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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS


INSTITUTO DE LETRAS

CONCEIÇÃO ALMEIDA DA SILVA

QUANDO DIZER É FAZER RIR PARA VENDER MAIS:


mecanismos de produção de humor na publicidade

NITERÓI
2012
CONCEIÇÃO ALMEIDA DA SILVA

QUANDO DIZER É FAZER RIR PARA VENDER MAIS:


mecanismos de produção de humor na publicidade

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em


Estudos da Linguagem da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau
de Mestre. Linha de pesquisa: Teoria do texto, do discurso
e da interação.

Orientador: Prof. Dr. FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA

NITERÓI
2012
CONCEIÇÃO ALMEIDA DA SILVA

QUANDO DIZER É FAZER RIR PARA VENDER MAIS:


mecanismos de produção de humor na publicidade

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em


Estudos da Linguagem da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau
de Mestre. Linha de pesquisa: Teoria do texto, do discurso
e da interação.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA (orientador)


Universidade Federal Fluminense

Profª. Drª. ROSANE DOS SANTOS MAURO MONNERAT


Universidade Federal Fluminense

Profª. Drª. VITÓRIA WILSON


Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Profª. Drª. LÍGIA TROUCHE (suplente)


Universidade Federal Fluminense

Profª. Drª. LETÍCIA REBOLLO (suplente)


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Niterói
2012
Em memória à minha avó Euracinda, a principal
responsável por me fazer querer “ser alguém na vida”.
AGRADECIMENTOS

A Deus, principalmente, que me deu vida, saúde e fé para acreditar que tudo isso era possível.

Ao meu orientador, professor doutor Fernando Afonso de Almeida, pela dedicação, pela
orientação atenciosa, pelos sábios conselhos, pelas indicações bibliográficas acertadas, pelas
correções, sugestões etc. que foram fundamentais para o êxito desta dissertação.

Ao CNPq, pela bolsa de estudos concedida que me permitiu maior dedicação à pesquisa, bem
como a aquisição de livros, participação em congressos etc.

A minha família, por compreender e perdoar minhas ausências, minha distância e minha
“casmurrice” durante o período do mestrado.

Aos meus amigos, por me deixarem desabafar minhas angústias dissertativas, e também por
me arrancarem da minha rotina acadêmica de vez em quando, levando-me para tomar um
chope, bater um papo e descontrair...

À Joyce Palha Colaça, pela amizade de sempre e pela revisão atenta de meu trabalho.

Às funcionárias da secretaria do departamento de pós-graduação do Instituto de Letras da


UFF, por sua eficiência e prontidão em atender-me.

Aos professores que participaram de minha formação escolar e acadêmica, desde os primeiros
anos até o mestrado e, em especial, aos componentes da banca.

Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram com a elaboração dessa dissertação,

Obrigada.
“Como é bom saber que a propaganda que a gente aprovou é a mais
lembrada e a mais querida do Brasil.
Como é bom ver a nossa campanha atrelada à alegria, piadas,
conversas de bar.
Como é bom ter uma agência de propaganda apaixonada. Porque com
paixão é muito mais fácil ser criativo e efetivo.
Como é bom saber que um convite tão direto – EXPERIMENTA – foi
aceito por brasileiros de todos os cantos.
Como é bom verificar que a verba que vai para esse negócio chamado
propaganda não é um gasto inevitável e sim um investimento com
retorno garantido.
Como é bom descobrir com a sua campanha que, sim, propaganda
vende.”
(Anúncio 10 – Cerveja Nova Schin: “Boa propaganda vende”, p. 58)

“Prender a atenção do leitor ou ouvinte parece ser a porfia maior. Por


isso, a criatividade incansável do propagandista ou publicitário na
busca incessante de meios estilísticos que façam com que o leitor ou
ouvinte preste atenção ao seu texto, chocando-o se for necessário.”
(SANDMANN, 2005, p. 12-13)
RESUMO
As principais finalidades de qualquer publicidade são, por um lado, apresentar um produto e,
por outro, seduzir. Para tanto, uma publicidade precisa ser eficiente nos dois sentidos:
apresentar as características e as vantagens do produto em relação a outros da mesma
categoria e, ao mesmo tempo, procurar captar a atenção dos consumidores, despertando-lhes o
desejo de consumir. Esse segundo aspecto, predominante no anúncio publicitário, é realçado
pela exploração de efeitos humorísticos. Tais efeitos, no entanto, dependem de uma série de
mecanismos linguístico-discursivos, explorados pelo publicitário não só em função de seus
objetivos, mas principalmente em função do público-alvo. É nessa perspectiva que a
publicidade faz uso das linguagens icônica e verbal, com a ajuda das quais constrói uma
imagem divertida de enunciador, projetando uma cenografia capaz de causar estranhamento
ou surpresa, explorando conhecimentos compartilhados tanto sobre as relações sociais, quanto
sobre a situação comunicativa, ou ainda, fazendo o destinatário ouvir “vozes” que lhe soam
familiares ou divertidas. Este trabalho tem como objetivo principal analisar alguns desses
mecanismos que possibilitam entender o funcionamento discursivo do humor na publicidade
sob uma perspectiva interdisciplinar que concilia conceitos tais como ancoragem e
revezamento (BARTHES, 1990) e ethos e cenografia (MAINGUENEAU, 2001) com
pressupostos teóricos da pragmática linguística. Para compreender o que ocorre com o
discurso publicitário, primeiramente, refletiremos sobre sua configuração, sobre o modo como
se estrutura em partes, sobre as linguagens que o compõem e o modo como elas se
relacionam; abordaremos também a noção de cena enunciativa (MAINGUENEAU, 2001),
uma vez que o leitor, ao ler o anúncio, se relaciona com ele por intermédio de uma cenografia
e de um ethos, ambos resultantes do modo escolhido para enunciar. Para compreender como
um anúncio pode tornar-se bem-humorado, revisaremos ainda algumas abordagens, como a de
Bergson (1987) e a de Freud (1987), que sob diferentes perspectivas, oferecem importante
contribuição para o entendimento dos mecanismos de produção do cômico e dos chistes,
respectivamente. Por fim, em nossa análise, buscaremos mostrar como os conceitos antes
apresentados podem contribuir para a compreensão dos efeitos de humor provocados pelo
texto publicitário.

PALAVRAS-CHAVE: publicidade, humor, pragmática.


RESUMEN
Las principales finalidades de cualquier publicidad son, por un lado, presentar un producto y,
por otro, seducir. Para ello, una publicidad necesita ser eficiente de los dos modos: presentar
las características y las ventajas del producto con relación a otros de la misma categoría, y, a
la vez, buscar captar la atención de los consumidores, despertándoles el deseo de consumir. Se
realza ese segundo aspecto, predominante en el anuncio publicitario, por la exploración de
efectos humorísticos. Tales efectos, sin embargo, dependen de una serie de mecanismos
linguístico-discursivos, explorados por el publicitario no solo en función de sus objetivos,
pero principalmente en función de la audiencia a que se destina. Es en esa perspectiva que la
publicidad hace uso de los lenguajes icónico y verbal, con la ayuda de los cuales construye un
imagen divertido de enunciador, proyectando una escenografía capaz de causar efectos
sorprendentes, explotando conocimientos compartidos no solo sobre las relaciones sociales,
sino también sobre la situación de comunicación o, además, haciendo el destinatario escuchar
“voces” que le suenan familiares o divertidas. Este trabajo tiene como objetivo principal
analizar algunos de eses mecanismos que posibilitan entender el funcionamiento discursivo
del humor en la publicidad bajo una perspectiva interdisciplinar que concilia conceptos tales
como anclaje y relevo (BARTHES, 1990) y ethos y escenografía (MAINGUENEAU, 2001)
con presupuestos teóricos de la pragmática linguística. Para comprender lo que ocurre con el
discurso publicitario, inicialmente, reflexionaremos sobre su configuración, sobre su modo de
estructurarse en partes, sobre los lenguajes que lo componen y el modo como se relacionan;
abordaremos también la noción de escena de la enunciación (MAINGUENEAU, 2001), ya
que el lector se relaciona con el anuncio al leerlo a través de una escenografía y de un ethos,
ambos resultantes del modo elegido para enunciar. Para comprender como un anuncio puede
hacerse bien-humorado, revisaremos también algunos abordajes sobre el humor, tales como el
de Bergson (1987) y el de Freud (1987), que bajo diferentes perspectivas, ofrecen importante
contribución para la comprensión de los mecanismos de producción de lo cómico y de los
chistes, respectivamente. Por fin, en nuestro análisis, buscaremos mostrar como los conceptos
antes presentados pueden contribuir para la comprensión de los efectos de humor provocados
por el texto publicitario.

PALABRAS-CLAVE: publicidad, humor, pragmática.


LISTA DE ANÚNCIOS

Anúncio 1 – Natura Humor: “desarme-se” ......................................................................... 23


Anúncio 2 – Guaraná Schin: “tia surda” .............................................................................. 30
Anúncio 3 – Vivo (peça humorística) .................................................................................. 34
Anúncio 4 – Folha (peça humorística) ................................................................................. 35
Anúncio 5 – Bradesco Seguros: “vai que...” ....................................................................... 41
Anúncio 6 – Lá que tá (peça humorística) .......................................................................... 44
Anúncio 7 – Bebassa (peça humorística) ............................................................................ 44
Anúncio 8 – Brasas: “the book is on the table” (peça humorística) ...................................... 45
Anúncio 9 – Sadia: “nem a pau, Juvenal!” .......................................................................... 52
Anúncio 10 – Cerveja Nova Schin: “boa propaganda vende” .............................................. 58
Anúncio 11 – Almanaque Fontoura .................................................................................... 60
Anúncio 12 – Honda: “felicidade” ...................................................................................... 64
Anúncio 13 – Bradesco: “Cirque Du Soleil”........................................................................ 66
Anúncio 14 – Rede Globo: “novela Pé na jaca” .................................................................. 67
Anúncio 15 – Bom Bril: “Mona Lisa” ................................................................................ 68
Anúncio 16 – Dell: “quem vê cara, não vê configuração” ................................................... 72
Anúncio 17 – Caixa: “viajar renova” .................................................................................. 79
Anúncio 18 – Polenghi: “enólogo” ..................................................................................... 80
Anúncio 19 – Filme da avó das Havaianas ......................................................................... 84
Anúncio 20 – Naldecon: “dia e noite” ................................................................................ 87
Anúncio 21 – Quatro Rodas: “os eleitos” ........................................................................... 90
Anúncio 22 – Natura: “40 anos” ......................................................................................... 97
Anúncio 23 – Tim: “ilimitado” ........................................................................................... 97
Anúncio 24 – Ford Focus: “mal começou X começou mal” ............................................... 100
Anúncio 25 – Nestlé: “chocolovers” ................................................................................. 101
Anúncio 26 – Batavo: “use saia” ...................................................................................... 102
Anúncio 27 – Chevrolet: “viver no interior” ..................................................................... 114
Anúncio 28 – Cerveja Nova Schin: “se rebolar, não derrame” .......................................... 123
Anúncio 29 – Chevrolet: “sujamos a égua” ...................................................................... 125
Anúncio 30 – Nissan: “5uja do padrão” ............................................................................ 127
Anúncio 31 – Volkswagen: “se babar, não dirija” ............................................................. 132
Anúncio 32 – Toyota: “se o carro beber, não dirija” ......................................................... 133
Anúncio 33 – Playboy: “mestre-sala” ................................................................................ 135
Anúncio 34 – Intelig: “cortar os pulsos” ........................................................................... 137
Anúncio 35 – Ford Focus: “145 cavalos” ......................................................................... 141
Anúncio 36 – Ford: “patrão X patroa” ............................................................................... 142
Anúncio 37 – Cerveja Sol: “sol refresca” ......................................................................... 142
Anúncio 38 – Fiat: “se dirigir não beba” ............................................................................ 144
Anúncio 39 – Goodyear: “nem todo Goodyear” ............................................................... 145
Anúncio 40 – Sky: “1989” ............................................................................................... 146
Anúncio 41 – Sky: “2001” ............................................................................................... 146
Anúncio 42 – Sky: “2002” ............................................................................................... 147
Anúncio 43 – Sky: “2003” ............................................................................................... 147
Anúncio 44 – Sky: “+” ..................................................................................................... 148
Anúncio 45 – Fruthos: “arroz integral” ............................................................................. 149
Anúncio 46 – Kaiser: “revista de família” ........................................................................ 150
Anúncio 47 – Brahma: “pede, né? ..................................................................................... 153
Anúncio 48 – Ford Fiesta: “se manca” ............................................................................. 153
Anúncio 49 – Ferracini 24h: “paraíso” ............................................................................. 155
Anúncio 50 – Intercontrol: “calor interno” ....................................................................... 156
Anúncio 51 – O Boticário: “Cinderela” ............................................................................. 158
Anúncio 52 – O Boticário: “Branca de Neve” .................................................................. 158
Anúncio 53 – O Boticário: “A Donzela e o Dragão” ......................................................... 159
Anúncio 54 – O Boticário: “Chapeuzinho Vermelho” ...................................................... 159
Anúncio 55 – Grant’s : “quem não gosta de samba” ......................................................... 161
Anúncio 56 – Aquafresh: “fio dental” ............................................................................... 162
Anúncio 57 – Chevrolet Meriva: “discutir a relação” ....................................................... 166
Anúncio 58 – Mapfre Seguros: “barbeiro” ........................................................................ 167
Anúncio 59 – Itaú Seguros: “barbeiro” ............................................................................. 168
Anúncio 60 – Playboy: “Cláudia Ohana” ......................................................................... 170
Anúncio 61 – Thoshiba: “recados” ................................................................................... 171
Anúncio 62 – Philips: “palpite campeão” ......................................................................... 174
Anúncio 63 – Bioslim: “faça as pazes com seu espelho” .................................................. 176
Anúncio 64 – Naldecon: “copa do mundo”........................................................................ 177
Anúncio 65 – Volkswagen: “vim, vi e venci” .................................................................... 181
Anúncio 66 – Guifell: “pedras no caminho” ..................................................................... 182
Anúncio 67 – Bombril: “Pelé” .......................................................................................... 183
Anúncio 68 – Terra: “the end” ......................................................................................... 185

LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 – Processos de transformação e transação .................................................................. 86


Fig.2 – Da constituição do pensamento em duas massas amorfas ao signo linguístico ........ 95
Fig.3 – Os contornos do signo ............................................................................................ 96
Fig.4 – O modelo de signo para Pottier ............................................................................... 98
Fig.5 – Quadro de análise sêmica de “saia”, como usado no anúncio 26 ........................... 103
Fig.6 – Valor ilocutório X manifestação linguística .......................................................... 112
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13

2. HUMOR: “desarme-se” ............................................................................................. 23

2.1 Bergson: o riso e a significação do cômico ........................................................... 28


2.2 Freud: o chiste e o inconsciente ........................................................................... 36
2.3 Bakhtin: o riso carnavalesco ................................................................................. 46
2.4 Representações sociais e humor ............................................................................ 52

3. PUBLICIDADE: “boa propaganda vende” ............................................................... 58

3.1 Uma breve retrospectiva: a publicidade no Brasil ................................................. 58


3.2 O gênero anúncio de revista frente a outros gêneros publicitários .......................... 62
3.3 A estrutura composicional do anúncio de revista .................................................. 70
3.4 Cenografia e ethos: o que o anúncio coloca em cena? ............................................ 75
3.5 A semiotização do mundo na publicidade .............................................................. 81

4. LINGUAGEM E AÇÃO: “chegou a hora de discutir a relação” .............................. 90

4.1 Aspectos semiológicos da produção de humor ...................................................... 93


4.2 Aspectos pragmáticos da produção de humor .................................................... 104
4.3 Polifonia, humor e publicidade ........................................................................... 116

5. O HUMOR NA PUBLICIDADE: “fuja do padrão” ............................................... 127

5.1 O cômico de palavras na publicidade ................................................................... 128


5.2 O chiste publicitário ........................................................................................... 138
5.3 A publicidade carnavalesca ................................................................................ 151
5.4 O humor implícito na publicidade ...................................................................... 163
5.5 Publicidades polifônicas bem-humoradas ........................................................... 177

6. CONCLUSÃO: “the end”......................................................................................... 185

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 192


13

1. INTRODUÇÃO

1.1 Aspectos gerais e procedimentos teóricos

O desafio de uma publicidade bem-humorada é o mesmo das que não o são, ela
precisa chamar a atenção do leitor, captar-lhe o interesse. Entretanto, ao diverti-lo, a
publicidade, além de cumprir sua função principal que é a de anunciar o produto, também
conquista sua simpatia, sua adesão, sua cumplicidade. Porém, uma “gracinha” qualquer pode
não despertar a atenção do leitor: o humor precisa ser bem elaborado, bem estruturado, e,
principalmente, bem contextualizado. E neste processo recorre-se a vários mecanismos, dentre
os quais, os linguísticos e os pragmáticos.
O humor é produto de uma interpretação para a qual contribuem vários aspectos: o
locutor, o alocutário, a situação comunicativa etc. Ao ter sua atenção captada por um anúncio
bem-humorado, o leitor se insere num processo de produção de sentidos que prevê a
identificação não só de elementos linguísticos e icônicos, mas também de informações
implícitas que dependem de sua contribuição, de seu conhecimento de mundo. Disto, resulta
uma atividade interativa que envolve o produtor do texto, o próprio texto e o leitor: um
publicitário, buscando uma maneira de atrair a atenção do consumidor e tentando atender à
demanda do anunciante, se esforça em criar efeitos de humor para despertar a atenção do
leitor-consumidor. Este humor, por sua vez, só vai se realizar efetivamente com a participação
deste leitor que deverá, por um lado, perceber as manobras do publicitário inscritas no texto e,
por outro, contribuir com seus conhecimentos prévios. Vê-se nisto que o humor publicitário
resulta de uma interação cooperativa entre interlocutores1, que, por sua vez, partem de
mecanismos que envolvem tanto elementos linguísticos quanto contextuais.

1
Nesta dissertação, designaremos por “interlocutores” o par “locutor” e “alocutário”, ambos referindo a seres
psicológicos e sociais, sendo o primeiro aquele que produz um ato de fala e o segundo aquele que o recebe. Vale
destacar, entretanto, que Ducrot (1982) define “locutor” como sendo um ser discursivo a quem se atribui a
14

Esta dissertação objetiva principalmente analisar os mecanismos mobilizados na


produção do humor em anúncios de revista, apresentando uma proposta de análise
interdisciplinar, que integra teorias relativas ao humor, à publicidade e aos aspectos
linguísticos e pragmáticos da comunicação. Acreditamos que nossa contribuição teórica pode
ser relevante tanto para estudiosos do humor e da publicidade, vistos como fenômenos sócio-
culturais, quanto para estudiosos do discurso publicitário e do discurso humorístico, uma vez
que nosso estudo representa mais um ponto de vista, dentre outros que focalizam a mesma
temática, sobre as publicidades bem-humoradas, considerando-as sob a perspectiva da
linguagem em ação, ou seja, quando dizer é fazer rir para vender mais.
O humor tem sido alvo de estudos desde Platão, e ainda hoje guarda interesse não só
para a filosofia, como também para a antropologia e para a sociologia. Também na área da
semiótica, da teoria literária e até mesmo da linguística percebe-se que o número de
referências bibliográficas não é pequeno, o que significa que o tema tem despertado um
interesse cada vez maior. Esse interesse linguístico pelo humor é justificável. Tendo em vista
que a linguagem verbal é um dos recursos utilizados na produção dos efeitos humorísticos,
caberá à linguística, pois, analisar tal fenômeno, bem como os mecanismos que o produzem.
Em se tratando de um fenômeno eminentemente humano, natural e compartilhado
socialmente, a compreensão dos mecanismos que possibilitam ao humor cumprir com seus
propósitos em situação comunicativa revela-se tão complexa quanto a compreensão de
qualquer fenômeno linguístico que se proponha a estudar.
A publicidade possui um estatuto pragmático, ou seja, pressupõe uma interação e um
contexto discursivo. Além disso, seus enunciados apresentam um potencial perlocutório que
se traduz, em geral, por uma tentativa de persuasão. O humor, por sua vez, contribui
produtivamente com a publicidade, na medida em que ambos se incorporam a uma dada
situação comunicativa, a um contexto sócio-cultural e a determinados mecanismos
linguísticos, e se empenham em obter a adesão do destinatário. Certamente por isso, o humor
tem sido um dos recursos criativos mais explorados pela publicidade.
No entanto, os efeitos de um texto humorístico não chegarão da mesma forma a todos
os leitores, não terão a mesma recepção, já que, um dos elementos que contribuem para a
produção de sentidos diz respeito ao contexto social, econômico e cultural, que nem sempre
será igualmente partilhado por todos. Sendo assim, um jogo de palavras, se mal interpretado,
pode ser considerado uma provocação, uma infração às normas da língua, ou mesmo, nem ser

responsabilidade da enunciação, em oposição a “enunciador”, outro ser discursivo de quem se faz ouvir um
determinado ponto de vista.
15

percebido. Pode-se dizer então que a produção de humor se relaciona tanto com uma
dimensão sociocultural como com uma dimensão psicológica individual – por um lado,
remete às experiências compartilhadas socialmente e à cultura, por outro, depende de cada
indivíduo, da percepção que ele terá em função de sua relação com os diversos aspectos deste
contexto sociocultural.
Para produzir uma modificação sobre seus destinatários sem ser agressiva e sem
arriscar o sucesso da interação, a publicidade bem-humorada procura partir do lugar comum,
do socialmente aceito e convencionalizado. O humor na propaganda funciona porque dá ao
leitor (o alocutário), que está na outra ponta da interação, a possibilidade de interagir com o
locutor por meio da mensagem, de esforçar-se para interpretar os sentidos cômicos e,
consequentemente, identificar-se social e culturalmente.
Os efeitos de humor produzidos verbalmente são, em geral, resultantes de uma
manipulação do material linguístico, originando interessantes associações e jogos de palavras
que tornam os enunciados ambíguos e polissêmicos. No entanto, não basta ao locutor saber
manipular a língua e ao alocutário saber reconhecer a manipulação linguística para que o
humor seja desvendado. Como veremos ao longo desta pesquisa, há muitos outros fatores
envolvidos nesta questão. Manipula-se mais que a língua, que embora seja um ingrediente
fundamental, não é exclusiva; o humor depende ainda de fatores contextuais decisivos. O
humorista, ao enunciar, joga com os sentidos que sua enunciação pode transmitir tanto
explicitamente, por meio da língua, quanto implicitamente, por meio de informações
compartilhadas que são suscitadas no exato momento da comunicação.
A publicidade, ambiente onde fomos observar a produção humorística, revela-se como
um tipo de comunicação específica, cujo principal fim é a persuasão, onde cada escolha é
determinada por sua eficácia em chamar a atenção do leitor e vender o produto anunciado.
Deste modo, não há dúvidas de que o humor, ao ser construído dentro de um discurso de
publicidade não foge a seu propósito persuasivo, contribuindo para alcançar seus objetivos.
Sendo assim, acreditamos que, em publicidade, o humor não é espontâneo e ingênuo como
numa conversa cotidiana, ao contrário, ele é planejado cuidadosamente, avaliado sob vários
aspectos, observando-se tanto os benefícios que ele possa acrescentar à enunciação
publicitária quanto os riscos que ele pode apresentar. Com efeito, o humor na publicidade não
pode ser impactante e agressivo, como nas piadas e nos programas humorísticos, uma vez que
poderia provocar reações negativas por parte do consumidor, interferindo na imagem que se
pretendeu para o produto anunciado. Destarte, uma análise dos mecanismos humorísticos em
16

publicidade, requer que, minimamente, possamos entender como esta funciona no âmbito
social.
Portanto, considerando as particularidades e especificidades dos discursos humorístico
e publicitário, temos também por objetivo investigar as principais abordagens sobre o humor,
evidenciando os principais aspectos já analisados por outros estudiosos. Por isso, no segundo
capítulo, revisamos algumas das principais teorias sobre o humor: Bergson (1987) e sua
análise do cômico, Freud (1987) e sua análise dos chistes, e Bakhtin (2010) e sua análise do
riso carnavalesco. Ainda nesse momento, apresentamos algumas considerações importantes
sobre representações sociais, visto que o discurso humorístico e o publicitário se alimentam
das representações que circulam no meio social. Os gêneros publicitários limitam, até certo
ponto, o modo como o imaginário social será explorado para a produção dos efeitos
humorísticos. Por este motivo, o humor que estamos analisando será, em geral, sutil,
estabelecendo-se, antes, entre a criatividade e a possibilidade de um leve sorriso. Mesmo que
nem todo procedimento criativo resulte necessariamente em humor, seguramente os efeitos
humorísticos na publicidade impressa dependem em grande medida da criatividade. Além
disso, cabe lembrar que a compreensão do humor resulta do tratamento de informações por
meio de processos cognitivos individuais, fato que justifica que o anúncio possa parecer
engraçado para uns e não para outros.
Como estamos analisando, especificamente, o humor em anúncios publicitários de
revista, faz-se necessário e imprescindível incluir um capítulo que dê conta de alguns dos
principais aspectos discursivos e textuais do anúncio publicitário. Esse é o assunto do terceiro
capítulo, que procurará colocar em diálogo teorias relativas a diferentes aspectos da
linguagem, como a Comunicação Social, a Teoria dos Gêneros, a Semiologia e a Análise do
Discurso, com a finalidade de apresentar alguns subsídios teóricos importantes para a
compreensão do funcionamento da publicidade em geral e dos anúncios bem-humorados em
particular. À primeira vista, o leque teórico pode parecer excessivamente amplo, mas
encontramos justificativa na natureza interdisciplinar de nosso estudo, visto que envolve
discurso, publicidade e humor. Desta forma, não podemos ignorar em nossa abordagem outros
pontos de vista sobre o nosso objeto, nem conceitos que podem servir de ferramenta de
análise. Buscaremos, então, na Comunicação social, explicação para as formas de construção
do anúncio publicitário; na Teoria do gênero, explicações relativas a como a sociedade
organiza seus atos de fala em textos relativamente estáveis de acordo com o propósito da
interação verbal, situando entre estes os textos publicitários; na Semiologia, o entendimento
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sobre como se dá a interação entre o icônico e o verbal na produção do texto; e, por fim, na
Análise do Discurso, a compreensão da cena enunciativa do anúncio publicitário impresso.
Mas, como destacamos inicialmente, nosso objetivo principal é investigar e analisar os
mecanismos linguísticos e pragmáticos responsáveis pela produção do humor. Para isso, no
quarto capítulo, buscaremos compreender a produção de sentidos tanto em seus aspectos
inerentes ao sistema linguístico, quanto em seus aspectos contextuais. Partimos do
pressuposto de que os sentidos que comunicamos em nossas interações verbais não dependem
exclusivamente da língua (como definida por Saussure), nem depende exclusivamente de
fatores externos a ela (os interlocutores, a situação, a ideologia etc.), mas de uma
interdependência entre eles. O texto publicitário é construído com signos verbais e não
verbais, signos que tiram seu valor de um sistema constituído socialmente, mas que são
atualizados a cada nova enunciação, ou seja, o signo se estabiliza na sociedade, tornando-se
por isso mesmo convencional; mas ao ser empregado por esta mesma sociedade em suas
interações verbais, ele se atualiza de acordo com as necessidades comunicativas
circunstanciais. Acreditamos, pois, que os sentidos depreendidos de todo e qualquer texto
dependem inicialmente de elementos observados no próprio texto (elementos que podem ser
linguísticos ou icônicos, no caso de um texto publicitário), condicionados por convenções
sobre o funcionamento da língua e de outros sistemas semiológicos. Mas tais elementos são
atualizados a cada enunciação, fazendo com que os sentidos também dependam de
informações mais ou menos implícitas, que não são explicitadas no enunciado, mas que se
somam a sua significação.
Por fim, no quinto capítulo, analisamos alguns anúncios publicitários, primeiro,
resgatando as fundamentações teóricas de Bergson (1987), Freud (1987) e Bakhtin (2010), e a
seguir, buscando evidenciar de que forma os aspectos linguísticos e pragmáticos contribuem
para a produção do humor verbal explorado pelos anúncios, criando conotações, polissemias,
inferências, jogos de palavras etc.
Nosso tema não é inovador: tanto o humor como a publicidade são objetos de
pesquisas nos diversos âmbitos do conhecimento. Por isso, ao nos questionarmos sobre a
relevância de nossa pesquisa, chegamos à conclusão de que primeiramente ela é importante
para nossa própria prática, tanto enquanto docente como enquanto pesquisadora, já que nos
possibilitou ampliar não só nosso conhecimento dos aspectos semânticos e pragmáticos
envolvidos na produção do humor verbal, como também nos permitiu conhecer outros
posicionamentos sobre o assunto. Além disso, acreditamos que esta pesquisa possa oferecer
uma perspectiva a mais a outros pesquisadores que venham a ter interesse pelo assunto
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tratado, uma vez que estabelece um diálogo interdisciplinar que integra teorias de três campos
distintos: o publicitário, o humorístico e o discursivo.
Todo enunciado, mesmo quando produzido sem a presença de um destinatário, como é
o caso da publicidade, é marcado por uma “interatividade constitutiva” (MAINGUENEAU,
2005), ou seja, é produzido por um locutor em função de um suposto alocutor. Enunciar não é
uma mera forma de representar o mundo, mas, principalmente, uma forma de ação sobre o
outro. Por seu caráter preponderantemente persuasivo, a publicidade caracteriza-se como um
ato de linguagem complexo que pretende modificar uma situação e agir sobre outros. Logo, a
ocorrência do humor em anúncios de revista, por exemplo, não é gratuita – tem uma
finalidade perlocutória que responde aos propósitos persuasivos do anúncio.
Bergson (1987, p. 12) chama a atenção para o fato de que “não há comicidade fora do
que é propriamente humano”, ou seja, será risível tudo aquilo que se origina da essência ou da
manipulação humana. Acrescenta, ainda, que “o riso é sempre o riso de um grupo” (idem, p.
13), ou como dito por ele em outras palavras, “o riso deve corresponder a certas exigências da
vida comum. O riso deve ter uma significação social.” (idem, p.14). Em publicidade, essa tese
tem forte amparo, como veremos.

