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Era um verão severo, com o sol caminhando para o seu cume ao meio dia.

Saulo avista um oásis, depois de ouvir os gritos emitidos pela sua escolta. Uma
semana havia passado desde que deixara a Cidade Sagrada. Uma semana de
marcha pesada nas trilhas de areia, incluindo as paradas obrigatórias para os
repousos sabáticos. Estava apressado para Damasco, com o intuito de aliviar sua
ira. Nem o sol causticante e nem os ventos frios da noite impediriam o judeu
intrépido de completar sua missão. A firme convicção de sua consciência e o seu
desejo colérico de extermínio somente aumentava conforme crescia o número de
nazarenos que faleciam sob seu julgamento.
Subitamente, uma luz que desceu dos céus o envolveu, sobrepujando o sol
em intensidade. O viajante caiu no chão, e escutou uma voz retumbante: "Saulo,
Saulo, por que me persegues? Saulo disse: Quem és, Senhor? Respondeu ele: Eu
sou Jesus, a quem tu persegues. Trêmulo, o fariseu murmura: Senhor, o que quer
que eu faça? A voz inefável continua: Levanta-te, entra na cidade e lá te será dito
que fazer. Saulo levantou, mas não mais enxergava. Foi levado pela mão até a
cidade, e a partir de então, o algoz dos cristãos se tornaria o apóstolo das nações. i
Por volta de seis séculos depois, um órfão descendente de uma família de
mercadores crescia no mundo nômade dos comerciantes árabes. Ao longo das
cidades e dos palmeirais do ambiente desértico, adorava conversar com os “homens
do livro” - judeus e cristãos, que marcavam fortes impressões em sua alma, em meio
ao confuso mundo politeísta das diversas tribos do deserto. Em uma dessas
paragens, Maomé se distanciou para meditar em uma caverna das colinas que
rodeavam Meca. Quando se recompôs e abriu os olhos para seguir seu caminho, viu
uma figura tremenda à sua frente, que disse: “Você é o mensageiro de Deus”. O
mercador recebera a visita do anjo Gabriel.ii
Desta experiência, Maomé emergiu como um destemido líder, carregando até
o extremo o desejo de unificar seu povo árabe sob a religião monoteísta que
também já havia sido revelada aos judeus e cristãos. Sua pregação acabou se
tornando um fenômeno militar quando passou a condenar veementemente o
politeísmo e a sociedade de Meca. E assim como a consolidação do Islã no mundo
árabe se deu através de conflitos entre os partidários de Maomé e as tribos
opositoras, a sua expansão também se deu através de conquistas militares, com o
desenvolvimento do conceito de Jihadiii. Apenas um século após as conquistas
iniciais de Maomé nos confins do Oriente Médio, o islã alcançava o sul do que seria
a França, parando seu avanço diante da reação de Carlos Martel, na batalha de
Poitiers.
A dualidade apresentada acima, com as diferenças entre Saulo de Tarso, que
se tornou Paulo o apóstolo, e o profeta Maomé – ou Mohammed – chega aos dias
de hoje com o intenso conflito no Oriente Médio, particularmente na Síria. Ambos
construíram bases civilizacionais que culminariam em conflitos irremediáveis com o
passar dos séculos. Antes de Paulo, o Cristianismo não passava de uma pequena
seita judaica, considerada herética. Depois da missão, condenação e morte de
Paulo, a cosmovisão cristã derrubou as bases sociais do colossal Império Romano
politeísta através do sacrifício dos seus mártires, se tornando a nova religião
através da missão da Igreja, construindo durante os mil anos da Idade Média as
fundações da Civilização Ocidental.
Analogamente, Maomé também buscava combater o politeísmo. A diferença é
que não havia um Império que perseguia sua religião e fazia mártires. O que havia
era um grande número de tribos dispersas, que se unificaram sob a nova religião e
tentaram formar uma nova sociedade sacra, com o objetivo de converter os “povos
do livro” ao seu novo império. Através de conquistas militares, a expansão constituiu
