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número 51

ano 26
2018

temáticas
Infâncias Rurais: diálogos interdisciplinares

revista dos pós-graduandos em ciências sociais


IFCH - Unicamp
temáticas
Publicação semestral dos alunos de Pós-Graduação em Ciências Sociais do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
ISSN 1413-2486 / e-ISSN 2595-315X
Conselho Editorial Nacional
Adalberto Paranhos (UFU) Luciana Aparecida Aliaga de Oliveira (UFPB)
André Kaysel Velasco e Cruz (UNICAMP) Luis Alexandre Fuccille (UNESP)
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Conselho Editorial Internacional Comitê Editorial
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Diretor Associado Setor de Publicações do IFCH/Unicamp
Roberto Luiz do Carmo Capa
Organização do Dossiê Saulo Marzochi
Patrícia Oliveira S. dos Santos, Antonio Coordenação do Dossiê
Luiz da Silva e Flávia Ferreira Pires Antonio Marcos P. dos Santos e
Flávia X. M. Paniz
Coordenação geral de Pós-Graduação Coordenação de Pós-
Michel Nicolau Netto Graduação em História
Coordenação de Doutorado Patrícia Dalcanale Meneses
em Ciências Sociais Coordenação de Pós-Graduação
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Coordenação de Pós-Graduação Joice Melo Vieira
em Ciência Política Coordenação de Pós-Graduação
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Graduação em Filosofia Coordenação de Pós-Graduação
Yara Adario Frateschi em Relações Internacionais
Andrei Koerner
Patrícia Oliveira S. dos Santos
Antonio Luiz da Silva
Flávia Ferreira Pires

Dossiê
INFÂNCIAS RURAIS:
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES

temáticas
revista dos pós-graduandos em ciências sociais
ano 26, nº 51, 2018 - IFCH/UNICAMP
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH – UNICAMP
Bibliotecário: Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Temáticas : revista dos pós-graduandos em ciências sociais /


Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. vol. 1, n.1. (1993 -). Campinas, SP :
UNICAMP/IFCH, 1993 -

v.26, n.51, 2018


Semestral
ISSN - 2595-315X (versão on-line)
ISSN - 1413-2486 (versão impressa)

1. Crianças. 2.Camponês. 3. Infância. I. Universidade Estadual


de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. II. Título.

CDD - 362.7
Dossiê
Infâncias Rurais:
diálogos interdisciplinares
SUMÁRIO

Dossiê - Infâncias Rurais: diálogos interdisciplinares

Apresentação
Patrícia Oliveira S. dos Santos, Antonio Luiz da Silva
e Flávia Ferreira Pires 09

Entre o Rural e o Urbano: os caminhos percorridos


pelas crianças em um bairro periférico de João Pessoa (PB)
Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flavia Ferreira Pires 21

Temos um jeito de se viver aqui: a identificação


quilombola pelas crianças abacataenses
Maria do Socorro Rayol Amoras 53

Os pequenos sujeitos da luta pela terra:


educação infantil popular na ciranda infantil do MST.
Fábio Accardo de Freitas 87

A Infância Sem Terra em movimento na luta


por escola, terra e dignidade
Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales 119

Só se vive de verdade no campo: notas etnográficas de uma


pesquisa com crianças num povoado rural em Moçambique
Marina Di Napoli Pastore 149

Autonomia do universo infantil versus autonomia infantil:


a agência das crianças no contexto camponês Capuxu.
Emilene Leite de Sousa 179
Las (pequeñas) manos que trabajaron la tierra. Vida infantil
y recuerdos en el periurbano rural de Buenos Aires
(Argentina, 1950-1960).
Celeste de Marco 215

Religião e Criança: o universo infantil através


das metodologias, vivências e práticas na Igreja Adventista
Priscila Ribeiro Diniz 249

Entrevista com Kamila Karine dos Santos Vanderley:


A participação política da Criança no Movimento Sem Terra
Christina Gladys de Mingareli Nogueira 271
APRESENTAÇÃO
INFÂNCIAS RURAIS: DIÁLOGOS
INTERDISCIPLINARES

Patrícia Oliveira S. dos Santos1


Antonio Luiz da Silva2
Flávia Ferreira Pires3

Quando atentamos para a importância das crianças e das infâncias


na história do fazer acadêmico, somos levados a admitir que ambas foram,
durante muito tempo, tanto ignoradas quanto silenciadas nas pesquisas
científicas. Ao dizer isso, estamos destacando que, de forma geral, as
próprias crianças demoraram a despontar como ‘sujeitos’ legítimos das
infâncias nas pesquisas, embora tenham estado muito presentes como
‘objetos’ em investigações das ciências médicas, pedagógicas, psicológicas
etc. Em alguma medida, mas real e menos poética, era como se as crianças
e as infâncias “estivessem não estando”. As crianças estavam presentes
1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande. Mestre em
Antropologia, bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: patriciaoss1288@yahoo.com.br
2
Psicólogo da Secretaria de Saúde do Estado da Paraíba atuando na política da pessoa com
deficiência na FUNAD. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Gestão
Escolar e licenciado com formação de psicólogo pela Universidade Estadual da Paraíba.
E-mail: tonlusi@hotmail.com
3
Antropóloga, professora Adjunta licenciada do Departamento de Ciências Sociais e da
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. Mestre e
Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional (MN/UFRJ). E-mail: ffp23279@gmail.com
10 Patrícia Oliveira S. dos Santos et al.

por seus corpos, por seu aprender, na consideração à sua saúde e à


sua maturidade, naquilo em que elas podiam ser olhadas, mas estavam
ausentes quanto à sua capacidade para agir, construir, influenciar no
entorno de suas infâncias e em relação aos demais membros das gerações
que as cercavam. Então, é considerando essa relação de ‘objetos’ e/ou de
‘sujeitos’, repitamos, que asseguramos que crianças e infâncias custaram
bastante a aparecer nas ciências. E mesmo como objetos é preciso enxergar
que elas estiveram mais em umas disciplinas e menos em outras.
Mas o que justifica essa lentidão na consideração às crianças como
sujeitos das infâncias, como influenciadoras das sociedades, como agentes
sociais, como fazedoras de culturas? Que visão de mundo imperava que as
impedia de serem vistas, consultadas, interpeladas?
Parece-nos que a criança/infância enquanto sujeito/objeto de
estudo estava posta sob suspeição. Teria ela alguma coisa a dizer? Tomando
as ciências sociais como exemplo, não sem motivos, vamos observar que
estas têm sido acusadas de se interessarem apenas pelo que, na pesquisa,
era considerado como fonte aceitável e respeitável. Logo, numa tal
mentalidade, parece ser de bom alvitre desconfiar da criança e quanto
mais pequena menos confiável seria. Em maior medida no passado, mas
talvez ainda hoje, pode-se se dizer que interessa ao cientista social, “[...]
informantes que estão no centro dos acontecimentos, que têm um certo
domínio das ocorrências, que têm, supostamente uma visão mais ampla
das coisas [...], o adulto” (MARTINS, 1993, p.53). O adulto era o modelo
ideal na hora da palavra confiável. Isso, acreditamos, está diminuindo, mas
não tanto ao ponto de desmerecer esse nosso questionamento.
Fato é que quando as crianças foram lentamente aparecendo nas
pesquisas científicas, elas foram recebendo, quando muito, um papel
secundário, o que por sua vez, justifica, historicamente, “[...] a ausência
de estudos sistemáticos sobre infância, principalmente em pequenas
sociedades [...] onde o ponto de partida inicial não é a criança, mas sim
qualquer outro tema” (NUNES, 2002, p. 238-239). Não era a criança,
mas a criança na família, a criança na vida dessa comunidade, a criança
dentro de outras realidades, por exemplo. É nesse sentido que hoje se
tem compreendido que as crianças, antes de serem consideradas sujeitos

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Apresentação 11

legítimos das investigações acadêmicas, acabaram ‘saltando’ primeiro


para as entrelinhas das grandes narrativas científicas, onde o autor estava
falando de um tema geral.

A INFÂNCIA E AS CRIANÇAS NOS ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS

Embora seja possível a localização de estudos de natureza mais


inquieta quanto à possibilidade das crianças influenciarem de modo mais
propositivo nas várias disciplinas que para elas olhavam, foi só a partir do
final dos anos 1970 que se intensificou uma forte mudança de mentalidade
acadêmica nessa direção. Nesse sentido o estudo de Ariès (1981) pode ser
considerado um precursor desse movimento. De qualquer forma, a partir
dos fins dos anos 1970 na Europa e nos EUA os cientistas começaram
a considerar a infância como uma fase da vida que possui importância
fundamental no processo de construção social. É correto destacar que
no ano 1989 os estudos ao redor das crianças tomaram novo fôlego
com a celebração da convenção internacional dos direitos das crianças,
organizada pela ONU – Organização das Nações Unidas, motivo que
animou toda a década de 1990. E, já no novo milênio, seguindo a ‘esteira’
de questionamentos à ciência, por meio de publicações importantes, tem
sido possível observar que as crianças estão sendo revisitadas de outros
modos, alguns bem interessantes e se tem procurado investigar não
somente ‘sobre’ elas, mas sobretudo ‘com’ elas e/ou as ‘incluindo’ nos
discursos humanos que a elas dizem respeito.
Podemos dizer, em alguma medida, considerando o movimento
que questionou o adultocentramento nas ciências, que houve, sim, uma
importante implementação no sentido de transformação nas mentalidades.
É claro que a consideração às crianças não pode ser desatrelada dos demais
movimentos nas ciências sociais e humanas, visto que questionamentos
outros estavam ocorrendo em diversos campos, o que foi feito em relação
à negritude, às mulheres, à causa indígena, ao movimento no entorno
das manifestações das sexualidades etc. De certo por isso, mesmo que
tenha vindo, formalmente, por mãos adultas, o que não deixa de ser

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12 Patrícia Oliveira S. dos Santos et al.

problematizável, na opinião de Campos (2008, p. 36): “Parece mesmo que


o último grupo dominado a ingressar nesse movimento de revisão dos
modelos de pesquisa são as crianças”. As crianças, mesmo que ainda esteja
sobre suas cabeças os argumentos que compõem a tutela tradicional do
poder geracional, vêm saindo, reconhecemos, mesmo que de modo ainda
lento, da ‘incapacidade ideológica, teórica, epistemológica no que tange às
possibilidades de produção de saberes.
Nessa ambiência de mudança de paradigma, de modelos e de
formatos as crianças passaram de um vir a ser, de seres passivos, de seres
meramente objetos, para sujeitos de seu viver, sujeitos que se engajam,
que agem, mesmo que em medida condicionada, controlada, etc. Elas
podem ser hoje consideradas como agentes sociais que opinam, atuam e
transformam as sociedades em que vivem, lógico, à medida que também
são por elas transformadas. E um dado importante é que, na medida em
que vão sendo, ao derredor do globo, reconhecidas como sujeitos de
direitos, cidadãs, as crianças passaram a ser consideradas ativas em seu
próprio processo de socialização.
Os estudos contemporâneos, ao se focarem mais no hoje existencial
das crianças, passaram a iluminar bem menos a infância como mero tempo
preparatório. E aqui concordamos com aquilo que afirma Nascimento
(2011, p. 39): “[...] a infância como estágio preparatório, formativo,
de passagem, ocultava as crianças no presente, nas relações sociais
estabelecidas com adultos e outras crianças, todos sujeitos de mudanças
históricas e sociais”. Essa ocultação colocava as crianças no altar da espera,
ou no pedestal do porvir. E isso era tudo.
É nesse movimento que surge um novo campo de estudos, multi
e interdisciplinar, que vem conquistando espaço no mundo acadêmico,
embora ainda se configure como um campo em constituição (SARMENTO,
2015). Justamente por ser um campo multi e interdisciplinar, demarcado
primeiramente a partir de países anglo-saxônicos aparece sob várias
designações. Sobre ele podemos encontrar expressões tais como
New Childhood Studies e Childhood Studies. Nos países de língua
portuguesa, esse campo pode ser designado como Estudos da Criança,
Estudos da Infância, Estudos Sociais da Infância. E de acordo com

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Apresentação 13

Lúcia Rabello de Castro (2013, p. 76): “O campo que se define hoje


como “os estudos da infância” tem trazido renovação à forma de se
pensar a infância, problematizando sua amarração conceitual ao conceito
de desenvolvimento”. A criança não é apenas um ser a vencer etapas
desenvolvimentais. É um sujeito que vive no hoje de sua existência, como
qualquer outro indivíduo no bojo das geracionalidades.

A INFÂNCIA E AS CRIANÇAS NO MUNDO RURAL

Como espaço legítimo de pesquisa, o campo de estudos da criança


vem aos poucos e cotidianamente conquistando espaço. Por seu trabalho
feito, por seu caminho palmilhado, pela sua variedade metodológica
selecionada, nos últimos anos temos visto um aumento significativo
em sua produção acadêmica. As pesquisas têm se expandido para várias
direções, encampando os mais variados temas. Contudo, mesmo com essa
ampliação dos olhares, parece ser importante dizer que ainda há um grupo
nesse meio que não tem recebido a devida atenção pelos pesquisadores
da infância. Estamos falando das crianças que vivem em áreas rurais. A
produção sobre essa temática ainda é bastante limitada, sobretudo quando
comparada ao volume publicado, por exemplo, a partir das crianças que
vivem situações urbanas. Temos pensado que se a criança ao longo do
fazer acadêmico foi colocada de lado, marginalizada, tendo recebido pouca
atenção pelas pesquisas científicas, as crianças das áreas rurais assim como
a infância rural acabaram sofrendo múltiplos processos de marginalização.
Deveras porque são crianças, do campo, em sua maioria numérica também
empobrecida, por vivenciarem processos de exclusão (escolar, monetária,
cultural, de locomoção, de saúde, de políticas públicas) em muito maior
intensidade no campo que em relação ao que se vive na cidade. A cortina
de muito pouco interesse fechou-se para as crianças e para as infâncias
vividas nos meios rurais.
Ao refletirmos que as crianças e as infâncias dos meios rurais têm
sofrido múltiplos processos de exclusão estamos tendo em mente que
o próprio mundo rural, historicamente, foi e ainda é compreendido por
muitos como o lugar do rude, do atrasado e do não civilizado (TASSARA,
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14 Patrícia Oliveira S. dos Santos et al.

2007). Houve, de certo, por parte de alguns campos das ciências uma
tendência à maior valorização do urbano, “[...] que é considerado como
espaço da civilização, do progresso e da modernidade, enquanto que ao
rural cabe o estigma do atraso, da tradição e do estático” (CARNEIRO,
2012, p.33). O olhar que marginaliza o rural parece esquecer que ele nunca
é estático. Logo, é preciso admitir que a ruralidade “[...] está em constante
construção e por isso deve ser percebida através da interação entre os atores
sociais e os sistemas culturais aos quais eles estão referidos” (CARNEIRO,
2012, p. 19). É preciso perceber a ruralidade em sua dinamicidade.
Além disso, durante muito tempo, a criança e a infância rural
foram associadas ao trabalho precoce. De fato, o trabalho encontra-se no
modo de vida esperado na organização familiar do trabalho camponês,
o que pode reverberar no processo de socialização das crianças rurais.
E nesse sentido os autores têm entendido que “[...] a infância tornava-se
uma fase da vida dedicada ao aprendizado dos principais conhecimentos
e significados da vida camponesa” (MARIN, 2008, p. 120). Sem dúvida,
bem menos no presente, mas bem mais no passado, o trabalho familiar no
contexto rural ainda ocupa um significativo espaço na vida das crianças
desde bem pequenas. O trabalho familiar rural parecia carecer de todos os
braços uma vez que tinha de alimentar todas as bocas.
De nossa parte, entendemos o trabalho da criança de modo
diferente daquele que nacionalmente tem sido rotulado como trabalho
infantil. E mesmo que vejamos nele elementos importantes do processo
de socialização das crianças rurais como também já mostrou Sousa (2004),
mesmo que seja praticado nos intervalos escolares, compreendido como
ajuda à família ou como aprendizado, defendemos que o trabalho das
crianças deve ser entendido como trabalho. É trabalho de criança. E isso
pode nada ter a ver com uma noção de exploração ou com coisas mais
humanamente degradantes já combatidas pela literatura especializada e
pela experiência jurídica e política nacional e internacional. E, além disso,
entendemos que a realidade do trabalho na infância não é uma realidade
que deve ser relacionada apenas ao mundo rural, mas é extensivo, como já
mostrado por Rita Marchi (2013) a muitas crianças das camadas populares,
estejam elas nos meios rurais ou urbanos.

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Apresentação 15

NOSSA INTENÇÃO COM ESSA COLEÇÃO DE ARTIGOS

Após o acima refletido, com esse dossiê nosso intuito é o de


mostrar que as crianças rurais podem, devem e merecem ser abordadas
por outras perspectivas de análises que vão além do trabalho em tenra
idade. Quem são, como vivem as crianças rurais de hoje? O que sabemos
sobre elas? É possível pensá-las no hoje de nossa existência nacional e
internacional? Será que vivem como viveram seus pais? Eis o desafio
proposto e compreendido pelos autores e autoras nesse dossiê. Queremos
trazer maior visibilidade às crianças das áreas rurais da contemporaneidade,
mostrando que as crianças das áreas rurais se relacionam com os seus
pares e com os adultos “[...] ao mesmo tempo em que convivem com
seus outros papéis, suas funções dentro da comunidade familiar, o
cumprimento de suas tarefas. Ela constrói e vive o hoje, vive a sua história”
(LEITE, 1996, p.175). Desejamos mostrar que nem a infância e nem o
rural estão parados no tempo, ao contrário, estão em constante processo
de transformação. Assim, para nossa proposta, tanto a infância quanto o
rural estão em movimentos contínuos, como tudo aquilo que é e contém o
humano. Por isso mesmo, a concepção que temos da criança e da infância
rural tem se modificado ao longo do tempo, principalmente por conta
das questões políticas, econômicas e sociais. É claro que não atingimos
um patamar material e cultural ideal. Mas é preciso reconhecer o que já se
tem conquistado, avaliando-o para poder avançar ainda mais. Em alguma
medida, o conjunto desses textos apresentarão palavras esperançosas.
Indo um pouco mais além, desejamos com o presente dossiê
desafiar os atuais pesquisadores, tanto os do campo dos estudos da infância
quanto os do campo dos estudos rurais, a olharem de maneira especial
para as crianças desse meio, ampliando assim os espaços de discussões
acadêmicas, numa espécie de redescoberta da infância rural ou da nova
infância no meio rural. Apresentamos assim, trabalhos frutos de pesquisas
que enfocam e mostram como são vividas as infâncias rurais de hoje, que
privilegiam o ponto de vista das crianças das áreas rurais. Entendemos
que ainda há grandes desafios a serem enfrentados, mas os artigos que
compõem este dossiê contribuem de alguma forma para a ampliação desta
temática.
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16 Patrícia Oliveira S. dos Santos et al.

COMENTÁRIO À CONTRIBUIÇÃO DE CADA TRABALHO

No conjunto dos textos que compõem esse dossiê apresentamos sete


artigos e uma entrevista. A marca desse conjunto de trabalhos é a palavra
inter e multidisciplinar. Seus autores (as) são provenientes da pedagogia,
da antropologia, da sociologia, da nutrição, numa indicação clara de que
a criança e a ruralidade pertencem, cada vez mais, aos múltiplos olhares.
O primeiro artigo desta coletânea chama-se “Entre o rural e o
urbano: os caminhos percorridos pelas crianças em um bairro periférico de
João Pessoa (PB)”. Foi escrito por Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça
com co-autoria de Flávia Ferreira Pires, e veio da beira mar da Paraíba. Sua
autora acompanhou inúmeros movimentos das crianças da comunidade
de Gramame, enquanto estas se deslocavam da periferia urbana até a zona
rural, no contraturno escolar, para participarem de atividades feitas por
uma ONG – Organização Não Governamental, a Escolha Viva Olho
do Tempo – EVOT. O interesse da autora está centrado no cotidiano
infantil, elementos que poderiam passar despercebido ao olhar apressado.
Ela interessa-se em como as crianças pensam aquilo que está acontecendo
em sua comunidade, em como meninos e meninas compreendem as
transformações que ocorrem, de modo bastante acelerado, em seu
entorno, atingindo tanto suas vidas, quanto a existência de seus familiares,
amigos, o meio ambiente, como entendem, sugerem, opinam sobre suas
realidades cotidianas etc.
O segundo texto nos veio do Pará, foi escrito por Maria do Socorro
Rayol Amoras, e tem como título “Temos um jeito de viver aqui: a
identificação quilombola pelas crianças abacatenses”. Sua autora escolheu
como campo de pesquisa a comunidade quilombola de Abacatal, povoado
que fica localizado na área rural de Ananindeua, município da região
metropolitana de Belém. O artigo se dispõe a discutir a identificação
quilombola pelas próprias crianças. É interessante observar como as
crianças percebem as suas relações com os que estão dentro ou fora e como
elas estabelecem uma interpretação da formação daquela comunidade a
partir das relações que elas vão costurando com aqueles que estão em seu
entorno, como vão se apropriando e recriando, a seu modo, as histórias
contadas pelos seus ancestrais.
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Apresentação 17

O terceiro texto foi escrito Fábio Accardo de Freitas e tem como


título “Os pequenos sujeitos na luta pela terra: educação infantil popular
na ciranda infantil do MST”. Esse texto nos veio do Estado de São Paulo.
Teve como pano de fundo uma experiência de pesquisa realizada no pré-
assentamento Elizabeth Teixeira, o qual fica localizado no município de
Limeira. O texto tomou como objeto de análise a prática educativa da
Ciranda Infantil, uma prática pedagógica desenvolvida pelo MST, entre as
suas muitas finalidades encontra-se a construção da participação política,
a autonomia das crianças sem-terrinhas.
O quarto texto chama-se “A infância sem terra em movimento na
luta por escola, terra e dignidade”. Foi escrito por Lia Pinheiro Barbosa
e Mirna Sales. Ele parte do entrecruzamento de dois empreendimentos
metodológicos. O primeiro deles foi uma abrangente pesquisa de campo
realizada na Microrregião dos Sertões de Crateús, a qual é composta pelos
municípios de Crateús, Nova Russas, Novo Oriente, Independência,
Tamboril, todos em terras do Estado do Ceará. E o segundo refere-se a um
levantamento histórico-documental, em que as pesquisadoras analisaram
vários documentos produzidos pelo Setor de Educação do MST. Com
base nesses dois empreendimentos acima citados as autoras tomam como
objetivo apresentar elementos reflexivos do processo de consolidação da
Infância Sem Terra na organicidade do próprio MST. Além disso, elas
buscam destacar qual o papel dos Sem Terrinha na luta por escola, pela
terra e por dignidade. Para elas esses elementos atravessam a resistência
camponesa não só no Brasil, mas em toda América Latina. Sem dúvida, as
crianças não poderiam ficar de fora.
O quinto texto foi escrito por Marina Di Napoli Pastore. Tem
como título ““Só se vive de verdade no campo”: notas etnográficas de
uma pesquisa com crianças num povoado rural em Moçambique”. Sua
autora, que é brasileira e faz doutorado em São Carlos (SP), nos presenteia
com um texto no qual relata uma parte de sua vivência com as crianças
de Nhondlovo, um povoado rural do distrito de Massinga, província de
Inhambane, Moçambique. O texto nos traz as crianças do além-mar,
como vivem, pelo que se interessam, como acessam os pesquisadores
estrangeiros e o que a eles podem ensinar tanto por palavras, vivências e
gestos.
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18 Patrícia Oliveira S. dos Santos et al.

O sexto trabalho chama-se “Autonomia do universo infantil versus


autonomia infantil: a agência das crianças no contexto camponês Capuxu”.
Foi escrito por Emilene Leite de Sousa, e versa sobre as crianças do povo
Capuxu, gente que habita o Sítio Santana-Queimadas, no município de
Santa Terezinha, no sertão da Paraíba. A partir daquele grupo de crianças
sertanejas, seu texto vai descortinando temas como agência infantil,
autonomia das crianças, sistemas de parentescos, apadrinhamentos e
onomásticas. Ela presta bastante atenção à capacidade infantil tanto de se
enquadrar quanto de modificar os sistemas configurados em seu entorno.
O sétimo artigo tem como título “Las (pequeñas) manos que
trabajaron la tierra. Vida infantil y recuerdos en el periurbano rural de
Buenos Aires (Argentina, 1950-1960)”. É uma importante contribuição
escrita por Celeste De Marco. Esse texto é um verdadeiro mergulho na
memória de uma experiência história que teve lugar nos arredores da capital
da Argentina. Sua autora entrevista adultos que viveram suas infâncias em
pequenas propriedades rurais, interessando-se por suas histórias. A partir
das memórias, ela vai construindo uma narrativa das vivências infantis
daqueles (as) adultos (as) na atualidade. É uma mirada em retrospectiva.
O oitavo artigo que compõe esse dossiê tem por título “Religião
e criança: o universo infantil através das metodologias, vivências e
práticas na Igreja Adventista. O trabalho é de autoria de Priscila Ribeiro
Jeronimo Diniz, doutoranda em Ciências das Religiões e nele a autora
busca apresentar metodologias usadas na pesquisa com crianças em um
universo religioso, a Igreja Adventista. O trabalho apresenta algumas notas
de campo, da Escola Sabatina, dos Grupos Primários da Igreja Adventista,
trazendo consigo contribuições para o processo de socialização da criança
nesse universo religioso.
A última contribuição desse conjunto de texto intitula-se “A
participação política da Criança no Movimento Sem Terra”, e é uma
entrevista que a Christina Gladys de Mingareli Nogueira realizou com a
pesquisadora e militante do MST, Kamila Karine dos Santos Vanderley.
É interessante ver de dentro a percepção da entrevistada a respeito das
organizações internas do movimento, sobretudo aquelas que tangem mais
de perto às crianças.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 09-20, fev./jun. 2018


Apresentação 19

UMA PALAVRA AOS (ÀS) PARECERISTAS E EDITORES

Pertencentes a muitas filiações acadêmicas, os (as) pareceristas


convidados (as), para essa tarefa merecem uma palavra de agradecimento
bastante especial. Eles (as) foram unânimes em não reprovar nenhum dos
textos apresentados para suas avaliações. Em primeiro lugar, pensamos,
porque eram textos que tinham contribuições muito boas para pensar a
ruralidade e a infância, proposta do dossiê. E em segundo lugar, intuímos,
porque preferiram seguir o caminho menos fácil. De fato, jogar os autores
fora de uma publicação seria uma atitude muito simplória e evitaria o
esforço de fazer crescer um trabalho acadêmico. Eles (as) preferiram
ajudar, aperfeiçoar, melhorar, indicar caminhos aos (às) autores (as). E
depois da opinião emitida, está claro, os trabalhos ganharam muito e
ficaram ainda melhores. Ficamos muito felizes porque acreditamos ser
desse modo que a ciência deve acontecer. A todos e a todas queremos
dizer uma palavra de imensa gratidão, pela postura ética e científica, pelo
empenho, mas, sobretudo, porque destacaram um pouco do seu já escasso
tempo para nos ofertar, num gesto de dádiva, uma enorme contribuição.
Somos gratos ainda aos editores da Revista Temáticas do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp pelo paciente trabalho,
pelas inúmeras sugestões, pelas idas e vindas, pelas intermediações e pelo
esforço na direção do crescimento humano e acadêmico coletivo. O papel
de vocês foi fundamental e animador nessa construção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Phillipe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC


Editora, 1981.
CAMPOS, M. M. Por que é importante ouvir a criança? A participação
das crianças pequenas na pesquisa científica. In: CRUZ, Silvia. (Org.)
A criança Fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008.
CARNEIRO, Maria José. 2012. Ruralidades contemporâneas: modos de viver e
pensar o rural na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ,
2012.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 09-20, fev./jun. 2018
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ENTRE O RURAL E O URBANO: OS CAMINHOS
PERCORRIDOS PELAS CRIANÇAS EM UM
BAIRRO PERIFÉRICO DE JOÃO PESSOA (PB)

Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça1


Flávia Ferreira Pires2

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar e refletir como os caminhos entre o


espaço urbano e rural na comunidade de Gramame, localizada na região sul da capital
paraibana, são percorridos e apreendidos pelas crianças ao longo do deslocamento à pé
de suas residências até a Escola Viva Olho do Tempo (EVOT) -, instituição em que
participam de atividades educacionais no contraturno da escola regular. Neste movimento,
destacam-se como os caminhos ganham vida e são transformados pelas ações das crianças
nas ruas esburacadas que as levam à EVOT, emergindo o que elas entendem a respeito do
bairro onde moram diante das abruptas transformações que assistem em relação ao meio
ambiente em urbanização acelerada. Diante disso, revelaram-se memórias e vivências no/
do bairro em seus diversos elementos, os quais foram (re) significados pelas crianças a
partir de diálogos e de outras ações as quais se envolveram. Por fim, traça-se um balanço
de como os caminhos entre o urbano, no qual as crianças residem, e o rural, em que
a EVOT se situa, provocam aprendizagens e (re) criam ações envolvidas em múltiplos
sentidos e sensações.
PALAVRAS-CHAVE: Crianças; Caminhos; Rural; Urbano; Cidade; João Pessoa (PB).

1
Mestre em Sociologia pela UFPB, especialista em Educação Especial pelas Faculdades
Bagozzi – PR, com Licenciatura em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Membro do grupo de pesquisas Crianças, Sociedade e Cultura (CRIAS) da UFPB desde 2016.
E-mail: karla-pessoa@hotmail.com
2
Professora da Pós-Graduação em Sociologia e da Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal da Paraíba. É líder do grupo de pesquisas Crianças, Sociedade e Cultura
(CRIAS). E-mail: ffp23279@gmail.com.
As duas autoras participaram da concepção teórica e da escrita do artigo, mas apenas a primeira
autora fez trabalho de campo e, por isso, optou-se pela redação em primeira pessoa do singular.
22 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

BETWEEN THE RURAL AND THE URBAN:


THE ROADS PERCUSED BY CHILDREN IN A
PERIPHERAL DISTRICT OF JOÃO PESSOA (PB)

ABSTRACT: The objective of this article is to present how the paths between urban
and rural spaces in the community of Gramame, located in the southern region of the
capital of Paraíba, João Pessoa, are undertaken and understood by the children along their
walks to the Escola Viva Olho do Tempo (EVOT), institution in which they participate
in educational activities in the counter shift of the regular school. In this movement they
stand out as the paths come alive and are transformed by the actions of the children
in the bumpy streets that take them to the EVOT, emerging what they understand
about the neighborhood where they live in front of the abrupt transformations due to
environmental changes and accelerated urbanization. Finally, is drawn an analyse of how
these paths between the urban in which the children reside, and the rural in which the
EVOT is situated, provoke learning and (re) create actions involved in multiple senses and
sensations that take them on these walks between contexts.
KEYWORDS: Children; Paths; Rural; Urban; City; João Pessoa (PB).

PRIMEIROS CAMINHOS

Este artigo desenvolve-se a partir de percepções e análises que


surgiram junto às percepções das crianças em relação a suas locomoções
no bairro de Gramame em João Pessoa- PB, revelando seus deslocamentos
cotidianos do urbano, no qual residem, em direção ao rural no qual se situa
a EVOT. Desta forma, percorro uma trajetória reflexiva que pôde emergir
em meio as suas memórias, vivências e experiências no reconhecimento
dos elementos naturais e o todo em transformação, ao longo do caminho
entre as comunidades e no bairro de modo geral. Destaco como estas
questões são percebidas e entendidas pelas crianças em suas caminhadas e
ações junto aos ambientes em que se movimentam.
Para isso, inicio com a apresentação do contexto e como as
caminhadas das crianças são vivenciadas, trazendo os movimentos entre
as suas casas e a instituição educacional EVOT. Enfatizo, em seguida,

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 23

as percepções relacionadas ao bairro que, para as crianças, revelaram-se


como elementos característicos do ambiente e como em suas experiências
coletivas no ambiente se relacionavam, aprendiam e o (re) significavam;
continuo este percurso com as percepções das crianças a respeito de
como o bairro é vivenciado e ocupado por elas. Por fim, reflito naquele
momento e espaço, como pude compreender os movimentos e os sentidos
que emergiram a partir das crianças em suas reflexões coletivas sobre o
cotidiano no bairro.

CONHECENDO O CAMINHO

Conheci os caminhos do bairro de Gramame, localizado na região


sul de João Pessoa – PB, em função da minha pesquisa de dissertação
em 2017 (MENDONÇA, 2018), a qual tinha como foco as crianças que
vivenciavam performances musicais na EVOT. As conheci certo dia em sua
apresentação como grupo “Tambores do Tempo” (grupo de percussão da
escola), na praça de uma das comunidades do bairro, eu estava lá porque
também participava do evento por fazer parte de um grupo de maracatu.
Naquele momento percebi um ambiente com uma grande quantidade de
loteamentos e territórios tomados por casas populares e condomínios que
brigavam com os espaços verdes e as estradas de terra.
Ao procurar conhecer de qual contexto aquelas crianças batuqueiras
faziam parte, me empenhei na busca do ambiente em que emergiam
aqueles conhecimentos relacionados à percussão. Essa curiosidade foi o
que me encaminhou à EVOT.
Resumidamente, a escola oferece no contraturno escolar a uma média
de 120 crianças, com atividades referentes à cultura local, ao meio ambiente
e às tecnologias, baseando-se nas pedagogias griô, holística e da educação
popular3. Foi fundada por Mestra Doci e conta com educadores que
compartilham e interagem em ações coletivas políticas, artísticas e sociais
com as crianças, buscando, no reconhecimento de pertencimento local,

3
Sobre a proposta pedagógica da Escola Viva Olho do Tempo, ver Souza (2014) e Tolentino
(2016).

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


24 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

promover a revitalização cultural e ambiental do contexto. Sua proposta


socioeducacional compreende integrar a comunidade na ação coletiva
de transformar e valorizar o meio, o qual se configura economicamente
e socialmente desfavorável. O trabalho com as crianças se fundamenta
nesse engajamento através das ações educacionais pensando em tempos
presentes e futuros.
No trajeto para chegar à EVOT, encontrei uma estrada em linha reta
que me levou ao encontro de animais, forasteiros, moradores caminhando
e se locomovendo em suas bicicletas, motos e alguns carros. Meu caminho
me apresentou muitas surpresas em relação ao ambiente, emergiu como
um trajeto tingido de cores em tons de verdes e marrons ao exibir uma
região rural dentro da capital paraibana que conta ainda com sítios e muita
mata.
O bairro de Gramame revelou-se um emaranhado diversificado,
apresentando, por outro lado, uma vasta área desmatada, transformada
em vias de trânsito com algumas ruas principais asfaltadas e muitas outras
ainda precárias, por onde passavam, inclusive, ônibus. Muitos de seus
terrenos já são ocupados por pequenos prédios, casas populares e até
barracos humildes. O bairro se configura entre terrenos loteados, lugares
descampados e vazios, contornados por grandes muros e cercas.
Retrata-se como um ambiente em transformação acelerada, sua
paisagem fornece uma diversidade de combinações e encontros entre o
urbano e o rural que podem ser percebidos ao caminhar por suas ruas,
visibilizando que “é a rua que resgata a experiência da diversidade,
possibilitando a presença do forasteiro, o encontro entre desconhecidos, a
troca entre diferentes, o reconhecimento dos semelhantes, a multiplicidade
de usos e olhares [...].” (MAGNANI, 2003, p. 2).
Assim, no processo de compreender o ambiente no qual eu estava
fazendo parte por conta do trabalho de investigação, encontrei nas
crianças, em suas conversas, brincadeiras e memórias, a maior fonte para
que eu me situasse no contexto e as compreendesse em seus movimentos
coletivos dentro dele e com ele. O contexto comunitário do bairro de
Gramame e seus caminhos foram apresentados pelas crianças na EVOT
como um conhecimento vivido a ser contado à “novata” que ali chegava,

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 25

pois as crianças a partir de minhas perguntas, realizadas em algumas rodas


de diálogos, perceberam que eu procurava entender as suas histórias e
trajetos nas comunidades do bairro em que se deslocavam e moravam.
Ademais, contar sobre suas caminhadas em conversas descontraídas
era o assunto que rondavam suas chegadas e saídas da EVOT, assunto que
também fazia parte de suas rodas de conversa nos momentos livres, no
lanche e em brincadeiras organizadas em pequenos grupos pelas crianças
nos ambientes abertos da instituição. Ao procurar me inserir nestas relações,
pude observar que dentro delas as crianças se envolviam ativamente no
compartilhamento de suas vivências e assim se identificavam com as
experiências a partir do que ouviam, falavam, observavam e refletiam
coletivamente.
A curiosidade e a falta de conhecimento do bairro de minha parte
foi o que promoveu os (re) conhecimentos coletivos deste/no contexto.
Portanto, essa pesquisa se desenvolveu a partir da observação participante,
ou seja, no engajamento com as crianças em suas experiências dialógicas
enquanto grupo que caminha e vive junto no bairro, abrangendo em
destaque seus caminhos vividos entre o urbano e o rural. Trata-se de um
processo colaborativo para o nascimento de uma pesquisa etnográfica
com crianças, em suas relações cotidianas no contexto educacional e no
caminho até ele.
Durante a pesquisa convivi com um número de 60 crianças
com idades que variavam entre 5 a 17 anos. Para o envolvimento nesta
pesquisa, valorizou-se de ambas as partes (pesquisadora e crianças), a
espontaneidade e a voluntariedade em relação às conversas em torno
do tema, atentando aos momentos em que as crianças se encontravam
misturadas pelos espaços abertos como na rua da escola e nos ambientes
da instituição ricos em sua diversidade e movimento, dentre os quais
destaco os cantos embaixo das árvores, nos bancos do refeitório, na trilha
na mata e no amplo Teatro Acácia. As crianças ocupavam esses ambientes
com rodas de conversas, brincadeiras, correrias, desenhos e até mesmo
com suas músicas cantadas e tocadas.
A partir desta matriz de movimento compreendida nas narrativas
das crianças, em suas histórias e experiências preservadas e (re) significadas
Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018
26 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

pelas suas memórias, foram reconhecidos os seus conhecimentos como


habitantes nativos da região onde moram e como se desenrolavam os
diálogos entre o urbano e o rural em suas vidas. Atentou-se aos modos de
como os movimentos entre os ambientes emergem no sentir os caminhos
e perceber os seus arredores, afinal “é o conhecimento da região, e com
ela a capacidade de situar a posição atual dentro do contexto histórico
das jornadas anteriormente realizadas - viagens para, de e para dentro de
lugares – que se distingue o compatriota do estranho.”4 (INGOLD, 2000,
p. 219, tradução nossa).
O sentido aqui produzido com as crianças se refere às suas
caminhadas ao vagarem pelas ruas do bairro do Gramame, que ao
apresentá-lo ao longo de suas contações, seus entendimentos e sentidos
emergiram como movimentos criativos a partir das experiências
vivenciadas em grupo. Suas ações foram (re) significadas na atividade do
contar, podendo-se dizer que em cada narrativa mapearam mentalmente
caminhos, relações e despertaram aprendizagens coletivas na procura de
encontrar sentido no que se foi feito e dito, por si próprio e pelo outro,
ao saírem do asfalto e pisarem na estrada de terra, como um “produto
de uma ação conjunta de pensamento, sentimento, percepção, intuição
e sensação.” (MACHADO, 2015, p. 55).

NO CAMINHO COM AS CRIANÇAS

Lucia Rabelo de Castro (2013) e seu grupo de pesquisa através de


ação metodológica intitulada Oficina da Cidade - que percorreu escolas,
associações de moradores e outros locais frequentados por crianças e jovens
- desenvolveu rodas de conversa para que fossem reveladas as experiências
na cidade do Rio de Janeiro. A autora observou que as conversas, como
uma atividade coletiva, contribuíram para uma melhor compreensão de
mundo, ao passo que cada “experiência vivida e/ou ouvida pela criança
ao transitar pela cidade, ela [a criança] se depara com as diferenças e
4
“It is the knowledge of the region, and with it the ability to situate one’s current position
within the historical context of journeys previously made – journeys to, from and around
places – that distinguishes the countryman from the stranger.” (INGOLD, 2000, p. 219).

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 27

desigualdades cujo testemunho conduz a maneiras diferentes de justificá-


las” (CASTRO, 2013, p. 149). Compartilhando esta experiência com os
outros, no próprio ambiente de que se está imaginando e contando, “o que
é próprio e sensitivo alcança o domínio do que é coletivamente nomeado
e compreendido” (CASTRO, 2013, p. 149).
Pude também observar esse contexto com as crianças na EVOT.
Para explicar sobre a divisão simbólica do bairro as crianças contaram
que “quase todo mundo” que vai à instituição reside em diferentes
comunidades, inclusive alguns dos educadores. Inicialmente fiquei sem
entender, pois eram muitas as localidades que as crianças indicavam morar
e para mim tudo ali era um só bairro, não tinha pesquisado seu contexto
geográfico de antemão. O entendimento foi proporcionado a partir da
explicação compartilhada pelas crianças coletivamente de que “Gramame
é um grande bairro e tem várias comunidades nele... como também tem
a comunidade de Gramame” (parte em urbanização, mas ainda bastante
rural, sendo onde a comunidade EVOT se encontrava), “também tem o
Colinas I e II e o Gerva” (isto é o Colinas do Sul I e II e o Gervásio Maia),
áreas especificamente urbanas e de muitos loteamentos, que incluem ainda
o Conjunto Marinês, Portal da Colina, Irmã Dulce e a ocupação irregular
conhecida como Capadócia.
Pesquisas retratam que o bairro está inserido dentro do Vale do
Gramame na cidade de João Pessoa-PB até os limites do município vizinho
Conde- PB. É caracterizado por uma região que se mistura e se transforma
entre o rural e o urbano (Gramame, Engenho Velho e Ponta de Gramame),
e que também apresenta uma região quilombola e indígena conhecida como
Mituaçú, já localizada no limite administrativo com o município do Conde.
O Vale do Gramame trata-se de uma extensa área territorial com cerca de
aproximadamente 14 km e conta com uma população estimada em 24.378
mil pessoas, segundo o Censo Demográfico de 2010 de responsabilidade
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
É uma região de periferia em recente crescimento imobiliário de casas
populares. O contexto é moldado pela construção de empreendimentos
da iniciativa privada e pelo desenvolvimento das políticas habitacionais
financiadas pelo poder público na relocação de comunidades de invasão
Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018
28 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

e de áreas de risco. Famílias oriundas de diferentes bairros da capital e do


interior da Paraíba se deslocam para o bairro em busca da casa própria
(LIMA, 2014).
Juntamente com a urbanização e os loteamentos, a vulnerabilidade
em decorrência das precárias condições sociais de infraestrutura para estas
famílias são marcantes nestas comunidades do bairro do Gramame: o seu
território contém poucas ruas asfaltadas, poucos ambientes públicos de
lazer, e é visível a degradação ambiental que não é acompanhada pelas
políticas públicas ambientais com redes adequadas de saneamento e
planejamento para mitigar os impactos no meio ambiente, comprometendo
assim a saúde da população e da natureza arrancada, a qual dá lugar ao
cimento e a poeira. Esse fator é ainda agravado por conta das instalações
industriais nas intermediações do rio Gramame que corta a zona rural, o
qual era a principal fonte de renda através da pesca de peixes, caranguejo e
camarão, além de um local muito desfrutado como lazer pela comunidade
(LIMA, 2014; TOLENTINO, 2016).
Sobre o movimento das famílias em busca de moradias no bairro,
Paola (8 anos) contou que sua a avó (cuidadora dela e dos irmãos) morava
em São Paulo em uma casa de papelão e se mudou para João Pessoa. Ela
explicou que não mora na mesma casa que a mãe e ela vêm visitá-la com
o seu padrasto. Disse que o avô mora também em outro lugar e que vai
visitá-la de moto.
No ano desta pesquisa, como relatado no tópico anterior, também
houve relatos de que novas moradias seriam entregues para uma média de
192 famílias no recente conjunto habitacional “Vista Alegre”. Segundo
uma reportagem5 sobre o evento de entrega, realizado pela Prefeitura
Municipal de João Pessoa, o lugar contaria com 2016 unidades habitacionais
e abrigaria uma população superior à soma de 113 municípios paraibanos.
O conjunto habitacional seria dividido em 11 condomínios, com 63
blocos e uma média de 32 unidades por prédio. Além disso, de acordo
com o planejamento da Secretaria Municipal de Habitação, no Residencial
seriam construídas duas praças e áreas de lazer (como quadras, campo de
5
Reportagem no site: <http://www.joaopessoa.pb.gov.br/luciano-cartaxo-realiza-o-sonho-
da-casa-propria-para-mais-192-familias-da-capital/>. Acesso em 04/08/2017

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Entre o rural e o urbano:... 29

futebol e ginásios), um ponto de apoio comunitário para a realização de


reuniões, festas e comércio, uma escola com capacidade para 900 alunos,
um Centro de Referência em Educação Infantil (Crei) e uma Unidade
de Saúde da Família (USF). A reportagem descreve que as famílias que
seriam beneficiadas eram residentes de áreas de risco e invasões na Rua do
Arame, no bairro do Grotão, na antiga ocupação do Dnit6 e no bairro de
Cruz das Armas -, todos pertencentes à grande João Pessoa.
O grupo das crianças de percussão “Tambores do Tempo” tocou
nesse evento de inauguração dos novos apartamentos do Conjunto Bela
Vista, e segundo Penhinha (Maria da Penha Teixeira de Souza, educadora
social na EVOT) algumas crianças da escola que anteriormente moravam
no acampamento Capadócia foram contempladas com um imóvel no
conjunto. A educadora contou ainda que as crianças questionaram se
moradores do “Capadócia” também deveriam ser nomeados para o
conjunto, dando-nos a entender que mesmo em condições sociais difíceis
há historicidade e sentimentos atrelados ao lugar em que moravam, se
sentindo pertencentes, mas que agora passariam a conhecer e (re) construir
um novo.
As crianças demonstraram conhecimento sobre o bairro, pois
contavam sobre os seus trajetos na ida ou na volta da escola regular, nos
caminhos até à EVOT, por dentro e para fora do bairro, na ida à praia,
ao rio, à casa de um amigo ou ao mercadinho na esquina de casa, nas
brincadeiras na rua e dentro de casa, emergindo ambientes como fontes
de descobertas e transformações à medida que percebem nesses trajetos o
que entendem como a sua comunidade ou o seu “pedaço” (MAGNANI,
1998).
Magnani (1998) em sua pesquisa antropológica no contexto urbano
da cidade de São Paulo encontrou na categoria nativa “pedaço” o ponto de
partida para a sua análise em relação às experiências de lazer dos jovens pela
cidade, visibilizando um território demarcado ou constituído por certos
tipos de equipamentos e de sociabilidades específicas, entendido como
uma modalidade de encontros, de trocas e experiências compartilhadas

6
Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


30 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

por quem ali se faz presente. O termo, de acordo com o autor, designa
aquele espaço intermediário “entre o privado (a casa) e o público, onde
se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos
laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações
formais e individualizadas impostas pela sociedade.” (MAGNANI, 1998,
p. 116).
Os movimentos das crianças pelo bairro e para fora dele revelavam
o fluxo escolhido por elas e por seus familiares. Seus pontos de partidas
e seus caminhos a serem seguidos de acordo com suas tarefas cotidianas,
permitiam que aprendessem neles/com eles sobre o contexto ambiental,
social e cultural nos modos como atravessavam e agiam ao longo dele.
Segundo Karol (13 anos) é complicado ficar na praça de noite e não
podem ir para a praça da outra comunidade, pois “quem é de Gramame não
pode ir para a praça do “Gerva” (Gervásio Maia), tem briga; a comunidade
já foi na prefeitura pedir uma praça aqui... em Gramame não tem nada”
(DIÁRIO DE CAMPO, 2017). Acaba que nestas transformações no
bairro, os novos espaços antes dominados pelas árvores, transformam-se
em terrenos que passaram a ser ocupados pelas crianças que buscam e
criam espaços para o lazer e de socialização.
Pelo o que as crianças contaram, há o entendimento de que os
caminhos pelo bairro se transformam ininterruptamente, principalmente
por aquelas crianças que moram no bairro desde o nascimento. É o caso
de Fernanda (15 anos) que frequenta a EVOT há mais de 6 anos, ao
relembrar que “era fresco o caminho mas tiraram as árvores, agora até à
EVOT mal pisa e a gente fica pingando”. Fernanda e as outras crianças
apontaram o fato de que a natureza, à medida que concomitantemente
foi ficando escassa pelos caminhos do bairro, a violência e a degradação
também aumentou. Luan (17 anos) que também vai à escola há pelo menos
12 anos, acrescenta juntamente com as outras crianças que:

A comunidade não cuida... quer as coisas, mas não cuidam...


pensar no hoje e no futuro, virão outras gerações e tudo vai
estar destruído...o caminho mudou, já não tem um monte de
coisa, tem muito lixo! Refletiu Luan (17 anos): tem assalto!

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Entre o rural e o urbano:... 31

Acrescentou Everton (11 anos). Quase ninguém preserva o


meio do caminho, apontou Karol (13 anos). (DIÁRIO DE
CAMPO, março de 2017).

Fora as características ambientais e físicas dos seus trajetos,


as situações de violência assistidas nas ruas e nas praças das comunidades
também são presentes nas contações das crianças. Apontam e compartilham
em grupo, locais de referência no bairro que são evidenciados assaltos
e possíveis situações amedrontadoras, numa mistura entre o real e o
imaginário por parte do entendimento das crianças e da própria comunidade.
Os descampados viraram campinhos de futebol, a rua de terra se refez para
andar de bicicleta, apostar corridas e para realizarem descobertas em meio
ao mato -, o qual também briga para ocupar o terreno. Em contrapartida,
apontaram que é dentro de casa e nas casas dos vizinhos que procuram
estar em muitos dos seus momentos de lazer, tendo em vista o perigo que,
segundo elas, ronda os ambientes abertos, locais considerados inseguros
principalmente por seus familiares que não permitem as saídas de casa em
determinados horários. Apesar do medo que sentem e a forma protetiva
de seus familiares, as crianças deixam claro a partir de suas narrativas, que
isto não as impede de sair e de se aventurarem pelas ruas.
Everton (11 anos) revelou no enredo desta conversa que “tem um
homem de touca vermelha atrás do CRAS que pega criança e outro fica
no mato esperando passar!”; o grupo prontamente afirmou reconhecer
nessa “história real” os modos de como procuram caminhar atentos entre
os territórios, pois a atenção é uma habilidade imprescindível para elas que
caminham “sozinhas” por ali. Para as crianças, brincar e se locomover
pelas ruas “sozinhos” significa se fazerem presentes nos ambientes sem
a companhia de um adulto, relatando que isso era possível quando iam
à mercearia a pedido da mãe, se juntavam para jogar bola, quando iam à
escola regular e para a EVOT, longos caminhos em que se relacionam e
convivem mediados pelos seres humanos e não-humanos em um ambiente
complexo.
Encontrei certa tarde enquanto voltava para casa, entre os caminhos
das comunidades do Colinas do Sul em direção ao bairro do Geisel, Bruno

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


32 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

(13 anos) e Gabriel (12 anos) em suas bicicletas pedalando rapidamente


assustados. O professor Marcílio, professor de percussão da EVOT e o
qual eu tinha dado carona neste dia, atentou a correria dos meninos. Ao
pararmos ao lado deles disseram que tinha um homem correndo com uma
faca na mão no meio da rua e que ao perceberem os gritos perceberam que
era uma briga, os obrigando a modificar o caminho para casa pelo medo
da confusão.
O bairro do Gramame que cresce e se (re) constrói na ordem
das ocupações humanas e materiais ao longo de seu território,
concomitantemente a comunidade, transforma-se e se apropria
simbolicamente do local mediada pelos fatores econômicos e políticos
os quais modificam intensamente o contexto natural, social e cultural do
bairro, produzindo, assim, uma multiplicidade de “pedaços” nesta região.
O bairro entendido em um contexto de “medidas e misturas” (SIMMEL,
2005) é uma região de periferia que se confunde entre o urbano e o rural,
e que por conta das intensas transformações, promove experiências e (re)
significações através de laços intensos ou provisórios, do emaranhado das
socializações, dos movimentos e da constante recriação de cada lugar que
as pessoas se fazem presentes, visto que “a cidade suscita aprendizagens
tanto individuais, únicas, mas também compartilhadas na experiência
urbana” (MÜLLER; NUNES, 2014, p. 666).
Dessa maneira, conceber as crianças como passivas, coexistindo
pacificamente apenas como usuária das ruas, do bairro e da cidade, como
incapazes de perceberem os contextos em que vivem e invisíveis em suas
ações nos ambientes, é desconsiderá-las como agentes participativas nas
relações e experiências em comunidade, como se não experienciassem
e transformassem os/nos seus caminhos suas aprendizagens baseadas
em suas necessidades e maneiras de conviver socialmente. Ao procurar
entender seus lugares de convivência e suas caminhadas compreendo que
se reconhecem como pertencentes a eles. Afinal, participam e ajudam a
emergir o sentido daquele lugar existir, bem como ressalta Castro (2013
p. 160) “reconhecer-se como alguém que faz parte do lugar onde mora
significa poder estar aí de maneira que o que se faz conta para tornar
aquele lugar o que é”.

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Entre o rural e o urbano:... 33

A rua, o bairro e a cidade que podem estar aparentemente dados


pelas construções e instabilidades urbanas capitalistas, atribuindo aos seus
sobreviventes, como reflete Bourdieu ([1930]1996) diferentes posições e
disposições sociais geradoras de decisões e escolhas (habitus) em relação ao
que lhes são estruturalmente imposto. Considero a partir do entendimento
das crianças, que os territórios e como os percorrem ao longo de seus
caminhos, expressam uma textura que é tecida como uma emaranhada
malha complexa de significados, criatividades e ações participativas a
partir de seus movimentos por entre os lugares, mesmo que configurados
como adultocêntricos, incertos e inseguros.
O movimento, a mobilidade e o fluxo são os elementos constitutivos
da sociedade, ou seja, de um contexto socializador, sendo considerações
próprias da sociologia da infância por entender que as crianças atravessam
lugares, fronteiras e percorrem trajetos. São movimentos pelos quais
aprendem, socializam-se e fazem emergir cada particularidade de vida,
portanto, são ao longo deles que as infâncias “acontecem”. Prout (2010)
aponta que:

Pessoas cruzam essas fronteiras levando consigo ideias,


experiências, ideais, valores e visões (tudo o que forma os
discursos) diferentes e conflitantes, assim como recursos
materiais diversos [...] Os atores híbridos, pessoas e coisas,
que se movimentam em e entre diferentes locais, todos
têm um papel na construção daquilo que emerge como
“infância”. É preciso retraçar esses movimentos para
compreendê-los melhor. (PROUT, 2010, p. 744).

As crianças ao contarem sobre suas experiências por entre as ruas


das comunidades, e revelam o bairro como um ambiente de múltiplos
sentidos, relacionando-o ao coletivo de pessoas, às relações de vizinhança,
atividades rotineiras e de lazer -, é assim que também contam sobre suas
infâncias. Nas palavras do grupo, a comunidade, a rua e o bairro são os
lugares:

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


34 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

Onde se mora, se brinca e vai no mercadinho para a mãe;


É onde tem a escola, a igreja católica e umas evangélicas,
tem o CRAS7;
É onde “tem pouco campinho para jogar bola”, tem a rua
onde joga bola e também anda de bicicleta;
Tem praças que se vai brincar e conversar com os amigos,
tem festas na casa dos vizinhos;
É um lugar onde tem muito mato, tem animais e tem o
rio Gramame, mas também tem ruas com buracos, ruas
asfaltadas e de pedras;
Tem brigas e é perigoso!
É onde a gente anda e vive. (DIÁRIO DE CAMPO, abril
de 2017).
Pode-se atentar a partir destas definições, como o ambiente emerge
e como é significado a partir dos acontecimentos que se entrelaçam ao
longo de suas caminhadas. É como reflete Magnani (2003):

Uma classificação com base em múltiplos eixos não


produz tipologias rígidas porque não opera com espaços
ou significados unívocos e sim com sistemas de relações:
a prática social dos atores, que opera esses sistemas de
classificação abrindo-os ou fechando-os é o que mantém
e enriquece a diversidade da dinâmica urbana [...]E porque
está-se falando não da rua em si, mas de experiência da
rua, então é possível também descobrir onde, em meio
ao caos urbano, ela se refugiou – já não como espaço de
circulação mas enquanto lugar e suporte de sociabilidade.
(MAGNANI, 2003, p. 3-4).

Mesmo que diante do senso de que a rua não é lugar para crianças,
principalmente aquelas do meio rural, que para elas eram entendidas
muitas vezes como “esquisitas” (desertas) – por apresentarem poucas
residências e uma extensão em que não se encontrava ninguém – as
próprias crianças (re) significavam esses lugares, criando-os e os ocupando

7
Centro de Referência de Assistência Social, que se situa na mesma rua a qual a Evot se localiza.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 35

com suas caminhadas, conversas e brincadeiras. Estas ruas se refaziam


pela manhã bem cedinho e logo após o almoço, quando por elas passavam
caminhando a pé ou em suas bicicletas para a EVOT. De mãos dadas
passavam as crianças mais velhas com as crianças mais novas e os amigos
mais próximos, enquanto algumas competiam corridas e disputavam
quem atingia a maior velocidade em suas bicicletas, desviando de carros,
caminhões e carroças, na correria, mas também na contemplação ao
pararem para verem a passagem de bois e cavalos. Entre os perigos e as
curiosidades, as crianças caminhavam ao longo do trajeto reinventando o
cotidiano a cada passo, indo e voltando.
Compartilho a ideia de Lúcia Rabelo de Castro (2013), quando
reflete que estas experiências dão o sentido de aventura. A autora se
baseia em Simmel (1998) para apontar que neste contexto a vida está em
constante conflito e surpresas, a vida na rua deve ser compreendida para
ser vivida em um esforço para enfrentar o invisível e o incompreensível.
É um desafio que as crianças não negam, pois ao longo do caminho
aprendem com ele para poderem agir nele.
Sem o acompanhamento de adultos da família nos caminhos até à
EVOT, as crianças acabavam por desafiar os outros olhares e o contexto
da vizinhança ao enfrentarem esta aventura cotidiana, se apoiavam
uns nos outros durante a caminhada tornando a rua uma vivência rica
de acontecimentos que vão sendo (re) descobertos, problematizados
e ludicamente resolvidos coletivamente, pois entre discursos e ações as
crianças se socializavam e aprendiam a participar nos/dos caminhos.

O QUE GRAMAME TEM PARA AS CRIANÇAS E O QUE AS


CRIANÇAS TÊM PARA GRAMAME

Fernanda Müller (2007), em sua tese intitulada “Retratos da


Infância na cidade de Porto Alegre”, procura interpretar como as crianças
manifestavam e entendiam a cidade que habitavam. Através de uma
etnografia mediada por muitas conversas, a autora observou e analisou os
desenhos e as fotos realizadas por nove crianças de três bairros diferentes
da cidade em interação com outras pessoas no contexto social da família

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


36 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

e do bairro, procurando entre os dados produzidos sobre cada criança e


por cada uma delas, convergências e divergências. Müller (2007) aponta
que as experiências são demarcadas por memórias positivas e negativas
em associação a alguns pontos da cidade, mostra ainda que as relações
das crianças com a cidade são mediadas pelos adultos e os ambientes por
elas visitados são criados e planejados pelos mesmos, revelando uma visão
“específica e fragmentada sobre a infância” (MÜLLER,2007, p. 167).
Porém, ao analisar o material recolhido com as crianças, a autora observou
uma diferente percepção sobre a cidade por parte delas:

As crianças demonstram a necessidade de lugares diferentes,


ou transformados, daqueles planejados para elas [...] Há de
se considerar que dentro dos limites espaciais e temporais
impostos pelos adultos, as crianças criam lugares para elas.
Podendo ser a rua em frente à casa, os becos, o pátio do
condomínio, partes do parque, os lugares criados pelas
crianças na cidade reafirmam as trocas entre pares, ao
mesmo tempo que são tentativas de se fazerem pertencer
[...] (MÜLLER, 2007, p. 180).

