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Ultramar português
Como sucedeu noutras geografias, onde
o fim da escravatura se impunha, deu-se
a necessidade de criar enquadramentos
E depois,
jurídicos especiais para aqueles que eram
os antigos sujeitos escravos, ou passíveis de
ser tornados escravos, isto é, a esmagado-
ra maioria das populações do continente
o trabalho forçado
africano, no caso português. Em abono
da verdade, pode olhar-se para os dois
regulamentos, de 1875 e 1878, como relati-
vamente liberais nas suas formulações jurí-
Sob o signo da erradicação da escravatura, o trabalho dicas, por comparação com regulamentos
forçado foi apresentado como fundamentalmente posteriores. Não deixavam, todavia, de
consagrar a figura do «indígena» como,
diferente daquela, que passaria a ser ilegal e apenas na essência, diferente da do seu congénere
propriedade das populações nativas cidadão e trabalhador branco.
por Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro A história, porém, encarregar-se-ia de
H
ofuscar a putativa benevolência de le-
gisladores portugueses. À medida que o
á uma tendência frequente para olhar sobre o passado. São também facil- «novo imperialismo» europeu acelerou a
que os usos públicos da história, mente dados a instrumentalizações que disputa pela ocupação – também ela mais
seja em evocações de efemérides pouco contribuem para uma compreen- formal do que efetiva – dos territórios de
seja em debates públicos, se estri- são mais fina dos processos históricos. cada potência europeia em África, e que
bem, apenas, em datas precisas. A abolição da escravatura no império a reconfiguração das velhas formações
Assim fixadas, elas permitem português no último quartel de Oitocentos, imperiais se concentrou gradualmente no
mais facilmente identificar um antes e mais precisamente ente 1875 e 1878, cons- continente, a questão laboral «indígena»
um depois. Isolar e afirmar, continuidade titui um bom ponto de partida para uma ressurgiu como preocupação económica,
e mudança. Estabelecer precedências e reflexão mais cuidada sobre este modo de política e social central. O caso português
atrasos cronológicos. Nos últimos tempos, olhar historiográfico. É inolvidável que é não foi exceção. Ao proclamado «huma-
o debate público sobre a escravatura na então que finalmente, e de forma legal, nismo» da lei, correspondeu, desde muito
sociedade portuguesa tem constituído se abole a escravatura enquanto sistema cedo, a persistência do que viriam a ser
uma janela privilegiada para ver este tipo de organização social no seio do império. chamadas «condições análogas à escra-
de simplificação em funcionamento. Todavia, é, ao mesmo tempo, e como não vatura». Em particular, a centralidade de
Se os referenciais cronológicos são im- poderia deixar de ser, o momento em que São Tomé e Príncipe enquanto nódulo
portantes, diríamos até imprescindíveis, se produzem os dois primeiros regulamen- económico do império gerou as primeiras
para o labor historiográfico eles podem tos que visavam regular aquilo que ficaria críticas «pós-abolição». A necessidade
amiúde servir para confundir e turvar o conhecido como o «trabalho indígena». de levar substanciais contingentes de
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serviçais angolanos para a região des- «A existência da escravatura na ilha é Escravos, afinal Foto feita em Angola,
pertou profusas críticas, no interior e no um facto, embora se apresente à vista em 1904/1905; imagens do livro de um
missionário, Charles A. Swan, de 1908,
exterior do império. Em 1894, por exem- da opinião pública como um regime de mostrando um escravo morto algemado;
plo, o Anti-Slavery Reporter, órgão da trabalho livre.» Também ele foi acusado secagem de cacau em São Tomé; e um
Anti-Slavery Society, anunciava que, não de estar a soldo. produtor de café de S. Tomé transportado
obstante o articulado da lei, as práticas de por negros, final séc. XIX
recrutamento para a ilha representavam As dores da civilização
a manifestação de formas encobertas de Apesar das proclamações da longa tradi-
escravatura. Eram nisto acompanhados ção abolicionista portuguesa e das refuta- [a escravatura] impunha aos negros».
pela Baptist Missionary Society. De um ções das acusações que surgiam em torno Vituperava as ordens legais que prote-
modo que se tornaria frequente, J. A. de um discurso nacionalista, a consolida- giam «o sagrado direito de ociosidade
Corte-Real, antigo governador colonial ção do império português europeu em reconhecida aos africanos», sendo que
e sócio da Sociedade de Geografia de África foi acompanhada por um discurso estes «só pelo trabalho» podiam entrar
Lisboa, ripostava imputando as acusa- retórico e legal que foi robustecendo a no «grémio da civilização».