1.2 Procedimentos metodológicos

Gostaríamos, neste momento, de explicitar uma fase da pesquisa muito importante,


mas que faz parte dos bastidores e nem sempre fica evidente após a conclusão do trabalho.
Trata-se dos procedimentos metodológicos aplicados na realização desta dissertação, de todo
o planejamento e da organização que foram necessários para que pudéssemos realizar nosso
estudo, cujo sucesso dependeu dos procedimentos adotados, das escolhas feitas, enfim, do
caminho que construímos para atingir os objetivos explicitados anteriormente.
Quando nos propusemos a investigar o humor, jamais havíamos tido acesso a teorias
relacionadas ao tema. Nosso interesse pelo assunto surgiu, de certa forma, por acaso:
inicialmente, folheando revistas, percebemos a presença de alguns anúncios interessantes, que
nos fizeram sorrir, sem no entanto, despertar nossa curiosidade enquanto objeto de pesquisa.
Passado algum tempo, assistimos com interesse a uma palestra em que o professor Fernando
Almeida, a convite da professora Mônica Saavedra, responsável pela disciplina “Metodologia
de Pesquisa” apresentava seu projeto de pesquisa sobre o humor. Futuramente, questionando-
o sobre o tema e colocando nossas dúvidas sobre nosso projeto de pesquisa, surgiu a proposta
de trabalharmos com os mecanismos linguísticos e pragmáticos de produção de humor nos
19

anúncios de revista. A questão que motivou essa proposta pode ser apresentada da seguinte
forma: que mecanismos são empregados nos anúncios para a produção de humor? A
pressuposição por trás desse questionamento é de que o humor é uma proposta arriscada. Se
não for bem dosado, bem elaborado, bem pensado, pode não ser aceito ou percebido pelo
leitor/consumidor, não surtindo assim o efeito esperado pelo publicitário.
Tomada a decisão, era necessário focar nosso objeto e circunscrevê-lo com precisão.
Delimitar o objeto de estudo foi uma tarefa muito importante, pois só depois disso
conseguimos dar andamento a nossa pesquisa. Assim, iniciamos uma ampla e vasta revisão
bibliográfica sobre o humor e sobre a publicidade, como apresentada em linhas gerais no
tópico anterior e aprofundada nos capítulos subsequentes. Era preciso descobrir o que já tinha
sido pesquisado sobre o assunto e compreender de que forma esse conhecimento nos ajudaria
em nosso estudo. Foi um período durante o qual fizemos muitas leituras, muitas resenhas e
muitos resumos. Também foram importantes as participações em congressos, tanto como
ouvinte quanto como palestrante, pois tivemos oportunidade de confrontar nossas ideias e
pontos de vista com os de outros estudiosos, fato que nos possibilitou amadurecer e definir
nossos objetivos.
Outro momento fundamental da pesquisa diz respeito à escolha e seleção do corpus.
Durante um ano, aproximadamente, nos dedicamos a folhear várias revistas em busca de
anúncios que pudéssemos classificar como bem-humorados. Inicialmente, essa classificação
foi feita de modo intuitivo e aleatório, baseada em nosso próprio entendimento do que seria
ou não engraçado. Com isso, reunimos em torno de trezentos anúncios, dos mais variados
tipos, sobre diversos produtos e destinados a diferentes públicos. Mas logo descobrimos que
precisávamos adotar um critério mais objetivo, pois tínhamos em mãos uma quantidade
grande de anúncios e era necessário organizá-los.
Durante esse primeiro momento, enquanto folheávamos diversas revistas, percebemos
que algumas possuíam mais anúncios bem-humorados que outras, fato que determinou a
primeira escolha feita. A seguir, chegamos à conclusão de que a revista destinada
especificamente ao público masculino trazia anúncios com um humor diferente daqueles
encontrados nas outras revistas, um humor mais ousado, menos sutil. Dessa descoberta,
fizemos a escolha definitiva das revistas que usaríamos em nossa pesquisa: uma destinada ao
público masculino (Revista Quatro Rodas), uma destinada preferencialmente ao público
feminino (Revista Caras) e outra destinada a ambos os públicos, masculino e feminino
(Revista Veja). Vale destacar que das três revistas eleitas, duas delas, a Veja e a Quatro
Rodas, encontram-se disponibilizadas na internet (verificar referências), fato que facilitou
20

nosso acesso a grande número de edições. Quanto à revista Caras, para observar os mesmos
critérios adotados para as outras, tivemos de adquirir números antigos em sebos.
Uma das dificuldades encontradas na delimitação do corpus diz respeito à distinção
entre o que é criativo e o que é risível em publicidade. Isto porque toda publicidade risível é
criativa, mas nem toda publicidade criativa é necessariamente risível. Tomemos como
exemplo os anúncios 22 e 23 (p. 97), cuja criatividade ao jogar com signos icônicos e verbais
não chega a produzir publicidades bem-humoradas, ao contrário do anúncio 26 (p. 102),
embora este também tenha sido construído com base no mesmo jogo criativo. O
questionamento a ser formulado neste caso é: se os três anúncios foram elaborados a partir de
um jogo entre o verbal e o não-verbal, o que torna este último risível e os dois primeiros não?
A resposta nos foi dada por Freud (1987). De acordo com o autor, há em todo chiste uma
fonte de economia que proporciona prazer e consequentemente o riso. O uso do vocábulo
“saia” neste anúncio remete a diferentes significações, condensação esta que torna o texto
publicitário risível, fonte de prazer. Tal fato não ocorre com os anúncios 22 e 23, que, embora
joguem com os valores que os signos podem assumir dentro do sintagma em que aparecem,
não apresentam palavras que condensam sentidos, o vocábulo “obrigado” (anúncio 22), por
exemplo, significa apenas obrigado e nada mais; diferentemente, “saia” (anúncio 26) pode ser
interpretado como substantivo (peça do vestuário feminino) e como imperativo do verbo sair
(remetendo à ideia de deslocamento).
A delimitação do corpus, portanto, só aconteceu definitivamente, quando passamos a
aplicar os conceitos apresentados pelos autores que tratavam do humor. Assim, passamos a
observar nos anúncios se era possível identificar algum tipo de mecanismo no uso com as
palavras, como proposto pro Bergson (1987), se havia algum jogo de palavras, como proposto
por Freud (1987), ou ainda, se havia algo que caracterizasse o riso carnavalesco, proposto por
Bakhtin (2010).
Dos 68 anúncios que apresentamos nesta dissertação, alguns foram escolhidos
exclusivamente para introduzir os capítulos e outros, com a finalidade de ilustrar os conceitos
teóricos abordados. Entre estes últimos, os que serviram de ilustração teórica, encontram-se
alguns retirados de um site de humor na internet: WWW.desemblogue.com. Neste site,
encontramos anúncios que brincam com marcas e produtos reais, de uma forma bem-
humorada e criativa. Como alguns conceitos não puderam ser ilustrados com os anúncios
encontrados nas revistas, recorremos ao site.
Como já mencionado, a seleção dos anúncios obedeceu, principalmente, à presença de
algum efeito humorístico que, a nosso ver, merecesse tornar-se objeto de análise,
21

independentemente do tipo de produto anunciado, visto que o humor pode se fazer presente
em todo tipo de publicidade, desde as que anunciam produtos farmacêuticos às que anunciam
carros ou bebidas alcoólicas. No entanto, vale dizer que a presença do humor nos anúncios de
revista não é tão recorrente, ainda que tenha estado cada vez mais presente nos últimos anos.
Folheamos revistas das três últimas décadas e percebemos que antes havia menos anúncios
bem-humorados, a criatividade em geral se restringia a inovações linguísticas e a alguns jogos
de palavras mais sutis, não havendo jogos que envolvessem, por exemplo, o imaginário
masculino e feminino acerca da sexualidade, ou estereótipos sobre aspectos de certo modo
negativos sobre outras nacionalidades etc.
Ademais, por se tratar de sentidos até certo ponto dependentes de uma dimensão
psicológica individual, a seleção do corpus não está isenta da subjetividade do analista. Ainda
que tenhamos nos esforçado por adotar critérios mais ou menos objetivos, as escolhas não
deixaram de ser influenciadas por nosso ponto de vista sobre o que seja ou não risível.
Considerando o caráter multidimensional desta pesquisa, parte-se de uma abordagem
interdisciplinar que prioriza a análise descritiva pautada em procedimentos qualitativos de
interpretação dos dados. Para tanto, conciliamos teorias sobre o humor, sobre a publicidade e
sobre o discurso, recolhendo, de cada uma, conceitos importantes para nossa análise. Após
selecionar os anúncios nos quais percebemos a presença de algum fator potencialmente
cômico, nos detivemos a observá-los, buscando descrevê-los e caracterizá-los de acordo com
os conceitos teóricos de que dispúnhamos. Os anúncios constantes da análise são aqueles que
a nosso ver foram os mais representativos para exemplificar os mecanismos de produção
humorística que encontramos.
O último capítulo desta dissertação, o de análise, exigiu certo cuidado quando de sua
organização, uma vez que tendo à disposição um aparato teórico da dimensão do que
apresentamos, havia o risco de nos perdermos na análise. Por isso, considerando tratar-se de
uma pesquisa de natureza qualitativa, buscamos descrever e entender os anúncios bem-
humorados, classificando-os a partir dos recursos teóricos de que dispúnhamos. De tal esforço
interpretativo resultou a subdivisão do capítulo: 1) o cômico de palavras na publicidade, cuja
análise se detém nos princípios teóricos apresentados por Bergson (1987); 2) o chiste
publicitário, que traz as contribuições de Freud (1987) sobre os chistes; 3) a publicidade
carnavalesca; que encontra respaldo em Bakhtin (2010) e seu riso carnavalesco; 4) o humor
implícito na publicidade, que analisa os anúncios a partir de seus aspectos eminentemente
linguísticos e pragmáticos; e, por fim, 5) publicidades polifônicas bem-humoradas, que a
22

partir de Ducrot (1982), sob a perspectiva da pragmática semântica, oferece um entendimento


adicional sobre o funcionamento do humor publicitário.
O que apresentamos neste estudo final é o resultado de todos os procedimentos
enumerados, mas também é fruto de muita leitura e releitura, escritura e reescritura, de muito
diálogo com o professor orientador, com outros professores e com colegas mestrandos e
doutorandos.
23

1. HUMOR: “Desarme-se”

O riso advém de uma espera que dá subitamente em nada.


Kant2

Anúncio 1 – Natura Humor: “desarme-se”

Fonte: Revista Quatro Rodas, abril de 2010, p. 38-39.

Toda comunicação humana ocorre num mundo simbólico, onde tudo é transformado
em signo e só pode ser comunicado enquanto signo. Sendo assim, o que possibilita ao humor
ser comunicado? Ele é passível de transformação simbólica? Nosso interesse em estudar o
humor gira em torno da investigação de como ele pode ser comunicado e apreendido por meio

2
Apud Bergson (1985, p. 49)
24

de linguagens. Não temos como propósito isolar a essência do riso ou do humor – até mesmo
porque muitos estudiosos já o tentaram e não conseguiram resultados definitivos; tampouco
objetivamos esgotar em nossa análise todos os mecanismos de produção e apreensão do
humor por meio dos signos. Trata-se antes de uma abordagem linguístico-pragmática que se
propõe a reexaminar alguns dos mecanismos apresentados por Bergson (1987), Freud (1988)
e Bakhtin (2010), para explicar os efeitos de humor na publicidade.
Ao iniciar nosso estudo sobre o humor, não podemos ignorar que o humor como
objeto de estudo não é uma novidade. Desde Aristóteles até os dias atuais, o riso tem
merecido a atenção de filósofos, de psicólogos, de literatos, de linguistas etc., todos
preocupados em, de alguma forma, definir o humor, ou, mais exatamente, tentar especificar o
que provoca o riso. Muitas foram as conclusões a que chegaram tais estudiosos, dentre as
quais podemos citar a aproximação entre o humor e o jogo, ou entre o humor e a arte retórica,
ou ainda, o humor como resultante de uma atividade inconsciente, ou como forma de controle
social etc.
De acordo com Alberti (2002), é possível estabelecer algumas recorrências
interessantes sobre o estudo do riso no pensamento do século XX, recorrências que a autora
resume da seguinte forma: “o riso partilha, com entidades como o jogo, a arte, o inconsciente
etc., o espaço do indizível, do impensado, necessário para que o pensamento sério se
desprenda de seus limites” (idem, p.11). Outra conclusão também recorrente diz respeito ao
fato de que é através do cômico, do humor, do chiste, enfim, é através do riso, que a realidade
pode ser plenamente apreendida, ou seja, é justamente ao se desprender do sério socialmente
estabelecido, da rigidez cotidiana, das limitações racionais, que se pode acessar a verdade que
rege o universo. Esse é um pensamento que de alguma forma permeia as indagações dos três
estudiosos do humor que servirão de base para nossa reflexão: Bergson (1987), Bakhtin
(2010) e Freud (1987).
“O riso é próprio do homem”. Essa concepção, que segundo Alberti (2002, p. 45)
remonta a Aristóteles, é uma das teses centrais da obra de Bergson (1987), que ao longo de
sua obra defende que “não há comicidade fora do que é propriamente humano” (idem. p. 12).
A teoria de Bergson sobre o riso versa principalmente em torno de uma concepção que vê no
riso uma manifestação crítica, que tem por tarefa a correção que restabelece a ordem da vida e
da sociedade. É justamente quando a rigidez mecânica se sobrepõe ao humano que o riso
aparece para corrigi-la, ganhando assim uma função social, ou seja, o humor é tratado como
uma forma de normatizar a conduta social. O riso reside na insensibilidade de uma pessoa (ou
grupo de pessoas) que se vale (valem) exclusivamente da inteligência pura, calando a emoção.
25

“Ao que parece,” – diz Bergson (1987, p. 14) – “o cômico surgirá quando homens reunidos
em grupo dirijam sua atenção a um deles, calando a sensibilidade e exercendo tão-só a
inteligência.”
Outro aspecto do riso que já era tratado por Aristóteles na Antiguidade (ALBERTI,
2002) e que ainda é considerado atualmente diz respeito à relação entre as ideias e as coisas,
resultando nos jogos de palavras ou de pensamentos, ponto central da teoria de Freud (idem).
Como veremos adiante, o autor defende que a formação do chiste ocorre por um processo
semelhante ao do sonho, mostrando que ambos decorrem de uma atividade inconsciente. O
prazer decorrente do chiste é, assim, uma reação contra a racionalidade, o sujeito vê nos jogos
de palavras e de pensamentos uma ausência de sentidos enigmática, que o transporta ao
inimaginável, assim como ocorre no sonho. Conforme Freud (1987), o prazer seria o resultado
de um alívio psíquico proveniente da economia de esforço intelectual, ou seja, o não precisar
pensar com racionalidade, dentro dos moldes intelectuais nos quais fomos educados. O que
está em questão é a oposição entre o sério e o riso: o sério como efeito da razão que se impõe
ao sentido; e o riso, como a ausência de sentido que se impõe à razão e nos libera da
racionalidade.
Essa oposição entre o sério e o riso também é central em Bakhtin (2010) para quem o
riso aparece como uma forma de romper com a seriedade da vida cotidiana. Segundo o autor,
o humor era, na Idade Média e no Renascimento, uma forma de expressão da liberdade
popular. As imagens suscitadas pela cultura popular da praça pública estavam carregadas de
formas universais, festivas e principalmente ambivalentes. Essa ambivalência que
caracterizava o riso popular se explica por sua forma de possibilitar ao homem medieval a
superação de seus próprios medos, transformando o temível em risível, a rigidez oficial em
festa e o sério em cômico. “Os homens da Idade Média participavam igualmente de duas
vidas: a oficial e a carnavalesca, e de dois aspectos do mundo: um piedoso e sério e outro,
cômico.” (BAKHTIN, 2010, p. 83) Neste sentido, “o riso tem uma significação positiva,
regeneradora, criadora, o que a diferencia nitidamente das teorias e filosofias do riso
posteriores, inclusive a de Bergson, que acentuam de preferência suas funções denegridoras.”
(BAKHTIN, 2010, p. 61).
Do ponto de vista discursivo, o humor pode ser abordado como uma das estratégias
que servem por um lado para distrair, por outro para descontrair o destinatário. Essa é uma
concepção também proveniente de Aristóteles, que via no riso “um dos efeitos produzidos
pelo orador na atenção do ouvinte (...). Não é bom que o ouvinte esteja sempre atendo, diz
Aristóteles, ‘por isso muitos oradores se esforçam para fazê-lo rir’” (ALBERTI, 2002, p. 54).
26

O fato é que considerar o humor sob o enfoque discursivo nos obriga a levar em consideração
toda a situação contextual em que é produzido, ou seja, os interlocutores, as circunstâncias
espaço-temporal, dentre outros aspectos. Essa é a posição de Charaudeau (2006), que em seu
artigo Des Categories pour l’humour?, defende que todo ato humorístico se inscreve em
alguma circunstância discursiva, fato que possibilita seu surgimento em diversas situações, da
publicidade à política ou à conversa cotidiana. A comunicação humorística não possui, pois,
um contrato fixo, como o institucional ou o religioso que envolvem situações comunicativas
mais recorrentes. Além disso, o autor destaca o fato de que nem sempre o humor provoca o
riso, ou quando o provoca, não será necessariamente com a mesma intensidade.

Se o riso precisa ser desencadeado por um fato humorístico, tal fato não
necessariamente irá provocar o riso. Até mesmo porque ele precisa ser percebido, o
que não é evidente (histórias engraçadas podem ser percebidas pelos homens e não
pelas mulheres, por pessoas que pertencem a esta cultura e não por aqueles que
pertencem a outra, e geralmente por aqueles que são tidos como testemunhas e não
por aqueles que são vítimas). (CHARAUDEAU, 2006, p. 20)3

Assim, o humor é mais uma forma de dizer que se insere em distintas situações,
resultando num jogo que aproxima os interlocutores, com o propósito de envolvê-los numa
cumplicidade estratégica, como já previa Aristóteles. No entanto, não há garantia de que o
alocutário aceitará o jogo, é necessário que haja condições circunstanciais partilhadas pelos
interlocutores para que a comunicação humorística alcance êxito. Para Charaudeau (idem),
não basta um jogo de palavras qualquer para fazer aparecer o humor, os jogos de palavras são
relevantes como uma atividade lúdica em si mesma, mas nem sempre produzirão um efeito
humorístico. Este efeito sempre dependerá, em maior ou menos grau, da situação de
enunciação em que aparece, da temática à qual se refere, dos processos linguísticos
mobilizados e do público a que se destina.
Este autor apresenta, ainda, o ato humorístico como um ato de enunciação que, como
tal, coloca em cena três protagonistas: um locutor, um alocutário e uma finalidade. O locutor é
o responsável pela produção do ato dentro de uma dada situação de comunicação. No caso de
um anúncio, o locutor é um publicitário, mas no caso de um jornal, será um colunista, e assim,
sucessivamente. O importante é que a situação de comunicação crie a legitimidade necessária

3
“D’abord, il faut éviter d’aborder cette question en prenant le rire comme garant du fait humoristique. Si le rire
a besoin d’être déclenché par un fait humoristique, celui-ci ne déclenche pas nécessairement le rire. D’une part,
il faut qu’il soit perçu comme tel, ce qui n’est pas évident (voir les histoires perçues drôles par des hommes et
point par des femmes, par des gens appartenant à telle culture et point par ceux appartenant à telle autre, et d’une
façon générale par ceux qui sont pris comme témoins et ceux qui en sont les victimes).” (Transcrição como no
original. A tradução é nossa.)
27

a esse locutor para que ele esteja autorizado a produzir sua enunciação humorística, caso
contrário, poderá ferir seu alocutário ao invés de torná-lo cúmplice. Assim, a legitimidade do
locutor depende em grande medida do lugar que ele ocupa no ato comunicativo e do
reconhecimento que o alocutário lhe atribui: nas caricaturas, charges e tiras cômicas, o
desenhista é visto como um comediante; nos anúncios publicitários, o publicitário se autoriza,
para seduzir o consumidor, jogar com a linguagem e é reconhecido como alguém que pode
proceder assim; nas crônicas jornalísticas de humor, o cronista comenta a atualidade
salpicando seu texto de traços humorísticos e é aceito pelo público como alguém que está
autorizado a fazê-lo.
O destinatário pode ocupar duas posições dentro do ato humorístico: o de vítima ou o
de cúmplice. O destinatário-vítima seria aquele que é ao mesmo tempo o destinatário e a
finalidade do ato, ou seja, o ato foi produzido para ele com o objetivo de ridicularizá-lo. Neste
caso, não resta muito ao alocutário, senão aceitar a brincadeira, aceitando rir de si mesmo, ou
ignorá-la, refutá-la, não a aceitando. Por outro lado, o destinatário-cúmplice é aquele que é
convidado a ser conivente com o enunciador do ato humorístico. Este é o posicionamento
mais comum ao consumidor de uma publicidade bem-humorada. Dificilmente o publicitário
colocará seu destinatário numa posição de vítima, mas sim de cúmplice, levando-o a rir junto
e da mesma coisa.
Por fim, a finalidade, terceiro protagonista do ato humorístico, é aquilo para o que
aponta o ato humorístico ou o propósito daquilo para o qual o ato funciona. Em suma, a
finalidade é o alvo do humor. É através dela que o ato humorístico coloca em causa visões
padronizadas do mundo, ridicularizando-as, desmembrando-as, reposicionando-as.
Possenti (2010), por sua vez, defende a tese de que há uma relação estreita entre o
humor e os acontecimentos que se tornam populares e controversos. Assim, “só há piadas
sobre assuntos sérios desde que se tornem populares e controversos” (POSSENTI, 2010, p.
13). Neste sentido, deve haver entre os interlocutores, um conhecimento compartilhado tanto
sobre acontecimentos recentes, como sobre os acontecimentos mais distantes para que o efeito
humorístico possa ser comunicado e apreendido. Sua maior preocupação é oferecer uma
abordagem prioritariamente linguística para o estudo do humor, no entanto, não deixa de
considerar que questões como identidade, estereótipo e conhecimentos compartilhados
socialmente são elementos indispensáveis para a produção do humor. Isso porque, para
entender a graça de uma piada, é preciso vinculá-la ao contexto social em que ela faz sentido,
resgatando os mitos e as crenças que a permeiam.
28

Ao iniciar nosso estudo sobre o humor, nos deparamos com ampla terminologia sobre
o tema: humor, ironia, comédia, piada, dito espirituoso, brincadeira, sátira, grotesco, gozação,
ridículo, nonsense, farsa, humor negro, palhaçada, jogo de palavras, chiste, cômico,
engraçado, divertido, zombaria etc. Bergson (1987), por exemplo, refere-se a cômico; Freud
(1987), a chiste; Bakhtin (2010) a riso carnavalesco; Charaudeau (2006), a humor; Possenti
(2010), principalmente a piada; Alberti (2002), a risível. Dessa forma, adotaremos a palavra
humor para nos referir de modo geral a tudo o que pode suscitar o riso e empregaremos as
outras denominações para nos referir a abordagens ou autores específicos, conforme tenhamos
que mencioná-los.
Apresentamos, brevemente, a seguir, as três concepções de humor que nos servirão de
base epistemológica sobre o tema: a concepção de Bergson (1987), a de Freud (1987) e a de
Bakhtin (2010). Também dedicamos um tópico à relação que se estabelece entre o imaginário
social, o humor e a publicidade.