Com base nisso, pode-se similarmente atentar que as ruas


esburacadas até a EVOT são recriadas pelas crianças, por tornarem-na
uma longa trilha de sociabilidades e ludicidades orquestradas por suas
brincadeiras e histórias compartilhadas, desenrolando um contexto rico
de aprendizagens e socializações. Apesar de cotidianamente as crianças
terem seu destino traçado e uma intenção de chegada a um determinado
ponto, o fato de caminharem com certa liberdade por não estarem em um
caminho disciplinado pela presença do adulto, transformava cada ida e
volta da EVOT em um caminho imprevisível a ser vivenciado.
Reflito as caminhadas das crianças pelas ruas de Gramame como
Ingold (2015) se refere a um labirinto: “sem visão de comando ou vislumbre
de um fim”, onde se deve ficar na trilha e sempre alerta em um processo de
caminhada que gera conhecimentos quando nele se possibilita ser deixado
levar. Segundo Tim Ingold (2013), deve-se estar atento aos sinais sutis

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 37

no labirinto, não se chega bruscamente ao fim da linha, pois a intenção é


seguir em frente, continuar. Pelo fato das crianças caminharem sozinhas
e em grupos à EVOT, escolhem com certa liberdade seus trajetos na rua
ou dentro da própria escola, o labirinto aparece como um acontecimento
importante no cotidiano do grupo e desta forma também parece ser
percebido por eles, pois cada dia é uma novidade, uma expectativa em
relação ao que aparecerá ao longo caminho e ao final dele, não só pelas
crianças, mas também pelos educadores da EVOT que os esperam e os
veem pegar a estrada. Exige-lhes atenção a forma como chegam e como
partem.
Para a criança que é encaminhada pelos olhares e ações dos adultos
durante os trajetos, esta ação pode não ser possível por conta de seus
olhares se manterem distraídos pelos olhares adultos e se encaminharem
disciplinados. É como Ingold (2015) se refere ao caminhar por um Dédalo,
o qual também compara com uma fila direcionada dentro da escola pela
professora para se chegar ao refeitório. Portanto, as crianças não olham,
não escutam e não aprendem sobre o contexto a sua volta, dado o mundo
fechado proporcionado a partir do objetivo de um fim pré-determinado,
pois em um Dédalo os caminhos são confusos e é guiado apenas pela
intenção de chegada ao ponto final. No Dédalo não se exige a atenção da
mente, pois a trajetória já está pré-estabelecida, a mente trabalha, mas está
ausente.
Podemos dizer como bem coloca Jacobs ([1961]2011), que a rua
reflete para as crianças uma espécie de encantamento. Pude observar isso
ao acompanhar uma parte do trajeto realizado pelas crianças até a EVOT,
os sorrisos e os dedos que apontam para diferentes direções não param
por nenhum momento, a chegada é recheada de novidades e piadas do que
foi vivenciado no trajeto. Esta é a diferença entre o andar disciplinado e
controlado por um adulto de mãos dadas com a criança, e uma caminhada
em que a criança guia pelas mãos os mais velhos: o caminho pode ser
visto, sentido, seguido e vivenciado. É como se para além das imperativas
cobranças da vida moderna, as crianças e os adultos em companhia
pudessem vagar por entre seus trajetos aproveitando o máximo de sua
semântica, conhecendo-o e assim aprendendo a viver nele coletivamente.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018
38 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

Compartilho a noção de que a rua pode proporcionar uma liberdade


de vivências e assim aprendizagens entre as crianças e entre as crianças e
os adultos, mesmo considerando que em nossa conjuntura a violência e os
perigos são eminentes e, por isso, “todo cuidado é pouco”. Sinalizando que
“nenhuma pessoa normal pode passar a vida numa redoma, e aí se incluem
as crianças [...] Todos precisam usar as ruas” (JACOBS, [1961]2011, p. 34)
como um ambiente coletivo de encontros, de sociabilidades e cuidados
compartilhados, de modo que viver nela é entendê-la e assim participar
da vida em comunidade. Podemos dizer que para as crianças, este
encantamento da rua só acontece por que para elas:

Não tem sentido ir a algum lugar formalmente para fazê-las


de acordo com um plano formal. Parte do seu atrativo reside
na sensação que as acompanha, de liberdade de vaguear para
cá e para lá nas calçadas, situação diferente de estar fechado
dentro de um espaço. (JACOBS, [1961]2011, p. 66).

O trajeto para a EVOT é realizado formando grandes grupos de


6 a 9 crianças durante o caminho, por vezes também são formados trios
e duplas que andavam atrás, na frente ou entre os grupos maiores. Ao
tentaram me explicar a distância que percorriam até a EVOT, contaram que
para alguns é mais longe e para outros nem tanto. São trajetos percorridos
cantando, brincando, correndo, subindo e descendo os “morrinhos” entre
os buracos da estrada.
As crianças que moram mais distantes, segundo elas, são os irmãos
Vitor (9 anos) e Antônio (10 anos), que percorrem o caminho de bicicleta
do bairro do Grotão (fora de Gramame) até à EVOT. Contaram em poucas
e tímidas palavras que passam por uma ladeira, casas e a praça que jogam
bola, as outras crianças enquanto ouviam também iam complementando
o trajeto: “tem a praça, tem o Antenor (Escola municipal do bairro), tem o
CRAS, tem a igreja, daí anda, anda, tem muito buraco, as casas e os sítios,
vem até chegar na EVOT” (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).
Vitor e Antônio, eram recém-chegados na EVOT quando os
conheci, perguntei a eles se algum adulto os acompanhava ao longo do

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 39

trajeto e Vitor afirmou que não. Atentou que vem com o irmão e não tem
medo de vir “sozinho” para a EVOT, dando a entender que um cuida do
outro no trajeto e dispensam o medo. Após alguns dias de chuva do inverno
pessoense, tive que dar uma grande volta para conseguir chegar à escola
por conta dos caminhos estarem intransitáveis com muito barro e grandes
buracos. Ao chegar à comunidade de Gramame, encontro andando a pé os
dois irmãos, que ao me verem, pularam de felicidade pedindo uma carona.
Ao entrarem no meu carro perguntei a eles onde estavam suas bicicletas
e Antônio relatou que o pai não os tinha deixado usar e que não sabia o
motivo. Ao perguntar se eles estavam cansados, negaram veementemente,
sorrindo com um pirulito na boca, apesar das carinhas suadas, os pés e
mãos cheias de barro.
As crianças vivenciam um “balé nas ruas”, parafraseando
Jacobs ([1961]2011) que analisa um “balé nas calçadas” ao se referir
ao movimento dos moradores e não moradores pelas calçadas. Ao
ocuparem-na significativamente, promovem o cuidado e a segurança de
maneira coletiva. Trazendo para a realidade aqui contextualizada, diante da
ausência das calçadas pela estrada da comunidade de Gramame, esse balé
encenado pelas crianças se apresenta como elas narraram, por entre os
buracos, poças, desvios de animais, transportes, medos, coragens e olhares
dos moradores.

Trata-se de uma lição que ninguém aprende por lhe


ensinarem. Aprende-se a partir da experiência de outras
pessoas sem laços de parentesco ou de amizade íntima
ou responsabilidade formal para com você, que assumem
um pouquinho da responsabilidade pública por você [...]
O ensinamento de que os moradores da cidade devem
assumir responsabilidade pelo que acontece nas ruas é dado
continuamente a crianças que usufruem a vida pública nas
calçadas. Elas conseguem assimilá-lo surpreendentemente
cedo. Mostram que o assimilaram ao reconhecer que
também fazem parte desse processo. Elas dão indicações
(antes de elas serem solicitadas) a pessoas que estão
perdidas; advertem um sujeito de que ele levará uma multa se

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


40 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

estacionar o carro naquele lugar; sugerem espontaneamente


ao síndico do prédio que use sal grosso em vez de talhadeira
para partir o gelo. (JACOBS, [1961]2011, p. 64).

Pude acompanhar muitas situações porque as crianças confidenciam


histórias ocorridas com suas famílias e com eles próprios pelas ruas do
bairro, bem como as diversões e os sustos pelo trajeto. Faça chuva ou
faça sol, o momento de chegada das crianças na EVOT é entoado por
risadas, brincadeiras e histórias compartilhadas pelo caminho, com a qual
compartilham e rememoram assuntos do bairro e de acontecimentos
entre os vizinhos. As histórias de aventura e acontecimentos engraçados
revelam a confusão entre o contexto urbano e rural do bairro: as subidas
nas árvores para pegar goiabas, investigar o chão para colher e comer cajá,
a chifrada que o colega levou do bode, o cachorro brabo que de alguém
fugiu e a surpresa de um boi desgarrado que apareceu voltando para
casa -, situação inesperada também vivida por mim.
Em uma manhã, as crianças e os educadores contaram que na volta
para casa, algumas crianças se envolveram em uma briga que aparentemente
tinha iniciado na EVOT, a partir de alguns descontentamentos em relação
a uma criança. Então, no meio do caminho elas iniciaram novamente
a discussão e agrediram em grupo um dos colegas, o qual foi acudido
por um morador da vizinhança. As crianças continuaram a caminhada
para casa, mas alguns dos moradores foram até a EVOT comunicar o
ocorrido, o que resultou no dia posterior em uma grande roda na escola
para que todos os educadores e as outras crianças entendessem o que
aconteceu, e resolvessem que atitudes tomariam para evitar que o fato
ocorresse novamente. Ação provavelmente baseada na premissa de que
“saber cuidar de si e dos outros não são atributos apenas dos adultos.”
(CASTRO, 2013, p. 69).
Os movimentos do cotidiano também apareciam em seus desenhos
e brincadeiras, não que estas crianças não estejam conectadas e não
apreciem os desenhos presentes nas mídias, mas atenta-se que vivem
prazerosamente a ludicidade de suas correrias e caminhadas na criação
de seus desenhos e brincadeiras de forma descompromissada, e por eles

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 41

vi como revelam o viver em Gramame. Com as pecinhas de montar, Rian


(8 anos) me apresentou o lugar onde a sua mãe compra peixe. E com
as bonecas de pano as meninas contaram os encontros das mulheres da
vizinhança, como escolhem suas roupas, almejam comprar seus objetos de
beleza e apreciam as festas na vizinhança.
Pude observar que desde as crianças menores até os adolescentes,
aparecem alguns elementos em comum em suas contações que despertam
a imaginação, muitas memórias e experiências alegres, e dentre as mais
expressivas, destaca-se as vivências dos banhos no rio. Mesmo que, por
vezes, diferenciem-se em relação às maneiras de participar destas narrativas
e no entendimento de suas experiências no ambiente, o rio Gramame e
outros rios aparecem nas narrativas circulando os sentidos sobre lazer e a
degradação ocorrida durante os últimos anos. Sendo um diálogo efetivo
com a comunidade e com o poder público pela EVOT, o rio Gramame
é um dos principais direcionadores das ações na instituição, sendo um
símbolo necessariamente contextualizado neste trabalho por conta de sua
importância para todos que fazem parte da escola. O rio é um contexto
vivido pelas crianças, não só por ser assunto evidenciado dentro da escola,
mas como também fora dela nos finais de semana, como fonte de lazer
para as crianças, pois é “um bem de natureza material de grande referência
para a região” (TOLENTINO, 2016, p. 97). Um dos desenhos mais
visualizados durante as atividades lúdicas ou de desenhos livres na grande
mesa do refeitório da escola é o da ponte dos arcos que une os municípios
de João Pessoa e do Conde.
Em um dos vários momentos em que presenciei o desenho da
ponte, perguntei às crianças porque era comum realizarem aquela prática e
com entusiasmo me relataram que a ponte é o lugar por onde eles podem
ver “o rio Gramame passar”, e que um dia até fizeram um cortejo com o
grupo Tambores do Tempo, caminhando da ponte até à Evot como ação
do projeto “Rio Gramame quer viver em águas limpas”. De acordo com
as crianças, nesta ponte o grupo da escola já foi para conversar e entender
que ele é um bem presente na comunidade e que assim devem cuidar
bem dele, enfatizando que o rio estava azul por conta da poluição das
fábricas que se localizam às suas margens. Eles lamentaram, no entanto,
Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018
42 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

que já fazia muito tempo que não iam até lá. Contaram de maneira
ensaiada e apropriada, já que eu chegara ali sem entender nada do rio, que
o Gramame é muito importante por abastecer uma grande parte da capital
João Pessoa, refletindo que sua preservação depende unicamente das
atitudes das pessoas, e desde pequenas as crianças “devem saber disso”.
Uma criança frequentadora da escola há anos, com apoio das outras
crianças também interessadas em enfatizar o problema do rio, explicaram
que “o rio era limpo, a gente tomava banho lá, mas de tanta sujeira das
fábricas a água ficou azul”. Perguntei em seguida se ainda iam ao rio para
tomar banho e brincar, Ana Parla e Paola ressaltaram que vão sim, “mas
só no da santinha”, e Adrian (11 anos) complementou que “tem o rio da
geladeira também”.
Certo dia, Paola (8 anos) estava muito empolgada por seu aniversário
que seria no próximo final de semana, o qual teria como comemoração um
banho de rio, assim ela, a sua mãe, seu irmão e sua irmã Ana Parla (todos
frequentadores da EVOT) iriam levar um lanche e tomar banho no rio
da Santinha, que segundo Penhinha, educadora da Evot, é o rio Jojoca
que deságua no Rio Gramame. Sobre o “rio da santinha” Paola apontou
o caminho a partir da EVOT para que eu pudesse também conhecê-lo,
incentivando-me com muitos elogios ao descrever o trajeto que eu deveria
seguir: “vai direto, desce a ladeira passa pela ponte direto, só direto, não
arrudeia, tem placa, mas não vai, vai direto, tem ladeira e vai andando bem
e chega. Lá toma banho no rio da santinha”.
Durante essa conversa outro elemento associado ao rio se apresentou
através da brincadeira e da observação de outra criança, conforme relatei
em meu diário de campo:

Rian (8 anos) escuta tudo muito observativo e diz: “Parabéns,


Paola!” , Paola responde: “Faz mal dizer parabéns antes do
aniversário, é pecado!”, Rian olha pega alguns objetos e as
bonecas arruma tudo e convida: “Vamos brincar tia, eu sou
o vendedor de camarão!”, então eu pergunto: “Onde você
foi pescar esse camarão?”, Rian responde: “ Fui pescar no
rio Gramame!”, continuando a brincadeira com seu papel

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 43

de vendedor olha para a boneca de Paola e diz: “Bom dia,


minha fia!”, e assim começam a vivenciar a compra e venda
de camarão, muito caro segundo uma das crianças, para
que a boneca de Paola organizasse um jantar especial de
aniversário com as outras bonecas. (DIÁRIO DE CAMPO,
abril de 2017).

As questões relacionadas ao rio Gramame estão por toda parte na


escola, em cartazes, nas rodas de conversa, nas músicas e reverenciado
no Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo idealizado e concretizado
por Mestra Doci e Penhinha8, ao qual fui apresentada por Ana Parla.
Mostrando a canoa logo na entrada do museu, ela entra e começa sua
explicação apresentando todos os utensílios necessários para pescar no rio
Gramame: “pega o remo assim, isso aqui é para pegar camarão, ele entra
(fez uma pausa, como quem procurasse entender a armadilha vendo que
tinha um buraco do outro lado), mas ele não sai não, pega tudo isso para
pescar, é assim! ”. Perguntei onde as pessoas pescavam com aquela canoa
e ela respondeu me olhando assustada por eu ainda não saber: “no rio
Gramame, ué!”, em seguida me mostra um banner onde muitas crianças
pareciam conversar com os Mestres da comunidade sobre o rio, contando
à sua maneira o enredo daquele momento em que todos “estavam falando
que o rio era limpo e agora é sujo!”.
As crianças conhecem as histórias da comunidade e de seus
familiares nas vivências com o rio. Com o trabalho da EVOT, relacionado
às memórias do Vale do Gramame, podemos entender que estas histórias
são vivenciadas no diálogo com os mais velhos pela comunidade e pelos
educadores da instituição, como pude observar também ao visitar o
museu. Desta forma, o rio e as questões relacionadas à sustentabilidade
são um dos temas mais circundantes no contexto, nas ações públicas da
EVOT em outras localidades e através das músicas apresentadas pelo
grupo Tambores do Tempo.
Através das brincadeiras e narrativas as crianças evidenciaram as
suas participações pelos caminhos e nos ambientes ocupados e recriados
8
Sobre como o Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo foi criado ver Tolentino (2016).

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44 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

por elas; no movimento para fora do bairro as crianças aprendem sobre


outros contextos e reconhecem como os ambientes se organizam, mesmo
que adultocentricamente. Ferreira (2002) aponta:

[...] muitas das brincadeiras das crianças, representando suas


interpretações e entendimentos daquele mundo, mostram
que elas, coletivamente, ao reconstruírem conceptualmente
o contexto físico, durante ou para as suas brincadeiras, e ao
reconstruírem cognitivamente aspectos da vida adulta, não só
aumentam o seu entendimento dela, em termos do contexto
presente, como simultaneamente elas se apresentam nas
suas próprias realidades sociais. (FERREIRA, 2002, p. 306).

A própria EVOT por ser uma instituição que conta com espaço
arborizado com oito olhos d’água em seu terreno, se referencia como
um contexto que se abre para outras leituras e sensações por entre seus
espaços, que também são ocupados pelas crianças de forma curiosa e
autônoma. Nela descobrem e atuam de forma coletiva na organização
do ambiente, brincando através dele, colhendo frutas, colaborando com
a manutenção da horta e da frondosa trilha repleta de árvores replantadas
anos atrás pelos educadores e pelas crianças. Dentro da EVOT nascem
cotidianamente outros caminhos em que se misturam o novo e o velho, a
mata e o cimento, a tecnologia e as brincadeiras em roda e no chão.
Entre a EVOT e outros lugares que oferecem mesmo que
limitadamente espaço para suas ações, evidentemente a escola formal está
presente em seus trajetos como sendo um destino cotidiano de encontros
e de experiências por entre as comunidades do bairro, tornando-se um
espaço que une vizinhos, amigos e familiares. Nos últimos anos algumas
escolas municipais, incluindo creches e unidades escolares de atendimento
integral foram construídas no bairro, possuindo também algumas escolas
estaduais. Os adolescentes relataram que estudam no centro ou em outros
bairros distantes para os quais se deslocam em transportes coletivos
sozinhos ou com colegas que estudam no mesmo lugar, mas quase a
metade das crianças frequentam a escola municipal da comunidade que se

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 45

localiza na mesma rua da EVOT, algumas também caminham para outras


escolas que se localizam em outras comunidades do bairro, mas que se
situam em ruas próximas com recentes ocupações, inclusive irregulares.
Os movimentos referentes às andanças das crianças dentro e
para fora do bairro, entre as instituições, se reconstituem como saberes
compartilhados coletivamente que acabam por fazer florescer novos
entendimentos sobre os ambientes e seus significados socioculturais, além
de se mostrarem momentos prazerosos e divertidos para elas, gerando
a curiosidade e a atenção pelo novo, pelo caminho e pelo destino; é um
processo que provoca múltiplas sensações. Os ambientes que as crianças
participam, mesmo tendo sido planejados e organizados por adultos como
as instituições e as próprias ruas, não impedem o fato de que possam ser
recriados com bases em seus desejos e imaginações:

[...], ou seja, há um processo de aprendizagem efetivado pelas


crianças, mais ou menos elaborado, sobre os acontecimentos
circundantes a partir de um saber compartilhado com os
adultos, ou através de vestígios de informações provenientes
dos mesmos adultos, ou mesmo da disposição dos objetos e
da materialidade que compõe o cenário social e que servem
de orientadores de suas ações. (PRETTO, 2015, p. 181).

Para ilustrar caminhos, experiências e saberes sobre o bairro, as


crianças apresentaram os mapas que eles próprios criaram enquanto
conversavam sobre o bairro. Suas rotinas e trajetórias foram desenhadas
mediadas por enredos, explicações por onde passavam e o que vivenciam
através da diversidade vivida ao longo dos ambientes. Claro que cada
criança ao criar seu mapa, evidenciou o que para ela era mais relevante
naquele momento de ilustração do itinerário vivido em Gramame, através
de seu conhecimento regional que as levam aos seus arredores e em
direção a algum lugar.
Tim Ingold (2000) refere-se ao movimento cartográfico a experiência
de retratar a transformação de lugares em regiões experimentadas, onde
o imaginário é a visão “panorâmica de uma consciência transcendente”.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


46 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

A forma de descrever planificadamente seus caminhos em um desenho


no papel emerge os movimentos retratados através de um processo de
engajamento do ator-receptor com o seu ambiente onde “cada linha do
mapa é um pouco o traço de um gesto, que se refaz em um movimento
real no mundo.9” (INGOLD, 2000, p. 233, tradução nossa).
“Os caminhos de vista/ paths of view” (INGOLD, 2000) das
crianças em Gramame, ilustraram estas considerações realizadas até aqui,
visto que cada uma à sua maneira, a partir e no coletivo, experienciaram
a prática de mapear seus caminhos diante de suas memórias de partidas
e de chegadas. Foi possível notar ambientes coincidentes entre os mapas,
inclusive a percepção de qual movimento as crianças faziam ao longo do
bairro, os movimentos que faziam na rua e que a rua os fazem trilhar,
ressaltando principalmente aqueles que para elas caminhavam “sozinhas”.
A abordagem ecológica de Gibson (1979) apud Ingold (2015) explica
como “paths of view” o movimento de traçar os itinerários a partir das
características de um território, o qual é entendido em uma rede variada,
complexa e ampla de ir e vir. Sendo assim, “não é visto neste momento,
nem visto a partir deste ponto, pelo contrário, o que se percebe é um
ambiente que envolve um que está em toda parte”10 (Gibson 1979, p.195–
7 apud INGOLD, 2000, p.226, tradução nossa). E, desta forma, as crianças
demostraram compreender seus caminhos, dentre os quais destaco nos
desenhos abaixo, como aqueles que expressaram os elementos naturais e
sociais que mais foram enfatizados pelo grupo na atividade:

9
“Every line is rather the trace of a gesture, which itself retraces an actual movement in the
world” (INGOLD, 2000, p. 233).
10
“Thus the environment one sees is neither ‘seen-at-this-moment’ nor ‘seen-from-this-point’.
On the contrary, what one perceives is an environment that surrounds one, that is everywhere
[…]” (GIBSON, 1979, p. 195–7 apud INGOLD, 2000, p.216).

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 47

Imagem 1. Mapa desenhado por Denis. Fonte. Diários de Campo.

Imagem 2. Mapa desenhado por Adrian. Fonte. Diários de Campo.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


48 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

Através das ilustrações realizadas pelas crianças, observei espaços


que evidenciam-se como ambientes de participação e socialização
cotidiana: as praças, os campos, as casas dos amigos e o rio apareceram
em todas as produções, sempre narradas com histórias de aventuras e
de convivências divertidas. Por isso, é que aparecem nas entrelinhas de
seus desenhos o sentido de que possivelmente em suas caminhadas, as
crianças nunca estavam tão “sozinhas”, como elas enfatizaram como
sendo a condição para que suas caminhadas fossem reveladas em uma
demonstração de conhecimento e autonomia pelos caminhos.
De acordo com as crianças, os adultos geralmente estavam por
perto, outros sujeitos da mesma geração também eram notados, como
um amigo, a irmã ou o irmão de um conhecido, até o “Seu Dedé” dono
da merceria foi citado. Sem falar nos vizinhos que olhavam por cima
dos muros e as pessoas que transitavam até as paradas de ônibus que
atentavam às correrias e gritos entoados pelas crianças. Ou seja, contaram
um lugar em constante movimentação e observação mútua. As crianças
apresentaram lugares pertecentes ao contexto vivenciado no cotidiano,
entendido simbolicamente como elemento fundamental para se explicar
o bairro de Gramame, como as ruas, as praças, a ponte e o rio. De modo
que demonstraram que quanto maior a autonomia, que por vezes parece
acompanhar a idade, maior sua locomoção por entre os ambientes no
bairro.

FINDANDO BREVEMENTE O TRAJETO

Pelas ruas e suas curvas, os trajetos criavam vida a partir das


aventuras desbravadas pelas crianças no ir e vir pelo bairro de Gramame,
entre o urbano e o rural, entre o que se transforma e o que cresce com a
ação humana e não humana. Durante algumas rodas de conversa que pude
presenciar, participar e conhecer uma parte do que acontecia ali através das
histórias das crianças, observando seus movimentos e criações nas linhas
de seus desenhos e pelas brincadeiras realizadas em meio aos brinquedos

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


Entre o rural e o urbano:... 49

que inventavam, emergindo assim uma realidade (re) significada, entendida


e ritmada pelo grupo no período e contexto desta pesquisa.
As crianças mostraram aprender pela ação de sentirem o caminho
e na liberdade de andar e de não andar por alguns deles, demonstraram-se
agentes que se permitiam encontrar acontecimentos e aprender a partir da
percepção multissensorial no/dos ambientes que os envolvem, podendo
assim experienciar os encontros de vidas em parceria com todos e tudo
que também se faziam presentes. O contexto urbano que faz parte de
suas rotinas é adormecido ao entrarem nas ruas de chão batido, nas poças
de lama nos dias chuvosos pessoenses, nas frutas e flores das árvores
no meio do caminho e dos animais que constantemente aguçavam suas
curiosidades.
Entendo diante desta interpretação coletiva florescida com as
crianças, que a partir de sua possível compreensão e imaginação sobre
aquilo que as circundam, é que criativamente e atentamente as crianças
“perturbam” o caminho com a sua presença através de suas brincadeiras,
vozes, pedaladas e corridas pelo bairro de Gramame, pois do urbano para
o rural e vice-versa, traçam diálogos e aprendizagens entre os contextos,
os movimentando.

***

Esse artigo não teria sido possível sem o acolhimento por parte das
crianças e dos adultos da EVOT. Ao grupo, o nosso muito obrigada.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


50 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

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Entre o rural e o urbano:... 51

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52 Karla Jeniffer Rodrigues de Mendonça e Flávia Ferreira Pires

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Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, 2016.

Texto recebido em 30/01/2018 e aprovado em 23/03/2018.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 21-52, fev./jun. 2018


TEMOS UM JEITO DE SE VIVER AQUI:
A IDENTIFICAÇÃO QUILOMBOLA PELAS
CRIANÇAS ABACATAENSES1

Maria do Socorro Rayol Amoras2

RESUMO: Este artigo discute a identificação quilombola dos abacataenses a partir da


etnografia sobre/com as crianças. Abacatal é uma comunidade quilombola localizada na
área rural de Ananindeua, município integrante da região metropolitana de Belém-PA,
remonta ao início do século XVIII com o projeto escravocrata de africanos na colonização
da Amazônia. A metodologia orientou-se pelos estudos contemporâneos da antropologia
da criança para compreendê-las como como agentes da construção e determinação
de sua vida social, daqueles que as rodeiam e, bem como, da sociedade na qual vivem.
Nesse sentido, as crianças influenciam e são influenciadas pela cultura, logo, tanto quanto
os adultos participam da produção de sentidos e significados, imprimindo-lhes uma
dinâmica nas relações entre estabilidade e mudança em Abacatal. O estudo possibilitou
compreender a contribuição criativa das crianças abacataenses para o repensar dos
esquemas convencionais que envolvem as experiências infantis com as referências e os
processos identitários e, no caso de Abacatal, particularmente, evidenciou a participação
ativa delas na luta pelo território.
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia da criança; Infância; Quilombola; Identidade;
Etnografia.

1
Este trabalho é parte integrante de uma pesquisa de doutorado em Antropologia pela
Universidade Federal do Pará (UFPA), desenvolvida nos anos de 2010 a 2014 (AMORAS,
2014) e com novas investidas no tempo presente (2018).
2
Antropóloga e professora efetiva do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Pará-
UFPA. E-mail: samoras@ufpa.br
54 Maria do Socorro Rayol Amoras

WE HAVE A WAY OF LIVING HERE: THE


IDENTIFICATION OF QUILOMBOLAS BY
ABACATAENSES CHILDREN

ABSTRACT: This article discusses the quilombola identification of the abacataenses


from the ethnography on / with the children. Abacatal is a quilombola community located
in the rural area of ​​Ananindeua, an integral part of the metropolitan area of ​​Belém-PA,
dating back to the beginning of the 18th century with the slave-owning project of Africans
in the colonization of the Amazon. The methodology was guided by the contemporary
studies of the anthropology of the child to understand them as agents of the construction
and determination of their social life, those around them and the society in which they
live. In this sense, children influence and are influenced by culture, so, as much as adults,
they participate in the production of meanings and meanings, imparting a dynamic in
the relations between stability and change in Abacatal. The study made it possible to
understand the creative contribution of the Abacatal children to the rethinking of the
conventional schemes that involve children’s experiences with references and identity
processes and, in the case of Abacatal, in particular, evidenced their active participation
in the struggle for the territory.
KEYWORDS: Child’s Anthropology; Childhood; Quilombola; Identity; Ethnography.

INTRODUÇÃO

Antes de iniciar a discussão pretendida, é importante situar o


que me levou a problematizar em uma pesquisa maior os significados
atribuídos pelas crianças abacataenses ao que elas denominavam como
“os de dentro” e “os de fora”. Começou assim: sempre que perguntava a
um grupo de crianças onde estava fulano ou fulana, que naquele momento
não se encontrava em Abacatal, elas respondiam em coro expressando
alegria: “Tá prá fora!”. Entre os adultos, vez por outra estavam a observar:
“aqui dentro é assim”, “lá fora é desse outro jeito”. Por tempos fiquei
interrogando sobre o que significava “estar dentro” e “estar fora”. O que
seria “de dentro” e o que seria “de fora”. Quem seriam “os de dentro”
e “os de fora”. Em qual linha do tempo se encontraria (ou não) o início

Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018


Temos um jeito de se viver aqui:... 55

desta distinção e de uma interação, de um certo modo de se identificar. E


o que mais, especificamente, interessava a este estudo: como a distinção e
a interação dentro/fora estavam implicadas na vida das crianças e nas suas
experiências identitárias com a luta pelo território.
Fiz muitas investidas frustradas junto aos abacataenses interrogando-
os sobre o que seria para eles uma comunidade quilombola e como é
ser quilombola. Respostas que jamais conseguiria pela inquirição, mas
sim, pela observação em profundidade e com escuta atenta aos diálogos
intergeracionais. E comecei a interrogá-los após uma conversa que tive
com duas meninas, Babiana, dez anos, e Iris, oito anos, sobre o que sabiam
acerca da origem de Abacatal. Iris, comentou: “aqui morava um conde e
muito índio e, aí, tem todas essas pessoas que moram hoje aqui”, e Babiana,
complementou: “o meu pai me disse que eu sou carambola [risos]”. Daí,
mais perguntas: onde estavam os negros entre tantos índios e um conde?
O que seria ser carambola? Que informações pai e filha compartilhavam?
Que elementos simbólicos o pai mobilizava para identificar a menina
como carambola?
Logo de início, pelos risos de Babiana, percebi que, para ela, o
termo carambola soava como uma brincadeira do pai com a sonoridade
da língua para fazer a rima. Depois de várias observações e conversas
com a menina e seu pai e com outros adultos e crianças, compreendi que
usavam o termo para expressar a dinâmica que imprimiam à formação
da família em Abacatal, isto é, alguém “de dentro” vai morar “prá fora”,
casa e tem filhos com alguém “de fora” e, depois de um tempo, resolve
retornar com a família. Esses filhos, nascidos “fora” com os “de fora”,
são os misturados, os carambolas. Dessa união, podem nascer filhos mais
claros, contudo, não é só a cor da pele que é acionada nesta classificação,
mas também, a diferença do lugar de origem dos pais.
Antes de enveredar na discussão pretendida, é importante esclarecer
que este estudo não se filia ao entendimento não crítico das diferenças
atribuídas aos espaços urbano e rural, o qual parte de categorias genéricas
e dicotômicas para compreender os significados das práticas sociais que
tornam operacional esse tipo de interação e distinção (CARNEIRO, 2012).
Um entendimento, portanto, que não reconhece aquilo que os grupos,
Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018
56 Maria do Socorro Rayol Amoras

na sua diversidade, tomam para si no processo identitário. A identidade


não obedece uma linha divisória espacial e temporal estática e linear, ou
seja, que não se move, não se desloca. A identidade é negociada, implica
interesses e escolhas (HALL, 2002).
Assim esclarecido, o estudo apresenta um conjunto de dados
interligados que possibilitou fazer algumas inferências sobre Abacatal,
os abacataenses e a identificação de comunidade rural que fazem de si,
a partir daquilo que as crianças definem como “o jeito de se viver” em
Abacatal. Termo utilizado por elas quando se referem ao apego as coisas
que o lugar oferece, como: a mata, os quintais, os animais, as fruteiras, o
rio, as comidas, os brinquedos e as brincadeiras, as festas, as amizades e
a possibilidade de viver sem a violência da cidade. O apego a essas coisas
não significa que cultivam um isolacionismo, ao contrário, valorizam a
proximidade com a cidade e exibem nas redes sociais as fotografias dos
passeios nos shoppings e de outros espaços de lazer que acessam.
Desse modo, as crianças estão concebidas neste estudo “como
ativas na construção e determinação de sua própria vida social, na dos
que as rodeiam, e na da sociedade na qual vivem” (SILVA; NUNES,
2002, p. 18), influenciam e são influenciadas pela cultura, logo participam
da produção desses significados imprimindo-lhes uma dinâmica no seu
grupo social. Isso também significa dizer que as crianças abacataenses são
atuantes nos processos de socialização e aprendizagem, logo contribuem
criativamente para o repensar dos esquemas convencionais que envolvem
suas experiências com os processos identitários coletivos. Sendo
compreensivo da maneira como atualizam no tempo a história de origem
do lugar, mantêm a memória e a tradição segundo suas interpretações, isto
é, elaboram uma identificação quilombola.
Para isso, a pesquisa visou a etnografia sobre/com as crianças (PIRES,
2011, p. 23) – o que não significou exclusão dos adultos –, pois concordo
com a perspectiva de ser “impossível empreender o projeto de estudar as
crianças deixando de lado os adultos” - eles se fizeram presentes do início
ao fim do trabalho de campo. A metodologia, desse modo, sustentou-se
nos pressupostos teóricos de uma Antropologia que considera as reflexões
contemporâneas para compreender as crianças (TOREN, 1993, 2002,

Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018


Temos um jeito de se viver aqui:... 57

2004, 2006, 2010; JAMES & PROUT, 1990; QVORTRUP, 2011; NUNES,
2003; COHN, 2002, 2005; PIRES, 2008, 2010, 2011), considerando-as
interlocutoras privilegiadas tanto quanto os adultos. Para mim, marca
um posicionamento teórico e político para vê-las e ouvi-las, isto é,
considerar suas falas sobre seu universo de vivência e interpretá-lo, dando
atenção especial ao modo como participam ativamente da construção da
identificação étnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006).

SOBRE ABACATAL

Abacatal é uma terra de herdeiros, atravessada pelas regras de


parentesco e de organização social, as quais são expressivas do modo
como os abacataenses fazem suas incursões no lugar habitado, isto é, como
se constitui em território de um grupo étnico. Localizada às margens do
rio Uriboquinha, que desemboca no rio Guamá, a 8 km do centro da
cidade de Ananindeua e a 16 km da capital. É um território preservado sob
muitos conflitos internos e externos como lugar de trabalho e de residência
de um grupo dedicado por longo tempo, exclusivamente, às atividades
agroextrativistas. Atualmente, além do extrativismo ainda mantido, porém
em menor proporção, seus moradores dedicam-se à agricultura, decidem
o que cultivar de forma autônoma e, ao mesmo tempo, inserem-se nas
pluriatividades oferecidas pelos setores urbanos.
A localidade originou-se no processo de ocupação da Amazônia
nos séculos XVIII e XIX. Lugar que surge da participação de homens e de
mulheres africanos escravizados, inseridos na organização da agricultura
comercial que se ligava diretamente à Belém do Grão-Pará (ACEVEDO;
CASTRO, 2004). No ano de 1999, seus moradores receberam o Título
Coletivo da Terra, amparado pela Constituição Federal de 1988, em seu
Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que
confere direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam
ocupando suas terras.
Mesmo hoje, com a posse do Título Definitivo da Terra de
Comunidade Remanescente de Quilombo, Abacatal não se livrou das
tensões e das múltiplas ameaças de invasão às suas terras pelos grupos

Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018


58 Maria do Socorro Rayol Amoras

privados e pelas políticas excludentes de projetos governamentais. Os


abacataenses sabem que a condição de remanescentes também constitui
uma ameaça a esses grupos, pois as terras legalmente protegidas impedem,
de certo modo, que esses grupos avancem com seus negócios. O Título
trouxe para dentro da comunidade políticas públicas sociais e culturais,
ali conduzidas, a meu ver, a partir de entendimentos estáticos sobre
africanidade e trabalhador negro rural, que não correspondem, contudo,
à compreensão da relação entre trabalho, trabalhador rural e comunidade
quilombola para os abacataenses, bem como, às suas expectativas sobre
essa relação.
Devido à proximidade com o centro urbano que, por um lado, torna
mais fácil o deslocamento e o acesso a serviços públicos (escolas, hospitais,
prefeitura e judiciário), às transações comerciais e políticas, aos espaços de
lazer e às oportunidades de emprego, por outro, faz com que se sintam
ameaçados por essa proximidade, principalmente, porque consideram a
vida urbana como desencadeadora da violência, como dizem: “com o
progresso vem sempre a desgraça”. Percebem que o apelo ao consumo
promovido pela cidade tem “virado a cabeça” das crianças e dos jovens.
O “dentro” e o “fora”, desse modo, constituem um processo
articulado de fluxos de práticas e de bens econômicos, simbólicos e
sociais diversificados, sendo um substrato para a (re)construção de
novas configurações e processos identitários dos abacataenses, onde são
acionados diferentes códigos simbólicos de afiliação e de pertencimento
em um mesmo grupo (HALL, 2002). Contudo, nessa mobilidade simbólica,
não estão isentos das peculiares ambiguidades, ambivalências e paradoxos.
Este processo permeia a vida das crianças, pois é constitutivo da forma
como são socializadas e educadas pela família e pela escola, do modo
como elas influenciam os processos de socialização e aprendizagem e,
ainda, da maneira como também constroem simbolicamente as referências
nativas de “dentro” e de “fora”. Ser uma criança nesse lugar, portanto, é
desenvolver-se nessa fluidez de modo relacional, ou seja, “o jeito de se
viver” em Abacatal.
As referências identitárias, entretanto, quanto a estar inserido em
uma comunidade rural quilombola, sob contato cotidiano com o espaço

Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018


Temos um jeito de se viver aqui:... 59

urbano, são dinamizadas também de acordo com interesses e escolhas


dos abacataenses, ora sob rupturas, ora sob continuidades (CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2006). Tudo sendo intercambiado pelas suas incursões,
inserções e exclusões nesse vai-e-vem “de dentro para fora” e “de fora para
dentro”, movido por seus itinerários e reeditado nas jornadas traçadas no
tempo, as quais são reveladoras da relação estabelecida entre crianças e
adultos para integrar terra e trabalho. Assim, Percorrendo o Projeto da Daniele,
mostrarei, adiante, o modo como as crianças compreendem a história
de Abacatal, como veem e se veem nesse lugar e, ainda, como essas
percepções evidenciam seus modos de inserção nos espaços socialmente
reconhecidos, qualificados e compartilhados. A inserção dos pequenos
nesses espaços muito tem a dizer sobre a territorialidade na vida das
crianças abacataenses.
A territorialidade, como refletem Di Méo e Buléon apud Raimbert
(2009, p. 37), “tem primeiro a ver com o sujeito socializado, sua lógica,
sua sensibilidade, as capacidades reflexivas e imaginárias”, e como segue a
citação: “ela junta-se com seu espaço vivido, tecido com relações íntimas e
interativas com os lugares e as pessoas que os frequentam”. E, ainda, como
pude também observar, em Abacatal: “Enriquece-se de suas experiências,
de suas aprendizagens sociais”. O espaço vivido, por assim se constituir,
não é um espaço homogêneo e não-conflituoso, mas organiza-se a partir
desta especificidade, ou seja, sob embates e disputas internas e externas
(LITTLE, 2002). E, por assim se constituir.
Nessas disputas, os abacataenses organizam socialmente o seu
lugar (local de memória, moradia, trabalho, religiosidade, política e de
lazer) por meio de um movimento no tempo de descobrir-caminhos,
“dentro” e “fora”, seus itinerários, movimento que tem a ver com o modo
como manipulam um mito de origem para levar avante suas lutas. Neste
movimento de interação e distinção, vão reafirmando e reelaborando suas
diferentes percepções sobre “os de dentro” e “os de fora” – nativos e
forasteiros. São suas jornadas, as quais proclamam o modo como mapeiam
as relações estabelecidas entre ambos (INGOLD, 2005).

Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018


60 Maria do Socorro Rayol Amoras

UMA METÁFORA HISTÓRICA E UM MITO DE ORIGEM

A Comunidade
No começo tinha um nome/ Ia ser Abacabal/ Mas um erro
no registro/ Ficou Abacatal/ Um conde morou aqui/ E
morou até morrer/ Deixou três filhas/ Que eram cheias de
poder/ Há muito tempo chegou um conde/ Trouxe vários
índios/ Mas ninguém sabia de onde/ E assim formou o
Abacatal/ Uma comunidade de beleza/ Para uns, é muito
pouco/ Para mim, é uma grandeza (Karen, 11 anos).

A poesia da menina abacataense apresenta uma história mítica


que envolve o protagonismo de dois personagens. Mito esse que conta
a origem de uma terra de pretos: um conde, Coma Mello e a escravizada
Olímpia. Da união dos dois, nasceram três meninas. Antes de sua morte,
em 1710, o conde deixou para elas a terra do Abacatal em herança. O
enredo é cheio de lapsos de tempo e de diferentes versões. Os escritos
de Karen me convidaram a pensar “a ligação entre herança e ocupação,
como ocupação simbólica e política importante para a unidade do grupo
no tempo” (ACEVEDO & CASTRO, 2004, p. 17), definindo a existência
de vidas ao longo de séculos em um lugar marcado por conflitos.
Longe de querer desvendar, por meio de instrumentos arqueológicos
e arquivísticos, as entrelinhas dessa metáfora presente no seu texto, pois,
para isso, seria necessário colocar em xeque a voz da menina, a veracidade
de um romance e a legitimidade da terra onde pisam, e essa não é a melhor
forma de “fazer com que uma história honesta seja contada honestamente”
(GEERTZ, 2005). Nesse sentido, a intenção foi a de compreender, como
nos possibilita Sahlins (1974; 1997; 2006; 2008), a ação de agentes, crianças
e adultos, entre mudanças, dominação e resistências, para significar uma
história, correlacionando interesses, desejos e escolhas.
O ano de 1710 marca a posse de uma terra de onde os abacataenses
passaram a retirar seu sustento, sendo também um marcador temporal,
na oralidade, usado para reelaborar a história de uma ocupação singular
do território. Olímpia, a escrava, descrita como amante do seu senhor,
deixou as três filhas, reconhecidas no ato de lhe deixar a terra: Maria do

Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018


Temos um jeito de se viver aqui:... 61

O’ Rosa de Moraes, Maria Filismina Barbosa e Maria Margarida Rodrigues


da Costa. Seus descendentes guardam na memória a herança não registrada
em cartório como o bem maior, a ponto de se sentirem senhores da terra.
Um poder herdado das três filhas de Olímpia, como registrou Karen.
Esse legado tem possibilitado ao grupo acionar direitos, os quais são
reivindicados por meio de um esquema da ancianidade, de uma genealogia
que possibilita analisar as gerações e suas experiências sociais em torno de
um modo de vida particular nesse lugar, e de um sentido de pertença ainda
muito forte entre as crianças, como expressa a menina: “Uma comunidade
de beleza/ Para uns, é muito pouco/ Para mim, é uma grandeza”. A base,
portanto, de identificação dos membros dessa comunidade é a relação de
parentesco, que está estreitamente vinculada à ocupação territorial e aos
critérios de pertencimento do grupo. O conde Coma Mello realmente
existiu? A investigação de Acevedo e Castro (2004), anteriormente citadas,
nos registros de terra dos séculos XVIII e XIX, nada revelou acerca dessa
personagem que permanece no imaginário das crianças atualizando essa
história.
A história da existência do conde mostra uma das pontas de uma
história construída, provavelmente, num processo de afirmação do grupo,
não fazendo sentido algum para os abacataenses, no presente, responder
tal pergunta, pois a mobilização de suas vidas não depende desta resposta.
Mas, ao contrário, o que lhes interessa é manter viva a história de um lugar
que se encontra no tempo com a história da agricultura e da escravidão
nesta região, legitimadora da herança da terra. É nesse pretérito que
localizam seus antepassados e, a partir dele, conforme sua memória e seus
interesses, continuam a tecê-lo. Karen também, faz sua tessitura sem a
preocupação de saber de onde vieram.
Em meio aos diversos elementos simbólicos (existentes, inclusive,
concretamente, fisicamente, em Abacatal) que classificam para reelaborar
essa história, conservam um “caminho de pedras”, que começa no igarapé
Uriboquinha e se estende até as ruínas da casa do conde, mas que só
passou a ser ativado como argumento político nas suas reivindicações após
a pesquisa de Acevedo e Castro (2004). O caminho possui quinhentos
metros de comprimento por um metro de largura. Consta que foi
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construído pelos africanos escravizados em 1710, ou em 1790, para evitar


que o senhor sujasse os pés na lama quando fosse fazer sua visita amorosa
à escrava Olímpia. Assim, como reflete O’Dwyer (2002, p. 17): “o passado
a que se referem os membros desses grupos ‘não é o da ciência histórica,
mas em que se representa a memória coletiva’ – portanto, uma história que
pode ser igualmente lendária e mítica”.
As relações simbólicas que envolvem um mito de origem, terra e
trabalho, enfatizadas na poesia da menina, também encontrei nos desenhos
de outras crianças. E, assim elas participam da definição de práticas que
possibilitam ao grupo construir sua história e produzir processos de
afirmação étnica e política. Foi, portanto, a dinamicidade de interesses que
movimentou inicialmente esses processos que lhes permitiram enfrentar
longos processos judiciais para legalizar as terras e conseguirem, em 1999,
a outorga do título coletivo e, em outubro de 2012, obter o registro na
Fundação Palmares de “comunidade remanescente de quilombo”. Neste
ponto, recorro à tese de Sahlins (2008) para “olhar culturalmente para uma
certa história” e compreender que a história dos abacataenses é ordenada
pela cultura e orquestrada aos seus modos, de acordo com os esquemas
que constroem para significar suas relações.
Para Sahlins (2008), a conjuntura possui uma estrutura e esta, por sua
vez, constitui-se de relações sociais mediadas pelos signos, portadores de
valores distintos em função do seu esquema simbólico coletivo e na prática
das pessoas. Assim, as crianças também são autônomas para repensar
os esquemas convencionais da exclusão histórica que sofrem, como diz
Karen: “Para uns, é muito pouco/Para mim, é uma grandeza”. Formulam,
desse modo, novas categorias, imprimindo sentidos e signos. Assim, as
reflexões de Sahlins, aqui reivindicadas, são pertinentes à compreensão
dos movimentos em Abacatal: estabilidade e mudança, passado e presente.

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Percorrendo o Projeto da Daniele

Em um pequeno pedaço de papel, medindo 15 cm x 20 cm,


Daniele, nove anos, fez uma redução cartográfica da maneira como
visualizava a extensão do lugar que habitava, como mostra o desenho
acima, o qual identificou, no canto direito do papel, de Projeto da Daniele.
A menina localizou a rua principal, caminhos e atalhos que ligam a rede de
vizinhança, pois, para ela, as pessoas, suas moradoras, são referências do
lugar. Explicou: “Da casa da Naza a gente vara na casa da Caboquinha e
vai assim até chegar no fim”. E, recorrendo, ao nome das pessoas, mapeou
Abacatal. Destacou, ainda, em negrito, os prédios de uso coletivo: a casa
de farinha; o barracão onde são celebrados cultos e festejos católicos; e
o barracão usado para reuniões, festas e comemorações da Associação e
aniversários, como descreveu:

[...] na sede da associação tem reunião, às vez tem festa,


a gente pega presente no Dia das Crianças, pega também
comida da Mesa-Brasil. No barracão tem missa, novena,
catecismo, batizado... No igarapé das pedras... a gente pesca,
toma banho, faz piquenique... e o Abacatal começou lá. Na
casa de farinha, o pessoal faz farinha, tira tucupi, goma... a
vovó vai e a gente também vai ajudar ela (Daniele se refere
às crianças: irmãos e primos).

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É do portão, para dentro, como bem identificou a menina, que os


abacataenses constroem seus espaços de memória, moradia, religiosidade,
trabalho, lazer e de decisões políticas. As mulheres são muito atuantes nas
lutas políticas da comunidade. Elas são maioria na Direção da Associação
dos Moradores e constituem maioria entre os associados. Hoje, entre os
dez membros que compõem a diretoria, elas somam nove, sendo que
uma ocupa o cargo de Coordenadora Geral. As mulheres organizam as
pautas das reuniões, mantém um canal de diálogo entre a Associação e as
demais comunidades de ilhas pertencentes ao município de Ananindeua,
localizadas no rio Maguari, buscam o diálogo com os diversos órgãos do
poder público, implementam projetos sociais e organizam os protestos de
rua. Segundo elas, todo o empenho é para oferecer uma vida mais segura
às crianças, porque entendem que as consequências atingirão diretamente
os pequenos.
O desenho da menina me confirmou o que sempre eu estava a
observar: as crianças sabem descrever a extensão territorial da comunidade.
Elas conhecem muito do espaço por meio da companhia de suas mães
e de outras crianças. Nas reuniões da Associação, as crianças sempre
estão presentes. Em uma dessas, onde se fazia presente grande parte dos
moradores, representantes das ilhas e de órgãos públicos, muitos deles
homens por sinal, Azaléia, três anos, dirigindo-se ao local, dizia que estava
indo para a “reunião das mulheres”. No Projeto da Daniele também chama
atenção ao fato de as casas terem sido identificadas, em sua maioria,
pela referência às mulheres. Menção que também se repete na poesia da
menina e na maioria dos registros das falas das crianças quando aludem a
origem de Abacatal à existência de três mulheres – as três Marias, filhas
da escrava Olímpia – cuja realidade, parece-me que transcende os tempos
cronológico e histórico, sendo, a um só tempo, presente e passado, se
costurando no modo como as crianças compreendem o “jeito de se viver”
em Abacatal, vivendo muito próximas de suas mães, tias e avós.
Mas, é do portão para fora que Abacatal, ao longo de décadas,
vem sendo palco de muitas manifestações e confrontos reivindicatórios
dos direitos básicos (segurança, trafegabilidade e meio ambiente livre de
contaminação) e, cotidianamente, essas mulheres travam uma luta com as

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proximidades da cidade que, para elas, atingem diretamente as crianças.


Esses são os motivos pelos quais têm levado os abacataenses a fazer a
opção por um certo isolamento, para que possam controlar o tipo de
comunicação que querem fazer com “os de fora”, pois, para eles, o portão
fechado evita que sejam pegos de surpresa por impostores. Se bem que
nunca foi impeditivo, pois, não raro, são surpreendidos por eles.
Esse portão, além da segurança e controle, também é uma
representação simbólica daquilo que compreendem como sendo o “de
dentro” e o “de fora”. Tais significados são acionados pelas crianças
nas diferenciações que fazem entre aquilo que consideram como sendo
próprio deles, como o espaço geográfico que ocupam e o modo como
o habitam. O Projeto de Daniele revela, portanto, que a manutenção dos
espaços coletivos e o modo como se organizam para ocupar o espaço
territorial, muito explica o “jeito de se viver” ali.

UM JEITO DE SE VIVER

Ao longo das idas e vindas a Abacatal uma pergunta foi mais


recorrente: o que os abacataenses pensavam sobre as representações
formuladas pelos “de fora” sobre eles? E, esse percurso, mostrou que era
um lugar que não se resumia a um estatuto, ou a um título de propriedade
de comunidade remanescente de quilombo, datado de 13 de maio de
1999. Pois, muito além do instituído, elevava-se o espaço vivido, a um
certo “jeito de se viver” ali. Abacatal é um lugar habitado, econômico
e simbolicamente explorado, trilhado e afetivamente construído, como
Karen expressou em sua poesia A Comunidade.
A poesia de Karen se juntou ao registro audiovisual que ocorreu
durante uma brincadeira com as crianças3, ambos retratam o modo como
a memória de um mito de origem os auxilia a compreender a maneira
como vivem nesse lugar, bem como aquilo que a geração mais nova elege
na construção das referências positivas para querer continuar vivendo
nele. Foi possível observar aspectos históricos e elementos simbólicos
3
As crianças brincavam de dar entrevistas a um programa de TV sobre o que achavam de
Abacatal.

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acionados pelas crianças para demarcar um lugar de pertença, uma


identificação. Adenium, 13 anos, narrou:

Eu sei que nós somos quilombolas, eu sou a sétima geração


de uma família descendente de escr... [interrompeu/pausa]
de negros. Abacatal é uma comunidade quilombola porque
é uma cidade fundada por negros, aí eu sou descendente de
negros, como a maioria das pessoas aqui.

Régia, nove anos, em um relato longo, comentou:

Os negros que aqui viviam tinham que coisar os pés do...


do... não sei... do conde! Os negros apanhavam... queriam
roubar nossas terras, queriam coisar, queriam matar os
negros. Graças a Deus hoje não tem mais nada disso. Antes
tinha guerra, agora não tem. Antes, os pessoal que morava
aqui antes, em 1900, não sei... não lembro, faziam muitas
coisa lá no igarapé, tem até sangue por lá!

A menina retrata um período de dor e sofrimento que ficou no


passado, mas que se faz presente, tal como enfatizou: “Tem até sangue
por lá!”. Para ela, hoje é bem melhor viver em Abacatal pelo fato de não
ter mais o sofrimento dos negros e a invasão das suas terras, ou seja, não
há guerra. Adenium interrompeu a sua fala quando percebeu que iria dizer
que era descendente de escravos e entendi sua pausa, porque, para os
abacataenses, o escravo lembra trabalho penoso e sofrimento e também
o menino já se apropriou de uma consciência crítica que desnaturaliza a
relação escravo/natureza.
Ouvindo as crianças, um dado muito importante encontrado foi o
fato de o mito de origem ganhar outros contornos entre elas, revelando o
modo como fazem suas inserções na história. Karen, em sua poesia, fala
da relação de um conde, suas filhas e os índios. Régia descreve a relação
entre um conde e os escravos. E, Jasmim, oito anos, com um tom de voz
que soou com orgulho da bravura dos homens sobreviventes, reporta-se
à condição do escravo:
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Tu sabe como começou aqui? Aqui começou assim: um


bocado de escravo trabalhavo muito, muito, muito... aí,
quando não queriam mais fazer as coisa o homem mau dava
chicotada neles. Tem uma mangueira ali que colocavo os
escravo pendurado... mataram os escravo e só uns e outros
vivero e outros foro embora. É assim que começou!

Enquanto caminhava com Jasmim, da escola até sua casa, perguntei


como era viver em Abacatal e o menino, apontando para o horizonte e
para as árvores, mencionou: “aqui é bom, a gente vai prá li e prá culá, onde
quer, pode brincar na rua, ir pro rio, subir nas árvre, tem festa também
[risos]”. Foi dessas referências positivas de um lugar que ainda guarda
muito de suas feições rurais que Rosa, nove anos, sentiu falta quando seus
pais resolveram sair de Abacatal para morar “prá fora”:

Lá só tinha um monte de coisa ruim, aí eu e meus irmãos


começamos a aperriá prá voltar e fizemo nosso pai voltar
prá cá, lá era ruim demais, não podia sair na rua, era tiro pra
todo lugar, barulho que nem presta, aí, nós viemo prá cá de
novo, e não quero sair mais não.

Zínia, 12 anos, com a voz emocionada, não titubeia em dizer:


“a minha vida é maravilhosa aqui, não tenho o que reclamar daqui, é
ótimo, é ótimo viver na comunidade do Abacatal”. Adenium também
comentou: “o Abacatal é bom de morar, por causa que é calmo, não tem
muito carro e tem igarapé prá gente tomar banho”. Apesar do apego ao
lugar e das referências positivas, os abacataenses identificam uma série
de dificuldades para se viver ali, pois travam grandes confrontos com o
poder público devido à ausência de políticas públicas básicas. Enfrentam
também os especuladores e empresários da construção civil, que exploram
areia e pedra nos arredores, vindo a danificar a estrada de acesso ao centro
urbano e, ainda, ameaçam avançar sobre suas terras. Essas ameaças
foram potencializadas pela proximidade ao Lixão do Aurá ao longo de
décadas; pelos resíduos químicos depositados pela Facepa (Fábrica de

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Celulose do Pará) nas margens da estrada, há mais ou menos uns 500 m


metros do portão de entrada da comunidade; pela exploração comercial
de areia e pedra nas margens da estrada, pela construção dos conjuntos
habitacionais das políticas públicas de habitação, que destruiu o rio que
corta a comunidade.
Existe, ainda, o conflito histórico com a empresa italiana Pirelli
que, conforme Acevedo e Castro (2004, p. 14), “com a retomada de uma
política de borracha baseada no cultivo da hevea, as terras adjacentes a
Abacatal foram doadas pelo Estado a empresa”, que levou para si grande
parte do terreno que os abacataenses consideravam como deles antes
da titulação. Consequentemente, os espaços de coleta, caça e agricultura
foram drasticamente reduzidos. Para eles, o fato de as ruínas da casa
do Conde estarem dentro do terreno da Pirelli, confirma que aquelas
terras lhes pertencem. Dos 2.100 hectares correspondentes à sesmaria
legada pelo Conde Coma Mello às três filhas, os abacataenses usufruem
apenas de 602 hectares (menos de 6 hectares por família). Hoje também,
enfrentam a política desenvolvimentista do atual governo do Presidente
Michel Temer que prevê a construção de uma ferrovia e a ampliação do
linhão de abastecimento de energia elétrica em parte de suas terras e que
atingirá dezenove comunidades quilombolas das proximidades. É notório
que os problemas serão triplicados.
O fato de os abacataenses terem a garantia da terra e de outros
direitos faz com que Abacatal seja visto como vivendo um novo momento,
porém, não mais como aquele de “guerra”, descrito pela menina Régia,
pois acham que conseguem demonstrar poder nas disputas com “os de
fora”. Nesse sentido, a imposição vai se dando também pela apropriação
de elementos étnicos, históricos e políticos que tomam para si no processo
de territorialização e de construção e manipulação de uma identificação
quilombola, como comentou o menino Adenium ao se identificar como
quilombola, porque se vê descendente de negros. Enquanto Lírio, 28
anos, que chegou em Abacatal aos 19, como vendedor de remédio natural,
explicou porque se considera um quilombola:

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Me sinto um quilombola sim. Cheguei, comecei a participar


das lutas e fui sentindo a força de ser quilombola. Pela minha
origem, acho que sou quilombola, a história do meu lugar
tem semelhança com a daqui. A minha bisavó foi escrava.
Então, minha identificação já tava no sangue, só não tinha
o conhecimento. Agora, a minha identificação mesmo veio
pelo rural, foi onde me encontrei. Eu gosto do trabalho
rural, é o que eu sei fazer, tenho uma roça, mas, de modo
tradicional.

Lírio sabe que, como não nasceu em Abacatal, não é considerado


abacataense e sim um agregado, isso significa não ser herdeiro; mas identifica-
se como quilombola e sabe que assim é visto pelos abacataenses, pois, para
isso, mobilizou sua história pessoal, a identidade que entende como dada
pelo sangue, e aquilo que considerou como sendo o mais importante: a
identificação pelo trabalho rural. Neste sentido, a identificação quilombola
é muito mais aberta e abrangente. Assim como pesquisou Raimbert (2009,
p. 21), também as minhas observações me levam a inferir que “parece
assim que, no Abacatal, a identidade quilombola, tal qual a história, se
amplia para acolher uma variedade maior de quilombolas”, como, no caso,
os “carambolas” descritos pelas meninas Babiana.
Perante “os de fora” os abacataenses sabem que essa diferenciação
não cabe ser feita, pois divide e enfraquece as lutas, como explicou
um membro da Associação dos Moradores referindo-se à condição de
“agregado” de Lírio: “Aqui dentro, prá nós, ele é um agregado, mas ‘lá
fora’ ele é abacataense, e tem que se apresentar assim porque ele tá nas
lutas”. Lírio confirma essa fala, mas não apenas pelo fato de fazer parte de
um jogo político, mas também, ao se identificar como abacataense perante
“os de fora” se percebe um abacataense e um quilombola nas relações que
estabelece ali dentro:

Então, por isso me sinto um abacataense, tomo a bença


de muita gente, não porque são meus parentes, mas
por consideração, e trabalho junto e tudo... quilombola,
porque me identifico com as lutas. Aonde eu chego elevo a

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comunidade de Abacatal e defendo, porque tenho orgulho


dessa história.

Os abacataenses, crianças e adultos, desse modo, de acordo com


Cardoso de Oliveira (2006, p. 73), manipulam identidades “e em sua
condição de pessoa esse ‘Eu social’, esse ator reflexivo não apenas assegura
sua autoidentidade pela consciência que tem de sua história pessoal, mas
ainda se reconhece enquanto tal diante do(s) Outro(s)”. Caliandra, 13
anos, participa com a mãe, desde bem pequena, das reuniões da Associação
e dos encontros de comunidades quilombolas, por isso penso que vem
desenvolvendo um discurso político em favor do lugar. Para ela, o viver
em Abacatal está relacionado ao significado de trabalho como um modo
ético de produzir as condições de existência. Observou:

Não nego não minha raiz. Não posso ter vergonha de morar
aqui. Nós temos um jeito de se viver aqui e devemos ter
orgulho do trabalho da roça. Falo isso pra minha mãe e prá
todo mundo... porque tudo isso existe desde a minha bisavó
que era escrava. Respeito o trabalho da roça, porque o que
a gente vem da roça, mas tem gente aqui que tem vergonha.

