos perigos da guerra não se exime.
(vv.684-691)

Muitas outras alterações não só em torno às personagens, bem como ao

espaço, nas descrições da paisagem brasileira, poderão ser conferidas ao

longo dos aparatos críticos ao texto d’A Confederação. Neste primeiro

experimento, privilegiaram-se somente as variantes autorais, deixando-se para

lxxi
uma etapa posterior as flutuações ortográficas, merecedoras de um estudo à

parte, e as variantes de transmissão.

2.1.3.2. Testemunhos

Os manuscritos d’A Confederação ainda se encontram em paradeiro

desconhecido. Como se disse, há um exemplar com anotações de Magalhães

na Biblioteca do Imperador, Museu Imperial, enviado a Pedro II em anexo à

carta com as explicações sobre mudanças no texto para a segunda edição. O

testemunho, porém, não consiste propriamente num original, já que, de acordo

com a carta, apresentaria um prólogo, que não figura nas edições da obra. O

material, portanto, teria mais importância genética do que filológica.

Dessarte, a tradição impressa do poema compõe-se essencialmente a) e

b) das publicações dos cantos quarto e primeiro na Revista Nacional e

Estrangeira (1839); c) da primeira edição (1856); c’) da reimpressão da primeira

edição (1857); e) da edição portuguesa (1864); d) da segunda edição (1864); e)

da primeira edição da antologia Grandes poetas românticos do Brasil (1949),

em que foi compilada juntamente com outras obras de Magalhães; f) e

finalmente da mais recente edição (1994), sob os auspícios da Secretaria de

Estado de Cultura do Rio de Janeiro. Além das edições em língua portuguesa,

existem ainda as traduções para o italiano datadas de 1882 e 1885:

a) Episodio de um poema inedito do Snr. Dr. D. J. G. Magalhães, intitulado A


Confederação dos Tamoyos – canto quarto. Revista Nacional e
Estrangeira. Maio de 1839.

b) Episodio de um poema inedito do Snr. Dr. D. J. G. Magalhães, intitulado A


Confederação dos Tamoyos – canto primeiro. Revista Nacional e
Estrangeira. Julho de 1839.

c) A Confederação dos Tamoyos. Rio de Janeiro: Typographia Dous de


Dezembro, 1856.

lxxii
c') A Confederação dos Tamoyos. Rio de Janeiro: Typographia Dous de
Dezembro, 1857.

d) A Confederação dos Tamoyos. Coimbra: Imprensa Litteraria, 1864.

e) A Confederação dos Tamoyos. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1864.

f) Grandes poetas românticos do Brasil. São Paulo: Edições LEP Ltda.,


1949.

g) A Confederação dos Tamoios. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de


Cultura, 1994.

2.1.3.3. Estema

Embora não sejam integrais, as publicações na Revista Nacional e

Estrangeira (siglas A e B) oferecem um rico material para o estudo genético da

obra. Historicamente a editio princeps (C) determina a data de advento da obra,

ou seja, 1856. As apreciações críticas da época, compiladas por José Aderaldo

Castello, foram produzidas a partir do texto de C. Daí a importância de se

registrarem suas lições nos aparatos críticos, por haver citações em Alencar e

Monte Alverne que não se verificam no estado definitivo do poema.

A reimpressão de 1857 (C’), de acordo com o princípio da eliminatio

codicum descriptorum, foi descartada. Como se afirmou, sua importância limita-

se a ter servido de texto base para a edição portuguesa de 1864 (D). O texto

base deste experimento é o da edição brasileira de 1864 (E), consoante o

critério moral da última vontade do autor, expressa em sua advertência inicial.

A edição de Frederico José da Silva Ramos, integrante da antologia Grandes

poetas românticos do Brasil (1949) segue E, mas moderniza a ortografia e traz

notas filológicas, gerando uma nova tradição.

A “Nota ao leitor” da edição de 1994 (F) informa que “foi transcrito, após

atualização ortográfica, o texto da 2.ª edição publicado na obra “GRANDES

lxxiii
ROMÂNTICOS DO BRASIL” (sic) – Edição LEP LTDA – SÃO PAULO –1949.”21

Em outras palavras, F seguiu E, mas produz uma tradição diferente, visto que,

além de atualizar uma ortografia já modernizada antes, elide as notas originais

de Magalhães. Este trabalho será representado pela sigla H e empregou os

testemunhos A, B, C e E.