2.1 Bergson: o riso e a significação do cômico

Em sua obra intitulada O riso; ensaio sobre a significação do cômico, Henri Bergson
(1987) enfoca principalmente o riso desencadeado pelo que é cômico ou que estaria direta ou
indiretamente relacionado ao cômico. Sob essa perspectiva, algo se tornará risível quando
apresentar qualquer semelhança com um fenômeno cômico ou o lembre de alguma forma.
O primeiro dos três artigos que compõem o livro se dedica especialmente ao cômico
em geral e tenta responder a dois questionamentos básicos: 1) como identificar o cômico? 2)
como obter o cômico?
À primeira questão, o autor responde fazendo três observações que se referem ao
lugar onde buscar o cômico, e, consequentemente, o risível. Primeiramente, ele diz que a
comicidade está diretamente relacionada ao que é humano. Para encontrar o cômico é
necessário que o objeto risível guarde qualquer relação com o homem, visto ser este o único
animal que ri e que faz rir, “pois se outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado,
seria por semelhança com o homem, pela característica impressa pelo homem ou pelo uso que
o homem dele faz” (idem, p. 12). A segunda observação refere-se ao fato de que o riso reside
na insensibilidade. Todo riso é acompanhado de certa indiferença emocional que coloca o
homem em uma posição de afastamento afetivo, como um espectador neutro que assiste a um
drama convertendo-o em comédia. “O cômico exige algo como uma anestesia momentânea do
coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura” (idem, p. 13). Por
29

fim, a terceira observação do autor sobre onde localizar o objeto risível indica que o riso se
encontra na coletividade social, ou como dito por ele em outras palavras, “o nosso riso é
sempre o riso de um grupo” (idem, p. 13).
Sabendo como identificar o cômico, resta saber como obtê-lo. Considerando que o riso
encontra-se na insensibilidade humana compartilhada socialmente, quais seriam, então, os
principais mecanismos necessários para produzi-lo? Para o autor, o risível pode decorrer de
diversos mecanismos que infringem alguma das leis que regem o convívio em sociedade,
como por exemplo, a identificação de uma rigidez mecânica, uma distração (ou desvio), uma
repetição sem propósito, um isolamento involuntário ou mesmo a lógica dos sonhos que nos
afasta da realidade. Assim, para obter o cômico, basta recorrer a algum desses fenômenos.
A rigidez mecânica refere-se a uma mudança involuntária, não premeditada, a um
“desajeitamento”. O autor exemplifica: se há uma pedra no caminho, a reação normal da
pessoa seria desviar-se do obstáculo, utilizando-se do poder que tem sobre seu corpo,
fazendo-o atender a seus comandos. Mas, se, entretanto, o corpo não obedece ao comando
recebido (ou mesmo não recebe comando algum) e segue involuntariamente o caminho que
devia ser desviado, provocando um tropeço ou uma queda, percebe-se nisto “certo efeito de
rigidez” que impede a maleabilidade do corpo, evocando algo não vivo e, por isso mesmo,
provocando o riso em quem assiste à cena. Esta mesma rigidez seria percebida em uma
situação cuja rotina tivesse sofrido alguma interferência. Assim, a pessoa acostumada a
executar sempre as mesmas atividades, ao ser surpreendida por uma mudança, segue
executando seus movimentos como o fazia antes e acaba se tornando cômica por demonstrar
sua rigidez habitual.
A rigidez mecânica é um fenômeno decorrente de uma circunstância exterior ao
indivíduo. Encontra-se na superfície da pessoa, é casual. Nos dois casos exemplificados, a
falta de flexibilidade é percebida por causa de um fator externo à pessoa, uma pedra no
caminho, uma mudança na rotina. No entanto, há uma rigidez que é mais internalizada,
instalada no próprio indivíduo: o desvio dos padrões ou ideias socialmente compartilhados,
como no caso de uma frase ambígua. De acordo com o autor, o desvio decorre de “certa
fixidez natural dos sentidos e da inteligência, pela qual continuamos a ver o que não mais está
à vista, ouvir o que já não soa, dizer o que já não convém, enfim, adaptar-se a certa situação
passada e imaginária quando nos deveríamos ajustar à realidade atual” (BERGSON, 1987, p.
15). O desvio é uma distração, em que a pessoa não percebe que continua em uma direção
quando deveria ter escolhido outra. Assemelha-se ao tropeço, mas desta vez, por uma causa
interna ao indivíduo, é ele quem tropeça em sua própria rigidez intelectual. Desta forma, a
30

diferença básica entre a rigidez mecânica e o desvio provém do fato de que este se apresenta
de forma mais natural enquanto aquela, a rigidez mecânica, como o próprio nome sugere, é
mais artificial.
Há, ainda, para o autor, comicidade naquilo que fere a lógica da razão – é a lógica do
sonho ou da imaginação partilhada por toda a sociedade. Assim, se explica o fato de um
disfarce ser risível, de uma caricatura ser cômica. Ainda que tais exemplos firam a lógica da
razão, eles são aceitáveis para a imaginação. É assim que a sociedade pode mascarar-se em
determinadas situações e tornar-se, por isso mesmo, alvo de riso. Todo grupo social que se
refugia em cerimônias excessivas é potencialmente cômico por evidenciar sua artificialidade,
como em uma pantomina em que nada é espontâneo, mas ritual, mecânico. Para Bergson
(idem), a vida em sociedade exige uma constante tensão, as pessoas precisam se adequar a
essas exigências. É na imaginação que essa tensão sofre um relaxamento e possibilita ao
indivíduo falar, agir e pensar fora dos moldes impostos. O personagem cômico é aquele que
vivencia esta experiência de agir, falar e pensar como um mecanismo imaginado, que não se
ajusta à realidade social.
O anúncio 2 constrói seu tom humorado com base em uma dessas personagens que são
tornadas cômicas por seu automatismo: a pessoa que sofre de surdez. Não é raro encontrar
piadas sobre surdos, que brincam com sua deficiência, evidenciando seu desajuste ao
socialmente previsto, fato que acaba possibilitando que ela seja destacada do grupo como um
objeto risível, como nesta piada: “Um surdo pergunta ao outro: ‘Você vai pescar?’ ‘Não, eu
vou pescar – responde o interrogado. Ao que o primeiro completa: ‘Ah, que pena. Pensei que
você ia pescar.”
Para produzir efeito de humor, o anúncio 2 explora esse viés insensível da sociedade.
Ao dizer que “toda família tem aquela tia surda que adora guaraná Schin”, convida os leitores
a imaginarem uma personagem surda, como as das piadas, ou até mesmo recordarem uma
pessoa da família que ouve pouco e que se assemelha a esta personagem – a da tia surda.
Explora-se uma deficiência humana que possibilitaria o riso justamente porque, em
geral, as pessoas, ao calarem a sensibilidade (afinal, trata-se de uma pessoa com deficiência
auditiva), ativam tão somente a inteligência e, de acordo com as experiências que
compartilham com o grupo ao qual pertencem, isolam o indivíduo que falhou para dele
poderem rir. Veja-se que a publicidade não ridiculariza o leitor, mas faz um jogo divertido
com ele, convidando-o a ser conivente e a entrar na brincadeira.
31

Anúncio 2 – Guaraná Schin: “tia surda”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2075, de 27 de agosto de 2008, p. 172.

A repetição é outro dos mecanismos de obtenção de comicidade. Uma pessoa que tem
sempre as mesmas atitudes, que possui gestos estereotipados ou que executa movimentos
previsíveis, uma situação que reproduz a outra, uma ideia transposta etc. tudo isso sugere
recorrência e sempre que algo for recorrente lembrará uma artificialidade produzida
mecanicamente que se tornará risível. “Por que isso?”, pergunta-se Bergson (idem, p. 25). E
ele mesmo responde: “Porque tenho agora diante de mim um mecanismo que funciona
automaticamente. Já não é mais vida, mas automatismo instalado na vida e imitando a vida. É
a comicidade.” Toda repetição, toda imitação supõe um mecanismo que funciona por traz do
vivo. Quando a pessoa age involuntariamente como uma coisa, vê-se no movimento humano
uma repetição mecanizada, uma inércia que contraria o postulado de que “a vida bem ativa
não deveria repetir-se” (idem, p. 25).
Todos os mecanismos de produção de efeitos humorísticos apresentados por Bergson
convergem, de certa forma, para uma mesma direção – a rigidez mecânica, o desvio, a
repetição, o isolamento e a lógica da imaginação – todos remetem a certo automatismo. Com
isso, pode-se afirmar que o fenômeno eminentemente risível é a rigidez automatizada, que se
manifesta de formas variadas.
32

O convívio em sociedade impõe às pessoas que elas possam adaptar-se às exigências


cotidianas, que se harmonizem com os postulados das situações corriqueiras, que estejam
sempre atentas às modificações e despertas para acompanhar o ritmo acelerado. O não
cumprimento desta imposição será a rigidez, a distração, o mecanismo que se sobrepõe ao
vivo. E o custo desta rigidez, desta distração será o afastamento, o isolamento, como no caso
da personagem surda mencionada. Aquele que não acompanha o ritmo social fica fora do
ciclo, torna-se excêntrico, e, por isso mesmo, risível. A rigidez é cômica e o riso é o corretivo
desta rigidez. Daí provém o aspecto denegridor que Bergson (idem) atribui ao riso, sua função
de repressão social:

O riso deve ser algo desse gênero: uma espécie de gesto social. Pelo temor que o riso
inspira, reprime as excentricidades, mantém constantemente despertas e em contato
mútuo certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e
adormecer; suaviza, enfim, tudo o que puder restar de rigidez mecânica na superfície
do corpo social. (BERGSON, 1987, p. 19)

No segundo artigo do livro, Bergson (1987) dedicou-se especificamente à comicidade


de situações e à de palavras, e no terceiro, ao cômico de caráter. Nos três artigos, os aspectos
antes comentados (a identificação do cômico, sua produção e sua função social denegridora)
são teses centrais. A mesma rigidez que pode ser observada no movimento pode ser
encontrada num acontecimento, pode ser reproduzida verbalmente ou mesmo engessar um
caráter.
O cômico em geral trata das atitudes, dos gestos e dos movimentos do corpo humano,
que “são risíveis na exata medida em que esse corpo nos leva a pensar em um simples
mecanismo” (BERGSON, 1987, p. 23). O cômico de situação, por sua vez, é constituído por
atos e acontecimentos “que nos deem, inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação
nítida de uma montagem mecânica.” (idem, p. 42)
Para exemplificar o que seja o cômico de situação, o autor voltou-se para a comédia,
dizendo que esta é para o adulto o mesmo que o brinquedo (ou o jogo) é para a criança,
estabelecendo três imagens: a do boneco de mola, a do fantoche a cordas e a da bola de neve.
A primeira imagem é a da repetição, “certa ideia que se exprima, se reprima, uma vez mais se
exprima, certo fluxo de falas que se arremesse, que se detenha e recomece sempre”
(BERGSON, 1987, p. 43-44). A segunda imagem é a da manipulação, a persuasão sofrida,
mas não percebida, a falsa ideia de livre escolha. E a terceira, é a ideia de combinação, uma
superposição que causa um “efeito que se propaga acrescentando-se a si mesmo” (idem, p.
33

47). Essas três imagens têm em comum o fato de serem brinquedos que ganham vida através
de seus movimentos mecânicos.
A comicidade aparecerá, pois, em qualquer situação que apresente algum contraste
entre o vivo e o mecânico, ou mais exatamente, entre seu ambiente natural, que é a sociedade,
e seu ambiente artificial, mecanizado. Para entender a relação que o autor estabelece entre o
vivo e o mecânico na produção da comicidade, cabe ressaltar que ele parte do princípio de que
a vida se apresenta como uma evolução no tempo e uma distribuição no espaço, ou seja, por
um lado a vida é um progresso contínuo que leva ao envelhecimento, nela nada se repete no
decorrer do tempo; por outro, os seres vivos se distribuem no espaço de forma independente,
individual, sem que um interfira na individualidade do outro; mas ainda assim regidos por
normas sociais que determinam sua coexistência neste espaço. É esse pressuposto que está na
base dos processos cômicos que o autor denominou “repetição”, “inversão”, e “interferência
de séries”.
A repetição, como vimos, é o que está na base da imagem do boneco de molas, refere-
se à situação ou à ação que se repete em um novo ambiente, ou sob um novo tom,
subvertendo a ordem da vida, que é irrepetível. A inversão, por sua vez, tem a ver com a
imagem do fantoche, é a inversão de papéis, aquele que devia manipular sendo manipulado,
ou uma situação que acaba se tornando desfavorável para quem a criou. Já a interferência de
séries diz respeito à ideia de combinação, ou seja, quando uma situação é exposta a duas
interpretações opostas, de modo que fatos absolutamente independentes sejam suscitados, um
interferindo na maneira de interpretar o outro, como no caso do quiprocó: “o quiprocó não é
risível por si mesmo, mas apenas como signo de uma interferência de séries” (BERGSON,
1987, p. 55)
Um defeito ou uma qualidade, apresentado de modo artificial, de modo a não
comover, também poderá tornar-se cômico – caracterizando a comicidade de caráter, tema do
terceiro artigo do livro. O autor define o caráter como tudo aquilo que há de já feito em uma
pessoa, como um mecanismo montado capaz de funcionar automaticamente. É por isso que o
caráter pode tornar-se cômico, porque ao repetir-se, pode ser imitado, pode ser explorado pela
comédia. Um personagem cômico é aquele que representa um espírito ou um caráter
obstinado, rijo, que explora o automatismo e o desvio social apreendido na vida comum.

Pouco importa um caráter ser bom ou mau: se é insociável, poderá vir a ser cômico.
Vemos agora que também não importa a gravidade do caso: grave ou leve, poderá
nos causar riso desde que se ache um modo de não nos comover. Insociabilidade do
34

personagem, insensibilidade do espectador, eis, em suma, as duas condições


essenciais. (BERGSON, 1987, p. 77)

Daremos em nossos estudos uma atenção especial à comicidade de palavras, por ser
este o principal recurso humorístico presente nos anúncios publicitários impressos. No
entanto, vale destacar, que todas as formas de comicidade apresentadas por Bergson (1987)
acabam tendo em comum, como veremos, os mesmos mecanismos: o da rigidez mecânica, do
desvio, da repetição, do isolamento e da lógica dos sonhos ou da imaginação.
Ao tratar do cômico de palavras, Bergson (1987) sinaliza que a maior parte dos efeitos
cômicos pode ser produzida por intermédio da linguagem, pode por ela ser comunicada. No
entanto, o autor distingue uma segunda forma de comicidade: aquela criada especificamente
pela linguagem. Para distinguir estas duas formas, ele diz que o cômico transmitido por meio
da linguagem pode ser traduzido de uma língua a outra. Ainda que perca parte de seu vigor ao
ser transposta, uma vez que terá que se acomodar a diferenças culturais, a palavra cômica
ainda poderá ser percebida após a tradução. O cômico criado pela linguagem, por outro lado,
é intraduzível, pois depende da estrutura da frase e da escolha de palavras disponíveis em
cada língua. Este tipo de comicidade “sublinha os desvios da própria linguagem. No caso, é a
própria linguagem que se torna cômica” (idem, p. 57).
Há entre a comicidade das ações e situações e a comicidade da linguagem certa
correspondência, visto que o que há de mecânico e artificial na ação de fazer o que não se
quer fazer, também o há no fato de se dizer o que não se quer dizer ou de ouvir o que não se
disse.

Anúncio 3 – Vivo (peça humorística)

Fonte: http://desenblogue.com
35

Dentre as muitas possibilidades da linguagem manifestar-se comicamente, as mais


recorrentes são as fórmulas feitas, as frases estereotipadas, pois remetem para a rigidez da
linguagem, evidenciando seu funcionamento automatizado. Com base nisso, o autor
estabelece a seguinte regra geral para a obtenção do cômico de palavras: “obteremos uma
expressão cômica ao inserir uma ideia absurda num modelo consagrado de frase” (idem, p.
61), como acontece com a expressão “quem é vivo sempre aparece” no anúncio 3, onde a
palavra “vivo”, referindo-se à operadora de linhas telefônicas, recupera um modelo
consagrado de frase, um dito popular: “quem é vivo sempre aparece”.
Um dos mecanismos de produção do cômico em geral apresentado por Bergson
(1987), o desvio dos padrões ou ideias socialmente partilhados, também pode ser aplicado à
linguagem. Mas, para isso, é preciso considerar que, comparativamente às pessoas, também
“as palavras apresentam um sentido físico e um sentido moral, conforme as tomemos no
sentido próprio ou no sentido figurado” (BERGSON, 1987, p. 62). Por sentido “físico” ou
“próprio” Bergson entende a propriedade da palavra que a habilita a designar um objeto
concreto ou uma ação material; e por sentido “moral” ou “figurado” sua propriedade de
tornar-se abstrata, ou espiritualizar-se. Com base nisto, o autor reformula sua lei inicial nos
seguintes termos: “obtém-se um efeito cômico quando se toma uma expressão no sentido
próprio, enquanto era empregada no seu sentido figurado. Ou ainda: desde que nossa atenção
se concentre na materialização de uma metáfora, a ideia expressa torna-se cômica” (idem, p.
62).

Anúncio 4 – Folha (peça humorística)

Fonte: http://www.desencannes.com.br
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No anúncio 4, vemos esta materialização por meio de uma palavra que foi tomada em
seu sentido “próprio”, ou seja, dicionarizado, quando deveria ser entendida como um nome
próprio que denomina o jornal.
Repetir, inverter, interferir são três ações que, como vimos, possibilitam transformar o
vivo em mecanismo, o homem em marionete. Estas mesmas ações se transformam em meios
de se manipular a linguagem para produzir efeitos cômicos. A inversão, a interferência e
repetição (ou transposição) são, pois, procedimentos importantes na comicidade de palavras.

Pressente-se, pois, que uma frase se tornará cômica se ainda tiver sentido mesmo
invertida, ou se exprimir indiferentemente dois sistemas de ideias totalmente
independentes, ou enfim se a obtivermos transpondo a ideia a uma tonalidade que
não é a sua. Essas são de fato as três leis fundamentais do que poderíamos chamar de
a transformação cômica das proposições... (BERGSON, 1987, p. 64)

Como vimos, a comicidade criada pela linguagem, do modo como é apresentado por
Bergson (1987), em nada difere da comicidade em geral: é o mecânico que se sobrepõe ao
vivo, o rígido que vence o maleável, é a distração em lugar da atenção. “A linguagem só
consegue efeitos risíveis porque é obra humana, modelada o mais exatamente possível nas
formas do espírito humano” (BERGSON, 1987, p. 69).
Há muitas críticas sobre a abordagem dada por Bergson ao humor. Muitas dessas
críticas se devem ao fato de o autor definir o cômico principalmente sob seu aspecto negativo,
dando ao riso a tarefa de correção social de um descuido. No entanto, este fato não impede
que o livro seja uma referência entre os estudos dedicados ao humor e ao riso em geral.

2.2 Freud: o chiste e o inconsciente

Em seu livro intitulado Os chistes e sua relação com o inconsciente, Freud (1987) faz
uma ampla revisão acerca do chiste, retomando caracterizações e definições dadas por outros
autores, antes de apresentar sua própria visão sobre o tema. A tese central desta obra de Freud
é que o processo de formação dos chistes é semelhante ao dos sonhos, ou seja, o prazer que
deriva do chiste provém do inconsciente da mesma forma que a elaboração do sonho.
Na formação do sonho, segundo o autor, haveria três estágios: primeiro os resíduos
diurnos seriam transpostos do pré-consciente ao inconsciente; em segundo lugar, uma vez no
inconsciente, tais resíduos seriam transformados em material onírico; em terceiro, por fim, a
elaboração onírica poderia ser percebida e se tornaria novamente consciente. A formação do
chiste na pessoa que o elabora corresponderia a dois desses três estágios de formação – o
37

primeiro e o terceiro: “um pensamento pré-consciente é abandonado por um momento à


revisão do inconsciente e o resultado disso é imediatamente capturado pela percepção
consciente” (FREUD, 1987, p. 157). Isso porque, embora seja produzido, o chiste é uma ideia
que ocorre involuntariamente, não decorre de uma preparação consciente prévia, fato que
parece indicar a sua origem inconsciente. “Não acontece que saibamos, um momento antes,
que chiste vamos fazer (...). Temos, antes, um indefinível sentimento, (...) um repentino
relaxamento da tensão intelectual, e então, imediatamente, lá está o chiste – em regra, já
vestido em palavras” (idem, p. 158). Para o autor, um chiste é um pensamento semi-
consciente que passa pelo inconsciente antes de ser expresso verbalmente.
Para justificar essa aproximação dos chistes aos sonhos, Freud (idem) apresenta, além
de sua origem inconsciente, outras características que os aproximam. A primeira característica
diz respeito às técnicas dos chistes, que são análogas aos processos de elaboração onírica. Tal
analogia, conforme explica o autor, deve-se ao fato de que o “conteúdo manifesto do sonho”,
assim como o conteúdo do chiste, decorre de processos similares, como a condensação, o
deslocamento e a representação indireta – processos que serão analisados detalhadamente
adiante, quando trataremos especificamente das técnicas de elaboração do chiste.
A segunda característica que os torna semelhantes diz respeito à superação da inibição
da censura resultante do deslocamento que possibilita a economia de energia psíquica. O
chiste, tal qual o sonho, permite que um raciocínio despreocupado com a rigidez intelectual
ou com a seriedade cotidiana possa libertar-se, possibilitando assim que a energia psíquica
que seria gasta para seu controle possa ser liberada por meio do riso. Conforme Alberti (1999,
p. 17), nos chistes de pensamento ou de reflexão,

o prazer decorre da possibilidade de pensar sem as obrigações da educação


intelectual, à qual estamos fadados no momento em que a razão e o julgamento
crítico declaram a ausência de sentido de nossos jogos de infância. Os jogos de
palavras, por sua vez, nos causam prazer porque nos dispensam do esforço
necessário à utilização séria das palavras. O jogo de palavras suscita a ligação entre
duas séries de ideias separadas, cuja apreensão usual exigiria muito mais esforço.

Outra característica importante para justificar essa aproximação diz respeito à


brevidade dos chistes, em geral decorrentes de processos de condensação, uma espécie de
economia de esforço intelectual, que no caso do chiste, resultaria na produção de prazer.
Logo, na produção dos chistes, o prazer é obtido quando, ao abandonar seu curso normal, o
pensamento processado no inconsciente possibilita a emersão de um alívio psíquico
decorrente da economia de esforço intelectual.
38

Embora não seja central em sua obra, Freud também relaciona os chistes a outras
espécies de cômico, relação que nos ajuda a compreender, principalmente, a natureza dos
chistes. Para diferenciá-los, o autor recorre a uma primeira caracterização do cômico: este
“pode contentar-se com duas pessoas: a primeira que constata o cômico e a segunda, em quem
se constata o cômico. A terceira pessoa, que é aquela a quem se conta a coisa cômica,
intensifica o processo, mas nada lhe acrescenta” (FREUD, 1987, p. 171). Em outras palavras,
o cômico se caracteriza por necessitar da pessoa que ri da situação cômica e da pessoa que é o
objeto cômico ou que está envolvida na situação que provocou o riso. O cômico não precisa
ser comunicado necessariamente para produzir seus efeitos, ele, preferentemente, precisa ser
visto, observado, constatado. O chiste, ao contrário, depende principalmente da pessoa que
conta e da pessoa a quem se conta o chiste, sem a qual o processo de produção do prazer não
estaria completo. Logo, uma grande diferença entre o cômico e o chiste reside no fato de que
o chiste não provém da constatação de comicidade em alguém ou em alguma coisa, como
ocorre com o cômico, ele é antes feito para ser comunicado verbalmente a outra pessoa. Como
afirma Freud (1987, p. 171):

um chiste se faz, o cômico se constata – antes de tudo, nas pessoas; apenas por uma
transferência subsequente, nas coisas, situações etc. No que toca aos chistes,
sabemos que as fontes do prazer, que há de ser fomentado, residem no próprio
sujeito e não em pessoas externas (FREUD, 1987, p. 171).

Nesta citação, Freud enfatiza a grande diferença entre os dois tipos de risíveis: o chiste
é feito, é produzido pela própria pessoa que o profere, não reside necessariamente em outra
pessoa; neste caso, o prazer da pessoa que produz o chiste (a primeira pessoa), deriva de uma
interferência do inconsciente nos sentidos conscientes, economizando esforço intelectual. O
cômico, por outro lado, é observado principalmente na segunda pessoa; neste caso, o prazer
provocado na primeira pessoa não provém de si mesma, mas da pessoa na qual se constata o
cômico ou que por algum procedimento específico foi tornada cômica. O prazer que a
primeira pessoa sente não provém do inconsciente como no chiste, mas sim de um pré-
consciente tornado consciente, ou seja, já se tinha uma consciência prévia do que seria um
movimento, uma ação ou uma situação adequados; ao se observar a transgressão, constata-se
o cômico. Como exemplo, Freud apresenta a diferença básica entre o chiste e o tipo de
cômico mais próximo do chiste, o ingênuo. Por um lado, o cômico ingênuo, principalmente
quando expresso por meio de comentários, se assemelha ao chiste quanto aos efeitos que
provoca na terceira pessoa, aquela a quem se conta o cômico. Mas, por outro, se diferencia
39

dele quanto à intencionalidade: nos chistes, sabe-se que a primeira pessoa se predispôs a
produzi-los, enquanto no caso do ingênuo, sabe-se que a pessoa na qual se constata o cômico
ingênuo, não está ciente de que produziu comicidade. A ingenuidade torna-se cômica
exatamente porque todos temos certos padrões guardados em nosso pré-consciente que se
tornam óbvios quando ignorados por outra pessoa.

O que é que faz diferença entre um chiste e alguma coisa ingênua? (...) Trata-se
meramente de que admitamos que o locutor pretendeu fazer um chiste ou de que
suponhamos que ele (...) tenha tentado, de boa fé, sacar uma conclusão séria à base
de sua impune ignorância. Apenas este último caso é uma ingenuidade. (FREUD,
1987, p. 173)

Ao cômico ingênuo, que ocorre involuntariamente, Freud contrapõe outro tipo de


cômico, aquele produzido intencionalmente para tornar cômico alguém ou alguma coisa. Em
geral, o cômico ingênuo é constatado, mas essa constatação deriva de uma comparação entre
nós e o outro. Temos padrões guardados em nosso pré-consciente sobre os movimentos, as
ações, as situações e os comportamentos morais. Quando observamos que outra pessoa foge a
esses padrões ela se torna cômica por causa da comparação que estabelecemos entre ela e tais
padrões que possuímos. Desta forma, partindo da observação do que é cômico, é possível
reproduzir e tornar as coisas e as pessoas cômicas.
Os principais métodos apresentados como formas de tornar as coisas e as pessoas
cômicas são: colocá-las em uma situação cômica, disfarçá-las, desmascará-las, fabricar-lhes
uma caricatura, parodiá-las ou travesti-las. Retomemos o anúncio 2, anteriormente citado
como exemplo do que Bergson caracterizou como automatismo cômico. Uma pessoa surda,
como a tia do anúncio, pode eventualmente envolver-se em alguma situação potencialmente
cômica, sem, no entanto, pretender fazê-lo; este seria um exemplo de cômico ingênuo.
Entretanto, um humorista, assim como fez o publicitário, pode pretender produzir efeitos de
humor, criando personagens surdos que vivenciarão situações criadas para desencadear o riso;
tem-se então, o cômico produzido.
Dessa forma, podemos tornar-nos cômicos a nós mesmos, fazendo-nos de desajeitados
e estúpidos; a outras pessoas, colocando-as em situações em que o humano se confronta com
fatores externos, como no caso do cômico de situação; ou tornar cômicas pessoas e coisas por
meio da degradação do que é sublime ou eminente etc. Cada um desses métodos explora em
alguma medida a mimese compartilhada socialmente, partindo da comparação com o que é
socialmente conhecido.
40

Algumas dessas formas de tornar cômico o que originalmente não o é deriva do


cômico de movimento que, para Freud, nada mais é que uma comparação mimética, ou seja,
comparamos o movimento do outro ao nosso próprio e constatamos que ele se realizou de
forma diferenciada da forma com nós normalmente o realizaríamos – os consideramos
exagerados ou desnecessários.
Também se deve ao procedimento de comparação o cômico que explora características
intelectuais ou mentais. No entanto, enquanto no cômico dos movimentos, a pessoa em quem
se constatava o cômico fazia uma despesa de energia maior do que a que julgávamos
necessária, no cômico decorrente de “uma função mental”, ao contrário, esta se torna cômica
ao efetuar uma economia de energia que nós consideramos que deveria ser gasta. Nas palavras
de Freud (1987, p. 183), “uma pessoa nos parece cômica, em comparação com nós mesmos,
se gasta energia demais em suas funções corporais e energia de menos em suas funções
mentais”. Nestes dois casos, a fonte de obtenção do cômico – a comparação entre o eu e o
outro – desencadeia uma comparação por uma relação de superioridade do eu frente à
inferioridade do outro.
Além do cômico dos movimentos e do cômico das funções mentais, há ainda o cômico
de situação. Neste caso, a comparação não se estabelece mais entre o eu e o outro, mas
exclusivamente em uma confrontação que se faz entre o outro em dada situação e ele mesmo
em um momento anterior. Neste caso, o eu não se coloca em uma relação de superioridade,
mas de empatia com o outro, reconhecendo que na mesma situação não teria feito diferente,
também teria se tornado cômico. Para Freud (1987), trata-se neste caso de uma relação que se
estabelece entre o ser humano e seu entorno social, com suas normas e convenções. A
comicidade é então manifestada por influências externas ao indivíduo, decorre de uma
incompatibilidade corporal ou moral do indivíduo em relação ao seu exterior em uma dada
circunstância.
Pode ainda tornar-se cômico o criar expectativas que não venham a se concretizar.
Também este é um caso de comparação, mas não envolve outra pessoa; é uma comparação
que se estabelece entre o eu e suas relações com o futuro, cuja antecipação acaba
possibilitando que se possa comparar o que se esperava com o que de fato aconteceu. Quando
uma expectativa é frustrada, possibilita o surgimento de movimentos, ações ou situações
cômicas.
A publicidade da Bradesco Seguros trabalhou com as expectativas para criar seus
efeitos de humor, como ilustrado no anúncio 5. A expressão “Vai que...” estabelece um elo
41

entre o que foi planejado (viver até os 90 anos) e o que de fato pode acontecer (viver até os
102 anos.