Nem todas as famílias de Abacatal têm roça de mandioca, mas é


comum encontrar uma criança, com mais de cinco anos, que conhece
as etapas para “botar a roça” e o processo de produção dos derivados
do tubérculo. Verifiquei isso conversando com elas, observando seus
desenhos e brincadeiras e durante o trabalho na casa de farinha. Pais que
não ensinam seus filhos a lidar com a terra e com seus produtos são vistos
como irresponsáveis, são acusados de ter vergonha do trabalho rural,
como Caliandra mencionou. Para os abacataenses os projetos de vida
que elaboram para a inserção dos filhos no mercado de trabalho, isto é, a
profissionalização e o emprego, fazem parte de um futuro incerto.
A relação, portanto, entre terra e sustento e suas apropriações
simbólicas conferem aos abacataenses uma singularidade pela forma como
vem construindo o lugar e organizando a cultura entre estabilidades e

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mudanças, uma moral e uma ética, impressos nas relações intergeracionais,


que implicam também ações de enfrentamento aos opositores, ao mercado,
ao Estado e aos seus confrontos internos. A dinâmica da roça, embora
não sendo elemento característico dos quilombos (ALMEIDA, 2002),
para além de uma prática de cultivo, ou de um sentido restrito de plantio
de mandioca, expressa as relações simbólicas nos processos de trabalho,
envolvendo um saber negociado com a tradição no presente, isto é, uma
maneira de ser e de viver nesse lugar.
Um modo de vida que define um processo de territorialização,
revelador de um modo de interlocução com antagonistas e explicativo
do que seja um território tradicionalmente ocupado por um grupo
particular, com identidade coletiva em construção (BARTH, 2000).
Nesse sentido, a institucionalização do território quilombola, garantida na
Carta Constitucional de 1988, é reinterpretada na medida em que essas
populações vão ampliando seus leques de necessidades e seus respectivos
direitos. Por isso, em Abacatal, foi possível observar que “não fazer planos
para morar fora” tem a ver com a garantia de ser negro com estatuto
legal e com autoridade de negociação, enquanto ser negro “do portão para
fora”, significa viver em meio à multidão e invisibilizado.
É possível reafirmar, deste modo, junto com O’Dwyer e Almeida
que, na medida em que esses grupos passam a buscar as razões históricas
das suas condições de vida nesses lugares, como as crianças aqui presentes
perscrutam, começam a desenvolver um sentimento de pertencimento
que é transformado em estratégia de superação dos efeitos das grandes
mudanças econômicas, “descobrindo caminhos” entre “os de dentro”
e “os de fora” em um movimento no tempo (INGOLD, 2005). São,
portanto, o enfrentamento e a delimitação de espaços e de direitos que
estão na base do processo de construção da identificação quilombola.
Durante o trabalho de campo não houve registro de alguém
fazendo planos de morar “prá fora”, mas foi comum encontrar pessoas
chegando pelo casamento com alguém “de dentro”. Há o caso de um
homem abacataense que casou com uma mulher “de fora” e, como ela não
conseguiu se adaptar a Abacatal, o casal mantem o matrimônio estando
fisicamente separado: ele mora “dentro”, e ela, “fora”. Este arranjo não
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é bem visto pelos “de dentro”: “se casou com um homem do mato, tem
que viver a vida do mato, do jeito que se vive no mato”, comentou uma
senhora, tia do homem.
Esse encontro “fora” sempre existiu, mas, hoje, facilitado pela
expansão urbana e pela necessidade frequente de acessar a cidade devido
a diversidade de serviços e espaços de lazer, vem alterando a dinâmica
dos casamentos que antes aconteciam, quase sempre, entre casais das
redes de parentesco; porém, observar isso não significa fazer a defesa de
uma ideia de pureza racial nas suas origens, algo que nunca existiu em
qualquer circunstância, além de que, no Brasil, assim como, em África, os
quilombos se organizaram com a participação de diversos grupos étnicos
(MUNANGA, 1995,1996; SLENES, 2011).
O modo também como os abacataenses entendem a mistura envolve
uma certa admiração pela ideia construída em relação ao sangue guerreiro
do índio, daí a defesa da ascendência indígena ser sempre acionada nos
momentos de embate com os inimigos, e tão presente no imaginário das
crianças. Compreendo por esse viés o fio de memória que as crianças
puxam para mencionar a existência de “um conde e muitos índios”. Onde
ficaram os negros? Essa admiração foi construída pelo entendimento que
têm quanto à reação do índio à escravidão, isto é, a ideia de que não se
submeteu à exploração dos colonizadores, como o negro africano.
O índio, assim genericamente considerado – e por que não dizer
que é uma visão produzida pelos “de fora” para essas pessoas –, não se
deixou escravizar, e ainda são vistos na atualidade como severos lutadores:
“vê, quanta coisa eles consegue, olha só Belo Monte! Fecham estrada,
param as máquinas, vão prá cima dos grandes... Estão dando o sangue e
vão conseguir. Aqui, quando ferve o nosso sangue de índio, não tem pra
ninguém [risos]”, comentou a mãe de Iris. Enquanto o índio é lembrado
pelo seu sangue guerreiro, o trabalhador escravizado é mencionado como
submisso para reservar-lhe um lugar subalterno no passado, como observei
em diversos momentos com as crianças quando queriam fazer troça com
outra criança chamando-a de “minha escrava”.
Foi, portanto, a inspiração na representação do índio guerreiro
que impulsionou os abacataenses a lutar perante o poder público pelo

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reconhecimento da ascendência africana: “se o pessoal daquele tempo não


tivesse o sangue do índio não tinha conseguido enfrentar a derrubada das
casas”, observou Margarida, lembrando da primeira grande ameaça às suas
terras. E, hoje, a moeda de troca, é a ascendência africana que, colocada em
evidência perante o poder público, permite reivindicar direitos. Contudo,
a luta pelo reconhecimento da origem africana está muito mais ligada à
garantia de poder viver dignamente na terra, para isso, levantam bandeiras
pela defesa de políticas públicas valorizadoras do modo como querem
viver e serem vistos.
Todavia, por parte de certos discursos dessas políticas que
chegam à Abacatal, a mistura é analisada como a grande causadora do
desenraizamento da cultura africana. Fazem, assim, a defesa de uma ideia
de “resgate cultural” por meio de uma pedagogia, isto é, ensinar essas
populações a serem afro-brasileiras com vistas a uma dada autenticidade
do patrimônio cultural, vindo a constituírem-se em “reservatórios de
africanidade”, que penso como uma essencialização do passado. Nesse
caso, pensado a partir da ideologia da perda, “o ‘passado’ parece existir
dentro de uma redoma, desconectado de um presente, de um futuro ou de
um passado ‘reais’”, uma certa forma de homogeneização (GONÇALVES,
2001, p. 26).
Muitas dessas políticas, no período da pesquisa, eram desenvolvidas
pela secretaria de educação e cultura da prefeitura do município, sob
o discurso do chamado resgate cultural para ensinar um certo modo
de ser quilombola às crianças, contudo, eram usadas também com o
intuito de promover o empreendedorismo entre os adultos. Pareceu-
me que o problema maior residia no fato de tais estratégias pautarem-
se em representações folclorizadas da cultura negra no Brasil, por isso,
sustentavam uma imagem do negro como objeto exótico e de contemplação
(LEITE, 1999). E, ainda, por meio da ideia de que essa população precisa
elevar-se à categoria de produtiva, sendo capaz de gerar renda para si, ao se
pretender romper com o habitus (BOURDIEU, 1990; 2009) que orienta o
trabalho por outras lógicas de relações de produção que, por sua vez, não
são as mesmas lógicas do mercado.

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Nesse sentido, o habitus é compreendido como a causa da pobreza


onde vivem. É como se a incorporação desses elementos, de uma dada
africanidade, garantissem aos abacataenses a pureza quilombola, tão posta
em dúvida pelos opositores, “os de fora”. E, ainda, movidos pelo espírito
do homem pró-ativo, pudessem fazer jus aos direitos. Não estava em jogo,
portanto, para os abacataenses, a assimilação desses valores e ícones culturais
para a continuidade de suas lutas. As oficinas de empreendedorismo,
promovidas pelas secretarias municipais, não ofereciam segurança
econômica e eles não se identificavam com a representação de um negro
imposta por um grupo de técnicos: usando tranças nos cabelos, roupas
coloridas, cultuando as religiões de matrizes africanas e jogando capoeira.
No tempo presente, o ingresso de um grupo de mulheres na
universidade pública pelas políticas de cotas e engajamento no movimento
social possibilitou a implementação de algumas ações nesse sentido. Elas
dizem que passaram a compreender criticamente a importância desse
simbolismo para o reconhecimento de uma ancestralidade, importante
para o fortalecimento do território. Hoje, uma professora da escola
coordena um grupo de dança, formado pela maioria de crianças, que se
apresenta nas festas da comunidade e em eventos na cidade que fazem
alusão à cultura negra. Criaram um grupo de capoeira, ambos também
com a presença maior de crianças. Um grupo de jovens que, na época
do início da pesquisa se encontrava entre nove e onze anos, há dois anos
formou uma banda de música que toca carimbo com letra autoral, ritmo
da cultura popular paraense. As letras sempre se referem a história de
Abacatal e suas opressões. Um grupo de mulheres passou a produzir licor
de frutas regionais, conservado em garrafas ornamentadas por elas com
motivos da cultura africana. Hoje, é comum vê-las nas redes sociais - as
mulheres (adultas, adolescentes e crianças) - dançando com roupas no
feitio e nas cores afros, cabelos trançados e com belos turbantes na cabeça.
Em alguns discursos dos profissionais da escola havia críticas às
poucas lembranças de um passado relacionado à escravidão, como se
fosse fruto da pouca importância que os abacataenses dão a essa história.
Para eles, bem como para os demais adultos, as crianças e os mais jovens
não se interessavam pelas coisas do passado e pelos valores morais que

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balizavam as suas relações, como se tudo estivesse perdido, pois viam suas
preferências e interesses voltados às “coisas de fora”: o lazer, a moda,
as “festas de aparelhagens” (LIMA, 2008), os equipamentos eletrônicos
(telefones celulares, computadores e jogos) e as comidas industrializadas.
O trabalho de campo mostrou que as crianças e os jovens tinham
essas preferências tanto quanto os adultos e criavam estratégias para
consegui-las, contudo, sendo uma maneira de se sentirem incluídos entre
os “de fora”: “lá a gente tem que ser descolado, não pode ficar como
bicho do mato, encostado pelos cantos, tem que ser um pouco como
eles”, comentou Caliandra referindo-se aos colegas com quem passou a
se relacionar quando começou a frequentar a escola na cidade com onze
anos. Um grupo de crianças, que estuda nessas escolas, comentou que
recebia apelidos de escravos, roceiros e carvoeiros.
Nesse processo de interação cada vez mais próximo entre campo/
cidade, as crianças e os jovens experimentam e formulam novos modelos
e padrões alternativos de consumo, de comportamento, de estética do
corpo, sexualidade, ou seja, cada vez mais cedo integrantes do público
infantil e juvenil, de ambos os sexos, formulam novos planos e projetos
de vida, redefinem, valores, escolhas (STROPASOLAS, 2012). Contudo,
também é possível dizer que muito da construção desses novos modelos,
“gostos” e “estilos de vida”, são constituintes de uma “distinção” baseada
em valores da cultura dominante, que passam a imprimir nas suas relações
com aqueles abacataenses que não experimentam o espaço “de fora” e
seus elementos simbólicos do mesmo modo (BOURDIEU, 2007).

UMA AFRICANIDADE E UMA INDINIANIDADE NA/PELA


INFÂNCIA

A etnografia sobre/com as crianças também me possibilitou identificar


um conjunto de semióforos (CHAUÍ, 2004) por elas mobilizado nas suas
relações sociais, que guardava a riqueza de uma africanidade e de uma
indinianidade pautadas no pretérito e recriadas no presente. Contudo, não
estavam relacionados entre os ícones acionados pela estratégia de resgate
da política pública”. É presumível que o discurso do resgate promovido

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76 Maria do Socorro Rayol Amoras

pela ação governamental também impregnava sentimentos de perda com


sentido catastrófico entre os abacataenses.
Na medida em que havia uma maior aproximação com as crianças
no campo, participando de suas brincadeiras e conversas, foi possível
questionar a ideia da perda. As crianças abacataenses intercambiavam
entre si aspectos particulares da vivência diária das comunidades, como os
códigos da “dádiva” (dar-receber-retribuir), balizadores de suas relações
sociais no tempo (MAUSS, 2003). Um campo simbólico se elevava quando
buscavam nos contos, nas lendas, nos mitos, nas crenças, nas crenças
religiosas, nas brincadeiras, explicações para seus atos (“fazer” e “não
fazer”); mobilizavam conhecimentos ao integrarem natureza e cultura.
Assim, reelaboravam, atualizavam os constructos da ciência do concreto
(LÉVI-STRAUSS, 2011); mantinham uma corporeidade muito expressiva,
onde se fundiam performance, estética, musicalidade e oralidade.
Como disse antes, toda criança de cinco anos em diante sabia
dizer o que é uma roça de mandioca, de quê e onde se faz a farinha.
Demonstra admiração pelas atividades de pesca, caça, criação de animais,
plantação e extrativismo. Várias delas me ensinaram tratamentos de saúde
com remédios tradicionais quando adoeci durante o trabalho de campo.
E quanto ao desinteresse pelo trabalho rural, conheci um bom número de
crianças que executava atividades de extrativismo espontaneamente, sem
qualquer imposição dos adultos. Esse modo de coleta de frutos e sementes
é o trabalho que as crianças diziam escolher por “gosto”, assim como, o de
criação de animais. Segundo elas, o gostar desses trabalhos se justificava
pela possibilidade da brincadeira, pois o subir em árvores e o cuidar dos
animais estão entre as suas experiências lúdicas preferidas.
Assim, acionam os conhecimentos tradicionais e mobilizam
uma rede se semióforos muito particulares de uma africanidade e de uma
indinianidade próprias dos encantados desta parte da região amazônica
(MAUÉS, 1990). Nos momentos de brincadeira, algumas crianças sempre
me assustavam dizendo que havia uma aranha nas minhas costas, e que
ela iria me levar para muito longe. Virava as costas e não via a tal aranha.
Perguntava a elas onde estava a aranha e sempre aproveitavam para fazer
disso uma brincadeira: “ih... já foi! Foi prá li! Sumiu! Tá na tua costa de

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Temos um jeito de se viver aqui:... 77

novo!”. E caiam aos risos das rodopiadas que eu dava com o corpo e
diziam: “tu nunca vai vê ela, porque ela fica invisível rápido”. Em Nina
Rodrigues (1932, p. 277) encontrei A Historia da Aranha (Ananse) entre os
contos africanos, assim como, no estudo de Zélia Amador de Deus, Os
Herdeiros de Ananse (2008). Nesses contos, a aranha desenvolve sempre
grande astúcia e habilidade e figura falando pelo nariz com os deuses
inferiores.
Por horas as crianças contavam outras histórias dos encantados
dos abacataenses, provocadores de muito medo e nem um pouco de riso,
como: o “Arrasta a Corrente”, um homem que aparece arrastando uma
corrente pelos pés no igarapé das pedras; a “Matintaperera” e o “Curupira”,
respectivamente, uma mulher velha e um homem de pés virados para trás,
que ficam no mato, na direção do rio; o “Ronca-ronca”, um homem que
foi comido por um porco e agora aparece roncando dentro do mato; a
“Mãe-d’água”, uma mulher que “flecha” as pessoas dentro do rio e o
“Homem que se virava ora num cachorro, ora num lobo e, outras vezes,
num porco”, já falecido, que não aparece mais, mas as crianças guardam na
memória os temores provocados por aquela figura assustadora.
As crianças também não estão alheias às lutas políticas da
comunidade. Durante as reuniões da Associação e da Escola com as
famílias, sempre estão por perto, brincando e escutando as conversas e
as discussões dos adultos. Dona Violeta sempre conta repetidas vezes
aos netos a história dos embates que travaram para garantir a terra onde
moram hoje, como pude presenciar em várias ocasiões. Um dia encontrei
as crianças, netos de dona Violeta, dentro da mata, sem o conhecimento
dos adultos, carregando toras de madeira para impedir a ação de um
homem que estava ameaçando invadir o terreno da avó. Percebi que, para
elas, as crianças, existe um “limite de respeito” que deve ser preservado
para que território seja protegido.
Penso que, se a luta pelo território também é interpretada e
dinamizada pelas crianças assim como elementos da cultura africana e
indígena, é porque o que os unia no passado subsiste em suas relações
cotidianas. Então, como enxergar a “perda”? Compreendi essa geração
mais nova, que se apresentava (aos meus olhos), como agente da história,
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produtora e reprodutora de uma cultura tecida nas tramas de uma


diáspora singular nesse lugar, inventora e reinventadora da tradição, não
acionava elementos de uma africanidade e de uma indinianidade parados
no tempo, essencializados (CERTEAU, 2012). Isto significa dizer que os
semióforos que as crianças abacataenses compartilham, como repertórios da
cultura popular afroindígena-brasileira, já foram excluídos (pelo menos,
consideradamente) há tempos da corrente cultural dominante.
Por isso, a pedagogia do resgate tende a querer preencher o
“vazio”. Mas, como as crianças bem sinalizaram, a experiência da vida
negra só tem sentido dentro da representação (HALL, 2003). O jogo
identitário, portanto, acionado pelos abacataenses, envolvendo índios e
negros, pode ser compreendido em uma perspectiva relacional conforme
reflete Arruti (2011, p. 332), quando discute que esse jogo não pode ser
analisado como “simples e direta manifestação de ancestralidade, mas
resultado de um trabalho dialógico entre a memória social, a análise de
contexto e a capacidade de instituir-se como ator coletivo, tendo em vista
o enfrentamento das estruturas de poder”.
Em acordo com Leite (1999, p. 136), minhas reflexões também
apontam que, em Abacatal, a ideia de cidadania está pautada na
reivindicação de ações que contemplem “o modo de vida coletivo,
construído na permanência por um tempo significativo no mesmo lugar.
É a participação de cada um na vida coletiva que dá a esse suposto sujeito
a possibilidade de ser parte do referido direito”. Logo, a terra como lugar
de trabalho e moradia, ou seja, lugar onde a vida faz sentido, fundamenta-
se em uma lógica relacional e não apenas como lugar de fixação. O modo,
portanto, como querem continuar vivendo expressa uma africanidade e
uma indinianidade não reconhecidas, invisibilizadas.
Tais observações, possibilitaram fazer a crítica ao conceito de cultura,
a partir dos constructos teóricos formulados por Sahlins (1997, p. 43),
aquele revestido atualmente de defesa às diferenças, porém, ainda pensado
sob o tom ideológico do colonialismo: a cultura concebida como “um
modo intelectual de controle que teria como efeito ‘encarcerar’ os povos
periféricos em seus espaços de sujeição, separando-os permanentemente
da metrópole ocidental progressista”. Isto é, de uma civilidade que não

Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018


Temos um jeito de se viver aqui:... 79

lhes diz respeito. Neste sentido, é possível falar de um modo mais geral,
em acordo com este autor: “a ideia antropológica de cultura, por conspirar
para a estabilização da diferença, legitimaria as múltiplas desigualdades
— inclusive o racismo — inerentes ao funcionamento do capitalismo
ocidental”.
A maneira como as crianças abacataenses demonstraram que
querem continuar vivendo, muito explica que ser quilombola, carambola,
remanescente de quilombo, afrodescendente, trabalhador rural,
população tradicional não é nenhuma camisa de força. Ao contrário, são
possibilidades de se construir processos de reorganização das referências
e das perspectivas identitárias que manipulam por meio de uma moral
do reconhecimento, uma identificação. É, portanto, um modo constituído
na relação entre moral e ética, que pressupõe “exercício de liberdade
nas ações de incorporações de identidades” e capacidade de escolha de
identidades de conformidade com diferentes interlocutores em diversos
espaços de interação (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002, p. 22-55), nesse
movimento histórico entre “os de dentro” e “os de fora”.
Assim entendido, a análise buscou consonância com o conceito
contemporâneo de quilombo, que tem como premissa a ideia de que esses
grupos – livres – tomam o território como suporte de sua autodeclaração
sociocultural. A diversidade cultural, neste caso, é vista como subsidiária
dos direitos territoriais, que são direitos a viver de um determinado modo
(ARRUTI, 2008). Nesse sentido, presumo que as crianças abacataenses
apontam caminhos para “desfrigorificar” categorias e compreensões
naturalizadas acerca desses povos (ALMEIDA, 2008).
Nesse sentido, a defesa de um “jeito de se viver” feita pelas crianças
se contrapõe às ideias e às imagens construídas ao longo da nossa
história para pensar e falar sobre esses grupos. As reflexões de Sahlins
situam-se na direção de um esclarecimento de que “culturas diferentes
implicam historicidades diferentes”. Essa assertiva, pensada pela agência
dessas crianças, possibilita a análise que liberta os quilombolas das ideias
homogeneizadoras produzidas muitas das vezes pela historiografia,
as quais são amplamente veiculadas na nossa sociedade. São ideias que
intercambiam preceitos legais que tentam uniformizar e cristalizar as
Temáticas, Campinas, 26, (51): 53-86, fev./jun. 2018
80 Maria do Socorro Rayol Amoras

histórias de constituição dos quilombos pelos exorados de uma origem


comum na formação do sistema escravocrata, os quais instituíram
parâmetros de um diminuto sentido de remanescentes para negar direitos.
Almeida (2002, p. 49) delineia essas elaborações a partir das
representações jurídicas de autores clássicos e os mais recentes que
trabalham com o conceito jurídico-formal de quilombo. Para o autor, é
“uma representação jurídica que sempre se mostrou inclinada a interpretar
o quilombo como algo que estava fora, isolado, para além da civilização e
da cultura, confinado numa suposta autossuficiência e negando a disciplina
do trabalho”. Nesse sentido, a história construída pelos descendentes
do conde Coma Mello e da escrava Olímpia e o modo como as crianças
atualizam essa história, são testemunhos do modo como constroem o
sentido de remanescentes no território tradicionalmente ocupado.
É nessa relação, sem as expectativas do mercado e sem a compreensão
necessária de determinados setores acerca das novas dinâmicas da
ruralidade (CARNEIRO, 2012), que esses agentes intercambiam formas
de saber e de ser e elaboram arranjos e rearranjos que permitem “entender
suas lógicas, suas estratégias e como eles estão se colocando hoje ou como
estão se autodefinindo e desenvolvendo suas práticas de interlocução”, em
meio a um processo de territorialização. Cabe aqui, junto com Carneiro
(2012, p. 254), compreender Abacatal como uma “localidade”, que tem
uma essência física e espacial construída socialmente e que está em
contínua reformulação, a qual só pode ser entendida de maneira interativa,
ou seja, “no contexto das relações sociais engendradas na relação entre o
local e o global, entre o ‘de dentro’ e o ‘de fora’”.
Em resumo, foi possível inferir que o fato de ter encontrado muitas
crianças de pele, cabelos e olhos bem mais claros do que da geração mais
velha, seja é resultado das relações que sempre se permitiram com “os
de fora”. O termo quilombola foi apropriado pelos abacataenses como
um modo de afirmar a luta pelo território aos “de fora”, e, também,
para convencer os “de dentro”, aqueles menos engajados, a serem mais
atuantes politicamente. Assim o tomaram para afirmar a existência de um
“lugar de pretos”. Para as crianças, o termo quilombola também serve
para identificar as pessoas de pele escura. Um entendimento também

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Temos um jeito de se viver aqui:... 81

partilhado entre adultos para identificar aqueles que mais se aproximam


das famílias originárias do lugar.
Não é, contudo, a pele de cor mais escura que afirma a luta por
uma ascendência africana, mas a forma como vêm se organizando ao
longo de tempos pela experiência e conhecimentos que acumulam por
meio de um certo “jeito de se viver”, como aquele também descrito no
Projeto da Daniele. Sendo um modo de vida negociado, no passado, com
índios, negros e brancos. A defesa, portanto, de um “jeito de se viver” das
crianças abacataenses, é compreendida, neste trabalho, como sendo uma
ação de sujeitos autônomos frente às regras de pertença que engendram a
luta pelo território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vale ressaltar que, enquanto campo do saber, o campo de estudos


da antropologia avançou muito nas últimas décadas, mas ainda tem
muito a dizer acerca das crianças de contextos ruralizados, para que
representações estereotipadas não continuem a distorcer olhares e impedir
que suas esperanças e disposições para a construção da vida nesses lugares
sejam consideradas. Nesse sentido, pretende se somar às investidas
interdisciplinares para situar as crianças como interlocutoras de pesquisas.
Sendo um posicionamento epistemológico, no sentido de compreender
como elas entendem a dinamicidade do mundo social que as rodeia e
moldam às suas circunstâncias de vida, considerando a capacidade e a
habilidade que possuem para criar e transformar relações.
A defesa desse posicionamento político metodológico nesta
pesquisa trouxe a compreensão de que as crianças das comunidades negras
da Amazônia muito têm a dizer sobre a cosmologia e a identificação
étnico-racial desses povos e o direito a permanecer em seus territórios
com dignidade. Contribuem, assim, com as ciências sociais e humanas,
com o poder público e com o movimento social, trazendo a compreensão
sobre os desdobramentos do projeto de colonização que age no tempo
pela colonialidade do poder, do saber e do ser nesta região e na América
Latina como um todo (QUIJANO,2005).

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82 Maria do Socorro Rayol Amoras

A autoidentificação quilombola pelas crianças abacataenses convida


para uma reflexão mais ampla das lutas dos povos subalternizados nesta
América de tantas latinidades. Cabe também investigar: Como as demandas
das crianças quilombolas influenciam suas mães à luta pelo território e
como essas mulheres têm se organizado politicamente? E, lembrando
de Rosa que “aperreou” tanto seu pai para voltar a Abacatal, fazendo a
defesa de um “jeito de se viver”, cabe ta mbém perguntar: sob que lógicas
se formaram e se formam as cidades da América Latina e o que têm
promovido na vida dos povos originários e tradicionais e, particularmente,
na vida de suas crianças?

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Texto recebido em 20/12/2017 e aprovado em 03/04/2018.

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OS PEQUENOS SUJEITOS DA LUTA PELA
TERRA: EDUCAÇÃO INFANTIL POPULAR
NA CIRANDA INFANTIL DO MST

Fábio Accardo de Freitas1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a prática educativa com as crianças na
Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira do Movimento de Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) a partir da Sociologia da Infância e da Educação Popular. As
crianças são o ponto de partida da prática educativa, e da análise realizada, uma vez que são
reconhecidas como sujeitos da história, atores no mundo e protagonistas da luta pela terra.
A análise partiu da minha participação como educador-pesquisador na Ciranda Infantil
do pré-assentamento e dos relatos de atividades do coletivo de extensão Universidade
Popular, utilizados como fonte da pesquisa. Os relatos apresentam o protagonismo das
crianças como sujeitos no mundo e produtoras de culturas infantis (FERNANDES, 2004;
CORSARO, 2011). Como espaço de educação das crianças Sem Terrinhas, a Ciranda
Infantil insere-se na trajetória da Educação Popular, coloca o movimento social como
espaço e princípio educativo de formação dos sujeitos, garante espaço de encontro do
coletivo infantil e reconhece as crianças enquanto pequenos sujeitos da luta pela terra,
elementos que contribuem para caracterizá-la como uma experiência de Educação Infantil
Popular.
PALAVRAS-CHAVE: Criança; Infância; Culturas Infantis; Sociologia da Infância;
Educação Infantil Popular; Movimento Social; Ciranda Infantil.

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de Conhecimento e
Inclusão Social, na Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: fabioaccardo@gmail.com
88 Fábio Accardo de Freitas

THE SMALL SUBJECTS OF THE FIGHT


FOR THE EARTH: POPULAR CHILDREN
EDUCATION IN THE CHILDREN’S SURGERY
OF THE MST

ABSTRACT: This article aims to analyze the educational practice with children in the
Ciranda Infantil of the pre-settlement Elizabeth Teixeira of the Movement of Landless
Rural Workers (MST) from the Sociology of Childhood and Popular Education. The
children are the basis of educational practice, and in the analysis performed, once they
are recognized as subjects of history, actors in the world and protagonists in the struggle
for land. The analysis was based on my participation as an educator-researcher in the
Ciranda Infantil of the pre-settlement and in the reports of activities of the Popular
University extension group, that was used as the research source. The reports present
the protagonism of children as subjects in the world and producers of children’s cultures
(FERNANDES, 2004; CORSARO, 2011). As a educacional space of the children without
landmarkers, the Ciranda Infantil inserts itself into the Popular Education trajectory,
set the social movement as a space and educational principle for the formation of the
subjects, guarantees the space for the children’s collective meeting and recognizes children
as small subjects of the struggle for land, elements that contribute to characterize it as an
experience of Popular Children’s Education.
KEYWORDS: Children, Childhood, Peers Cultures, Sociology of Childhood, Popular
Early Childhood Education, Social Movement, Ciranda Infantil.

INTRODUÇÃO

As reflexões presentes neste artigo iniciam antes da própria escrita


deste texto. Tem início com o trabalho sistemático com as crianças Sem
Terrinha2, de onde surgiram as questões que permeiam o artigo, e no qual
o autor atuou como educador infantil. É assim, antes, uma reflexão a partir
da prática educativa com as crianças, como práxis, na qual prática e teoria
vão se modificando constantemente.
2
Sem Terrinha é a identidade coletiva das crianças que participam do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. Surgiu por iniciativa das crianças que participaram do Primeiro
Encontro Estadual das Crianças Sem Terra do Estado de São Paulo, em 1996 (RAMOS, 1999).

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 89

Como educador infantil desde o ano de 2009 na Ciranda Infantil


do pré-assentamento Elizabeth Teixeira pertencente ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), me propus a um esforço de
reflexão sobre a prática coletiva de educação que o Coletivo Universidade
Popular (UP) realizava junto ao pré-assentamento, na tentativa de
responder alguns questionamentos suscitados pela experiência com os
pequenos sujeitos daquele espaço educativo.
Esse novo lugar de educador-pesquisador, construído a partir da
minha inserção no mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp3 e,
ao mesmo tempo, no curso de especialização em Educação do Campo e
Agroecologia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(USP) em parceria do MST, me recolocou questionamentos que surgiram
nesses quase oito anos de atuação ali no pré-assentamento: que tipo de
educação infantil se faz necessário na realidade da luta pela terra? Que
pedagogia o MST tem pensado e praticado nos espaços educativos para
as crianças Sem Terrinha? De que maneira faz sentido, hoje, a Educação
Popular como prática pedagógica da educação infantil?
E, do mesmo modo, ao olhar para a infância Sem Terra e o lugar
que ocupa a Ciranda Infantil dentro do MST, outros questionamentos
foram levantados sobre as crianças que participam desse espaço: que
infância vivem e compartilham? Como a estrutura da sociedade brasileira
configura a experiência de infância das crianças Sem Terrinhas? De que
maneira ela nos recoloca a necessidade de modificar nosso olhar para a
infância? Que culturas infantis produzem e compartilham? Este artigo não
tem pretensão de conseguir dar respostas a todas estas perguntas, mas elas
foram essenciais para estabelecer o foco e caminhos da pesquisa realizada.

3
Mestrado realizado junto ao grupo de pesquisa GEPEDISC – Culturas Infantis que vem
produzindo pesquisas sobre experiências de educação infantil com as classes populares,
evidenciando a produção das culturas infantis e as experiências de infância das crianças que são
atravessadas pelas questões de raça, etnia, gênero e classe social.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


90 Fábio Accardo de Freitas

PERCORRENDO OS CAMINHOS DA PESQUISA

As crianças sempre foram as minhas interlocutoras da vida no


pré-assentamento Elizabeth Teixeira. Antes de vestir-me do papel de
pesquisador, eu sempre fui educador infantil ali. E, como educador, me
fiz pesquisador. Porque assim somos. Não há modo de ser educador sem
ser pesquisador, sem conhecer a realidade, sem estar no mundo disposto
a refletir sobre ele e ao mesmo tempo modificá-lo. Educação é antes de
tudo práxis, ação e reflexão, como processo coletivo. Eu e as crianças
fomos assim descobrindo o mundo. Na relação com elas fui apreendendo a
realidade em que viviam. E é dessa posição de educador-pesquisador que
brotam as palavras deste trabalho.
A pesquisa teve como objeto de análise a prática educativa da Ciranda
Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira4 localizado no município
de Limeira, estado de São Paulo. Hoje vivem no pré-assentamento cerca de
60 crianças filhos e filhas das 100 famílias que compõem a comunidade.5
A Ciranda Infantil do pré-assentamento se constituiu como espaço
educativo e de encontro das crianças da comunidade. Ali as educadoras e
educadores do Coletivo Universidade Popular (UP)6 foram experienciando
com as crianças a construção dessa prática educativa coletiva. O UP, desde
que iniciara as atividades de educação junto ao MST, havia se dedicado à
leitura, formação e estudos coletivos sobre Educação Popular. Contudo, a
Educação Popular parecia não falar sobre as crianças e nos perguntávamos
o porquê desse silêncio.

4
O nome do pré-assentamento foi escolhido em homenagem a Elizabeth Teixeira (1925-),
mulher, militante e liderança da Liga Camponesa de Sapé, no estado da Paraíba.
5
Sobre o histórico da luta pela área e a constituição do pré-assentamento ver as dissertações de
Rodrigo Taufic (2014) e Gabriela Furlan Carcaioli (2014).
6
A Universidade Popular foi um coletivo de extensão da Unicamp que realizava trabalhados na
área da educação junto ao MST na região de Campinas, principalmente no pré-assentamento
Elizabeth Teixeira. Para o histórico do coletivo e das atividades realizadas, ver livro “Na
autonomia do povo, o poder popular: experiências com Educação Popular no acampamento
Elizabeth Teixeira”, de organização do Coletivo Universidade Popular e lançado em abril de
2015.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 91

Tem sido um esforço coletivo, teórico e prático, nesses últimos


dez anos, a tentativa de construir o espaço da Ciranda Infantil a partir
da proposta do MST, de maneira que se pudesse dialogar com as
concepções da Educação Popular. Como práxis, a prática e a teoria foram
se modificando, uma vez que a teoria não dava conta do trabalho com
as crianças, de entendê-las em sua complexidade. Da mesma maneira, a
prática evidenciava a necessidade de buscar outras teorias que pudessem
abarcar o silêncio que a Educação Popular deixava.
Durante a pesquisa, entre o mestrado e a especialização, pude me
dedicar a leituras que confirmaram o que a realidade me mostrava: as
crianças como sujeitos da sociedade. Diante disso, busquei dialogar as
teorias do campo da Sociologia da Infância, que colocam em evidência as
crianças como protagonistas no mundo, com as reflexões e experiências da
Educação Popular, que destacam o papel dos homens, mulheres e crianças
como sujeitos da práxis educativa e sujeitos da história.
O mestrado e a especialização possibilitaram adensar as reflexões
sobre a nossa prática de educação infantil. Analisei as condições materiais
concretas que possibilitaram a construção da experiência da Ciranda
Infantil no pré-assentamento, assim como refleti sobre o modo de
funcionamento da prática educativa ali realizada, evidenciando a maneira
como possibilitava às crianças serem sujeitos do seu processo de conhecer
e transformar o mundo.
A partir disso, pude situar a nossa prática de educação infantil
na história, como uma experiência de Educação Popular. Para isso foi
necessário dedicar-me a leituras que me ajudassem a visualizar a trajetória
histórica da Educação Popular brasileira, trazendo elementos para analisar
a experiência da Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira.
A trajetória traçada na dissertação partiu da escolha de olhar para a
experiência histórica da Educação Popular no Brasil considerando alguns
autores e autoras (BRANDÃO, 2002; FÁVERO, 1983; GHIRALDELLI,
1986; PALUDO, 2001) que demarcaram pelo menos três momentos
específicos dentro da história brasileira nos quais surgiram propostas

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


92 Fábio Accardo de Freitas

de educação a partir dos interesses das classes populares7: as propostas


alternativas de educação dos socialistas, anarquistas e comunistas na
Primeira República; os movimentos de cultura popular na década de 1960
e a proposta pedagógica de Paulo Freire como expressão dessa época; e a
educação dos movimentos sociais populares a partir dos anos 1980.
A atualidade da Educação Popular pode ser compreendida a
partir de dois elementos: a sua trajetória histórica como concepção de
educação vinculada à luta de classes ao lado dos interesses e projetos da
classe trabalhadora; e como proposta dentro de como tem se expressado
o antagonismo de classes no contexto atual da educação da sociedade
brasileira. Nesse sentido, a experiência da Pedagogia do Movimento,
que tomo como exemplo das propostas educativas pelos movimentos
sociais populares a partir dos anos 1980 até hoje, retomam a trajetória da
Educação Popular para pensar o contexto atual das mobilizações da luta
pela terra no Brasil.
Esse olhar panorâmico me ajudou a constatar que a preocupação
com as especificidades da educação das crianças não tivera centralidade
nos debates da Educação Popular, assim como apareceram esporádica
e marginalmente nas experiências abordadas. Ao ressaltar esse silêncio
da Educação Popular perante à educação infantil, busquei olhar para a
experiência concreta da Ciranda Infantil do pré-assentamento buscando
elementos que me ajudasse a analisá-la diante desse diálogo entre a
educação infantil e a Educação Popular.
Assim, este artigo parte das discussões realizadas em minha
dissertação de mestrado (FREITAS, 2015a) e trabalho de especialização
(FREITAS, 2015b) e tem como objetivo analisar a prática educativa com
as crianças na Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira a
fim de evidenciar elementos que nos ajudam a caracterizá-la como uma
experiência de Educação Infantil Popular. Dessa maneira, apresentamos
a Ciranda Infantil como espaço de encontro do coletivo infantil e como
7
Não me atentarei neste texto a explicar cada um dos momentos da história da Educação
Popular brasileira. Os autores e autora citados se dedicaram a esse trabalho, assim como na
minha dissertação de mestrado dedico um capítulo para análise dessas propostas educativas
tentando vinculá-las com a proposta da Ciranda Infantil do MST.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 93

espaço de produção de culturas infantis, que tem reconhecido as crianças


como sujeitos da história, produtoras de culturas infantis e protagonistas
na luta pela terra.

MOVIMENTO SOCIAL COMO PRINCÍPIO PEDAGÓGICO

A Pedagogia do Movimento, sistematizada por Roseli Caldart


(2012), coloca os movimentos sociais como espaço e princípio educativo
de formação dos sujeitos sociais coletivos, ou seja, os sujeitos que fazem
parte do Movimento Sem Terra, ao participarem de uma ocupação de
terra, ao formarem os acampamentos, resistirem na terra para serem
assentados, conquistarem a área ocupada, conquistarem escolas para os
assentamentos, etc, participam de processos socioculturais intensos que
marcam a trajetória desses sujeitos, e que são vistos, ao mesmo tempo,
como processos educativos.

A formação dos sem-terra, pois, não se dá pela assimilação de


discursos mas, fundamentalmente, pela vivência pessoal em
ações de luta, cuja força educativa costuma ser proporcional
ao grau de ruptura que estabelece com padrões anteriores de
existência social desses trabalhadores e dessas trabalhadoras
da terra, exatamente porque isso exige a elaboração de novas
sínteses culturais (CALDART, 2012, p. 166).

A experiência da luta social marca profundamente os sujeitos,


modificando seu jeito de ser, de se relacionar com as pessoas e de pensar
o mundo. Possibilita às mulheres, crianças e homens a produção de
utopias, de projetar futuros ao construir e recontar a história de uma nova
maneira. Contudo, a luta não se luta sozinha, luta-se em coletividade e ao
organizarem-se os sujeitos se educam e se transformam na coletividade em
movimento. As práticas sociais coletivas vão criando e recriando relações
sociais de nova ordem distintas daquelas anteriores da entrada dos sujeitos
para a dinâmica da luta pela terra.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


94 Fábio Accardo de Freitas

Essa experiência de participação em um movimento social


como o MST produz aprendizados coletivos que, aos poucos,
se conformam em cultura, naquele sentido de jeito de ser, de
hábitos, de postura, de convicções, de valores, de expressões,
de vida social produzida em movimento e que já extrapolam os
limites desse grupo social específico. (CALDART, 2012, p.
166)

Cultura é entendida aqui como produção material de existência,


como conjunto de práticas sociais e de experiências humanas que vão se
constituindo como um modo de vida em que os sujeitos produzem o seu
mundo e, ao produzi-lo, produzem a si mesmos. Ao produzirem a sua
existência material, ou seja, as condições necessárias para a sua reprodução,
produzem o mundo pelo seu trabalho, constituindo-o tanto materialmente
como simbolicamente.
Essa relação coloca para os sujeitos que as coisas no mundo não
nascem prontas, elas são construídas, produzidas, cultivadas. E é pelo
trabalho, como princípio ontológico, que crianças, mulheres e homens
trabalham a terra, produzem o mundo, transformam, assim, a realidade,
transformando também a história. Dessa maneira, compreendem que
cada ação, situação, luta, etc se insere dentro de um movimento complexo
entre passado, presente e futuro, e que os sujeitos, o Movimento e as lutas
fazem parte de uma história mais ampla.
Contudo, não podemos pensar que os sujeitos da luta pela terra são
somente os adultos. A luta pela terra é a vivência de uma luta em família,
em que as crianças estão incluídas e participam conjuntamente com mães
e pais dos processos de ocupação, acampamento, resistência e conquista
da terra. A luta vira cotidiano dessas famílias e também das crianças.

Neste sentido, a luta social na vida destas crianças passa


a fazer parte do seu cotidiano. É a materialidade e a
historicidade da luta da qual as crianças participam que
educa, é o próprio movimento da luta concreta, em suas
contradições, enfrentamentos, idas e vindas, conquistas e
derrotas. (ROSSETTO, 2009, p. 79)

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 95

Ao tomarmos as crianças como participantes desses processos de


luta, podemos pensar que infâncias as crianças Sem Terrinha experienciam
nos diversos acampamentos e assentamentos rurais por todo o Brasil,
analisando que características marcam a sua experiência de infância.
Para o sociólogo da infância Jens Qvortrup (2011) é necessário
observar a relação entre a infância e as forças estruturais da sociedade, uma
vez que a infância como categoria estrutural influencia e é influenciada por
diversos fatores e categorias sociais. A economia, a política, as categorias
como classe social, gênero, etnia, se relacionam com a categoria geracional
da infância e essa relação configura as experiências de infância vividas
pelas crianças em diversos lugares da sociedade.
Isso nos ajuda a pensar a infância Sem Terrinha em termos
estruturais sendo determinada, ademais de outros fatores, pela posição
periférica da economia brasileira no capitalismo mundial, que configura
a questão agrária brasileira e o modo pelo qual as populações do campo
vivem. Ao mesmo tempo que essa experiência de infância é configurada
pela vivência dos processos de luta que participam fazendo parte de um
movimento social como o MST.
As crianças do pré-assentamento Elizabeth Teixeira vivenciaram
todo o processo de ocupação e resistência da área que marcam a experiência
de infância que carregam. As crianças expressam sua experiência de
infância do campo e sua cultura nas atividades da Ciranda Infantil. Como
práticas culturais cotidianas, as crianças transformam a sua realidade em
brincadeiras.

(…) Chegou o Cabecinha8 com um helicóptero de brinquedo


preso em uma vara de pescar. Pronto, conversamos sobre o
helicóptero, se eles já tinham visto e todos começaram a falar
sobre o despejo, sobre o medo, que eles se machucaram,
as crianças no barracão e logo começaram a brincar com
8
Os nomes das educadoras e educadores, adultos e das crianças em todos os relatos são
fictícios. Os nomes das crianças são nomes escolhidos por elas de como gostariam de ser
reconhecidas na pesquisa. Inventei nomes para aquelas crianças que já não vivem mais na
comunidade. Educadoras, educadores, assentadas e assentados também escolheram os nomes
fictícios para os relatos.

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96 Fábio Accardo de Freitas

o helicóptero de brinquedo. Um segurava e o fazia voar,


enquanto todos os outros tentavam escapar. Não podíamos
encostar no brinquedo pois sairíamos da brincadeira.
Quando as outras crianças chegaram, a brincadeira
continuou e cresceu. Quem era atingido caía no chão e teria
que ser resgatados pelos outros. A pessoa era carregada
e levada para o “hospital”, onde fazíamos massagem
cardíaca e cocegas. (Relato de atividade da Ciranda Infantil,
30/07/2011)

O despejo é um fato marcante na história de qualquer acampamento


no processo de luta pela terra. As assentadas e assentados do pré-
assentamento Elizabeth Teixeira lembram-se e contam as cenas que
vivenciaram naquele que foi considerado como um dos despejos mais
violentos do estado de São Paulo.
As crianças também contam as lembranças que ficaram marcadas
na memória: para segurança delas, no dia marcado para a reintegração
de posse, as crianças foram colocadas em um barracão coletivo distante
da área de confronto com a polícia, contudo, policiais e o helicóptero da
polícia atacaram aquele barracão que começou a pegar fogo e as famílias
tiveram que socorrer as crianças.

Meu irmão estava dentro do carrinho. Aí, minha mãe me


chamou lá em cima, aí quase acertou uma bomba no carrinho
do meu irmão. Ainda bem que minha mãe tirou meu irmão
porque até jogou o carrinho do meu irmão. (Clara, 12 anos)

A bomba caiu debaixo do carrinho da mãe dela. O padrasto


dela foi lá, pegou o bebe e o carrinho voou pra cima.
(Manoel, 12 anos)9

9
As falas de Clara e Manoel foram retiradas do curta-metragem Entre Terras e Céus, que
acompanhou a história do pré-assentamento Elizabeth Teixeira a partir dos relatos das próprias
acampadas e acampados. Fizeram parte da produção do vídeo Raquel Minako e Andréa Bertelli,
que na época eram estudantes de pedagogia e ciências sociais da Unicamp e educadoras infantis
na Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira. Acessar ao vídeo em: https://
www.youtube.com/watch?v=rQ8uAXV7U3o

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 97

Não gosto nem de ouvir falar desse assunto. Não consigo.


Só de pensar meu corpo já treme todo. (Pedro, 9 anos)10

Esses relatos, trazidos tanto nas brincadeiras na Ciranda Infantil


como nas falas da memória do despejo, mostram que as experiências pelas
quais passaram as crianças ficaram marcadas na sua história e na leitura do
mundo que elas fazem.
A Ciranda Infantil é esse espaço das crianças serem sujeitos do pré-
assentamento. Como espaço educativo para as crianças Sem Terrinhas,
cria-se um lugar de encontro do coletivo infantil dos acampamentos e
assentamentos para as crianças poderem se reconhecer entre elas nas
experiências que compartilham, de criarem identidade com a luta da qual
fazem parte e onde elas tem a liberdade para vivenciar essa etapa da vida
como crianças, brincando e expressando seu mundo através das culturas
infantis.
Nos momentos educativos da Ciranda Infantil, são as crianças
que nos revelam o cotidiano do que acontece no pré-assentamento.
As educadoras e educadores do coletivo Universidade Popular foram
aprendendo a usar esses elementos trazidos pelas crianças nas falas e
brincadeiras como temas para as atividades na Ciranda Infantil.
Entendemos que as crianças são as nossas interlocutoras com a
vida do assentamento e as informantes sobre os acontecimentos de lá.
Elas trazem essa leitura do mundo delas, da realidade imediata, vivenciada,
cheia de elementos que se pode utilizar nas atividades e brincadeiras. As
crianças foram se tornando, para nós, os sujeitos daquele pré-assentamento,
interpretando à sua maneira a realidade em que vivem.
Além disso, a Ciranda Infantil é um espaço de auto-organização
das crianças, em que podem ao seu modo vivenciar momentos coletivos
de decisão e organização das atividades, do espaço, do café da manhã,
etc. As Sem Terrinhas do pré-assentamento Elizabeth Teixeira por muitas
vezes utilizaram o momento da Ciranda para fazerem as suas assembleias

10
Esse depoimento de Pedro foi dado a mim em uma das atividades da Ciranda Infantil no
final do ano de 2014.

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98 Fábio Accardo de Freitas

infantis, debatendo as atividades que gostariam de fazer, como seria o


cronograma de atividades do dia, etc.
Numa dessas assembleias decidiram realizar uma marcha das crianças
em solidariedade à possibilidade de despejo de um assentamento vizinho.
Em uma das atividades da Ciranda Infantil sobre o tema das crianças
palestinas elas lembraram do despejo que vivenciaram e começaram a
comentar sobre a luta das famílias em resistência ao possível despejo do
assentamento Milton Santos, localizado no município de Americana - SP.
As crianças se sensibilizaram, demonstrando sentimento de
indignação e inconformidade com a situação das crianças palestinas e com
a possibilidade de despejo no assentamento Milton Santos.

(…) um dos primeiros valores que se cultiva na situação


de acampamento é o da solidariedade, exatamente o valor
que fundamenta a ética comunitária. Solidarizar-se com o
outro não é, nessa circunstância, uma intenção, mas uma
necessidade prática: (…) e o principal argumento da necessidade
talvez seja o de que a vitória virá para todos, ou não virá
para ninguém. Ou seja, a condição gera a necessidade de
aprender a ser solidário e a olhar para a realidade desde a
ótica do coletivo e não de cada indivíduo ou cada família
isoladamente. (CALDART, 2012, p.182)

Lembrando da manifestação das crianças palestinas11, as crianças


do pré-assentamento propuseram construir uma manifestação em
solidariedade às crianças e famílias do Assentamento Milton Santos. A
partir das discussões entre as crianças decidiu-se como ato caminhar pelas
ruas do pré-assentamento com cartazes, cantando uma música e tocando
tambores. Planejaram toda a marcha e compuseram sozinhas a música/
palavra de ordem que iam gritar durante a marcha.

11
Manifestações das crianças palestinas soltando pipas, pedindo paz e o fim do massacre ao povo
palestino na faixa de Gaza, ver em: https://pimentacomlimao.wordpress.com/2010/08/01/
a-esperanca-colore-o-ceu-de-gaza/

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Os pequenos sujeitos da luta... 99

A-a-a, Milton Santos vai ganhar!


E-e-e-, família Abdalla vai perder!
A-a-a, essa luta vai vingar!
I-i-i, Milton Santos vem aí!!! (Gravação do autor)

As crianças Sem Terrinha queriam divulgar o ato delas para mais


pessoas se solidarizarem com a luta do Milton Santos. Assim, durante esse
processo registramos em vídeo algumas conversas com as crianças e partes
da marcha que fizemos. Como elas haviam planejado, posteriormente o
vídeo12 foi editado e divulgado na internet.

- Bruna, o que você está fazendo?


- Escrevendo “Milton Santos vai ganhar e família Abdala
vai perder”.
- E porque você está escrevendo isso?
- Para ajudar lá...
- Para ajudar lá onde? No Milton Santos?
- Aham!
- E o que está acontecendo lá no Milton Santos?
- Despejo
- Porque é o despejo?
- Por causa da família Abdalla
- E o que a família Abdalla tem a ver com o Milton Santos?
- É porque a família Abdalla não pagava impostos e o
governou pegou um pouco mais da terra que tinha que
pegar, da terra deles. Agora eles querem a terra tudo de
volta.
- E você acha que isso é certo?
- É tudo errado, por causa de que uma pessoa tem que ficar
com um bocado de terra e as outras tem que ficar sem nada.
- E daí que vocês vão fazer aqui hoje?
- Tipo um mutirão para ajudar lá.
- E o que você está fazendo agora?
- Fazendo cartaz pra gente andar.

12
O vídeo “Manifestação de apoio ao assentamento Milton Santos, Sem
Terrinhas do Elizabeth Teixeira” está disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=ciAZzr0DQvk&feature=youtu.be.

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100 Fábio Accardo de Freitas

- E aquelas latas que o pessoal trouxe?


- Para batucar…fazer batuque
(ACAMPAMENTO ELIZABETH TEIXEIRA, 2015)

Terminado o processo de confecção dos cartazes e latas para a


batucada, saímos andando pelas ruas de terra do assentamento carregando
as faixas com os dizeres: “Milton Santos vai ganhar”. Queriam chamar a
atenção das famílias assentadas do pré-assentamento Elizabeth Teixeira.

(…) mas na verdade são episódios como este que nos


permitem pensar em detalhes decisivos na conformação
de um jeito de ser humano, o ser humano que sabe contestar.
O sentimento de indignação contra as injustiças é condição
para a postura de contestação social. E para indignar-se é
preciso percebê-las como tal. Parafraseando Thompson:
que as crianças sem-terra sintam essas injustiças – e as sintam
apaixonadamente – é, em si, um fato suficientemente importante para
merecer nossa atenção. (CALDART, 2012, p. 343, grifos no
original)

As crianças, ao utilizarem o espaço da Ciranda Infantil para se


solidarizarem com outras crianças e famílias do assentamento vizinho,
tiveram liberdade de criar coletivamente, à sua maneira, como queriam
manifestar a injustiça que sentiam em relação àquela situação que elas
próprias também já haviam vivenciado. Conversando, brincando, sendo
crianças, organizaram política e esteticamente a marcha das crianças do
pré-assentamento Elizabeth Teixeira.
A vivência de novas relações e novos modos de organizar a vida
proporcionadas pela experiência que as crianças compartilham com pais e
mães dentro do Movimento Sem Terra, são por elas captadas e utilizados
ao seu modo, para seus interesses e como elas próprias conseguem se
organizar e compreender o mundo.
Essa parece ser a potencialidade de uma prática educativa com
as crianças inserida em um movimento social organizado, uma vez que
as atividades, aprendizados, brincadeiras, partem da realidade imediata

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 101

delas, onde as próprias crianças leem seu mundo e falam sobre ele,
reinventando-o e redescobrindo-o nas brincadeiras, numa tentativa de
reelaborar coletivamente as suas experiências de infância, criando uma
identidade coletiva com o processo de luta em que vivem e um respeito
pela história de resistência que constroem.
A Ciranda Infantil, ao estar vinculada ao cotidiano do pré-
assentamento, possibilita um espaço educativo como extensão da vida e,
por isso, preocupado com a liberdade das crianças de brincar, de produzir
culturas infantis no compartilhamento dessa cultura do cotidiano e
como experiência histórica que as constitui – como sujeitos da história,
protagonistas da luta pela terra e da transformação do mundo.

CIRANDA INFANTIL COMO ESPAÇO DE ENCONTRO DO


COLETIVO INFANTIL

Assim como ocorre no pré-assentamento Elizabeth Teixeira, na


trajetória histórica de constituição do Movimento, as crianças foram se
fazendo presentes, modificando o olhar do próprio MST em relação a elas
e ocupando seus lugares dentro do Movimento.
Nesse percurso passaram de testemunhas da luta, para crianças acampadas
ou crianças assentadas; e, por fim, ao mostrarem as suas necessidades e suas
demandas modificaram a percepção do Movimento e vêm conquistando
seu lugar como protagonistas e sujeitos da luta pela terra (CALDART, 2012).
Fora necessário muito choro, birra, gritos, brincadeiras e mobilizações
infantis, para que o MST as enxergassem como sujeitos e protagonistas
da luta pela terra.

Ao participar da luta pela terra junto com seus pais, as


crianças do MST passam a ser sujeitos construtores de um
processo transformador, a ter ideais, projetos de futuro,
perspectivas de vida, tendo como referência a coletividade.
A criança Sem Terra, no MST, passou a ser considerada
um ser social que integra a totalidade de um projeto em
construção. (ROSSETTO, 2009, p. 39)

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


102 Fábio Accardo de Freitas

Se as crianças conquistaram dentro do MST seu espaço, isso é fruto


do protagonismo das próprias crianças, junto a suas mães, pais e educadoras
e educadores. Nesses trinta e quatro anos de história do MST, pouco a pouco,
as crianças foram conquistando seu lugar a partir das suas necessidades,
reivindicações e sonhos. As escolas dos assentamentos, as escolas itinerantes e
as Cirandas Infantis são conquistas das próprias crianças, que fizeram suas vozes
valerem, fazendo o Movimento repensar quem eram essas crianças dentro da
própria organização.
As crianças sempre estiveram presentes na luta pela terra. A presença
delas nos acampamentos e assentamentos impõe ao Movimento que dê
respostas às necessidades dos sujeitos envolvidos. No caso das crianças,
o cuidado, alimentação e educação são necessidades básicas com as quais
tiveram que lidar desde o início do MST.

A luta pela terra é uma luta em família, e a presença das


crianças cria novas necessidades para a organização do
movimento. Assim, o espaço e a vivência no acampamento
passam, obrigatoriamente, a envolver não somente adultos,
mas, necessariamente, novos sujeitos: as crianças. Todo esse
processo vai materializando a preocupação do Movimento e
do Setor de Educação com esses novos sujeitos, que não são
passivos, muito pelo contrário, aprendem a mobilizar-se e a
indignar-se com o sofrimento e a luta de seus pais e passam,
também, a incorporá-la; certamente que não na mesma
dimensão que os adultos. (ALVES apud ROSSETTO, 2009,
p. 81)

Edna Rossetto (2009), em sua dissertação de mestrado, conta a


trajetória da preocupação do MST pelas crianças. A autora nos mostra
como, no processo de construção do próprio Movimento, vai se gestando
a proposta de educação do MST que inclui também uma proposta de
educação para as crianças.

A educação entrou na agenda do Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela infância. Antes

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 103

mesmo da sua fundação, ocorrida em 1984, as famílias Sem


Terra, acampadas na Encruzilhada Natalino, Rio Grande do
Sul (1981), perceberam a educação da infância como uma
questão, um desafio. (KOLLING, VARGAS e CALDART,
2013, p. 500)

Isabela Camini (2013) destaca que as primeiras experiências de


espaço de educação infantil no MST foram as experiências de creche
organizadas no estado do Ceará no início da luta pela terra naquela região.
Somada a essas primeiras experiências, Rossetto trabalha com a hipótese
de que a criação do espaço educativo da Ciranda Infantil passa também
pela participação das mulheres nas instâncias do MST. Destaca que, a partir
da participação feminina nos processos produtivos nas Cooperativas de
Produção Agropecuárias (CPAs) evidencia-se a necessidade de um espaço
para que as crianças pudessem ficar enquanto as mulheres trabalhavam.

Esta experiência leva o Movimento a discutir a participação


da mulher no trabalho e na organização. Assim, as
mulheres Sem Terra começam a se organizar e discutir a
sua participação na luta pela terra no MST (...) podemos
ressaltar que ela possibilitou às mulheres e crianças saírem
do seu espaço privado, ou seja, sair de casa, e conquistar seu
espaço público no MST. (ROSSETTO, 2009, p. 88)

A condição da criança como sujeito vai se conformando junto com


conquistas das mulheres como sujeito do Movimento. A participação
das mulheres nos processos produtivos, nas outras instâncias e espaços
internos do Movimento e em todo o processo da luta pela terra, levou o
Movimento a pensar um espaço educativo para as crianças.

Em meio a todo esse processo, emergem as crianças sem-


terra, enquanto sujeitos que constroem sua participação
histórica na luta pela terra e que desenvolvem e assumem
o sentido de pertença a esta luta, enquanto crianças
do campo. Isto veio a revelar que as Cirandas Infantis,

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enquanto experiências de educação não formal apresentam


elementos significativos, da realidade do campo, que podem
contribuir a se pensar questões como: a des-re-construção
da noção de criança do campo; a relação entre educação,
política e construção de sujeitos históricos; políticas
públicas de Educação Infantil do Campo numa perspectiva
emancipatória. (ROSSETTO, 2009, p. 181)

Se no início a Ciranda Infantil era vista como um espaço para cuidar


dos filhos e filhas das militantes, uma vez que o cuidado com as crianças é
um trabalho socialmente atribuído às mulheres, hoje é um espaço pensado
para o coletivo de crianças do MST e para a participação das crianças
na luta pela terra, a partir da realidade que vivenciam no cotidiano do
movimento social.
Diante disso, faz sentido pensar a inserção das crianças na dinâmica do
MST, importando “compreender como uma criança constrói sua identidade
participando de uma coletividade em movimento, e ajudando a produzir novas relações
sociais e novas formas de conceber a vida no campo, certamente trará novos
elementos para discutir a infância e seus espaços de educação” (CALDART,
2012, p. 312, grifo no original).
A Ciranda Infantil se conformou como esse espaço para as crianças,
onde elas possam se reunir, estar entre elas, correndo, pintando, chorando,
gritando, pulando, brincando. Lugar, espaço e tempo para que as crianças
possam se reconhecer como sujeitos e protagonistas da mesma luta que
partilham, reelaborando as suas experiências e entendimentos do mundo
coletivamente, e vivenciado novas relações sociais e formas de organizar a
vida em sociedade. Nesse sentido, o MST define a Ciranda Infantil como:

Um espaço educativo organizado, com objetivo de trabalhar


as várias dimensões de ser criança Sem Terrinha, como sujeito
de direitos, com valores, imaginação, fantasia, vinculando as
vivências do cotidiano, as relações de gênero, a cooperação,
a criticidade, e a autonomia (...). São momentos e espaços
educativos intencionalmente planejados, nos quais as
crianças receberão atenção especial, cuidado e aprenderão,

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Os pequenos sujeitos da luta... 105

em movimento, a ocupar o seu lugar na organização de que


fazem parte. É muito mais que espaços físicos, são espaços
de trocas, aprendizados e vivências de novas relações. (MST,
2004, p.25)

Assim, os movimentos de luta pela terra, e nesse caso o MST, ao


enfrentar um contexto mais amplo no qual se insere a questão agrária
brasileira, abrem a possibilidade para pensar um novo tipo de infância,
no qual há a modificação do olhar sobre as crianças e a criação de novos
espaços de esperança para a vivência da infância do campo.
Esse é o caso do pré-assentamento Elizabeth Teixeira, onde,
mesmo com as precárias condições materiais do pré-assentamento e das
famílias e a incerteza de continuarem na terra ocupada, a Ciranda Infantil
foi se tornando um dos poucos espaços de encontro do coletivo infantil
do assentamento, garantindo que as crianças possam vivenciar a infância
com mais plenitude.
Espaço e tempo pensado intencionalmente para o encontro das
crianças do pré-assentamento, como lugar em que a maioria das crianças
podem se encontrar, brincar, compartilhar as novidades, conversar, brigar,
discutir, aprender, criar e se divertir.
O espaço da vida do pré-assentamento se confunde com o espaço
educativo da Ciranda Infantil. Esta simbiose entre educação e vida faz
com que a existência da Ciranda Infantil no pré-assentamento possibilite
que as crianças possam reelaborar as suas experiências de ser crianças no
assentamento, dentro de uma história de luta compartilhada e das condições
concretas vividas ali. Espaço onde as experiências individuais vão se
tornando coletivas a medida em que as crianças vão compreendendo seu
lugar no mundo e sua condição de classe e de pertença a um movimento
social organizado que luta por transformações sociais.
Observei durante a pesquisa os momentos coletivos das atividades
da Ciranda Infantil em que as crianças constroem relação entre elas e
com os adultos educadoras e educadores. Momentos em que eu, como
educador e pesquisador, pude durante quase oito anos conviver com
as crianças, acompanhar seu crescimento e compartilhar com elas uma
vivência coletiva.
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106 Fábio Accardo de Freitas

Como espaço de encontro do coletivo infantil do pré-assentamento,


a Ciranda Infantil favorece que as crianças criem e partilhem suas infâncias
e as culturas infantis produzidas. Como espaço de educação, toma as
crianças como centro do processo educativo, partindo do mundo delas e
as considerando sujeitos, capazes de fazer a leitura do seu mundo, pensar
e falar sobre ele.
Na construção cotidiana da relação entre crianças e educadoras e
educadores na Ciranda Infantil, pude observar como as crianças colocam
em movimento a cultura que partilham com os adultos, interpretando-a a
partir dos seus interesses e necessidades. Entendi que o espaço da Ciranda
Infantil possibilita, assim, a produção de culturas infantis (FERNANDES,
2004) constituída por elementos culturais das próprias crianças produzidos
nas relações entre elas a partir dos jogos, brincadeiras e vivência coletiva,
onde “transformam as informações do mundo adulto a fim de responder
as preocupações de seu mundo” (CORSARO, 2011, p. 53).
Como exemplo de produção dessas culturas infantis entre as
crianças do pré-assentamento, trago o relato de um momento de uma
das atividades da Ciranda Infantil, em que as crianças recriaram no monte
de areia a kombi13 que era utilizada pelas educadoras e educadores como
transporte para buscá-las em suas casas para participarem das atividades
da Ciranda.