Chega-se portanto ao seguinte estema:

2.1.3.4. Fortuna editorial

A primeira edição d’A Confederação é uma encadernação de luxo, de

17,9 X 12,5 cm e 360 páginas. Corresponde ao que comumente se denomina

de “Edição Imperial”, em função do formato e papéis especiais:

21
MAGALHÃES: 1994, 7

lxxiv
A
CONFEDERAÇÃO
DOS
TAMOYOS
POEMA
POR
Domingos José Gonçalves de Magalhães

RIO DE JANEIRO
EMPREZA TYPOG. – DOUS DE DEZEMBRO – DE PAULA BRITO
IMPRESSOR DA CASA IMPERIAL.
_________
1856.

A reimpressão da primeira edição já não tem o mesmo formato.

Apresenta 344 páginas em dimensões 17,5 X 10,1 cm:

A
CONFEDERAÇÃO
DOS
TAMOYOS
POEMA
POR
Domingos José Gonçalves de Magalhães

RIO DE JANEIRO
EMPREZA TYPOGRAPHICA DOUS DE DEZEMBRO
PRAÇA DA CONSTITUIÇÃO.
_________
1857.

Com base nessa, saiu em 1864 em Portugal uma pequena edição com

264 páginas e 9,6 X 6,2 cm. A informação inicial, seção intitulada “AVISO DO

EDITOR”, diz que

A primeira única edição até hoje da – Confederação dos Tamoyos – foi


publicada no Rio de Janeiro em 1857, à custa do Imperador D. Pedro II, e de
há muito se acha completamente exausta, sendo, demais, raríssimos os
exemplares que dela vieram para Portugal. (MAGALHÃES: 1864, 03)

A história da edição portuguesa ainda não está bem explicada. Afirma-se

ter sido feita à revelia de Magalhães, que no início do mesmo ano começava a

lxxv
acertar com o editor B. L. Garnier a publicação das obras completas. Página de

rosto:

A CONFEDERAÇÃO
DOS
TAMOYOS
POEMA
POR
Domingos José Gonçalves de Magalhães

COIMBRA
IMPRENSA LITTERARIA
1864

A segunda edição saiu no mesmo ano da edição portuguesa. Não traz

as configurações de uma “Edição Imperial”, mas é também uma encadernação

luxuosa, com brasão em alto relevo na capa e corte dourado. Tem 370 páginas

e 13,8 X 7,5 cm. O aumento considerável do número de páginas deve-se não

somente à redução de dimensões, frente à primeira edição e sua reimpressão,

bem como ao aumento da obra, com inclusão de versos e notas. Integra, na

verdade, as Obras completas de Magalhães editadas por Garnier e impressas

em duas séries de encadernações, a depender da qual correspondendo ao I ou

V volume. Conforme se apontou anteriormente, é a única que traz na página de

rosto a indicação de segunda edição:

A CONFEDERAÇÃO
DOS
TAMOYOS.
POEMA
POR
D. J. G. DE MAGALHAENS.
SEGUNDA EDIÇÃO. REVISTA, CORRECTA E ACRESCENTADA PELO AUCTOR.

RIO DE JANEIRO
LIVRARIA DE B. L. GARNIER
RUA DO OUVIDOR No 69.
__
1864.

lxxvi
À parte as traduções italianas, A Confederação retornou às livrarias na

primeira edição da antologia Grandes poetas românticos do Brasil, organizada

por Frederico José da Silva Ramos e com prefácio e notas biográficas de

Antônio Soares Amora. Na segunda edição (1959), porém, os poemas de

Magalhães não foram incluídos. Apesar das muitas notas filológicas de Silva

Ramos, não há a exposição e cotejo sistemáticos das lições do poema. O

organizador somente aponta em certas passagens variantes utilizadas por

Magalhães como “caiem” por “caem” ou “inergia” por “energia” ou lapsos

tipográficos como “gerreiro” etc..

A última edição da obra é de 1994. A ortografia foi modernizada,

apagando-se todas as peculiaridades fonéticas, e as notas originais,

suprimidas. Tem 214 páginas e 18,1 X 10,8 cm:

DOMINGOS JOSÉ GONÇALVES DE MAGALHÃES

A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS


3.ª EDIÇÃO

ESTADO DO RIO DE JANEIRO


SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA
1994

2.2. Texto

2.2.1. Sigla dos testemunhos

A = Episodio de um poema inedito do Snr. Dr. D. J. G. Magalhães,

intitulado A Confederação dos Tamoyos – canto primeiro. Revista Nacional e

Estrangeira. Julho de 1839.

lxxvii
B = Episodio de um poema inedito do Snr. Dr. D. J. G. Magalhães,

intitulado A Confederação dos Tamoyos – canto quarto. Revista Nacional e

Estrangeira. Maio de 1839.