Anúncio 5 – Bradesco Seguros: “vai que...”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2195, de 15 de dezembro de 2010, p. 42-43.

Em sua obra, Freud destaca três características principais dos chistes que os diferencia
do cômico em geral: 1) o fator vontade – a primeira pessoa chistosa quer fazer um chiste, mas
a primeira pessoa cômica não tem necessariamente a intenção de sê-lo (ou, pelo menos, faz
acreditar que não tinha esta intenção, como no caso de um personagem de comédia); 2) o fator
consciência – o chiste produz um prazer proveniente do inconsciente em decorrência de
economia de esforço intelectual, já o cômico produz um prazer proveniente de uma pré-
consciência que se torna consciente por meio de comparação com outra pessoa ou consigo
mesma; 3) o fator expressividade – o chiste é produzido para ser comunicado verbalmente,
sua produção e interpretação dependem em grande medida de sua forma de expressão, de
modo que o material linguístico é sua matéria prima; o cômico, ainda que possa ser
comunicado verbalmente, não precisa desta condição para ser constatado, seu efeito depende
exclusivamente de fatores não linguísticos.
Como uma das funções dos chistes, de acordo com Freud, é trazer à tona fontes de
prazer cômico que não se encontravam acessíveis, é possível encontrar fontes do cômico nos
chistes, ou seja, uma situação cômica ou uma degradação que torne as coisas cômicas podem
42

servir de pano de fundo para a produção de uma piada ou de um comentário chistoso. No


entanto, “o contato com o cômico não há absolutamente de ser constatado em todos os chistes
ou mesmo na maioria deles; na maioria dos casos, pelo contrário, traça-se uma nítida
distinção entre os chistes e o cômico” (FREUD, 1987, p. 193).
Como visto, um chiste é um comentário expresso linguisticamente. Mas o que
converte um comentário em um chiste? Freud apresenta duas possibilidades: ou “o
pensamento expresso na sentença possui em si mesmo o caráter de chiste, ou o chiste reside
na expressão que o pensamento encontrou na sentença” (FREUD, 1987, p. 25). Isso quer dizer
que um pensamento pode ser por si só chistoso, independentemente da sua forma de
expressão linguística. Mesmo que ele seja parafraseado de diferentes formas não perderá seu
caráter surpreendente; a estes chistes, cuja graça não depende de sua verbalização, mas do
próprio pensamento, Freud denominou chistes de pensamento. No entanto, pode ocorrer que o
pensamento expresso não seja por si só chistoso, mas que tenha encontrado seu tom chistoso
na forma linguística que o verbaliza, ou seja, nas palavras que o exprimem. Neste caso,
qualquer paráfrase que modifique a forma verbal faz com que o caráter e o efeito do chiste
desapareçam; a estes chistes, cuja graça depende da sua feição verbal, Freud denominou
chistes de palavras ou chistes verbais.
Quanto a seus propósitos, os chistes são classificados por Freud como tendenciosos,
quando servem a um fim particular, e como inocentes, quando são um fim em si mesmo. Os
inocentes provocam um efeito moderado, cujo prazer produzido leva a um sorriso ou uma
leve satisfação; os tendenciosos, ao contrário, possuem um efeito mais impactante,
provocando um riso mais explosivo. Para Freud (1987), os chistes tendenciosos possuem dois
propósitos básicos: um mais hostil, que serve à agressividade, à sátira ou à defesa; e outro
mais obsceno, que serve ao desnudamento. Não há, para o autor, uma correlação exata entre o
propósito e a técnica dos chistes; assim, um chiste inocente pode ser elaborado com técnica
verbal ou com técnica de pensamento, o mesmo ocorrendo com os tendenciosos. O prazer do
chiste pode, em alguns casos, depender principalmente de sua técnica de elaboração, ou em
outros, de seu propósito, podendo ainda combiná-los. No entanto, ao ler ou ouvir um chiste,
não se tem claro de onde provém sua graça. Como nos diz Freud (idem, p. 94) “tenhamos em
mente o fato de que os comentários chistosos produzem em nós uma impressão global na qual
não conseguimos separar a parte devida ao conteúdo intelectual da parte devida à elaboração
do chiste”. O humor detectado nos anúncios publicitários é de propósito mais inocente que
tendencioso, está mais preocupado em produzir um efeito moderado que propicie a
cumplicidade.
43

Assim, resumidamente, podemos considerar dois grupos de chistes: os chistes verbais


(ou de palavras) e os chistes de reflexão (ou de pensamento). A principal técnica de produção
dos chistes de palavras, de acordo com o autor, é a condensação; já os chistes de pensamento
são produzidos principalmente com recurso ao deslocamento e à representação indireta, como
veremos adiante.
O primeiro grupo de chistes corresponde a um uso diferenciado da forma de expressão
linguística de um pensamento, ou seja, dentre as muitas formas de explicitar o pensamento, se
busca aquela que é a mais estranha e surpreendente, e por isso mesmo a menos inteligível. O
caráter destes chistes está em sua verbalização e não no próprio pensamento que exprimem.
Tais chistes, denominados por Freud chistes de palavras, são construídos por meio de
processos linguísticos que podem ser divididos em condensação com formação de substituto,
múltiplo uso do mesmo material e jogos de palavras. A condensação com formação de
substituto ocorre quando há uma considerável abreviação do pensamento expresso, com
recurso a palavras que evocam ou subentendem outras que não foram ditas. Essas palavras
substituem todo um pensamento que, se expressado de outra forma, perderia seu tom chistoso.
Nessa técnica, Freud (1987) inclui todos os casos em que ocorre formação de uma palavra
composta, modificação de uma palavra por outra ou modificação no interior da própria
palavra de modo que ela faça lembrar outra(s). Um bom exemplo de condensação com
formação de substituto, imitando o famoso “familionariamente” de Freud, nos foi fornecida
por um apresentador de programa esportivo da rede Globo, no dia 20 de outubro de 2011, que,
comentando o jogo entre um time chileno e um carioca, disse que os chilenos deram uma
“chilenada” nos cariocas. A palavra “chilenada”, resultante da combinação entre “chileno” e
“chinelada”, condensa em si todo um pensamento que não foi expresso diretamente, mas que
fica subentendido. Uma possível paráfrase (os chilenos deram uma chinelada nos cariocas,
ganharam o jogo) evidenciaria o grau de economia que essa maneira de expressar gera no
ouvinte.
O uso múltiplo do mesmo material ocorre quando o chiste depende principalmente da
semelhança sonora entre duas palavras ou expressões independentemente dos seus sentidos.
Um dos procedimentos que possibilitam a produção dessa espécie de chiste é a segmentação
de uma palavra ou expressão – “Lacta” X “lá que tá” (anúncio 6), por meio da qual “a mesma
palavra ou o mesmo material verbal pode prestar-se a múltiplos usos em uma sentença”
(FREUD, 1987, p. 40).
44

Anúncio 6 – Lá que tá (peça humorística)

Fonte: http://desenblogue.com

Anúncio 7 – Bebassa (peça humorística)

Fonte: http://desenblogue.com

Isto ocorre também quando a ordem das palavras é alterada – “começou mal” X “mal
começou” (624, p. 94), ou quando duas palavras mesmo com leve modificação guardam entre
si alguma semelhança fônica – “Devassa” X “Bebassa” (anúncio 7).
Embora tenha se preocupado em estabelecer divisões e subdivisões para os chistes de
palavras, Freud (1987) chegou à conclusão de que a principal técnica de produção dos chistes
verbais é mesmo a condensação:

O uso múltiplo do mesmo material é, afinal, um caso especial de condensação; o


jogo de palavras, nada mais é que uma condensação sem formação de substitutivo;
portanto, a condensação permanece sendo a categoria mais ampla. Todas essas
técnicas são dominadas por uma tendência à compressão, ou antes, à economia.
Tudo parece ser uma questão de economia. (FREUD, 1987, p. 49)

O segundo grupo de chistes, os chistes de reflexão ou de pensamento, depende não


mais da verbalização, das palavras por meio das quais um pensamento é expresso, mas do
45

próprio pensamento. As técnicas de produção destes chistes giram em torno principalmente de


dois procedimentos: o deslocamento e a representação indireta. O primeiro consiste em um
“desvio do curso do pensamento, no deslocamento da ênfase psíquica para outro tópico que
não o da abertura” (FREUD, 1987, p. 57). O fator surpreendente reside num raciocínio
inesperado, que subverte o curso esperado do pensamento. Diferencia-se do duplo sentido por
não depender da forma de verbalização e ocorrer principalmente na réplica a algum
comentário que serve como tópico de abertura, como no exemplo que tomamos de Freud
(1987, p. 60): “Um palafreneiro recomendava a um freguês um cavalo de sela. ‘Se você partir
nesse cavalo às quatro da manhã, estará em Pressburg às seis e meia.’ – ‘E o que eu vou fazer
em Pressburg às seis e meia da manhã?’”. Neste caso, o freguês ignora que a exemplificação
dada, o tópico de abertura, refere-se à capacidade do animal e não a uma sugestão de horário,
como deixa transparecer em sua réplica. Ele desloca, pois, o pensamento da interpretação
mais lógica, mais possível, para uma interpretação absurda, menos plausível. Incluem-se
entre os chistes de deslocamento aqueles que ocultam um raciocínio falho por meio de uma
aparente argumentação lógica; ou ainda aqueles que exibem algum tipo de nonsense ou
absurdo para revelar algo igualmente absurdo; em ambos os casos, os chistes apresentam um
deslocamento do curso normal do pensamento.

Anúncio 8 – Brasas: “the book is on the table” (peça humorística)

Fonte: http://desenblogue.com

O rótulo de representação indireta, apresentado por Freud, refere-se na verdade a um


conjunto de técnicas, entre as quais podemos citar a representação pelo oposto, a
representação por símile, a representação pelo absurdo, a alusão, as analogias, as comparações
46

etc. Em todos estes casos, o chiste se ocupa de representar alguma coisa que não deve ou não
pode ser expressa de modo direto devido a alguma restrição que depende, em geral, da
situação. Assim, recorre-se a associações e inferências que possibilitem ativar na memória a
alusão, a similaridade ou a representação oposta de um pensamento que não foi dito
diretamente.
O anúncio acima ilustra a comicidade gerada por meio da representação indireta. Há,
no Brasil, um consenso de que a maioria dos cursos de inglês começa ensinando coisas que
têm pouca relevância, como por exemplo, a localização de objetos. Desta forma, surgiu a
frase “the book is on the table” que, em sentido figurado em contexto brasileiro, significa que
o que se ensina nos cursos de idiomas em geral não tem utilidade na vida cotidiana do aluno,
pois os cursos se restringem à repetição de frases feitas. A comicidade do anúncio 8 reside no
fato de representar indiretamente esta frase, invertendo a ordem das palavras (“the table is on
the book”) por meio da imagem. Esta alusão também ridiculariza o método de ensino
anunciado, uma vez que a inversão feita não altera significativamente o procedimento
empregado.

2.3 Bakhtin: o riso carnavalesco

Ainda que o humor não seja seu objeto de análise, em A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de Francois Rabelais, Bakhtin (2010) acaba
desenvolvendo uma ampla reflexão em torno de um tipo específico de riso – o riso popular da
praça pública, das festas e do carnaval. O maior propósito de Bakhtin nessa obra é situar
adequadamente o lugar de Rabelais entre os grandes nomes da literatura clássica –
Shakespeare, Cervantes, Dante etc., visto que, em geral, segundo o autor, Rabelais foi
injustiçado pela crítica que sucedeu o século XVI, tendo sido considerado por muitos como
um autor de obras grotescas e de mau gosto. Defende que para compreender Rabelais, “é
preciso lê-lo com os olhos dos seus contemporâneos e contra o fundo da tradição milenar que
ele representa” (BAKHTIN, 2010, p. 195). Para tanto, propôs-se a investigar a cultura cômica
popular, bem como sua dimensão e suas características originais, mostrando como essa
cultura influenciou decisivamente as imagens e a concepção literária do século XVI como um
todo e a obra de Rabelais em particular.

Não resta dúvida de que o lugar histórico que ele ocupa entre os criadores da nova
literatura europeia está indiscutivelmente ao lado de Dante, Boccacio, Shakespeare e
Cervantes. Rabelais influiu poderosamente não só nos destinos da literatura e da
47

língua literária francesas, mas também na literatura mundial [...]. É também


indubitável que foi o mais democrático dos modernos mestres da literatura. Para nós,
entretanto, sua principal qualidade é de estar ligado mais profunda e estreitamente
que os outros às fontes populares, fontes específicas [...]; essas fontes determinaram
o conjunto de seu sistema de imagens, assim como sua concepção artística.
(BAKHTIN, 2010, p. 2)

Segundo Bakhtin, essa incompreensão da totalidade da obra de Rabelais deve-se ao


fato de ela ter sido estudada sempre parcialmente, sem que se considerasse a importância das
manifestações populares da época para a interpretação das obras. Rabelais explorou
amplamente o universo grotesco das festividades populares da praça pública, trazendo para
dentro de sua obra as imagens e as “vozes” que refletiam a alegria vivenciada neste espaço,
onde a liberdade podia manifestar-se em oposição à opressão imposta pela cultura oficial, que
nesta época cultivava um tom sério, religioso e feudal. Para Bakhtin (2010), Rabelais foi, na
literatura, o porta-voz da cultura cômica popular, não só de sua época, mas também da que o
antecedeu e, de certa forma, da que o sucedeu.
Na época de Rabelais, o riso expressava uma forma de liberdade que se opunha à
opressão feudal do período medieval. O espaço permitido ao riso se restringia principalmente
às festas carnavalescas que aconteciam nas praças públicas e ao convívio familiar, onde, tanto
a linguagem quanto as ações revelavam o quanto as pessoas se sentiam livres para dizer e agir
sem medo, longe das limitações da cultura oficial. Esta oposição entre uma linguagem
marcada pela liberdade da fala popular e uma linguagem controlada por regras específicas
sempre existiu na história das línguas, uma relacionada à tradição da cultura popular e outra, à
da cultura oficial. No entanto, de acordo com Tinhorão (2000, p. 16), apesar de essa dualidade
ser histórica e já existir na cultura greco-romana, “seria durante a Idade Média que a
existência dessa dupla linguagem tornar-se-ia mais ostensiva, agora no âmbito ampliado dos
novos falares derivados do latim, por todo o Ocidente chamados de romance”. Foi nessa
época que o romance, antes, restrito à linguagem folclórica, da praça pública, da rua, do
mercado, dos pequenos vendedores e dos “pregões de Paris”, se tornou a língua nacional e
passou a ser também a língua da “grande” literatura, da ciência e da ideologia.
Na Idade Média e no Renascimento,

o mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao


tom sério, religioso feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e
manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais,
os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços e diversos estilos e
categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de
estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da
cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHTIN, 2010, p. 3-4)
48

Para Michael Bakhtin (idem), este riso medieval, carnavalesco, expressão de liberdade
popular, está presente em todas as imagens usadas por Rabelais em sua obra e explica todo o
seu viés cômico. Bakhtin propõe uma subdivisão das múltiplas manifestações da cultura
popular desse período em três categorias distintas: as formas dos ritos e espetáculos, onde
inclui os festejos carnavalescos e as obras cômicas representadas nas praças públicas; as obras
cômicas verbais de natureza diversa (orais e escritas, em latim ou em língua vulgar), onde
inclui as paródias; e as diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro, como os
insultos, os juramentos, os blasões populares, etc..
As formas dos ritos e espetáculos, principalmente os festejos carnavalescos e a
comicidade a eles ligados, possuíam, segundo Bakhtin, grande importância na vida do homem
medieval. No entanto, o aspecto cômico não era explorado exclusivamente nos ritos de
carnaval, mas também nas festas religiosas, nas festas agrícolas celebradas nas cidades e nas
cerimônias e ritos civis da vida cotidiana, através dos bufões e dos “bobos”.

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma


diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às
formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal.
Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente
diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos
quais os homens da idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos
quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade
do mundo e cremos que, sem levá-la em consideração, não se poderia compreender
nem a consciência cultural da Idade Média nem a civilização renascentista.
(BAKHTIN, 2010, p. 4-5)

A sociedade medieval era organizada em torno a uma hierarquia ditada pelo regime de
classes e pelo Estado. A vida cotidiana era regulada pelo medo e pela opressão. Era dessa
forma que a hierarquia social era mantida, que o Estado obrigava o cumprimento das leis e
que a igreja transmitia seus dogmas. As festas oficiais acabavam de alguma forma
contribuindo para a manutenção não só da hierarquia como também dos valores, das normas e
dos tabus religiosos, políticos e morais que predominavam então. Por isso mesmo, as formas
cômicas, manifestações eminentemente não-oficiais, perderam seu espaço e ficaram restritas a
essa esfera popular da praça pública, onde o riso era permitido, criando uma dualidade
vivenciada cotidianamente – por um lado a vida oficial de restrições, por outro, a festa
carnavalesca da liberdade. Conforme Bakhtin (2010, p. 79), “tudo que era temível, tornava-se
cômico”. Por isso mesmo, a praça pública representava a liberdade, pois nela, tudo o que
oprimia o indivíduo era ridicularizado e perdia seu efeito assustador.
49

Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação


temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de
todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do
tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a
todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto.
(idem, p. 8-9)

Durante as festas da praça pública, o povo sentia-se liberado do comando, das regras,
das obrigações, do medo, enfim, sentia-se livre para usar formas especiais de vocabulário e
para utilizar-se de gestos típicos da praça pública, livres de restrições ou de normas. A
linguagem utilizada era familiar, recheada de insultos, juramentos e grosserias, ou seja, de
expressões e palavras injuriosas.
Discursos especiais ressoavam na praça pública por meio da linguagem familiar, que
formava quase uma língua especial, inutilizável em outro lugar, nitidamente diferenciada
daquela usada pela Igreja, pela corte, tribunais, instituições públicas, pela literatura oficial, da
língua falada das classes dominantes (aristocracia, nobreza, alto e médio clero, aristocracia
burguesa), embora o vocabulário da praça pública aí irrompesse de vez em quando, sob certas
condições. (idem, p. 133)
Os gestos, da mesma forma que a linguagem, evidenciavam a familiaridade entre as
pessoas, quebrando a relação hierárquica e estabelecendo a aproximação. Essa linguagem e
esses gestos influenciaram o surgimento das obras cômicas verbais, orais e escritas, que, por
sua vez, também exerceram profunda influência na obra de Rabelais e no riso que ela suscita.
É deste contexto que surge o riso carnavalesco, um riso festivo, popular, universal e
ambivalente:

Explicaremos previamente a natureza complexa do riso carnavalesco. É, antes de


mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma reação individual diante de um ou
outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do
povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do
carnaval). Todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é universal, atinge a todas
as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece
cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre
relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheiro de alvoroço, mas ao
mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita
simultaneamente. (BAKHTIN, 2010, p. 10)

As imagens suscitadas pela cultura popular da praça pública, como ressalta Bakhtin,
estão carregadas de formas universais, festivas e principalmente ambivalentes. Desta forma, o
material e o corporal, o alto e o baixo, o natural e o espiritual, o profano e o sagrado, tudo
aparece sob a forma universal, festiva e utópica. As imagens grotescas do corpo, por exemplo,
50

antes de expressarem uma realidade negativa, caracterizavam a transformação, o


renascimento. Da mesma forma, as grosserias apresentavam juntamente com o seu lado
denegridor, um pólo regenerador e positivo, conservando, por isso, seu caráter ambivalente.

A imagem grotesca caracterizava um fenômeno em estado de transformação, de


metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento
e da evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo
(determinante) indispensável da imagem grotesca. Seu segundo traço indispensável,
que decorre do primeiro, é sua ambivalência: os dois pólos da mudança – o antigo e
o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são
expressados (ou esboçados) em uma ou outra forma. (BAKHTIN, 2010, p. 21-22)

Essa ambivalência que caracteriza o riso popular se explica por sua forma de
possibilitar ao homem medieval a superação de seus próprios medos, transformando o temível
em risível, a rigidez oficial em festa e o sério em cômico. “Os homens da Idade Média
participavam igualmente de duas vidas: a oficial e a carnavalesca, e de dois aspectos do
mundo: um piedoso e sério e outro, cômico.” (BAKHTIN, 2010, p. 83)
Como consequência dessa cultura de duas faces deixada pelo período medieval,
também o Renascimento ainda experimentou essa divisão entre o sério e o popular, embora já
não com a mesma intensidade. Nesse período, o riso passou a ser tomado como forma
universal de concepção do mundo e a literatura renascentista tentou transmitir esse caráter,
como se percebe nas obras de Rabelais, de Cervantes, de Shakespeare, dentre outros.
Conforme Bakhtin (2010, p. 57),

A atitude do Renascimento em relação ao riso pode ser caracterizada, da maneira


geral e preliminar, da seguinte maneira: o riso tem um profundo valor de concepção
do mundo, é uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o
mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista
particular e universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente, embora não
menos importante (talvez mais) do que sério; por isso a grande literatura (que coloca
por outro lado problemas universais) deve admiti-lo da mesma maneira que ao sério:
somente o riso, com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente
importantes do mundo.

Segundo Bakhtin (idem, p. 60), as três fontes antigas mais populares da filosofia do
riso do Renascimento e que exerceram grande influencia sobre a obra de Rabelais “definem o
riso como um princípio universal de concepção do mundo, que assegura a cura e o
renascimento”. Neste sentido, “o riso tem uma significação positiva, regeneradora, criadora, o
que a diferencia nitidamente das teorias e filosofias do riso posteriores, inclusive a de
Bergson, que acentuam de preferência suas funções denegridoras.” (idem, p. 61). Se na Idade
51

Média o riso era categoricamente separado da vida oficial, possuindo sua legalidade apenas na
praça pública, no Renascimento ele ganhou um espaço mais privilegiado ao ser introduzido
também nas festas oficiais, religiosas e estatais, como forma de conquistar a confiança
popular. Como acrescenta o autor, “a cultura popular não oficial dispunha na Idade Média e
ainda durante o Renascimento de um território próprio: a praça pública, e de uma data
própria: os dias de festa e de feira” (idem, p. 133). No entanto, esse território se tornou maior
no Renascimento e extrapolou o espaço restrito da praça pública. Ainda assim, o riso
carnavalesco não perdeu seu caráter universal e ambivalente, e Rabelais foi, dentre os autores
renascentistas, o que mais e melhor explorou essa realidade em sua literatura.
De acordo com Bakhtin (2010), as formas e imagens da festa popular, o vocabulário
da praça pública, as imagens grotescas do corpo, as imagens dos banquetes, o baixo material e
corporal, são todas imagens que suscitam, em Rabelais, a festividade e a ambivalência do riso
carnavalesco. Assim, compreender a comicidade rabelaisiana é antes de tudo compreender
suas imagens e relacioná-las à realidade de seu tempo. “O verdadeiro último grito de Rabelais
é a palavra popular alegre, livre, absolutamente lúcida, que não se deixa comprar pela dose
limitada de espírito progressista e de verdade acessíveis à época.” (BAKHTIN, 2010, p. 399)
Esse riso festivo, carnavalesco, de que trata Bakhtin em sua obra, ainda pode ser
encontrado atualmente, mas nem sempre carrega seu tom ambivalente, aquele que o
caracterizava na época do Renascimento. O riso carnavalesco continua, de certa forma,
restrito a determinadas situações menos formais, embora seu espaço de atuação tenha
extrapolado os limites da praça pública. Uma das formas mais evidentes de manifestação do
riso carnavalesco, hoje, diz respeito aos programas televisivos de humor – espaço onde o riso
readquire, muitas vezes, seu tom ambivalente – burlador e sarcástico, mas ao mesmo tempo
alegre e cheio de alvoroço; por um lado, denegridor, por outro, uma forma de cobrar
transformações políticas e sociais. Também é possível identificá-lo em charges, caricaturas,
piadas e chistes que circulam em alguns espaços, no entanto este riso carnavalesco ainda é
restrito e não se manifesta indistintamente.
No âmbito da publicidade, esse riso alegre e cheio de alvoroço serve antes como forma
de levar o consumidor a se reconhecer, bem como reconhecer seu espaço de festa e alegria,
seu entorno popular e seu tom brincalhão. O anúncio da Sadia, tanto o televisivo quanto o
impresso, empregou, durante um período, o bordão popular: “Nem a pau, Juvenal!”. Esse
bordão sempre esteve restrito ou ao âmbito familiar, ou a espaços públicos menos formais,
onde as pessoas vivenciam relações de maior proximidade. Esse jargão dificilmente seria uma
forma empregada em situações cujo contrato de comunicação seguisse padrões pré-
52

estabelecidos. Ao ser empregado em uma situação formal, como o é a comunicação


publicitária, suscita o riso, mas não chega a evidenciar nenhuma ambivalência. Então, desse
riso carnavalesco, o que pode ser extraído para uma análise do humor na publicidade refere-se
ao fato de, em geral, o efeito risível estar atrelado ao contexto sociocultural do convívio
popular, familiar, não-oficial. Nesse anúncio, o emprego do bordão reflete a tentativa de
produzir uma aproximação entre os consumidores e o produto anunciado através de uma voz
tipicamente popular.

Anúncio 9 – Sadia: “nem a pau, Juvenal”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2063,de 04 de junho de 2008, p. 26 e 27.