Quando chegamos perto da escolinha, o Pedro, o Guilherme


e o Eric notaram um monte de areia com um buraco no
meio e logo enxergaram um carro! Se meteram no buraco
e imaginaram dirigir. Os outros foram se interessando
e querendo participar, daí precisou fazer um banco de
passageiro. Mais gente chegava junto, fizeram mais bancos
com as tábuas que tinham por perto da escolinha. Pegaram
mais tecos de madeira para poder fazer o acelerador, o
freio e a embreagem do motorista. O Guilherme foi para
13
Em 2011 o coletivo do UP adquiriu uma kombi para realizar os transportes até o pré-
assentamento. Isso facilitava tanto o transporte dos estudantes até a área, como transporte de
alimentos produzidos pelas assentadas e assentados para a venda em pontos específicos (feiras
e ponto de venda na Unicamp), assim como das crianças para a Ciranda Infantil.

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Os pequenos sujeitos da luta... 107

um canto fazer bolinhos de areia, para matarmos a fome


no meio da viagem. O Brian fez uns bolinhos também. O
que era carro virou kombi. A kombi ficou linda, coube todo
mundo dentro dela e teve bolinho para todo mundo também!
(Relato de atividade da Ciranda Infantil, 09/03/2013)

As meninas e meninos do pré-assentamento vivenciaram os


processos de ocupação, despejo, reocupação e resistência na área. Foram
testemunhas e sujeitos desse processo. Suas leituras da realidade trazem
tanto essa trajetória vivida e ouvida, como as experiências cotidianas que
compõem a dinâmica do pré-assentamento.
As atividades educativas na Ciranda Infantil partem dessa leitura
do mundo das crianças sobre a realidade em que vivem, que se tornam
temáticas a serem trabalhadas pelas crianças, educadoras e educadores
na relação da educação com a vida, criando, assim, um espaço educativo
com ampla liberdade das crianças interpretarem e problematizarem suas
culturas infantis, dando sentido aos seus lugares no mundo.
Culturas infantis tratada no plural, pois a infância vivenciada pelas
crianças é marcada por suas identidades de gênero, etnia, classe, etc. Cada
grupo de criança vivencia de maneira específica a sua infância, configurada
por diversos fatores estruturais e conjunturais que, também, marcam as
culturas infantis por elas partilhadas.
A simples condição de existir um espaço autônomo em que as
regras, valores, métodos, formas, conteúdos, brincadeiras são decididas
pelos sujeitos que o constroem, mostra as possibilidades de construção de
novas relações educativas no interior da Ciranda Infantil. A partir disso, a
entendo como espaço de encontro do coletivo de crianças e como espaço
de produção de culturas infantis.

CRIANÇAS COMO PEQUENOS SUJEITOS

Na introdução deste artigo, pontuei a maneira pela qual a realidade


vivida nas práticas educativas com as crianças me suscitou algumas
perguntas que me levaram a buscar teorias que as pudessem responder. Esse
movimento de abstração da realidade imediata ajudou-me a complexificar
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
108 Fábio Accardo de Freitas

minha compreensão sobre as crianças e me auxiliou a repensar e modificar


o olhar e a prática educativa realizada com as crianças.
As crianças se mostraram muito mais complexas que as teorias do
desenvolvimento individual e psicológico as caracterizam. As crianças
concretas do pré-assentamento eram diferentes daquelas “abstratas”
dos livros. As próprias crianças modificaram o meu olhar de educador-
pesquisador e me fizeram repensá-las de outra maneira.
Busquei algumas leituras do campo da Sociologia da Infância para
compreender as crianças a partir de um ponto de vista modificado por elas
e que me deu suporte para afirmar aquilo que observava: as crianças como
sujeitos no mundo. As teorias desse campo de estudo abordam as crianças
nas suas relações sociais entre as crianças, em coletivo, com adultos e com
o mundo, ou seja, criticam o olhar para a criança individual e as focalizam
socialmente, como atores sociais produtores de culturas infantis.
É o substrato social, como afirma Marcel Mauss (2010), que
determina as crianças como elas vão ser, se organizar, se desenvolver. A
inversão dos binóculos, do individual para o social, uma das marcas do
campo da Sociologia da Infância, sugere que olhemos as crianças sem
individualizá-las, na tentativa de abarcar um campo maior para explicação
dos fenômenos da infância.
Enxergar as crianças como partícipes da sociedade e sujeitos no
mundo é o movimento que a Sociologia da Infância vem tratando de
configurar em suas análises no campo das ciências sociais, reconhecendo
a infância como grupo social:

formada por sujeitos ativos e competentes, com


características diferentes dos adultos. As crianças pertencem
a diferentes classes sociais, ao gênero masculino e feminino,
a um espaço geográfico onde residem, à cultura de origem
e a uma etnia, em outras palavras, são crianças concretas
e contextualizadas, são membros da sociedade; atuam nas
famílias, nas escolas, nas creches e em outros espaços,
fazem parte do mundo, o incorporam e, ao mesmo
tempo, o influenciam e criam significados a partir dele.
(NASCIMENTOS, 2011, p. 41)

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Os pequenos sujeitos da luta... 109

Na história, o “sentimento de infância”, segundo Ariès (1981),


nasce juntamente com a constituição do capitalismo e tem como centro
de interesse e preocupação a criança burguesa. Entretanto, na literatura
a criança será reconhecida como ator social integrante e partícipe da
sociedade em estudos mais recentes, quando se inicia a conformação do
campo Sociologia da Infância (SIROTA, 2001; MONTANDON, 2001;
PROUT, 2010; QUINTEIRO, 2002).
Ainda que em sua origem, o sentimento de infância diferencie as
crianças das classes burguesas e trabalhadoras, os estudos sociológicos
tendem as igualar na opressão que sofrem na relação com o adulto ou
com o mundo adulto: o adultocentrismo (ROSEMBERG, 1976) constitui
essa opressão do mundo adulto sobre as crianças em geral, de ambas as
classes. A racionalidade adultocêntrica se materializa nas relações sociais
entre adultos e crianças e identifica-se como uma concepção de mundo
centrada no adulto, que se desdobra na negação às crianças da condição de
sujeito do e no seu tempo na sociedade, de protagonistas do seu processo
de conhecimento no mundo e produtoras de culturas infantis.
Tornar visível essas contradições que conformam a racionalidade de
nossa sociedade abrem possibilidades para pensarmos o mundo de outra
maneira, a partir de outro ponto de vista, de uma outra e nova relação com
as crianças. As teorias da infância mostram para nós, adultos, que não é
a teoria que faz das crianças protagonistas no seu tempo, produtoras de
cultura, sujeitos do Movimento, mas, antes, as crianças já são tudo isso. E nós,
como educadoras e educadores, pesquisadoras e pesquisadores devemos
garantir que as crianças se expressem nas suas diversas linguagens, nos
seus desejos, nas suas artes, nos seus modos de ser e conhecer o mundo
brincando.
Ainda que podemos destacar um silêncio contextual da Educação
Popular diante da prática educativa com as crianças, é ela que tem tentado
construir o entendimento e a prática dos indivíduos como sujeitos no
mundo. A Educação Popular retoma a ideia da cultura como práxis e
enfatiza a dinâmica na qual os sujeitos ao agirem no mundo o transformam,
ao mesmo tempo que transformam a si próprios. Na relação dos homens,
mulheres e crianças com o mundo, através da práxis, se formam como
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
110 Fábio Accardo de Freitas

sujeitos que ao transformarem o mundo também se transforma a si


mesmos. Dessa maneira, a Educação Popular nos ajuda também a pensar
nas crianças como sujeitos, que vivenciam experiências de fazer a história
e produzir as culturas infantis a partir da sua racionalidade e maneiras de
seu no mundo.
Fui ao longo do trabalho educativo e de pesquisa com as crianças
modificando o meu olhar adultocêntrico entendendo-as como sujeitos da
história e produtoras de culturas infantis. Tenho tentado trabalhar, dessa
forma, o meu olhar “criançocêntrico” como par oposto-dialético do
adultocentrismo, ou seja, o esforço de enxergar a criança no seu tempo de
vida, levar em consideração as suas lógicas e racionalidades no mundo, as
suas diferentes linguagens (MALAGUZZI, 1999, p.1), especificidades, etc.
A prática “criançocêntrica” seria uma prática educativa que leva em
conta a criança no presente, tentando garantir que possa viver a infância na
sua plenitude, nas suas descobertas do mundo a partir do seu modo de ser
criança, brincando. As educadoras e educadores do coletivo Universidade
Popular enfrentaram esse desafio de tentar criar uma prática educativa que
reconheças as crianças como sujeitos e produtoras de culturas infantis.
Nesse sentido, apresento uma situação que surgiu durante uma
das atividades da Ciranda Infantil em que as crianças Sem Terrinha se
interpuseram como pequenos sujeitos da história ocupando um barraco
abandonado do pré-assentamento. Tal fato explicita o modo como as
crianças colocam suas culturas infantis em movimento, mobilizando os
diversos elementos que apresentamos neste artigo até aqui.
As crianças do pré-assentamento ainda hoje não conseguiram
um espaço físico só delas, ou seja, a Ciranda Infantil acontece na área
social da comunidade, no barracão, embaixo de uma árvore ou no lote de
alguma assentada ou assentado. As crianças foram apresentando a vontade
de terem um espaço delas e em uma das atividades da Ciranda Infantil
elas próprias ocuparam um barraco abandonado do pré-assentamento e
organizaram coletivamente uma escola das crianças, a Escola Roba Cena.

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Os pequenos sujeitos da luta... 111

- A gente não queria fazer nada daquilo, de música e


apresentação. Só queria fazer o grupo do Roba Cena. - disse
Cirilo.
- O que vocês propuseram é só besteira. - completou Dora.
- Sim, sim! Vocês estão certos. Eu que propus tudo aquilo.
Vi que vocês estavam formando um grupo de vocês e achei
que seria legal as outras crianças também terem um grupo
delas.
- Não! Era só para ter o Roba Cena! E a gente queria se reunir
nessa casa aí embaixo.

Nessa hora sentei no chão e fiquei ouvindo.

- A gente queria só o nosso grupo e queria ficar ali na casa


do André [um assentado]. Ali na casa é pra ser o lugar do
Roba Cena!
- Porque a casa do André?
- O André não está mais morando aqui. E ele deixou eu e o
Mario brincar na casa dele. - disse Cirilo.
- Isso é verdade ou você estão me enganando só pra
poderem brincar ali.
- É verdade! A gente até já brincou aqui, não é Dora? -
completou Cirilo.

Logo chegou a Martina (educadora) com a cartolina e giz de


cera para fazer a bandeira. Falei para eles da ideia de fazerem
uma bandeira para o grupo. Não toparam. Percebi que eles
iam para a casa do André, eu querendo ou não. Então topei
a ideia e propus outra – falei para eles que já estava na
hora do café, que podíamos então combinar o café lá na
casa. Que o Roba Cena convidasse o pessoal do Grito para
tomar café lá (…) e faríamos a apresentação das bandeiras.
Muitos sorrisos apareceram. (Relato de atividade da Ciranda
Infantil, 20/11/2013)

Ao colocarem a vontade de ocupar a casa abandonada de um


assentado colocaram em movimento a cultura vivenciada como Sem
Terrinha pertencentes a um movimento social. Explicitaram o conflito

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112 Fábio Accardo de Freitas

de interesses que havia entre o que as crianças queriam fazer de forma


mais livre e o proposto/imposto pelos adultos, educadoras e educadores.
Resistiram. Além disso, a proposta de ocupação do barraco de madeira
abandonado era também a expressão da experiência de luta e resistência
daquelas crianças, junto com suas mães e pais, no pré-assentamento.

Chegamos lá e a casa estava toda abandonada. Tinham


alguns objetos largados, sofá e cama desarrumados, um latão
cheio de sapatos na frente. Entramos e eles logo começaram
a arrumar e a dividir tarefas.

- Quero conversar com os representantes do Roba Cena! - eu


disse. Vou chamar o grupo Grito para virem aqui para a casa.
O que acham de arrumar o espaço enquanto vou até lá em
cima?
- Pode ser...
- Vamos descer de kombi com todas as crianças e com as
coisas para o café.
- Tá bom, mas antes de entrarem a gente vai ter que explicar
as regras aqui da casa para o outro grupo, né?! - disse Dora.
- Aí vocês esperam a gente lá fora, explicam as regras antes
de todo mundo entrar.
Voltei ao barracão e fiz o convite ao grupo Grito. Todos
toparam e fomos para a Kombi. Descemos lá na frente da
casa ocupada. Já estavam nos esperando fora. Foram nos
receber na kombi.

- Você todos têm que ficar aqui fora da casa por enquanto
para que a gente arrume o café lá dentro. Podem ficar aqui
na varanda.

Pegaram as comidas do café. Alguns entraram e pediram


para esperar. Ali na varanda tinham pendurado a bandeira
do MST. Tinha escrito também na parede “Pedir Licença”
- era uma primeira regra! Ficamos esperando do lado de
fora. Logo deram a permissão para entrarmos. Estava tudo
organizado, limpo. Cama arrumada, as crianças arrumaram
os objetos espalhados em um canto, protegendo-os. As

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 113

louças estavam limpas. Pegaram os panos da ciranda e


colocaram no chão para servir o café. Pediram para que
sentássemos lá. Eles dividiram os sucos nos copos, lavaram
as uvas, cortaram as maçãs, colocaram nos potes. Na parede
da sala mais duas regras rabiscadas - “Não Bagunçar” e
“Não Brigar”. Dividiram o café para todo mundo. Haviam
pendurada a bandeira do Roba Cena, ali no espaço do café,
onde se podia ler “ESCOLA ROBA CENA”.
Após o café as crianças recolheram copos, sujeira, lixo e
limparam tudo. Ficamos o resto do tempo ali dentro da
casa, conversando, brincando. Algumas crianças foram
comer acerola do pé que tinha logo na entrada do barraco.
Foi passando o tempo e nós educadoras e educadores
tínhamos que ir embora. (…) Fomos embora e eles ficaram
(não sabemos o que mais se passou...). (Relato de atividade
da Ciranda Infantil, 20/11/2013)

As crianças resolveram ocupar um barraco abandonado e fizeram


daquele espaço um lugar vivo e útil para eles. Elas concretamente ocuparam
a escola. Roubaram a cena. Esse ato das crianças foi para mim a síntese de
sete anos de atividades da Ciranda Infantil, de tentativas de construção
de novas relações; de auto-organização das crianças com suas próprias as
regras; de espaço de convívio do coletivo infantil; e da vivência das crianças
dentro de um assentamento, com perspectiva de luta, de resistência,
de ocupação que, naquela brincadeira, se realizaram, colocando em
movimento os conhecimentos e a cultura delas.

Precisamos entender que as crianças têm iniciativas, têm


opiniões, e que, muitas vezes, ao questionarem os adultos
em suas atitudes, impulsionam mudanças. Se observarmos
atentamente e dermos espaço é possível vermos na auto-
organização das crianças em suas atividades e na relação
com os adultos a criação de coisas novas e autênticas. (MST,
2011, p. 25)

Esse ato de ocupação das crianças mostrou para nós, educadoras e


educadores da Ciranda, como as crianças são sujeitos da sua própria história.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
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A partir da sua forma de ser crianças no mundo, a brincadeira, produzem


culturas infantis e explicitam o seu pertencimento a um movimento social,
a uma classe social. Como protagonistas do Movimento, apresentam as
suas demandas e colocam em movimento suas inconformidades, lutando
pelos seus direitos e suas demandas específicas.

As experiências das crianças Sem Terra, como sujeitos


sociais que elas também já são desse Movimento, não podem
ser vistas apenas como formação de futuros militantes da
organização. Isso seria redutor e mesmo pedagogicamente
ineficaz. A grande potencialidade educativa da participação
das crianças no Movimento está na densidade maior que
permite à sua vivência da infância, exatamente porque mais
parecida com a totalidade das dimensões que constituem a
vida humana. (CALDART, 2012, p. 389)

ELEMENTOS PARA UMA EDUCAÇÃO INFANTIL POPULAR

Este artigo é um esforço teórico de captar alguns elementos


da prática de educação com as crianças na Ciranda Infantil do pré-
assentamento Elizabeth Teixeira que nos ajudam a caracterizá-la como
uma Educação Infantil Popular. Para isso apresentei algumas situações e
relatos que surgiram nas atividades da Ciranda Infantil em que as crianças
Sem Terrinha se interpuseram como pequenos sujeitos da história.
Esses pequenos sujeitos, ao se organizarem para uma marcha em
solidariedade ao despejo de um assentamento vizinho ou ao resolverem
ocupar um barraco abandonado e criarem ali a sua escola, mobilizaram
toda a trajetória histórica do Movimento Sem Terra, assim como as suas
próprias trajetórias de experiência das lutas, ocupações e resistências que
já presenciaram e participaram.
Colocaram em movimento a história e cultura da qual fazem
parte e a qual também são produtoras, produzindo suas culturas infantis,
reproduzindo e reinterpretando livremente por meio das brincadeiras a
“forma marcha” e “forma ocupação”, formas de manifestação utilizadas

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Os pequenos sujeitos da luta... 115

pelos adultos Sem Terra, a partir das possibilidades, necessidades e


interesses das crianças Sem Terrinha. A Ciranda Infantil como espaço
livre de encontro do coletivo infantil e espaço de produção das culturas infantis,
possibilitou às crianças se expressarem a sua maneira.
Pelas culturas infantis as crianças vinculam o passado ao presente,
como produtos e produtoras de cultura e, assim, pequenos sujeitos
da história. Inseridas num contexto específico, fazendo parte de um
movimento que visa um outro projeto de sociedade, produzem no presente
as possibilidades de construção de uma nova sociedade.
Nessa perspectiva, considero que a educação infantil proposta e
praticada na Ciranda Infantil se insere na trajetória histórica da Educação
Popular, como proposta educativa associada à luta de um movimento
social da classe trabalhadora do campo com vistas à mudança da sociedade.
Apontando os indivíduos como sujeitos da história, a Ciranda Infantil tem
na práxis a centralidade da prática educativa, como ação e reflexão dos
processos de superação da situação de exploração, dominação e opressão
em que as classes populares estão submetidas.
Ao mesmo tempo, a partir da minha experiência compreendo que
os novos elementos que as crianças. Sem Terrinha colocam, como sujeitos
e protagonistas do Movimento, ao construírem o seu lugar participando
dessa coletividade em movimento (CALDART, 2012), modificam as experiências
passadas de Educação Popular e criam a necessidade de reinventarmos
nosso olhar diante desses novos sujeitos.
A Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira se insere,
a partir da Pedagogia do Movimento, na trajetória histórica da Educação
Popular a transformando partir do seu contexto e dos seus sujeitos
específicos da prática educativa – as crianças Sem Terrinha, somando
também elementos da Sociologia da Infância.
A relação entre esses olhares conforma a particularidade da
experiência educativa com as crianças do pré-assentamento e propicia
um espaço educativo que enxerga as crianças no seu tempo, como
protagonistas e sujeitos no mundo, possibilitando um espaço de liberdade
para as crianças Sem Terrinha expressarem suas injustiças, suas resistências,
produzirem culturas infantis nas suas práticas culturais cotidianas.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
116 Fábio Accardo de Freitas

A minha experiência como educador-pesquisador, então, atuando


e observando a Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira
suscitou elementos que me ajudaram a caracterizar essa experiência como
uma experiência de Educação Infantil Popular. Além disso, entendo que
a preocupação com as crianças nesses trinta e quatro anos de história do
MST criou possibilidades para a vivência da infância no campo, apontando
um novo lugar para a infância Sem Terra dentro da construção de um
novo projeto de sociedade. As crianças têm lugar e voz, brincam e são
consideradas sujeitos da sociedade uma vez que o Movimento se propõe a
olhar para as crianças também como protagonistas da luta pela terra.

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Texto recebido em 04/01/2018 e aprovado em 25/03/2018.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


A INFÂNCIA SEM TERRA EM MOVIMENTO
NA LUTA POR ESCOLA, TERRA E DIGNIDADE1

Lia Pinheiro Barbosa2


Mirna Sousa Sales3

RESUMO: Na consolidação do projeto educativo-político do Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Infância Sem Terra torna-se um dos pilares
da subjetividade política das crianças acampadas e assentadas, resultado de um processo
permanente de debate político, estudo e aprofundamento teórico sobre o significado da
infância Sem Terra articulada à práxis política do MST. No presente escrito nos interessa
apresentar alguns elementos reflexivos do processo de consolidação da Infância Sem
Terra na organicidade do MST e o papel desempenhado pelos Sem Terrinha na histórica
luta por escola, terra e dignidade que perpassa a resistência camponesa não só no Brasil,
mas em toda América Latina. Organizamos o escrito em quatro seções: na primeira,
apresentamos a essência do projeto educativo do MST na ruptura das cercas do latifúndio
do saber e do conhecimento. Em seguida, adentramos à abordagem da Infância Sem Terra
e a educação das crianças Sem Terrinha. Na terceira seção, apresentamos a experiência
educativo-pedagógica das Cirandas Infantis e seu papel na subjetividade política dos Sem
Terrinha. Finalizamos nossa reflexão destacando os avanços, os desafios e as bandeiras de

1
O presente artigo é resultado da pesquisa realizada durante a Especialização em
Desenvolvimento Sustentável e Educação do Campo – Residência Agrária, realizada na
Universidade Federal do Ceará (UFC) campus Cariri.
2
Socióloga e doutora em Estudos Latino-Americanos. Docente no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia (PPGS), no Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino
(MAIE) e na Faculdade de Educação de Crateús (FAEC) da Universidade Estadual do Ceará
(UECE) – Grupo de Pesquisa Pensamento Social e Epistemologias do Conhecimento na
América Latina e Caribe. Linha de Pesquisa 1: Mobilizações Sociais, Campo e Cidade. Linha de
Pesquisa 2: Trabalho, Educação e Movimentos Sociais. E-mail: lia.barbosa@uece.br.
3
Pedagoga e Especialista em Desenvolvimento Sustentável e Educação do Campo – Residência
Agrária. Pedagoga na Cáritas Diocesana – Ceará. E-mail: mirnamix@hotmail.com.
120 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

luta que impulsam a práxis política dos Sem Terrinha na perspectiva da Infância Sem Terra
no movimento da práxis educativo-política do MST. Realizamos pesquisa documental, com
a análise de documentos produzidos pelo Setor de Educação do MST e que estruturam
a concepção da Infância Sem Terra e as diretrizes filosóficas e pedagógicas de sua
proposta educativa. Também realizamos pesquisa de campo em áreas de assentamento na
microrregião dos Sertões de Crateús, Ceará.

PALAVRAS-CHAVE: Infância; Sem Terrinha; Ciranda Infantil; MST.

THE LANDLESS CHILDHOOD IN THE


STRUGGLE OF
THE MST FOR SCHOOL, LAND AND DIGNITY

ABSTRACT: In the consolidation of the educational-political project of the Landless


Rural Workers Movement (MST), the “Landless Childhood” has become one of the pillars
of political subjectivity of encamped and settled children, resulting from a permanent
process of political debate, study and theoretical deepening of the meaning of landless
childhood as part the political praxis of the MST. In the present paper we present some
reflections of the process of consolidation of the Landless Childhood in the MST and
the role played by landless children (“Sem Terrinha”) in the historic struggle for school,
land and dignity that permeates peasant resistance not only in Brazil, but in all of Latin
America. We have organized the paper in four sections: first, we present the essence of
the MST’s educational project in breaking down the enclosure of knowledge. Then we
examine the Landless Childhood approach and the education of the landless children. In
the third section, we present the educational-pedagogical experience of day-care centers
and their role in the political subjectivity of the landless children. We conclude our
reflection by highlighting the advances, the challenges and the banners of struggle that
drive the political praxis of the Landless in the perspective of the Landless Childhood, as
part of the educational-political praxis of the MST. The article is a documentary research
result, with the analysis of documents produced by the MST Education Sector and which
structure the conception of Landless Childhood and the philosophical and pedagogical
guidelines of its educational proposal. We also conducted field research in settlement
areas in the Sertões de Crateús, Ceará micro-region.
KEYWORDS: Childhood; Landless; Day Care; MST.

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A infância sem terra em movimento... 121

INTRODUÇÃO

O Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra (MST)


tem construído uma nova concepção de educação, ligada à história da luta
pela terra e a um projeto político de desenvolvimento cultural e econômico
do, no e para o campo. Nessa trajetória de mais de três décadas, o MST tem
se dedicado a consolidar linhas pedagógicas e políticas para impulsionar
processos educativos no contexto dos acampamentos e assentamentos,
na defesa do direito à educação para crianças, jovens e adultos do campo
(MST, 1998; 2000; 2005; 2008a; 2008b; 2011; 2017). Essas bandeiras estão
relacionadas com o direito à educação desde o nível básico até o superior, a
adoção de uma pedagogia própria, uma metodologia e práticas educativas
que fortaleçam o vínculo identitário com o campo e com a luta política do
MST, entre acampados e assentados.
Na assunção de uma dimensão política do ato educativo, a educação
sob a ótica do MST deve assumir por princípios filosóficos e políticos a
transformação social, a crítica à estrutura de classe da sociedade do capital
e a construção da nova mulher e do novo homem, reconstruídos na superação
das relações de opressão e desumanização (FREIRE, 1987), em que se
projetam ‘‘transformações na forma de ser das pessoas e da sociedade,
cultivando valores radicalmente humanistas, que se contrapõem a valores
anti-humanos que sustentam a sociedade capitalista atual’’ (MST, 1999,
p. 25). A luta pela democratização do acesso ao conhecimento, de forma
orgânica com a luta do Movimento, é uma das estratégias na disputa de
projetos educativos no campo. O percurso de construção do projeto
educativo-político do MST iniciou-se desde as primeiras ocupações de
terras improdutivas, instigado pela necessidade de educar os filhos e filhas
da classe trabalhadora do campo na perspectiva da luta de classes, da
conformação de uma identidade política Sem Terra.
Assim, o MST realizou, em 1987, o I Encontro Nacional de
Educação em Assentamentos com o intuito de discutir internamente
a proposta educativa do Movimento. Nesta ocasião, foi criado o Setor
de Educação do MST, fundado com o objetivo de organizar e articular
uma proposta pedagógica específica para as experiências educativas dos

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122 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

acampamentos e assentamentos. Assim, desde a sua fundação este Setor


assumiu o compromisso de elaborar uma proposta educativo-pedagógica
que contemple todas as especificidades da realidade do campo e do
Movimento.
A presença de crianças nos primeiros acampamentos e, logo, nos
assentamentos da Reforma Agrária abriu um debate fundamental no
cerne do MST: Como lidar com a presença das crianças no âmbito dos
acampamentos? Na consolidação da nova mulher e do novo homem, qual o
lugar social e político ocupado pelas crianças? Como incorporá-las ao
processo de luta pela terra e pela plena realização da Reforma Agrária?
Na dialética da resistência do MST, as perguntas sobre as crianças
colocaram em movimento o primordial debate sobre a Infância e, em
particular, sobre o que posteriormente se denominou como a Infância Sem
Terra. Na compreensão crítica de que a luta pela terra prescinde o sujeito
histórico-político Sem Terra e que este, por sua vez, corresponde às famílias
camponesas, que incorpora seus filhos, o MST reflete (MST, 2011, p. 25):

Precisamos entender que as crianças têm iniciativas, têm


opiniões, e que, muitas vezes, ao questionarem os adultos
em suas atitudes, impulsionam mudanças. Se observarmos
atentamente e dermos espaço é possível vermos na auto-
organização das crianças em suas atividades e na relação
com os adultos a criação e a produção de coisas novas e
autênticas.

Hoje, na consolidação do projeto educativo-político do MST, a


Infância Sem Terra se consolida como um dos pilares da subjetividade
política dos Sem Terra, resultado de um processo permanente de debate
político, estudo e aprofundamento teórico sobre o significado da infância
articulada à práxis política do MST.
No presente escrito nos interessa apresentar alguns elementos
reflexivos do processo de consolidação da Infância Sem Terra na
organicidade do MST e o papel desempenhado pelos Sem Terrinha na
histórica luta por escola, terra e dignidade que perpassa a resistência

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A infância sem terra em movimento... 123

camponesa não só no Brasil, mas em toda América Latina. Os dados


apresentados são resultados de pesquisa histórico-documental, em que
analisamos os documentos elaborados pelo Setor de Educação do MST
e que estruturam as diretrizes filosóficas e pedagógicas de sua proposta
educativa, bem como sua concepção de Infância Sem Terra. Também
realizamos pesquisa de campo em áreas de assentamento no Ceará, em
particular na microrregião dos Sertões de Crateús,4 com a realização de
entrevistas junto a membros do Setor de Educação e observações das
experiências educativas junto à Infância Sem Terra5.
Organizamos o escrito em quatro seções: na primeira, apresentamos
a essência do projeto educativo do MST na ruptura das cercas do latifúndio
do saber e do conhecimento. Logo, adentramos à abordagem da Infância
Sem Terra e a educação das crianças Sem Terrinha. Na terceira seção,
apresentamos a experiência educativo-pedagógica das Cirandas Infantis e
seu papel na subjetividade política dos Sem Terrinha. Finalizamos nossa
reflexão destacando os avanços, os desafios e as bandeiras de luta que
impulsam a práxis política dos Sem Terrinha na perspectiva da Infância
Sem Terra.

A ROMPER AS CERCAS DO LATIFÚNDIO DO SABER E DO


CONHECIMENTO: O PROJETO EDUCATIVO DO MST

Nascido na clandestinidade dos anos de “chumbo” da ditadura


militar, ao final dos anos 1970 do século XX, o MST tornou-se um dos
mais emblemáticos movimentos sociais do campo do Brasil e da América
4
A microrregião dos Sertões de Crateús está composta por cinco municípios, a saber: Crateús,
Nova Russas, Novo Oriente, Independência, Tamboril.
5
Importante destacar que o MST – Ceará impulsionou os primeiros debates e experiências
em torno da Infância Sem Terra e a educação dos Sem Terrinha. Esclarecemos que em nossa
pesquisa não entrevistamos diretamente as crianças (embora destacamos, ao longo do texto, o
posicionamento dos Sem Terrinha, extraídos de documentos de trabalho e de sistematização
do MST), dado que nosso objetivo geral consistia em debater a Infância Sem Terra no âmbito
da luta pela terra, pela realização da Reforma Agrária e na defesa do direito à educação nas
escolas de acampamentos e assentamentos. Por tal razão, o enfoque da pesquisa é histórico-
documental e com a delimitação do Setor de Educação como interlocutor na pesquisa.
Pretendemos dar continuidade à pesquisa com a inserção direta da voz das crianças Sem Terra.

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124 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

Latina. Herdeiro da memória histórica das lutas empreendidas no campo


brasileiro, sua gênese está intimamente relacionada com a denúncia
histórica do significado cultural, econômico e político do latifúndio nas
relações sociais e produtivas no campo e na cidade.
Com a abertura democrática em meados dos anos 80, o MST
assume sua identidade de movimento social do campo, com a realização
do Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Rurais Sem Terra,
em 1984, em Cascavel – PR. O encontro tinha por finalidade convocar
e articular os trabalhadores rurais da região a uma resposta política à
histórica problemática agrária, por meio da luta pela desapropriação das
terras improdutivas e sua apropriação pelas famílias camponesas.
O debate político anunciado nesse primeiro encontro nacional
constituiu um marco na gênese do projeto político do MST. Neste sentido,
o encontro objetivou organizar a luta conjunta em defesa da conquista
da terra, na discussão coletiva de um projeto político-econômico para o
campo brasileiro, pautado na defesa da Reforma Agrária. Assim, nasce,
oficialmente, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
Sem Terra – MST.
O primeiro locus e símbolo da resistência Sem Terra são as ocupações
e os acampamentos, uma forma genuína da luta camponesa, uma vez que
transforma a ocupação em um fato político, que conduz a uma pressão à
negociação da expropriação das terras improdutivas e para a realização da
Reforma Agrária (BARBOSA, 2013a). Desde o início, o MST compreendeu
que a Reforma Agrária como projeto político popular prescindia a formação
do sujeito histórico-político para a sua consolidação. Daí emerge o debate
interno relacionado à centralidade da formação política e educativa das
famílias camponesas no âmbito dos acampamentos e, em particular, da
militância Sem Terra, para fortalecer a dimensão identitária e política de
permanência no campo.
Nesse contexto, o MST considera fundamental retomar a reflexão
em torno à educação no processo formativo do sujeito histórico-político
Sem Terra, uma reflexão inspirada no legado da Pedagogia Socialista,
da Educação Popular, do pensamento pedagógico latino-americano,
notadamente aquele de base freiriana, no sentido de ruptura das relações

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 125

de opressão no âmbito da consciência e de construção de uma educação


libertadora. A educação no marco da luta pela terra e pela realização da
Reforma Agrária pressupõe a assunção da consciência de classe, isto é, de
classe trabalhadora do campo.
Por outro lado, uma educação libertadora no âmbito da luta pela
Reforma Agrária se assenta na compreensão de que a ruptura do latifúndio da
terra requer, a priori, a ruptura do latifúndio do saber e do conhecimento (STÉDILE,
1997)6. Nesta perspectiva, a luta pelo direito à educação é reconhecida
como necessidade histórica, fundamental como elemento estratégico para
a construção de um projeto popular. Com base no exposto, a educação
é apreendida pelo MST como um instrumento moral e intelectual
indispensável à luta política da classe trabalhadora do campo na construção
do socialismo.
Daí que uma das prioridades do Movimento consistiu na articulação
política na defesa e garantia do acesso à educação, o que evidencia a
preocupação com a formação educativo-política de sua militância. Assim,
no decorrer de sua trajetória política, o MST construiu uma proposta
educativo-pedagógica que não se reduziu a um modelo tradicional, de mera
transferência de conhecimentos acumulados, de caráter escolarizado. Ao
contrário, a luta pelo direito à educação e à escola começou com a disputa
teórico-epistêmica do conceito de educação, pedagogia e escola na perspectiva
da práxis política do MST (BARBOSA, 2015b).
Por tal razão, o MST construiu uma pedagogia genuína, a Pedagogia
do Movimento (CALDART, 2004) que vincula o processo educativo com a
cotidianidade da luta pela terra e pela Reforma Agrária. Uma concepção de
educação que fomenta uma geopedagogia do conhecimento7 (BARBOSA,
6
O MST reiteradas vezes afirma, no âmbito do seu discurso político e de alguns documentos,
de que é necessário romper todas as cercas, entre elas, aquelas que o Movimento define como
as cercas do latifúndio do saber e do conhecimento, que expressam a negação histórica do
direito à educação, da Educação Básica à Educação Superior, para os povos do campo. Grifos
das autoras para salientar essa denúncia do MST.
7
A geopedagogia do conhecimento constitui a relação que se estabelece entre a pedagogia e
os elementos socioculturais que emergem do território e da cultura. Para pensar esta dimensão
da pedagogia, recuperamos as análises de Milton Santos (2000) sobre a espacialidade social
como construção socio-histórica. Com base nesta perspectiva, se compreende o lugar de

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


126 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

2013b; 2015b), em que se confere um sentido pedagógico à sua luta


social, fazendo dela momento de formação educativa e política não só da
militância de base, mas do conjunto dos sujeitos partícipes do processo.
As experiências educativas do MST são desenvolvidas com base nos
princípios filosóficos e pedagógicos do Movimento. Os princípios filosóficos
dizem respeito à visão de mundo defendida pelo MST e direcionados
ao ideário de transformação social. Para tanto, se vincula a educação ao
trabalho como princípio educativo, com o intuito de fortalecer os princípios
de cooperação, bem como fomentar o conhecimento do ser humano em
suas múltiplas dimensões. Neste sentido, a educação é compreendida
como um processo permanente de formação (MST, 2005).
Os princípios pedagógicos referem-se ao jeito de pensar e pôr em
prática os princípios filosóficos da educação do MST, ou seja, é a reflexão
metodológica dos processos educativos. Atentam para a combinação teoria-
prática, com o entrelaçar do processo de ensino e capacitação; utilizam a
realidade de vida e de luta como base construtiva de conhecimento. Há um
liame entre a pesquisa e os processos educativos, políticos, econômicos e
culturais (MST, 2005).
A escola igualmente é elemento de análise no marco de construção
de uma proposta de educação em consonância com a práxis política do
MST. Para o Movimento, a escola tem uma função social e política na
sociedade, uma vez que serve como espaço de reprodução das estruturas
de poder próprias do capital. Conforme o MST (1987), ‘‘a classe dominante
usa a escola como um dos principais meios de controle ideológico para
manter a ordem atual e sustentar o sistema capitalista’’8.
Tal crítica toma por base o reconhecimento de que o modelo
de escola preconizado pelo capitalismo reproduz e reforça sua própria
ideologia. Um modelo educativo que estabelece uma dominação pelo

inscrição do pedagógico como uma geopedagogia que nos permite discutir de que maneira os
movimentos sociais consolidam uma práxis educativo-política baseada no conjunto de saberes
e na multiplicidade de elementos constitutivos da experiência política, as quais possuem raízes
próprias de seus territórios e culturas (BARBOSA, 2014; 2015).
8
Documento do 1º Seminário Nacional de Educação em Assentamentos. São Mateus / ES.
27 a 30 de julho de 1987.

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A infância sem terra em movimento... 127

‘‘saber’’, ou seja, pelo acesso a um tipo de conhecimento que ensina,


desde muito cedo, a assumir a condição subalterna no plano ideológico e
econômico9.
Por conseguinte, o MST defende um novo modelo de escola e uma
pedagogia que contribuam para uma formação voltada à construção de
uma consciência crítica para os povos do campo. Em suma, o caráter
educativo do Movimento possui particularidades e especificidades
relacionadas à formação e mobilização da sua militância, em permanente
disputa com a formação ideológica estabelecida na escola oficial.
A necessidade histórica de ruptura com o latifúndio do saber e do
conhecimento conduziu à criação dos Setores de Educação e Formação,
ambos destinados à organização de um projeto educativo-político de
formação da militância Sem Terra. As primeiras experiências educativas
aconteceram nos acampamentos do MST e foram alicerçadas por duas
questões centrais: a preocupação com o grande número de analfabetos nos
acampamentos e assentamentos, e a presença das crianças. Daí surge duas
novas frentes de trabalho, a saber: a Alfabetização de Jovens e Adultos
e as chamadas Escolas Itinerantes, pensadas inicialmente para atender a
demanda educativa das crianças acampadas e, dessa maneira, assegurar a
permanência das famílias nos acampamentos (MST, 2008).
Por ser um movimento de famílias camponesas, o MST sabia
da importância de gerar um espaço educativo para as crianças nos
acampamentos. Portanto, a Escola Itinerante cumpria um duplo papel
político: assegurar a permanência das famílias com crianças e adolescentes
em idade escolar no acampamento, dado que muitas famílias, no momento
da ocupação, argumentavam que seus filhos e filhas necessitavam
regularizar sua situação escolar; e garantir a escolarização de crianças e
adolescentes a partir de uma nova concepção de educação e de escola,
onde se inicia o processo de formação educativo-política em estreita
relação com a resistência e a luta pela terra.
9
Uma reflexão que nos aproxima da análise realizada por Saviani (1983), ao afirmar que o
modelo de educação capitalista está dirigido à reprodução de sua própria ideologia. Para o
autor, a escola pública brasileira é utilizada como locus de opressão, ao inculcar em todos os
níveis educativos o status quo imposto pela classe burguesa e pelo Estado.

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128 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

A 30 anos de criação do Setor de Educação, o MST avançou nas


linhas básicas de seu projeto educativo, incorporando o debate em torno
das experiências educativas em acampamentos e assentamentos, na
proposta da Educação de Jovens e Adultos, com enfoque na alfabetização
e, sobretudo, erigiu a concepção teórico-epistêmica e política da Educação
do Campo, que culminou na democratização do acesso à Educação
Superior para militantes de organizações e movimentos sociais do campo
(BARBOSA, 2013a; 2015a).
Na atualidade, o MST consolidou suas escolas de formação
educativa e política em dois planos: aquelas de caráter autônomo, como
a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), o Instituto de Educação
Josué de Castro, o Centro de Formação Frei Humberto, a Escola Popular
de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Bruneto, para citar algumas. Outras
escolas estão situadas na disputa da Política Nacional de Educação, com
a construção e/ou regularização das escolas públicas de Educação Básica
no marco da Educação do Campo (BARBOSA, 2016).
Dessa maneira, o MST avançou no atendimento das demandas
relacionadas à educação formal, com a conquista do Programa Nacional
de Educação para a Reforma Agrária (PRONERA) e da Política Nacional
de Educação do Campo. Cabe ressaltar que, embora o projeto educativo-
político do MST tenha iniciado nos anos 80, constitui um projeto em
construção, uma vez que dia a dia é vivenciado e recriado nos espaços
educativos do MST.
Nesse percurso de formação da nova mulher e do novo homem, a Infância
Sem Terra emerge como um sujeito histórico-político fundamental para
a continuidade da luta, para o legado geracional do projeto político da
Reforma Agrária Popular. Na infância Sem Terra, paulatinamente se
constrói a identidade Sem Terrinha, com um posicionamento político fruto
do processo educativo e formativo do MST. Vejamos como se deu a
incorporação dos Sem Terrinha na práxis educativo-política do MST.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 129

A INFÂNCIA SEM TERRA E A EDUCAÇÃO DOS SEM TERRINHA

Conforme mencionamos anteriormente, o Setor de Educação


constituiu um dos primeiros setores criados pelo MST com a
responsabilidade de pensar e articular as primeiras experiências educativas,
tarefa que demandou a gradativa construção da base teórica e metodológica
do projeto educativo-político do Movimento. Entre os anos de 1987 a 1994,
o Setor de Educação avançou significativamente em sua organicidade, bem
como no amadurecimento teórico-político e no delineamento pedagógico
da proposta educativa do MST. Durante este período, o Setor de Educação
articulou o 1º Seminário Nacional de Educação em Assentamentos, em
1987, um marco para a elaboração dos primeiros documentos relacionados
ao embrião da concepção de Educação para o MST, bem como as linhas
básicas da sua proposta educativa no âmbito da alfabetização na EJA e na
formação das educadoras e educadores da Reforma Agrária.
Entre os documentos elaborados no decorrer desse período,
destacam-se: 1. Documento do 1º Seminário Nacional em Assentamentos
(1987); 2. Linhas Básicas da Proposta de Educação do MST para as Escolas
de Acampamentos e Assentamentos (1990); 3. Proposta Pedagógica do
Movimento Sem Terra para as Escolas de Assentamentos e Acampamentos
(1991); 4.Educação no Documento Básico do MST (1991) e 4. Uma
proposta de Alfabetização de Jovens e Adultos (1994).
Embora desde a gênese do MST e do Setor de Educação se
enfatizara a presença das crianças nos acampamentos e assentamentos
como elemento impulsor das primeiras experiências educativas, somente
no marco do 1º Congresso Infantil do MST, em 1994, com o tema “A
criança e seu espaço na sociedade”, que a Infância Sem Terra é incorporada
de forma mais sistematizada ao debate educativo-político do Movimento.
Realizado no Rio Grande do Sul, o Congresso foi um marco
da mobilização infanto-juvenil organizada pelo Setor de Educação,
expandindo-se posteriormente para outros estados do país. Em julho
de 1996, em São Paulo, aconteceu a primeira discussão acerca de uma
proposta de Educação Infantil no Coletivo Nacional de Educação do MST,
uma reflexão que nasceu à raiz da formatura da 5ª Turma de Magistério
Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018
130 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

da Terra.10 Um dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) da turma de


Magistério da Terra abordou a experiência da Educação Infantil vivenciada
pelas crianças do Assentamento 1º de Abril, no município de Prado – BA.
O trabalho titulado Reforma Agrária uma Luta de Todos: dos pequenos também
fortaleceu a discussão sobre a Educação Infantil no Setor de Educação.
Em consequência desse debate se constitui a Frente de Educação Infantil
Nacional, que ampliou a agenda política relacionada à Educação Infantil.
Em 1997, no Congresso Infantil Estadual de São Paulo, com o
lema “Reforma Agrária, uma luta de todos e dos Sem Terrinha também”, se
assume a denominação de Sem Terrinha para as crianças (MST, 2017). No
processo de expansão regional, os eventos destinados aos Sem Terrinha
passaram a chamar-se “Encontros dos Sem Terrinha” ou “Jornada Sem
Terrinha”, geralmente realizado no mês de outubro como contraponto
à perspectiva mercadológica conferida à celebração do “Dia da Criança”
no Brasil. Na assunção de uma identidade política como Sem Terrinha, as
crianças destacam (MST, 2017, p. 37-38):

[...] nós também temos que lutar para conquistar nossos


direitos garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Hoje, nós, crianças e adolescentes, encontramos aqui o
nosso espaço para manifestar nossos direitos através do
canto, das brincadeiras, dos momentos artísticos e culturais,
do estudo e da reflexão. O Congresso foi a nossa chance
de propor nossas e novas ideias. [...] Nossa vida é uma
vida de luta: aprendemos com os nossos pais que existe
uma Lei de Reforma Agrária e para que ela seja cumprida
tivemos que nos organizar, nos mobilizar para exigir o
cumprimento de nossos direitos. [...] Portanto, por meio
desse Manifesto, estamos dizendo à sociedade que nós,
crianças dos acampamentos e assentamentos do MST/RS,
estamos cientes dos nossos direitos e estamos lutando para
que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja cumprido
na sua totalidade.

10
Esta foi a primeira turma de Magistério da Terra formada pelo MST, em âmbito nacional,
com a presença de 18 estados.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 131

Conforme o MST (2004), duas necessidades impulsionaram


o processo de organização da Educação Infantil e do atendimento
pedagógico das crianças: a primeira era o desafio de garantir a participação
das mulheres no trabalho coletivo da produção, nas cooperativas e
associações dos assentamentos. A segunda relacionava-se à garantia de
maior participação das mulheres militantes do MST no conjunto das
atividades políticas desenvolvidas pelo Movimento. Uma terceira questão
era o desafio de aprofundar o estudo relacionado à Infância Sem Terra e a
formação das educadoras e educadores infantis. Inicialmente, as discussões
sobre a Educação Infantil no MST partiram (MST, 2017, p. 91):

[...] da necessidade de compartilhar com as famílias Sem


Terra os cuidados e a educação de seus filhos e filhas,
sendo coerentes com os ideais de justiça e transformação
social que buscamos concretizar, combinando a luta pela
garantia do direito à educação infantil com a intenção de
construirmos coletivamente a formação de nossas famílias,
das comunidades assentadas e acampadas que constituem
o MST.

Com respeito à incorporação dos Sem Terrinha à organicidade,


o MST assume-se como (MST, 2017, p. 91) ‘‘um grande educador das
crianças Sem Terra, pois este é o meio no qual elas vivem suas infâncias,
participando da luta pela terra, pela Reforma Agrária’’. Nessa direção,
abre-se uma nova frente de trabalho destinada a ampliar a discussão sobre
a educação familiar e sua interface com a formação das crianças Sem
Terra. Nesta nova etapa do projeto educativo do MST, destacam-se como
principais desafios (MST, 2004):
– A necessidade de que a comunidade, o coletivo e a escola infantil
compartilhem com a família a educação das crianças de 0 a 6 anos;
– A ampliação da luta por políticas públicas para a Educação Infantil
no Campo, incorporando a diversidade dos sujeitos que formam o campo;
– A luta contra o trabalho infantil e o fomento da participação das
crianças em atividades amenas no seio familiar e no aprendizado com o
trabalho no campo;
Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018
132 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

– A garantia dos direitos das crianças e o cumprimento do Estatuto


da Criança e do Adolescente.11
Em 2007, o MST organiza o “Seminário Nacional: o lugar da
Infância no MST”, com o intuito de realizar um balanço no percurso
teórico e educativo-pedagógico acerca da Infância Sem Terra. Na análise
do MST, o histórico da Infância Sem Terra perpassa dois momentos
(MST, 2017): o primeiro, ao situar o reposicionamento das crianças
como sujeitos históricos no âmago da questão agrária e a luta pela terra,
condição de ruptura com sua invisibilidade política. Tal processo conduziu
a outras duas abordagens fundamentais na incorporação da infância Sem
Terra: a compreensão de que no enfrentamento do latifúndio, a família
Sem Terra se constitui como um sujeito de luta e uma luta que incorpora
diferentes indivíduos, entre eles, as crianças. De igual maneira, como fruto
da resistência dos corpos das mulheres Sem Terra, as crianças ocupam o
corpo do MST, ao fazer-se presente nos diferentes espaços orgânicos e de
ação política do Movimento.
O segundo momento do percurso histórico da Infância Sem Terra
consistiu na incorporação das crianças em atividades mais amplas do MST,
com destaque para: o 1º Encontro Nacional de Educadoras e Educadores
da Reforma Agrária (ENERA), em 1997, com a participação de 80
crianças; o IV Congresso Nacional do MST, em 2000, com a presença de
380 crianças e a realização da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em
2005, com a participação de 200 crianças.
Importante salientar que nesse processo de definição da Infância
Sem Terra durante o “Seminário Nacional: o lugar da Infância no MST”, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é assumido como documento
central para delimitar a concepção da infância, bem como no delineamento
dos princípios que regem a dimensão dos direitos e das responsabilidades
que devem ser assumidas com relação às crianças no âmbito da família, da
sociedade e do Estado (MST, 2017).

11
O Estatuto da Criança e do Adolescente é reconhecido, no âmbito do debate teórico e
político do Setor de Educação, como documento de referência na definição da Infância e dos
direitos a serem garantidos às crianças e adolescentes.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 133

Entretanto, também é fundamental destacar que esse Seminário


apontou desafios centrais no debate da Infância Sem Terra, especialmente
no aprofundamento teórico dos conceitos infância, criança, gênero, família
e trabalho, considerados nodais no debate interno do MST com relação
ao estudo e à definição da própria concepção de infância na perspectiva
do movimento social. No Seminário também se debateu a necessidade
de estabelecer ações e estratégias para politizar o tema da infância no
âmbito do território e da organicidade do Movimento. Outra questão
importante debatida no Seminário diz respeito à demanda de políticas
públicas relacionadas aos direitos das crianças e, no plano educativo,
para a formação das e dos educadores com ênfase na Educação
Infantil (MST, 2017).
Com base no exposto, podemos inferir que a concepção da Infância
Sem Terra e a Educação Infantil estão em construção e se incorporam
profundamente ao debate teórico, pedagógico e político do Setor de
Educação. Tornam-se um eixo de suma relevância no âmbito da luta pela
Reforma Agrária, assim como as demais necessidades dos assentamentos,
a exemplo da produção, da formação política da militância, entre outras.
Conforme o MST (2011, p. 26):

O MST na sua filosofia defende e trabalha na perspectiva


da construção de um outro ser humano, baseado em outros
valores, para tanto, viemos fazendo o esforço de criar
espaços coletivos, como os Encontros de Sem Terrinha, as
Escolas Itinerantes, as Cirandas Infantis permanentes ou
itinerantes para que as crianças, que em geral têm pouca voz,
possam dialogar e reivindicar para o poder público e para o
próprio Movimento o que querem para os assentamentos
e acampamentos de Reforma Agrária, para que possam
vivenciar experiências coletivas e dizer o que pensam do
mundo.

É importante destacar o esforço do Setor de Educação no processo


de elaboração teórica e de sistematização das experiências educativo-
pedagógicas relacionados à Infância Sem Terra, que incorpora uma série
Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018
134 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

de documentos produzidos internamente pelo Setor, em articulação com o


Setor de Comunicação e Cultura, ademais de outras produções audiovisuais
e do Jornal Sem Terrinha. Conforme Ramos (2013), os documentos
produzidos pelo MST acerca da Infância Sem Terra podem ser divididos
em três categorias: Documentos sobre a infância; Documentos para as
crianças; Documentos para e com as crianças.12
Com a conquista da Política Nacional de Educação do Campo,
o MST também avança no fortalecimento da formação educativa das
educadoras e educadores infantis, sobretudo com a Licenciatura em
Educação do Campo e Pedagogia da Terra. De igual maneira, as escolas
do campo tem sido um espaço de articulação fundamental da Infância
Sem Terra, ao impulsar campanhas, concursos literários, festivais, entre
outras atividades que incorporam a participação das crianças Sem Terra.
No âmbito da Educação do Campo, o MST tem defendido o trabalho
pedagógico e de formação política das crianças Sem Terra nas escolas do
campo existentes nos assentamentos de Reforma Agrária, espaços nos
quais se desenvolvem essas atividades e que visam, sobretudo, conformar
uma identidade política das crianças com relação à identidade política
do MST na defesa da terra e da Reforma Agrária Popular. Observamos
essa construção identitária na produção literária e musical das Crianças
Sem Terra, a exemplo da Coletânea de CD’s Crianças em Movimento,
de cordéis e poemas produzidos nas escolas do campo, entre outras
expressões que visam fortalecer os valores humanistas, a identidade com
o campo e como povo camponês, e o horizonte político do socialismo
(MST, 1999). Também nas consignas políticas elaboradas pelas próprias
crianças Sem Terra é possível ver a expressão desses valores, consignas
que sempre se fazem presentes em suas atividades culturais e políticas,
a propósito da “Campanha Fechar Escola é Crime”, iniciada pelo MST
em 2011.
O Setor de Educação, por sua vez, também tem encabeçado
atividades nacionais, como concursos de redação e desenho elaborados
pelos Sem Terrina. Entre aqueles que se destacam:
12
Para aprofundar a abordagem da Infância Sem Terra nos documentos e demais materiais
produzidos pelo MST sugerimos o estudo desenvolvido por Ramos (2013; 2016).

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 135

– Movimento Sem Terra: por escola, terra e dignidade (1997);


– Desenhando o Brasil: o Brasil que queremos (1999);
– MST, quantos anos você tem? Terra e Vida (2003);
– As sementes são patrimônio da humanidade (2005);
– Fechar escola é crime (2012).
Além dos desdobramentos de ordem teórica e política, resultantes
desse processo de aprofundamento nos espaços de estudo e de organização
política do MST, o debate da Infância Sem Terra abriu caminho para uma
experiência educativo-pedagógica genuína, com a criação das chamadas
Cirandas Infantis, conforme abordaremos a seguir.

AS CIRANDAS INFANTIS E A SUBJETIVIDADE POLÍTICA DA


INFÂNCIA SEM TERRA

Uma das primeiras experiências de acompanhamento pedagógico


das crianças em contextos de assentamentos da Reforma Agrária
aconteceu em 1990, na Cooperativa de Produção Agrícola – COOPAUL,
no Município de Hulha Negra – RS. A criação da cooperativa implicava
a organização coletiva dos assentados para a realização dos trabalhos de
produção. A inserção das mulheres na cooperativa estava diretamente
vinculada à necessidade de incremento da renda familiar. Entretanto, para
que elas participassem ativamente na atividade produtiva era fundamental
garantir o atendimento das crianças. A criação da creche foi uma resposta
imediata à demanda das mulheres assentadas (BIHAIN, 2001). Esta
primeira iniciativa constituiu um marco no processo de inclusão das
mulheres assentadas nos processos produtivos dos assentamentos, bem
como na luta por creches paras as crianças assentadas. Posteriormente,
outras Cooperativas de Produção Agrícola (CPAs) implantaram creches e,
em alguns assentamentos, conquistou-se a pré-escola.
Paulatinamente, a Frente de Educação Infantil Nacional avançou na
perspectiva pedagógica das creches que, à inspiração da experiência cubana
dos Círculos Infantis, passaram a denominar-se “Círculos Infantis” (MST,
2017). Outra tarefa da Frente de Educação Infantil Nacional era a de
pensar um nome que pudesse expressar a dimensão da Educação Infantil

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


136 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

para as crianças Sem Terrinha e em consonância com a luta política do


MST. Assim, foi realizada uma consulta nacional aos estados para a escolha
de um nome para a Educação Infantil. Entre as várias sugestões, o nome
“Ciranda” foi o mais votado no Coletivo Nacional. O nome Ciranda alude
a crianças em movimento. Conforme o MST (2017, p. 91):

[...] a partir de um longo processo de discussão nos coletivos


de educação estaduais e nacional, passamos a chamar
nossos espaços de educação infantil de ciranda infantil, nome
que se refere à nossa cultura popular, às nossas danças, às
brincadeiras, e à cooperação, à força simbólica do círculo
coletivo e ao ser criança.

O nome Ciranda Infantil foi proposto pelo Setor de Educação


do MST-Ceará. Em conformidade com a discussão realizada em âmbito
nacional, Maria de Jesus dos Santos13 – considerada a idealizadora das
Cirandas Infantis – argumenta que a proposta da Educação Infantil
nasce de duas experiências: primeiro, da demanda das mulheres que
participavam de várias frentes de resistência, como por exemplo, as que
faziam parte do Sindicato dos Profissionais da Educação, no interior do
Ceará. Ao nos relatar essa experiência, Maria de Jesus recupera a memória
de sua participação nesse processo, anterior à sua inserção como militante
no MST. Nesse período, participou ativamente no movimento sindical,
cuja principal bandeira de luta era a construção de creches nos locais de
trabalho.
A segunda experiência adveio da necessidade de participação das
mães militantes nos diversos espaços de formação política organizados
pelo MST. Maria de Jesus observou que algumas mulheres se afastavam do
Movimento por não terem um espaço educativo dedicado aos seus filhos
(as) e que lhes permitisse participar das várias atividades desenvolvidas
pelo MST. Tal demanda foi discutida pelo Setor de Educação do Ceará,
13
Em entrevista realizada durante a realização de nossa pesquisa de campo. Maria de Jesus
dos Santos é militante do MST-Ce desde o ano 1992. É considerada a fundadora da proposta
educativo-pedagógica das Cirandas Infantis.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 137

conjuntamente com Maria de Jesus que já propunha a proposta da Ciranda


Infantil como uma alternativa à formação educativa das crianças e para
viabilizar a participação política e produtiva das assentadas.
Na verdade, Maria de Jesus tinha um sonho. Em suas palavras,
“a questão do sonho é sempre presente; todo educador é movido por
sonhos”14. No ano de 1995, Maria de Jesus deu a luz à sua primeira filha.
Por tal razão, voltar a atuar na militância era um grande desafio, uma vez
que teria que conciliar a maternidade com as responsabilidades e atividades
no Movimento. O fato de não ter um espaço educativo para deixar os
filhos dificultava uma maior participação. Em relato diz:

Eu tinha um sonho: primeiro eu sonhava que nós criássemos


(não pensando só em mim, mas nas mulheres) um ônibus
que fosse uma creche itinerante, com tudo que tivesse
direito para as crianças, que onde nós fossemos nos reunir,
onde nós fossemos organizar um acampamento, a gente
levava o ônibus.