ções à «insídia intencional ou ignorância propriedade do trabalho enquanto eixo Outro importante ideólogo colonial
malévola», vindas do estrangeiro. Que fundamental da proclamada «missão afinaria mais tarde pelo mesmo diapasão.
estas instituições tinham, elas próprias, civilizadora». Sampaio e Melo afirmava que os castigos
interesses geopolíticos e missionários na Crítico do que entendia ser a libera- corporais só deveriam ser aplicados pelas
região não é mentira. Mas o ataque contra lidade da legislação anterior e autor do autoridades e curadores, sendo que não
as «modas estrangeiras» pretendia elidir, novo decreto sobre trabalho indígena, procurava «repelir os castigos corporais
de um só golpe, as realidades no terreno. de 1899, António Enes afirmava que «os moderados» porquanto estes eram «ne-
Esse tipo de respostas repetiu-se quando interesses económicos recomendavam ao cessários e condizentes com o nível moral
mais tarde, já no início do século XX, legislador que diligenciasse aproveitar e dos indígenas africanos».
homens como Henry Nevinson, Joseph conservar os hábitos de trabalho que ela O decreto de 1899 instituía finalmente
Burtt e William Cadbury, este último um «sistema» de organização, distribui-
um protagonista central nos interesses ção, recrutamento e uso do «trabalho
chocolateiros britânicos, denunciaram indígena» que autorizava, entre vários
as práticas laborais em Angola e especial- A distinção entre outros aspetos, o recrutamento por parte
mente em São Tomé. Os «engenheiros da escravatura e trabalho das autoridades para trabalho forçado,
depressão», como eram apelidados pelos
portugueses, procuravam, como era argu-
forçado é, em grande público e privado. Quanto aos castigos
corporais, só seriam abolidos legalmente
mentado, obter ganhos através das acu- medida, resultado de em 1911, como resultado da polémica do
sações. As leis e o ancestral humanismo uma operação legal, «cacau escravo» em São Tomé e Prínci-
português deveriam ser suficientes como apesar das diferenças pe, cujas repercussões incluiriam, entre
garantia. Mesmo homens como o antigo outros aspetos, a obrigação legal de repa-
curador da ilha do Príncipe, Jerónimo importantes entre os triamento dos serviçais. Para se tomar o
Paiva de Carvalho, em 1912, declaravam: dois conceitos pé das reações locais, um dos principais
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ESCRAVATURA
ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE/ CASA COMUM ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE/ CASA COMUM
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ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE/ CASA COMUM
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os «indígenas» como fundamentalmente cesso». Os castigos corporais persistiam
diferentes dos seus congéneres europeus apesar de legalmente proibidos, pois que
e por um substancial lapso entre a letra a sua abolição poderia provocar a «brusca
da lei e as realidades sociais correspon- rutura do equilíbrio [que] poderia pro-
dentes. duzir perturbações na disciplina de tão
«As exigências
São conhecidas as denúncias de Hen- grande massa». Ainda em 1961 se con-
rique Galvão em 1947-1948. Mas estas da escravidão legalizada tinuava a escrever para o governo-geral
estavam longe de ser únicas. Elas cir- foram satisfeitas. de Angola que, por exemplo, no distrito
culavam de forma torrencial no seio da O governo "resgatou" do Zaire «o sistema [de trabalho] que se
administração, dificilmente acusável de os escravos que seus estava seguindo era ilegal».
estar subordinada a sórdidos interesses Não se tratava apenas de um regime
estrangeiros. Em 1953, um funcionário do
próprios agentes onde a lei não imperava. Ele era facilitado
Ministério dos Negócios Estrangeiros de- têm tão diligentemente por uma ideologia que permeava o campo
nunciava que «em Angola (...) vigora o tal e tão lucrativamente intelectual e político, que continuava a
sistema de contrato, em muitos aspetos recolhido. Entraram olhar para o «indígena» como destituído
pior do que a própria escravatura». O tal de uma razão «moderna». Como escrevia
regime de contrato, segundo outro fun-
no Tribunal como o próprio presidente do Conselho de Mi-
cionário da administração, traduzia-se no escravos, saíram nistros, na década de 1950, «em muitos
facto de, sensivelmente na mesma altura, como "trabalhadores casos será impossível trazer o indígena
73% dos trabalhadores da colónia serem contratados". Ninguém ao trabalho e, através deste, ao desejado
recrutados pelas autoridades administra- nível de civilização sem algum constran-
no céu ou na terra pode
tivas. Como sugeria, a solução era «apagar gimento inicial». Em 1961, Adriano Mo-
dos documentos oficiais qualquer traço ver a menor diferença, reira lamentava que internacionalmente
do ‘regime’, já que, infelizmente, parece mas com a mudança se confundisse «o trabalho obrigatório,
que não se pode acabar com ele». Como de nome Portugal reprime que se inscreve numa política de colo-
escrevia um inspetor colonial, «contrata- nialismo de espaço vital, com o conjunto
os fracos protestos de
dos com facilidade», «contratados com de medidas diretamente derivadas da
intervenção da autoridade», «serviçais nações como Inglaterra, missão de colonizar, que se destinam a
compelidos» eram, «para falar com mais e pela desculpa da lei implantar a regra geral que manda os
propriedade», «o trabalho forçado». Uns suaviza a consciência homens trabalhar».
anos mais tarde, outro inspetor, quando e branqueia um dos A história do pós-abolição no império
questionado sobre a utilidade de aplicar português é, pois, uma que não se pode
sanções penais no caso de os «indígenas»
crimes mais negros compactar em datas fechadas e deixar-se
não cumprirem o seu contrato de traba- que África pode mostrar» perder num aparente rigorismo concep-
lho, explicava que essas situações eram tual que, na verdade, é muito pouco rigo-
Henry Woodd Nevinson
resolvidas «por expedientes e penalidades roso historicamente. É uma história longa,
jornalista, no livro A Modern Slavery,
de ordem administrativa, impostas em de 1906, onde conta o que viu
com muitas manifestações de sofrimento
muitos casos sem qualquer forma de pro- em São Tomé e Príncipe individual e coletivo. Estudemo-la, pois.
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