2.4 Representações sociais4 e humor

4
Não é nosso objetivo, neste estudo, aprofundar-nos conceitualmente sobre o que sejam as representações
sociais, tampouco explicitar as divergências e convergências que tal noção pode adquirir nas diferentes correntes
teóricas, quais sejam, a Sociologia, as Ciências Sociais, a Psicologia Social, a Filosofia, a Análise do Discurso
etc. No entanto, vale destacar que tomamos por base a noção de representação coletiva de Durkheim (1973, apud
RETONDAR, 2007, 20), que, no campo da Sociologia, as define como práticas partilhadas socialmente, “o
produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo...” (DURKHEIM, idem,
p. 518). Também nos serviremos da noção de representações sociais oferecida pela Psicologia Social,
entendendo-a como “o modo pelo qual os indivíduos interagem com a realidade considerando as informações
que circulam de maneira hegemônica em vários campos de sua atuação” (RETONDAR, 2007, p. 28). Neste
sentido, entendemos que os valores, as opiniões, as imagens, a cultura, as formas de sentir, a ideologia, os
estereótipos, as crenças, as aspirações, tudo contribui para a constituição das representações sociais.
53

Bergson (1987) sustenta que o cômico tem estreita relação com a rigidez cotidiana de
nossos sentidos e de nossa inteligência, isto é, nos habituamos tanto a determinadas formas de
pensar, de agir e de dizer, que acabamos reproduzindo mecanicamente as mesmas fórmulas.
Essas formas cômicas, no entanto, não estão desvinculadas de sua inserção num determinado
grupo de pessoas; para o autor, o ambiente natural do riso é a sociedade, por isso, corresponde
a certas exigências da vida comum, tendo, pois, uma significação social. Para o autor, então, o
cômico é uma forma de controle social, podendo funcionar como estratégia de correção de
desvios, como denúncia ou como crítica social. Fica evidente no postulado de Bergson (idem)
que há na sociedade normas de conduta mais ou menos estabilizadas que devem ser
reconhecidas e respeitadas por todos os indivíduos que conformam a coletividade.
Freud (1987), ao dar primazia ao inconsciente, de certa forma nos conduz a repensar a
produção e a interpretação do chiste como uma forma de liberação de emoções reprimidas que
estão sujeitas à demanda de esforço intelectual que a educação e as restrições sociais
normalmente impõem para a apreensão de outros tipos de enunciados. Ou seja, estamos
acostumados a determinadas normas que condicionam nossa relação com o mundo, com a
sociedade, e conosco mesmos, normas que derivam da nossa educação intelectual e social.
Sempre que precisamos interpretar um enunciado precisamos catalisar nossa energia psíquica
procurando adequar nosso raciocínio àquilo que a sociedade espera de nós. O chiste, no
entanto, gera uma economia que torna essa energia desnecessária, e ela acaba sendo liberada,
tornando-se uma fonte de prazer que se manifesta por meio do riso. Essa forma de analisar o
papel do inconsciente na produção dos chistes coloca-nos de certa forma diante da questão da
rigidez social de Bergson, ou seja, é justamente porque nos possibilita escapar a tal rigidez
que o riso emerge.
Também encontramos em Bakhtin (2010) e em seu riso carnavalesco algo em comum
com os dois autores supracitados. O autor defende a ideia de que o riso é proveniente daquilo
que é popular, logo, social, compartilhado em maior ou menor grau por um grupo de pessoas
que convivem em um espaço determinado, no caso, a praça pública. Logo, o riso carnavalesco
está associado a aspectos coletivos de um determinado grupo e só pode ser entendido quando
relacionado a este grupo.
O que estamos tentando mostrar com estas reflexões é que, ainda que se trate de
autores que escreveram sobre o humor a partir de fundamentos teóricos distintos, com
propósitos distintos e em épocas distintas, há entre eles uma concepção do humor, do cômico
e do riso que lhes é comum em certa medida. Em outras palavras, seja como correção da
rigidez social, seja como liberação das imposições sociais, seja como manifestação do popular
54

socialmente partilhado por uma coletividade, nas três abordagens é possível perceber que as
representações que circulam em um grupo social influem tanto na produção quanto na
interpretação do humor. O humor condensa as representações sociais, possibilitando que
assuntos proibidos, tabus, determinadas formas de pensar tomadas como inconvenientes por
um grupo etc., venham à tona sem serem reprimidos ou repreendidos. Como postula Bakhtin
(idem), o riso simboliza a liberdade, o não sério, o não institucional, o popular, a festividade,
enfim, tudo aquilo que o homem vivencia de modo descontraído em um ambiente não oficial.
Logo, o humor é uma das formas encontradas para fazer viver essa liberdade, de ativar esse
riso por meio de técnicas que acendam a memória social, libertando-a do automatismo e
possibilitando uma economia intelectual.
Toda a matéria-prima necessária à produção do humor encontra-se na memória
coletiva, à qual o humorista recorre para provocar o riso. Toda sociedade possui imagens de si
mesma e imagens das outras sociedades, como verificamos em muitas piadas, como a que
segue:

Um francês, um inglês e um alemão foram encarregados de um estudo sobre o


camelo. O francês foi ao jardim botânico, lá ficou uma meia hora, interrogou o
guarda, jogou pão ao camelo, atiçou-o com a ponta de seu guarda-chuva e, voltando
para casa, escreveu, para seu jornal, um folhetim cheio de observações picantes e
espirituosas. O inglês, levando suas provisões e um confortável material de
acampamento, instalou sua tenda nos países do Oriente e trouxe, depois de uma
estada de dois ou três anos, um grosso volume repleto de fatos, sem ordem nem
conclusão, mas de um real valor documental. Quanto ao alemão, cheio de desprezo
pela frivolidade do francês e pela falta de ideias gerais do inglês, trancou-se no seu
quarto para redigir uma obra em vários volumes, intitulada A ideia de camelo
deduzida da concepção do Eu. (SALIBA, 2002, p. 15)

Se quiséssemos imaginar, por exemplo, qual seria a atitude de um brasileiro que se


encontrasse na mesma situação que o francês, o inglês e o alemão da anedota, recorreríamos
certamente a imagens que nós fazemos de nós mesmos e, dependendo do brasileiro que se
propusesse a imaginar tal situação, chegaríamos certamente a algumas possibilidades: um
baiano adiaria sua tarefa por preguiça, um carioca iria primeiro à praia e depois criaria um
samba enredo sobre o tema para desfilar na sua escola de samba no carnaval, um paulista
provavelmente iria beber com os amigos e conversaria com eles sobre o assunto etc.
Concordando com Saliba (2002, p. 16), “tanto a anedota como sua fictícia continuação
revelam a pobreza das representações estereotipadas e dos clichês, mas também uma cultura
silenciosa, tácita, um conjunto de imagens simplificadas” que evidenciam a dinamicidade das
relações sociais que, ao mesmo tempo em que cria e inventa seus próprios espaços de
55

manifestação, também cria e inventa seus próprios estereótipos, mitos e crenças. Neste estudo,
entendemos estereótipo como “imagens pré-concebidas e cristalizadas, abreviadas e fatiadas,
das coisas e dos seres que o indivíduo faz sob a influência de seu meio social” (MORFAUX,
1980, p. 34 apud CHARAUDEAU e MAINGUENEAU. 2008, p. 215). Muitas das imagens
construídas por meio dos discursos que circulam em uma sociedade (a exemplo dos discursos
humorísticos) não correspondem a um referente exato, mas a representações coletivas
estereotipadas; a imagem do português como desprovido de inteligência, do surdo como
aquele que não entende nada do que se diz, da mulher como sexo frágil ou como símbolo
sexual, do baiano como o preguiçoso, da loira como a burra etc., todas essas são imagens que
circulam em nossa sociedade e que se cristalizam de tal modo que podem ser mobilizadas e
apreendidas em uma enunciação.
Ao pensar na associação entre o humor e a publicidade não podemos deixar de pensar
que essas representações sociais têm forte relevância, uma vez que, por um lado, o humor
brinca com elas, ridicularizando-as ou valorizando-as de modo a causarem algum
estranhamento, algum desvio potencialmente cômico; por outro lado, a publicidade alimenta e
recria representações sociais com a finalidade de conquistar a conivência de seus
consumidores. O discurso humorístico, em geral, concentra significados históricos, símbolos
compartilhados, imagens pré-construídas, de modo que todos se identifiquem como parte de
um determinado grupo que vivenciam experiências bem próximas. A compreensão do humor
precisa da memória coletiva, exigindo que os fatos postos em questão sejam do conhecimento
de todos.
Sirio Possenti (2010), em seus estudos sobre as piadas em geral, diz que às vezes é
inevitável fazer alusão aos fatores extralinguísticos envolvidos em sua interpretação
(identidade, estereótipos, imaginário social, ideologias etc.). “A razão é que esses tipos de
textos [piadas e anedotas] sempre retomam discursos profundamente arraigados e cujos temas
são sempre cruciais para uma sociedade” (POSSENTI, 2010, p. 40). Para o autor, o humor se
funda sobre temas controversos, sobre questões sociais polêmicas, que se tornam populares,
que encontram amparo nos discursos que circulam amplamente, que são debatidos e rebatidos
pelas pessoas, e sobre os quais surgem divergências, como no caso dos discursos censurados
(sexo, traição, racismo, política etc.).
Muitas das representações surgem do acúmulo de fatos e acontecimentos, desde as
narrativas orais que eram passadas de geração em geração, aos festejos populares e religiosos,
que desde o início da humanidade formaram parte da cultura. Esse imaginário, diante da
modernidade, da cultura de massa e do capitalismo globalizado, não perdeu seu espaço; ao
56

contrário, as fantasias, as idealizações e o simbolismo que regem as relações humanas são


atualizados constantemente. Possenti (idem), ressalta que, em geral, há alguma relação entre
humor e acontecimento, sendo este entendido como ecos que ressoam através dos discursos
que circulam em uma sociedade.
Algumas representações são criadas em torno de acontecimentos recentes, outras,
estão ligadas a memórias mais longas e outras, ainda, são decorrentes de fenômenos que
atravessaram os séculos. Para a apreensão do humor, é importante que se tenha memória do
fato retomado, seja ele recente ou mais distante no tempo. Como proposto por Possenti (2007,
p. 343), “o discurso humorístico, nos diversos gêneros textuais em que se materializa, faz
apelo a um saber, a uma memória”.
No entanto, as representações não são decorrentes de percepções individuais, mas sim
coletivas:

Durkheim (1987, p. XXVI) afirma que “o que as representações coletivas traduzem


é a maneira pela qual o grupo se enxerga a si mesmo nas relações com os objetos
que o afetam. Ora, o grupo está constituído de maneira diferente do indivíduo, e as
coisas que o afetam são de outra natureza. Representações que não exprimem nem
os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos, não poderiam depender das mesmas
causas”. É preciso, então, considerar a natureza social e não a individual e atentar
para o fato de que o mundo todo é feito de representações. (HOROCHOVSKI, 2004,
p. 94)

Em uma sociedade, a relação do indivíduo consigo mesmo, bem como sua relação
com os demais não deixa de ser filtrada pelas representações e pelo imaginário de cada época,
são as imagens de si mesmo e as dos outros que estabelecem as formas de sociabilidade.
Assim podemos entender o papel da mulher ao longo da história e sua transformação que
desembocou no movimento social do “feminismo” que suscitou tantos acontecimentos
discursivos e que serviu à produção de inúmeros textos humorísticos (principalmente sobre as
loiras). Da mesma forma, se explica o papel do homem e todas as imagens que se lhe
associam, como por exemplo, a de que as principais preocupações do homem são mulher,
carro e futebol. Tais imagens não só influenciam a forma como o próprio homem se vê, como
também a visão da sociedade como um todo.
Referindo-se às três instâncias que intervêm na atividade verbal, Maingueneau (2001)
vai identificar três competências distintas: a competência comunicativa, a competência
linguística e a competência enciclopédica. A primeira diz respeito à nossa aptidão para atuar
verbalmente nas diferentes situações de comunicação, recorrendo aos gêneros adequados e
tomando as atitudes esperadas de acordo com cada gênero. A segunda refere-se ao domínio da
57

língua para produzir e interpretar enunciados. E a terceira refere-se ao conhecimento de


mundo, e inclui, portanto, os imaginários, os estereótipos e todas as práticas compartilhadas
por cada grupo.
A comunicação em geral, e a publicitária e a humorística em particular, dependem em
grande escala da competência enciclopédica dos interlocutores, visto que é na sociedade que
se encontram os sentidos que em geral atribuímos ao humor, e é da sociedade que são
extraídos os sentidos que atribuímos à publicidade. Ter competência enciclopédica é saber
colocar os significados cristalizados em uma sociedade a serviço da comunicação, “o locutor
não pode se comunicar com os seus alocutários, e agir sobre eles, sem se apoiar em
estereótipos, representações coletivas familiares e crenças partilhadas” (CHARAUDEAU e
MAINGUENEAU, 2008, p. 216).
58

3. PUBLICIDADE: “Boa propaganda vende.”

Persuadir não é sinônimo de enganar; é o resultado de


certa organização do discurso que o constitui como
verdadeiro para o receptor. (MONNERAT, 2003, P. 43)

Anúncio 10 – Cerveja Nova Schin: “boa propaganda vende”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1826, de 29 de outubro de 2003, p. 34-35.

3.1 Uma breve retrospectiva: a publicidade no Brasil

De acordo com Santos (2005), a publicidade no Brasil era, inicialmente,


“predominantemente oral, com destaque para os pregões dos mascates e ambulantes”
(SANTOS, 2005, p.36), além dos anúncios feitos pelos padres durante as missas ou pelos
cegos que os recitavam pelas ruas. A publicidade impressa viria a surgir com a vinda da
família real portuguesa para o Brasil, em 1808, quando começou a ser publicado o primeiro
jornal do país, a Gazeta do Rio de Janeiro. Assim, surgiram os primeiros anúncios de
imóveis, leilões de tecidos, solicitação de serviços e principalmente de escravos (à venda e
59

foragidos). Ainda de acordo com este autor, “nesta primeira fase, a publicidade era bastante
rudimentar em seu aspecto estético, tanto textual quanto visual. Os reclames limitavam-se a
informar a disponibilidade de bens e serviços, não tinham a menor preocupação em atrair a
atenção dos leitores” (idem). De acordo com o Dicionário histórico-biográfico da
propaganda no Brasil (ABREU e PAULA, 2007), em 1822, com a independência do Brasil, a
imprensa brasileira se expandiu, fazendo surgirem novos jornais em todo o país, fato que
ampliou a veiculação de anúncios. Apenas no final do século XIX, com o advento de uma
concorrência proveniente do aumento da classe industrial e mercantil, as peças publicitárias
passaram a ser textualmente mais elaboradas. Apareceram, então, os primeiros anúncios
ilustrados e coloridos. Como informa Santos (idem), “os publicitários dessa época eram
artistas, escritores renomados e poetas, que criavam ‘quadrinhas’ para os produtos, cheias de
rimas e graças”, marcando um tom irreverente que ainda hoje predomina na publicidade
brasileira, como ilustra um anúncio da época, veiculado em bondes:

Olhe, ilustre passageiro,


O belo tipo faceiro
Que o senhor tem ao seu lado.
Entretanto, acredite,
Quase morreu de bronquite.
Salvou-o o Rum Creosotado
(LADEIRA, 1987, P. 138 apud SANTOS, 2005, p. 36)

De acordo com o Dicionário (idem), “Casimiro de Abreu foi o primeiro poeta a


escrever versos publicitários e assiná-los. Um pouco mais tarde, Olavo Bilac também se
dedicou a redigir anúncios em versos, como este: ‘Bacalhau feito na brasa/ Com cebolas de
Linhães/ Tudo isto tem na casa, / Na casa dos Guimarães.”
Com a fundação do Jornal do Brasil, em 1891, a publicidade ganha um novo formato,
os classificados. Eram avisos de compra e venda ou oferta de serviços, diferenciando-se dos
anúncios que veiculavam a venda de um produto por um comerciante ou industrial. Mas foi
no início do século XX que a publicidade passou por grandes transformações, impulsionada
pela modernização dos equipamentos gráficos que propiciou o surgimento não só de novos
jornais, mas também de revistas semanais e almanaques publicitários, como o Almanaque
Fontoura, que além da propaganda de remédios também dava ao leitor outras informações
úteis. “Foi em suas páginas que Lobato publicou a famosa história do Jeca Tatu, uma das
maiores peças publicitárias, que atravessou várias décadas” (ABREU e PAULA, 2007, p. 11).
60

Anúncio 11 – Almanaque Fontoura

Fonte: Almanaque do Biotônico, 1935, p. 4 (Apud GOMES, 2006, p. 1013)

Foi ainda no início do século XX, com a chegada de empresas multinacionais, tanto
européias quanto americanas, que se consolidou o espaço da publicidade brasileira. Neste
período, foram instaladas grandes agências estrangeiras que trouxeram um novo pensamento
publicitário, além de novas expressões que vigoram ainda hoje (layout, slogan etc.).
Outro grande impulso viria com o aparecimento das emissoras de rádio, que em pouco
tempo se transformaram no principal meio de publicidade, superando os meios impressos.
Logo, além de jingles, spots e telenovelas, vieram os primeiros programas patrocinados por
grandes empresas, que por meio da repetição de slogans, informavam sobre as qualidades do
produto e incitavam à sua compra. A partir da década de 1960, no entanto, o rádio perde sua
hegemonia, tendo de dividir espaço com a televisão que em pouco tempo se tornou o maior
veículo de publicidade do país, como nos informa o Dicionário (ABREU e PAULA, p. 14):
“a televisão se impôs como o maior veículo de publicidade a partir do final da década de
1960, quando passou a receber 43% das verbas de propaganda. A seguir vinham: revistas
(22%), rádio (15%), jornais (14,5%)”. Além do desenvolvimento das mídias em geral (jornais,
rádio e televisão), Monnerat (2003, p. 12) aponta “a irrupção da produção de massa” e “a
elevação do nível de vida médio, devido à intensificação dessa produção”, como responsáveis
pela força e estabilidade que a publicidade possui atualmente. Com a migração do campo para
as cidades e a formação da classe média urbana, houve grande demanda de bens de serviço e
de consumo, o que fez aumentar a produção de massa e o apelo ao consumo. O surgimento de
61

produtos como o rádio, os eletrodomésticos e a televisão modificou o comportamento


consumidor, criando novos padrões, novas necessidades, enfim, um novo status.

Dessa forma, a publicidade passa a ser um símbolo da abundância de produtos e


serviços que o progresso tecnológico coloca diariamente à disposição do homem. O
ponto crucial da questão é que, ao consumir bens, estamos satisfazendo, ao mesmo
tempo, necessidades materiais e sociais. Os objetos que usamos e consumimos
deixam de ser meros objetos de uso para se transformarem em veículos de
informação sobre o tipo de pessoa que somos, ou gostaríamos de ser. Nas palavras
de Barthes (1984), os objetos são “semantizados”. Cria-se, portanto, a noção de
status, conferido pela aquisição de bens ligados ao conforto e ao lazer. Os objetos
que a publicidade toca conferem prestígio, porque o produto anunciado extrai seu
valor menos de sua utilidade objetiva do que de um sentido cultural, servindo para
manter um status efetivo, ou sonhado. Torna-se, então, um fenômeno econômico e
social capaz de influenciar e modificar os hábitos de uma população no seu
conjunto. (MONNERAT, 2003, p. 12)

Atualmente, o número de publicidades que disputam a atenção dos consumidores é


cada vez maior e, devido a isso, cada anunciante procura destacar sua publicidade frente às
demais, recorrendo a diferentes estratégias, empregando diferentes recursos, procurando reter
a atenção do público e, principalmente, esforçando-se por manter o produto vivo em sua
memória. A publicidade atinge indivíduos de todos os estratos da sociedade, podendo
empregar estratégias diferenciadas de acordo com seus propósitos, podendo dirigir-se a um
mercado consumidor mais amplo ou concentrar-se em determinados grupos diferenciando-os
de alguma forma (por classe social, por faixa etária, por nível de escolaridade, por gênero
etc.).
Em geral, os termos “publicidade” e “propaganda” são usados indistintamente,
inclusive por alguns dos autores citados neste estudo. De acordo com Santos (2005, p. 15),
por exemplo, “as duas palavras podem se referir à atividade de planejar, criar e produzir
anúncios – daí, agência de publicidade ou agência de propaganda”. No entanto, há um
consenso de que se trata de termos distintos. Em geral, à propaganda associa-se a propagação
de princípios e ideias, normalmente sem finalidade comercial, enquanto publicidade visa à
comercialização de produtos com a finalidade de exercer alguma influencia sobre o público
consumidor. De acordo com Sandmann (2005, p. 10) “em português publicidade é usado para
a venda de produtos ou serviços e propaganda tanto para a propagação de ideias como no
sentido da publicidade. Propaganda é, portanto, o termo mais abrangente e o que pode ser
usado em todos os sentidos”. Neste trabalho, adotaremos o termo publicidade, uma vez que
nosso foco está voltado para anúncio com finalidades comerciais, que visam influenciar o
público-alvo a comprar um produto ou a adquirir determinado serviço etc.
62

A quantidade de publicidades que disputam o espaço midiático tem sido cada vez
maior. No entanto, o certo é que, desde suas origens até hoje, a publicidade se remodelou, seja
buscando atender as demandas sociais, seja devido à necessidade de se adequar às novas
mídias. De pregões e reclames orais rudimentares aos cada vez mais elaborados anúncios
publicitários que são veiculados nos diversos dispositivos midiáticos, a publicidade conta
agora também com a internet, que cada vez mais se consolida como veículo de comunicação e
como espaço de divulgação publicitária.

3.2 O gênero anúncio de revista frente a outros gêneros publicitários

Vimos no tópico anterior que um dos tipos de publicidade que primeiro circulou no
Brasil foram os anúncios orais – os pregões, os proclames, as declamações, os anúncios nas
igrejas etc. Com o avanço da modernidade, entretanto, os anúncios foram se modificando,
dando origem ao grande número de gêneros publicitários da atualidade, distribuídos nos
diferentes veículos midiáticos – jornais e revistas, TV e rádio, publicidades em espaços
públicos, internet. Cada um desses veículos reclama especificidades relativas ao formato, ao
conteúdo, ao estilo, à extensão etc. Por este motivo, ao longo dos tempos, as publicidades
sofreram modificações tanto em sua estrutura composicional (que de rudimentar e simples,
passaram a uma elaboração cada vez mais refinada, com a interação de diferentes linguagens)
quanto em seu estilo e em sua temática.
De acordo com Bakhtin (2000), toda esfera da atividade humana comporta certo
número de enunciados estabilizados pelo uso concreto, que de acordo com as condições
específicas de produção e com as finalidades de cada esfera, tornam recorrentes os conteúdos
temáticos, o estilo verbal aplicado e a estrutura composicional do enunciado. Ainda que cada
enunciado seja, para este autor, individual, ou seja, ainda que sua ocorrência seja um
acontecimento único, ele considera que cada esfera “elabora seus tipos relativamente estáveis
de enunciados” (idem, p. 279), ao que denomina gêneros de discurso. Sob esta perspectiva, os
gêneros aparecem como forma de ordenar e estabilizar as atividades discursivas de cada
esfera da atividade humana, colocando à disposição formas de expressar que facilitam a
comunicação cotidiana. No entanto, estas formas não são rígidas, elas tendem a sofrer
modificações decorrentes, por exemplo, de novas necessidades ou atividades sociais. Para
Maingueneau (2001, p. 65), “trata-se de rotinas, de comportamentos estereotipados e
anônimos que se estabilizaram pouco a pouco, mas que continuam sujeitos a uma variação
63

contínua”. É por isso que ao longo de sua história, os gêneros de discurso, e com eles a
publicidade, remodelam ou criam novas formas de enunciar, adequando-se aos diferentes
meios de veiculação e às novas necessidades. Ainda com base em Maingueneau (idem), todo
gênero de discurso constitui-se como atos de linguagem complexos (macroatos) 5, estando,
pois, sujeito a um conjunto de condições de êxito. Sendo assim, para que se efetive, um
gênero deve pressupor alguns elementos fundamentais – a finalidade, o estatuto dos parceiros,
o lugar e o momento de enunciação. A alteração em qualquer destes elementos provoca
também alteração no modo de enunciar, como salienta o autor no fragmento seguinte.

Um cartaz publicitário fixado à beira de uma via férrea é feito para ser visto
rapidamente, enquanto uma propaganda em uma revista é itinerante (pode-se ler um
periódico em qualquer lugar) e fica disponível ao leitor por tempo indeterminado. O
cartaz não constitui a "mesma" propaganda que a que aparece numa revista
feminina: seu público é indeterminado (qualquer pessoa que venha a andar de trem:
homens, mulheres, crianças, pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade...); já
a publicidade da revista feminina tem um público especificado. Essa diferença afeta
seu modo de consumo. Os leitores potenciais do cartaz podem não chegar a tomar
conhecimento dele e, de qualquer forma, não terão muito tempo, nem, talvez, desejo
de lê-lo. Nesse caso, o publicitário criador do cartaz deverá se contentar com um
texto simples, bem curto e com letras bem grandes. No caso da revista, ao contrário,
trata-se de "prender" a atenção instável do leitor que a folheia; nesse caso, propõem-
se pelo menos dois níveis de texto: por um lado, um fragmento curto em letras
grandes que condensa a informação e atrai o olhar; por outro, para o leitor que aceita
prosseguir, um texto com letras menores em que são desenvolvidos alguns
argumentos. (MAINGUENEAU, 2001, p. 67)

De acordo com Gonzales (2003), cada modo de veiculação (eletrônico ou impresso)


também estabelece suas próprias restrições, originando diferentes formatos de textos. A TV,
por exemplo, como dispõe de recursos como som, imagem, cores e movimento, veicula suas
mensagens publicitárias em forma de filmes ou videoteipes, conseguindo com isso maior
fascínio sobre as pessoas. O rádio que, assim como a televisão, possui grande poder de
abrangência se utiliza do som para a produção de suas mensagens publicitárias, criando spots
(textos interpretados), jingles (músicas) e textos falados pelos próprios locutores das
emissoras. Já a publicidade veiculada por meio de revistas e jornais adquire o formato de
anúncios impressos, que podem explorar palavras, imagens, espaço, cores etc. As revistas em
geral são destinadas a um público relativamente definido, fato que influi no tipo de anúncio
que será veiculado (uma revista destinada ao público masculino dificilmente veiculará
produtos de beleza destinados exclusivamente à mulher).

5
Retomaremos este assunto no quarto capítulo, quando abordaremos os macroatos de linguagem.
64

Constituindo uma esfera da atividade humana, a publicidade consiste na utilização de


diversos recursos ou linguagens, dentre eles a língua, que se atualiza por meio de enunciados
tanto orais como escritos, sob condições específicas e para a concretização de finalidades
específicas. Tais condições e finalidades, entretanto, estão em constante mutação,
dependentes de fatores sociais, econômicos, culturais e tecnológicos. De acordo com Campos-
Toscano (2009, p. 143),

os gêneros publicitários, como produtos de uma sociedade capitalista e em contínuo


desenvolvimento tecnológico, refletem essas constantes mudanças ao apresentar
enunciados variados (anúncios impressos, comerciais para televisão e, atualmente,
anúncios interativos na internet) que são alterados pelos meios técnicos, mas
também por valores sociais e culturais provocados por um processo de globalização
de mercadorias, economias e de culturas.

Os anúncios televisivos, por exemplo, devido ao meio técnico em que circulam, são
mais ágeis, dinâmicos e apelativos, mobilizando recursos diversos (som, imagem, cores
movimento etc.), enquanto os anúncios impressos precisam tocar a percepção visual do
alocutário. A TV, além de veicular anúncios publicitários que oferecem os mais diversos
produtos, também cria ou apresenta por meio de seus programas de entretenimento (novelas,
filmes etc.) padrões de vida, de beleza, de cultura, de saúde etc. que exercem sobre as pessoas
uma forte atração.

Anúncio 12 – Honda: “felicidade”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1976, de 4 de outubro de 2006, p. 20-21.


65

A publicidade televisiva apresenta personagens realizados e felizes por possuírem um


produto, ou por adquirirem um serviço. Já um anúncio impresso, como não dispõe dos
mesmos recursos audiovisuais, terá que explorar uma iconicidade fixa, além de fazer escolhas
linguísticas capazes de despertar o desejo de consumir, privilegiando a ideia de satisfação e
felicidade. Como ilustra o anúncio 12, a felicidade não está por aí, mas sim na aquisição do
produto oferecido. Adquiri-lo é ser feliz.
Cabe ressaltar que os diversos gêneros publicitários veiculados em diferentes meios
não exploram a linguagem da mesma forma: cada “peça publicitária” possui sua própria
estrutura composicional: os anúncios de revista ou jornal dispõem da língua escrita e de
recursos icônicos, um filme televisivo dispõe da língua oral e de recursos visuais, sonoros,
auditivos etc., o rádio realiza seus spots e jingles por meio sonoro. Confrontando um anúncio
de revista com um anúncio televisivo, por exemplo, podemos perceber que há entre eles
diferenças consideráveis quanto à forma de fazer interagirem as linguagens. De acordo com
Campos-Toscano (2009, p. 15),

as propagandas televisivas são construídas não somente pelos recursos linguísticos,


próprios do texto verbal, como também por uma linguagem sincrética, a saber:
recursos visuais como pinturas, desenhos e imagens, recursos sonoros como músicas
e entonações, recursos gestuais como danças e movimentos e recursos
cinematográficos como a posição e a movimentação da câmera, os ângulos filmados,
ou seja, os aspectos analógicos da produção televisiva.

O anúncio de revista, por mais que também tenha uma constituição sincrética, visto
integrar a linguagem verbal e a icônica, se configura de forma distinta. Nele, o signo verbal é
elucidativo, sua função será fixar ou complementar a significação da imagem que é, conforme
veremos no tópico seguinte, fundamentalmente conotativa. A criatividade do anúncio
televisivo depende em geral mais das linguagens não-verbais, ao passo que no anúncio
impresso, a criatividade se dá principalmente na interação entre o nível linguístico e o icônico,
convidando o leitor a ser co-construtor dos sentidos.
Bakhtin (2000) considera que os gêneros podem ser classificados em dois grandes
grupos: os gêneros secundários e os gêneros primários. Os secundários seriam os gêneros
mais complexos, como o romance e o teatro, que incorporariam os gêneros primários, mais
simples, como os gêneros do discurso cotidiano (uma conversa, por exemplo). Para Bakhtin
(idem, p. 281),

os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,


transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua
66

relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios
- por exemplo, inseridas no romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta,
conservando sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do
romance, só se integram à realidade existente através do romance considerado como
um todo, ou seja, do romance concebido como fenômeno da vida literário-artística e
não da vida cotidiana. O romance em seu todo é um enunciado, da mesma forma que
a réplica do diálogo cotidiano ou a carta pessoal (são fenômenos da mesma
natureza); o que diferencia o romance é ser um enunciado secundário (complexo).