É válido salientar que outro aspecto fundamental para o surgimento


da Ciranda Infantil era a necessidade de garantir um espaço que atendesse
às demandas de formação educativo-pedagógica da criança na primeira
infância. Um espaço no qual as crianças pudessem realizar atividades
de crianças, como crianças e, assim, gradativamente deixar de ocupar
os mesmos espaços dos adultos. Isso porque, a ausência de um espaço
específico para que as crianças manifestassem suas necessidades, seus
interesses e seus sentimentos, desembocava em uma situação de incômodo,
em que estas crianças terminavam sendo consideradas inoportunas.
Ademais, a presença da Ciranda Infantil evitava situações de desconforto
e advertência para as mães durante a realização de algum curso ou nas
demais atividades realizadas pelo MST.
Assim nasce a Ciranda Infantil no MST, um espaço educativo
próprio para a criança de zero a seis anos de idade (embora também
atenda crianças de até 10 anos de idade). As Cirandas Infantis constituem
14
Em entrevista realizada durante pesquisa de campo.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


138 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

um local de educação não formal e são mantidas pelas Cooperativas,


Centros de Formação e pelo próprio Movimento. São espaços que buscam
consolidar uma formação educativa, desde uma perspectiva lúdica e de
vínculo orgânico com a luta do MST.
A abordagem pedagógica da Ciranda Infantil contempla a ludicidade
própria das crianças Sem Terrinha, reconhecendo-as como protagonistas
de seu processo educativo. São organizadas com base na Pedagogia do
Movimento, com o intuito de igualmente formar ao sujeito histórico-
político Sem Terrinha e, por conseguinte, fortalecer a organicidade do
MST. Para tanto, nas atividades pedagógicas, as crianças são instigadas
a desenvolver a cooperação; viabilizar uma interação das mesmas com
outros setores do MST, ao mesmo tempo em que constrói sua própria
reflexão, como crianças, em torno dos seus direitos e de seu papel político
na luta pela terra, pela educação, por reforma agrária (SALES e BARBOSA,
2016).
Por outro lado, conforme mencionado, há a preocupação em garantir
a formação das educadoras e educadores infantis, além de promover
junto aos assentamentos e acampamentos atividades que aportem ao
desenvolvimento da Educação Infantil, como por exemplo, a produção de
materiais didáticos, palestras, seminários, oficinas, entre outras atividades,
como prática formativa do coletivo com relação à Infância Sem Terra e
seu vínculo orgânico com o MST (MST, 2004).
Há duas experiências de Ciranda Infantil no MST, quais sejam: a
Ciranda Infantil Permanente, que acontece quando está organizada dentro
de um assentamento ou acampamento, em uma Cooperativa de Produção,
nas escolas de formação educativo-política do MST, entre outros espaços
físicos do Movimento. O critério da Ciranda Infantil Permanente consiste
em que o processo seja organizado com um público infantil mais fixo,
com periodicidade e em encontros mais frequentes.
A segunda experiência é a Ciranda Infantil Itinerante, que acontece
em diferentes espaços de atuação política do MST, como as ocupações,
cursos, reuniões, congressos, marchas, enfim, no movimento dialético da
luta pela terra. Seu caráter itinerante expressa sua forma de organização
em movimento, o que assegura a presença das famílias, das crianças e das

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 139

educadoras e educadores infantis nos diferentes espaços de atuação


política do MST, cumprindo com os postulados da formação educativa
e política mediada pela Pedagogia do Movimento. Ambas as experiências de
Cirandas Infantis são constituídas por um espaço educativo da vivência
de ser criança Sem Terrinha, que lhes permite desenvolver sua ludicidade
e cultivar a mística da resistência, tendo como embasamento teórico e
político os valores e princípios organizativos e formativos do MST
(BARBOSA, 2015b).
A proposta pedagógica vivenciada nas Cirandas Infantis do MST
é um construto cotidiano e de caráter interdisciplinar. Vale ressaltar, que
o Movimento tem incluído em sua prática pedagógica o caráter lúdico
da aprendizagem. Nesse espaço educativo, as crianças Sem Terrinha
constroem as relações entre si, com os adultos e com o mundo, aprendem a
dividir o lápis, o brinquedo, a merenda, constroem suas identidades de Sem
Terra; também inventam, criam e recriam sua relação consigo mesmas e
com a bandeira política do MST. Ademais, o grande diferencial da Ciranda
Infantil é que além de ser um espaço de brincadeiras, de encontro entre as
crianças, desenvolve também uma prática pedagógica voltada à formação
de um sujeito histórico-político Sem Terrinha, o que lhe confere um caráter
de educação emancipadora. Por exemplo, quando há atividades políticas
e de formação do MST, sempre é definido na programação um momento
para que as Crianças Sem Terra apresentem aos adultos as atividades que
estão a desenvolver na Ciranda Infantil.
A Ciranda Infantil também é um espaço que garante os cuidados
básicos das crianças e de seu processo educativo. Com respeito a
este aspecto, é fundamental a formação das educadoras e educadores
infantis. Inicialmente, o perfil das educadoras e educadores do MST não
contemplava uma formação específica no campo da Educação Infantil,
dado que normalmente quem assumia essas atividades eram as mães, pais,
uma jovem, um jovem, com baixa escolarização e conhecimentos sobre a
infância e sobre a criança dessa faixa etária.
Entretanto, havia a consciência de que o trabalho pedagógico
com crianças requer de muita atenção e acompanhamento, além de
uma formação adequada no campo educativo-pedagógico relacionado à
Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018
140 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

Educação Infantil. Sendo assim, o Setor de Educação definiu dois eixos


básicos indispensáveis à formação desses educadores infantis: a construção
de um vínculo afetivo com a criança e o desenvolvimento das habilidades
básicas para seu cuidado, seu atendimento e sua educação.
Com base nessa reflexão, o MST organizou a Primeira Oficina de
Educadoras e Educadores Infantis, em 1996, com o objetivo de discutir o
conceito de infância e as diferentes fases de seu desenvolvimento, como a
fala, os processos de sociabilidade das crianças, seus direitos, seus espaços
lúdicos, entre outros aspectos relacionados à psicologia da infância.
A segunda oficina aconteceu em 2007 e tinha por finalidade contribuir
com elementos teórico-pedagógicos relacionados à formação educativa
na infância, em articulação com o processo de organização das Cirandas
Infantis na base do Movimento, ademais de aprofundar o debate acerca da
função educativa e política das Cirandas Infantis para o MST.
Concretamente, a primeira experiência de Ciranda Infantil Itinerante
aconteceu no Ceará, em outubro de 1996, com o nome ‘‘Ciranda Infantil
Paloma’’ (em homenagem a uma criança que tinha morrido em um dos
assentamentos)15. Em sua constituição teve apoio do UNICEF16 e sua
intencionalidade educativo-pedagógica consistia em ofertar atendimento
ao grande número de crianças presentes nos encontros de formação
dos adultos do MST. De igual maneira, buscava consolidar processos
educativos, organizados em uma rotina diária, tempos e espaços
destinados à formação educativo-política das crianças Sem Terrinha que
acompanhavam suas mães.
Neste sentido, a Coordenação Estadual do MST-Ceará,
conjuntamente com as educadoras e as mães, elaboraram um documento
para definir as responsabilidades e atribuições de todos os sujeitos
envolvidos na Ciranda Infantil, com o intuito de garantir uma adequada
dimensão pedagógica às atividades desenvolvidas com as crianças nos
diferentes espaços formativos do Movimento.
15
Conforme registro em diário de campo em diálogo informal realizado com Maria de Jesus
Gomes.
16
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância. Desenvolve no MST um programa
voltado para o atendimento das necessidades básicas da criança e do adolescente.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 141

Em âmbito nacional, a primeira Ciranda Infantil Itinerante Nacional


aconteceu no marco do Encontro Nacional das Educadoras e Educadores
da Reforma Agrária – ENERA, entre os dias 28 a 31 de julho de 1997, no
campus da Universidade de Brasília – UnB, com a participação de 80 crianças
de todo o país. Muitos foram os desafios encontrados nessa primeira
experiência de Ciranda Infantil Nacional: a organização de um espaço
que permitisse o pleno desenvolvimento das atividades pedagógicas com
as crianças; formar as educadoras e educadores infantis (a maioria não
tinha experiência com o trabalho pedagógico com crianças, apresentavam
dificuldade para desenvolver brincadeiras, as cantigas de roda, etc.). Outro
desafio era o fato da maioria das educadoras e educadores infantis não
utilizarem o planejamento feito pela Coordenação Nacional do Setor de
Educação. Neste sentido, a partir dessa primeira experiência nacional ficou
decidido que para as próximas Cirandas Infantis, o planejamento deveria
ser feito conjuntamente com as educadoras e educadores infantis.
Paulatinamente foram sendo incorporadas outras experiências de
Ciranda Infantil Itinerante. Assim, no ano de 2000, o Setor de Educação
organizou uma Ciranda Infantil Itinerante durante o IV Congresso
Nacional do MST, com a presença de 320 crianças filhas(os) de militantes
que participavam como delegados(as) vindos(as) de 23 estados do Brasil.
Esta Ciranda tornou-se uma referência para a organização das próximas
Cirandas Infantis, uma vez que se alcançou a intencionalidade pedagógica
com as atividades desenvolvidas com as crianças, oportunizando a troca
de saberes e de experiências entre as mesmas.
Em 2007, no V Congresso Nacional do MST17, foi organizada
a Ciranda Infantil Paulo Freire, com a presença de 1000 crianças (de
0 a 10 anos de idade) e 400 educadores e educadoras infantis. Para a
realização desta Ciranda Infantil, o MST realizou uma formação para os
coordenadores estaduais da ciranda, que aconteceu na Escola Nacional
Florestan Fernandes, entre os dias 12 a 16 de maio de 2007. O principal
objetivo era que esta formação fosse reproduzida nos demais estados,
17
O V Congresso do MST aconteceu nos dias 11 a 15 de julho, em Brasília, com 15 mil
delegadas e delegados vindos de todos os assentamentos e acampamentos do MST em todo
o Brasil.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


142 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

garantindo a formação prévia das educadoras e educadores infantis,


sobretudo daqueles que participariam do V Congresso Nacional.
No VI Congresso Nacional do MST, a Ciranda Infantil Paulo Freire
contou com a participação de aproximadamente 1.000 crianças Sem
Terrinha e 150 educadoras e educadores infantis. Conforme Elisângela
Carvalho18, coordenadora da Ciranda Infantil Paulo Freire, o processo de
organização da ciranda ocorre cinco meses antes do Congresso Nacional
e em dois níveis, a saber: a oficina nacional, com o objetivo de construção
do planejamento educativo-pedagógico para os cinco dias de Congresso.
O segundo momento é a formação de cada educadora e educador infantil
em seu próprio estado.
Ao acompanharem seus pais na luta pela terra e pelo direito à
educação, os Sem Terrinha tornam-se sujeitos construtores de um processo
transformador, alicerçado em ideais, em uma visão prospectiva de galgar
os caminhos para a transformação de sua própria realidade, tendo como
referência os princípios políticos da organicidade e coletividade. Portanto,
a inserção ativa das crianças nas lutas, sobretudo, na luta pela terra, por
escola e dignidade propicia a formação de uma consciência crítica desde os
primeiros passos da formação humana, isto é, durante a própria infância.
Esse é um processo construído nos espaços de atuação política do
MST, como também nos acampamentos e assentamentos, nas atividades
cotidianas realizadas nas escolas do campo e nas Escolas Itinerantes, na
busca permanente por assegurar que as atividades formativas da escola
contemplem a dimensão política e identitária da luta do MST.
Conforme mencionado no artigo, o MST se considera como o
grande educador das crianças Sem Terrinha (MST, 2017). É em meio ao
cotidiano da resistência no campo, no confronto direto do latifúndio da
terra e do modelo econômico preconizado pelo capital que as crianças Sem
Terrinha constroem sua identidade política e o conjunto de aprendizagens
que associam seus conhecimentos à luta pela Reforma Agrária.

18
Em http://www.resumenlatinoamericano.org/?p=2215

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 143

DOS AVANÇOS, DESAFIOS E BANDEIRAS DE LUTA DA INFÂNCIA


SEM TERRA: REFLEXÕES FINAIS

Na dialética da luta pela emancipação camponesa latino-americana


cobra vitalidade o papel político desempenhado pelas crianças Sem
Terrinha. Isto porque na história da resistência nacional e internacional,
sempre foram os adultos, especialmente os homens, aqueles que figuram
(ou são reconhecidos) como sujeitos impulsionadores de processos
políticos. Portanto, é fundamental dar visibilidade à participação direta das
crianças em movimentos sociais e organizações populares, no sentido de
articulação de um projeto político próprio, tecido organicamente com um
coletivo em movimento.
O MST se desafiou a construir sua compreensão em torno da
Infância Sem Terra, ao reconhecer a presença em movimento das crianças Sem
Terrinha, inclusive reconhecendo-as como cultura nos diferentes espaços
de luta e formação política do Movimento (MST, 2017). Nessa trajetória,
o MST se sentiu instigado a pensar a inclusão política dos pequenos na
luta pela terra e pela reforma agrária. E mais: a debater o próprio conceito
de infância em contextos rurais, em perspectiva histórica e política. Nessa
direção, é possível afirmar a existência de uma concepção da Infância Sem
Terra, conceito em construção e em estreita relação com a valorização da
criança e da infância na perspectiva da luta camponesa e da realização da
Reforma Agrária.
Em um momento em que se consolida um golpe político no Brasil
não são poucos os desafios postos no campo popular e, sobretudo, para
os movimentos sociais do campo, sobretudo com relação aos cortes
orçamentários e as descontinuidades do PRONERA, ao incremento
do fechamento das escolas do campo e à ofensiva do agronegócio nos
territórios e na disputa educativo-pedagógica das escolas (LAMOSA,
2016; PERICÁS, 2017; BARBOSA, 2017; 2018,). Para o caso específico
dos Sem Terrinha, tais desafios são incorporados a sua agenda política
como crianças. Sendo assim, uma das principais bandeiras de luta dos
Sem Terrinha está relacionada diretamente com a reivindicação do direito
à educação: dar continuidade à Campanha Fechar Escola é Crime, ao
Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018
144 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

mesmo tempo em que se reivindica a implementação de Políticas Públicas


Educativas específicas para a Infância no e do campo, seja na ampliação
das escolas do campo em áreas de assentamentos da Reforma Agrária,
como também para a formação das educadoras e educadores infantis.
Em 2018, o Setor de Educação realiza o I Encontro Nacional dos
Sem Terrinha. Um diferencial desse encontro consiste na participação
direta de 30 crianças e adolescentes na oficina preparatória, realizada em
setembro de 2017. Conforme Márcia Ramos, do Setor de Educação:19

Pra nós, é importante que as crianças, desde pequenas,


convivam com esse processo organizativo, que sejam
organizadas, que aprendam desde pequenas – principalmente
nesta conjuntura agora, de ‘Escola sem Partido’, de golpe
– a serem críticas, a não aceitarem as imposições que são
colocadas pra elas.

Portanto, no I Encontro Nacional dos Sem Terrinha há a intenção


de debater os impactos da ‘‘Escola sem Partido’’ no processo educativo
corrente nas escolas, sobretudo no retrocesso de uma perspectiva educativa
emancipadora. Almeja-se, também, evidenciar a problemática histórica do
acesso à educação nos contextos rurais, que se reflete no fechamento de
24 mil escolas em todo o país.
De igual maneira, o Encontro visa fortalecer a agenda política
dos Sem Terrinha com relação à alimentação saudável na perspectiva da
Educação do Campo e da agroecologia, projeto político que se contrapõe
ao agronegócio e seus impactos ambientais, sociais e econômicos para os
povos do campo.
No que concerne ao avanço na compreensão da Infância Sem Terra e
do processo educativo dos Sem Terrinha, o MST tem por diante o enorme
desafio de avançar na concepção da Infância Sem Terra na perspectiva
do Movimento e, em particular, para construir estratégias políticas que
permitam avançar na formação das educadoras e educadores infantis. A
19
MST lança 1º Encontro Nacional dos Sem Terrinha. Disponível em: https://www.
brasildefato.com.br/2017/09/07/mst-lanca-1o-encontro-nacional-dos-sem-terrinha/

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


A infância sem terra em movimento... 145

aprovação da PEC 55 e da MP 746/2016 impactaram na redução de um


dos principais Programas conquistados pelo MST, a saber, o Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA): em 2016, os
recursos chegavam a R$ 30 milhões e, em 2017, caíram para 11,8 milhões.
A previsão é de que em 2018 se reduza ainda mais o montante, com a
liberação de apenas R$ 3 milhões para o Programa. Tal redução prejudica
o processo de formação permanente dos educadores vinculados ao MST,
ao mesmo tempo em que cria os mecanismos legais para anular ou frear
processos educativos de caráter emancipatório.
Entretanto, se pensarmos a dimensão formativa do próprio
MST, vemos que outro desafio permanente consiste em manter viva a
Pedagogia do Movimento na perspectiva da Infância Sem Terra, por meio
de uma pedagogia voltada para a realidade das crianças do campo, que
fortaleça sua identidade Sem Terra, haja vista que, ao estudar numa escola
convencional, os (as) filhos (as) dos (as) trabalhadores (as) rurais acabam
expostos à iminente perda da identidade camponesa.
Um grande desafio à Escola Itinerante e à Ciranda Infantil é a falta
de políticas públicas para a Educação Infantil do e no Campo. Desta forma,
cabe aqui uma reflexão: embora o Estado seja um sujeito que deve garantir
institucionalmente os direitos, na prática não garante a emancipação. Neste
sentido, limitar a Educação Infantil do e no campo apenas ao âmbito dos
direitos, é descartar os esforços do MST no que concerne a emancipação
como princípio e projeto político. Vendo por esse ângulo, a autonomia na
organização do trabalho pedagógico nas Escolas Itinerantes e nas Cirandas
Infantis tende a limitar-se à perspectiva institucional dos direitos e ainda
será longo o caminho para que se alcance uma educação emancipatória.
Assim, fica evidenciada a grande bandeira de luta pela educação
infantil por parte do MST. Sem dúvida é indispensável travar essa luta pela
garantia dos direitos das crianças, porém, essa luta também deve garantir
o direito à educação para a ação da transformação defendida pelo MST.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 119-148, fev./jun. 2018


146 Lia Pinheiro Barbosa e Mirna Sousa Sales

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Texto recbido em 12/12/2017 e aprovado em 13/04/2018.

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“SÓ SE VIVE DE VERDADE NO CAMPO”:
NOTAS ETNOGRÁFICAS DE UMA PESQUISA
COM CRIANÇAS NUM POVOADO RURAL EM
MOÇAMBIQUE

Marina Di Napoli Pastore1

RESUMO: Em Moçambique, poucas são as políticas ou estudos sobre as crianças em meio


rural, do mesmo modo como as imagens sobre/das crianças e infâncias moçambicanas
por um viés positivo, do dia-a-dia, da participação e das potências. Geralmente marcadas
por ausências e privações de direitos, os estudos, pesquisas e políticas tem se ancorado
em visões generalistas e pré-concebidas das infâncias rurais moçambicanas. Como
pensar nas crianças e infâncias através de uma perspectiva que aborde a diversidade
cultural, as diferenças e interfaces possíveis e existentes nos mais diversificados cenários
moçambicanos? A partir de tais indagações, este artigo é fruto de uma experiência
etnográfica em uma comunidade rural ao sul de Moçambique, continente africano cujo
objetivo é trazer para a discussão a relação das crianças com a produção de cultura e
conhecimentos entre elas e sua relação com o meio em que vivem, contextualizando esse
lugar, suas práticas e experiências através de estudo de campo realizado no ano de 2017.
Traz-se para discussão as diversidade das infâncias e de suas atividades, sua ligação com o
meio e ancestralidade, numa tentativa de ampliar os diálogos e perspectivas sobre crianças
em áreas rurais.
PALAVRAS-CHAVE: Infâncias; Crianças; Meio Rural; Moçambique; Diversidade
Sociocultural; Etnografia.

1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade
Federal de São Carlos. Financiamento: CAPES. Pesquisadora membro do Núcleo Amanar -
Casa das Áfricas. E-mail: marinan.pastore@gmail.com
150 Marina Di Napoli Pastore

“ONLY LIVING TRULY IN THE FIELD”:


ETHNOGRAPHIC NOTES OF A RESEARCH
WITH CHILDREN IN A RURAL IN
MOZAMBIQUE

ABSTRACT: In Mozambique, there are few policies or studies on children in rural areas,
in the same way as the images on children and childhood/Mozambique by a positive
bias, of everyday life, and participation of the powers. Usually marked by absences
and deprivation of rights, studies, researches and policies has been anchored in visions
generalists and pre-designed of Mozambican rural childhoods. How to think about all the
children and childhoods through a perspective that deals with cultural diversity, differences
and possible and existing interfaces in more diverse scenarios Mozambicans? From such
questions, this article is the result of an ethnographic experience in a rural community
South of Mozambique, the African continent whose goal is to bring to the discussion the
relationship of children with the production of culture and knowledge between them and
your relationship with the environment in which they live, contextualizing this place, their
practices and experiences through field study performed out in the year 2017. Brings to
discussion the diversity of childhood and its activities, your connection to the middle and
ancestry, in an attempt to broaden the dialogue and perspectives on children in rural areas
KEYWORDS: Childhoods; Children; Rural Areas; Mozambique; Sociocultural Diversity;
Ethnography.

INTRODUÇÃO

A infância moçambicana, muitas vezes tida como uma unidade


generalista de ser e existir no mundo, é apresentada, em sua grande
maioria, numa visão em negativo e de faltas e ausências, como nos
documentos e políticas nos quais a preocupação predominante está ligada
a problemáticas delimitadas como o adoecimento, a falta de abrigamento,
a vulnerabilidade social, a adoção, a situação de rua, entre outros. Nenhum
deles preocupou-se, porém, em compreender a infância no país e nem
dialogou diretamente com as crianças. Embora temas decorrentes de
pautas levantadas por alguns dos órgãos oficiais, o material bibliográfico
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“Só se vive de verdade no campo”:... 151

sobre a infância ainda permanece escasso e a preocupação com o dia-a-


dia das crianças, seus modos de vida, responsabilidades e direitos a partir
de uma visão contextual é, ainda, praticamente inexistente (salvo alguns
trabalhos realizados no âmbito da sociologia da infância, como é o caso da
Tese de Doutoramento de Elena Colonna, no qual traz em sua temática
irmãos que cuidam de irmãos). A infância acaba sendo assumida de forma
genérica e abstrata, ocultando ou deixando de explicitar sua definição e as
premissas que orientam sua concepção.
A infância tem adquirido, em tempos e lugares diversos,
significados distintos, devendo ser considerada como uma “categoria
social contextualizável e mutável” (HONWANA, 2013, p. 18), ou seja,
são categorias sociais que variam de acordo com o espaço-tempo em que
se encontram. Estabelecer outras bases para a compreensão das crianças
africanas, e aqui as moçambicanas, tem se tornado imperativo nos estudos
atuais, uma vez que possuem experiências diversas do padrão de vida
ocidental. Como brincam as crianças em Moçambique? Elas produzem
cultura? Como participam da vida cotidiana, nas trocas de saberes e de
interpretações sobre o que as rodeiam? Estas questões acabaram por
suscitar interesses e motivações de ir atrás das experiências das crianças,
vivenciando com elas o dia-a-dia no campo, e trazendo reflexões a partir
de processos de escuta e de dar voz ativas a elas no momento da pesquisa.
Este artigo traz uma vivência com as crianças que vivem em
Nhandlovo, povoado rural localizado no distrito de Massinga, província
de Inhambane, Moçambique, seus modos de vida e principais atividades,
num diálogo permanente com as vozes e olhares das crianças para as
situações e experiências, produções e modos de vida que partilham, criam,
transformam, englobam e participam. O objetivo é retratar uma das
faces das infâncias em Moçambique, com ênfase na infância rural e sua
invisibilidade perante os estudos e políticas infantis.
Em um primeiro momento, é apresentado o panorama das leis e
dados oficiais sobre as crianças em Moçambique, a partir de uma revisão
bibliográfica e da literatura específica. A discussão da etnografia enquanto
metodologia da pesquisa é trazida, seguida de cenas das vivências com as
crianças e as experiências partilhadas durante o trabalho de campo. Por
Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018
152 Marina Di Napoli Pastore

fim, o artigo traz uma discussão sobre as culturas infantis e a relevância


de pesquisas com crianças a partir de vivências em contextos específicos,
com valorização das vozes e participação das crianças em seus diversos
meios.

A INFÂNCIA EM MOÇAMBIQUE: DADOS E POLÍTICAS

Demograficamente, África é um continente extremamente


jovem, Com cerca de 44% da população com menos de 15
anos, é a região mais jovem do mundo. (...). Estamos, de
facto, a viver na era da juventude. (HONWANA, 2013, p.
18-19)

Moçambique, país localizado ao sul do continente africano, é


considerado jovem. A população do país atualmente é calculada em
27.843.933 milhões de habitantes, da qual 14.808.443 milhões são
crianças, consideradas pela legislação moçambicana enquanto indivíduos
dos zero aos dezoito anos, e desses, 12.321.913 possuem entre 0 aos 14
anos de idade, faixa etária considerada como dependente. Na área rural,
por sua vez, está concentrada a maior parte das crianças moçambicanas,
totalizando em 10.493.715 dos zero aos dezoito anos e, destes, 8.875.440
possuem entre os 0-14 anos de idade (INE, s/d).
Moçambique é dividido em onze províncias, sendo uma delas
Inhambane, localizada ao sul do país. Segundo a projeção do Instituto
Nacional de Estatística (INE), a população atual é de 27.843.933. Massinga,
distrito situado na zona central da província, é o local em que o estudo
foi realizado. A superfície do distrito é de 7.426 km² (REPÚBLICA DE
MOÇAMBIQUE, 2014) e o total da população é de 207.982 (INE, s/d).
Segundo registros oficiais do ano de 2014, o número de crianças dos 0
aos 14 anos era de 73.315 (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 2014, p.
19). Segundo o relatório, o fluxo de migrações dentro do distrito é baixo
– cerca de 13%.
Assim como a maior parte da população de Moçambique, os
moradores de Massinga também vivem em área rural, sendo que a taxa

Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018


“Só se vive de verdade no campo”:... 153

de urbanização do distrito é de 11%, segundo relatório da República de


Moçambique de 2014, e a principal atividade econômica é a agricultura.
Para Sixpence e Mutisse (2008), o crescimento da economia do país nos
últimos anos é em grande parte voltado a este setor, que, além de empregar
muitas famílias, é o meio de subsistência das mesmas, sendo a maior parte
do cultivo para uso doméstico.

A agricultura constitui o setor mais importante na economia


de Moçambique, contribuindo com 50% do produto
nacional bruto (PNB) e empregando 85% da população
ativa. O setor é praticamente dominado pela agricultura em
pequena escala (subsetor familiar), que envolve cerca de 3
milhões de famílias no país, ocupando 95% (3,48 milhões
de hectares) da terra cultivada. (SIXPENCE & MUTISSE,
2008, p. 28)

A infraestrutura do distrito é precária, não possuindo saneamento e


serviços básicos de saúde e assistência para toda a população. Segundo o
relatório do governo, “a maioria das famílias (76%) usa o petróleo como
fonte de energia; cerca de 30% das famílias tem acesso a fontes de água
potável; os pequenos sistemas de abastecimento canalizado nas vilas do
distrito cobrem 12% das casas; e somente 16% das famílias usam sistemas
de saneamento” (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 2014, p. 24).
Com a maior parte da produção e da população em meio agrícola,
as políticas públicas e os investimentos às áreas rurais ainda andam na
contramão dos números. Os serviços distritais estão divididos entre
atividades econômicas; saúde, mulher e ação social; educação, juventude e
tecnologia; e planeamento e infraestruturas. No que diz respeito às políticas
voltadas para a infância em meio rural, há ainda uma grande lacuna, sendo
que as ações e políticas para as crianças são pensadas dentro das ações do
serviço distrital da educação ou o de saúde, mulher e ação social, sem ter
um órgão próprio para suas demandas.
Os dados de levantamento e ações dizem respeito ao combate à
violência doméstica, analfabetismo, crianças órfãs e portadores de HIV-

Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018


154 Marina Di Napoli Pastore

AIDS. Além destes, há um grande número de políticas, relatórios e


campanhas contra as piores formas de trabalho infantil. Em relatórios
oficiais (MICS, 2008), cerca de 22.2% de crianças entre os 5-14 anos estão
envolvidas em trabalho infantil, de um universo de 12,6 milhões de crianças.
As principais atividades desenvolvidas estão nos setores da agricultura, da
pesca, da caça e da pecuária, inseridos principalmente nos centros rurais
(25%) (PASTORE & CELESTINO, 2018). Uma das principais questões
destes relatórios é que não são feitas considerações contextualizadas ao
espaço-tempo específicos dos locais em que ocorrem, bem como não tem
relatos ou voz das crianças e adultos.
Embora o Estado moçambicano tenha adotado a Declaração
dos Direitos da Criança, em 1959, pela Organização das Nações Unidas
(ONU) e ratificado a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) em
1990, em que a criança passou a ser vista como um sujeito de direitos e
foram criadas condições para que a criança fosse considerada em todas
as decisões que lhes afeta segundo seu interesse superior, sendo também
signatário da Carta Africana (1990) sobre os direitos e bem-estar da
criança, reforçando a necessidade ao respeito, cuidados e proteção aos
direitos das crianças, não se tem relatos de documentos que tragam as
crianças em seus contextos de vida diários, cotidianos, bem como dos
seus modos de produção de cultura, do brincar e das responsabilidades
enquanto formação da pessoa moçambicana.
Os dados e políticas sobre e para infância em meio rural no país são
insuficientes, salvo aqueles que vão ao encontro dos interesses das políticas
internacionais, como o caso da ONU, UNICEF, Save the Children, entre
outros. As crianças moçambicanas que vivem em meio rural são vistas
e pensadas pelas faltas, explorações, precariedades e abusos, do mesmo
modo como são pensadas (ou não) as políticas para elas.
Se quisermos pensar as crianças e nas crianças, é preciso que passemos
a abordar os universos das crianças e suas realidades, contextualizadas,
para então pensar em abordagens generalistas, ou deixa-las de lado, e
pensar em abordagens que tenham a criança como protagonista de suas
ações nos mundos.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018


“Só se vive de verdade no campo”:... 155

Para entendermos o que é a criança, e o que é a infância, precisamos


primeiramente entendê-la enquanto categoria geracional, estrutural e
enquanto construção social, que é heterogênea de acordo com a sociedade
a qual se insere, seja por razões econômicas, culturais, sociais, políticas,
de gênero, entre outras. Como nos afirma Cohn, “a experiência da
criança e do ser criança é cultural e só pode ser apreendida em contexto”
(2005, p. 14).
Quando o cultural é trazido à cena, passa a englobar não só os valores
ou crenças que constituem uma cultura, mas aquilo que os conforma, que
possui sua lógica particular e coletiva através de um sistema simbólico
representado pelos atores sociais que o integram, dando sentido às suas
experiências. Ou seja, cultura enquanto aquilo que faz as pessoas viverem
em sociedade compartilhando sentidos e significados.
O esforço aqui é o de compreender e discutir as crianças que vivem
em um povoado da área rural enquanto produtoras de cultura, protagonistas
de suas histórias e modos de agir no mundo ao qual pertencem, partilham,
transformam e são transformadas. Pensar em como as crianças, nas relações
que estabelecem entre si e nas formas de ação social que constroem nos
espaços-tempos constituem suas culturas infantis e são também por elas
constituídas (BORBA, 2007); atores sociais não por interpretarem um
papel que não criaram, mas por criarem diversos papéis e modos de ser e
fazer enquanto vivem em sociedade (COHN, 2005).

PESQUISA ETNOGRÁFICA COMO ENCONTRO COMUM

(...) usando-se da etnografia, um estudioso das crianças pode


observar diretamente o que elas fazem e ouvir delas o que
têm a dizer sobre o mundo. (COHN, 2005, p. 10)

Segundo Colonna (2009), a infância constrói seus sentidos a


partir de “olhares e interpretações de indivíduos sociais e culturalmente
localizados”, sendo, de tal modo, um “fenômeno plural e relacional”
(COLONNA, 2009, p. 12), em que “estudar uma sociedade sem levar
em conta como as categorias socioetárias que a compõem, entre as
Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018
156 Marina Di Napoli Pastore

quais a das crianças, agem e pensam, é, antropologicamente, um estudo


incompleto” (COLONNA, 2009, p. 19 apud NUNES, 1999).
Estudar a infância significa estar “conectado à realidade local,
conhecer e reconhecer os valores e culturas existentes, que delineiam
os modos como a criança é vista e percebida” (PASTORE, 2015, p. 21).
Sabendo que a “experiência das crianças é cultural e só pode
ser entendida em contexto” (COHN, 2005, p. 14), a etnografia foi a
metodologia que tem permeado os recentes estudos sobre as infâncias,
notadamente no que diz respeito a este trabalho, num intuito de
compartilhar as experiências e as práticas diárias das crianças para
poder refletir com elas e sobre elas. Conhecer a visão das crianças
sobre o mundo que as rodeia, através de uma pesquisa etnográfica,
possibilitou viabilizar dispositivos para “encarar as vidas das crianças
estudadas como uma realidade complexa, marcada por luzes e sombras,
potencialidades e criticidades” (COLLONA, 2012, p. 4).
A etnografia permite acessar – pela observação, diálogo, convívio
e formas diferenciadas de registro – ações das crianças além dos sentidos
atribuídos a suas atividades, em seus universos de relações que são
“profundamente enraizados na sociedade e nos modos de administração
simbólica da infância” (SARMENTO, 2005, p.373). Neste trabalho,
considera-se a alteridade das infâncias e das crianças levando-se em conta,
também, os aspectos que as distinguem do outro-adulto (SOARES,
SARMENTO & TOMÁS, 2005, p.54).
Aproveito aqui para atentar a um conceito: estou nomeando
aqui as culturas infantis, e não culturas da infância. Isso porque, ao
meu entendimento e de acordo com os estudos com os quais venho
trabalhando, ao denominarmos “da infância”, caímos na armadilha
do reducionismo, sem atentar aos modos particulares que as diversas
infâncias podem ser – e parte do que elas podem representar nos
universos com os quais tive contato em Moçambique (COHN, 2005).
Por culturas infantis, nomeio os processos simbólicos que
permeiam e são partilhados nas ações das crianças, gerados nos meios
culturais e societários em que habitam e produzem conhecimentos,
saberes e práticas sociais. Dialogando com Sarmento (2004), há a
Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018
“Só se vive de verdade no campo”:... 157

compreensão de que as culturas infantis são resultantes dos modos


diferenciados, de dinâmicas sociais, bem como das relações sociais e as
estruturas das mesmas.
Sarmento coloca que “essa convergência ocorre na acção
concreta de cada criança, nas condições sociais (estruturais e simbólicas)
que produzem possibilidade da sua constituição como sujeito e actor
social” (SARMENTO, 2004, p. 374), o que reforça o direcionamento de
um entendimento sobre as relações sociais e meios aos quais a criança
está inserida, e não apenas a infância de maneira isolada. Sarmento e
Pinto defendem que “a interpretação das culturas infantis, em síntese,
não pode ser realizada no vazio social, e necessita de se sustentar na
análise das condições sociais em que as crianças vivem, interagem e dão
sentido ao que fazem” (SARMENTO & PINTO, 1997, p.11).
Para Barra (2015, p. 93), as especificidades das culturas infantis
são reveladas no “protagonismo das crianças como atores sociais, num
processo em que se acrescenta a novidade de ser criança e estar na
Infância.”, ou seja, ao entendermos que as crianças não só habitam
as sociedades e comunidades, mas também interagem e interferem
nelas como tal, desenvolvem processos de adaptação, apropriação,
reinvenção e reprodução realizadas por elas próprias, passamos a
considera-la como ator social que negocia, compartilha e cria cultura
com seus pares (CORSARO, 1997; DELGADO & MÜLLER, 2005)
e o modo como realiza tais processos, deve ser apreendido em estudos
qualitativos e singularizados.

As culturas infantis constituem “(…) o mais importante


aspeto na diferenciação da infância” (SARMENTO,
2007:36) e emergem das práticas sociais quotidianas das
crianças, na medida em que são rebuscadas e reelaboradas
as práticas sociais e culturais das crianças, transmitidas pelos
grupos de crianças de várias idades dentro da geração infantil
e imbuídas de significações que são exprimidas, mantidas e
continuamente reconstruídas no seio das relações de força
que se produzem no todo social ajustadas historicamente.
(SARMENTO, 2002)

Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018


158 Marina Di Napoli Pastore

As variações sociais e as condições em que as crianças vivem são


fatores fundamentais para a heterogeneidade existente entre elas, pois,
além das questões individuais, há as de estrutura social na qual elas se
encontram, que acabam por delinear a posição social ocupada pela criança,
que, segundo Sarmento e Pinto (1997), mobiliza formas de ser e estar
dentro do contexto familiar e perante a estrutura ocupada, como modos
de socialização, valores, desempenho em atividades domésticas, aspirações
e estratégias familiares, entre outros.
As crianças, tal como as infâncias, devem ser compreendidas a
partir de contextos abrangentes, como sociedade e cultural às quais estão
inseridas

O estudo das crianças fora dos respectivos contextos


sociais de pertença poderia iludir numa categoria comum
a existência de diferenças essenciais à compreensão dos
seus modos diversos de agir socialmente. Parece por
isso indispensável considerar na investigação da infância
como categoria social a multivariabilidade sincrónica dos
níveis e factores que colocam cada criança numa posição
específica na estrutura social. Em simultâneo, é necessário
considerar os factores dinâmicos que possibilitam que cada
criança na interacção com os outros produza e reproduza
continuamente essa estrutura. Preconiza-se, deste modo,
uma perspectiva para a inteligibilidade dos mundos de vida
das crianças que não ilude a natureza individual de cada ser
humano, mas que a considera no quadro relacional múltiplo
e dinâmico que constitui o plano da estrutura e da acção
social. (SARMENTO & PINTO, 1997, p. 11)

Foi através da etnografia que este estudo, ainda em fase inicial,


buscou uma aproximação com o cotidiano das crianças que, muitas
vezes, acaba por ser invisibilizada não somente nas políticas, mas nas
publicações. A partir do reconhecimento das crianças como múltiplos-
outros, este estudo debruçou-se, também, sobre as noções de diversidade
cultural, culturas infantis e alteridade infantil, compreendendo que não

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“Só se vive de verdade no campo”:... 159

há uma gramática única, singular, da infância, mas que são múltiplas e


plurais, e que já não cabe falar de infância moçambicana enquanto
unidade geral e com regras pré-estabelecidas que são seguidas, muitas
vezes, nas políticas e programas governamentais.
Ao assumir as crianças como parceiras e criadoras de dados,
conhecimentos, cenários e tantas outras potências e potencialidades,
passamos a assumi-las como atores sociais plenos, e, também, suas
competências para a formulação de interpretações sobre seus mundos
e modos de vida, e como reveladores das realidades sociais nas quais
se inserem. Segundo Soares, Sarmento e Tomás (2005, p.54), um
papel que reconhece a criança como “sujeito de conhecimento, e não
de simples objeto, instituindo formas colaborativas de construção do
conhecimento nas ciências sociais que se articulam com modos de
produção do saber empenhados na transformação social e na extensão
dos direitos sociais”, permite a produção de espaços criativos e de
possibilidade reflexiva.
Segundo Sarmento (2002, p. 16), os estudos que buscam
conhecer as crianças impõem “(...) por suposto, conhecer a infância.
Isto vale por dizer que os itinerários individuais, privados e singulares
de cada criança só fazem completo sentido se perspectivados à luz das
condições estruturais que constrangem e condicionam cada existência
humana”.
Quais são, portanto, as implicações de se introduzir na vida
cotidiana de pessoas de uma outra cultura? Como estabelecer a relação
de proximidade sem esquecer-se como diverso? Para isto, foi necessário
aceitar o desafio de arriscar-se num lugar outro, no qual pesquisador e
pesquisado formaram uma parceria dialógica, numa construção diária e
processual de relação e vínculo, sem perder de vista que o processo de
construção de conhecimento é “uma realidade participada e partilhada”
(SOARES, SARMENTO & TOMÁS, 2005, p. 56).
No objetivo de dialogar com as realidades das crianças, as cenas
narradas são trazidas para romper com as imagens em negativo e com a
invisibilidade em que as crianças rurais se encontram em Moçambique,
numa compreensão de que os estudos com as crianças precisam encarar
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160 Marina Di Napoli Pastore

a vida das mesmas como “uma realidade complexa, marcada por luzes
e sombras, potencialidades e criticidades” (COLLONA, 2012, p. 4).

“LÁ É MATO, MATO”: CONTEXTUALIZANDO O LOCAL DO


ESTUDO

O povoado de Nhandlovo, localizado no distrito de Massinga,


Inhambane – Moçambique, foi o local onde a experiência etnográfica
ocorreu. A pesquisa, que contempla parte dos meus estudos doutorais,
se deu ali por um envolvimento pessoal da minha parte, da qual já tinha
trabalhado com uma das famílias que ali viviam em experiências anteriores,
porém na área urbana do país. A ideia de ir à campo em meio rural surgiu
após algumas conversas com moradores dos bairros urbanos enquanto
pesquisava sobre as crianças e seus saberes. Em uma das conversas com
um dos adultos, Florêncio, foi me dita a seguinte frase: “aqui na cidade
a vida é falsa, é tudo montado. Vive de verdade quem mora no mato”
(ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2017). Com essa frase,
começaram a surgir diversas questões: “o que fazem as crianças lá?”,
“quantas crianças tem na área rural?”, “quantas coisas fazem?”, “elas
trabalham?”, “elas ajudam?”, “elas brincam?”, “mas isso é ser criança?”,
entre outros.
Com tantos questionamentos que já não cabiam mais no meu eu-
pesquisadora em meio urbano, a vontade de ir à área rural foi aumentando.
Conversei com Vó Clemência, avó de Félix, que voltou a morar em sua
terra de origem, Nhandlovo, e me convidou para passar uns dias em sua
casa. Conversei com Félix sobre a possibilidade de irmos juntos, uma vez
que tenho dificuldade na língua xitsua, que é a língua falada na região, e
sabia que eles tinham dificuldades na compreensão do português; para
além disso, Félix sempre foi meu parceiro e temos criado essa relação, na
qual ele me ajuda nas traduções, transcrições, no contato inicial com as
demais crianças e no entendimento de situações.
Acertamos os detalhes e resolvemos passar cerca de um mês com
seus avós. A viagem foi longa, feita de ônibus, num percurso de 540km,
num total de 8 horas. Ao chegarmos em Massinga, foi preciso subir num

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“Só se vive de verdade no campo”:... 161

carro aberto para chegar até o subdistrito de Tevele e, então, andarmos até
o povoado de Nhandlovo. O percurso levou em torno de 40 minutos de
carro e mais 40 minutos de caminhada, em estradas de terra. A locomoção
por ali é insuficiente e tem um custo alto aos moradores, o que dificulta o
acesso à cidade e aos outros serviços oferecidos, como escolas de ensino
médio (colegial) e superior, saúde, entre outros.
Quando chegamos na casa de seus avós, fomos recebidos por eles
e pela chefe das 10 casas, posto reconhecido pelo chefe tradicional do
povoado, pelo Governo e, o principal, pelos moradores, que são quem
escolhem quem ocupa este cargo. A chefe de 10 casas é responsável
pelas casas do seu perímetro e por tudo que acontece ali: a ela ficou a
responsabilidade de saber quem eu era, o que fazia e como agia, aceitando
minha estadia ali e minha pesquisa, e reportando ao chefe de quarteirão e,
então, ao chefe tradicional. Tive encontro com todos eles, fui apresentada,
relatei sobre as pesquisas que vinha fazendo em áreas urbanas na capital
e meu desejo de explorar também uma parte da área rural. Após ter o
aceite deles, passei a observar algumas crianças, e a ser observada também,
e conforme iam se aproximando de mim, conversamos sobre o que eu
fazia ali e tive o aceite delas para poder lhes acompanhar, ir em suas casas
e estar com elas quando achavam que era conveniente. Por ser mês de
realização do censo demográfico nacional, as aulas estavam suspensas, o
que fez com que a escola acabasse por não englobar um dos espaços de
acompanhamento, neste primeiro momento.
Uma questão importante e inicial é em relação a ser adulta e
pesquisar crianças (PIRES, 2007). Venho me deparando com isso desde
2013, quando resolvi iniciar os estudos e pesquisas em Moçambique. Para
estar com as crianças é preciso estar disposto ao encontro com o Outro,
Outro este que possui muitas diferenças: idade; condições socioeconômica,
cultural e histórica; gênero (em alguns casos); línguas faladas e entendidas;
entre outras. A principal diferença naquele momento foi a cor da pele:
muitas crianças nunca haviam tido contato com alguém da cor branca,
sendo, dentro de seus imaginários, uma imagem vaga e fantasmagórica,
fazendo com que muitas crianças tivessem medo de mim, chegando a
correr e mesmo a chorar. Quando isso acontecia, eu não insistia neste
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162 Marina Di Napoli Pastore

contato e esperava o tempo da criança em chegar próximo a mim, me


tocar e conversar; houve vezes que isso não aconteceu e eu acabei por não
ver mais a criança, respeitando o seu limite de espaço-tempo que ficara
explícito no contato.
Ao realizar uma pesquisa com crianças, e não sobre elas - como
dito anteriormente -, é preciso construir, durante todo o processo, uma
atenção especial. Isto porque “tratar das populações infantis em abstrato,
sem levar em conta condições de vida, é dissimular a significação social da
infância” (KRAMER, 2002, p. 43). É preciso atentar todo o tempo para
a construção da concepção da criança enquanto sujeito da história e da
cultura, participante direto ou indireto da pesquisa, e ouvir o sim e não
implicado em cada momento, em cada processo.
Ao estar no povoado, com as crianças, foi possível conviver com
elas, com as famílias e em espaços outros, como o próprio espaço da
comunidade e outros povoados; foi possível observar seus trânsitos,
modos de compartilhar experiências e de criar cultura (DELGADO &
MULLER, 2005).
Situado num período de tempo específico e contextualizado,
durante o mês de julho de 2017, as experiências etnográficas permitiram
acessar as vivências e reconhecer as culturas, permitindo o diálogo. O uso
desta metodologia e do modo como foi conduzida a pesquisa pretendem
trazer para o debate o modo como a criança é pensada e vista a partir
de visões próprias das crianças, de uma perspectiva sociocultural e das
culturas infantis, discutidas no decorrer do texto.
Para contar as experiências levantadas em campo, as vivências com as
crianças assumiram, na forma de narrativas, os esforços de reconstituição
e descrição de momentos significativos e de reflexões temáticas. Busquei
guardar, na análise e na construção das narrativas, o olhar de quem
participou e partilhou pensamentos, valores, reflexões e vivências não só
na oralidade, mas, também, nas expressões, nas vivências e nas sutilezas da
construção de significados (CUNHA, 1997; COSTA & GUALDA, 2010).

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“Só se vive de verdade no campo”:... 163

VIVÊNCIAS ETNOGRÁFICAS: DIÁLOGOS, PASSAGENS E


DIZERES DAS CRIANÇAS EM NHANDLOVO.

Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas.


E me encantei.

Manoel de Barros

Conforme fui vivenciando os mais diversos modos de ser e estar,


numa primeira experiência em área rural, fui compreendendo a noção
de um real outro partilhado, numa realidade que era também, ao mesmo
tempo, imaginária e de sentidos ainda desconhecidos por mim, e o modo
como os fazeres das crianças me levavam, e tem me levado, a buscar a
infância enquanto trocas culturais, numa expressividade do ser criança
através do lúdico.
Passei a compreender que a própria vida das crianças, no espaço
da ludicidade e da brincadeira, traz à tona um mundo expressivo, de
experimentação, do sensível. A poética presente no cotidiano: nos gestos,
na vida.
Logo que cheguei em Nhandlovo, uma das primeiras conversas
que tive foi com o chefe tradicional: “o que já ouviste falar daqui? Posso
garantir de que foi que o campo é atrasado” – foi essa a primeira frase
que ouvi dele, em nossa primeira conversa de apresentação. Lembrei
do pai de Januar, na Matola, quando me disse o contrário: “só se vive
de verdade no campo. Essa vida aqui, na cidade, é falsa, é montada”
(ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2017). O que as frases
têm em comum é o quanto a vida no campo tem algo de misterioso e
mágico e, ao mesmo tempo, de desconhecido, de não reconhecimento
frente à vida nas cidades urbanas. Dentro desse mundo ainda encoberto
nos estudos e pesquisas, encontram-se as crianças, que passam a
aparecer apenas nas estimativas do trabalho escravo, em suas piores
formas, e nos índices de analfabetismo e abandono escolar.
Em minha primeira vivência em campo, pude observar, conviver
e compartilhar, com as crianças e suas famílias, ainda que de maneira
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164 Marina Di Napoli Pastore

inicial, seus modos de estar em comunidade, de realizar as tarefas, das


vivências das crianças, das trocas e partilhas, e dos locais de pertencimento
e significativos a elas. Em formas de narrativas, apresento alguns desses
momentos.
“Para conhecer caminhos é só sentir”: as crianças e a percepção dos
espaços.
Antes de chegar, sabia de antemão que a principal atividade ali, das
crianças e dos adultos, é a machamba (plantação e/ou horta, em xitsua). Félix
me mostrou os campos, me contou as histórias que sabia dos terrenos de
seus avós e, enquanto caminhávamos, me contou que era a primeira vez
que estava ali. Embora sendo a primeira vez, Félix parecia conhecer o
lugar como a palma de sua mão: sabia as ruas que tínhamos que pegar,
as árvores que demarcavam o terreno de seus avós, as que haviam sido
derrubadas por um forte vento em fevereiro passado, onde ficava o poço
de água, o caminho que pegaríamos para ir ao rio... Quando questionado
sobre os caminhos, ele dizia que “sentia. É só prestar atenção que você
sente”.
Em outros momentos, quando não sabíamos os caminhos, éramos
guiados pelas outras crianças, como na vez em que decidimos que
iríamos assistir a uma partida de futebol dos meninos mais velhos, mas
não sabíamos onde era o campo. Daniel, de 12 anos, afirmou que sabia
onde era e nos levou até a escola; porém, ao chegarmos, o jogo havia sido
transferido para outro lugar, próximo a estrada. Daniel não havia ido antes
na quadra, mas sabia como chegar: era só ouvirmos o som dos carros.
A escola ficava há 2,5km de distância da estrada, mas Daniel conseguia
perceber os sons dos carros e diferenciá-los dos que estavam indo em
direção à cidade e os que voltavam, indicando o caminho que pegaríamos
até a quadra. Após 40 minutos de caminhada, chegamos e assistimos à
partida de futebol.
Enquanto víamos o jogo, outras crianças se juntaram perto de
nós. Daniel disse a eles, rindo, que eu não conseguia ouvir o som dos
carros, fazendo as outras crianças rirem. Indaguei a elas como faziam
para distinguir os sons, e elas disseram “é só ouvir”. Um dos meninos,
Inocêncio, de 8 anos, completou “é só ouvir o que você quer ouvir. Tira

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“Só se vive de verdade no campo”:... 165

do ouvido o que não interessa. Hás de ouvir o carro, basta acostumar”


(ANOTAÇÕES CADERNO DE CAMPO 2, 2017).
A noção das crianças sobre o espaço e a percepção se davam de
modos diferentes no campo e na área urbana. Era preciso ouvir os pássaros,
as folhas, o vento e, então, tentar-se ao som que se buscava – como o dos
carros, no caso citado acima. Do mesmo modo era a percepção visual:
não era por nomes de ruas, por barracas ou casas, mas sim pela noção de
espacialidade de acordo com a natureza, com a direção da brisa, com o
som dos animais. Para Nunes (2011), cada sociedade tem seus códigos e
regras, que são expressados “em sentimentos, preferências por cores ou
sons, gestos, sentidos, modos de vestir ou cortar o cabelo, de se pintar e
ornamentar, de andar ou dançar... sempre em estreita relação com o corpo
e manifestando-se simbolicamente através deste” (p. 356).
Enquanto cultura produzida por elas, é também essa maneira de se
apropriar do espaço e de brincar com a natureza que as faz se apropriar do
mundo e conhecer a si próprias, o que não pertencem ao sistema da lógica,
cronológico, mas que vem de uma inteligência interna que é, ao mesmo
modo, coletiva, que produz significados expressivos e representativos
(CASA REDONDA, online).
Do mesmo modo, crianças andavam na companhia de outras
crianças, sem que fosse necessário a supervisão de um adulto. Em suas
próprias companhias, iam ensinando umas às outras os sentidos e direções,
os modos como era preciso estar conectado ao local e ao campo, às folhas,
ao pôr do Sol, ao barulho das águas. Estar no campo era sinônimo de
partilhar com o território, no sentido de terra, regras, sentidos e valores, a
construção de espaços possíveis.
Nos mais diversos espaços, sociedades e culturas, o que permite à
criança o estar num mundo outro é a possibilidade para o se descobrir,
conhecer caminhos, espaços, ambientes, fazendo com que haja uma
percepção de um mundo de imaginação e criatividade, e de um mundo real
com contextos específicos, dos quais as crianças integram, transformam,
criam e podem ser. (PASTORE, 2015)
“Para estar na machamba é preciso ter coração”: a terra e a relação com os
sentimentos.
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166 Marina Di Napoli Pastore

Dias daqueles fui à machamba com os avós. Acordei às 6h, com o


Sol ainda a dar as caras... Fomos ao terreno na parte de trás da casa, onde
ainda precisava ser capinado. Levamos 2 catanas (facões) e 2 machados.
Fui seguindo a avó, enquanto nos cruzamos com o avô já lá... Entre uma
tentativa de conversa e outra, com a dificuldade por eu não compreender
o xitsua, vó Clemência me contou parte de sua história: não estudou,
pois na época da colonização não era permitido se pensar numa menina
estudando. Na época, dizia-se “se iam à machamba e ao lar, porquê saber ler
e escrever”, em português sobretudo? Começou a ir à machamba cedo, com
uns 6 anos, mas não era deste jeito: “criança anima vir à machamba. Começa
a cavar, cavar, cavar. Aprende a gostar da terra, da maçaroca, da semente.
Vê a planta crescendo, anima. Coração vai enchendo de coisa boa. Para
estar na machamba tem que ter coração” (ANOTAÇÕES CADERNO DE
CAMPO 2, 2017).
Vi crianças ajudando seus pais e avós em suas machambas. Um deles,
Fortunato, olhava de canto de olho. Numa tentativa de aproximação,
pegou em minha mão. Os olhos brilhavam numa mistura de medo e
novidade – não se veem mulungus (brancos) ali. Dissera ele que eu era
a primeira que via. Após um tempo de observação e tendo Felix como
mediador, Fortunato contou que voltava do pastoril. Era responsável
por pastar com 2 grandes bois, que eram de sua família, duas vezes
por semana. Nos demais dias, ficava na machamba. Fomos ver o gado.
Vi Fortunato e Felix fazendo o pastoril e brincando. Mais brincando
que pastorando. Pastorando e rindo. Sobe no boi, desce do boi, tenta
andar nele. Cai aqui, suja ali. “Pastorar não gosto. Mas brinca com o
boi sim!”. Antes de entrar na machamba, era preciso pedir permissão aos
espíritos. Pega um punhado de maçaroca numa mão, um punhado de
amendoim na outra. Pede licença e diz que quer trabalhar naquela terra.
Joga os punhados na direção do mato e, algum tempo depois, entra. “É
assim que os espíritos nos deixam trabalhar na terra, que é deles. Temos
sempre que saber onde podemos entrar e mexer. Há de se ter respeito
e coração, senão não nasce nada”. Saímos dali e as crianças queriam me
mostrar o lugar.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018


“Só se vive de verdade no campo”:... 167

Vamos ao rio? Vamos! Mas está frio! E daí? Tira roupa, senta
na capulana. Põe os pés, sai correndo. Mergulha a cabeça, sai com corpo
fora. Observa, fotografa, admira. Mistura medo do frio com vontade de
entrar. Se junta ao Julinho e, de mãos dadas, sem trocar as palavras, vamos.
A comunicação nunca foi tão clara. E pra sair? Ficamos. Pouco, está frio.
Secamos ao Sol. Caminhamos. Cerca de 40 minutos, mas era perto. Longe
era chegar na estrada. “Vamos chupar cana? Sentamos. Agora vamos, vô
Bento há de brigar...” (MOÇA DE BIQUE, 2017, s/p).
A relação das crianças, e mesmo dos adultos, com a natureza e
com a ancestralidade foi algo que me chamou atenção. Na primeira noite
que passamos na casa dos avós de Félix, após receber visitas de algumas
crianças, uma delas me disse “dormiste bem? É porque os espíritos da casa
gostaram bem dos seus espíritos”. Hampátê-Bá (2003), escritor malinês,
traz em sua obra uma reflexão sobre a ancestralidade africana, discutindo
sobre a importância de se levar em consideração o “mundo oculto”, ou
seja, a fé e crença nos antepassados, na ancestralidade e nas vivências,
entendendo que o momento presente é constituído também do que foi
no passado e o que virá a ser no futuro, sem os quais não é possível se
trabalhar com culturas africanas. Essa lição é passada às crianças desde
pequenas, e estas incorporam em seus vocabulários e modos de fazer,
repassando às outras nas trocas e nas relações que estabelecem entre si.
Do mesmo modo aparece o cuidado com a terra e com os animais,
metaforizados através de contos que são contados às crianças em diversos
momentos da vida. O cuidado à terra, que acontece desde muito cedo, é
parte da formação da personalidade das crianças e da pessoa moçambicana.
As crianças participam da vida cotidiana de maneiras distintas: nas tarefas
destinadas a elas, no ir e vir dentre os espaços, nas relações, nas escolhas,
nas vontades (LAYE, 2013).
A passagem pelo campo ainda é inicial; porém, é possível traçar
paralelos entre a diferença da vida entre espaço urbano e espaço rural,
as raízes fortes com a ancestralidade e com a natureza, um outro modo
de produzir e colher nas machambas e a importância à terra. De uma
infância considerada atrasada, como disse o chefe tradicional ao se referir
aos modos como o Governo e organizações internacionais se referem à
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168 Marina Di Napoli Pastore

infância (ou não-infância) rural e às crianças, a realidade diz outras coisas.


Como as influências da racionalidade instrumental das culturas urbanas,
trazidas e mantidas por uma herança advinda de anos de colonização e
exploração que, embora independente, ainda acaba por seguir as regras
do dito “mundo civilizado” e globalizado, no qual o urbano é quem diz
quem faz parte do moderno ou não, acabam por nos afastar de outros
modos de vida e do que faz parte de outros planos, como a ancestralidade
e o espiritual que, segundo as crianças, estão em tudo: “na machamba, no
ar, no sol, nas estrelas, e no coração” (ANOTAÇÕES CADERNO DE
CAMPO, 2017).
As crianças, tal como as infâncias, devem ser compreendidas a
partir de contextos abrangentes, como sociedade e cultural às quais estão
inseridas. Sarmento e Pinto entendem que

O estudo das crianças fora dos respectivos contextos


sociais de pertença poderia iludir numa categoria comum
a existência de diferenças essenciais à compreensão dos
seus modos diversos de agir socialmente. Parece por
isso indispensável considerar na investigação da infância
como categoria social a multivariabilidade sincrónica dos
níveis e factores que colocam cada criança numa posição
específica na estrutura social. Em simultâneo, é necessário
considerar os factores dinâmicos que possibilitam que cada
criança na interacção com os outros produza e reproduza
continuamente essa estrutura. Preconiza-se, deste modo,
uma perspectiva para a inteligibilidade dos mundos de vida
das crianças que não ilude a natureza individual de cada ser
humano, mas que a considera no quadro relacional múltiplo
e dinâmico que constitui o plano da estrutura e da acção
social (SARMENTO & PINTO, 1997, p. 11).

“Eu não gosto nem de pastorar, nem de ir à machamba: eu gosto é de brincar


com os bois!”
Numa manhã cinzenta e chuvosa, fiquei observando as pessoas na
machamba. Entre elas, algumas poucas crianças – era período de férias, o

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que diminuía a quantidade de crianças ali, já que muitas haviam ido visitar
seus parentes fora do povoado. Algumas lavavam louças, outras brincavam
de correr, algumas ainda acompanhavam os avós e pais nas machambas.
Ouvi meninos, de longe, dizendo sobre os bois. Ao encontrar com eles,
tinham varas de bambu nas mãos e galochas, misturavam o trabalho com
o brincar – ao menos de maneira perceptiva.
Algumas crianças passavam ao longe, geralmente correndo entre
os matos e pegando frutas nas árvores. As crianças se misturavam entre
os animais, num brincar e realizar as tarefas, sem saber ao certo qual era a
prioridade ali... Cortavam canas-de-açúcar, ordenavam porcos, carregavam
água. Levavam madeira para as lenhas, buscavam alimentos nas casas
vizinhas. Corriam, cantavam e riam.
O brincar se misturava nas relações com as tarefas e
responsabilidades. Mesmo longe dos olhos dos adultos, as crianças
faziam aquilo que lhes eram pedido, e não deixavam o brincar por isso.
E o contrário também ocorria. Numa conversa com as crianças, elas
disseram por algumas vezes “na machamba não anima. O que anima é
brincar”, ou “pastorar nada, gosto mesmo é de brincar”, mas, quando
questionadas se ajudavam muito em casa, elas diziam que sim, mas que
não deixavam de brincar. As crianças me ajudavam também nas traduções
com as adultos – estes, na maioria das vezes, não falavam português.
Em uma das conversas, o dia-a-dia das crianças foi o assunto principal:
“essas crianças aqui vão pra escola, fazem coisas de casa, mas ih, como
brincam! E tem que brincar, sabes. Afinal, são crianças”. (ANOTAÇÕES
CADERNO DE CAMPO, 2017).
Silva (2012) discute que é durante o brincar que a criança formula as
hipóteses para a compreensão das pessoas e da realidade a qual interagem,
com seus problemas e seus encantos. As crianças vão, “num espaço à
margem da vida comum” (2012, p. 118), fazendo uso do brincar para
compreender sua realidade, mudando e transformando as situações que
vivenciam.
As crianças possuíam e desenvolviam suas atividades, fossem
domésticas ou comunitárias, mas exerciam também àquela que lhes era
garantida por direito: o brincar. Numa passagem do livro “O menino
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negro”, o senegalês Camara Laye (2013) narra relações existentes entre


adultos e crianças e os laços entre as responsabilidades e as brincadeiras,
que podem ser percebidos nas passagens a seguir.

Meus amigos e eu escalávamos a escada que levava até o


alto e com o estilingue caçávamos os pássaros, às vezes os
macacos que vinham saquear os campos. Pelo menos era
essa a nossa missão, e a cumpríamos sem reclamar, bem
mais por prazer que por obrigação; mas de vez em quando,
envolvidos em outras brincadeiras, também esquecíamos o
motivo pelo qual estávamos ali, e senão para mim, pelos
menos para meus amiguinhos a coisa não se passava sem
problemas (...); assim, devidamente esclarecidos, ficávamos
de olhos nas colheitas, ainda que fizéssemos confidências
apaixonantes, que os ouvidos dos adultos não deviam ouvir
(...) (LAYE, 2013, p. 42)

Finco e Oliveira (2011) defendem que as crianças, nas brincadeiras


e nos espaços do brincar, vão se constituindo como sujeito lúdico, que
passa a ressignificar seu brincar, suas experiências culturais e suas relações
sociais. Um outro modo de discutir a vivência ativa das crianças é pelo
olhar do brincar enquanto arte. Bourriard traz uma noção de artistas
radicantes: para o autor, é a planta que possui várias raízes ou a que é capaz
de produzi-las sempre que replantada; de modo que o artista radicante
seria, por analogia, aquele que, não fincando raízes em um só território,
possibilitaria “trocas culturais” (2009, p. 12), ao que, em diferentes territórios
brotariam “traduções culturais” ou “laboratórios de identidades”, noções
semelhantes às de “plataforma” ou “estação” apresentadas em seus livros
anteriores: lugares em que o artista e o público compartilhariam, durante
certo tempo, “novos modos possíveis de habitar” o “mundo existente”.
(BOURRIAUD, 2009, p. 111).
Poderia trazer os diversos modos de ver e habitar o mundo, a
partir das crianças e das experiências, dentro dessa perspectiva? Suas
atividades, seus fazeres, podem constituir culturas e diversas propostas
de relações sociais. Trilhar esse percurso com as crianças foi trabalhar em

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“Só se vive de verdade no campo”:... 171

parceria, numa relação dialógica, em que a construção do processo de


conhecimento era partilhada e mutuamente participativa. Participar era,
então, experimentar seu dia-a-dia, dividir suas atividades, estar em seus
locais, pedaços, caminhos, considerando a alteridade existente nos aspectos
que diferenciavam as crianças do outro-adulto (SOARES, SARMENTO
& TOMÁS, 2005; DANIC, DELALANDE & RAYOL, 2006).
Ao falar sobre as culturas infantis, passo a olhar para a infância como
campo de expressão sensível, em que a arte assume sua forma através
do brincar: mistura imaginação, fantasia, histórias, realidade, mágica,
transcrição, interpretação, sentido, símbolos... É uma busca e montagem
de si feitas por elas mesmas.