califados, forçando os não muçulmanos ao tributo ou à conversão. O avanço
islâmico trouxe um enorme avanço ao barbarismo beduíno. Os tributos evitavam a
pilhagem, o massacre e o terror que constantemente assolavam os povos
conquistados pelas antigas tribos árabes.
As diferenças teológicas entre o Cristianismo e o Islamismo, vistas
superficialmente, parecem não ter importância. Mas quando analisadas de maneira
profunda, pode-se ter um vislumbre das motivações dos conflitos que assolam
nossos dias. Recorro aqui às breves palavras de Santo Tomás de Aquino, que
escreveu no século XIII sobre o islã: “.(...)Ele [Maomé] não produziu nenhum sinal
de ação sobrenatural, que sozinho testemunha a inspiração divina(...). Mas
assegurou que foi enviado pela força e poder dos seus braços, um sinal que não
falta nos bandidos e nos tiranosiv“.
Tais palavras ditas por um santo parecem fortes quando direcionadas à outra
religião, mas no século XIII, o islamismo era considerado como mais uma dentre as
diversas heresias cristológicas, semelhante às heresias combatidas pelos primeiros
doutores cristãos durante o nascimento e consolidação do cristianismo. Mais
precisamente, para os muçulmanos, Jesus não faz parte da pessoa divina, não é
Deus. Jesus é apenas um profeta, assim como foram Isaías, Adão, David, ou o
próprio Maomé. Outro problema surge com Alcorão. Os muçulmanos possuem um
livro sagrado próprio, que tem como principal objetivo corrigir a Bíblia e a Torá, a
escritura sagrada dos cristãos e judeus, que foram corrompidas pelos homens
segundo o profetav.
Uma diferença fundamental entre a Bíblia Sagrada e o Alcorão Sagrado é o
objetivo de cada livro, que resulta no objetivo final de cada religião. Enquanto a
Bíblia foi um livro escrito por homens sob inspiração divina, o Alcorão foi ditado
diretamente pelo anjo Gabriel para Maomé. A Bíblia narra a história e formação do
povo hebreu, e posteriormente a vida de Jesus e os atos dos apóstolos, culminando
no Apocalipse e na redenção individual das almas. O Cristianismo nunca veio para
fazer uma revolução social, onde Jesus diz claramente para dar a César o que é de
César. O islã também oferece a redenção individual das almas, mas através da
formação de uma sociedade sacra sob as leis de Alá contidas no Alcorão, de
maneira análoga às leis que deveriam ser seguidas ortodoxamente pelos Judeus –
que por sua vez buscavam o triunfo final de Israel. O Alcorão Sagrado atua então
como se fosse um código civil que unifica a sociedade.
Desta maneira, fazendo uma analogia com termos políticos modernos, a
missão messiânica do islã possui uma raiz de caráter totalitário. Embora na história
tenham existido sociedades onde o povo muçulmano predominante tenha convivido
em relativa harmonia com outras religiões – como na Andaluzia – em geral a
tendência de conquistar novas terras e de converter seus infiéis é mantida. Os
conflitos do islamismo moderno refletem as tensões e desarranjos que a invasão da
ideologia democrática ocidental causou em sociedades eminentemente religiosas. O
objetivo ideológico então é a restauração da lei corânica e a Shari’a como única
autoridade de governo em nações muçulmanas.
No Irã, os mulás fomentaram a revolução contra o monarca pró-ocidental
instigando uma ortodoxia fanática para alcançar o poder. A dinastia Pahlavi (1925-
1979) que tentava modernizar o Irã desde os anos 20 acabou varrida pelo vagalhão
religioso. No Egito, o presidente Anwar Al Sadat tentou conquistar e se aliar ao
movimento islâmico, para controlá-lo de dentro e eliminá-lo. Entretanto, sua abertura
com Israel o fizeram inimigo e infiel. Acabou sendo assassinado durante uma parada
militar no Cairo em 1981, por membros da Jihad Islâmica Egípcia que estavam
infiltrados no exército e que se opunham aos acordos de paz feitos com o Ocidente
e Israel.
Entretanto, não é possível colocar os conflitos e revoluções que ocorreram no