De acordo com o autor, os gêneros da instância literária são secundários, pois se


configuram como enunciados que incorporam outros enunciados mais simples, cotidianos.
Adotando esta perspectiva, consideramos que os gêneros publicitários são secundários, uma
vez que muitas vezes incorporam gêneros pertencentes a outras esferas. Com efeito, ao
incorporar outros gêneros de discurso, a publicidade os subverte, submetendo-os à sua
finalidade primeira, vender: desde uma conversa entre amigos em um bar, até a demonstração
de um espetáculo circense ou a leitura de fragmentos de um clássico literário, tudo isso pode
aparecer integrado à estrutura do anúncio. Lembremos, a título de exemplificação, uma
publicidade do banco Bradesco divulgada no ano de 2011 que mostra trechos de um
espetáculo do Cirque Du Soleil, com o objetivo de associar sua imagem à imagem do
espetáculo.

Anúncio 13 – Bradesco: “Cique Du Soleil”.

Fonte: (imagem adquirida em site de busca na internet)


67

Ou ainda, uma publicidade televisiva do Boticário, veiculada no ano de 2005, em que


um menino tenta memorizar o famoso soneto de Camões “Amor é fogo...” para recitá-lo no
momento da entrega do presente (um perfume Boticário) que dará à namorada.6
Os anúncios impressos também incorporam gêneros de outras esferas, desde gêneros
primários como uma conversa a gêneros mais complexos do âmbito literário ou artístico,
como o anúncio 14, que adaptou um poema de Gonçalves Dias para anunciar uma novela (Pé
na Jaca, da Rede Globo, no ano de 2006). Ou ainda, como a peça publicitária da Bombril que
circulou em revistas e jornais, parodiando a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Em todos esses
casos, a incorporação confere ao produto a mesma legitimidade do gênero incorporado, que
em geral é reconhecido e valorizado socialmente.
Como veremos, adiante, no tópico 3.4, essa forma de configurar-se institui uma
cenografia, uma forma de apresentação do texto, isto é, escolhas que parecem ser a melhor
forma de dizer o que se pretende dizer.

Anúncio 14 – Rede Globo: “novela Pé na jaca”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1983. De 22 de novembro de 2006, p. 111.

A fenômenos como estes, Marcuschi (2008) denomina intertextualidade entre gêneros


ou “intergenericidade”; um gênero traz em si outro gênero que já faz parte da competência
enciclopédica da coletividade, sendo reconhecido como portador de certa legitimidade

6
Disponível em: http://www.vejatv.com/video-1578.O-Boticrio.html, consultado em: 19/11/2011, às 17:18.
68

enunciativa. Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 17) consideram que para que haja
intertextualidade “é necessário que o texto remeta a outros textos ou fragmentos de textos
efetivamente produzidos, com os quais estabelece algum tipo de relação”. Ainda de acordo
com as autoras, qualquer retextualização altera a força ilocucionária e o efeito
perlocucionário 7 do texto-base. Nestes casos, o que predomina é a função do gênero que
incorpora e não a forma do gênero incorporado, ou seja, independentemente de o anúncio
apresentar-se como um poema, sua função principal ainda é a de vender um produto.

Anúncio 15 – Bombril: “Mona Lisa”.

Fonte: (imagem adquirida em site de busca na internet)

Como já vimos anteriormente, para Bakhtin (2000) algumas das especificidades dos
gêneros dizem respeito a seu conteúdo temático, a seu estilo e a sua estrutura, que são em
geral, estabilizados, isto é, recorrentes dentro de uma sociedade. Sempre que se quer escrever
uma carta, tomam-se alguns parâmetros sobre a temática que se pode abordar (se um tema
institucional ou um tema familiar), sobre seu estilo (formal/informal) e sobre sua estrutura
(local, data, saudação, texto, despedida, assinatura) 8. No entanto, alguns gêneros, como os
publicitários, por mais que também possuam suas especificidades, são mais suscetíveis de se

7
Sobre força ilocucionária e efeito perlocucionário, veja-se capítulo IV desta dissertação.
8 Vale destacar que a estrutura de um gênero textual não é decisiva em sua constituição, uma vez que um texto
que apresenta a estrutura de uma carta, por exemplo, pode funcionar como uma publicidade, como um artigo
jornalístico, como uma propaganda política etc. Neste caso, é necessário considerar também, com base em
Marcuschi (2008), que para a especificação dos gêneros é necessário considerar aspectos relativos à sua função e
ao seu propósito social.
69

remodelarem captando outros gêneros (em geral de outras esferas comunicativas),


incorporando-os a seu modo de dizer (adotando-os como sua cenografia9).
Almeida (2002) acredita que a observação dos fenômenos de intertextualidade entre
gêneros pode ser feita sob três ângulos distintos: com base nos aspectos formais, no tipo de
operação ou no grau de vinculação. Um texto pode fazer referência a outros textos de modo
mais ou menos explícito, por meio de marcas textuais que evidenciam a presença de outros
discursos pré-existentes – aspas, itálico, verbos dicendi ou expressões correlatas. Quanto mais
marcas um texto apresenta, mais explícita é a intertextualidade, e ao contrário, quanto menos
marcas, mais implícita. Quando o texto não apresenta aspectos formais que facilitem a
percepção da intertextualidade, esta pode ser apreendida pelo reconhecimento de operações
como o encaixe, substituição, a adjunção e a alusão; ou ainda, pelo grau de vinculação que o
texto estabelece com o texto-fonte – quanto mais a retextualização se aproxima do texto de
origem, maior o grau de vinculação e quanto mais se afasta, menor. O resumo, por exemplo,
só se institui como gênero na medida em que se vincula ao texto que lhe serviu de base
através da temática, da esfera do conhecimento e do conteúdo veiculado. Uma publicidade, ao
contrário, não depende necessariamente de seu grau de vinculação, mas pode encaixar outros
gêneros em sua estrutura apenas para configurar sua enunciação.

Há casos em que a vinculação a um texto A é fundamental para um texto P, na


medida em que este se constrói “parasitariamente” em torno daquele, como acontece
com a resenha, o resumo, etc. Em outros casos, a referência a um texto A sob a
forma de citação ou de discurso relatado, não costuma ser necessária à identidade
de P, uma vez que o caráter dessa recorrência é muitas vezes ilustrativo.
(ALMEIDA, 2002, p. 98)

O anúncio 15, por exemplo, se constrói como uma paródia do poema de Gonçalves
Dias – temos neste caso, a mescla de dois gêneros distintos – o anúncio e o poema. Se o
observarmos enquanto paródia, veremos que ele não apresenta marcas formais específicas que
denunciem seu diálogo com o poema. Ele só será percebido como paródia se houver o
reconhecimento da estrutura do poema, se o alocutário ativar sua memória discursiva para
identificar o texto que serviu de base. O anúncio, entretanto, torna sua intertextualidade
explícita, quando apresenta o seguinte enunciado: “Livremente adaptado do poema “Canção
do exílio”. Uma homenagem a Gonçalves Dias”.
A intertextualidade é um tema que perpassa outros aspectos que também serão tratados
nesta dissertação: cenografia (4º tópico deste capítulo) e polifonia (3º tópico do capítulo 4).

9
Sobre cenografia, veja-se tópico 3.4 deste capítulo.
70

No entanto, ela não se confunde com estes. A polifonia é um conceito mais amplo, que
engloba a intertextualidade, como veremos. A cenografia, por sua vez, diz respeito ao modo
como o discurso se apresenta ao alocutário.
Qualquer texto publicitário, para ser bem sucedido, precisa alcançar pelo menos cinco
objetivos: 1º) despertar a atenção do consumidor, e para isso, lançará mão dos recursos de que
dispõe em cada um dos meios de veiculação (rádio, televisão, revista etc.), dos recursos
oferecidos pela linguagem (tanto a verbal como a não verbal) e da competência enciclopédica
que supõe ser comum à coletividade; 2º) criar interesse, por meio de cenografias atraentes,
convincentes e validadas socialmente, apresentando um ethos legitimado que seja reconhecido
como apto a enunciar o que enuncia; 3º) estimular o desejo, intensificando as qualidades do
produto, destacando sua supremacia sobre os demais, apresentando o produto como a única
forma de alcançar o status social privilegiado etc.; 4º) permitir a memorização, sendo criativo,
sucinto, bem-humorado etc.; e 5º) provocar a ação (ou a aquisição) do produto, sendo este
último objetivo, o menos controlável, uma vez que o sucesso dos quatro primeiros objetivos
não garante que o consumidor se sinta motivado a adquirir o produto ou tenha meios de fazê-
lo. Dialogar com outros gêneros, seja recorrendo à temática, ao estilo ou à sua estrutura, pode
ser uma forma bem sucedida de alcançar todos estes objetivos de uma só vez, despertando a
atenção, criando interesse, estimulando o desejo, permitindo a memorização e ainda levando o
consumidor à aquisição do produto.

3.3 A estrutura composicional do anúncio de revista

Estudiosos da comunicação social, voltados para o estudo da publicidade, consideram


que o anúncio publicitário compõe-se basicamente de um título, um texto, uma marca (ou
assinatura), uma imagem e um slogan. Essa estruturação não é rígida. Existem anúncios sem
imagem ou sem texto, slogans funcionando como título, anúncios constituídos apenas de
imagem e marca etc.
O primeiro contato do leitor com o texto se faz através do título, o qual, por isso
mesmo, deve ser eficiente em seu propósito de atraí-lo. Deve ser instigante e ao mesmo tempo
criativo. Em geral vem grafado em letras maiores e tem relação direta com a imagem,
delimitando sua significação, mas também sendo delimitado por ela. Segundo Gonzalez
(2003, p. 18),

no título, a preocupação principal não é com o conteúdo informacional sobre o


produto propagado, mas com o receptor; por isso, nesse enunciado, é frequente o uso
71

de recursos estilísticos e expressivos para criar o elemento-surpresa e a


personalização da mensagem verbal, tratando o consumidor como indivíduo e não
como um ser massificado.

A autora acrescenta ainda que um bom título precisa ter duas qualidades principais: ser
conciso e positivo. O desafio é, em poucas palavras, conseguir atrair o leitor e convencê-lo
das qualidades do produto, o que pode ser feito de modo direto, dando-lhe informações
essenciais, ou indireto, provocando-lhe a curiosidade, causando-lhe algum efeito adicional,
como estranhamento, surpresa, etc. Um título é em geral composto por um enunciado, cujo
sentido completo só pode ser atribuído dentro do contexto do anúncio, como no caso do
enunciado “Quem vê cara, não vê configuração” (anúncio 16, a seguir), cujo sentido está
intimamente relacionado ao anúncio do computador. Enunciados como esse, que dependem
do contexto de enunciação, são “um recurso muito empregado no texto publicitário, porque
remete à imagem nele contida, ou seja, é uma forma de ‘forçar’ o receptor/consumidor a olhar
para a imagem que, na maioria das vezes, é o produto propagado, e conhecê-lo, desejá-lo e,
consequentemente, comprá-lo” (GONZALES, 2003, p. 41). Além disso, são os enunciados
que servem de título do anúncio que estão sujeitos às inovações linguísticas, possibilitando a
criação de ambiguidades e polissemias que tornarão a mensagem original, econômica e
surpreendente. Dessa forma, um título se caracteriza por seu poder de condensar o maior
número de informações favoráveis ao produto anunciado, com o menor número de recursos
linguísticos.
O texto é a parte do anúncio que traz mais informações sobre o produto, argumentando
em prol de suas vantagens e benefícios, de modo a seduzir e persuadir o leitor. Ao contrário
do que acontece com o título, o texto não apresenta, necessariamente, recursos criativos que
causem alguma surpresa ou estranhamento, apenas tenta acrescentar provas, descrições,
motivos e outras informações que criem a convicção de que se está diante do melhor, do mais
recomendável, do mais econômico, do mais essencial de todos os produtos. É através do
texto, com a ajuda de recursos expressivos variados, que o locutor poderá construir a
cenografia do anúncio, determinando de que modo a mensagem será transmitida ao
alocutário.
A marca ou assinatura confere ao produto uma singularidade, é ela quem garante a
qualidade anunciada. Ainda com base em Gonzalez (2003, p. 23), ela pode ser nominativa,
quando faz uso de uma palavra específica, em geral o nome da empresa, da instituição ou do
produto; ou figurativa, quando recorre a um símbolo visual, a um desenho ou a um emblema.
Alguns anúncios podem ainda apresentar um slogan, que em geral, aparece abaixo da marca e
72

deve ser facilmente memorizável, constituindo-se de enunciados breves, marcantes, atraentes


e curiosos. A principal função do slogan é ajudar o consumidor a enxergar vantagens e a
identificar as principais qualidades do produto anunciado.
Título, marca, texto e slogan constituem a parte verbal do anúncio. Mas este também é
constituído por uma parte icônica que inclui, em geral, uma imagem, cuja função primordial é
captar a atenção do leitor, despertando-lhe interesse. Juntos, imagem e texto compõem a
mensagem publicitária, numa relação que tende a ser de ancoragem, ou seja, a linguagem
verbal funcionando como fixação dos múltiplos significados que a linguagem icônica pode
apresentar (BARTHES, 1990). Concordando com Monnerat (2003, p. 60), pode-se dizer que
“a estrutura da mensagem publicitária constrói-se sobre uma argumentação icônico-linguística
(...): tanto a mensagem icônica faz parte do texto (no sentido corrente do mesmo), quanto a
distribuição gráfica das palavras faz parte do icônico”. Em outras palavras, embora estejamos
diferenciando entre verbal e icônico, a formatação das palavras acaba sendo incorporada pelo
icônico: o tamanho das letras, seu formato e cores compõem juntamente com a ilustração, a
parte imagética do anúncio.

Anúncio 16 – Dell: “quem vê cara, não vê configuração”. TÍTULO: Quem vê cara, não vê
configuração.

IMAGEM: a parte traseira de um


computador.

SUBTÍTULO: À primeira vista é


só um computador, até a hora que
você olha o que tem dentro.

TEXTO: (com especificações


técnicas, preços e outras
informações sobre os produtos)

MARCA: DELL

SLOGAN: Líder mundial em


venda direta.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1682, de 10 de janeiro de 2001, p. 31.


73

Através de seu estudo, a imagem publicitária revela-se complexa, na medida em que


comporta diferentes planos de significação – o plano denotado e o plano conotado. Como
propõe Barthes (1990), toda reprodução analógica da realidade (fotografia, desenho, pintura,
cinema, teatro etc.) comporta duas mensagens: “uma mensagem denotada que é o próprio
analogon e uma mensagem conotada que é a maneira pela qual a sociedade oferece à leitura,
dentro de uma certa medida, o que ela pensa.” (idem, p. 13). A mensagem denotada baseia-se
na representação direta entre a imagem e a realidade retratada. No caso do anúncio acima, a
imagem reproduz analogicamente a traseira de um computador, esse é o plano denotado da
imagem. No entanto, ao ler o título do anúncio, é possível atribuir à imagem sentidos que
ultrapassam essa reprodução analógica. Tais sentidos dependem da maneira pela qual o
destinatário irá interpretá-la a partir do direcionamento dado pela informação verbal. É neste
sentido que “o texto é uma mensagem parasita, destinada a conotar a imagem, isto é,
“insuflar-lhe” um ou vários significados segundos” (BARTHES, 1990, p. 20). Desta forma, ao
deparar-se com a denotação da imagem anunciada e relacioná-la ao título dado, o leitor
interpretará que essa imagem não representa apenas a parte traseira de um computador, mas
sugere a outra face do computador, aquela que normalmente não se vê – a que guarda a sua
configuração e que no caso do computador anunciado, é tão importante quanto a “cara”, a
aparência externa, a parte da frente do computador.
Vê-se, pois, que a mensagem verbal, neste anúncio, serviu de âncora para a
interpretação da mensagem não-verbal, uma vez que o título do anúncio limitou o campo
significativo da imagem, que por natureza é necessariamente “polissêmica, e pressupõe,
subjacente a seus significantes, uma ‘cadeia flutuante’ de significados, podendo o leitor
escolher alguns e ignorar outros” (BARTHES, 1990, p. 32). Analisando a imagem
publicitária, Barthes (1990) distinguiu três mensagens: uma mensagem linguística, uma
mensagem icônica codificada (ou simbólica, conotada) e uma mensagem icônica não
codificada (ou literal, denotada). Inicialmente, vale lembrar que, como já dito antes, o
linguístico em uma publicidade aparece antes como parte da imagem, a própria palavra é
transformada em imagem juntamente com os signos icônicos. Mas ainda assim, a distinção
proposta por Barthes é relevante, uma vez que a mensagem linguística pode portar
informações distintas das outras duas mensagens, como se verá a seguir. Fazem parte do
linguístico o título, o texto, a assinatura e o slogan, sendo a mensagem icônica – tanto a
denotada quanto a conotada – pertencentes ao território da imagem. No entanto, é possível
que a imagem seja portadora de mensagem linguística quando apresenta emblemas, etiquetas,
placas, etc.
74

Após diferenciar a mensagem linguística da icônica, Barthes especifica dois tipos de


relação que o linguístico pode manter com a imagem: ancoragem e revezamento. “A função
de ancoragem consiste em deter essa ‘cadeia flutuante do sentido’ que a polissemia necessária
da imagem geraria, designando ‘o nível correto de leitura’, qual dentre as diferentes
interpretações solicitada por uma única imagem privilegiar” (JOLY, 1996, p. 109).
A ancoragem pode se estabelecer em dois níveis – tanto no nível literal quanto no
simbólico. No literal, a palavra pode fixar o campo denotado da imagem, pois “ajuda a
identificar pura e simplesmente os elementos da cena e a própria cena: trata-se de uma
descrição denotada da imagem” (BARTHES, 1990, p. 32). Com relação ao simbólico, explica
Barthes (idem, p. 33) que, no “nível da mensagem ‘simbólica’, a mensagem linguística orienta
não mais a identificação, mas a interpretação, constituindo uma espécie de barreira que
impede a proliferação dos sentidos conotados (...)”. Em ambos os casos, a palavra serve como
fixação – seja para esclarecer o valor denotativo da imagem, seja para guiar a interpretação do
simbólico conotado, visto que, conforme o próprio autor,

em publicidade, a significação da imagem é, certamente, intencional: são certos


atributos do produto que formam a priori os significados da mensagem publicitária,
e estes significados devem ser transmitidos tão claramente quanto possível; se a
imagem contém signos, teremos certeza que, em publicidade, esses signos são
plenos, formados com vistas a uma melhor leitura: a mensagem publicitária é
franca, ou pelo menos, enfática. (idem, p.28)

Se por um lado a imagem é polissêmica e precisa de ancoragem no linguístico, por


outro, “há coisas impossíveis de dizer sem recorrer ao verbal” (JOLY, 1996, 110), como por
exemplo, as indicações de tempo e lugar, as falas e pensamentos dos personagens postos em
cena. Nesses casos, a relação da palavra com a imagem é de complementaridade,
revezamento. Cabe, agora, à mensagem linguística “suprir carências expressivas da imagem,
substituí-la” (Idem, p. 110). O fato é que, tanto a ancoragem quanto o revezamento
evidenciam a importância da mensagem linguística para a interpretação da imagem
publicitária. Como conclui Monnerat (2003, p. 61), “a polissemia icônica na publicidade
necessita do texto linguístico para, através da redundância ou da complementaridade, fixar os
sentidos privilegiados, favorecendo a compreensão e a eficácia da mensagem”.
Como já dito, a relação entre a mensagem verbal e a imagem no anúncio 16,
anteriormente analisado, é principalmente de ancoragem – a mensagem linguística serve para
fixar a informação veiculada pela mensagem icônica, eliminando uma possível ambiguidade.
Há também a função de revezamento, visto que a alusão ao dito popular “Quem vê cara, não
75

vê coração” não poderia ser transmitido iconicamente, mas essa complementaridade é menos
evidente. Como informa o próprio Barthes (1985, p. 33), a ancoragem “é a função mais
frequente da mensagem linguística; é comumente encontrada na fotografia jornalística e na
publicidade”. O revezamento é a função mais rara na relação com as imagens fixas, sendo
mais encontrada nas histórias sequenciadas como as histórias em quadrinhos.
Essa relação entre o verbal e o icônico, baseada na ancoragem ou no revezamento,
contribui para constituir o que Maingueneau (2001) designou como cenografia. Como se verá
no tópico seguinte, a cenografia é a configuração que o falante dá a sua enunciação e é a
própria enunciação. A cenografia do anúncio publicitário é o resultado das linguagens que o
compõem, é a aparência final através da qual o anúncio cria uma imagem corporificada que
poderá ser reconhecida; é, por fim, a forma pela qual é possível dizer o que se quer dizer.

3.4 Cenografia e ethos: o que o anúncio coloca em cena?

Como visto até aqui, a estruturação de um anúncio se baseia na interação entre dois
tipos de linguagem: a linguagem verbal e a linguagem icônica. No entanto, uma vez
estruturado, o anúncio se apresenta como um texto complexo, que transmite um discurso
produzido em função de destinatários específicos, sendo, portanto, portador de um poder de
persuasão, cuja finalidade é influenciar de alguma forma o consumidor. Vimos também que
um anúncio pode dialogar com outros textos, recuperando discursos pré-existentes com a
finalidade de atribuir à sua enunciação a mesma legitimidade que era atribuída ao texto de
origem, como ocorre com os provérbios, cuja legitimidade decorre do senso comum. De
acordo com Maingueneau (2001, p.99), o “poder de persuasão de um discurso consiste em
parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores
socialmente especificados”. Esta corporalidade de que fala Maingueneau materializa-se
através da imagem social (ou ethos) que o enunciador constrói de si mesmo através de seu
discurso, imagem que remete a uma identidade que deve ser compatível com os valores
sociais inerentes ao mundo construído discursivamente, definido pelo autor como cena de
enunciação. Essa cena de enunciação constitui-se de uma instância comunicativa específica
(política, jurídica, religiosa, publicitária etc.), de uma estrutura composicional e de um estilo
determinados, e de um modo de dizer, que pode criar um mundo fictício que se aproxime das
demandas do mundo real. Desse modo, o ethos é a imagem que revela a personalidade do
enunciador e torna-se parte constitutiva de uma cena de enunciação expressa por atos tanto
implícitos como explícitos e presumida como adequada ao discurso e ao contexto.
76

A publicidade visa, com efeito, persuadir, associando o produto que vende a um


corpo em movimento, a um estilo de vida, uma forma de habitar o mundo; como a
literatura, a publicidade procura ‘encarnar’, por meio de sua própria enunciação,
aquilo que ela evoca, isto é, procura torná-lo sensível. (MAINGUENEAU, 2001, P.
100).

Uma das preocupações do texto publicitário será, então, criar um ambiente propício
para que seus propósitos se concretizem. Um ambiente em que a enunciação funcione como
uma representação das expectativas sociais e na qual a imagem do produto corresponda às
imagens socialmente estabelecidas. Com base nisso, se inventa, se escolhe e se coloca em
cena uma voz e uma imagem enunciativas consideradas capazes de convencer o destinatário
das virtudes e propriedades do produto num tom que, embora seja persuasivo, se mostra
natural. Esta cena deverá ser capaz de envolver o leitor, de fazê-lo identificar-se com os
valores sociais ali representados. Precisa, pois, ser autorizada, legitimada pelos procedimentos
enunciativos usados nos diversos discursos e gêneros da interação social. Temos, assim,
instaurada o que Maingueneau (2001) chama de cena da enunciação. Esta cena é construída a
partir de três planos que se complementam na constituição do discurso: uma cena englobante,
uma cena genérica e uma cenografia.
A cena englobante refere-se ao estatuto pragmático da situação comunicativa, no
sentido de que ela permite ao destinatário identificar o caráter de um texto, reconhecê-lo como
estando inscrito em um dado domínio – religioso, filosófico, jurídico, político, publicitário
etc. – e, portanto, vinculado a um certo tipo de discurso. Textos pertencentes a um mesmo
tipo de discurso podem se materializar de diferentes formas. O sermão de um padre, o livro de
catecismo, uma oração e uma prece, apesar de serem diferentes sob vários aspectos, são
discursos do tipo religioso. Esse primeiro plano da cena da enunciação corresponde ao que
Marcuschi (2008) define como domínio discursivo, ou seja, discursos formados a partir de
determinadas especificidades históricas ou sociais que instauram determinadas rotinas
comunicativas. No caso de uma publicidade, seja ela materializada através de suporte
radiofônico, cinematográfico, impresso ou qualquer outro, é no nível da cena englobante à
qual ela pertence que o destinatário pode antever um anunciante que, por meio de um
publicitário, se dirige a consumidores efetivos ou eventuais com finalidades específicas, como
promover o produto e salientar os motivos pelos quais tal produto deve ser adquirido. Ao
identificar o discurso como sendo do domínio publicitário, o interlocutor cria não só
expectativas, como também se prepara para interpretá-lo dentro de determinados modelos
existentes no âmbito social. Se em lugar de um discurso publicitário, o discurso for do tipo
77

religioso, mudam, por exemplo, as expectativas, as finalidades e os papéis sociais exigidos


pela cena englobante.
A cena genérica, por sua vez, refere-se às características constitutivas dos diversos
gêneros de discurso, que podem dizer respeito tanto aos papéis sociais, quanto às finalidades,
aos modos de organização, ao suporte material, à inscrição no tempo e no espaço etc. Esse é o
segundo plano da cena enunciativa e corresponde ao que Marcuschi (idem) define como
gênero textual – textos materializados socialmente, relativamente estáveis, que funcionam
como padrões recorrentes a determinadas situações comunicativas. Conforme Maingueneau
(2001, p.86), “cada gênero de discurso define seus próprios papéis: num panfleto de
campanha eleitoral, trata-se de um ‘candidato’ dirigindo-se a ‘eleitores’; em uma aula, trata-se
de um professor dirigindo-se a alunos etc.” A cena genérica direciona o enunciado, pois
permite antecipar um conjunto de informações que serão importantes para o alcance dos
sentidos. Assim, quando temos um anúncio de carro publicado em uma revista, saberemos
tratar-se de um discurso do domínio publicitário que, por meio daquele gênero específico – o
anúncio de revista –, converte o leitor em consumidor potencial do produto, fazendo-o
assumir, então, este novo papel social. Este leitor será levado a perceber que existe um
enunciador que por meio deste gênero buscará mecanismos de persuasão com a finalidade de
levá-lo à aquisição do produto anunciado. Uma campanha publicitária para um mesmo
produto, um dado automóvel, por exemplo, pode ser veiculada por diferentes gêneros:
outdoor, anúncio impresso em revista, anúncio radiofônico, encarte impresso etc. , todos eles
pertencentes à mesma cena englobante.
O conjunto destas duas cenas, a englobante e a genérica, compõem o quadro cênico
do texto, espaço estabilizado a partir do qual o enunciado vai adquirir sentido e deverá ser
interpretado. Todo e qualquer texto se constitui minimamente com base nestes dois planos
enunciativos. O quadro cênico é dado como a condição necessária para a comunicação. No
entanto, embora precise ter em mente este quadro cênico, nem sempre é com ele que o leitor
se depara ao ler um texto, mas sim com uma cenografia, uma forma de enunciar que não é
definida especificamente pelo quadro cênico, mas principalmente pelo próprio texto. Desta
forma, o sermão, por exemplo, pode ser enunciado utilizando-se diferentes cenografias – que
podem variar quanto ao tom (professoral, profético, amistoso), ao nível de língua (coloquial,
culto), ao tema abordado, à sua estruturação, etc. – ainda que o quadro cênico se mantenha
inalterado. Através da cenografia, a enunciação coloca em funcionamento seu próprio
dispositivo de fala, e ao mesmo tempo é a própria cenografia que legitima aquela enunciação.
Ela é o modo de dizer e ao mesmo tempo o próprio dizer.
78

A cenografia implica, desse modo, um processo de enlaçamento paradoxal. Logo de


início, a fala supõe uma certa situação de enunciação que na realidade, vai sendo
validada progressivamente por intermédio da própria enunciação. Desse modo, a
cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela
legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que essa
cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar
como convém, segundo o caso, a política, a filosofia, a ciência, ou para promover
certa mercadoria... (MAINGUENEAU, 2001, P. 87-88)

O discurso publicitário mobiliza, através de seus diferentes gêneros, diversas


cenografias, ao contrário de alguns gêneros que reduzem sua cenografia ao cumprimento de
sua cena genérica, como é o caso da maioria dos gêneros do âmbito administrativo, da lista
telefônica e da receita médica; ou de outros que embora possam dispor de cenografias
variadas, acabam cumprindo determinadas rotinas genéricas, como o guia turístico.
Vê-se, assim, que o anúncio publicitário é um texto que resulta de uma enunciação
que, por sua vez, implica uma determinada cena enunciativa. Esta cena, essencial para a
compreensão do texto, institui um enunciador que se adequa à cenografia proposta, revelando-
se como uma voz situada para além do texto; voz que encarna valores sociais projetando uma
imagem corporificada que torna legítima a enunciação. Essa imagem corporificada de valores
sociais que é transmitida pela enunciação é o ethos. Pode-se, pois, dizer que o ethos, é a
imagem de enunciador que o texto faz emergir através de sua cenografia. “Com efeito, o texto
escrito possui, mesmo quando o denega, um tom que dá autoridade ao que é dito. Esse tom
permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador (e não, evidentemente,
do corpo do autor efetivo)” (MAINGUENEAU, 2001, p. 98). Mas esse tom só pode ser
apreendido através da leitura que se realiza no contato do leitor com a cenografia instituída.
Por meio da cenografia se institui um mundo de valores socialmente valorizados e um ethos,
que remete a uma identidade compatível, fazendo com que os conteúdos enunciados não só
dependam da cenografia, mas sejam a própria cenografia, uma vez que ela se apresenta como
uma representação do mundo que se quer transmitir, mundo construído no discurso. Em
publicidade, a cenografia e o ethos aparecem inevitavelmente unidos, uma vez que é preciso
levar o consumidor a se identificar com os valores e com a imagem projetados.
Observando-se o anúncio 17, pode-se perceber bem essa relação estreita que há entre
cenografia e ethos.
O propósito do anúncio é divulgar um programa de financiamento de viagens
destinado a aposentados e a pensionistas. O publicitário procura despertar a atenção do leitor,
evocando uma cena imaginária sobre o que poderia ser um programa de viagens ideal. Para
tanto recorre a uma cenografia capaz de criar interesse e estimular o desejo de viajar,
79

projetando um ethos que legitima sua fala por meio da foto apresentada, como sendo a sua
própria foto e por meio do cartão de embarque em que aparece escrito “viajar renova” com
caligrafia vacilante como a de uma pessoa idosa, fazendo corresponder uma imagem de
aposentado feliz, jovial e de bem com a vida.
Embora seja necessário considerar o quadro cênico deste anúncio – trata-se de um
discurso publicitário e de um anúncio de revista – é, de fato, com a cenografia que o leitor se
depara ao lê-lo.