(...) ser criança é aprender a vir a ser, um ser em criação. Se


nos colocarmos em uma escuta e um olhar sensíveis diante
de uma criança brincando (...), assistiríamos sob esse novo
olhar com que maestria as crianças se entregam ao brincar,
convivendo com um tempo sem tempo e um espaço fora
do espaço cotidiano. Onde vários níveis de realidade se
cruzam, inaugurando um lugar próprio, extraordinário que
transcende qualquer esfera do utilitário, atuando como um
espécie de ponte da imaginação humana em sua direção
à realização do ‘sim à vida’. Definir o brincar através de
uma linguagem discursiva é uma tarefa impossível. Sempre
há um desconforto, um incômodo de não chegarmos à
plenitude. Estamos sempre fadados a reduzir em palavras
uma linguagem cuja verdadeira compreensão se processa de
forma una, através de uma síntese do corpo e da alma em
movimento (CASA REDONDA, online).

Então, buscando novamente Pereira (2013), surge uma indagação:


poderíamos encarar o brincar enquanto arte e, sendo arte, entender se “não
está no exercício de sua liberdade, de sua imaginação, de sua expressão
espontânea, vivida com maestria no ato do brincar? Suspender o tempo
e recriar o espaço a partir de si mesmo, permanecendo o mais próximo
possível do mundo interior não são matrizes próprias às crianças (...)?”

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172 Marina Di Napoli Pastore

O que intento trazer com as narrativas e espaços é que a pesquisa


etnográfica configura um elemento central para acessar a produção dos
sentidos simbólicos e de inscrições das crianças em qualquer pesquisa
com este cunho participativo com as mesmas. A inserção do pesquisador
deve permitir a busca de cenários de interação sociais essenciais para a
compreensão das atividades das crianças, suas responsabilidades, seus
modos de vida, especificando sua contextualidade, para que assim, numa
pesquisa realizada em parceria, consiga se chegar à construção de um
cenário significativo de interação.
A pesquisa etnográfica configura um elemento central para
acessar a produção dos sentidos simbólicos e de inscrições das crianças
em qualquer pesquisa com este cunho participativo com as mesmas. A
inserção do pesquisador deve permitir a busca de cenários de interação
sociais essenciais para a compreensão das atividades das crianças, suas
responsabilidades, seus modos de vida, especificando sua contextualidade,
para que assim, numa pesquisa realizada em parceria, consiga se chegar à
construção de um cenário significativo de interação (FERREIRA, 2011).
O olhar e atenção para as diversas infâncias, principalmente as
rurais, são encobertos pela invisibilidade nas políticas e pelas ações pré-
estabelecidas dos órgãos internacionais de ajuda humanitária, que passa
a olhar para a área rural só pela sua vulnerabilidade, e aqui não estou
negando às diversas vulnerabilidades existentes, mas não traz as potências
e particularidades de ser que existem nas diferenças, anulando modos
de estar e vidas não só das crianças, mas sobretudo delas. É necessário
ampliar as pesquisas e ações com as crianças enfaticamente nas áreas
rurais, que escutem as crianças, percebem seus contextos e dialoguem com
as realidades intrínsecas em que se encontram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Moçambique, com a coexistência de identidades e etnias de


diversas matrizes, com intensificação das questões da diferença e dos meios
em que as crianças vivem (áreas urbanas, periferias, peri-urbanas, rurais,

Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018


“Só se vive de verdade no campo”:... 173

norte, sul, centro, etc) e das desigualdades, há a exigência de novas formas


de se trabalhar, discutir e criar teorias críticas-reflexivas sobre as infâncias
e seus lugares. Nas políticas públicas moçambicanas, a concepção de
infância sempre entra em jogo – sempre baseada numa infância “normal”,
ou seja, numa concepção única de infância, negando as diversidades e
interfaces outras de existirem.
Ao possibilitarmos as relações e as vivências distintas das crianças
e espaços, possibilitamos que as diversas infâncias, crianças e coabitação
das diferenças possam existir. Como métodos de pesquisa com crianças, a
etnografia surge enquanto metodologia ativa, que permite a participação
e escutar as vozes das crianças e como potencializador de encontros
possíveis.
No processo de um estudo etnográfico, é imprescindível perceber
que um conjunto muito complexo de saberes e de dinâmicas intersubjetivas
exigem, além da preparação do/a pesquisador/a, uma disponibilidade
para o outro. Esta não é, contudo, espontânea, mas sim uma aquisição
tão frágil quanto fundamental, construída em todas as partes do processo,
numa perspectiva de trabalho e parcerias mútuas.
Repensar políticas públicas e ações a partir de contextos específicos,
em que as crianças tenham voz e participação ativa na co-construção de
espaços e de visões de mundo, sendo necessário interagir com as regras
e com os símbolos implicados na alteridade e nas dinâmicas relacionais
e culturais, no reconhecimento da legitimidade da cultura das crianças,
abrangendo seu universo simbólico, as diferentes formações de famílias,
a força da ancestralidade na produção da pessoa que é plural e relacional,
as formas de organização social, as relações entre pares, as contradições e
dinâmicas existentes na comunidade e a história do povoado. É preciso ler
o mundo do outro e atentar-se para apre(e)nder os símbolos e significados
novos nem sempre acessíveis através do olhar, mas sim pela experiência
sensível, vivenciadas e partilhadas.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 149-178, fev./jun. 2018


174 Marina Di Napoli Pastore

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Texto recebido em 12/01/2018 e aprovado em 15/03/2018.

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AUTONOMIA DO UNIVERSO INFANTIL
VERSUS AUTONOMIA INFANTIL: A AGÊNCIA DAS
CRIANÇAS NO CONTEXTO CAMPONÊS CAPUXU

Emilene Leite de Sousa1

RESUMO: Este artigo parte da discussão sobre autonomia do universo


infantil versus autonomia infantil para analisar o caso das crianças Capuxu e a sua agência.
O povo Capuxu é um grupo camponês cuja etnicidade se define a partir de um forte
sentimento de pertença além de alguns sinais diacríticos. Dentre os aspectos enunciadores
da identidade Capuxu, destacam-se três grandes sistemas: parentesco, nominação e
apadrinhamento, sendo estes fortemente modificados através da ação das crianças. O
sistema onomástico lhe designa nomes na infância que são substituídos pelos apelidos
colocados pelas crianças entre si perdurando estes apelidos por toda a vida, e se tornando
os desígnios formais de seus portadores. Embora o sistema de apadrinhamento lhe
confira padrinhos escolhidos pelos seus pais, as crianças participam de rituais alternativos
de apadrinhamento substituindo seus padrinhos formais por aqueles que eles mesmos
escolheram e burlando o sistema de apadrinhamento Capuxu. Já o sistema endogâmico
de parentesco, com união preferencial entre primos, delimita os cônjuges possíveis
para as crianças, mas este sistema depende inteiramente das relações que estas crianças
desenvolvem com seus cônjuges em potencial. Deste modo é que este artigo revela como
as crianças Capuxu transformam sistemas construídos por adultos imprimindo neles a
sua autonomia.
PALAVRAS-CHAVE: Autonomia; Agência; Crianças Capuxu.

1
Professora Adjunta na Universidade Federal do Maranhão. E-mail: emilenesousa@yahoo.
com.br
180 Emilene Leite de Souza

CHILDREN’S UNIVERSE AUTONOMY VERSUS


CHILDREN’S AUTONOMY:CHILDREN’S
AGENCY IN CAPUXU PEASANT CONTEXT

ABSTRACT: This article starts at a debate about children’s universe autonomy versus
children’s autonomy to analyze the case of the Capuxu children and their agency. The
Capuxu people are a peasant group whose ethnicity is defined by a strong sense of
belonging as well as by some diacritical signals. Among the enunciating aspects of the
Capuxu identity, three major systems stand out: kinship, naming and godparenting, which
are strongly modified by children’s actions. The system of proper names designates
names in childhood which are replaced by the nicknames attributed by children among
themselves. These nicknames are used for lifetime and become the formal designations
of their bearers. Although the godparenting system assigns to children godparents chosen
by their parents, children participate in alternative godparenting rituals by replacing their
formal godparents by those they have chosen, circumventing the Capuxu godfathering
system. On the other hand, the endogamous system of kinship, with a preference for
unions between cousins, delimits the possible spouses for children, but this system entirely
depends on the relationships these children will develop with their potential spouses. This
is the way this article uses to reveal how the Capuxu children change systems built by
adults, imprinting their autonomy.
KEYWORDS: Autonomy; Agency; Capuxu Children.

APRESENTAÇÃO

Este artigo consta de uma análise da agência das crianças


camponesas Capuxu a partir da distinção de conceitos como universo
infantil e autonomia infantil. Embora o campo da Antropologia da criança
tenha crescido no Brasil ainda são muitos os estudos que se dedicam a
análise da infância através de pesquisa sobre crianças e não necessariamente
com crianças. Isso resulta no fato de que há muitas pesquisas sendo feitas
sobre a infância e as crianças, que tomam o ponto de vista dos pais,
professores, cuidadores em detrimento do ponto de vista das próprias
crianças. Quando isso ocorre, sob diversos aspectos, a agência infantil não
é considerada. Parecemos estar olhando para as crianças nelas mesmas,
Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018
Autonomia do universo infantil... 181

mas estamos enxergando-as, em suas palavras e ações, a partir do ponto


de vista dos adultos.
A negligência em relação às crianças e o não reconhecimento da
importância de suas ações na construção dos sistemas sociais resultou
numa visão adultocêntrica não apenas dos próprios povos investigados -
que muitas vezes não reconhecem a agência infantil na organização social
da comunidade - como também permeou por um bom tempo a literatura
antropológica que sempre se reportava as crianças e a infância a partir das
representações que delas tinham os adultos. Este equívoco resulta de dois
procedimentos comumente aceitos nas pesquisas antropológicas sobre
crianças. O primeiro deles diz respeito a ideia de que existe uma cultura
infantil diferente e dissociada da cultura dos adultos. Desde Florestan
Fernandes (1964) e sua definição de culturas infantis vários pesquisadores
passaram a defender que as crianças habitam uma espécie de universo
paralelo em relação ao universo dos adultos ou que elas criam, inventam
uma cultura própria em relação à cultura dos adultos.
A minha experiência com as crianças no contexto camponês,
essencialmente, mas também indígena e em reservas extrativistas – como
as crianças quebradeiras de coco – tem revelado a inutilidade desta
discussão. Ao contrário do que parece, os universos adulto e infantil,
em vários contextos e culturas, são um só. Emaranhados, não podemos
dizer exatamente o que diz respeito a um repertório de conhecimentos,
procedimentos ou modos infantis de experimentar o mundo em total
diferença de um modo adulto. Aliás, a experiência de crianças e adultos
pode ser diferente, mas repousa em conhecimentos que parecem estar à
disposição de todos para serem descobertos e experimentados.
A crença de universos adultos e infantis separados gerou a confusão
que comumente se faz em torno da autonomia do universo infantil e da
autonomia infantil, o segundo procedimento a que me referia.2 Embora
não pareçam, tratamos aqui de coisas distintas. A autonomia do universo
infantil retrata esta concepção de universos de crianças e adultos separados
2
Vamos também retomar a questão da autonomia, tanto da criança quanto do universo infantil,
em relação ao que propõe Hardman (1973), ou seja, a possibilidade de estudar o universo
infantil em seus próprios termos.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


182 Emilene Leite de Souza

em suas culturas. Já a autonomia infantil diz respeito ao modo como as


crianças em determinadas culturas podem ser donas de uma autonomia
não imaginada nem conhecida pelas sociedades urbanas, cuja noção
de proteção e segurança coloca crianças de modo geral sob os olhos e
cuidados permanentes dos adultos implodindo qualquer possibilidade de
autonomia das crianças.
Em sociedades indígenas ou camponesas como nas que pesquisei
não há qualquer dissociação do universo infantil do adulto, mas há
grande autonomia infantil. Já nas sociedades urbanas vislumbramos
uma possibilidade de que tempos e espaços de adultos e crianças não se
encontrem, o que significa uma autonomia absoluta do universo infantil,
mas nem tampouco uma autonomia infantil uma vez que as crianças estão
à mercê dos adultos dependendo deles para quase tudo.
Com base nisso é que este artigo, por considerar a autonomia das
crianças e não acreditando na autonomia de um universo infantil, se dedica
a uma análise da agência infantil no contexto das crianças camponesas
Capuxu, defendendo que a agência das crianças deve ser considerada
e analisada como forma de compreender os grandes sistemas ou a
organização social geral das culturas em que estas crianças estão inseridas.
A noção de agência aqui considerada atribui ao ator a capacidade
de processar a experiência social e de desenhar modos de enfrentar a vida,
mesmo sob as mais diversas formas de coerção. Assim, reconhecemos
que os atores sociais são “detentores de conhecimento” e “capazes”, uma
vez que resolvem problemas, aprendem como intervir no fluxo de eventos
sociais em seu entorno e monitoram incessantemente suas próprias ações,
através da observação de como os outros reagem ao seu comportamento
(GIDDENS, 2003).
Assim, Giddens (2003) destaca que a agência não diz respeito às
intenções dos indivíduos em fazer determinadas coisas “mas primeiramente
à sua capacidade de fazer essas coisas”. A ação depende da capacidade do
indivíduo de “causar uma mudança” em relação a um estado de coisas ou
curso de eventos pré-existente. Isso implica que todos os atores (agentes)
exercem um determinado tipo de poder, mesmo aqueles em posições de
extrema subordinação.

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Autonomia do universo infantil... 183

A agência efetiva requer a geração/manipulação estratégica de uma


rede de relações sociais. Para realizar isso, torna-se essencial que os atores
sociais vençam as lutas que ocorrem sobre a atribuição de significados
sociais específicos a determinados acontecimentos, ações e ideias. Por
isso, neste artigo, interessou-me o modo como as crianças camponesas
participam da luta pela atribuição de significados nos diversos sistemas da
organização social Capuxu, como veremos adiante.
O reconhecimento da agência dos atores sociais em contextos
diversos e sob algumas formas de coerção extrema nos obriga a reconhecer
que também as crianças são partícipes dos sistemas culturais em que se
encontram, significando e ressignificando tais sistemas. Também elas
são detentoras de conhecimento (alguns próprios apenas das crianças) e
capazes de atribuir significados e tecer de forma particular, entre pares ou
entre gerações, as teias de relações sociais que lhe emaranham. É isso que
tentarei demonstrar ao longo deste artigo especialmente a partir da análise
etnográfica sobre a agência das crianças Capuxu.

DO PERCURSO METODOLÓGICO

A análise de que resulta este artigo é parte constituinte do


empreendimento etnográfico que tenho feito entre o povo Capuxu desde
os anos 2000. Entretanto, a investigação que diz respeito aos sistemas
de parentesco, onomástica e apadrinhamento especificamente resulta da
pesquisa que fiz entre os anos de 2011 a 2014 para a tese de doutorado.
Nessa ocasião dediquei-me a análise da produção da pessoa
Capuxu através da fabricação de corpos na infância, atentando para
processos individuais e coletivos de produção do corpo e da pessoa que
desembocaram na construção da identidade do povo Capuxu.
Assim, este estudo foi guiado pela observação direta e participante,
garantindo a inserção do pesquisador na sociedade em análise (vivendo
entre eles) e a interação deste com os atores sociais. A observação em
campo está apoiada no conjunto de ações a que Cardoso de Oliveira
(1998) chamou de olhar, ouvir e escrever, que garantiriam a apreensão
pelo antropólogo dos principais aspectos culturais que envolvem o seu

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184 Emilene Leite de Souza

universo de agentes sociais. Na tentativa de apreender representações e


práticas, a observação direta é essencial, pois nos permite associar o olhar
e o ouvir, e entender os três níveis que compõem a vida cotidiana destas
pessoas: o que dizem (discurso), o que fazem (ação), e o que pensam
(representação) sobre o que fazem (MALINOWSKI, 1984).
Através da observação direta aliada a outras técnicas, como
entrevistas e conversas informais, eu pude dar conta da formulação da
pessoa por meio dos processos de produção e transformação do corpo
das crianças, dentre outras coisas, a partir da análise de sistemas como o
parentesco, a onomástica e o apadrinhamento.
Para Geertz (1989) fazer etnografia consiste em muito mais que
transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário
e etc. Fazer etnografia diz respeito ao esforço intelectual do pesquisador
em produzir uma descrição densa do objeto em estudo. Produzir uma
descrição densa é a capacidade de seguir uma hierarquia estratificada de
estruturas significantes em termos das quais o objeto de estudo é passível
de interpretação e sentido.
Morando entre o povo Capuxu, percorri com as crianças todos os
espaços onde estavam, tornando essa pesquisa numa etnografia itinerante.
Na escola e no roçado, no interior das casas e em seus arredores, na igreja,
na casa paroquial, no açude de Dão, nas estradas e seus mataburros, por
onde estavam as crianças e seus corpos em produção, eu estava registrando,
observando e analisando os modos de fazer o corpo, a pessoa e a identidade
Capuxu. Nesse percurso metodológico atentei para a agência das crianças
e sua autonomia, na organização social de um povo onde os universos
adulto e infantil estão emaranhados em seus espaços e tempos, e onde,
portanto, não há qualquer autonomia de um universo infantil, onde não
se concebe uma cultura infantil dissociada daquela dos adultos, mas onde
o modo de vida, o ethos e a identidade Capuxu, seu corpo e sua pessoa,
são construídos através da agência Capuxu em geral: de adultos e crianças.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


Autonomia do universo infantil... 185

A ANTROPOLOGIA E O PROTAGONISMO INFANTIL

Nos últimos anos, no Brasil, estão se destacado alguns trabalhos


que descrevem e analisam o protagonismo infantil em contextos diversos.
Estes trabalhos dizem respeito a dissertações ou teses, artigos publicados
em anais de eventos e em revistas consideradas bem conceituadas.Agora,
que já podemos perceber a consolidação da antropologia da criança no
Brasil, com diversas pesquisas a respeito, nossas preocupações passam a
ser outras. Precisamos, a partir de então, convencer os antropólogos que
não pertencem a este universo da antropologia da criança, a considerar as
crianças imersas nas culturas e sociedades a que se dedicam, como sujeitos,
interlocutores em suas pesquisas. Precisamos convencê-los de que as
crianças têm algo a dizer sobre tudo e que os grandes sistemas culturais
e a organização social destas sociedades repousam, também, naquilo que
as crianças falam, fazem e sabem. A formatação destas culturas também
agrega os modos como as crianças a significam e representam, as leituras
que fazem dela, e o modo como as desenham.
Assim, esperamos que a crianças sejam consideradas em todas as
pesquisas, como qualquer outra variável em campo, idosos, mulheres,
adultos, etc. Somente se os antropólogos estiverem dispostos a ouvir as
crianças, ou senti-las, aprender delas com elas, poderão descobrir aspectos
ocultos nos mais diversos e profundos fenômenos sociais. Afinal, o modo
como as crianças leem e sentem o mundo só pode ser traduzido por elas
mesmas. Não atentar para as crianças acarretaria perder de vista parte
da compreensão do fenômeno social – seja ele qual for – que emerge
daquela sociedade, que reside nela, que a movimenta e cuja força está nas
experiências infantis.
Pensando nisso, dedico-me a analisar a agência3 e o protagonismo
infantil Capuxu, revelando quanto da contribuição das crianças dão forma
a esta comunidade camponesa, convicta de que a criança se constitui como
sujeito ativo na construção de sentido para a sua experiência.

3
Para pensar a agência infantil podemos partir da representação da criança mediadora de
relações sociais: Schildkrout (1978).

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186 Emilene Leite de Souza

A AGÊNCIA INFANTIL NA ETNOLOGIA INDÍGENA

Os estudos com crianças no Brasil têm enveredado pelos mais


distintos contextos, mas são, sem dúvida, mais numerosos no que concerne
a infância indígena. Ora, o que tornou os estudos sobre crianças indígenas
tão atrativos ao ponto de boa parte dos estudos realizados sobre crianças
pela Antropologia da Criança no Brasil serem de etnologia indígena?
Talvez tenhamos nós mesmos, arrisco dizer, demorado a nos interessar
pelas crianças que fomos, urbanas ou camponesas, mas acreditado que as
crianças indígenas tinham muito a dizer sobre aquelas culturas cheias de
mistérios que se mostravam para nós.
A criança indígena foi quem primeiro ensinou aos antropólogos
através de suas etnografias que elas possuíam autonomia e eram agentes
com importantes papéis sociais, sendo as principais lições destes estudos
os seguintes fatores: “Reconhecimento da autonomia da criança e de sua
capacidade de decisão; Reconhecimento das diferentes habilidades das
crianças frente aos adultos; A educação como produção de corpos saudáveis;
Papel da criança com mediadora de diversas entidades cósmicas; Papel
da criança como mediadora dos diversos grupos sociais” (TASSINARI,
2007, p. 22). Como demonstrou Tassinari (2007) ao contrário de nossa
prática social que exclui as crianças das esferas decisórias, as crianças
indígenas são elementos-chave na socialização e na interação de grupos
sociais e os adultos reconhecem nelas potencialidades que as permitem
ocupar espaços de sujeitos plenos e produtores de sociabilidade.
O fato é que a maior parte de publicações sobre crianças na
antropologia diz respeito a crianças indígenas. Em se tratando de infância
indígena, por onde a antropologia da criança começou a se firmar no Brasil,
há várias pesquisas empoderando crianças e decifrando sua agência, mas
pouco se sabe sobre a criança camponesa ou quilombola, as que habitam
diversas reservas extrativistas, as crianças ciganas e daí por diante. Esta
área de pesquisa é seguida por crianças na situação de alunas, ou seja, na
escola. A criança aprendiz – mas aprendiz apenas das lições escolares –
aparece nos estudos de antropologia como nos de pedagogia: vista pela
lupa de seus ensinadores, professores ou da instituição de modo geral.

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Autonomia do universo infantil... 187

Em todo caso, pondero que considerar a agência infantil tem a


ver também com a disposição metodológica em fazer investigações com
crianças, considerando-as importantes interlocutoras da pesquisa. Assim,
entendo que as concepções de infância que adotamos – se concebemos
a criança como um ser em si mesmo, com coisas interessantes a dizer ou
se a consideramos um adulto em miniatura, um vir-a-ser, que está sendo
preparado para se tornar alguém (que ainda não é) – refletirão no modo
como entendemos a autonomia das crianças e sua agência. Acreditar que
a criança é um ser social completo (ou relativamente completo como
qualquer outro, porque também nós nos transformamos), é o caminho
para torná-la um importante interlocutor e reconhecer sua agência.
Conforme Tassinari, (2007, p. 12) “nossa visão da infância como
um ‘vir-a-ser’, não nos permitia levar a sério o tratamento que os indígenas
dispensavam às crianças. A liberdade e autonomia infantis4 foram muitas
vezes interpretadas como ausência de autoridade dos pais e inexistência
uma de pedagogia nativa ou de formas sistematizadas de ensino e
aprendizagem”.
Falo de reconhecimento pois, não há dúvida a respeito do
protagonismo infantil nas mais diversas culturas, o que falta não é provar
a agência infantil, mas pesquisadores dispostos a percebe-la ou, dar-lhe
a mesma importância que é dada aos demais interlocutores na pesquisa.
No que diz respeito a importância das crianças para a compreensão de
diversos fenômenos sociais e as culturas de modo geral, podemos elencar
inúmeros trabalhos, em sua maioria sobre crianças indígenas, como tenho
afirmado. Autores como Alvarez (2004), Limulja (2007), Codonho (2009),
Oliveira (2005), Cohn (200), Mello (2006), Miranda (2009), Vasconcelos
(2011), Nunes (2002), Tassinari (2012), Pires (2011) e Belisário (2016) são
alguns dos que se dedicaram a fazer pesquisa com crianças, mais do que
sobre crianças, atentando para a agência infantil. Entretanto, dos citados,
apenas Tassinari (2012), Pires (2010, 2011) e Belisário (2016) apresentam
trabalhos com crianças em contextos distintos do indígena, embora
4
Skildkout 91978) é uma alternativa analítica diferente daquela que analisa o universo infantil
como autônomo, ele defende que as crianças devem ser ouvidas como qualquer outra categoria
social em campo.

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188 Emilene Leite de Souza

também a infância indígena seja objeto de atenção de Tassinari na maior


parte de suas produções.
Por isso argumento que a etnologia indígena foi a primeira a se
dedicar ao protagonismo infantil no Brasil, uma lição que lhe fora
dada pelas próprias culturas investigadas que tomavam a criança como
importante sujeito social reconhecendo sua autonomia e o seu poder de
decisão.

O POVO CAPUXU DE SANTANA-QUEIMADAS

O povo Capuxu habita o Sítio Santana-Queimadas, município de


Santa Terezinha, no sertão da Paraíba. Este povo constitui um grupo
cuja diferenciação está marcada através da produção de fronteiras e de
um sentimento de pertença ao povo. As fronteiras que estabelecem a
diferenciação entre os Capuxu e os outsiders5, são nitidamente percebidas,
tanto quanto o forte sentimento de pertença que envolve o grupo, tendo
sido a isso que me dediquei na pesquisa, além dos chamados sinais
diacríticos, sendo estes: a aparência comum aos quase 200 membros do
grupo; o sotaque diferenciado; o sistema de parentesco endogâmico com
união preferencial entre primos; o etnônimo e a contiguidade territorial
(SOUSA, 2014).
Sobre a história do povo Capuxu, sabe-se que o primeiro habitante
do local teria sido um baiano cujo nome era Agostinho Nunes da Costa.
Esta informação justificaria o sotaque do povo caracterizado pela lentidão
com que pronuncia as palavras. Quanto ao etnônimo Capuxu este lhes
fora dado por conta de um de seus antecessores que se chamava João e
tinha como hábito a caça de abelhas, dentre as quais havia destaque para
a espécie Capuxu, de modo que o apelido João Capuxu lhe foi concedido
pelo povo das redondezas e repassado de geração a geração tornando-se
etnônimo do povo.

5
Chamo de outsiders todos os moradores da cidade de Santa Terezinha e dos sítios circunvizinhos
ao Sítio Santana-Queimadas, ou seja, todos aqueles com quem o povo Capuxu se relaciona e
convive que não são Capuxu.

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Autonomia do universo infantil... 189

A comunidade Capuxu vive basicamente da agricultura de


subsistência. Algumas outras ocupações, rurais ou não, aparecem
esporadicamente para estes agricultores. Atualmente a renda familiar da
maioria das casas é complementada pelas políticas públicas de transferência
de renda, como o Programa Bolsa Família, e pelas aposentadorias de
idosos, por invalidez, especialmente pelos casos de esclerose múltipla, e
portadores de necessidades especiais do local. Nenhuma criança Capuxu
em idade escolar está fora de sala de aula, seja na Escola Porfírio Higino da
Costa, localizada no próprio Sítio, seja nas escolas da cidade mais próxima
para onde vão as crianças a partir do sexto ano.
Outra característica do povo é o sistema endogâmico de casamento
com união preferencial entre primos. Dentre as quarenta e nove famílias
atuais somente três são compostas de casamentos entre pessoas que não
são parentes entre si. É normal o casamento entre primos de modo que
em todo o Sítio há a predominância de quatro sobrenomes: Ferreira, Lima,
Menezes e Costa. A endogamia constitui-se em mais um dos elementos de
afirmação étnica do povo Capuxu.
O Sítio Santana-Queimadas é o lugar por excelência do povo
Capuxu, assim, Capuxu é quem mora em Santana-Queimadas. Obviamente,
a distância de alguns deles do seu lugar de origem dada pela migração
nos anos de 1980 não torna os que partiram não-Capuxus, uma vez que
estes acionam outros dispositivos de manutenção da identidade. Também
porque, ser filhos de pai e mãe Capuxu, compartilhando o sangue, está no
cerne da definição de Capuxu, havendo uma determinação biológica da
identidade (SOUSA, 2014).

A AGÊNCIA DAS CRIANÇAS CAPUXU: PARENTESCO, GESTÃO


ONOMÁSTICA E APADRINHAMENTO

No bojo da discussão sobre a autonomia e agência das crianças é


que apresento uma análise da agência das crianças camponesas Capuxu,
especificamente no que diz respeito a três grandes sistemas que conformam
a organização social Capuxu: o sistema de parentesco, o sistema de
nominação e o sistema de apadrinhamento.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


190 Emilene Leite de Souza

Ao longo da pesquisa sobre a produção da pessoa Capuxu através da


fabricação dos corpos na infância, descobri três importantes e complexos
sistemas presentes na produção da pessoa e na organização social
Capuxu. O sistema de parentesco, o sistema de nominação e o sistema de
apadrinhamento Capuxu estão relacionados uma vez que a endogamia nos
permite entender a onomástica bem como o sistema de apadrinhamento
do povo. Estes três sistemas também estão na base da compreensão da
história deste povo e na origem da fundação de sua identidade coletiva, a
partir de uma série de casamentos trocados e de nomes e sobrenomes que
se emaranhavam através dos casamentos para dentro.
A regra matrimonial Capuxu que submete o grupo a casamentos
internos ao Sítio Santana-Queimadas e ao seu povo, com união preferencial
entre primos, restringe o grupo a um leque de possibilidades de casamento
e, consequentemente, a uma série de sobrenomes que se repetem. Ademais,
o sistema onomástico escolheu a herança ou transmissão dos nomes
próprios desde a origem da comunidade, colocando nomes e sobrenomes
numa repetição aparentemente caótica para o pesquisador que tenta
desvendar sua organização social através da feitura de genealogias.
Não obstante, a comunidade elegeu os apelidos como forma de se
desvencilhar dos problemas das repetições de nomes e sobrenomes. Os
apelidos transformam a formalidade dos nomes próprios em informalidade,
geram intimidade e reforçam os laços nesta comunidade onde tudo
visa a coesão e a solidariedade. Nesse sentido, as crianças exercem uma
importante função já que são elas as responsáveis por atribuir os apelidos.
É também o sistema de parentesco que explica boa parte da escolha
dos padrinhos, já que nesta ocasião os Capuxu optam por fortalecer
relações de parentesco já existentes gerando solidariedade e reciprocidade,
ou estabelecê-las, esporadicamente, com os outsiders. Através destas
relações, se constroem a criança e a pessoa Capuxu, além das alianças com
os forasteiros, reforçando por contraste a identidade coletiva do povo.
O mais importante é que a agência infantil está impressa nestes
três sistemas tendo as crianças uma participação fundamental no
funcionamento deles e da organização social Capuxu, como revelaremos
adiante.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


Autonomia do universo infantil... 191

DO SISTEMA ENDOGÂMICO DE PARENTESCO CAPUXU


E A SUA IMPORTÂNCIA

Entre os Capuxu a descendência é bilateral, considerando, pois,


tanto a matrilinearidade quanto a patrilinearidade. Quanto à nomenclatura
de parentesco – sistema simbólico de denominação das posições relativas
aos laços de descendência e afinidade - o tipo de terminologia deste povo
é descritivo, utilizando-se de um termo diferenciado para designar cada
parente. Salvo, é claro, as várias diferenciações entre primos (cruzados,
paralelos, matrilaterais, patrilaterais) que são agrupados sobre um mesmo
termo. O mesmo se refere aos tios e avós, cujo termo que o designa não
esclarece se este pertence à linhagem materna ou paterna.
Há também a chamada linhagem cognática, filiação traçada a partir
de um ou mais ancestrais em que todos os membros do grupo são capazes
de especificar a relação que mantém com o ancestral fundador da linhagem,
no caso dos Capuxu, busca-se referência nos irmãos Salviano Alves da
Costa e Vicente Alves da Costa (fundadores da comunidade) através das
genealogias. Alguns dos habitantes mais velhos tentam localizar na história
quem seria o João que teria sido chamado de João Capuxu e atribuído
o etnônimo que vigora até hoje. Assim é que o grupo se origina de um
fundador, semimitificado com relação a quem é traçada a descendência.
O casamento preferencial local prescreve a endogamia que sugere
o casamento com pessoas da própria comunidade que são, todavia,
parentes, configurando-se numa endogamia territorial e de parentela.
Mas essa endogamia não é generalizada, mas os maridos e esposas em
potencial são os primos de primeiro, segundo ou terceiro graus, primos
distantes, matrilaterais ou patrilaterais, ou os primos carnais que resultam
dos chamados casamentos trocados ou de dois irmãos com duas irmãs.
Entre o povo Capuxu prevalece como regra matrimonial o
casamento endogâmico, com prescrição entre primos e preferencial
entre primos-irmãos. No início da história da comunidade o casamento
foi exogâmico – entre os dois irmãos baianos e as duas irmãs do local.
Todavia, já era um casamento de dois irmãos com duas irmãs: Salviano
Alves da Costa e Vicente Alves da Costa casaram-se com Praxedes do

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


192 Emilene Leite de Souza

Espírito Santo e Maria da Conceição, sendo os dois primeiros baianos e as


duas paraibanas que residiam em sítios do local.
A partir de então foram registrados casamentos entre tios-sobrinhos
(considerados incestuosos com o tempo) e práticas de sororato. Além
destes modelos de casamento são registrados casamentos entre pares de
irmãos com pares de irmãs, os chamados casamentos trocados, e pares de
irmãos com mulheres primas entre si. Com o tempo o casamento passou
a ser preferencial entre primos e especialmente entre os primos-carnais.
Pela prática da endogamia os Capuxu lograram minimizar os efeitos
do parcelamento e permanecem até hoje na condição de povo com uma
identidade própria que se opõe aos moradores de sítios em áreas vizinhas.
De certa forma o parentesco é um idioma que fala da permanência na
terra, além de ser um importante mecanismo de produção de solidariedade
e reciprocidade, fortalecendo a coesão do grupo.
Dentre as sessenta e uma famílias formadas nos anos de minha
pesquisa foram registrados apenas quatro casamentos exógamos. Destes
quatro, um havia durado até a morte prematura da senhora que viera de
fora morar junto ao seu marido, e tivera dois filhos. Outros dois casamentos
resultaram em divórcios e/ou separações. Estes acontecimentos serviram
ainda mais para legitimar e fortalecer o casamento preferencial do local,
que prescreve a união entre primos.
Segundo Lévi-Strauss (2003) a endogamia pode passar da expressão
simples de um limite conceitual (conteúdo negativo) a um cálculo
deliberado para manter certos privilégios sociais ou econômicos no
interior do grupo (conteúdo positivo). Acredito que isto ocorra entre os
Capuxu por perceber nesta regra de casamento a preocupação em manter
a propriedade, a terra e as pessoas da comunidade de modo geral, longe
de estranhos. Prova da resistência aos estranhos na comunidade é que
os casamentos - como sabemos - representam mais que a união entre
indivíduos, constitui-se numa união entre grupos. Entretanto, os poucos
casamentos que ocorreram “para fora” do grupo, não trouxeram consigo
um novo grupo, mas indivíduos isolados que assim permaneceram ao
longo do tempo na comunidade.

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Autonomia do universo infantil... 193

Assim, há um aspecto a ser reconhecido que para mim é funcional


e justificaria, em parte, a opção do povo Capuxu pelo sistema endogâmico
de casamento: a preocupação com a manutenção da propriedade.

RELAÇÕES COM OS CÔNJUGES EM POTENCIAL

A criança é um bem precioso para a comunidade Capuxu. Além de


ser a alegria das famílias, de dar sentido à vida de seus pais, ela é também
a garantia da perpetuação do ethos e da identidade Capuxu. São as crianças
as herdeiras de todas as coisas que pertencem à comunidade, por isso os
pais Capuxu desejam ter filhos e elas são sempre motivo de paparicação
por todo o grupo.
Baseado num sistema endogâmico com casamento preferencial entre
primos, o parentesco Capuxu prescreve as relações sociais praticamente
desde o nascimento das crianças, cujos casamentos podem ser deduzidos
dentro de um leque limitado de possibilidades.
Predestinadas a casar-se com primos, toda criança sabe desde tenra
idade quem são seus cônjuges em potencial. É óbvio que nem sempre
o previsto ocorre, acontecendo situações em que as jovens Capuxu
envolvem-se com jovens da cidade e destes relacionamentos resultam filhos.
Entretanto, observa-se em lócus que as mulheres cujos relacionamentos
ocorreram com homens de fora da comunidade, terminaram por não
permanecer com eles, não tiveram seus filhos registrados por estes
homens, de modo geral, e tiveram seus filhos na comunidade, sendo
acolhidos pelos avós maternos e tios. Isto feito, estas mulheres também
não chegaram a casar-se depois com um rapaz Capuxu, permanecendo
solteiras e compartilhando a criação dos filhos com pais, irmãos, vizinhos
e compadres.
Cada vez mais forte o sistema Capuxu de casamento entre primos,
faz com que os jovens que migraram para São Paulo, terminem por não
se casar com ninguém de lá, e deixam na comunidade uma série de jovens
mulheres com um leque ainda menor de possibilidades de casamento. Por
conta disso, a idade com a qual se tem contraído matrimônio está cada
vez mais avançada, bem como o número de idosos que permaneceram

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sozinhos ao longo de suas vidas, havendo hoje casas na comunidade


habitadas por apenas irmãos idosos que se cuidam entre si.
Dada o estabelecimento de tais regras de parentesco as crianças
Capuxu convivem e brincam desde a mais tenra idade com seus cônjuges
em potencial. Por esta razão percebo certo constrangimento entre eles.
Este constrangimento se dá na esfera das brincadeiras, dos termos jocosos
e dos apelidos. É comum que entre meninas as crianças assumam uma
postura mais livre, sem pudores, mas ácida até, e diante dos meninos as
meninas pareçam tímidas por qualquer situação inusitada, não gostem que
as suas amigas lhe ponham apelidos e se deixam corar por qualquer atitude
desajeitada.
O mesmo ocorre aos meninos que brincam em grupos sem
preocupação com apelidos, vestimentas ou aparência de modo geral. Mas
as atitudes jocosas mudam se as meninas estão por perto, até porque,
disputando entre si, os meninos começam a submeter uns aos outros
a toda sorte de constrangimentos através de brincadeiras, apelidos ou
ridicularizando trejeitos.
Este constrangimento resulta em olhos brilhantes que se encontram
pelas brincadeiras noite a dentro, sorrisos bobos entre casais de crianças
a partir dos 11 ou 12 anos quando começa a aflorar a sensualidade,
especialmente para as meninas.
Por outro lado, a vida na comunidade permite que esses laços sejam
estreitíssimos, convivendo meninos e meninas que no futuro deverão
se casar, nos cômodos de suas próprias casas ou nos arredores dela, em
roçados e estradas, em rituais de fogueiras, ou compartilhando os medos
de malassombro, entre os banhos de chuva ou de rio, e nos festejos da
padroeira. Tamanha intimidade só pode revelar relações que se instauram
com base em um conhecimento aprofundado sobre o outro, sua vida, seus
valores, seu cotidiano.
Como mencionado, o sistema endogâmico Capuxu não determina
exatamente com quem devem se casar os jovens, mas de que grupo eles
devem retirar seus cônjuges. Assim, não há uma predeterminação de
quem deverá ser o futuro esposo ou futura mulher de qualquer uma destas

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Autonomia do universo infantil... 195

crianças, mas elas transitam dentro de grupos de onde sabem que sairão
os seus cônjuges.
São grupos de parentesco e de brincadeira, grupos de sala de aula na
escola, da primeira eucaristia na igreja, da crisma, e das viagens para a escola
na cidade a partir do sexto ano de estudos. São os grupos das brincadeiras
de férias, do compartilhamento dos cuidados com os animais, dos festejos
e novenas, dos grupos de coral na igreja, dos meninos que jogam o futebol
dos fins de semana e das meninas que eufóricas torcem pelo time formado
pelos meninos do local contra os times dos sítios vizinhos.
Assim, os primos e amigos desde a infância reúnem os requisitos
para formarem um casal tipicamente Capuxu. São conhecedores da
história de vida um do outro e fortalecerão através do casamento e dos
filhos, o parentesco, a identidade e a história do povo Capuxu.
Neste caso, fica nítida a agência das crianças como garantia para a
manutenção do sistema endogâmico, pois as relações precisam ser tecidas
e germinadas na infância para que os casamentos entre primos continuem
a fazer sentido entre eles garantindo a continuidade do grupo. Se não
houver predisposição por parte das crianças e a construção de uma relação
desde a infância que deve terminar em casamento, ocorrerá o malogro do
sistema.

ONOMÁSTICA CAPUXU: HERANÇA DOS NOMES OU


ATRIBUIÇÃO LIVRE (NOMES SERIADOS)

Na onomástica Capuxu uma das primeiras regras perceptíveis é a


transmissão de nomes. Através da observação das complexas e exaustivas
genealogias de parentesco, eu descubro uma transmissão frequente dos
nomes próprios ou os chamados “nomes de batismo” ou “nomes de pia”
que obedece a determinadas regras de nomeação.
Entretanto, fica evidente a partir das genealogias do povo Capuxu
que no passado essa transmissão ou herança dos nomes era a mais forte
característica da onomástica Capuxu. Com o passar do tempo, os nomes
se tornaram cada vez mais importados de fora, passando o sistema de
nominação por profundas transformações. Isto ocorreu gradativamente,

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196 Emilene Leite de Souza

mas especialmente a partir das décadas de 1980 e 1990, quando houve a


aproximação dos Capuxu com os outsiders.
A partir disso é que me utilizo aqui da diferenciação de Viveiros
de Castro (1986) entre sistemas endonímeos e exonímeos. Neste último
caso, adquirem-se nomes fora do universo social de pertença e veem-se os
nomes como um atributo não transferível6.
Entre os Capuxu percebe-se que o sistema se configurava como
endonímico na medida em que boa parte dos nomes era transmitida dentro
do próprio grupo, pelos antepassados, com a transmissão dos nomes a
partir de um estoque limitado e em perpétua circulação. Com o passar do
tempo, o sistema se transformou passando a acatar alguns nomes trazidos
de fora do grupo, caracterizando-se como exonímico.
Atualmente, o sistema de nominação Capuxu não pode ser
considerado fechado, apesar do fluxo de nomes que ainda o percorre de
dentro do próprio grupo, ou seja, desta utilização profunda do repertório
de nomes desde a primeira geração do grupo de que se tem notícias, já
que essa abertura para nomes de fora torna-se mais evidente nas últimas
gerações. No que diz respeito aos sobrenomes, no caso Capuxu todos
possuem praticamente os mesmos sobrenomes. Numa comunidade cuja
sociabilidade é dada pelo “aqui todo mundo é parente”, sendo esta a
narrativa comunitária, os sobrenomes não teriam sentido como elemento
de diferenciação.
Os sobrenomes são oriundos dos casamentos primeiros, situados na
origem da comunidade. Entretanto é preciso destacar que no passado os
cartórios não eram tão rigorosos em relação aos registros de sobrenomes.
Por essa razão algumas famílias chegavam a escolher sobrenomes para seus
filhos dentre todas as possibilidades existentes nos nomes das famílias de
seus pais. Isto já resultaria em quatro sobrenomes que variam nos registros
dos filhos de uma mesma família.

6
Os sistemas onomásticos ameríndios endonímicos acentuam a conservação dos nomes como
uma espécie de patrimônio a ser transmitido entre gerações. Estes sistemas valorizam tanto a
transmissão “interna” de nomes que, mesmo quando se adquire o nome fora do universo social,
o objetivo é integrá-lo na transmissão intergeracional “dentro do grupo” (cf. VIVEIROS DE
CASTRO, 2006 apud HUGH-JONES, 2006, p.89).

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Autonomia do universo infantil... 197

Com os poucos casamentos exogâmicos que ocorreram mais


alguns sobrenomes adentraram na comunidade. Por isso, observando as
genealogias percebemos que nas primeiras gerações eram estes quatro
sobrenomes – Ferreira, Menezes, Lima e Costa – os que prevaleciam.
Com o passar do tempo sobrenomes como Dias, Macedo, Pereira e Alves
aparecem, mas não com tanta frequência quanto os quatro primeiros.
Não há entre os Capuxu uma busca de significados ou sentidos
para os nomes, uma vez que os nomes seriados são os que prevalecem na
comunidade. Ora, mas se não parece haver busca de sentidos nos nomes
atribuídos às crianças, certamente há sentido na escolha do nome, nesta
espécie de gestão onomástica. O contexto social atribui sentido a esta
escolha ao mesmo tempo em que é constituído por essa escolha. Como
no sistema Tupinambá (SILVA, 1986), o mais importante aqui não são os
nomes por eles mesmos, mas o modo como os nomes foram adquiridos.
Por essa razão acredito que os sistemas de nominação são importantes
denunciadores da lógica das relações numa comunidade, especialmente
das relações tecidas através das crianças. Mas outras teias são também
tecidas quando o nome é atribuído. Por exemplo, dar aos padrinhos o
direito de escolher o nome do afilhado é uma forma singela de demonstrar
consideração e respeito, fortalecendo os laços entre os padrinhos e a
criança e entre compadres.
Através da análise da onomástica Capuxu não é possível detectar
apenas uma regra de atribuição de nomes, mas um complexo sistema
de atribuição de nomes que se caracteriza pela transmissão em diversos
sentidos ou pela atribuição livre7. Entre os Capuxu, a transmissão ou
herança dos nomes atua numa série de vetores que a orienta:

7
Faço aqui uma ressalva para o uso destas nomenclaturas que elegi. Entendo que todo nome
é atribuído, seja ele transmitido (não deixa de ser uma atribuição) ou não. Todavia, opto por
distinguir no rol de atribuições possíveis, aqueles que são atribuídos por transmissão (ou
herdados), aqueles que são atribuídos livremente, obedecendo a outros critérios como nomes
de santos, de famosos, etc.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


198 Emilene Leite de Souza

a) Adquirido do pai tal qual, incluindo sobrenome,


com os elementos Filho ou Júnior no final; Ex.:
Joselito Macedo Júnior.
b) Adquirido do pai com sobrenome diferencia-
do (sendo acrescentado o sobrenome materno)
sem algum elemento que identifique no final.
Ex: José de Almeida Dias casado com Maria Pe-
reira de Lima atribuiu ao filho o nome de José
Pereira Dias;
c) Adquirido da mãe;
d) Adquirido da avó ou do avô materno ou paterno
com ou sem tecnônimo. Ex: Felicidade Ferreira
Neta;
e) Adquirido do primo, o que é mais raro. Ex: José
Ferreira Primo.
f) Adquirido do tio ou tia materna ou paterna com
ou sem elemento identificador. Ex: Antônio
Ferreira Sobrinho.
g) Adquirido do pai pela menina ou da mãe pelo
menino. Ex: Paulo Ferreira de Menezes e a filha
Paula Lima de Menezes.
h) Adquirido da irmã ou irmão falecido: Ex: Tere-
zinha Ferreira de Oliveira.

Afora a herança dos nomes, estes podem também ser atribuídos


livremente. A atribuição livre é caracterizada pela escolha ou sugestão de
nomes quaisquer, sem que sejam herdados de parentes ou antepassados.
As crianças são nomeadas por pais, avós, tios e padrinhos. Os irmãos
mais velhos também sugerem nomes aos irmãos mais novos, sendo todos
estes nominadores em potencial. Nomes bíblicos e de santos também são
considerados, especialmente os nomes de santas tidas em alta conta no
hagiológio sertanejo.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


Autonomia do universo infantil... 199

Atribuem-se nomes bíblicos se a família é religiosa ou não,


somente por considerá-los bonitos. Quando os nomes são de santos do
panteão católico, geralmente se escolhe a partir da história do santo, de
características como luta, bravura, coragem ou generosidade. Há quem
diga que a criança pode seguir o mesmo destino daquele santo cujo nome
lhe foi dado, com uma vida marcada pelas características que o definiam.
Alguns nomes próprios transformaram-se ao longo do tempo em
sobrenomes. Famílias tradicionais do Sítio Santana-Queimadas foram e
são caracterizadas por um nome próprio composto de um patriarca que
se tornou sobrenome, sendo passado aos filhos e de geração à geração
desde então. Isto pode ser verificado no caso da família Juvino, cujo pai
se chamava Juvino Salviano e atribuiu aos filhos os nomes de José Juvino,
Maria Juvino, Praxedes Juvino, Otávio Juvino, Juvino Salviano Filho,
dando origem a partir de então a toda uma descendência dos Juvinos. O
mesmo foi verificado com os sobrenomes Abílio, Aprígio e Vicente.
Uma prática comum é dos nomes próprios compostos em que o
primeiro se repete a todos os filhos e se modifica apenas o segundo. Esta
repetição do primeiro nome é muito comum para Maria, Ana, João. Assim,
uma família inteira todas as mulheres se chamam Maria com variação
do segundo nome ou os homens todos se chamam João com variação
de segundo nome. Numa família específica eu encontrei uma repetição
incomum, em que boa parte das mulheres se chama Edina, com variação
para o segundo nome apenas, outras meninas da família receberam nomes
distintos e não houve regra para a nomeação dos meninos.
Observamos que os nomes dos membros das famílias mais antigas,
primeiros nomes da comunidade, eram herdados dos antepassados. Com
a herança dos nomes tendo ficado para trás, a serialidade despontou como
regra maior do sistema onomástico Capuxu.

APELIDOS, ALCUNHAS OU CODINOMES

Se não herdam mais os nomes dos antepassados as crianças


Capuxu, um curioso fato continua sendo herdado por elas: a atribuição
de apelidos ou codinomes. A quantidade de nomes repetidos num curto

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repertório onomástico fez com que as primeiras gerações das famílias


Capuxu atribuíssem apelidos como uma estratégia para que pudessem
identificar melhor os sujeitos. Estes eram atribuídos pelos próprios pais,
irmãos ou primos, vizinhos e amigos de modo que quase todos têm um
apelido através do qual é conhecido.
Os apelidos são formas jocosas de classificar, uma maneira divertida
de nomear. Estes apelidos podem nascer de um hábito percebido no
sujeito (por exemplo: Manu, que significa comedor de coalhada) ou uma
semelhança com alguém (um parente mais velho, uma figura caricatural do
Sítio Santana-Queimadas), ou uma corruptela do nome. O fato é que todo
apelido tem uma explicação para além de sua função social de diferenciar
sujeitos sociais com tantos nomes e sobrenomes iguais.
Características físicas servem de inspiração para os apelidos.
Semelhanças com parentes ou conhecidos também. Quando um apelido
é evocado vem à memória um fato, uma circunstância, um personagem.
Todavia, como alguns destes apelidos nascem de um hábito ou uma
característica particular, marca da personalidade ou do corpo, elas são
facilmente identificadas pela psicologia contemporânea como bullying,
uma vez que são utilizadas também para provocar risos, como motivos
de gozação e brincadeiras entre amigos para ridicularizar o sujeito a quem
o apelido se refere. Entretanto, não me interessa aqui esta análise das
conseqüências psicológicas que podem ser geradas por estes apelidos, mas
a função social que ele cumpre e sua importância na onomástica Capuxu.
O mais importante é que esses apelidos são aceitos por aqueles que
os recebem, no início motivo de risos e com o passar do tempo passa a
ser familiarizado de modo que só os forasteiros nos estranham a ponto de
perguntarem qual o verdadeiro nome do sujeito, o que significa aquele apelido
ou qual a razão dele. A razão também pela qual estes apelidos são tão
bem aceitos é que eles surgem geralmente na infância ou na adolescência,
com a aprovação de todos não há como recusá-lo, ademais quanto mais
se chateia a criança ou o adolescente com o apelido, mais os amigos o
chamarão assim. No caso do povo Capuxu os principais responsáveis por
colocar apelidos são as crianças.

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Autonomia do universo infantil... 201

Assim, as alcunhas acompanham as crianças Capuxu pelo resto de


suas vidas, muitas vezes as minhas tentativas de construção das genealogias
eram interrompidas e dificultadas por causa da quantidade de apelidos. Se
por um lado, havia o emaranhado de nomes próprios semelhantes, eles
logo diferenciavam estes sujeitos de gerações diferentes com o mesmo
nome e sobrenome, ou até mesmo da mesma geração com o mesmo
nome próprio, através dos apelidos. Noutros casos, na construção da
genealogia de uma família, só dispunham do apelido do primo distante,
sem que fosse mais conhecido o seu nome de batismo. Era preciso dar
início a uma investigação para descobrir o nome daquele sujeito a quem
todos chamavam de “Véi de Buda”, por exemplo, enquanto os mais velhos
se esforçavam para saber qual era mesmo o seu nome de registro antes de ter
sido designado com tal apelido.
Com a ajuda das crianças e dos adolescentes Capuxu montei
um quadro dos apelidos com os nomes de alguns sujeitos que assim
designam e os significados de tais apelidos. Essa construção foi permeada
de gargalhadas constantes e muita diversão em ver a curiosidade da
pesquisadora em apelidos e significados. Se a familiarização com o apelido
tira dele o seu humor, qualquer situação diante de um forasteiro em
que se questione os apelidos os faz lembrar seus sentidos e é motivo de
brincadeiras.
Ao contrário dos mais velhos, cujos apelidos já são fator maior
de identificação dos sujeitos e os nomes de batismo ficaram perdidos da
memória, as crianças e adolescentes lembram ainda com clareza do nome
de batismo de cada um deles, dizendo o apelido, explicando-o e dizendo
o nome do sujeito em seguida. Essa lembrança avivada dos nomes pode
também ser explicada pela presença deles na escola. A escola, mesmo
estando inserida no sítio, com seus diários e nomes completos ou nomes
de registros, na fala da professora durante a chamada, uma pergunta ou
uma repreensão os fazem lembrar dos “nomes verdadeiros” de seus
colegas. Fora dela, do portão em diante, ou ainda pelos seus corredores,
as crianças só se tratam pelos seus apelidos. Até aqui, os nomes próprios
estarão resguardados.

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202 Emilene Leite de Souza

Mas os apelidos que substituem, em termos, os nomes, são prova


maior de aceitação social. Tê-los é estar imerso nas teias sociais que são
tecidas pelo povo Capuxu, aceitá-lo é aceitar sua posição no lugar que a
comunidade lhe inscreve. Quem não os tem são aqueles que permanecem
na fronteira da comunidade, entre o Sítio Santana-Queimadas e às cidades,
cada vez mais distante de todos, casando-se para fora e afastando-se da
comunidade. Para os Capuxu os apelidos são o modo como são chamados
informalmente ou por aqueles com quem tem intimidade, no caso do
grupo, por praticamente toda a comunidade. Os apelidos dos Capuxu,
como os nomes, são levados até a morte. Geralmente se ganha um apelido
na infância e ele permanece ao longo da vida, podendo inclusive virar
tecnonímico, quando as filhas e as esposas passam a ter como referência
de sua própria identidade o apelido do pai ou marido. Ex: Maria de Véi
de Buda.
Entre os Capuxu os apelidos são sempre aceitos e nenhum deles
é considerado maléfico, afetando negativamente o seu portador. Não se
acredita que o apelido tenha implicações sobre a pessoa a não ser identificá-
la. Apelidos são nomes divertidos, uma forma jocosa de nomear, de se
referir ao outro. Quem apelida alguém pode ter como vingança maior,
ganhar um apelido para lhe fazer referência pelo resto da vida. Para a
minha satisfação etnográfica, adoravam as crianças contar os apelidos
umas das outras. Especialmente se o seu apelido é revelado, contar o
apelido do outro é uma forma de vingança aceitável. Mas não são eles, os
apelidos, motivos de brigas ou agressão moral. Não entre os Capuxu. Não
nas fronteiras do Sítio Santana-Queimadas.
Porém, é necessário que se diga que entre eles, e nas fronteiras do
Sítio Santana-Queimada, os apelidos são dados e recebidos por amigos
(e não inimigos) e legitimados por todos. Se para Pina Cabral (1984) os
apelidos são nomes afetivos, penso que entre os Capuxu eles são também
jocosos, além de maneiras de revelar intimidade. Entre gargalhas e
brincadeiras, gritos e sussurros, as crianças Capuxu revelam apelidos,
próprios e de outrem tornando o sistema de classificação de pessoas além
de complexo, divertido.

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Autonomia do universo infantil... 203

DAR, RECEBER E RETRIBUIR: FORMAS DE


APADRINHAMENTO, RITUAIS E RELAÇÕES
As crianças Capuxu estão submetidas, desde o nascimento, a uma
série de processos de formação do corpo da criança e da pessoa com
fins de garantir a perpetuação do ethos camponês e da identidade Capuxu.
Estas crianças são dadas desde os primeiros meses de vida a padrinhos/
madrinhas cujas relações são essenciais para os pais da criança. Parentes,
amigos ou vizinhos, próximos ou distantes, passam a ser os “segundos
pais” das crianças após o apadrinhamento através de batismo na igreja
católica. Entretanto, mais do que cumprir o fim de garantir que a criação
dos filhos seja assistida pelos padrinhos, estas relações de compadrio
geram ou fortalecem redes de relações sociais entre as famílias envolvidas
no processo.
Ainda nos primeiros meses as crianças são ofertadas mais uma
vez, agora aos chamados padrinhos santos - um santo ou santa da igreja
católica - a quem os pais devotos oferecem a criança. Este passará a ser o
seu “padrinho santo” responsável pela sua proteção e a quem as crianças
devem recorrer em situações de sufoco. Assim, as crianças passam a
pertencer, além de aos seus pais e a sua própria família, a padrinhos e
madrinhas, humanos e santos.
A constante criação de redes de relações sociais no sertão
nordestino através da reciprocidade, que faz circular bens e pessoas –
especialmente crianças - não é uma novidade. No sertão da Paraíba, as
relações camponesas são orientadas por outros fins e valores. Por isso,
a dádiva está sempre presente conformando o conteúdo destas relações,
ainda que estas assumam uma forma de compromisso ou obrigação. Isto
fica evidente, através dos conhecidos mutirões para construir poços,
caixas d’água ou casas, para roçar a terra do vizinho doente. A dádiva fica
evidente também na doação da criança como afilhada, garantia de respeito
e consideração, além de confiança, para com aqueles para quem a criança
está sendo “dada”, sejam humanos ou santos.
Entretanto todo ato de dar é orientado pela esperança de adquirir
algo em troca. Toda dádiva gera a expectativa de retribuição (MAUSS,
2003). Assim, cabe aos padrinhos humanos dentre outras coisas, assumirem
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a criação da criança no caso de falecimento ou impossibilidade dos pais.


E aos padrinhos santos cabe intervir junto a Deus para socorrê-las nos
momentos de sufoco.
Há seis tipos de apadrinhamento religiosos envolvendo crianças entre
os Capuxu, demonstrando a complexidade do sistema de apadrinhamento.
O emaranhamento de padrinhos e pedidos de bênção no cotidiano do Sítio
me deixava absolutamente confusa quanto às relações de apadrinhamento,
razão pela qual construí a tipologia: Padrinho/Madrinha de Apresentação;
Padrinho/Madrinha de Vela; Padrinho e Madrinha de Batismo (ou Pia);
Padrinho/Madrinha Santo; Padrinho/Madrinha de Fogueira; Padrinho/
Madrinha de Crisma.
A principal forma de apadrinhamento entre o povo Capuxu se dá
através dos batismos. Este é o apadrinhamento mais legítimo de todos. Ele
é formalizado pela Igreja Católica que confere até mesmo um certificado
aos padrinhos. Entre o povo Capuxu a maioria dos batizados ocorre na
Igreja de Sant’Ana, no Sítio Santana, sendo raros os que são realizados na
igreja da cidade de Santa Terezinha. Esse tipo de ritual católico, religião da
maioria dos moradores de Santana, envolve três tipos de padrinhos, além
dos principais padrinhos que são os chamados Padrinhos de Batismo ou
de Pia (a expressão vem de pia batismal) que consta sempre de um casal. A
Igreja determina que o homem e a mulher a se tornarem padrinhos sejam
casados de fato e de direito, pela Igreja, ou não tenham qualquer tipo de
relacionamento um com o outro.
Como citado, o ritual de batismo gera ainda outros dois tipos de
apadrinhamento: o chamado Padrinho de Apresentação e o Padrinho
de Vela. Cabe ressaltar que embora utilize o termo no masculino, regra
geral para quem se refere a padrinhos, este apadrinhamento diz respeito
tanto a padrinhos como a madrinhas, sendo apenas um dos dois, e ficando
a decisão sobre o gênero a critério dos pais. O chamado padrinho ou
madrinha de Apresentação é o responsável por apresentar a criança a
Deus. Para isso, no início da celebração na igreja, quando é anunciado o
batismo da criança, o padrinho/madrinha de apresentação caminhará até
o altar com a criança nos braços, ficando por lá alguns segundos para que,
além de Deus, todos os presentes na Igreja possam vê-la.