Oriente exclusivamente na conta da doutrina e na teologia islâmica. É necessário
desenhar uma linha forte, capaz de distinguir os objetivos religiosos dos objetivos
políticos que circundam as tendências dos conflitos atuais. Durante a Guerra Fria, a
bipolaridade entre os americanos e soviéticos levou ao distante Oriente Médio a
disputa por influências territoriais entre as duas superpotências. Enquanto o lado
capitalista tentava colocar nesses territórios seus ideais democráticos, a União
Soviética e a esquerda mundial pregava a autodeterminação das nações e o
anticolonialismo, fomentando a revolução nos países islâmicos que se encontravam
sob o poder do Ocidente ou possuíam governos ocidentalizados.
Raramente a realidade na política é mais importante que mitos. A teologia
islâmica aparentemente se acomodou mais com os ideais totalitários e
revolucionários da época comunista do que com as democracias liberais. O
islamismo traz consigo a esperança e o sofrimento dos povos árabes que buscam a
redenção contra a corrupção do Ocidente. O ideal político dos conflitos modernos é
a reconquista da gloriosa supremacia histórica, que se estendia dos limites do
Oriente, passando pela África, até o Norte da Espanha. A maneira de reconquistar
essa glória é rejeitando o Ocidente e recuperando as instituições do longínquo
século VII, que assegurou o poder sobre o mundo conhecido aos árabes. A rejeição
do Ocidente, alinhado com a nostalgia do passado conquistador ajudam a fazer das
nações muçulmanas o veículo motor da instabilidade no Oriente Médio.
Hoje, com exceção dos países produtores de petróleo, as nações islâmicas
estão entre as mais pobres. O fascínio pela riqueza europeia relembra o fascínio dos
primeiros muçulmanos, que desejaram conquistar e converter o exuberante Império
Bizantino. O movimento islâmico não mantém em segredo suas intenções de
converter o Ocidente. A sua propaganda, publicada em livretos vendidos em centros
islâmicos ao redor do mundo nas últimas décadas, revela seus objetivos e seus
métodos para a islamização mundial. Entre os métodos estão o proselitismo, a
conversão, casamentos com as mulheres locais e a procriação, e acima de tudo a
imigração. Hoje, o que vemos acontecendo na Europa é apenas a cristalização de
um plano concebido desde a fundação da religião islâmica, aparentemente
catalisado pelos conflitos políticos originados da batalha ideológica durante a Guerra
Friavi.
i O excerto narrativo foi criado a partir dos fatos contados na Bíblia Sagrada, em Atos dos Apóstolos. A
vida e a obra escrita de Paulo, o apóstolo, podem ser contempladas no Novo Testamento.

ii Os documentos oficiais que narram a vida do profeta Maomé são o próprio Alcorão, e os hádith
(hádices), que seriam os equivalentes islâmicos dos escritos da patrística cristã.

iii O objetivo da Jihad é subjulgar os povos do mundo sob a lei de Alá. Pode ser empreendida tanto por
meios filosóficos quanto por meios militares.

iv A obra em dois volumes de Santo Tomás, Summa contra Gentiles, tinha como objetivo guiar os
missionários no debate contra os pontos contraditórios entre as três religiões abraamânicas -
Cristianismo, Judaismo e Islamismo. Possui um tom muito mais exegético do que o tom filosófico
presente nas demais obras do santo filósofo.

v Há diversas diferenças nas histórias contidas no Alcorão e na Bíblia. Algumas diferenças são apenas
curiosas, e outras tem implicações teológicas muito profundas. Por exemplo, Jesus no Alcorão foi
crucificado, mas não morreu na cruz.

vi No que tange a islamização do Ocidente, o livro The Decline Of Eastern Christianity under Islam, de Bat
Ye'or (1996), traz muita luz acerca do processo histórico de conquista e revolução muçulmana, tanto na
esfera intelectual quanto na militar.

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