Anúncio 17 – Caixa: “viajar renova”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, outubro de 2007, p 84/85

A cenografia criada explora tanto a linguagem verbal quanto a linguagem icônica, de


modo que é a informação verbal que possibilita atribuir às imagens os sentidos pretendidos, é
a ancoragem no verbal que permite ver a imagem não como a de duas crianças de perucas
brancas e roupas de pessoas idosas tirando fotos em uma praia, mas sim como a imagem de
dois aposentados curtindo as férias com jovialidade. Tal cenografia instaura um ethos que
conhece bem o que é bom para os aposentados e pensionistas, fato que lhe confere autoridade
para dizer o que diz.
Além disso, este ethos mobiliza um tom que exala juventude, felicidade,
rejuvenescimento, fato legitimado não só pela linguagem icônica (dois idosos tornados
crianças), como também pela verbal: “viajar renova”, “uma boa viagem faz bem para o corpo
80

e para a alma” etc. Logo, para captar a atenção dos interlocutores a que se destina, o anúncio
escolheu transmitir o conteúdo por meio de uma cenografia (foto de viagem) na qual são
valorizados certos aspectos que se associam aos anseios do seu público-alvo. Nas palavras de
Maingueneau, o anúncio “coloca um corpo em movimento”, mobilizando certos aspectos do
dia-a-dia que lhe conferem legitimidade, constituindo uma cena validada, uma cena já
instalada na mente coletiva (brincadeira de criança).
Um texto publicitário pode apresentar cenografias bem diversas: um poema, uma
conversa entre amigos, uma obra de arte, uma charada, uma instrução de uso etc. Recordemos
os exemplos dados no tópico 2.2 em que um anúncio assume a forma de um poema, ou
subverte uma obra de arte. Vejamos ainda o anúncio seguinte (anúncio 18), cuja cenografia
adotada é a de verbete de dicionário: as imagens que o compõem remetem a cenas cotidianas
em que o produto anunciado pode ser consumido (cenas validadas), mas a cenografia é dada
pela parte verbal – os verbetes que definem enólogo e Polenghi, estabelecendo uma
comparação entre um enólogo e a marca do produto, ambos, especialistas.

Anúncio 18 – Polenghi: “enólogo”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2168, de 5 de junho de 2010, p. 26-27.

Os verbetes de dicionário, assim como os poemas e as obras de arte, são textos


legitimados na memória coletiva. Por tanto, ao serem captados pela publicidade, sua
legitimidade é transferida ao anúncio, conferindo-lhe um estatuto que se pretende próximo ao
81

conferido ao texto de origem. Os exemplos dados até agora ilustram casos de


intertextualidade que são fáceis de serem identificados, trata-se de uma foto de viagem
(anúncio 17), um poema (anúncio 14), uma obra de arte (anúncio 15) e verbete de dicionário
(anúncio 18). Mas nem sempre a cenografia pode ser especificada com exatidão, o anúncio
pode remeter a um conjunto de cenografias possíveis, ao que Maingueneau (2001) chama
cenografia difusa, como no caso do anúncio 16 (anúncio dos computadores Dell), que além da
subversão do provérbio (quem vê cara, não vê coração), também apresenta, no corpo do texto,
especificações técnicas sobre o produto e notas de rodapé com esclarecimentos adicionais
sobre as informações dadas.

3.5 A semiotização do mundo na publicidade

“Este deve ser o bosque”, murmurou pensativamente, “onde as coisas não têm
nomes”. [...] Ia devaneando dessa maneira quando chegou à entrada do bosque, que
parecia muito úmido e sombrio. “Bom, de qualquer modo é um alívio”, disse
enquanto avançava em meio às árvores, “depois de tanto calor, entrar dentro do…
dentro de quê?” Estava assombrada de não poder lembrar o nome. “Bom, isto é,
estar debaixo das… debaixo das… debaixo disso aqui, ora”, disse colocando a mão
no tronco da árvore. “Como essa coisa se chama? É bem capaz de não ter nome
nenhum… ora, com certeza não tem mesmo!” (CARROLL, 1980 apud FIORIN,
2008, p. 55).

Esta passagem de Através do espelho e o que Alice encontrou lá exemplifica bem a


relação das pessoas com o mundo, cuja existência só pode ser percebida por meio de
linguagem. Para estarmos no mundo precisamos significá-lo, transformá-lo em signo,
conceituá-lo, denominá-lo: bosque, árvores etc. Se de repente as coisas não têm nome, como
dizê-las? E ao não poder dizê-las como comunicá-las? “Isso significa que a realidade só tem
existência para os homens quando é nomeada. Os signos são, assim, uma forma de apreender
a realidade. Só percebemos no mundo o que nossa língua nomeia” (FIORIN, 2008, p. 55). No
entanto, não perceber o mundo não significa que ele não continue lá, existindo
independentemente do homem. É como se o mundo fosse um “estar aí” que, a princípio,
independe do sujeito, ainda que seja somente através desse sujeito que será apreendido e
transformado em signo. Mas, como o mundo é significado? Como as coisas se transformam
em signo?
Saussure (1972), como veremos no próximo capítulo, dedicou-se principalmente ao
signo linguístico, o principal dentre os sistemas semiológicos, mas não o único. Ainda que a
82

língua seja nosso filtro de apreensão da realidade, nossa relação com o mundo se constrói
também em torno de outros signos, além dos linguísticos.

É tal a distração que a aparente dominância da língua provoca em nós que, na maior
parte das vezes, não chegamos a tomar consciência de que o nosso estar-no-mundo,
como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de
linguagem, isto é, que nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de
formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; que somos também
leitores e/ou produtores de dimensões e direções de linhas, traços, cores... Enfim,
também nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais,
setas, números, luzes... Através de objetos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro
e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão
complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como
seres simbólicos, isto é, seres de linguagem. (SANTAELLA, 1983, p. 13)

Assim como ocorre com o sistema linguístico, estes outros sistemas de linguagem não
verbal também se conformam socialmente. São formas sociais de comunicação e significação
utilizadas para representar o mundo. A publicidade é um tipo de comunicação que explora
amplamente os signos sociais, criando a partir deles seu próprio mundo, isto é, um mundo
ressignificado de acordo com seus objetivos. Ao estudar a relação entre representações sociais
e humor, observamos que o humor também se vale destes signos sociais, com a diferença de
que no caso do discurso humorístico, estes signos são utilizados da maneira como constam no
meio social; na publicidade, ao contrário, o imaginário social e os signos que o constituem são
manipulados, reestruturados e devolvidos sob nova perspectiva. Vimos acima que há, nos
anúncios publicitários, interação entre os signos icônicos e linguísticos que os compõem, de
modo que o verbal pode ter tanto a função de ancoragem como a de revezamento. Vimos
também que essa interação colabora na construção da cenografia publicitária, possibilitando
que o leitor dialogue com um ethos que se assemelha às imagens de enunciador valorizadas
pelo corpo social. Acreditamos que seja essa a dinâmica de construção do mundo publicitário:
resgata-se algo já institucionalizado, familiar e legitimado socialmente por meio de signos
verbais e não verbais que serão reapropriados de modo a significar o que se quer que ele
signifique.
Cabe destacar, entretanto, que a partir do que compartilha com a coletividade, o
indivíduo pode apropriar-se dos signos sociais, ressignificando-os para outro indivíduo, pondo
em causa suas intenções, seus objetivos comunicativos etc. A semiotização do mundo instaura
duas instâncias de significação: a do sujeito que comunica e a do sujeito que interpreta, ambos
inscritos em uma situação comunicativa específica.
83

A comunicação publicitária, como mencionamos antes, reconstrói o mundo a partir de


sua própria lógica – é preciso levar o consumidor a identificar-se com este mundo, fazendo-o
querer ser parte dele. Alimenta-se, portanto, do imaginário social, dos desejos e motivações
do homem em sociedade, de sua forma de interagir com outros indivíduos e de sua percepção
do mundo, para recriar uma ficção do que seria um mundo ideal para o homem, um mundo
onde o homem conseguisse realizar todas as suas vontades e necessidades. Ela pode ainda se
apropriar do imaginário para subvertê-lo, sugerindo uma nova visão do mundo, novas
expectativas, novos comportamentos etc. A publicidade, em geral, explora o imaginário
social, influenciando os comportamentos e atitudes das pessoas, persuadindo-as.

Ao vermos um anúncio, sabemos que o que estamos vendo pode não ser verdadeiro,
mas é verossímil e nos convence com a sua lógica particular. Verossímil, é, portanto,
aquilo que se constitui em verdade a partir de sua própria lógica. Por isso, podemos
dizer que o discurso publicitário é “aproximativo”, não só porque manifesta um
conhecimento fragmentado do saber, que só se resolverá quando o consumidor
tomar posse do objeto concreto desse saber (o produto), como também porque não
intervém diretamente em condutas sociais precisas, apenas sugere uma arte de viver,
através de mecanismos de persuasão. (MONNERAT, 2003, p. 43)

O que é verossímil não é necessariamente real. “O verossímil é uma qualidade da


opinião, que a opõe ao verdadeiro. Ele corresponde [...] às representações, maneira de fazer,
de pensar e de dizer normais, coerentes, frequentes numa comunidade” (CHARAUDEAU e
MAINGUENEAU, 2008, p. 493). A verossimilhança é atribuída em função dos imaginários
que cada grupo compartilha. “As representações, ao construírem uma organização do real
através de imagens mentais transpostas em discurso ou em outras manifestações
comportamentais dos indivíduos que vivem em sociedade, estão incluídas no real, ou mesmo
dadas como se fossem o próprio real” (CHARAUDEAU, 2009, p. 47). No entanto, um grupo
social, por mais que compartilhe algum grau de imagens, símbolos e signos, não é homogêneo
– o imaginário de um adolescente e o de um idoso são, certamente, distintos, interferindo na
maneira de interpretar a realidade. Em decorrência disto, há uma pluralidade de crenças,
mitos, estereótipos, ideologias etc. que permeiam uma sociedade e que filtram os modos de
encarar o que seja ou não verdade, o que pode ou não ser aceito etc. Uma publicidade que
queira ser bem sucedida em sua investida comunicativa não deixa de observar tal fenômeno.
Se ela pretende ser bem-humorada, este detalhe torna-se ainda mais imperioso, uma vez que o
humor, como veremos, é uma potencial ameaça às faces tanto do locutor quanto do alocutário.
A publicidade televisiva das sandálias Havaianas, veiculada no ano de 2010, foi
supostamente retirada do ar devido à censura dos telespectadores ao fato de uma avó dizer à
84

neta que não estava falando de casamento, mas sim de sexo. Para algumas pessoas, o fato
inusitado foi fonte de humor e provocou o riso. Para outras, no entanto, o fato parece ter
chocado tanto que como consequência, o anunciante veiculou uma retratação, em que a avó
justificava o fato de o anúncio não estar mais circulando, mas informava que ele continuaria
disponível no site.

Anúncio 19 – Filme da avó das Havaianas

Fonte: WWW.youtube.com.br

A imagem da avó deste comercial – “moderninha” – vai de encontro à imagem de avó


que a sociedade tem; as avós são conservadoras, jamais aconselhariam a uma neta que o
casamento é algo ultrapassado, e principalmente, jamais tratariam da sexualidade com tanta
naturalidade. Disto resultou o riso que ele provocou, mas resultou também em uma falha
comunicativa, uma vez que não previu, por exemplo, que as avós não moderninhas, ou
mesmo as pessoas mais conservadoras, não compartilhariam da inovação que fere os
estereótipos que se tem sobre o que seja o comportamento de uma avó.
Neste caso, o publicitário não foi feliz em sua forma de significar o mundo
representado na publicidade, já que os signos sociais mobilizados não correspondiam
exatamente ao que era esperado pela sociedade e a comunicação acabou falhando. Assim,
confirma-se que de fato, ao construirmos nossos enunciados, temos que ter em mente, sempre,
nosso destinatário.
85

Com o objetivo de explicar esse mecanismo de semiotização do mundo que acontece


entre sujeitos, Charaudeau (2005) vai se referir a um duplo processo de semiotização do
mundo: um processo de transformação e um processo de transação. Estabelecendo-se um
paralelo com o que foi dito anteriormente, seria possível considerar que o processo de
transformação corresponderia à transformação de “um mundo ainda não signo” em “um
mundo signo”, dependente em grande medida do processo de transação, uma vez que o
mundo é transformado em signo para alguém; é a necessidade de comunicar que faz com que
um sujeito signifique o mundo para outro sujeito. Sendo assim, o processo de transformação
não ocorre independentemente do processo de transação, que é aquele que faz do “‘mundo
significado’ um objeto de troca com um outro sujeito que desempenha o papel de destinatário
deste objeto” (CHARAUDEAU, 2005, p. 14). Logo, os processos de transformação e de
transação, ainda que sejam processos diferentes, estão de tal forma interligados que um é
decorrência do outro.
Ao colocar-se em uma situação de comunicação publicitária, o publicitário precisa
estabelecer qual a melhor forma de significar o mundo para o consumidor destinatário. Assim,
atua inicialmente transformando o mundo em signo, traduzindo o mundo por meio da
linguagem (que pode ser de todo tipo: verbal, icônica, gestual, etc.), cuidando para que esse
objeto de troca seja adequado à relação que existe entre eles e o produto. Essa semiotização
não independe das representações que acompanham os signos. Como no caso ilustrado acima,
a “avó” é um signo de conservadorismo, mobilizá-lo de outra forma dentro do contexto
publicitário é transgredir o caráter convencional que o rege.
O processo de transformação ou a criação de um objeto de troca linguageira passa por
quatro tipos de operação: a identificação, a qualificação, a ação e a causação. A identificação
é a operação por meio da qual um sujeito falante apreende os seres do mundo, atribuindo-lhes
nomes e conceitos que os transformam em identidades nominais para que possam ser
comunicados ao interlocutor. A qualificação consiste em atribuir características e
propriedades aos seres, transformando-os em identidades descritivas, discriminando-os e
especificando-os de modo que sua existência seja motivada pela descrição que recebem. A
ação, terceira operação a que se refere o autor, consiste em transformar as identidades
nominais e descritivas em “identidades narrativas”, colocando-as como agente ou paciente de
uma ação que justifica sua razão de ser, ao fazer alguma coisa. A causação, por sua vez, é a
operação por meio da qual os seres já identificados, qualificados e participantes de uma
sucessão de fatos do mundo são postos em uma relação de causalidade.
86

Assim, numa notícia de jornal que tem por título: “Descaso: desaba o telhado de um
supermercado. 15 feridos”, a identificação é marcada por: “telhado”,
“supermercado” e “feridos”, com modos de determinação particulares desta
identificação : “o”, “um”, “15” ; a qualificação está incluída nas denominações
precedentes: “supermercado” (pela dimensão e peso), “feridos” (pelo estado das
vítimas) ; a ação está expressa por “desaba” ; a causação por “descaso”.
(CHARAUDEAU, 2005, p. 14)

No exemplo apresentado, os seres do mundo foram transformados em identidades


nominais, descritivas e narrativas sob o efeito de uma causalidade, mas tal transformação
ocorreu de acordo com as delimitações que a situação comunicativa impõe – trata-se do título
de uma notícia num jornal. Isso significa que havemos de considerar que há um sujeito que
comunica (o jornalista ou o editor) e há um sujeito que interpreta (os leitores do jornal) a
partir de sua localização num espaço e num momento específicos, e de intenções que devem
ser compartilhadas entre eles, fato que determina tanto a produção quanto a interpretação.
Caso o evento comunicado ocorresse entre sujeitos diferentes, o técnico que faz um relatório
ao seu supervisor sobre as causas do acidente, por exemplo, a transformação se daria de um
modo distinto: a identificação, a qualificação, a ação e a relação de causalidade seriam postas
em outros termos, o ato de linguagem criado teria outra configuração, as palavras escolhidas
para dizer seriam, provavelmente outras.
Se pelo processo de transformação o sujeito apreende o mundo transformando-o num
mundo significado, pelo processo de transação, o sujeito lança esse mundo significado a outro
sujeito, num movimento interligado que poderia ser representado da seguinte forma:

Fig. 1 – Processos de transformação e de transação (CHARAUDEAU, 2005, p. 14)

No entanto, o mundo significado, transformado em signo, objeto de troca linguageira,


não corresponde a uma representação única e exclusiva do mundo, uma vez que a cada nova
situação de comunicação se instaura uma nova relação entre os interlocutores, ou seja, se
promove um novo processo de transação com seus quatro princípios. Da mesma forma, um
mesmo enunciado produzido em situações diferentes corresponderá a atos de linguagem
87

diferentes, pois a cada nova situação o mundo significado terá uma nova correspondência,
como no exemplo apresentado por Charaudeau (2005, p. 16):

É sempre possível construir um enunciado que mobilize as diferentes operações do


processo de transformação, por exemplo: “sua batata está assando”. Mas o que tal
enunciado significa enquanto ato de linguagem? O que é que ele propõe como troca?
A qual jogo de transação ele corresponde? Significa que “o processo de cozimento
não terminou” e que sob a aparência de uma constatação “pede-se a alguém para
olhar o forno”? Ou que “o presidente perdeu a confiança em você e seu cargo está
ameaçado”? Ou que “sua mulher descobriu sua traição”? Ou que “o que você me fez
ontem, faltando ao encontro, não foi perdoado”?

Para determinar a que corresponde esse ato de linguagem faz-se necessário questionar:
1) “quem” se comunica com “quem”? – princípio de alteridade; 2) com que propósito se está
ali para comunicar? – princípio de pertinência; 3) Se comunica para dizer o quê, com que
objetivo? – princípio de influência; 4) Quais são as circunstâncias e que estratégias devem ser
adotadas para que a finalidade seja alcançada? – princípio de regulação.

Anúncio 20 – Naldecon: “dia e noite”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2063, de 4 de junho de 2008, p. 80-81.

Vejamos, no anúncio 20, como o icônico e o verbal, juntos, reapresentam o mundo


com base em uma cenografia legitimada, reconhecível pelo leitor e adequada às características
88

do produto anunciado. A identificação, neste anúncio, é marcada pelas figuras de um homem,


cuja referência está associada a qualquer pessoa que leia a revista, os objetos constituintes do
ambiente, que no primeiro quadro remetem a um ambiente de trabalho e no segundo, a um
quarto de dormir, além das palavras “gripe”, “dia”, “noite”, “Naldecon” constantes no
enunciado verbal, compondo assim uma cenografia que mobiliza um corpo em movimento,
ou melhor, remete a uma pessoa que sofra com os sintomas da gripe de dia e à noite. A
qualificação, além da palavra “cansado”, está incluída na imagem, na aparência que o
personagem demonstra ter, além das ovelhas que representam os efeitos da gripe. A ação,
além das expressões verbais “te deixa cansado” e “não te deixa dormir” também está indicada
na imagem que mostra as ovelhas passando uma a uma durante o dia e fazendo uma festa
durante a noite. Por fim, a causação é posta em função da gripe, é ela que causa as ações e
qualificações identificadas. As escolhas que configuram este anúncio, como já havíamos
mencionado, são decorrentes das propriedades do produto – trata-se de um medicamento que
combate os sintomas da gripe – e das informações que circulam entre os interlocutores – gripe
tira o sono à noite, deixa cansado durante o dia, para dormir conta-se “carneirinhos”, barulho
tira o sono etc. Assim, o produto anunciado é dado como uma solução para este mundo que a
publicidade recriou e que o consumidor reconhece como legítimo.
Referindo-se às mídias em geral, Charaudeau (2009) afirma que para dirigir-se ao
maior número de pessoas possível, é preciso despertar-lhes o interesse, tocando-lhes a
afetividade e distribuindo “no mundo inteiro as mesmas simplificações e os mesmos clichês”
(idem, p. 19). Ainda segundo o autor, “as mídias não transmitem o que ocorre na realidade
social, elas impõem o que constroem do espaço público” (ibdem); isto significa que as mídias
comunicam uma visão particular do mundo. O mesmo se pode dizer da publicidade, cujo
propósito de influenciar seu público determinará as formas como significará a realidade,
criando ficções construídas a partir de sua própria leitura do espaço público. Ainda baseando-
nos em Charaudeau (2009, p. 39), diremos que comunicar, informar, anunciar, tudo é escolha.

Não somente escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas
adequadas para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas
escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro, isto é, no fim das contas,
escolha de estratégias discursivas.

A publicidade lança mão de estratégias discursivas que captam do meio social suas
representações de real, ressignificando-as para os indivíduos de modo a torná-los cúmplices
por meio dos conhecimentos partilhados. Assim, a publicidade, para semiotizar o mundo,
89

baseia-se antes no processo de transação: é preciso ter em vista o público que se quer alcançar
antes de traduzir a realidade nos moldes publicitários. Assim, ao projetar sua enunciação
publicitária, o locutor recorrerá aos imaginários que supõe serem compatíveis com o
alocutário a quem se dirige e a partir dos quais formulará o mundo que acredita ser o
almejado, o do sonho e o do desejo do consumidor. As escolhas linguísticas que possibilitarão
a transformação do mundo em um mundo publicitário dependem da intenção do anunciante,
das características do produto e do público que ele quer alcançar – é com base nisto que se
projeta a cenografia, mundo construído para cativar e envolver o consumidor.
90

4. LINGUAGEM E AÇÃO: “chegou a hora de discutir a relação”

A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo


impossível conceber um sem o outro. (SAUSSURE, 1972)

Anúncio 21 – Quatro Rodas: “os eleitos”

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 568, de agosto de 2007, p. 127.

Observemos, inicialmente, três ocorrências da expressão “discutir a relação”: 1) “Você


e seu carro: chegou a hora de discutir a relação.”, 2) “Neste artigo, temos o propósito de
91

discutir a relação entre oralidade e escrita.” e 3) “Todo casal tem seu momento de discutir a
relação.”
Ao ler estes três enunciados, suspeitamos que a expressão “discutir a relação” possui
em cada um deles sentidos diferentes. No entanto, vemos que sua materialidade linguística é
exatamente igual nas três ocorrências. Assim, ao lê-las percebemos que entre algumas há
identidade e, entre outras, diferença. Mas, como determinar exatamente o que as torna
similares e o que as diferencia? Por que, ao ler o anúncio 21, a expressão “discutir a relação”
nos faz lembrar a terceira ocorrência, mas não a segunda? Neste capítulo abordaremos
conceitos teóricos que nos ajudarão a entender estas questões.
Buscaremos, para tanto, compreender a produção de sentidos tanto em seus aspectos
semiológicos, quanto em seus aspectos contextuais. Partimos do pressuposto de que os
sentidos que comunicamos em nossas interações verbais não dependem exclusivamente da
língua, como definida por Saussure (1972), nem dependem exclusivamente de fatores
externos à língua (os interlocutores, a situação, a ideologia etc.), mas de uma interdependência
entre eles. Assim sendo, precisaremos observar tanto os aspectos inerentes ao sistema
linguístico, que nos possibilitarão entender fenômenos como a homofonia, a homonímia, a
paronímia, a ambiguidade e a polissemia, quanto os aspectos pragmáticos, como o valor
ilocutório de um ato de fala, os pressupostos e subtendidos do enunciado, a cooperação dos
interlocutores etc., aspectos dependentes do contexto comunicativo.
A relação entre linguagem e ação, ou entre aspectos linguísticos e contextuais, tem
sido considerada há bastante tempo. Não restam dúvidas atualmente de que o corte
saussuriano foi um marco importante para os estudos linguísticos. Naquele momento, a
criação de um objeto específico para a linguística (la langue) foi imprescindível para que a
linguística pudesse se constituir cientificamente. No entanto, ao estabelecer a língua como
objeto da linguística, Saussure (1972) excluiu a fala (la parole) e, consequentemente, o sujeito
e a relação da linguagem com o mundo. Ainda que, já naquele momento, postulasse que a
língua e a fala eram dois lados de uma mesma moeda, ele considerou que a fala, por ser
heterogênea e dependente da realização individual do falante, sofria modificações que
impossibilitavam um estudo sistemático, ao passo que a língua, conceituada como um sistema
de signos de caráter social, homogêneo e abstrato que está internalizado na mente do falante,
era suscetível de análise científica. Esta outra face da linguagem, no entanto, não foi
esquecida. Um dos primeiros linguistas a voltarem sua atenção para este outro gume da
linguagem, a fala, foi Charles Bally, que, de acordo com Flores e Teixeira (2008), se
interessou por questões linguísticas que enfatizam o uso diferenciado da língua como forma
92

estilística de expressar sentimentos subjetivos. “Isso significa que a estilística deve se


preocupar com a presença da enunciação no enunciado e não apenas como o enunciado
propriamente dito” (FLORES & TEIXEIRA, 2008, p. 16).
Também Émile Benveniste procurou estudar a fala, ainda que a visse desde uma
perspectiva estruturalista. Para este autor, a língua abriga a fala, e ao apresentar o aparelho
formal da enunciação, mostra que a língua possui estruturas destinadas a serem preenchidas
pela interação – é o caso dos pronomes, dos dêiticos e de algumas formas verbais.
Vemos, então, que com os avanços dos estudos linguísticos, a fala ganhou seu lugar de
destaque como objeto de estudo da linguagem. É neste sentido que a pragmática ganha espaço
nos estudos linguísticos. Ela passa a considerar as gramáticas das línguas em relação com os
atos que se realizam na fala; passa a analisar a linguagem como ação, considerando que dizer
é fazer. Dentre as preocupações da pragmática, podemos incluir todos os processos
linguísticos relacionados ao uso da língua, bem como a relação entre a linguagem e os
falantes.
De acordo com Kerbrat-Orecchioni (2005), a pragmática apresenta diversas
perspectivas, dentre as quais se destacam a linguagem em situação e a linguagem em ação. A
linguagem em situação é o objeto da linguística (ou pragmática) da enunciação, cujo interesse
está voltado, conforme Émile Benveniste (1976), seu percussor, para o funcionamento da
“subjetividade da linguagem”. Segundo o próprio Benveniste (1976:286), a ‘subjetividade’ de
que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’. Nesta perspectiva,
ao dizer “eu” o locutor estabelece um “tu” alocutário, localizado espacialmente “aqui” e
temporalmente “agora”. É em oposição a este “eu” que centraliza as marcas de pessoa (eu-tu)
que surgirá também o “ele”, a não-pessoa que se menciona no discurso. Essa não-pessoa pode
referir-se tanto a um indivíduo como a uma coisa. Nas palavras de Benveniste (1976: 288),

os pronomes pessoais são o primeiro ponto de apoio para essa revelação da


subjetividade na linguagem. Desses pronomes dependem por sua vez outras classes
de pronomes, que participam do mesmo status. São os indicadores da deixis,
demonstrativos, advérbios, adjetivos, que organizam as relações espaciais e
temporais em torno do ‘sujeito’ tomado como referência: ‘isto, aqui, agora’ e as suas
numerosas correlações ‘isso, ontem, no ano passado, amanhã’, etc. Tem em comum
o traço de se definirem somente com relação à instância de discurso na qual são
produzidos, isto é, sob a dependência do eu que aí se enuncia.