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Autonomia do universo infantil... 205

Em geral as crianças Capuxu são batizadas entre os seis meses e


dois anos de idade. Há pressa em se batizar a criança, pois caso ocorra dela
morrer sem ser batizada, acredita-se que ela por morrer pagã, não vá direto
para o céu, o que ocorre com as criancinhas que morrem depois de serem
batizadas. O mais comum é que o batismo ocorra ao completar um ano de
idade. Mas há um fator que interfere na decisão sobre a época de batizar
a criança: é que boa parte dos padrinhos mora fora da comunidade e às
vezes até do estado, considerando que muitos jovens Capuxu foram morar
em São Paulo, e hoje, bem sucedidos, são escolhidos como padrinhos de
muitas crianças. Neste caso o batismo fica condicionado aos períodos
festivos, de fim de ano (Natal e Ano Novo) ou dos meses de junho e julho
(São João, São Pedro e Sant’Ana), quando os Capuxu que moram fora
tiram férias e podem vir visitar e batizar as crianças. Há, ainda, o chamado
padrinho ou madrinha de Vela. Este é o responsável por segurar a vela,
durante a celebração do batismo, no altar ao lado dos pais da criança e dos
chamados padrinhos de batismo. É importante informar que os Padrinhos
de Batismo são os únicos com certificado instituído pela Igreja, ficando
um documento arquivado na paróquia.
Poderíamos dizer, grosso modo, que os padrinhos de Apresentação e
de Vela são assessórios durante o batismo, uma espécie de apadrinhamento
complementar. Eles flutuam em torno dos padrinhos principais que são
os padrinhos de batismo ou de pia. Em todo caso, eles cumprem uma
importante função social, já que são considerados padrinhos para o resto
da vida.
Entre o povo Capuxu, de modo geral, é comum que se peça
a bênção aos padrinhos, mesmo os adultos e os idosos, se ocorrem de
ainda terem padrinhos vivos. Aliás, mesmo após a morte dos padrinhos,
os idosos se referem a eles sempre com as nomenclaturas de padrinho e
madrinha acrescentados antes do nome, como “finado padrinho José” ou
“finada madrinha Ana”.
Além dos padrinhos de Apresentação, de Vela e de Batismo há ainda
três outros tipos a serem aqui mencionados. São eles os Padrinhos Santos,
os Padrinhos de Crisma e os Padrinhos de Fogueira. Os Padrinhos Santos

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206 Emilene Leite de Souza

são escolhidos entre o rol de santos do panteão católico, especialmente nas


folhinhas de calendário que identificam o dia de cada santo. O critério de
escolha do padrinho santo para a criança pode ser pelo fato do nascimento
dela ter ocorrido no dia do santo, quando além de herdar o nome do santo
a criança o terá como padrinho, mas também pode se dar por outras razões,
a biografia do santo que comove seus pais ou uma graça já alcançada pelos
pais através de determinado santo, que os tornaram devotos. Assim, um
modo de retribuir a graça alcançada será deixando um filho aos cuidados
do santo. A partir de então será a criança também devota daquele santo.
Vale aqui mencionar a reciprocidade presente também nas relações com
o sobrenatural. Mesmo nas relações que se estabelecem entre os santos
e os homens cabem as obrigações e as retribuições. Sendo a gratidão e
a retribuição que caracterizam estas relações, ou seja, até aos santos, de
quem se consegue algo, é preciso dar algo em troca.
No que diz respeito aos Padrinhos de Fogueira, o ritual ocorre
fora da igreja católica, mesmo assim o classifico como religioso por
dizer respeito a santos como São João e São Pedro e tem seus rituais
realizados nas noites em que se comemoram estes santos. Este tipo de
apadrinhamento ocorre, por assim dizer, no final da infância ou início da
adolescência, sendo mais por iniciativa das crianças do que dos seus pais.
Isto também por que há uma forma lúdica no ritual que se manifesta no
meio de uma festa, na noite ou na madrugada de São João e de São Pedro,
em volta da fogueira acesa nos terreiros das casas. Desta forma, o ritual
é envolto de diversão e é de desejo das próprias crianças. Há também
um fator importante a ser mencionado: esta é a única ocasião em que a
criança escolhe seu padrinho ou madrinha mais livremente, podendo ser
escolhido alguém com a idade igual a sua ou pouco maior que a sua, de
modo que as crianças e adolescentes terminam por reforçar os laços de
amizade através do Batismo de Fogueira.
Também por isso, percebemos que o mais comum é uma divisão
dos gêneros, já que as meninas optam por terem madrinhas de fogueira,
e os meninos optam por terem padrinhos de fogueira, ambos procedem
a escolha através do critério nível de amizade. Assim, crianças maiores, a
partir de 09 ou 10 anos de idade já são envolvidas neste ritual, escolhendo

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Autonomia do universo infantil... 207

seus padrinhos e participando do ritual sob a observação divertida dos


adultos nas noites de festa.
Vejamos a descrição do ritual. Durante a noite de São João ou
São Pedro, em que se comemora o dia destes santos, após escolher seu
padrinho ou madrinha de fogueira e fazer o convite, tendo aceitado o
padrinho, os dois devem pôr-se de pé, cada um de um lado da fogueira
estando de frente um para o outro. É importante, pois, que as chamas
da fogueira (sua labareda) esteja baixa, do contrário os dois podem se
machucar, já que, em seguida, dão-se as mãos cruzadas esticadas por cima
da fogueira (em alguns casos usam-se pequenas varinhas retiradas da mata,
nos casos em que a fogueira seja grande em diâmetro impossibilitando que
as mãos se alcancem ou nos casos em que a labareda esteja alta demais
podendo queimar as crianças).
Uma vez ligados por cima da fogueira, sejam por suas próprias mãos
ou pelas varinhas que se tocam, os dois, padrinho e afilhado, passam a girar
em volta da fogueira na mesma direção em passos lentos e o pretendente
a afilhado deverá pronunciar os versos:

São João falou


São Pedro confirmou
Que você fosse minha madrinha
Que São João mandou (no caso de ser dia 23/06, véspera
de São João)
Que São Pedro mandou (no caso de ser dia 28/06, véspera
de São Pedro)

É importante esclarecer que as relações entre padrinho/madrinha


de fogueira e afilhado são parecidas com aquelas estabelecidas entre os
demais tipos, inclusive o de batismo, devendo a criança pedir a bênção,
respeitar, honrar seus padrinhos e ajudá-los no que for preciso. Quanto
aos padrinhos, estes devem atuar como segundos pais das crianças,
orientando, ajudando, acompanhando de perto sua educação.

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208 Emilene Leite de Souza

Para finalizar a nossa tipologia, resta-nos citar os Padrinhos de


Crisma, que derivam de um batismo chamado de Rito de Crisma ou Rito
da Confirmação, pois ele visa à confirmação do ritual do batismo católico
quando, adultos, os fiéis podem renovar sua fé em Cristo. Este tipo de
apadrinhamento por batismo, que ocorre quando meninos e meninas
completam quinze anos de idade, é o último e ocorre na Igreja de Sant’Ana
no Sítio, não se diferenciando do ritual que ocorre nas igrejas da cidade.
Até porque ele segue o rito elaborado pelo Vaticano, com apresentação
dos crismados, uma missa voltada para eles e a apresentação de seus
padrinhos.
O Rito de Crisma gera o apadrinhamento de Crisma, dando lugar
a novos padrinhos que não substituem os primeiros, mas vem se unir a
eles. Em Santana-Queimadas os Padrinhos de Crisma são escolhidos pelos
jovens, com alguma influência de seus pais. Não são aceitos, por exemplo,
padrinhos muito jovens que tenham a mesma idade dos afilhados, em
geral são buscados padrinhos ou madrinhas mais velhos.
Mas há uma ressalva a ser feita no que diz respeito às relações
engendradas pelo apadrinhamento. À princípio, todo apadrinhamento gera
compadrio, mas no caso da tipologia Capuxu isso não é verdade. A única
forma de apadrinhamento que gera compadrio é o batismo, as demais
formas não tornam os pais da criança e seus padrinhos, de Apresentação,
de Vela, Santo ou de Fogueira, compadres. Eles não se referem uns aos
outros como “compadre e comadre” e não parece haver qualquer tipo de
mudança nas relações que se estabeleciam antes e depois dos rituais de
apadrinhamento.
No que diz respeito à escolha dos padrinhos a regra geral entre
o povo Capuxu é que sejam primos dos pais da criança, sendo este o
tipo mais comum de compadrio que eu registrei: o que se estabelece entre
primos. Interessante é que estas formas de apadrinhamento garantem,
de certa forma, uma espécie de mobilidade permitindo que as crianças
transitem entre casas e famílias, obtendo uma segunda casa e uma família
à parte, e possam circular pela vida social Capuxu e pelo sobrenatural com
alguma proteção (através dos padrinhos santos).

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Autonomia do universo infantil... 209

O compadrio consiste em laços criados entre adultos envolvendo


as crianças, constituindo-se como importante ferramenta para construir
alianças. No compadrio, a criança é a moeda de troca, o elo entre os dois
grupos de adultos, representando o elemento de união e de troca, elas
são negociadas através de relações de compadrio que são uma extensão
da família. No sertão da Paraíba o compadrio ocupa um lugar estratégico
no jogo de relações que os pais estabelecem em volta da criança, sendo
uma ocasião privilegiada para exprimir afeto e amizade em relação aos
membros da parentela ou para amigos próximos, criando ou reforçando
laços de afeto.
Ademais, o apadrinhamento é uma condição sem a qual não se
funda a pessoa Capuxu. Uma pessoa sem padrinhos (humanos e santos)
na comunidade estaria desprotegida, à mercê do destino, da sorte. Ter
padrinhos é, além de estar assegurado em termos de apoio na ausência
dos pais, garantir a reciprocidade entre famílias, entre compadres e entre
padrinhos e afilhados. Um atributo da pessoa Capuxu é ser apadrinhado,
num sistema onde compadres, padrinhos e afilhados estabelecem relações
de solidariedade e reciprocidade que estruturam toda a comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A AGÊNCIA DAS CRIANÇAS


CAPUXU

O caso da autonomia das crianças Capuxu e sua agência em um


contexto camponês em que não há uma autonomia de um universo
infantil – mas em que espaços, tempos, práticas e experiências adultas e
infantis estão emaranhadas – é bastante útil para nos ajudar a entender
a importância de considerar o protagonismo infantil nas mais diversas
situações.
A agência infantil Capuxu fica bastante evidenciada no contexto
dos três sistemas. No sistema de parentesco devemos considerar que
a aproximação das crianças com seus possíveis cônjuges tem início na
infância e nessa fase é construído o sentimento de afeto em relação a
estes. Neste sentido a disposição das crianças em aceitarem primos como
prováveis cônjuges é fundamental para que tais relações se concretizem no

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210 Emilene Leite de Souza

futuro. Assim, as crianças também atuam convivendo com seus cônjuges


em potencial desde tenra idade e lançando as bases para uma relação a ser
consolidada na fase adulta.
Como o sistema não obriga o casamento entre primos (embora
pressione moralmente), depende da introjeção deste costume desde a
infância a consolidação dele na vida adulta, garantindo a manutenção do
sistema endogâmico e a não fragmentação da terra. Sendo esta endogamia
também, uma importante estratégia de manutenção da identidade Capuxu.
O sistema onomástico, por sua vez, revela a agência das crianças
quando estas burlam a nominação estabelecida atribuindo apelidos aos seus
pares e passando a chamá-los somente assim. Estes apelidos atravessam o
universo infantil chegando aos adultos que passam a se referir às crianças
também pelos apelidos, que perdurarão ao longo da vida.
Quanto ao sistema de apadrinhamento, mais uma vez a agência
infantil fica evidente, não só pelas relações que se estabelecem entre
crianças e seus padrinhos (que engendram novas relações de parentesco),
mas porque através do apadrinhamento de fogueira, as crianças elegem
novos padrinhos, escolhidos de seu círculo de amizade, que em alguns
casos se tornam mais próximos do que aqueles escolhidos pelos seus pais
que lhes batizaram na infância.
Embora o ritual de padrinho/madrinha de fogueira não gere
compadrio, ele revela um importante aspecto da infância Capuxu: a
autonomia que é dada às crianças. Percebamos que, como ocorre com o
sistema onomástico, as crianças conseguem criar estratégias para burlar
os sistemas formais e suas estratégias terminam por ser legitimadas pelos
adultos e a comunidade de modo geral. Se no sistema onomástico as crianças
escolhem maneiras de chamarem umas às outras que não correspondem
aos nomes que lhe foram atribuídos pelos seus pais na infância, também
no apadrinhamento de fogueira elas escolhem para si outros padrinhos
que, a depender da proximidade com a criança na vida cotidiana, podem
se tornarem mais importantes para elas que os de batismo, considerados
pelos adultos os principais padrinhos. Em tudo que diz respeito à cultura
Capuxu as crianças dão um jeito de imprimir suas regras, de modificar
aquilo que lhes é imposto e de ressignificar o sistema.

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Autonomia do universo infantil... 211

Deste modo a agência infantil perpassa os principais sistemas


da organização social Capuxu transformando-os e imprimindo neles
sua autonomia sem que se construa, no entanto, um universo infantil
autônomo, distinto e separado do universo adulto.

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Texto recebido em 14/12/2017 e aprovado em 09/04/2018.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 179-214, fev./jun. 2018


214 Emilene Leite de Souza

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LAS (PEQUEÑAS) MANOS QUE TRABAJARON
LA TIERRA. VIDA INFANTIL Y RECUERDOS
EN EL PERIURBANO RURAL DE BUENOS
AIRES (ARGENTINA, 1950-1960)

Celeste De Marco1

RESUMEN: Este estudio pretende contribuir a la reconstrucción y caracterización de


la vida de los niños y niñas que vivieron en áreas productivas periurbanas en Buenos
Aires (Argentina), en el período que abarca las décadas de 1950-1960. O sea, niños y
niñas cuyas vidas fueron marcadas por un estilo de vida “de campo” y con inserción
productiva en las empresas familiares, pero, al mismo tiempo, con la posibilidad de acceso
a bienes, servicios y prácticas de origen urbano. Para abordar la cuestión son tomados
como casos de estudio dos colonias agrícolas creadas en áreas rurales cerca de la capital
federal de la Argentina y de la capital de la provincia de Buenos Aires, a mediados del
siglo XX, durante el peronismo (1946-1955). La hipótesis que se propone es que los
niños y las niñas estructuraban la economía familiar a partir de un trabajo que no era
tangencial. Al mismo tiempo, nutrían la vida social con base en sus prácticas y necesidades
particulares. En suma, la intención es apuntar a la importancia del segmento infantil en las
áreas periurbanas, en un período de plena implantación y consolidación de estas.
PALABRAS CLAVE: Infancia; Rural; Memória; Periurbano.

1
Becaria doctoral CONICET en el Centro de Estudios de la Argentina Rural de la Universidad
Nacional de Quilmes. Contacto: rdemarco@conicet.gov.ar / celestedemarco88@gmail.com
216 Celeste De Marco

AS (PEQUENAS) MÃOS QUE TRABALHARAM


A TERRA. VIDA INFANTIL E RECORDAÇÕES
NO PERIURBANO RURAL DE BUENOS AIRES
(ARGENTINA, 1950-1960)

RESUMO: Este estudo pretende contribuir para a reconstrução e caracterização da vida


das crianças que viviam em áreas produtivas periurbanas em Buenos Aires (Argentina),
no período que vai das décadas 1950-1960. Ou seja, crianças cujas vidas foram marcadas
por um estilo de vida “do campo” e com inserção produtiva nos negócios da família, mas,
ao mesmo tempo, com a possibilidade de acesso a bens, serviços e práticas de origem
urbana. Para abordar a questão são tomados como estudos de caso duas colônias agrícolas
criadas em áreas rurais perto da capital federal da Argentina e capital da província de
Buenos Aires em meados do século XX, durante o peronismo (1946-1955). A hipótese
que se propõe é que as crianças estruturaram a economia doméstica familiar a partir de
um trabalho que não era marginal. Ao mesmo tempo, alimentaram a vida social com
base em suas práticas e necessidades particulares. Em suma, a intenção é apontar para a
importância das crianças nas áreas periurbanas, em um período de plena implantação e
consolidação produtiva destas.
PALAVRAS-CHAVE: Infância; Rural; Memória; Peri-urbana.

THE (LITTLE) HANDS THAT WORKED THE


LAND. CHILDREN’S LIFE AND MEMORIES IN
THE RURAL PERIURBAN OF BUENOS AIRES
(ARGENTINA, 1950-1960)

Abstract: The present study aims to contribute to the reconstruction and characterization
of those children that lived in peri-urban productive spaces in Buenos Aires (Argentina)
in the period spanning the decades of 1950-1960. That is to say, children whose lives were
marked by a lifestyle of “field” and with productive insertion in the family business, but,
at the same time, with the possibility of access to goods, services and practices of urban
origin. To address the issue, two late agricultural colonies formed in the rural contours
near the federal capital of Argentina and the provincial capital of Buenos Aires in the

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 217

mid-twentieth century during the Peronist period (1946-1955) are taken as case studies.
The hypothesis is that the children structured the family domestic economy from work
that was not marginal. At the same time, they nurtured social life based on their particular
practices and needs. In this way, the intention is to indicate the importance of children in
peri-urban areas, in a period of full deployment and productive consolidation of these.
KEYWORDS: Childhood; Rural; Memory; Periurban.

INTRODUCCIÓN2

El abordaje académico sobre la niñez actual se presenta como un


campo en dinámico crecimiento con hallazgos promisorios, pero, al mismo
tiempo, parece evidente que no carece de reservas y cuestionamientos.
Diversas discusiones vigentes alteran el panorama, por ejemplo, aquellas
sobre la agencia infantil3 y la posibilidad concreta de abordar este tipo de
sujetos. Pero ¿cuánto más se complejiza la cuestión si el foco se pone en
el pasado?
El rol de los niños es un gran tema vacante, especialmente en el
marco de estudios históricos porque, aunque se ha sugerido su importancia
en general al introducir nuevas prácticas al mundo familiar a partir de, por
ejemplo, su escolarización (a través de la alfabetización de los miembros
de la familia o innovaciones productivas y/o tecnológicas), los aportes
siguen siendo limitados, algo que Hareven (1978) ya apuntó desde hace
tiempo.
En este cuadro la perspectiva histórica adiciona una problemática:
las fuentes. Es que acceder a documentos producidos por los propios niños
constituye, de por sí, un objetivo esquivo y una circunstancia bastante
excepcional. Cuando se logra, además, debe considerarse que muchos de
2
El presente artículo se enmarca en el desarrollo de una tesis doctoral con auspicio del
CONICET desarrollada en la Universidad Nacional de Quilmes, la cual se encuentra en su fase
final de realización. La misma aborda el aporte familiar en colonias agrícolas del periurbano
bonaerense, entre 1950-1980.
3
El debate es amplio, pero baste señalar que para algunos desvela un presupuesto académico
clasista y etnocéntrico que desvela la imposición de una mirada aburguesada sobre los niños
(LANCY, 2012). Otros prefieren advertir que la agencia, en verdad, debe considerarse de forma
relacional y contextual (GLEASON, 2016).

Temáticas, Campinas, 26, (51): 215-248, fev./jun. 2018


218 Celeste De Marco

los registros no fueron autónomos o espontáneos, sino forjados las más


de las veces en diferentes marcos institucionales bajo la tutela adulta. Pero
¿qué sucede cuando ni siquiera escasean (o existen) rastros de este tipo
que den cuenta de sus existencias? En este punto, la búsqueda de medios
alternativos para estudiar la historia de los sujetos infantiles se impone.
En este sentido, las fuentes orales no han pasado desapercibidas
para los investigadores, para, a través de ellas reconstruir experiencias,
condiciones de vida, así como también impresiones y valoraciones. De
hecho, son múltiples los trabajos que han ahondado en la propuesta, aunque
es evidente que destacan aquellos que se sitúan en circunstancias donde
la guerra, la violencia política y/o el terrorismo de Estado hicieron mella
en la vida familiar, y, por ende, en la cotidianidad infantil.4 Tales estudios
abrieron una brecha interesante sobre el universo mínimo e íntimo de los
niños, pero todavía deben sumarse esfuerzos por reponer otros aspectos
de la vida infantil, en otras temporalidades y en otros espacios.
Porque, si la infancia no ha ocupado aún un lugar significativo en
la mainstream history, es posible encontrar a su vez grupos marginalizados
dentro de los mismos estudios que predominan el panorama, una
visibilidad empobrecida que se complementa con los rastros fragmentarios
y la dificultad de reponer sus existencias, pretéritas o actuales.
La referencia es válida para una multiplicidad de circunstancias,
desde aquellos sujetos infantiles víctimas de flagrantes discriminaciones o
abusos, hasta aquellos niños que se caen del calidoscopio de la visibilidad
social en virtud de su opacidad. Pero, como apuntan Sköld y Vehkalathi
(2016), ¿qué tipo de historia trazaríamos si no diéramos cuenta de las
lateralidades y marginalidades que componen el mundo infantil?
Pocas dudas caben acerca de que los niños rurales componen
este universo. Un rasgo que da cuenta de ese hecho es que la historia
de la infancia aún no los ha analizado en amplitud. Al mismo tiempo, la
historia rural, incluso cuando se propone abordar lo subalterno dentro
del esquema de los sujetos sociales agrarios, escasamente ha dado cuenta
4
En efecto, particularmente prolíficos han sido en los últimos años los aportes sobre las
dictaduras militares en América del Sur en la década de 1970 y el registro coral de memorias
infantiles que delinean nuevos espectros de estas cruentas experiencias (LLOBET, 2015).

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 219

de este conjunto particular. Esto también resulta evidente al puntualizar


sobre estudios de familias rurales, y aunque se han hecho significativos
aportes en las últimas décadas, queda mucho por estudiar, incluyendo en
ese espectro a la niñez rural argentina y pampeana, en especial desde un
punto de vista histórico.5
En virtud de lo expuesto, el objetivo del presente trabajo es reponer
hebras en el discontinuo tejido de la historia de la infancia, particularmente
sobre aquella rural. Pero dentro de este contexto tan propenso a la
invisibilización, se considera que merecen atención los niños que vivieron
en zonas rurales de enlace con la ciudad, espacios de indiscutible valor
productivo, y a la vez, mayormente desprovistos de atención.
De este modo, se apunta a la reconstrucción y caracterización
de aquellas vidas infantiles que habitaron en espacios productivos
periurbanos6 en la zona pampeana argentina. Es decir, niños cuyas

5
Los aportes sobre niñez rural surgen en general en el marco de estudios sobre familias. En
líneas generales, y para diversas realidades regionales argentinas, se aborda la temática de las
representaciones sociales (GUTIÉRREZ, 2009; 2010) y condiciones de vida (CERDÁ, 2009),
especialmente en lo que respecta a su participación en los esquemas familiares y productivos
y su escolarización (LIONETTI, 2012; ASCOLANI, 2012; MARTOCCI, 2010; BILLOROU,
2015). La cuestión de la niñez, no obstante, poco se ha estudiado desde la ubicación espacial
y social de las colonias agrícolas. Encontramos, de este modo, que los trabajos existentes
refieren a la experiencia educativa de los escolares, que en ocasiones se pone en diálogo con la
cuestión de la inmigración. Tal es el caso de Zavala Cepeda (2008), a través de su aporte sobre
colonización y educación en la Araucanía entre 1887 y 1915, como de Avellaneda y Casanello
(2007) en su estudio sobre escuelas judías en colonias agrícolas. Por su parte, De Paz Trueba
(2017) analiza la situación de la niñez en poblados de campaña hacia finales del siglo XIX y
comienzos del XX, en contextos de instituciones asistenciales. Sin enfocarse precisamente en
la experiencia de quienes fueron niños rurales, Bjerg (2012) recoge un nutrido grupo de relatos
sobre los recuerdos de niños que vivenciaron el exilio en Argentina, en la segunda posguerra.
Con perspectivas más actuales, resultan indispensables los trabajos de Aparicio (2007; 2009)
donde la autora analiza las características del trabajo infantil en medios de características rurales
en Argentina, basándose en registros censales y estadísticos. Sin embargo, aunque en los
últimos años se hicieron aportes (DE MARCO, 2015), no existen muchas labores que vinculen
las fuentes orales con la recuperación histórica de la niñez rural.
6
En términos de Barsky (2011:15), periurbano se define como: “un territorio productivo,
residencial y de servicios que se desarrolla en el contorno de las ciudades. Se genera cuando un
centro alcanza determinadas dimensiones, es decir, cuando conforma un mercado de alcance
regional que requiere ser abastecido desde ‘las cercanías’”.

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220 Celeste De Marco

vidas fueron signadas por un estilo de vida “de campo” y con inserción
productiva en la empresa familiar, pero, al mismo tiempo, con posibilidad
de acceso a bienes, servicios y prácticas de origen urbano.
Para abordar la cuestión se toman como escenarios de estudio dos
colonias agrícolas tardías formadas en los contornos rurales cercanos a la
capital federal de la República Argentina y la capital provincial de Buenos
Aires a mediados del siglo XX. Estos emprendimientos encastraron en
zonas donde estaba cuajando un perfil productivo intensivo orientado a
la producción de verduras y también de flores, el cual contribuyeron a
afianzar. En este tipo de espacios y ese momento donde la producción
tuvo un patente cariz familiar (puesto que así era promovido desde la esfera
pública que regulaba las colonias), la impronta infantil se percibe como
indeleble. Y a la vez, paradójicamente, incorpórea. Es por esa razón que
se propone poner de relieve la vida cotidiana de los hijos de los colonos,
esencialmente a partir de dos ejes: el trabajo y la escolarización.7
Lo anterior se aborda a partir del análisis de entrevistas8 realizadas
a sujetos que habitaron colonias agrícolas periurbanas durante su etapa
infantil, entre las décadas de 1950-1960. En concreto, el presente estudio,
de evidente tenor microhistórico, se estructura con base en una serie de
relatos de mujeres y hombres que transitaban su niñez cuando llegaron a las
colonias “La Capilla” y “Urquiza” para radicarse, ambos emprendimientos
ubicados en las cercanías citadinas, fundadas en el marco del peronismo
histórico. Lo anterior fue cotejado a su vez con otras fuentes documentales
que remiten a los proyectos colonizadores.9
7
Es importante consignar que también había niños que eran hijos de peones contratados
por los colonos. Sin embargo, dar cuenta de este subgrupo es complejo debido a su reducido
número (en comparación con los hijos de los propietarios de las tierras), de la movilidad de
estas familias y la consiguiente imposibilidad de dar con sus rastros, e incluso con ellos mismos
para recuperar sus testimonios.
8
Las entrevistas seleccionadas forman parte de una serie realizada por la autora entre 2011
y 2017. Las que corresponden a “Colonia Urquiza” fueron posibles con la inestimable
colaboración de la Prof. Isabel Cafiero.
9
El rastreo de documentación pertinente ha sido profuso, dada la diseminación e intermitencia
de los rastros. Se refiere en particular a carpetas de colonias de los entes colonizadores
(Ministerio de Asuntos Agrarios -MAA-, Consejo Agrario Nacional -CAN- o Banco de la
Nación Argentina) encargados de su creación e inspección, informes técnicos de organismos

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 221

A través de esta propuesta se intentará reponer la existencia de


este particular grupo, pero, al mismo tiempo, se trata de una apuesta
por consolidar los estudios de infancia desde una perspectiva histórica, a
partir de un abordaje metodológico que pondera la historia oral, teniendo
presentes sus potencialidades y limitaciones.
En suma, el análisis apunta a desentrañar el hecho de que la presencia
infantil en este tipo de espacios fue fundamental en el ámbito productivo,
pues estructuró de forma no tangencial la economía doméstica. Al mismo
tiempo, este grupo habría funcionado como un catalizador de la vida
social al propender a la creación de nuevos espacios. En tal sentido, lo
que se pone en evidencia es la reciprocidad entre niños-adultos y sus
respectivos aportes, junto con las trazas de capacidad de agencia que los
sujetos infantiles pudieron desarrollar en un espacio productivo con
lógicas propias, que estaba adquiriendo rasgos de nodal importancia en
aquel preciso momento.

FUENTES ORALES Y LA MEMORIA DE LA INFANCIA

El uso de fuentes orales para deshebrar las tramas de la infancia


pretérita no ha estado (ni está) exenta de cuestionamientos. La base
argumental de las críticas radica en que no sería posible recuperar a través
de los recuerdos aspectos de la niñez vivida. Sería más bien un intento
inútil por conocer algo (ya) inaccesible. No se trata de un reparo novedoso,
al contrario, se ha señalado repetidamente la imposibilidad de recuperar la
infancia a través de la evocación. En todo caso, se recuperan “fogonazos”
(por decir, en palabras de Walter Benjamin, trazos de experiencias vividas)
que se interpretan con los moldes del presente.
Ciertamente, una vez atravesada la etapa pueril, la adultez no
puede ser nunca más removida y actúa como un filtro de construcciones
y recuerdos procesados a posteriori. Por eso los testimonios que pueden
internacionales intervinientes (por ejemplo, Comité Intergubernamental para las Migraciones
Europeas (CIME), generalmente, a través de la derivación de familias inmigrantes. Estos
documentos han sido complementados con notas de prensa que pudieron consultarse en
diversas hemerotecas, sobre periódicos locales (Mi Ciudad, de Florencio Varela; El Día, de La
Plata) y de tirada nacional (La Nación).

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222 Celeste De Marco

recabarse para investigaciones de tenor históricos son, no las voces


vivas de los niños que fueron, sino memorias de la infancia resignificadas e
interpretadas en la madurez de los entrevistados.
Por eso resulta evidente que, en la memoria de la infancia, aunque
sin control objetivo, algo nuevo es creado en el preciso momento en el
que se produce el relato (JONES, 2003: 27; DAMASIO, 1999: 226). Es
en el presente donde se plasma “la enunciación trayendo consigo una
carga afectiva que lo transfigura” (ARFUCH, 2016: 546). Dicho en otros
términos, nada (ni nadie) sale indemne desde el momento en el que se
produce la rememoración.
A su vez, posee un doble carácter. Por eso la rememoración de la
propia infancia puede despertar reflexiones acerca de la subjetividad y
agencia de quien recuerda. Tales rasgos se consideran constructos fundados
en las experiencias que son evocadas, tan lejanas como constituyentes del
ser actual, motivo por el que no sólo no pueden desestimarse, sino que es
imposible deslindarlas del relato. Pero, al mismo tiempo, funciona como
“caja de resonancia” actual de las estructuras familiares y sociales pretéritas
(CARLI, 2011). En ese sentido, su complejo carácter no invalida su valor,
pues aporta revelaciones significativas en ambos sentidos.
En este punto resulta diáfana la importancia de la memoria de la
infancia, ya que los hechos registrados sobre los que se trabaja se muestran
empapados de perspectivas infantiles, pero también de las impresiones
que los sujetos incorporaban de sus propias familias. De allí que el cruce
con la memoria familiar sea evidente.10
En el presente trabajo se analiza un corpus de veinte entrevistas
desarrolladas en el marco de una tesis doctoral en curso sobre colonias
agrícolas periurbanas y familias rurales productoras en Buenos Aires, entre
1950-1980, donde la cuestión de los niños no ha pasado desapercibida.11
Los sujetos entrevistados, mujeres y hombres, habitaron las colonias
10
Aunque existe abundante literatura académica al respecto, sugerimos la lectura de Muxel
(1999), quien propone un recorrido por los sentidos y funciones de la memoria familiar para
los sujetos.
11
Como una imposición hasta cierto punto involuntaria (pues ya no hay colonos adultos que
puedan brindar sus testimonios), sin embargo, abre una nueva dimensión de análisis que resulta
peculiar e interesante.
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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 223

agrícolas en las etapas fundacionales y de consolidación de estos


proyectos, definidas entre 1951-1955 para “Colonia La Capilla” e inicios
de 1960 para “Colonia Urquiza”, pues, aunque las colonias fueron creadas
contemporáneamente, la dinámica diferencial de sus poblamientos signó
sendos desarrollos. En cualquiera de los casos, en aquellos momentos
en los que la efervescencia del accionar público se hacía aún sentir en
el diario vivir de las familias colonas (a través del acompañamiento de
diversos entes estatales comprometidos con la colonización agrícola), los
entrevistados tenían entre 5 y 13 años. Es decir, transitaban los límites de
la etapa escolar.
De esta suerte, los testimonios aparecen permeados por memorias
productivas y escolares como dos pilares narrativos centrales, aunque
también se encuentran referencias a otros espacios de sociabilidad
secundarios o bien prácticas familiares de diferentes tipos. A su vez, es
necesario aclarar que todas las personas entrevistadas tuvieron infancias
ligadas a las labores productivas. En efecto, en este estudio se da cuenta de
los casos que constituyeron la mayoría, incluso cuando hubo una minoría
de niños en las colonias cuyos padres (en general, de origen urbano,
comerciantes, ingenieros agrónomos) no los involucraron en el trabajo en
el lote.
La selección de los entrevistados se ha hecho mediante un
muestreo en cadena (“bola de nieve”), considerado el mejor modo de
acceder a una población dispersa, de difícil rastreo (puesto que no todos
continúan viviendo en las zonas rurales analizadas), cuyos rastros solo
eran recuperables en virtud de los contactos interpersonales. Aun así, se
ha procurado mantener una relación ecuánime entre los géneros y los
orígenes de los entrevistados, con relación a las composiciones sociales
originales de las colonias analizadas.
Las entrevistas realizadas fueron de carácter semi-estructurado,
con base en una serie de tópicos abordados con todos los sujetos
intervinientes en la muestra, lo que no descartó la profundización o la
introducción de nuevos aspectos, acorde a cada situación que se planteaba
y el rapport logrado. La duración de las entrevistas, algunas de las cuales se
desarrollaron en dos o más sesiones, fue de una hora aproximadamente.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 215-248, fev./jun. 2018
224 Celeste De Marco

En suma, habiendo definido aspectos de orden metodológico, resta


entonces perfilar con mayor nitidez los escenarios donde se desenvolvieron
las vidas infantiles de los entrevistados. En ese sentido, a continuación, se
caracterizan las colonias como casos.

COLONIAS “LA CAPILLA” Y “URQUIZA”. CARACTERÍSTICAS


DE LOS ESCENARIOS DE ESTUDIO

En Argentina, al igual que en otros países de Latinoamérica, la


colonización agrícola se muestra como una de las pocas políticas que,
dirigidas a la familia rural, ha tenido un largo (aunque zigzagueante)
trazado a través del tiempo, a la vez que un alcance territorial extenso. De
hecho, en este país se encuentran vestigios de esta desde mediados del
siglo XIX, aunque su etapa más exitosa haya sido a finales de esa época.
Pero, aun cuando su estación dorada había pasado, en el siglo XX
la colonización fue foco de propuestas y debates que la posicionaban
como una opción. Esto tenía que ver con el hecho de que pervivían
arcaicas y bucólicas representaciones sobre la vida rural que la dotaban
de significados positivos y moralizantes que debían ser resguardados. Pero
había otras razones. En efecto, lo anterior dialogaba fluidamente con la idea
de que, en el marco de las guerras mundiales y sus respectivas posguerras,
profundizar la producción alimenticia era una necesidad incuestionable
que debía recibir respuestas por parte de la dirigencia política mundial.
De esta suerte, proyectar colonias agrícolas se convirtió en
una práctica posible, en virtud de que se perfilaba como una solución
multipropósito. Por un lado, permitía consolidar producciones de primera
necesidad (o alimentos protectores, en la jerga de la época), bajo la atenta
mirada estatal que podía imprimirles una dirección concreta. Por otro lado,
era un modo de asentar población en medios rurales, lo que permitía, en
teoría, frenar el éxodo rural y contener el desmedido crecimiento urbano.
A esto debe sumarse que, poco a poco, comenzaron a cobrar
notoriedad e interés los espacios periurbanos. Su cercanía con las ciudades
admitía abaratar en varios sentidos: los alimentos obtenidos serían más

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 225

económicos en virtud de los menores gastos en transporte, pero también


el costo de implantar familias sería menor, ya que al ser accesible la vida
urbana, no representaría una tentación que supusiera el abandono del
hogar rural.
Durante el peronismo histórico (1946-1955) estas ideas que
gravitaban en general no pasaron desapercibidas. Aunque ya habían
existido propuestas previas orientadas a consolidar la colonización (a
nivel nacional y en especial en la rica provincia de Buenos Aires),12 sin
dudas Juan D. Perón utilizó la temática como un modo de atraer nuevas
bases sociales a su proyecto político. De esta suerte, el lema “la tierra para
el que la trabaja” funcionó sobre todo en lo retórico durante su etapa
preelectoral. Pero incluso cuando alcanzó la presidencia se dieron algunas
concreciones al respecto, aun cuando el tenor de estas afirmaciones se
había morigerado bastante. De forma contemporánea, en la provincia
de Buenos Aires el interés por la colonización cobró una importancia
peculiar, incluso cuando a nivel nacional perdía vigencia.13 Aun así, la
propuesta colonizadora comenzaría a perder brillo en el nuevo contexto
que se avecinaba (LATTUADA, 1986; BLANCO, 2007).

12
Luego de intensos debates legislativos, en 1940 se promulgó la Ley Nacional 12.636 que
daría origen al Consejo Agrario Nacional, principal entidad a cargo de obras colonizadoras
nacionales. Pero desde 1936 existía en la provincia de Buenos Aires una legislación (Ley
Provincial 4.418) que fundó el Instituto Autárquico de Colonización (IAC), sirviendo su
accionar como modelo para otras experiencias del período.
13
Fue durante la gobernación peronista de Domingo A. Mercante (1946-1951), el IAC fue
refundado (Ley Provincial 5.286), dando origen a nuevos proyectos, entre ellos, “Colonia La
Capilla”.

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226 Celeste De Marco

Imagen 1. Colonias agrícolas nacionales y provinciales radicadas en zonas


periurbanas, y locación de los principales mercados de abasto, 1951-1964

Fuente: Elaboración propia con base en https://maps.google.com/

En efecto, durante la etapa posperonista la colonización perdió


impulso, escindida por el cambio de escenario político y económico,
cuestionada por sectores conservadores ligados a la burguesía rural. Y,
aunque durante el desarrollismo de la década de 1960 cobraría relevancia,
lo haría de forma limitada e intermitente, signando el lento final de la
política. En ese sentido, la Imagen 1 señala los lugares de formación de
colonias periurbanas junto con la ubicación de los principales mercados
hortícolas de la zona en las cercanías de la capital federal. Las fechas de
sus creaciones y los espacios seleccionados confirman que estos proyectos
se dieron en las etapas de auge antes referidas, y que eran pensados bajo
lineamientos socioproductivos claros.
En este marco quedaron engarzados los casos de “Colonia La
Capilla” y “Colonia Urquiza”. La primera de ellas fue creada por el
Instituto Autárquico de la Provincia de Buenos Aires (IAC), y la segunda
por el CAN. Aunque orbitaban en diferentes esferas de la administración

Temáticas, Campinas, 26, (51): 215-248, fev./jun. 2018


Las (pequeñas) manos que trabajaron... 227

pública, ambas fueron formadas en 1951. Con locaciones periurbanas,14


adquirieron un perfil intensivo desde sus comienzos en el que se destacó
la producción de hortalizas y luego (incluso contraviniendo la normativa
colonizadora), de flores, especialmente de mano de japoneses, y en menor
medida, de portugueses (DE MARCO, 2016).
Más allá de sus ubicaciones, también compartían otros rasgos.
Entre sus poblaciones predominaban las familias de diferentes orígenes
con recorridos transoceánicos recientes, lo cual permite vislumbrar la
articulación de esta política de tierras con una de tipo inmigratorio que,
especialmente durante el peronismo, pretendía seleccionar y direccionar a
los inmigrantes según las necesidades locales y sus capacidades (BIERNAT,
2007).
Con esa intención, y con apoyo de organismos internacionales –
entre los que se destacaba el CIME –, se postuló el ingreso de familias
rurales destinadas al campo argentino, falto de brazos trabajadores según
la consideración oficial. Por este motivo se fundamentaron convenios
para incorporar italianos y más tarde también españoles (DE MARCO,
2013). Aunque, en rigor de verdad, los logros fueron más acotados que las
intenciones. La vinculación de estas directrices inmigratorias con programas
de colonización vigentes habilitó el ingreso de familias inmigrantes a este
tipo de espacios. Al mismo tiempo, tras una fuerte oleada inmigratoria
transoceánica a finales del XIX, Argentina experimentaba por entonces el
último ingreso (aunque de menor magnitud) de este tenor. Eso implicó que
hubiera familias de diversos orígenes (europeos, asiáticos) circulando por
zonas urbanas o rurales de partidos cercanos a la capital federal, en busca
de un lugar donde asentarse. Muchos de ellos lograban ingresar a espacios
productivos en calidad de arrendatarios, medieros o peones, aguardando la
oportunidad de acceder a la propiedad de un terreno propio.
Las colonias en estudio se nutrieron de ambos tipos de familias
inmigrantes (que eran mayoritarias), aquellas que vinieron enmarcadas en
un convenio o las que llegaron espontáneamente, derivadas a las colonias
14
En el caso de “Colonia La Capilla”, a 15 kilómetros de la ciudad cabecera de partido y a 30
kilómetros de la capital federal. La “Colonia Urquiza”, en cambio, a sólo 10 kilómetros de La
Plata, capital de la provincia de Buenos Aires.

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228 Celeste De Marco

por recomendación de instituciones estatales con las que tomaban contacto


o por la circulación de la novedad en sus propias redes migratorias.
Había, sin embargo, singularidades. En “Colonia La Capilla” primó
una mayor variedad, con familias japonesas e italianas como grupos
mayoritarios, pero también portuguesas, ucranianas, alemanas, holandesas
y de otras diversas nacionalidades. Estos grupos, además contaban
mayormente con varios hijos, menores en edad escolar. En cambio, en
“Colonia Urquiza” la población al principio se formó con un puñado de
familias italianas cuyos hijos eran más bien adultos, y luego en la década de
1960 la llegada masiva de japoneses polarizó la distribución, con mayoría
del contingente asiático, entre los que primaban familias jóvenes con hijos
pequeños.
De modo que, aunque ambas colonias se formaron a inicios de los
años 1950, la consolidación de la última fue posterior y, en buena parte,
dependió del ingreso del grupo oriental que le dio un nuevo impulso en el
ámbito productivo y también en el social. Las familias fueron ubicadas en
ambos casos en lotes que promediaban las 5 hectáreas, lo que denotaba el
tipo de producciones que se esperaba que desarrollasen.
Con estas conformaciones sociales tan diversas las colonias lograron
configurarse como escenarios en los que no estuvieron ausentes los
proyectos de sociabilidad (escuelas, asociaciones étnicas y cooperativas),
emprendimientos que adquirieron particular brillo entre 1950-1960, etapa
de despliegue en el que primó el trabajo familiar. Aunque la simultaneidad
de ingresos en “Colonia La Capilla” habilitó una vida social conjunta
mucho más dinámica de la que se nutrieron también los niños. En cambio,
en “Colonia Urquiza”, la población que inicialmente era homogénea
quedó polarizada con el ingreso masivo de japoneses que imprimieron
su impronta al espacio. Allí los lazos entre ambas comunidades no fueron
particularmente prósperos.
Las colonias contribuyeron a imprimir un perfil productivo
determinado en las locaciones periurbanas donde quedaron insertas.
En tal sentido, por sus dimensiones y exitosos desarrollos, pareciera
que sumaron en la formación de lo que actualmente es el periurbano
bonaerense, responsable aún hoy de brindar a las poblaciones citadinas

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 229

circundantes alimentos de primera necesidad. Aun cuando con el correr


de los años fueron perdiendo sus rasgos propios en tanto colonias, no
resulta difícil entrever cuál ha sido la importancia de esta política sobre
la cuestión espacial y productiva, pero también con relación a las familias
que las integraron al intervenir y dirigir sus derroteros conforme al interés
oficial.
No obstante, ese escenario cambiaría. Hacia la década de 1980
las colonias per se habían desaparecido o se habían transformado
rotundamente, aun cuando los espacios retenían rasgos de ellas. Durante
esta etapa ingresó otro tipo de inmigrante, de origen limítrofe, en general
desde Bolivia y Paraguay, brindándole otros rasgos sociodemográficos a
estos espacios.
Los colonos inmigrantes pioneros fueron desapareciendo del
paisaje: algunos de sus hijos quedaron a cargo de las producciones, o bien
tercerizaron la explotación de los lotes, mientras que otros decidieron
abandonar las tierras familiares y ubicarse en las ciudades más cercanas
definitivamente, dedicados al comercio u otras actividades. Luego, las
políticas neoliberales que se impusieron en la conflictiva década de 1990
fueron un golpe de gracia a los resabios de la vida colona que podía
permanecer, lo que aceleró la desintegración (“Colonia La Capilla”) o
la transmutación (“Colonia Urquiza”) en un lugar rural con pervivencia
de rasgos de algunas colectividades colonas, puntualmente la japonesa,
mayoritaria y mejor organizada que las otras comunidades presentes.
No obstante, parece claro que la radicación de las colonias agrícolas
brindó un fuerte impulso a las zonas para que adquirieran los rasgos que
actualmente tienen. Teniendo presente que el trabajo familiar era la base
de funcionamiento de tales espacios, cabe cuestionarse cómo eran las
vidas cotidianas de los miembros más jóvenes, es decir, los niños, en la
etapa de consolidación del periurbano, particularmente en dos colonias
agrícolas de perfil intensivo.

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230 Celeste De Marco

EL TRABAJO DE LOS NIÑOS, ¿PEQUEÑAS TAREAS? ROLES


PRODUCTIVOS Y CIRCULACIONES INFANTILES

Pocas dudas caben que el trabajo rural se configura, en diferentes


latitudes y momentos históricos, con base en un gran aporte de mano
de obra infantil. La realidad latinoamericana y argentina en particular
(APARICIO, 2009) no escapan a esta generalidad. Por eso, como en otros
espacios regionales del período, ubicar a los niños que constituyen el
presente análisis en el ámbito productivo no ha sido una tarea difícil, dado
que su participación saltaba a la vista en testimonios, pero también en
notas de prensa local, en fotografías familiares, etc. Sin embargo, ¿de qué
rasgos asumía su inserción en el panorama productivo?
En este sentido, en ambas colonias se hallan rasgos similares.
Aunque parece claro que en la consolidación de ambos emprendimientos
los sujetos infantiles eran una parte necesaria en la mano de obra, se
distinguen diferencias en el tenor y el tiempo que requerían las tareas.
Acompasando las representaciones sociales que permeaban la vida
rural (GUTIÉRREZ, 2009), era de esperarse que los niños reprodujeran
las labores masculinas con la idea de formarse para ser los encargados
del lote familiar o de uno propio, en un futuro. En tanto que las niñas
debían ser entrenadas en el mundo doméstico y reproductivo, a través
de la imitación de las tareas femeninas desempeñadas por sus madres o
hermanas mayores.
Pero en la vida cotidiana del periurbano bonaerense estas
distinciones no aparecían evidentes, allí donde el género no mostraba ser
un parteaguas tan claro como la edad, que funcionaba como un indicador
de las aptitudes físicas de los niños para desempeñar determinadas
funciones (DE MARCO, 2015).
Si los involucraba a todos, también el trabajo organizaba tiempos y
espacios para las vidas infantiles. Esto se manifiesta diáfanamente en las
palabras de una entrevistada: “Sacaba pimpollos, cortaba el pasto, regaba.
A la tarde iba al invernáculo”.15 Su experiencia condensa tantas otras que
15
Ana Yagui, comunicación personal, 24/03/2015. Descendiente de japoneses de “Colonia
Urquiza”, productora.

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 231

apuntan al hecho de que, en general, la mañana era reservada para la escuela


primaria. En ocasiones, el mediodía, luego del almuerzo que marcaba la
pausa familiar de las tareas, o bien la noche, con la luz artificial de una
cuidada lámpara, eran los momentos de hacer la tarea. Pero las tardes
debían ser consagradas al trabajo. Como se expresa en otro testimonio, los
niños “eran de padres trabajadores y ellos mismos también, cuando volvían
a sus casas [de la escuela] trabajaban en su quinta, en verduras, flores”.16
Pero no sólo sus tiempos, sino también sus espacios eran
organizados acorde a sus roles productivos. En efecto, niños y niñas se
hacían cargo de muchas tareas que los ubicaban en diferentes lugares
dentro del lote. Sus circulaciones podían confinarlos cerca del hogar o
en el patio, seleccionando los productos por calidad y tamaño;17 o bien
en el invernadero, donde las flores necesitaban ser regadas y los plantines
trasplantados.18 Pero también trazaban sus recorridos a cielo abierto en el
lote, ayudando a levantar la cosecha, cuidando los cultivos más delicados
que requerían de atenciones puntuales, o manejando tractores.19 De
esta suerte, los niños y niñas transitaban realizando tareas de desigual
intensidad, que, incluso cuando se adaptaran a sus capacidades, no eran
de menor importancia. Por el contrario, eran nodales al articular la cadena
productiva familiar.
Al mismo tiempo, el trabajo en el campo no desligaba a las
pequeñas de las tareas intradomésticas y extradomésticas, orientadas a la
manutención del hogar y de la familia en rubros como la alimentación, la
vestimenta y el cuidado de otros, como abuelos y hermanos pequeños.20
16
Feliciana Nagai, comunicación personal, 26/12/2014 (cursivas de la autora). Descendiente
de japoneses de “Colonia La Capilla”, ex productora.
17
Silvia Di Fonzo, comunicación personal, 23/02/2015. Descendiente de italianos de “Colonia
La Capilla”, ex productora.
18
Ana Yagui, comunicación personal, 24/03/2015; Luisa Harima, comunicación personal,
04/07/2015. Descendiente de japoneses de “Colonia Urquiza”, peluquera.
19
Mafalda D’Aloisio, comunicación personal, 22/02/2015. Italiana de “Colonia La Capilla”,
productora;
Martín Giallonardo, comunicación personal, 02/10/2014. Descendiente de italianos de
“Colonia La Capilla”, ex productor y comerciante; Carlos Nakasone, comunicación personal,
25/02/2015. Descendiente de japoneses de “Colonia La Capilla”, ex productor;
20
Feliciana Nagai, comunicación personal, 26/12/2014; Olga Moldawa, comunicación personal,

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232 Celeste De Marco

Este doble carácter de la ocupación infantil femenina también dialoga con


el hecho de que, como confirman las entrevistadas, sus circulaciones eran
más restringidas respecto de los varones. Como expresa una de ellas: “El
hombre es diferente, agarra la bicicleta y se va a pasear y sale, pero ¿la
mujer a dónde va? Yo tenía que estar adentro, hacía frío, tenías que estar
adentro”.21
Los varones, en cambio, tenían más oportunidades de salir del
entorno de las colonias para ir a los mercados y otros espacios de comercio
y abastecimiento. En esos paseos aprovechaban para aprender sobre la
venta de los productos o las lógicas de funcionamiento de los mercados, y
al mismo tiempo, eran paseos a los que se les reconocían fines recreativos:
podían comprar helados o intercambiar historietas en casas de canje de
revistas.
De este modo se advierte que la cercanía de las colonias con la
ciudad impactaba de formas diferentes en sus poblaciones. Los niños,
junto con los adultos varones, podían acceder con mayor frecuencia a la
ciudad respecto de las mujeres y las niñas, quienes usualmente se quedaban
en casa con sus madres. Resulta así evidente cómo el género no delimitaba
una línea divisoria en cuanto a las tareas productivas infantiles, pero sí lo
hacía respecto de otras cuestiones, como la organización de los tiempos y
la circulación.
Más allá de estos rasgos, el trabajo de los niños no se presentaba como
algo opcional. Por el contrario, se estimaba y se contaba con que aportaran
desde sus lugares a la economía doméstica. Este tipo de experiencias no
eran privativas de algunos grupos migratorios, sino que englobaban a
todas las comunidades representadas en las variopintas colonias. Pero lo
que sí marcaba diferencias al respecto eran las trayectorias familiares.

03/03/2015. Descendiente de polacos-ucranianos de “Colonia La Capilla”, productora; María


Ceccini, comunicación personal, 03/03/2014. Italiana de “Colonia La Capilla”, ex productora;
Margarita Rivas, comunicación personal, 16/05/2015. Descendiente de japoneses, docente;
Mary Tsuruoka, comunicación personal, 24/03/2015. Descendiente de japoneses de “Colonia
Urquiza”, productora y docente.
21
Vicenta Girardi, comunicación personal, 27/01/2015. Italiana de “Colonia La Capilla”, ex
productora.

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 233

De este modo, si la familia tenía una historia de apego a las tareas


rurales, experticia y saberes prácticos en el ámbito, había más chances
de que involucraran a sus hijos en las tareas. Esto no sólo como forma
de organizar al cuerpo familiar como empresa, sino también para legar
en sus hijos un bagaje de conocimientos necesarios para continuar con
la actividad. En cambio, aquellos niños minoritarios cuyas familias eran
urbanas e intentaban convertirse a la vida rural, eran más bien reservados
para la escuela, alejados de la vida en el lote.22
No obstante, lo anterior no significa que los niños de familias de
raigambre rural no fueran escolarizados o que sus padres se opusieran
al respecto. Al contrario, participaban de la escuela sin perjuicio de su
laboreo cotidiano. Sí es cierto que en temporadas de cosecha algunos
progenitores (e incluso hermanos mayores) ponían reparos respecto de
ciertas actividades escolares que disminuían el interés o participación
de los niños en el campo, como excursiones o paseos. Pero este tipo de
situaciones eran en general resueltas con intervención de las docentes, las
cuales tomaban parte en el asunto a partir de la solicitud de los niños,
quienes habían descubierto que, si sus propios reclamos no funcionaban,
el consejo docente sí lo haría y lograría doblegar el mandato paterno.
Aunque estas actitudes se mostraban permeables a todas las
comunidades representadas, también es cierto que los inmigrantes
japoneses (sobre todo los que ingresaron en la década de 1960) presentaban
en ocasiones una valoración más alta del aspecto educacional y en virtud
de ello, podían mostrar cierta permisividad en cuanto a la colaboración de
sus hijos.23 Se vislumbra así cómo los recursos familiares impactaban en las
decisiones, pero también cómo el trabajo y la educación eran espacios en
los que se contaba con la participación infantil, y aunque no se excluían, se
afectaban mutuamente. Por eso, la dimensión productiva no era el único
espacio en que los niños pululaban. En efecto, como se ha sugerido, la
escolarización fue otro espacio indispensable.

22
María Baglione, comunicación personal, 04/03/2013. Descendiente de argentinos de
“Colonia La Capilla”, docente jubilada.
23
Luisa Harima, comunicación personal, 04/07/2015.

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234 Celeste De Marco

A, B, C… DE COLONIZAR. ESCOLARIZACIÓN Y SOCIABILIDAD


INFANTIL

La instalación de las familias en ambas colonias periurbanas activó


diversas demandas en la esfera social, en plena construcción en virtud de
sus llegadas. Algunas de ellas involucraban concretamente a los adultos,
pero los niños no quedaron para nada excluidos del escenario. En ese
sentido, la cuestión educativa se presentó como un desafío a resolver
como consecuencia de la cantidad de niños en edad escolar.
La formación de las escuelas primarias se dio de formas diferentes
en cada caso. En “Colonia La Capilla”, en virtud de su rápida configuración
inicial, en seguida se motorizó la creación de una escuela primaria. La
iniciativa quedó a cargo de varios colonos que contactaron una docente, hija
de un colono argentino, buscaron un espacio dónde radicar provisoriamente
la unidad educativa y entraron en tratativas con el municipio para agilizar
el trámite. De ese modo comenzó la escuela primaria N.º 4 “Florencio
Varela”. En sus inicios funcionó en un deteriorado edificio donde a finales
del siglo XIX había funcionado una escuela que posteriormente se cerró.
Recién luego de la caída del peronismo fue trasladada a un nuevo edificio
apto para tareas educativas (DE MARCO, 2017).
En “Colonia Urquiza”, su configuración en dos tiempos dejó su
huella. La llegada de las primeras familias italianas, pocas y con hijos que
superaban la edad de escolarización obligatoria, mermó el interés por
crear una escuela. Pero la situación cambiaría drásticamente a partir de la
década de 1960 con la llegada de los japoneses. También aquí los primeros
atisbos de solución partieron de los propios interesados, lo que confirma
que, aunque las normativas colonizadoras contemplaban la creación de
escuelas, los órganos responsables no intervinieron ni acompañaron a
los colonos en estos reclamos, evidenciando espacios de vacancia en su
accionar.
La acción de los sujetos fue fundamental. Una familia italiana que
se había instalado en 1962 contaba con un campo con una edificación el
cual pusieron a disposición para que comenzara a funcionar la escuela,
locación donde estuvo dos años (1963-1964). Bajo el techo de chapa que

Temáticas, Campinas, 26, (51): 215-248, fev./jun. 2018


Las (pequeñas) manos que trabajaron... 235

cubría el galpón era el lugar de dictado de las clases para un reducido


grupo de niños, cuyo número no pasaba de quince: un puñado de
portugueses e italianos, y el resto hijos de japoneses, todos ellos hijos
de colonos propietarios, evidenciando la inasistencia de los hijos de los
peones.24 Finalmente, en 1965 se inauguró el nuevo edificio escolar,
momento en que se creó formalmente la Escuela Primaria N.º 57 “Juan
Bautista Ambrosetti”. El proyecto había sido impulsado por la llegada
de nuevos integrantes a los campos, pero especialmente de japoneses y
nuevas familias italianas, lo que creaba los inicios de la colectividad nipona
y consolidaba la pequeña comunidad peninsular preexistente. Las familias
japonesas que comenzaban a llegar para esa época también optaron por
enviar sus hijos a esta escuela, la más cercana y accesible.25
En ambas escuelas puede identificarse que se replicaban las
conformaciones de las colonias. De esta suerte, la heterogeneidad de
orígenes de “Colonia La Capilla” se vertió en el alumnado, lo que se tradujo
inicialmente en dificultades. Principalmente por los diferentes lenguajes
que debían ceder a la incorporación del castellano, dado que, siguiendo la
norma general, la docente no permitía a los alumnos expresarse en otro
idioma en el curso.
Además, la escuela reunía niños con edades y niveles de aprendizaje
disímiles, lo que la perfilaba como una escuela multigrado (o unitaria).
En este sentido, una entrevistada apunta que “la escuela estaba llena de
grandulones”.26 Las entrevistas denotan la flagrante diferencia de edades
era un reto diario para la docente, no sólo porque representaba problemas

24
En parte, es cierto que muchos peones eran solteros o habían dejado a sus familias en otros
espacios, pero influía el hecho de aquellos que sí tenían descendencia se veían compelidos a
contar con su aporte en tierras colonas, contribuyendo así a homogenizar la población escolar.
25
La cooperadora de la escuela daba cuenta de la colaboración de vecinos y colonos de todas
las nacionalidades, incluyendo grupos minoritarios, como los polacos. La escolarización de los
hijos permitió que se gestara una de las pocas muestras de proyectos conjuntos de esta colonia
(a diferencia de “La Capilla”, que en ese sentido era mucho más unida y dinámica), lo cual
señala el interés y el compromiso que el tema suscitaba, a diferencia de otros que afectaban
de igual modo sus vidas cotidianas. Antonio Di Rocco, comunicación personal, 23/02/2015.
Italiano de “Colonia Urquiza”, ex productor.
26
Silvia Di Fonzo, comunicación personal, 23/02/2015.

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236 Celeste De Marco

en cuanto a los niveles de aprendizaje y las estrategias didácticas, sino


también por las motivaciones e intereses de cada franja etaria.
Una de las tácticas docentes fue crear grupos de trabajo en la
mixtura de alumnos extranjeros con argentinos. Eso se sumaba a una
organización espacial mezclada en el aula como estrategia educativa para
lograr la integración en un nuevo contexto. Es de notar que todo se daba
en un único salón en el que se dividían los contenidos en dos pizarrones,
de acuerdo con el nivel de los niños. Priorizaba asimismo las evaluaciones
orales, para promover la práctica del idioma.27

No gastábamos muchas hojas en escribir, nos daba muchas


charlas, por ejemplo, leía y después se comentaba sobre la
lectura, lo que más me acuerdo es que se escribían refranes
entonces uno decía: “la pobreza golpea la puerta de todos,
pero entra en la del haragán”.28

Más allá de los esfuerzos, la escolarización de los niños no era un


objetivo carente de escollos. Aunque en general las familias daban su
conformidad con respecto a la participación de sus hijos (incluso si esto
significaba no contar con ellos en el trabajo), la ausencia del alumnado era
un problema cuando el mal clima anegaba las calles barrosas, y sobre todo
en temporada de cosecha. Pero no era la única razón para la deserción.
El hecho de que los niños fueran en su mayoría inmigrantes directos
o hijos de inmigrantes representaba desafíos adaptativos. Para algunos la
cuestión fue difícil (o imposible) de zanjar. La escuela, que para la mayoría
fue el espacio integrador por excelencia, para algunos también implicó
una dificultad en la medida en que no pudieron o supieron sumarse.
Como expresa Vicenta, fue desalentador que la impulsaran a ir al colegio y
empezar en primerio inferior, cuando ella tenía 12 años.

27
Nélida Baglioni, comunicación personal, 30/11/2011. Primera directora-maestra de la
escuela primaria de la “Colonia La Capilla”. Entre la literatura académica que versa sobre la
educación rural en Argentina y sus problemáticas, se señala el trabajo de Plencovich et al (2009)
y desde un punto de vista histórico para región pampeana, Gutiérrez (2007).
28
Olga Moldawa, comunicación personal, 03/03/2015.

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 237

No quise ir, porque ¿cuándo iba a terminar? Mal no me


venía, pero en ese momento dije que no. Aparte, no es que
no, si llovía no podía ir al colegio, tenía que ir caminando.
Primero estaba en una casita vieja, después hicieron la
escuela dentro de la colonia.29

Pero también el testimonio marca que la distancia no era menor.


Muchos de los niños que concurrían transitaban varias cuadras “de campo”
hasta llegar las escuelas, porque en ambas colonias se registran testimonios
en los que se detallan las vicisitudes que atravesaban para llegar al edificio
escolar.30 El traslado incluía que los que tenían algún medio de transporte
-un caballo o una camioneta- pasaran a recoger a sus compañeros en el
camino. Esta organización era parte de la experiencia cotidiana, uno de los
modos en los niños colonos socializaban al tener como centro de interés
las actividades escolares.
En “Colonia Urquiza” se identificaban algunas situaciones similares,
aunque con diferencias temporales. Dado que este espacio se ocupó en
dos tandas, fue recién con la llegada de nuevos colonos en la década de
1960 que la escuela se convirtió en realidad. De tal suerte, su configuración
daba cuenta de una diversidad de orígenes también, aunque concentraba a
las familias más recientes de la colonia.
La asistencia era una cuestión peliaguda. Las palabras de los
entrevistados se funden en recuerdos de caminos barrosos, caminatas
eternas y retos de maestras que cuestionaban para qué ir en esas
condiciones.31 De todos modos, los niños insistían: la escuela era un
espacio de comunión cotidiana que no estaban dispuestos a relegar. Tema
reiterado, la adaptación no se desarrolló tampoco carente de dificultades.
Aunque con un grupo escolar menos variado respecto de “Colonia
La Capilla”, no era para nada homogéneo, ni siquiera por niveles de

29
Vicenta Girardi, comunicación personal, 27/01/2015.
30
Entrevista a Norma Matsuhara, comunicación personal, 04/07/2015. Descendiente de
japoneses de “Colonia Urquiza”, productora.
31
Carolina Matsuhara,comunicación personal, 04/07/2015. Descendiente de japoneses de
“Colonia Urquiza”, productora.