C = primeira edição (1856)

E = segunda edição (1864)

2.2.2. Normas de edição

Para a apresentação do texto, adotou-se uma perspectiva ortográfica

conservadora. No curto espaço de 25 anos, desde a Revista Nacional e

Estrangeira até a segunda edição, a ortografia mostra-se demasiado movediça

e merece estudo à parte, a ser realizado em outra etapa da pesquisa. À guisa

de exemplo, observe-se o “c” mudo nos grupos consonantais “nct” (juncto,

ajunctar, sancto, sanctidade, etc.), que não é grafado na primeira edição e

passa a ser na segunda:

primeira edição segunda edição


O cacique, sentado junto á cova, O cacique, assentado juncto á cova, (v.318)

Chama p’ra junto a si os tocadores Ajuncta em roda a sí os tocadores (v.2260)

Na pesquisa do bem, do santo, e justo, Na prática do bem, do justo e sancto, (v.4063)

Desconfio de tanta santidade. “É suspeita tão grande sanctidade. (4038)

O fenômeno pode ter relação com a busca por um padrão mais clássico
de língua portuguesa. Como se salientou, Magalhães substituiu as variantes
p’ra e inda pelas formas para e ainda e modificou colocações pronominais.
Além das mudanças ortográficas supra exemplificadas, os aparatos críticos
ilustram demais flutuações, como flecha Î frecha, creado Î criado, etc..
Na verdade, o emprego idiossincrático da ortografia n’A Confederação
vai de encontro às tendências conservadoras e classicizantes próprias da
época. O período que compreende as publicações da Revista Nacional e

lxxviii
Estrangeira, da primeira e segunda edições confere com a fase de idéias
lingüísticas denominada por Sílvio Elia de período vernaculista (1820-1880),
caracterizado essencialmente pela

contradição entre as preocupações puristas e classicizantes de alguns


conservadores ou retardatários e as reivindicações reformistas, senão mesmo
revolucionárias, de representantes de uma geração ansiosa de afirmações
autonomistas e até separatistas. (ELIA: 1963, 152-153)

Neste trabalho, foram objeto de especial atenção as variantes autorais.

Por conseguinte, empregaram-se aparatos críticos de natureza negativa, ou

seja, aparatos que “registram só as variantes e as lições rejeitadas, ficando

implícito que os outros manuscritos e as outras edições seguem a que se

adotou.” 22 A escolha explica-se pelo fato de os aparatos negativos facilitarem o

registro e a leitura das variantes autorais ao longo da tradição d’A

Confederação. Os lugares críticos de que se originaram os aparatos consistem,

pois, em pontos de desacordo entre variantes substantivas, “que afetam o

sentido dado pelo autor ou a essência de sua expressão (…).”23 As variantes

acidentais, como diagramação, pontuação, ortografia, etc., de grande

importância para o estudo da tradição da obra, serão levados em consideração

numa fase posterior da pesquisa.

A fisiologia dos aparatos críticos consiste basicamente na demonstração

de lemas em contraste, em que o primeiro, em negrito e encerrado por colchete

(]), corresponde à lição adotada na apresentação do texto, e o(s) outro(s), à(s)

encontrada(s) nos demais testemunhos. Cada aparato é aberto pelo número

da(s) linha(s) definido pela régua à direita da mesma página, no seguinte

aspecto:

02 extensas] C: longinquas

22
SPINA: 1994, 148

lxxix
Explicando as notações:

a) “02” = linha 02;

b) “extensas]” = lição adotada no texto apresentado;

c) “C: longinquas” = variante em desacordo com a lição adotada,

presente na primeira edição (C).

Por vezes, no aparato, figuram linhas pontilhadas entre duas colunas,

para ligar as variantes autorais às respectivas lições do texto base:

Os pontilhados acima facilitam visualizar que se inseriram nove versos

entre dois subseqüentes na primeira edição. Em aparatos desse tipo, as

variantes foram antepostas às lições do texto base, com o intuito de tornar

didático o movimento das alterações por meio da diagramação. De qualquer

maneira, todo e qualquer elemento em negrito dirá respeito sempre ao texto

base.

A numeração dos versos, de cinco em cinco, vem localizada na régua à

esquerda do texto, a qual remetem as entradas do glossário:

23
CAMBRAIA: 2005, 167

lxxx
Ao fim da mancha, a seta “Δ significa que a estrofe continua na página

seguinte:

Os números entre colchetes à esquerda do texto reconstituem a

paginação original, de acordo com o texto base:

lxxxi
2.2.3. Texto e aparato crítico

Nas páginas a seguir, apresentar-se-ão o texto da obra com os aparatos

críticos.

lxxxii

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