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238 Celeste De Marco

instrucción. La práctica pedagógica también era compleja en la medida en


que por un tiempo todos coincidían en un multigrado, siendo la mayoría
de origen inmigrante.
El castellano debía ser incorporado a fuerza de prohibir en
clase cualquier diálogo en otro idioma. Sin embargo, cuando no eran
supervisados, los niños dialogaban entre ellos usando el lenguaje criollo
como base y adicionando múltiples palabras familiares para las que no
encontraban traducción adecuada. Esta era una práctica que evidenciaba la
penetración de la nueva vida local y su hibridación con la vida familiar que,
al fin, simplificaba la comunicación, aunque fuera una pseudo-resistencia a
la imposición docente.32
Durante todo el año se brindaba el desayuno escolar, uno de los
momentos más disfrutados como espacio compartido con compañeros
para conversar y proyectar nuevas aventuras, el cual constaba de una taza
de chocolatada o mate cocido y pan que se compraba en una panadería
local.
La Escuela Primaria N.º 57 fue un proyecto conjunto que se
nutrió del aporte de todas las familias, sin distinción de origen, con base
en una necesidad que el elenco infantil había evidenciado al haberse ido
transformando con el desarrollo de la colonia. Pero uno de los rasgos
distintivos de la “Colonia Urquiza”, que involucra también a la niñez y
el aspecto educativo, tiene que ver con los múltiples proyectos que la
colectividad japonesa elaboró para sí, que no pueden desatenderse.
En suma, en ambos casos, y siguiendo la tónica general, las escuelas
lograba asentar en los niños las cuestiones más básicas de la cultura e
historia argentina. Por eso uno de los recuerdos que más se replican
remite a los actos escolares por las fiestas patrias, donde se solían ensayar
bailes criollos y festejos que involucraban al alumnado en general. Las
excursiones que se proponían eran muy festejadas y atesoradas por los
niños como “una gran fiesta”,33 pues significaban el acceso a espacios
urbanos a los que no siempre solían ir con sus padres.
32
Ana Tsuru, comunicación personal, 19/03/2015. Descendiente de japoneses de “Colonia
Urquiza”, docente.
33
Ana Yagui, comunicación personal, 07/03/2015.

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 239

Más allá de las características obvias del entorno, no eran escuelas


con orientación rural. Sin embargo, en ambos casos, las maestras intentaban
impulsar algunas actividades que congeniaran la realidad cotidiana de los
alumnos con la actividad escolar, por lo que los hacían arreglar el jardín
con plantas que ellos mismos traían. Estas iniciativas contaban con el
beneplácito de los padres, quienes participaban activamente generalmente
aportando herramientas y elementos útiles.
Resulta innegable que su mérito no radicaba únicamente en facilitar
el acceso a la educación básica, sino que sus actividades terminaban
envolviendo a la familia de los educandos. En este sentido, cabe señalar la
vinculación de las escuelas con otras asociaciones de las colonias, como
cooperativas o entidades étnicas, donde participaban activamente un
importante grupo de colonos e incluso alumnos, denotando la articulación
entre los diferentes espacios de reunión, que en conjunto albergaban la
sociabilidad, no sólo de los niños, sino también de los adultos.
Por otro lado, las escuelas de las colonias funcionaban como un
remanso donde la autoridad paterna era, de alguna manera, puesta en
suspenso, lo que para algunos podía significar un alivio a sus tareas o al
menos un recreo. De este modo, los niños instrumentaban el espacio
escolar a su favor, en virtud de sus intereses. Pero también la presencia
infantil, a través de sus demandas y carencias, vehiculizó la formación de
un espacio de referencia común que aglutinó también la vida social para
todas las edades.
Más allá de la escuela primaria como espacio formal, deben
mencionarse otros alternativos. En “Colonia La Capilla” el más importante,
pero que involucraba sólo a un grupo, era la escuela de idioma japonés, de
la Asociación Japonesa La Capilla (AJLC). Aunque no tuvo un desarrollo
muy regular y extendido, sí convocó a numerosos niños de este origen y
bajo las enseñanzas de su lengua y costumbres ancestrales. En su interior
se gestó un espacio de sociabilidad acotado, pero imprescindible para
aglutinar a la comunidad a través de sus más recientes generaciones. Otras
comunidades presentes en la colonia, aunque desarrollaban prácticas
de sociabilidad (reuniones, bailes) eran de tipo informal y no lograron
cristalizar sus iniciativas en espacios concretos, más bien se sumaron a las
Temáticas, Campinas, 26, (51): 215-248, fev./jun. 2018
240 Celeste De Marco

propuestas sociales generales de la colonia, donde también aparecían los


niños (asados, domas, kermesses).
Otro modo en el que se complementaba la formación de los niños
y adolescentes era en espacios pensados para adultos, por ejemplo, cursos
prácticos dictados por el MAA orientados a la producción. En algunos de
ellos, como el dirigido a tractoristas, se aceptó la participación de varones
menores de 12 años. 34 Las niñas, en cambio, podían asistir a cursos de
tejido y costura que se dictaban en la sede social de la cooperativa agraria
de la colonia. Lo anterior da cuenta del rol importante que los niños
jugaban en el ámbito productivo, pero también en el social y cómo todo
eso dialogaba con la cuestión educativa.
En “Colonia Urquiza” también había espacios más allá de la
escuela primaria, pero vinculados específicamente con una comunidad. La
colectividad japonesa cosechó mucho éxito con la escuela de su idioma.
Se trató de una propuesta que nació del ala femenil del Club Japonés
(actualmente Asociación Japonesa de La Plata), fundado en 1963. Había
dos cuestiones que preocupaban a las mujeres: que los niños estaban
utilizando el idioma castellano incluso en sus casas; y que quienes habían
egresado de este nivel, rondando los 12 años, sólo estaban abocados a
“ayudar” a los padres, lo que planteó “si era justo [sobre todo] en su
época de aprendizaje”.35 De este modo, se había identificado un grupo
que no podía ser incorporado fácilmente al sistema educativo obligatorio
y diseñaron estrategias propias.
La escuela japonesa, por sobre todo, era un lugar donde los más
pequeños aprehendían rasgos de la cultura familiar a través de una enseñanza
estructurada y sopesada por el conjunto de la colectividad. También era
una excelente carta de presentación para que los niños obtuvieran becas
y realizaran viajes a la tierra de sus ancestros. Son numerosos los casos de
niños y niñas que fueron beneficiarios de ayudas económicas por parte de
la embajada japonesa o asociaciones internacionales al finalizar la primaria.
En estos viajes los pequeños profundizaban sus conocimientos del idioma
34
Mafalda D’Aloisio, comunicación personal, 22/02/2015.
35
Redacción de Iroshi Yasuhara titulada “22 años de trayectoria de la escuela de idioma japonés
de Urquiza”, en Libro 30 años de la AJLP, edición propia, citada en Cafiero (2011).

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 241

que habían estudiado, pero también eran instruidos en prácticas como


Ikebana, bailes típicos y la ceremonia del té, por personas nacidas en el país
y con utensilios locales. Lo que habían recibido como enseñanza teórica
en la colonia adquiría una nueva dimensión de realidad. Esta inmersión
cultural, además, podía tener implicancias a futuro de las cuales las familias
eran conocedoras.36
En efecto, por varios motivos, la escuela de idioma japonés fue (y aún
eso) reconocida y exitosa. Pero hubo otras iniciativas también, pues también
los bebés y niños pequeños tenían su espacio.37 Con edad insuficiente para
ingresar a la escuela, durante el primer tiempo permanecían en la casa con
los padres. Pero cuando sus hermanos mayores comenzaron la primaria
y las manos adultas fueron todas necesarias para impulsar el trabajo, se
planteó la creación de una guardería/jardín de infantes.
Esta iniciativa, exclusiva de la colectividad nipona, funcionaba en
una pequeña casa o “galponcito” que fue puesto en condiciones, limpiado
y pintado por los padres de los niños. Los entrevistados recuerdan que
allí habían dispuesto unas 15 o 20 sillas pequeñas, mesas bajas verdes y
amarillas, donde los pequeños compartían comidas o bien podían pasar
el tiempo con actividades acorde a sus desarrollos. Conscientes de que
no todas las familias niponas tenían un buen pasar económico, pronto se
propuso que se instalara el almuerzo y la merienda, sobre todo en invierno
cuando el frío arreciaba, pues se consideraba que los necesitaban comidas
calientes, sobre todo sopas con fideos.38Incluso se instaló un colectivo con
bancos que circulaba por los lotes de los miembros de la colectividad, lo
que facilitaba en gran medida la asistencia.39 En suma, la escuela de idioma

36
No fueron pocos los casos de amistades engendradas a través de estos contactos que
culminaron luego en matrimonios. En general, las mujeres fueron las que estrecharon lazos
matrimoniales con japoneses y se mudaron a este país de forma permanente.
37
Con posterioridad se fundó junto a la Escuela Primaria N.º 57 “Juan Bautista Ambrosetti” el
Jardín de Infantes N.º 940 “Gladys Mabel Guadix”, lo que resolvió problemas similares para
toda la población de la zona, al tiempo que esta iniciativa japonesa dejó de funcionar.
38
Ana Tsuru, comunicación personal, 19/03/2015.
39
Las actividades se extendían incluso por fuera de la colonia. Por el interés que generaba en
los pequeños, se convirtió en una práctica usual hacer paseos al centro de la ciudad fuera del
horario de funcionamiento de la guardería/jardín de infantes.

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242 Celeste De Marco

japonés, tanto como guardería/jardín de infantes, se configuraron como


espacios multipropósito que demostraban la capacidad de la colectividad
de autogestionarse.40
En este sentido resulta claro que en “Colonia Urquiza” había una
diversificación de espacios para integrar niños a espacios de escolarización,
incluso no obligatoria, de la mano de la colectividad nipona. En estos se
podían vislumbrar también una tensión entre la integración del colectivo
infantil, por un lado, y la retención de rasgos ancestrales por el otro. No
así con otras comunidades étnicas, minoritarias, que no lograron cuajar
espacios propios que incluyeran a los miembros más pequeños de las
familias.
En suma, la escolarización fue indispensable en varios sentidos. La
apertura de estos espacios garantizaba que los más pequeños pudieran
completar sus estudios sin necesidad de trasladarse al centro urbano.
Pero también se erigieron como nodos de sociabilidad para este conjunto
poblacional: allí nacían amistades y rivalidades, se programaban partidos
de fútbol o salidas a cazar o pescar, entre otras actividades que cabían en la
agenda cotidiana, en medio de la escolarización y el trabajo. En ocasiones
coincidían para hermosear la fachada con flores donadas por sus padres,
o para asistir a clases de catequesis.41 En cualquier caso era el lugar de
encuentro por excelencia para la platea infantil.

40
Aunque no era una iniciativa oficial, es interesante señalar que las mujeres a cargo eran maestras
jardineras tituladas ajenas a la colectividad (aunque contratadas mediante recomendación)
lo que sugiere que las niponas estaban realmente involucradas en los trabajos domésticos y
florícolas, motivo por el cual utilizaban este espacio para delegar temporalmente parte de sus
ocupaciones tradicionales, una práctica que no ha tenido parangón en otras comunidades de
las colonias estudiadas.
41
En “Colonia La Capilla” esta actividad religiosa estaba a cargo de un matrimonio colono
de excelente concepto, que a su vez se encargaban del almacén de la cooperativa de la
colonia, los Rivas (Martín Giallonardo, comunicación personal, 02/10/2014; Margarita Rivas,
comunicación personal, 16/05/2015). En “Colonia Urquiza” la actividad era externa, pero
muy alentada, incluso dentro de la comunidad nipona, para quienes la integración de los
niños requería también la incorporación de la fe difundida en el país de acogida (Ana Tsuru,
comunicación personal, 19/03/2015).

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 243

REFLEXIONES FINALES

Las colonias agrícolas periurbanas analizadas se configuraron


como espacios socioproductivos profundamente influidos por la cuestión
multiétnica, lo cual permitió el ingreso de numerosos niños de diversos
orígenes y pasados familiares. En el marco de estos espacios, creados en
una época de aliento a esta particular política de tierras, la vida infantil
en entornos rurales cercanos a las ciudades se trasfundió en el laboreo
cotidiano, en apego a la tierra familiar. Los relatos señalan, en efecto,
que los miembros más jóvenes tenían asignadas tareas concretas para
nada marginales, lo que articulaba al elenco de niños con un engranaje
productivo familiar que no desmerecía ningún recurso, en un contexto
en el que la dirigencia apostaba al aliento de producciones intensivas
periurbanas con este tipo de mano de obra.
En tal sentido, a pesar de que las representaciones de género sobre
los roles y labores cotidianos estaban presentes, no había claros distingos de
tareas infantiles por género (de hecho, las niñas, además, debían responder
a las demandas hogareñas), aunque sí por edad, lo que se vinculaba
directamente con las aptitudes físicas. Sin embargo, el género sí era un
elemento diferenciador en cuanto a las circulaciones espaciales, a través
del cual las niñas eran más bien confinadas al ámbito intradoméstico y a
los niños se los perfilaba para las actividades extra-hogareñas que deberían
desempeñar como futuros adultos responsables de la producción.
El trabajo, a su vez, era lo que organizaba el tiempo del elenco más
joven de estos espacios periurbanos, desde el momento en que debió
coexistir con la escolarización. Si bien no se reñía que los niños asistieran
a la escuela, había momentos en los que se evidenciaba la pugna entre
ambas cuestiones, y era allí donde se revelaban algunos posicionamientos
infantiles para preservar lo que consideraban un espacio propio, al margen
del trabajo familiar. Estos rasgos son referidos en la actualidad, desde
la evocación de la propia infancia. Se destaca aquí como, en espacios
profundamente atravesados por la diversidad étnica, la sociabilidad infantil
venció todo escollo y se impuso, facilitando, en definitiva, el arraigo de los
más pequeños.

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244 Celeste De Marco

Pero la asistencia a las escuelas no era algo sencillo. Las paupérrimas


condiciones habitacionales que se daban en algunas zonas de las colonias
(sin asfalto, caminos anegados, sin luz) influían en la dificultad de asistir
a clases, pero la tenacidad infantil también daba cuenta de la importancia
que le daban a ese espacio.
La rememoración de aquellos años señala que los pequeños
desarrollaron actitudes propias, instrumentando los espacios de
escolarización como lugares propios para, por ejemplo, fomentar una
sociabilidad en extremo complejizaba por la dispersión del espacio rural o
bien la autoridad docente como modo de evitar la rutina laboral impuesta
por mandato paterno. Además, el valor que la escuela tuvo en integrar los
niños al medio aparece como una cuestión evidente, desde el momento en
que la diversidad de orígenes no supuso una imposibilidad para continuar
los estudios y tender lazos entre ellos mismos. Al fin de cuentas, la agencia
de los niños como creadores de espacios y estructuradores de la economía
doméstica a través de su aporte en los lotes se hace evidente.
Con similitudes y diferencias, lo que señalan todas las iniciativas
educativas mencionadas en ambos casos es el modo en que las comunidades
intentaban responder a las demandas que el público infantil generaba, y,
a la vez, las demandas que los adultos vertían sobre los niños en forma
de obligaciones, junto con las actitudes o tácticas que los más pequeños
ponían en marcha. En este marco es de notar la ineficacia por parte del
Estado, en su versión nacional y provincial, en anticiparse a las demandas
educativas o al menos brindar un marco en el que se acompañaran las
iniciativas. Al mismo tiempo, las diversas capacidades de las comunidades
migratorias representadas, entre las cuales destaca la japonesa.
Con proyectos integradores o específicos, se pone de relieve
que el sujeto infantil, lejos de carecer de influencia en las comunidades
periurbanas referidas (en pleno desarrollo y afianzamiento de sus rasgos
característicos), propició la generación de espacios que, aunque fueran
dirigidos a ellos, en verdad lograron aunar también a los adultos.
Lo anterior permite pensar que la configuración del espacio
periurbano bonaerense, tal como existe en la actualidad, se fundó en
un aporte nada despreciable de población infantil. Esto en el marco del

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Las (pequeñas) manos que trabajaron... 245

trabajo familiar antes referido, que era evidentemente alentado por la


política que le daba razón de ser a las colonias, en conjunción con las
representaciones sociales sobre la vida rural que se hallaban vigentes y
que se han mencionado. Pero la niñez no se trató solamente de una pieza
funcional al esquema productivo de la zona en la que estaba inmersa, sino
que también contribuyó desde su lugar a fomentar la construcción de las
comunidades, perfilando los rasgos sociales del espacio de importancia
incuestionable, en plena transformación.

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Texto recebido em 10/01/2018 e aprovado em 14/04/2018.

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RELIGIÃO E CRIANÇA: O UNIVERSO INFANTIL
ATRAVÉS DAS METODOLOGIAS, VIVÊNCIAS E
PRÁTICAS NA IGREJA ADVENTISTA

Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz1

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo mostrar metodologias, vivências e práticas
usadas com crianças no meio religioso, chegando à observação da evangelização infantil
na igreja Adventista. Detalho assim na primeira pessoa: a metodologia usada e o papel
do pesquisador para a Sociologia, informando pontos positivos e negativos, e mostrando
breves notas de campo. Trago observações, descrição, análise e interpretação do campo
estudado, na Escola Sabatina, no grupo dos Primários da igreja Adventista, onde consegui
observar e ver as contribuições da evangelização infantil para a socialização, através das
aulas que assisti na igreja, dos desenhos que tive com as crianças, e das conversas com elas,
e com os professores. Prossigo observando atividades e dados do grupo estudado, com
desenhos. Por isso, sigo as metodologias já estudadas e pesquisadas por Pires (2011), Lewis
(2006), Cohn (2005), Nunes (2007), Campos (2009), Santos (2011), Silva (2013), Falcão
(2010). Com esses diálogos construí uma base metodológica, para seguir os percursos
do meu campo de pesquisa. Portanto, esse material estudado rico no conceito de agência
infantil me fez enveredar por uma área da Sociologia e Antropologia que começa a ter
espaço.
PALAVRAS-CHAVE: Crianças; Adventistas; Observações de campo.

1
Docente da Faculdade Paraíso do Ceará (FAPCE). Coordenadora do Grupo de Estudos
Gênero, Geração e Direito FAP. Doutoranda em Ciências das Religiões (UFPB). Mestre
em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharel em Ciências Sociais
(URCA). E-mail: priscilaribeiroj@hotmail.com
250 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

RELIGION AND CHILD: THE CHILDREN’S


UNIVERSE THROUGH METHODOLOGIES,
EXPERIENCES AND PRACTICES IN THE
ADVENTIST CHURCH

ABSTRACT: This work aims to show methodologies, experiences and practices used
with children in the religious environment, coming to the observation of children ‘s
evangelization in the Adventist Church. I detail the first person: the methodology used
and the role of the researcher for Sociology, informing positive and negative points, and
showing brief field notes. I bring observations, description, analysis, and interpretation
of the field studied in Sabbath School to the Adventist Church Primary group where
I was able to observe and see the contributions of child evangelism to socialization
through the classes I attended in the church of the drawings I had with the children, and
the conversations with them, and with the teachers. I continue observing activities and
data of the studied group, with drawings. For this reason, I follow the methodologies
already studied and researched by Pires (2011), Lewis (2006), Cohn (2005), Nunes (2007),
Campos (2009), Santos . With these dialogues I built a methodological basis, to follow
the paths of my field of research. Therefore, this studied material rich in the concept of
children’s agency led me to embark on an area of ​​Sociology and Anthropology that begins
to have space.
KEYWORDS: Children; Adventists; Field observations.

INTRODUÇÃO

Criança é um ator social, ela se expõe, mostra o que pensa, e


principalmente é na construção da infância que muito pode ser dito sobre
aquela cultura, aquela sociedade. Percebi que o problema era que usava a
lente que não alcançava a visão dos estudos sobre crianças e infância, e a
partir de então, pude me afetar por esse novo campo. A pesquisa mostrada
abaixo é parte da minha dissertação de mestrado intitulada “Criança
adventista: Um estudo sobre a evangelização infantil”.
A pesquisa de campo foi essencial para estudar crianças, e logo me
lembrei de manuais de Sociologia que falam sobre observações de campo,

Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018


Religião e criança:... 251

como também me recordei de estudos de campo como os de Lewis (2006)


e Falcão (2010). Segundo Flick (2005) “A observação participante deve
ser entendida sob dois aspectos como um processo. Em primeiro lugar,
cada vez mais, tornar-se um participante e obter acesso ao campo e às
pessoas (...). Em segundo lugar, a observação deve passar também por um
processo para tornar-se cada vez mais concreta e concentrada”.
Fui para meu campo na tentativa de “ser aceita”, tentei absorver
tudo que pude de literatura sobre crianças como: Pires (2011), Lewis
(2006), Cohn (2005), Nunes (2007), Campos (2009), Santos (2011), Silva
(2013), mesmo observando que a literatura sobre crianças que pregam nas
igrejas como pastoras, não existiu. Aprofundei-me então em textos sobre
crianças e religião como de: Falcão (2010); Pires (2009) e Campos (2009).
Algumas dúvidas surgiram para entrar em campo; antes das minhas
visitas as igrejas, eu me perguntava, será que vou ter acesso às crianças?
Como é difícil estudar crianças sem ser criança, já afirmou Pires (2010,
2011). Nunes reflete um pouco sobre essa relação:

Ao discorrer sobre a relação adulto-criança na sua pesquisa


e relatar sua própria experiência, alude ao fato que não é
preciso que o pesquisador torne-se um nativo no seu universo
de pesquisa, mas que seja colocado em perspectiva com o
“outro” a ser pesquisado de maneira a construir uma relação
de confiança e reciprocidade entre ambos, permitindo assim,
que a realidade flua quebrando as barreiras de geração, mas
sem anular as identidades de adulto e criança, pesquisador e
pesquisado (NUNES, 2007, p.154).

Desse modo, ao mesmo tempo eu me interrogava: “mas você já


realizou pesquisa sobre evangélicos, sem ser evangélica? Então, era a mesma
estratégia? Evidentemente que não, pois cada pesquisa se diferencia”.
Cada ida a campo é uma nova reconstrução que deve ser feita, no intuito
de tentar entender como funciona a igreja que pesquiso, e as crianças que
se encontram nela.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018


252 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

1. ENTRANDO EM CAMPO

A estratégia então foi enveredar para a igreja Adventista, que tem


cultos principais aos sábados e os fiéis sempre se cumprimentam com
a saudação de: “Feliz Sábado”. Fiquei na sala das crianças; nessa igreja
há duas salas de crianças, uma com menores de 5 anos e uma sala com
crianças que variam de 8 a 11 anos (a sala da qual fiquei), a sala não é
grande, os participantes são cinco: 4 meninos e 1 menina.
Na sala da qual fiquei havia três “tias”, digo tia como forma carinhosa
e familiar que as crianças tratavam as professoras do culto delas, e eles
conversam, cantavam e faziam suas atividades, ficavam em círculo sobre
uma mesa redonda, fiquei na roda também, antes havia me apresentado a
uma das professoras e explicado o meu intuito em assistir a aula deles. Ela
me informou que esse procedimento de ter aulas para crianças é mundial
da igreja Adventista, e que em João Pessoa teria também.
Neste dia participei da interação, em um dos exercícios, uma tia
apresentou uma atividade com quadrados sobre qualidades e pediu que
cada um deles escrevesse o nome da pessoa que tinha aquelas qualidades.
Como eu não conhecia ninguém, apenas observei, todavia, daquele
exercício a menina Lia, me perguntou qual era o meu nome, e me colocou
uma daquelas qualidades. Fiquei feliz em ver que eu era percebida, de
forma a me igualar a quem estava presente, mesmo não participando
ativamente daquele exercício.
A minha primeira visita a esta igreja ocorreu em dois de fevereiro
de dois mil e treze, com isso, o campo começou a se desenhar para mim,
diferente do que eu queria impor.

Como na vida, não tentem direcionar demais o curso


das águas, deixem a vida nos levar e tentem aproveitar os
momentos de incerteza para perguntar aos nativos o que
está acontecendo! Dificilmente o antropólogo escapa da
pecha de chato, inconveniente ou louco. Chato porque
pergunta sobre tudo, como a criança nas idades dos por quês.
Inconveniente porque força as pessoas a se questionarem
sobre o que é tido como naturalizado. E, louco, justamente,

Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018


Religião e criança:... 253

porque parece desconhecer as verdades inquestionáveis


(PIRES, 2011, p.145).

Foi a partir disso que usei de fato a observação participante, no


total de dez visitas a igreja Adventista do Sétimo dia nos Bancários, assisti
dez horas de um curso extensivo sobre a Bíblia para a idade de sete a dez
anos, e mais uma hora de cada culto que fiquei depois da aula da Escola
Sabatina, no total de dez horas de culto aberto. Foi então que percebi
assim como Velho (1978):

A observação participante, a entrevista aberta, o contato


direto, pessoal, com o universo investigativo constituem sua
marca registrada. Insiste-se na ideia de que para conhecer
certas áreas ou dimensões de uma sociedade é necessário
um contato, uma vivência durante um período de tempo
razoavelmente (p.36).

Entrei em contato, tentei me aproximar o máximo possível das


crianças, com conversas antes do início das aulas, ou no fim das aulas,
com meninos e meninas, em alguns momentos acreditava que elas falam
mais comigo nos espaços externos da igreja, como se a sala de aula fosse
sagrada. Mas repensando sobre esses acontecimentos pude perceber que
isso se dá, principalmente, porque na sala de aula é como se fosse uma
escola, ou seja, na sala todos devem se comportar, e interferir somente
quando alguns dos professores pedem, o modelo escolar é o melhor
método, pois as crianças já são acostumadas nesse modelo. Fui também a
uma aula do Clube dos Aventureiros, clube que duas crianças que conheci
na Escola Sabatina freqüentam.
Em um desses momentos, de chegar à igreja e assistir às aulas, entrei
na sala dos Primários, estavam lá as duas meninas, uma menina de uns 13
anos, que já usava os sapatos altos, e um menino (que depois descobri que
seu nome é Rafael, deve ter 11 anos, e não se considera mais crianças) e
não é dos Primários.

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254 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

Assim que entrei, ele me interrogou: “Você também é dos Primários”,


a pesquisadora: “Sou sim dos Primários”, e ele continuou: “Também desse
tamanho, só poderia ser dos Primários”, isso foi muito bom. Essa frase
do garoto mostrava que ele estava se “vangloriando” porque não era mais
dos Primários, demonstrando que era maior que eu e as meninas da sala;
isso o fez acreditar que eu era uma aluna, e não uma adulta que estava nos
Primários.

2. METODOLOGIAS QUE ME AJUDARAM A COMPOR O


TRABALHO

Para compor esse trabalho, usei como metodologia base a


etnografia.

Ethnographic methods, in particular, are advocated as means


of getting nearer to the ‘truth’ about what childhood is like
(see Gubrium and Silverman, 1989). Modern ethnographic
methodology, however, concurs with discourse theory,
at least to the extent that it rejects a naturalistic view of
ethnographic data. (JAMES & PROUT, 2005, p.25)

Unindo-se com outras atividades como os desenhos e recortes.


Assim como afirma Cohn: “Crianças façam desenhos a partir de um
determinado tema de interesse da pesquisa, com, digamos, a família ou a
escola. Ou ainda fornecer material, como recortes de imagens de revista,
para uma colagem”. (2005, p.46). Pensando ainda em desenhos concordo
com: Santos (2011), Pires (2011). Usei então os desenhos na minha
pesquisa com títulos, quando as crianças sabiam escrever.
Realizei três sessões de desenhos, divididas nas seguintes perguntas:
“O que é ser uma criança adventista”, no mesmo dia também perguntei:
“Porque eu gosto da igreja Adventista?”, pedia que elas colocassem seus
nomes e um título, assim como Pires (2011) em “Quem tem medo de mal-
assombro?”, essa sessão foi muito significativa para o aprofundamento
da pesquisa, pois pude perceber o quão elas se identificam com a igreja
Adventista.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018
Religião e criança:... 255

Também trabalhei atividade com desenho com as crianças de 4 a 6


anos, da sala do Jardim, e pedi que elas desenhassem “a igreja Adventista
e elas”.
Fiz também uma atividade de desenhos com os Primários, crianças
de 7 a 10 anos, que foi: “como vai ser a volta de Jesus?” (os fiéis da igreja
Adventista acreditam que Jesus voltará e levará os “bons” aos céus), elas
também colocaram título e nomes, essa atividade também foi muito
significativa para pensar a teologia da igreja, e como ela é reproduzida
pelas crianças.
Também pedi recorte em outro momento, e elas realizaram essa
atividade em casa sobre: “a figura de um pastor, o dia a dia das crianças, e
o dia em que elas vão à igreja”.
Outro recurso metodológico que utilizei foi a entrevista, no total
de duas entrevistas, uma com a praticante Marina que me abriu espaço na
igreja, ela cresceu sendo adventista. Outra entrevista foi com a professora
dos Primários a tia Daniela.
Outro artifício também foi à leitura das lições adventistas do
primeiro semestre, com as lições dos professores e dos alunos; observando
os recursos pedagógicos da igreja, e a maneira como os professores
conseguiam acessar e passar para as crianças. Não fiz redações porque
quase todos da sala estão sendo alfabetizados, e ainda não sabem escrever
textos grandes.
Tive oportunidade de observar o grupo dos Juvenis, com idade entre
11 a 13 anos, poderia ter realizado uma visita e uma atividade com essa
faixa etária, assim como fiz com o grupo do Jardim, mas achei interessante
não abordá-los, porque ao falar com eles e com as pessoas da igreja, falava
que aplicaria atividades com os Juvenis, ou seja, com as crianças entre 11
a 13 anos, e logo uma fisionomia de espanto rejeitava, negando a infância
deles. Eles não se denominam mais como crianças, e é perceptível ver isso,
como o exemplo de Vinicius, do grupo dos Juvenis, que estava na sala dos
Primários e disse que eu só poderia ser da sala dos Primários, ou seja, eles
se afirmam Juvenis-Adolescentes pelo que falam, e pela maneira como
expressam que já saíram desta fase.

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256 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

Depois de todo esse percurso de métodos apresentados acima,


recordo-me dos conflitos que passei para realizar a pesquisa na Igreja
Adventista. A minha entrada foi de forma fluída, os professores da turma
entenderam que era uma pesquisa e me deixaram fazer a coleta necessária
com eles, coincidentemente, uma das professoras estava passando também
por processo de coleta para sua pesquisa de dissertação, fato esse que me
ajudou bastante.
No entanto, certas vezes sentia a pressão para me tornar uma fiel,
como ter que levar meu filho de 7 anos também à igreja, e participar do
grupo dos Primários, a insistência era constante dos professores. Outro
fato desse meu conflito em pesquisar a igreja, ocorreu no último dia quando
encerrei com a entrevista, os professores disseram que ficaram felizes com
minha estadia na igreja, mas que da próxima vez que eu fosse era para
me unir a filosofia adventista. Em suma, mesmo me dando abertura eles
não desistiram da minha conversão, mas isso é um fato lógico para os
evangélicos, eles sempre esperam a conversão das pessoas que visitam sua
igreja, eu ouvi todos os ensinamentos durante três meses o esperado era
que eu me convertesse.

3. ESCOLA SABATINA E OS PRIMÁRIOS

A Escola Sabatina foi o momento auge de observar de perto as


crianças. A sala da qual assisti aula se chamava Primários, que é composta
por crianças de 7 a 10 anos, nesta sala há dois professores: Tio Joaquim,
o professor, aproximadamente com 35 anos, cantor, alto, sempre se veste
com roupa social, camisa de mangas compridas, calça e sapato, com
aparência de pastor, ele já fez pregação no culto geral da igreja; é casado
com a professora da sala, é também pai de um dos alunos e dar aulas nos
momentos em que a professora não está.2
Tia Daniela, professora, tem 31 anos, é casada com Tio Joaquim, é
a professora oficial da sala, sempre de vestido como todas as mulheres da
igreja, sapato alto; quis me aparentar para eles entre a roupa de Daniela e
2
Nomes fictícios.

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Religião e criança:... 257

os sapatos baixos das meninas da turma, ficando nesta fronteira, para não
parecer ser a professora, já que sou uma adulta.
Alice, 7 anos, aluna, a criança mais me ajudou a entender a teologia
da igreja e o que era passado para as crianças, ela foi a minha informante
chave. Ela pretendia pregar no dia das crianças3, essa garota é filha de um
dos pastores da igreja, e filha da coordenadora do Departamento Infantil
da igreja.
João, 7 anos, filho de Joaquim e enteado de Daniela, outro
informante importante, se veste muito parecido com o pai, de roupa social.
Sara, 9 anos, por ser a mais velha, se sente a maior na sala, por isso sempre
comanda as atividades. Pedro, 7 anos, menino tímido, muito calado, não
conversa muito, e também não foi com tanta freqüência. Rebeca, 7 anos,
passou a ter mais freqüência no grupo, no final das minhas visitas. José,
8 anos, também com pouca freqüência no grupo.
A Escola Sabatina começa com a reunião dos professores, com
estudo ou a recapitulação da lição da semana. Coleta de ofertas, mensagem
musical, trabalho missionário, essa é a estrutura geral. Depois as crianças
e os adultos se dirigem para o Culto de Adoração que é solene, com
músicas, ofertas. As lições tratam de um determinado assunto, livro
bíblico ou doutrina a cada trimestre. Estima-se que 25 milhões de pessoas
freqüentam a Escola Sabatina em todo mundo.
A Sala dos Primários era igual à sala de jardim de escola, a sala tem
cadeiras brancas de plástico, pinturas nas paredes, mural com meses do
ano com os aniversariantes de cada mês. Tem uma pintura da parede do
lado esquerdo inteiro com Jesus num bosque e as pessoas felizes. Observei
ainda um mural com horário com os nomes das crianças sobre oração
inicial, oração de ofertas e oração final. Há, portanto, todo um esquema
de atividades, elas têm um livro com lições diárias, que a professora aplica
no sábado, e eles estudam em casa.
Fazia todas as atividades, seja colando, cortando, cantando, levando
todo sábado minha ofertinha, eu queria ser participativa, para ser aceita,
3
Culto do qual poderia ter retornado para fazer essa observação, porém não foi confirmado
esse culto, e não seria algo freqüente essas pregações de Alice, esses cultos seriam mais em
eventos como o dia das crianças. Deixo, portanto, para futuras pesquisas.

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258 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

tanto pelos professores, como pelas crianças. No entanto nunca orei, nem
no começo, nem na oferta, e nem no final, algo que me chamou atenção,
porque eu não era adventista, e por isso, também não poderia fazer
essas orações, estava mais para aprender do que para ensinar ou orar. “A
presença do pesquisador introduz artificialidade ao contexto pesquisado,
mas, embora não seja possível evitá-lo, o fato deve ser sinalizado.” (PIRES,
2011, p.34). Tentando fazer o possível para minimizar a minha artificialidade
no contexto social, participando como as crianças nas atividades, sendo
uma aprendiz dos Primários, realizando os trabalhos, sentada no chão
como elas, brincando de adivinhação, de esconde-esconde, por isso, com
o tempo, as crianças foram se acostumando com a minha presença.

4. LIÇÕES

As lições são compostas por um livro que vem para os professores


e outro para os alunos, todos os trimestres. Tive acesso aos dois livros.
A questão dos professores tentarem introjetar a doutrina da igreja se
firma com as lições, essas atividades se consolidam com as atividades
passadas, com a materialização com objetos e cenários dos quais os
professores inventam para que as crianças entendam abstraindo
a teologia Adventista. Em relação às crianças, elas se divertem e
questionam sobre o que assistem e escutam, não sendo, portanto, só
uma mera reprodução, o que pode ser observado pela agência das
crianças.
Em relação ao livro dos professores toda semana é detalhado os
passos que os professores devem seguir como o que deve fazer nas
“Boas-vindas” das crianças, oração e louvor (que é aquela oração do
inicio), ofertas junto com oração e a lição Bíblica mais a aplicação da
lição. Observei que há uma estrutura para isso, as quatro primeiras
semanas há um eixo temático, exemplo, as quatro primeiras semanas
ocorreram com o serviço: “Deus nos chama para servir aos outros”,
nas quatro semanas do meio foi: “A graça de Deus significa boas-novas
para nós”, e assim por diante.

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Religião e criança:... 259

Os temas circulam através desses serviços, cada dia tem um verso


específico que as crianças precisam decorar. Na lição também há os
objetivos que os professores devem alcançar, exemplo, na lição cinco
do dia dois de fevereiro: “Os objetivos: a criança deverá SABER que a
graça é a boa- nova de que Jesus a ama. SENTIR-SE feliz porque Deus
a considera filha”. (Lição dos Primários- livro do professor, 2013, p.34).
Observei ainda, que algumas atividades são realizadas pelos professores,
outras não, pois muitas vezes o tempo não permite que os professores
consigam realizar tudo.
Em relação à lição das crianças, também tive acesso, a primeira
lição que estudei como aluna, foi a lição dez que tem o título “Morta
ou viva”, eu havia assistido à aula como os outros alunos, e essa lição,
falou sobre a menina que Jesus ressuscitou.
A lição das crianças funciona assim: tem a aula na Escola Sabatina,
e todos os dias elas lêem em casa com os pais e fazem um mini culto
com a família. Nessas atividades diárias a primeira que eu li foi sobre
a volta de Jesus, por ser um dos ensinamentos da igreja, essa volta
para eles já é introjetada desde que nascem. Entretanto, para mim, foi
incômodo o modo como essa lição foi abordada. Abaixo a lição do dia
nove de março:

Se possível, vá a um cemitério com a sua família, e leia a


história da lição. Imagine como será esse lugar quando
Jesus voltar. Leia João 11:25 na sua Bíblia. Algumas pessoas
vão morrer antes de receberem a vida eterna. (Lição dos
Primários- livro dos alunos, em 09 de março de 2013).

Depois que conversei com as crianças e as pessoas para poder


entender melhor esse mandamento peculiar Adventista, entendi essa
especificidade. Com isso, em uma conversa com Alice obtive algumas
informações sobre o que as crianças acreditam ser essa volta de Jesus.

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260 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

Pesquisadora: “e tu já está se preparando (para pregar no


culto) 4?”.
Alice: “num sei, tô...”.
Pesquisadora: “tu vai falar do quê?”.
Alice: “da volta de Jesus.”.
Pesquisadora: “e como vai ser a volta de Jesus?”.
Alice: “ele prometeu que vai voltar, ele vai voltar numa
nuvem.”.
Pesquisadora: “que lindo!”.
Alice: “do tamanho de uma nuvem, é porque lá do céu a
gente pensa que a nuvem é bem pequenininha, mas quando
chega aqui é bem grandão.”.
Pesquisadora: “eu não sabia depois tu me conta mais...”.
Alice: “mas às vezes para mim parece que ele não vai voltar, mas ele
vai.”.
Pesquisadora: “porque ele às vezes não vai voltar?”.
Alice: “porque a gente vai viver eternamente, a gente não
vai morrer5?”.
Pesquisadora: “mas porque tu acha que ele não vai voltar?”
Alice: “Porque parece que viver eternamente é esquisito entender?
Mas eu acredito que ele vai voltar.”.
Pesquisadora: “Mas é difícil acreditar, é?”.
Alice: (riso) “a gente vai poder voar...”.
Nesse momento entrou João e disse: “É, meu pai falou que
a gente vai poder voar.”. (Conversa com a menina em 06 de
abril de 2013).

Acredito que essa conversa com a menina foi muito significativa,


principalmente no trecho grifado. Ela disse que acreditava que Jesus
voltaria, mas que era difícil de entender, mas que acreditava, ou seja, não
só reproduzia, ela parava e pensava o quanto aquilo é importante.
Nessa fala é possível observar a agência dessa criança perante uma
estrutura maior. Com diz Nunes (2007, p.12): “Agência para todos os seres
4
Abordei Alice porque a professora havia me dito que ela iria pregar, por isso a pergunta se ela
já estava se preparando.
5
Alice ficou muito indignada ao falar que ira viver eternamente, se admirando da afirmação
que ela mesma repetia.

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Religião e criança:... 261

humanos, incluída as crianças, cabe considerar que a capacidade infantil


para agir e representar está em correlação com a sua idade, habilidade
cognitiva e a história de suas relações com outras pessoas”.
O argumento da menina que iria voar é uma espécie de incentivo
a acreditar nessa vida eterna, voar leva a Jesus, mas para isso é preciso
acreditar. Outra questão relevante, é que ela disse que no dia que pregar
vai ser sobre isso, ou seja, ela é filha de pastor, que incentiva as crianças
a pregarem, como eu já assisti ele falar isso em público no culto6. A mãe
de Alice é coordenadora da Escola Sabatina infantil, e ela tem que pregar
com essa questão que é primordial na igreja, que é a volta de Jesus, o que é
surpreendente, porque ela falou muito natural que é difícil entender.
A partir disso, decidi fazer uma atividade com a seguinte pergunta:
“Como era a volta de Jesus?” Elas desenharam para mim esse evento.
Abaixo alguns dos desenhos mais significativos.

Imagem 5- Desenho de Sara: “A volta de Jesus”

Sara fez Jesus em cima de uma nuvem bem grande, com raios amarelo
saindo embaixo amarelo, e dois anjos tocando flauta com os pássaros
voando. Embaixo, na Terra, um parque com gangorra, e escorregador,
árvore e flores e duas meninas, uma de roupa rosa e outra amarela. Seu
título: A volta de Jesus.
6
O pastor, pai de Alice falara em um culto público, que era preciso incentivar as crianças a
pregarem, como isso já ocorria na igreja Adventista da Alemanha, pois as crianças são o futuro
da igreja, e que precisava se preparar desde criança.

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262 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

Imagem 6- Desenho de Alice: “Jesus voltará”

Alice fez um desenho muito colorido Jesus dentro do Sol, e uma


nuvem grande embaixo, os anjos, e pássaros, na Terra uma árvore e um
cemitério. O mais interessante é que não tem ninguém vivo no desenho
dela; como nos desenhos das outras crianças, o desenho dela são só
cruzes. Esse desenho representou muito para mim para pensar como esse
processo de evangelização e socialização de Alice foi sendo construído.
No meio da atividade eu perguntei “e vai ser bom quando Jesus
voltar?” Todos gritaram “sim!” Daniela, a professora, ao ver os desenhos,
me falou que eles acreditam que Jesus vai vir e não vai pisar na Terra, vai
ficar numa nuvem no céu, e os anjos é que iram descer e buscá-lo. Por isso,
eles desenharam daquele jeito, anjos descendo.
Ou seja, através deste desenho vejo a doutrina da igreja, o que
as crianças acham disso, e tudo através da evangelização, não só a
evangelização infantil, a evangelização para as outras idades da igreja
também mostra esse ensinamento.
Considerei algumas das lições de suma importância, na medida em
que pretendiam mostrar a socialização das crianças, socialização essa que
pode ser pensada como Nunes afirma: “As crianças têm algo original a
dizer, socializam-se ao longo de uma relação dialógica com o mundo à
sua volta de tal modo que, justificadamente, sua vivência, representações e
modos próprios de ação e expressão devem construir objetos da pesquisa
social.” (2002, p.22) Por isso considero que elas ao estar em constante
socialização, reproduzem os ensinamentos da igreja pela evangelização
Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018
Religião e criança:... 263

infantil, e pelas lições estudadas, por outro lado, demonstram tal como
Alice afirmou algo original, na medida em que ela disse que era difícil
pensar/acreditar que iria viver eternamente.
A doutrina da igreja por sua vez, acredita que as crianças vão
reproduzir os ensinamentos, e se algum sair do “caminho” da igreja, ela
logo busca “cortar pela raiz”, ou seja, repreende e os fiéis, dos quais podem
ficar meses sem poder ir à igreja, passar por uma espécie de julgamento,
tal como informou Marina, que já acontecera casos assim, na entrevista
que realizei com ela. Quando as crianças confrontam algo, logo ela é
repreendida.
As crianças aprendem que não andar no caminho de Jesus tudo fica
ruim, é preciso construir uma casa7, ou melhor, constrói-se na igreja para
que nada de ruim aconteça para elas. Outra lição materializada foi a de
massa de modelar, sobre o medo das crianças, que mostra essa construção
desde a infância na igreja.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, foi possível averiguar que o caminho metodológico com


crianças foi o que de fato me levou a mergulhar nesse campo. São pequenos
atos construídos e identificados pelas crianças, que concordam entre si,
e ao mesmo tempo discordam. Ou seja, os pensamentos se cruzam, as
ideias, os atos entre as crianças da mesma idade se interagem de uma forma
dialógica, reproduzem a filosofia da igreja, como quando Jesus voltar vai
vir em uma nuvem bem grande completando o pensamento do outro.
São esses pequenos atos que capacitam as crianças, do seu modo, a
serem protagonistas de transformações, não transformações extraordinárias
dentro da igreja Adventistas. Mas transformações pequenas, diárias, de
como o professor deve se preparar para ministrar a aula, ou como deve
contornar uma situação delicada.
7
Demonstrei essa analogia de construir casa, porque em uma das lições apresentadas os
professores exploraram a ideia de que Jesus é terra firme para construir uma casa, e que ele
sendo o alicerce nenhuma tempestade derruba essa casa, ou seja, com Jesus nada de ruim
acontece.
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264 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

Dessa forma, trazer a questão da Sociologia da Infância vinculada à


Sociologia da Religião me fez pensar em um conjunto de categorias sociais
que podem ser pensadas nessas duas esferas: socialização, agência infantil,
imitação, evangelização, pastor-mirim.
Desse desenho metodológico foi possível chegar ao conceito que
as crianças têm agência, como explicado ao longo desse texto, porém
acredito que ela não tem autonomia, como enfatizei ao longo do texto.
Para pensar autonomia, Sarmento colaborador dessa ideia afirma que: “As
crianças como atores sociais, nos seus mundos de vida, e a infância, como
categoria social do tipo geracional, socialmente construída. A infância é
relativamente independente dos sujeitos empíricos que integram, dado
que ocupa uma posição estrutural”. (2008, p.22).
O que nos leva a entender que, todos imitamos, todos nos
socializamos ao longo da vida, e a agência infantil é um elemento
encontrado ao longo da metodologia usada.

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Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018


Religião e criança:... 269

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Texto recebido em 15/12/2017 e aprovado em 29/03/2018.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018


270 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

Temáticas, Campinas, 26, (51): 249-270, fev./jun. 2018


A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA CRIANÇA NO
MOVIMENTO SEM TERRA: ENTREVISTANDO
A MILITANTE KAMILA KARINE
DOS SANTOS VANDERLEY

Christina Gladys de Mingareli Nogueira1


Isabelle Mingareli N. dos Santos2

A temática da criança/infância no espaço rural vem despertando cada vez


mais o interesse de pesquisadores em diversas áreas das Ciências Humanas
e Sociais, dentre essas áreas podemos destacar a Sociologia, a Antropologia,
a Educação, a Psicologia, a área interdisciplinar de Direitos Humanos, a
História, entre outras. Nesta entrevista, realizada em 21 de abril de 2018,
Kamila Karine dos Santos Wanderley nos contou de sua trajetória como
professora em escolas do campo, como pesquisadora e militante dos
direitos das crianças e dos adolescentes Sem Terra na Paraíba. Contou-nos
sobre seu trabalho de mestrado, que teve como principais interlocutores
as crianças rurais. Destacou, ainda, o lugar político ocupado pelas Crianças
participantes do Movimento Sem Terra, os chamados “Sem Terrinhas”.
Kamila Karine dos Santos Wanderley possui Licenciatura em História e
Licenciatura em Pedagogia com aprofundamento em Educação do Campo
pela Universidade Federal da Paraíba. É também especialista em História
do Brasil e da Paraíba. Cursou Mestrado em Formação de Professores

1
Entrevistadora. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE); professora substituta/ UEPB, Brasil. E-mail: c.g.nogueira@gmail.com
2
Transcrição. Graduanda em Relações Públicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
graduanda em Produção Publicitária (IESP).
272 Christina Gladys de M. Nogueira e Isabelle Mingareli N. dos Santos

Universidade Estadual da Paraíba. Atua nas áreas de Educação do Campo


e Extensão Rural; Formação Docente; Processo Didático/Organização
do Trabalho na Escola; e Prática Pedagógica. Atualmente é articuladora
Estadual do Setor de Educação do MST na Paraíba e coordenadora das
turmas de educação de jovens e adultos em áreas de reforma agrária na
PB.
Christina Gladys: Bom dia, Kamila. Agradeço a disponibilidade em
termos essa conversa. Poderia começar nos contando como foi seu
envolvimento com a temática da Criança Rural?
Kamila Karine: Minha trajetória na Educação do Campo e na História
Sem Terrinha se iniciou em meados de 2012. Fui professora de história por
cerca de sete anos na zona Rural. Quando entrei no curso de Educação do
Campo, em 2011, me envolvi nos grupos de pesquisas que tinham como
foco a formação de educadores no assentamento Zumbi dos Palmares, em
Mari/PB. E lá nessa escola é onde temos as experiências mais completas.
Tem o PPP – Projeto Político Pedagógico voltado para educação do
campo, no qual os ensinamentos do MST são de fato vivenciados, que
é uma escola de educação infantil. Comecei a me envolver nesse espaço
quando fazíamos a formação com os educadores. Tínhamos a necessidade
de ficar com as crianças do quarto e quinto anos, visto que é uma escola
multisseriada. Foi através do grupo de pesquisa de Socorro Xavier que
fomos preparando esses momentos com as crianças, com o próprio
material do MST e com as experiências concretas da escola. A partir desse
momento no acampamento fomos aprendendo a fazer escola dentro do
próprio movimento. Foi nesse espaço também que realizei minha pesquisa
de mestrado.
Christina Gladys: Você poderia nos falar sobre seu trabalho de mestrado:
“Fazer e ensinar em história”: memória e construção da educação do
campo na escola municipal Zumbi dos Palmares – Mari/ PB.
Kamila Karine: Com base nas experiências que já vínhamos construindo
na escola desde o PIBIC-UFPB e das formações continuadas, a dissertação
teve como objetivo desenvolver propostas de metodologias participativas

Temáticas, Campinas, 26, (51): 271-278, fev./jun. 2018


Entrevista 273

no ensino de história, na abordagem da história local e memória, o que foi


feito a partir das experiências de formação da identidade social da turma
multisseriada do quarto e do quinto ano da Escola do Assentamento
Zumbi dos Palmares, localizada no município de Mari/PB. A nossa
proposta também visou identificar a concepção do ensino de história,
mediatizada pelo Projeto Político Pedagógico. Os principais sujeitos da
pesquisa, de fato, foram as crianças, estudantes de nove e dez anos, da turma
multisseriada do quarto e do quinto ano da escola. Porém, além desses
sujeitos, participaram da pesquisa a professora da turma e os moradores
que fizeram parte do processo de luta pela terra no assentamento. A partir
das ideias de identidade e memória, e da construção de uma Educação do
Campo, referente ao ensino de história local, buscamos analisar qual era a
versão da História que Pedagogia do Movimento Sem Terra tem proposto,
história essa aprendida no cotidiano desse movimento, a qual vem se
construindo no desenvolvimento da memória e da relação do movimento
com a formação da identidade social dos participantes.
Christina Gladys: E quanto à metodologia, como foi o trabalho com as
crianças no seu mestrado?
Kamila Karine: A pesquisa teve cunho qualitativo, nos moldes da pesquisa
ação. Além disso, a história oral foi fundamental para nosso trabalho.
Utilizamos também uma diversidade de ferramentas: oficinas e sequências
didáticas com as crianças, entrevistas com crianças e adultos e o vídeo-
história. O conjunto dessas metodologias foi uma forma importante para
a reconstrução da narrativa histórica sobre o Assentamento Zumbi dos
Palmares e sobre a própria escola.
Christina Gladys: O que mais você pode acrescentar sobre esse seu
envolvimento com as crianças na Zona Rural?
Kamila Karine: Após essa experiência inicial, ainda estou envolvida e
venho acompanhando não só essa escola, a Zumbi dos Palmares, mas a
Tiradentes, no assentamento Tiradentes, também em Mari. O foco agora é
a observação do que é ser criança em área de assentamento. Observo que
essas crianças estudam a sua história e a sua geografia partindo dos relatos

Temáticas, Campinas, 26, (51): 271-278, fev./jun. 2018


274 Christina Gladys de M. Nogueira e Isabelle Mingareli N. dos Santos

que mostram que aquele espaço foi fruto de muita luta e isso é muito
presente no dia-a-dia e nas falas delas, pelo menos nessas duas escolas,
onde até hoje você consegue observar e colher os relatos das crianças.
Fazendo parte desse processo, a cada dois anos, o Movimento Sem
Terra (MST) constrói o espaço dos “Sem Terrinha”. Em 2012, participei
pela primeira vez do encontro estadual, como oficineira. Tinha como
perspectiva a construção de uma faixa a partir de uma roda de conversa
com as crianças, queríamos saber onde elas viviam, como elas percebiam a
localidade onde moravam. Com a ajuda de outras companheiras, passamos
isso para as telas. Então, foi realizada uma construção coletiva, com as
crianças, de telas muito bonitas fruto desse encontro.
Essa minha experiência com as crianças foi de muita escuta e respeito ao
espaço delas. Eram crianças muito variadas. Se formos falar das crianças
do encontro de 2012, são muito variadas. Esse encontro teve cerca de 400
crianças e foi no Liceu Paraibano, uma escola pública estadual de João
Pessoa - PB.
Gosto de chamar a atenção para o fato de que essa experiência não é só
da/na escola Zumbi do Palmares. Esse diálogo se estende e é também
aberto à comunidade, às casas, às brincadeiras infantis. E, nesse sentido,
vale ressaltar que o MST vê a criança como sujeito.
Fazendo um salto para 2016/2017, considerando que já não tínhamos um
encontro estadual de crianças há tempos, colocamos como meta fazer um
encontro em 2017. Entrei nesse momento como professora e articuladora.
Fizemos um encontro preparatório em 2016 no espaço Wanderley Caiche,
que era um assentamento na região de Alhandra e Caaporã, na beira da
BR. Foi um encontro com mais de 100 crianças, com oficinas e rodas
de diálogos. Colocamos em todos os nossos setores do MST a discussão
sobre a questão da Jornada da Alimentação Saudável. Ao colocar essa
discussão no encontro, pensávamos nas e com crianças. Pensávamos na
produção de alimentos, se as crianças tinham acesso a essa produção, se
os pais usavam veneno etc. Buscamos perceber a questão da alimentação
diferenciada da criança da cidade para a criança do campo.
Em 2017 fizemos o encontro estadual com mais de 200 crianças, em João
Pessoa, também nessa perspectiva de discutir a questão da alimentação

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Entrevista 275

saudável e de discutir a criança, seu espaço enquanto sujeito e a questão


dos seus direitos.
Ainda em 2017 me coloquei na direção estadual, e assim articulamos da
infância até a universidade. Nesse sentido, a infância no MST não aparece
só na escola, mas também nas cirandas Sem Terrinha.
Christina Gladys: O que são as Cirandas Sem Terrinha?
Kamila Karine: Em todos os espaços do MST existe uma preocupação
de criar espaços de cuidado para as crianças, desde bebês até os doze
anos, onde os pais estão em formação e as crianças estão em um espaço
para elas. As crianças do MST estão sempre presente – inclusive nos
processos de mobilização e de ocupação elas estão presentes. O espaço
de garantia para elas são as Cirandas, que são espaços de crianças, espaço
do brincar pelo brincar, assim garantimos o espaço dessa criança como
sujeito político. Tivemos, também, a experiência das crianças na ocupação
da praça João Pessoa - PB no processo Lula Livre. Tínhamos cerca de 30
crianças, garantindo o espaço delas, por exemplo, na escrita de cartas pra
Lula, na construção de bonecas de pano, brincadeiras e desenhos. Mesmo
reconhecendo que aqueles espaços não são os melhores que poderíamos
oferecer, mas era um espaço lúdico, um espaço de discussão política, de
escuta. Então hoje minha função fica muito na articulação dos espaços
com as crianças e com as famílias.
Christina Gladys: Como será a participação delas nesse Encontro
Nacional?
Kamila Karine: Em relação ao primeiro encontro nacional de crianças
Sem Terrinha, ele vai acontecer em 28 de maio de 2018.3 E como tem
se mostrado, 2018 tem sido um ano de acirramento das lutas, o que nos
convoca, enquanto movimento, a fortalecer nossa organicidade. Por isso,
temos também nos inspirado pela Mística da Infância, no sentido de
acreditar em um novo amanhã nesses tempos difíceis que vem. Estamos
realizando esse encontro e ele vai acontecer no Parque da Cidade, em
3
Nota da entrevistadora: o Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha aconteceu entre os
dias 28 a 31 de maio de 2018 no Parque da Cidade em Brasília – DF.

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276 Christina Gladys de M. Nogueira e Isabelle Mingareli N. dos Santos

Brasília - DF. É um encontro que tem a expectativa de reunir 1000 (um


mil) crianças. Os encontros estaduais já foram encontros que ensaiavam
essas questões preparatórias. Também estamos realizando a preparação
de educadores infantis que vão acompanhar nossas crianças, assim como
a articulação nacional de oficineiros, dos artistas que estarão participando
do encontro. Todos os Estados vão enviar um ônibus. Pernambuco
irá com três ônibus e da Paraíba iremos com 20 crianças, já que não
conseguimos ônibus. A nossa faixa etária é entre 8 e 12 anos. Estamos
discutindo a partir de um caderno de orientações para os educadores. O
encontro vai ser muito pensado no protagonismo das crianças e, além de
crianças brasileiras, teremos a participação de crianças de países que estão
passando por momentos difíceis como Cuba, Venezuela, Síria.
Christina Gladys: Quais são as inspirações teóricas nesse diálogo com
as crianças?
Kamila Karine: Pensamos a partir dos documentos que foram elaborados
a partir das experiências em todo o Brasil, tendo como inspiração Pistrak,4
a pedagogia socialista e os estudos de Paulo Freire. Tendo esses horizontes
as crianças são compreendidas como sujeitos ativos e críticos, capazes
de atuar na luta e no respeito à organização. O MST visualiza a criança
como esse sujeito que participa do processo organizativo, assim como os
adultos. É importante destacar, com base naquilo que Pistrak nos ensina a
respeito da auto-organização, a partir da sua realidade, e a partir das tarefas
que o MST coloca como engajamento, seja na escola ou nas lutas, hoje
nos encontramos frente a muitos desafios. Consideremos, por exemplo,
quando se fala em auto-organização dos estudantes a partir da perspectiva
que o MST traz. Hoje só há algumas experiências isoladas na Paraíba, e
mesmo que tenhamos realizado a luta pela escola, é o município quem
toma conta e não temos como avançar muito nas escolas. Deste modo,
onde podemos trabalhar a questão da infância na sua auto-organização?
Em questões simples: ela ter voz nos espaços, ela ter o poder de decisão
entre seus pares, ajudando-a a entender que ela está ocupando a terra, o
4
Moisey Mikhaylovich Pistrak foi um educador socialista que viveu na Rússia e influenciou as
ideias pedagógicas do período pós-revolução russa de 1917.

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Entrevista 277

porquê de muitas vezes elas serem vistas com preconceito na cidade etc.
No que diz respeito a esses debates, os espaços que temos para
implementar o diálogo das/com as crianças vão ser as cirandas,5 as vezes
com os mais velhos. No que toca à Paraíba, o nosso coletivo está muito
limitado, e mesmo um pouco frágil. Percebemos nas falas das crianças
que elas entendem muito bem que estão em um espaço de disputa,
quanto elas estão acampadas, por exemplo. Percebemos muito isso na fala
delas, na ciranda do acampamento Dom José Maria Pires, aqui no litoral.
Ficamos sabendo, por duas meninas de nove anos, que no início do ano o
ônibus escolar não estava chegando lá, mesmo que hoje a situação esteja
regularizada. E elas diziam: “Olha, eles não vem aqui porque a gente mora
longe, porque a gente é visto como muito pobre, mas estamos na luta...”.
Vemos o acampamento também como espaço de formação de todos os
dias, como espaço de luta, desde o transporte da escola que não chega até
a luz e a comida. Elas se veem nesse espaço de luta e de resistência.
Christina Gladys: O que é ser criança rural?
Kamila Karine: É ser criança na luta pela conquista dos direitos. Nossas
crianças têm uma grande capacidade de integração, de disciplina, de
coletividade, para além do nosso espaço do campo, do espaço rural. É
ainda uma infância saudável, na questão das brincadeiras, das brincadeiras
coletivas, brincadeira de árvores, brincadeira de rodas, enfim, na brincadeira
com integração com outras crianças, de correr por sua área, de conhecer
sua vizinhança, de conhecer sua comunidade, de ter mais espaço para
o diálogo. Isso não quer dizer que nossas crianças não tenham acesso a
todos os problemas que as crianças de cidade têm, mas para elas isso chega
um pouco mais tarde. Isso da criança achar que é adulta antes do tempo,
por exemplo. Mas a questão da internet e a questão da própria violência
têm chegado. O tráfico também é uma questão que temos percebido,
principalmente nos assentamentos próximos às cidades. A temática da
violência e do tráfico preocupam e precisam ser discutidas mais cedo. Mas,

5
Nesse dossiê dois artigos trazem a questão das cirandas, referimo-nos àqueles que tratam da
infância no MST.

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278 Christina Gladys de M. Nogueira e Isabelle Mingareli N. dos Santos

acredito que essas crianças têm a infância um pouco mais garantida nesses
aspectos.
Christina Gladys: Como você se coloca nos estudos sobre infância rural?
Kamila Karine: Para além do trabalhar com a temática da infância no
sentido acadêmico, eu me coloco muito como militante, buscando também
entender essa infância, essa conquista de direitos e mesmo a falta de
direitos desses sujeitos sociais/crianças. Acredito também que para quem
vai trabalhar com crianças em espaços rurais e em ambientes do MST
se faz necessário entender o projeto político e a história desses espaços
e do próprio movimento, isso porque as crianças estão inseridas nesse
processo de sociedade. Buscando compreender que seus espaços têm uma
‘tensionalidade política’ que vai para além da escola, do assentamento. Para
quem está nessas áreas de estudos, se faz necessário o estudo das cartilhas
feitas por eles. Os acampamentos, a zona rural e a vida campesina não
estão isolados de uma organicidade nacional, por isso é interessante que
levemos as crianças para os encontros nacionais para que elas possam ter
trocas de ideias e tenham a oportunidade de pensar sobre suas vidas, suas
infâncias.
Christina Gladys: Kamila, parabéns pelo estudo, trabalho e engajamento.
Desejo que tudo corra bem neste encontro e que possamos ter uma nova
conversar para sabermos como tudo transcorreu. Muito obrigada!

Texto recebido em 15/05/2018 e aprovado em 16/05/2018.

Temáticas, Campinas, 26, (51): 271-278, fev./jun. 2018


temáticas
Revista dos Pós-Graduandos
em Ciências Sociais

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