A segunda perspectiva apontada encara a linguagem como forma de ação sobre o


contexto interlocutivo por meio dos atos de linguagem. Nesta linha de estudos, dois
importantes nomes são apontados como precursores: John L. Austin (1962 apud KERBRAT-
93

ORECCHIONI, 2005) e Jonh R. Searle (1972 apud KERBRAT-ORECCHIONI, 2005). Ainda


que não tenha sido Austin o primeiro a afirmar que dizer é fazer, atribui-se a ele os
fundamentos da pragmática linguística com a sistematização dos atos de linguagem. Essa
teoria seria aprofundada posteriormente por Searle, que ofereceu uma nova maneira de
observar como são produzidos os sentidos de um enunciado.
Segundo Reyes (1994, p. 15), a pragmática estuda não só a nossa maneira intencional
de produzir significados quando tomamos a linguagem em uso, como também os princípios
que regulam os comportamentos linguísticos dedicados à comunicação. Dentre tais princípios,
podemos destacar o de que há na interação certa intencionalidade que se dirige a um fim,
levando os falantes a agirem cooperativamente na produção de sentidos. Assim, os
interlocutores acabam participando em uma atividade que consiste em produzir sentidos
através da linguagem, mas sem se deterem exclusivamente nela, pois mesmo quando um
enunciado se apresenta linguisticamente incoerente, tais interlocutores buscarão dar-lhe algum
sentido ancorando-o na situação comunicativa.
A sintaxe estuda as regras de formação das orações, a semântica estuda a natureza e o
significado de palavras e orações, suas relações sistemáticas (sinonímia, implicação,
contradição, etc.) e analisa a ambiguidade em palavras e orações. Já a pragmática estuda os
princípios de produção de significados que não estão inscritos exclusivamente na estrutura da
língua. Imaginemos, por exemplo, que marido e mulher estão em uma festa. A certa altura ela
diz ao marido: “Você sabe que horas são?” O marido, automaticamente, interpreta que sua
mulher quer ir embora e responde algo como “iremos quando você quiser”. Neste caso, nada
propriamente linguístico na pergunta da mulher remete para a interpretação feita pelo marido.
Baseado no contexto, ele foi levado a interpretar mais do que o que realmente foi dito. A
mulher poderia até estar perguntando realmente as horas, e então corrigi-lo dizendo que
queria apenas saber a hora mesmo, mas isso não torna a interpretação do marido incoerente.
Por isso, as análises sintática e semântica da linguagem possibilitam compreender alguns dos
mecanismos de produção dos sentidos, mas não explicam tudo, visto que, ao se dizer algo se
comunica, em geral, mais do que somente aquilo que está realmente expresso pelo conteúdo
linguístico da frase ou do texto enunciado.

4.1 Aspectos semiológicos da produção de humor


94

Como já postulava Bergson (1987), a linguagem pode ser apenas o veículo do humor,
ou pode ela mesma ser o motivo do humor. Da mesma forma, Freud (1987) subdividiu seus
chistes em verbais e de pensamento, sendo estes relativos ao conteúdo que a linguagem
permite transmitir, e aqueles, decorrentes da própria expressão linguística. O humor
produzido no âmbito do conteúdo requer, em geral, conhecimentos que ultrapassam o âmbito
da língua, como o conhecimento sobre a situação e sobre os interlocutores. Mas o humor
produzido por meio de manipulação do material linguístico pede algum entendimento do
funcionamento da língua para que se possa entender onde reside a graça sugerida. Decorre
deste fato que muitas vezes o humor produzido por meio de manipulação de material
linguístico não possa ser traduzido ou percebido por um falante de outra língua, uma vez que
cada língua é, como definida por Saussure (1972), “um tesouro” depositado na mente dos
falantes que pertencem a uma mesma comunidade, logo, falantes de comunidades diferentes
terão tesouros diferentes. No entanto, as línguas não são estanques, estão sujeitas a uma
evolução constante decorrente dos usos que cada indivíduo ou grupo de indivíduos faz dela ao
longo do tempo. Neste aspecto, a língua se mostra como um material manipulável que se
molda às necessidades do falante. É esta manipulação do material linguístico que possibilita a
produção do humor verbal, como veremos.
Inicialmente, interessa ressaltar que para Saussure (idem), tanto a língua quanto a fala
são atividades psíquicas levadas a cabo por indivíduos durante a interação verbal. A principal
diferença entre esses dois conceitos é devida ao fato de que a fala envolve o psíquico
individual do falante, que é o responsável pela execução linguística; ao passo que a língua
envolve o psíquico coletivo, uma espécie de depósito linguístico acessível a todos,
possibilitando aos indivíduos a comunicação, o que Saussure chama de recepção linguística.
Pode-se, assim, concluir que a língua se constitui a partir da fala, ganhando certa estabilidade
que a torna relativamente autônoma, uma vez que a coletividade armazena as imagens verbais
recorrentes e passa a utilizar-se deste armazenamento sempre que precisa.

Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos


pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente
em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos,
pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo
completo. (SAUSSURE, 1972, p. 21)

Neste sentido, o signo linguístico é uma realidade psíquica sediada no cérebro de


indivíduos que o adquiriram coletivamente por meio da fala. A língua, por sua vez, é o
conjunto que reúne todos esses signos para que eles possam servir à expressão de ideias. Nas
95

palavras de Saussure (idem, p. 27), “a língua é necessária para que a fala seja inteligível e
produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça;
historicamente, o fato da fala vem sempre antes”: a língua é ao mesmo tempo instrumento e
produto da fala.
A produção dos signos que constituem a língua é, pois, o resultado de uma soma de
sinais individuais resultantes do que as pessoas utilizam para se comunicar. Tais sinais
guardam similaridades acústicas e conceituais que se fixam, passando a fazer parte do
conjunto que forma a língua do grupo. Uma vez fixados, esses signos ganham independência
dentro do sistema linguístico e passam a formar unidades suscetíveis de serem analisadas em
si mesmas ou na sua relação com outras unidades. Chamaremos características internas os
fenômenos observados no signo em si mesmo; e características externas os fenômenos
observados na relação de um signo com outros.
Conforme Saussure (idem) o signo linguístico significa por si só e pode ser considerado
como um domínio fechado em si mesmo. Observando-se o signo em sua interioridade,
podemos, então, enumerar algumas especificidades que fazem parte de sua natureza. Primeiro,
o signo significa a partir da associação entre duas partes indissociáveis, o significado e o
significante, termos que correspondem respectivamente ao conceito e à imagem acústica,
ambos resultantes de atividades psíquicas. O signo dado como a correlação recíproca entre o
significado e o significante decorre do entendimento de que a língua elabora suas unidades ao
constituir-se entre duas massas amorfas independentes, como ilustrado por Saussure (1972, p.
131):

Fig. 2: Da constituição do pensamento em duas massas amorfas ao signo linguístico.

Segundo, o signo linguístico é arbitrário, pois a relação que une o significante ao


significado não é motivada, mas dada convencionalmente pelo grupo social. É nesta
96

convenção que reside a significação do signo. E, terceiro, o significante possui caráter linear,
portanto se desenvolve em uma sequência espaço-temporal, ao contrário dos significantes
visuais que se desenvolvem de forma não linear.
Por outro lado, o signo também pode ser analisado em sua exterioridade, em sua
associação e combinação com outros signos, dando origem à noção de valor linguístico.
Saussure (1972, p. 133), ressalta que valor e significação não se confundem: enquanto a
significação se situa no interior do signo, na relação que ocorre entre o significante e o
significado, o valor tem origem na relação externa de um signo com outros signos dentro do
sistema linguístico, como na ilustração seguinte:

Fig. 3: Os contornos do signo.

Relativamente às características internas do signo, o conceito é a contraparte da imagem


acústica; nisto consiste a significação. Quanto às suas características externas, podemos dizer,
com base em Saussure (1972), que um signo em sua totalidade é a contraparte de outro signo
também considerado em sua totalidade, visto que um signo é o que os outros não são; disto
resulta o valor linguístico que pode se estabelecer tanto em termos de encadeamentos no eixo
sintagmático, proveniente de seu caráter linear, como em termos de associações, proveniente
do eixo paradigmático.

Para ilustrar o exposto até aqui, tomemos a seguinte imagem: .


Assim, isolada, ela nada significa. No máximo, com algum esforço, nos faz lembrar
algo de familiar, como um número, ou nos faz acreditar tratar-se de algum símbolo
pertencente a outra língua etc. O desenho aí formado não tem, inicialmente, significação,
logo, não é um signo: pode-se identificar um significante, mas não se pode atribuir-lhe um
significado, uma vez que não faz parte do sistema convencionalmente aceito. Além do que,
não se opõe ou se relaciona com nenhum outro signo, nem sintagmaticamente, nem
paradigmaticamente.
No entanto, no anúncio 22, este desenho aparece circunscrito em um conjunto, cujas
unidades estão em relação recíproca umas com as outras, possibilitando que ele ganhe não só
significação como também um valor linguístico, constituindo-se como signo.
97

Anúncio 22 – Natura: “40 anos”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2134, de 14 de outubro de 2009, p. 14-15.

Primeiro, neste anúncio, o desenho em questão adquire o valor da letra “a”, a partir de
uma relação associativa – de todas as letras que podem ocupar seu lugar, a letra “a” é a única
possibilidade de transformar a sequência da qual faz parte em uma palavra da língua
portuguesa. Tal valor também foi adquirido com base em uma relação recíproca, no eixo
sintagmático, em que um signo contribui para a significação do outro. Num segundo
momento, relacionando este desenho não mais com as letras que conformam a palavra
“obrigado”, mas sim combinando-o com a palavra “anos”, é possível atribuir-lhe valor
numérico (40 – quarenta), com base em uma relação sintagmática que se estabelece entre os
dois segmentos, donde se interpreta “quarenta anos”. O mesmo acontece com o anúncio
seguinte, em que homens segurando bolas assumem o valor da letra “i”, valor que é dado
pelas outras letras que constituem a palavra “ilimitado”. Veja-se que, por tratar-se de textos
escritos, além da linearidade dos significantes que aparecem, os anúncios também exploraram
a espacialidade visual, fazendo com que a atribuição de sentido para os desenhos dependesse
dos dois aspectos.

Anúncio 23 – Tim: “ilimitado”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2239, de 19 de outubro de 2011, p. 44-45.


98

O que ocorre com os desenhos acima, cujos valores são dados pela coexistência de
outros elementos, também ocorre com as palavras, esse é o seu mecanismo de funcionamento
enquanto signo em si mesmo e em sua relação com os outros. Se, por um lado, o valor de um
signo é convencional, dado pelo grupo social, por outro, nunca estará totalmente determinado,
pois dependerá sempre da relação recíproca com os outros elementos da língua, tanto no eixo
paradigmático quanto no sintagmático. Ainda que seja criativo, o recurso ilustrado acima não
chega a ser necessariamente um exemplo de construção humorística. No entanto, como
veremos a seguir, há casos em que a construção dos efeitos humorísticos explora essa
possibilidade de os sentidos deslizarem na relação que os signos estabelecem entre si.
A relação entre o significante e o significado, bem como a relação do signo com outros
signos são potencialmente fontes de jogos de palavras que podem criar efeitos humorísticos.
Tais jogos de palavras são fundamentados em equívocos criados intencionalmente, com
objetivo lúdico.
Dentro da perspectiva dos estudos semânticos, Bernard Pottier (1978) apresenta outra
forma de tratar os signos. Ele ainda considera com Saussure (1972) que o signo se divide em
significante e significado, em uma relação de interdependência, mas opera uma subdivisão no
âmbito do significado, considerando-lhe a forma e a substância, como mostra o esquema
seguinte:

Substância do significado Forma do significado


(Se) (Si)
Significante
(Sa)

Fig. 4: O modelo de signo linguístico para Pottier (1978, p. 26)

Com base no esquema apresentado acima, ele estabelece três planos distintos: 1) o plano
da semântica (Se), decorrente da substância do significado, 2) o plano da sintaxe (Si),
decorrente da forma do significado e 3) o plano da significância (Sa), decorrente do
significante. No plano semântico estão situados os sememas, conjuntos de traços distintivos
chamados semas. No plano sintático, os morfemas, unidades mínimas de forma, que podem
ser tanto lexicais como gramaticais. E no plano da significância, os fonemas, responsáveis
pela expressão.
99

Analisando o plano semântico, teremos então que um semema é igual a um conjunto de


semas (sema1, sema2, ..., sema n). Por exemplo, “o semema de cadeira comporta os semas
S1, S2, S3, S4 (“com encosto”, “sobre pernas”, “para uma só pessoa”. “para sentar-se”);
observa-se que a adjunção de um sema S5 (“com braços”) realiza o semema de poltrona”
(DUBOIS, 2007, p. 534). Esta descrição do plano semântico tem não só a vantagem de
evidenciar traços semânticos que os signos possam ter ou não em comum, mas também de
evidenciar traços que o signo possa adquirir ocasionalmente, possibilitando a conotação.
Quanto à sua natureza, os semas podem ser de dois tipos distintos: denotativos e conotativos.
Os semas denotativos são estáveis e derivam da ampla aceitação social; os semas conotativos
são instáveis e derivam, em geral, de uma escolha individual, ou pelo menos com menor
aceitação social, por isso, só podem ser determinados contextualmente. Os semas denotativos
podem ser específicos ou genéricos. Os específicos permitem distinguir sememas vizinhos
(exemplo: bicampeão e tricampeão: semas /duas vezes/, /três vezes/). Os semas genéricos
permitem identificar e incluir esses dois sememas em uma mesma categoria (em bicampeão e
tricampeão, são semas genéricos, por exemplo,/vencedor/, /humano/). Os semas conotativos,
por sua vez, são caracterizados como semas virtuais, que constituem os elementos variáveis
da significação de uma palavra e só poderão ser atualizados no momento da comunicação.
A observação do signo por meio de seus diferentes planos nos possibilita explicar
alguns jogos de palavras que são empregados nos textos humorísticos. Tomemos como
exemplo, a seguinte piada:

Um corcunda, ao folhear o jornal se depara com o seguinte anúncio: "Tiro corcundas


com um limão." Encantado com a possibilidade de ver desaparecer a sua
deformidade física, o corcunda apressa-se a dirigir-se à morada indicada no anúncio.
- Foi daqui que puseram um anúncio a dizer que eliminam corcundas?
- Foi sim senhor. O senhor está interessado em recorrer aos meus serviços?
- Evidentemente que sim. Mas diga-me uma coisa: É mesmo verdade que o senhor
tira corcundas com um limão?
- Claro que sim. Ou você queria que fosse com uma liminha?
(MOUTA, 1996, p. 77)

Nesta piada, o humor deve-se ao fato de que a expressão “um limão” remete a duas
possibilidades interpretativas, ainda que uma seja menos evidente que outra: inicialmente não
coloca em dúvida tratar-se do fruto, interpretação que logo teve que ser rejeitada ao se opor a
“liminha” (lima pequena). Uma análise sêmica dos termos nos mostra que no que diz respeito
ao significado não há nenhuma similaridade entre as duas palavras, apenas no que diz respeito
ao significante. No plano semântico, por exemplo, não se pode depreender nenhum sema em
comum. Quanto ao plano da sintaxe, trata-se de duas formas distintas: a primeira constitui-se
100

de um morfema lexical que não deriva de nenhum outro – “limão” é um substantivo


designativo de fruto do limoeiro; a segunda, no entanto, combina duas formas distintas, os
morfemas [lim-] e [-ão] – [lim-] que indica tratar-se de uma forma derivada de “lima”,
substantivo designativo de ferramenta usada para eliminar as imperfeições de metais e outros
materiais, e [-ão], morfema em geral adicionado a uma base lexical para indicar aumentativo.
A similaridade entre as duas palavras ocorre, pois, fora do âmbito do significado, em
seu plano significante. “Limão” – fruto – e “limão” – lima grande – são, pois, duas palavras
homônimas, que possuem significados distintos, mas significantes idênticos. A construção do
humor na piada explorou essa similaridade fônica entre as palavras, fazendo com que uma
mesma forma acústica e gráfica pudesse remeter a dois signos diferentes, cujos sentidos foram
atualizados em contexto. É neste sentido que Freud (1987) nos diz que um chiste é fonte de
prazer porque surpreende a partir da economia de energia psíquica. Se quiséssemos dizer a
mesma coisa de outra forma, teríamos que despender muito mais esforço intelectual e ainda
não conseguiríamos o mesmo efeito risível.
Os jogos de palavras, em geral, são resultantes de alguma relação estabelecida entre
duas formas linguísticas, seja no âmbito do significante, seja no âmbito do significado: pode
ser uma similaridade fônica, uma identidade significativa, uma múltipla possibilidade de
significados etc., fatos que estão na base de fenômenos como, a homonímia, a paronímia ou a
polissemia. Ilustremos. Comecemos pela observação do seguinte anúncio:

Anúncio 24 – Ford Focus: “mal começou X começou mal”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 601, de fevereiro de 2010, p. 6-7.


101

Observemos as expressões “mal começou” e “começou mal”, do anúncio 24, acima. O


sentido dessas expressões depende da posição de seus termos. Cada combinação resulta num
sentido diferente porque seu valor deriva da ordem em que aparecem no sintagma. Assim,
“mal começou” possui valor temporal; “começou mal” remete ao modo. Ao dizer que “para a
gente, o ano mal começou”, o anunciante se coloca em uma posição favorável frente à
concorrência, para quem “o ano começou mal”, ou seja, de modo desfavorável. Com esse
jogo baseado na relação entre significante e significado, cria-se um humor que deriva
principalmente da manipulação de expressões compostas pelos mesmos elementos. Esse
mesmo pensamento, se expresso de outra forma, sem jogo de palavras, não seria cômico. Ao
ler essa expressão, o leitor da revista capta a mensagem anunciada e ainda se descontrai,
aderindo com cumplicidade aos propósitos do anúncio.
É ainda com base na relação semiológica que alguns anúncios recorrem à invenção
verbal, criando palavras a partir da junção de dois ou mais significantes, como “chocolovers”
– unindo chocolate e lovers, no anúncio 25, reproduzido abaixo, para significar “apaixonados
por chocolate. O resultado deste neologismo oferece uma nova possibilidade de sentido para o
anúncio, convocando o leitor a ser conivente e participar da brincadeira, por meio da qual se
anuncia o que de fato se quer transmitir: “compre o produto”.

Anúncio 25 – Nestlé: “chocolovers”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2167, de 2 de junho de 2010, p. 26-27.


102

Como postulou Bergson (1987), tais articulações evidenciam a rigidez a que estão
sujeitos os mecanismos linguísticos em seu emprego convencional, mas também comprovam
que mesmo assim, a língua se presta às manipulações que possibilitam, dentre outras coisas, a
invenção humorística. No anúncio 26 seguinte, podemos observar que jogando com as
palavras, o publicitário conseguiu criar uma ambiguidade potencialmente cômica.

Anúncio 26 – Batavo: “use saia”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2118, de 24 de junho de 2009, p. 69.

Com efeito, a mesma sequência acústica ([saia]), empregada quatro vezes, produz um
deslizamento de sentido, uma vez que se pode distinguir 2 signos distintos: “saia”, substantivo
designativo de peça do vestuário feminino e “saia”, imperativo do verbo sair, que remete à
ideia de deslocamento. É interessante observar que a segunda e a terceira ocorrências de [saia]
funcionam como elemento pivô, pois acumulam os dois sentidos mencionados (peça de
vestuário e ação de sair), servindo assim de ponte entre uma significação e a outra.
103

(1) “Use saia” (2) “Saia de dia, saia de noite” (3) “Saia de si”
Significante /saia/ /saia/ /saia/
Forma do [substantivo comum] [substantivo comum] ou [verbo de [verbo de ação],
significado ação], [imperativo] [imperativo]
Substância do “peça do vestuário “peça do vestuário feminino” ou “ir de “ir de um lugar, de
significado feminino” um lugar, de dentro para fora” dentro para fora”
Sema genérico /vestimenta/ /vestimenta/ ou /deslocamento/ /deslocamento/
Semas /feminina/, /cobre da /feminina/, /cobre da cintura para /de dentro para fora/,
específicos cintura para baixo/ baixo/ ou /de dentro para fora/, /pessoa/ /pessoa/
Sema virtual /manifestar sentimentos,
(conotativo) emoções/, /viver a vida/,
/liberdade/.
Fig. 5: Quadro de análise sêmica de “saia”, como usado no anúncio 26.

Essas quatro ocorrências podem ser reagrupadas, de acordo com os sentidos


identificados, em três grupos distintos: 1) “use saia”, 2) “saia de dia, saia de noite”, 3) “saia de
si”. Tendo em conta esta distribuição, empreendemos uma possível análise sêmica, ilustrada
no quadro anterior.
Uma conclusão possível a que podemos chegar é que a significação de (1) e (3) é mais
fácil de especificar que a significação de (2). Os sentidos atribuídos ao termo “saia” em suas
duas ocorrências no grupo (2) são construídos na fronteira entre o sentido de (1) e o sentido de
(3), podendo designar tanto “peça do vestuário” como o imperativo do verbo “sair”.
Após a leitura da sua ocorrência em (3), o leitor da revista é levado a fazer uma releitura
das ocorrências anteriores, percebendo que, a partir do sentido que se atribui a (1), o
entendimento de (2) desliza, ou melhor, acumula significados, uma vez que passa a apontar
também para o sentido de (3). O fato de um vocábulo apontar para duas possibilidades de
significação representa uma economia: uma mesma forma acústica atualizando ao mesmo
tempo dois significados no âmbito do anúncio. São jogos de palavras como esse que Freud
classifica como uso múltiplo do mesmo material em O chiste e sua relação com o
inconsciente (1987).
Daí, se pode precipitar uma possível paráfrase: consumindo o produto anunciado, que
é light, o consumidor poderá liberar mais seus sentimentos e suas emoções,“sair de si”,
vestindo saia para sair de dia ou de noite, uma vez que o consumo do produto propicia o
emagrecimento deixando o corpo em forma. Com isso, o publicitário consegue criar uma
mensagem condizente com o que quer atribuir ao produto: produtos light emagrecem, por isso
mesmo tornam as mulheres atraentes, melhorando sua aparência, deixando-as mais felizes,
aumentando sua autoestima e sua vontade de sair mais para se divertir. Mas isso foi sugerido
104

ao leitor por meio de um jogo de palavras, do qual o leitor extrai uma dose de prazer em
virtude da economia que ele contém.
Vimos, então, que o humor verbal trabalhado nos anúncios foi construído com recurso
à materialidade linguística e à sua capacidade de simbolizar. Seja explorando as relações que
o signo estabelece com outros signos (“começou mal”, “mal começou”), seja criando novos
signos a partir de outros já existentes (“chocolover”), seja condensando em uma única forma
vários sentidos (“saia”), os anúncios analisados apresentaram recurso a alguma espécie de
efeito cômico realizando jogos de palavras, manipulando a língua.
Como destacamos acima, a comunicação verbal depende de um sistema de signos que
se estabiliza por meio da convenção social. Logo, ainda que a língua, como definida por
Saussure (1972), seja um sistema autônomo, analisável em si mesmo, ela depende do uso
contínuo por um grupo social, que a mantém e renova constantemente, tornando a relação
entre significante e significado sempre dinâmica e suscetível de modificações que se
atualizam em contexto. Tais modificações só se estabilizam e passam a fazer parte do sistema
da língua quando se tornam convencionais, afinal, como já previam os estudos saussurianos, o
indivíduo não tem autonomia sobre o sistema da língua, mas a coletividade, sim. Logo, os
signos significam não só por aquilo que os torna parte do sistema, mas também pelos usos que
o corpo social lhes confere ocasionalmente em sua comunicação cotidiana. É devido a este
fato que muitas vezes, um significado convencionalmente previsto pelo sistema linguístico
acaba sobreposto por outro muito menos comum, mas possível num determinado contexto.
Assim, o humor verbal depende não só de aspectos semiológicos como também de aspectos
pragmáticos, uma vez que a língua convencionalmente estabelecida será atualizada
constantemente pelos indivíduos falantes em cada contexto de enunciação.

4.2 Aspectos pragmáticos da produção de humor

Desde Saussure, a linguística passou por várias fases, mas, em geral, seu foco esteve
voltado para uma abordagem estrutural da língua, descartando o uso que dela se faz em
contexto comunicativo. A partir de meados do século XX, no entanto, várias questões
linguísticas reclamavam explicação sem que pudessem encontrar respostas satisfatórias nos
estudos feitos até então. Foi por isso que o foco dos estudos linguísticos começou a se desviar,
ainda que não totalmente, do sistema para a atividade comunicativa, constituindo o que
Marcuschi (2008) apresenta como “a virada pragmática”. Segundo o autor,
105

Nessa perspectiva analisam-se muito mais usos e funcionamentos da língua em


situações concretas sem dedicação à análise formal. É a passagem da análise da
forma para a função sociocomunicativa e o enquadre sociocognitivo. Sabemos que
as línguas são empregadas no dia-a-dia das mais variadas maneiras e não de forma
rígida. Os estudos discursivos e pragmáticos tentam esclarecer como se dá essa
produção de sentidos relacionados aos usos efetivos: o sentido se torna algo situado,
negociado, produzido, fruto de efeitos enunciativos e não algo prévio, imanente e
apenas identificável como um conteúdo. (MARCUSCHI, 2008, p. 37)

Com essa virada pragmática, começa a surgir uma linguística menos preocupada com
as relações estabilizadas dentro do sistema – as regras e as diferenças que distinguem os
signos verbais –, e mais voltada para o funcionamento da linguagem em sua dimensão sócio-
comunicativa. A pragmática, atualmente, se relaciona a várias outras áreas da linguística,
mostrando que a linguagem não é transparente e que sua compreensão envolve diversos
elementos que extrapolam os limites estruturais.
Entender a relação entre a língua e a fala, bem como os sujeitos falantes e os aspectos
que determinam os sentidos produzidos por estes falantes em uma dada situação, passou a ser
uma prioridade entre os estudos linguísticos. Conforme Reyes (1994, p. 14),

agora se afirma que, contra o que alguns quiseram assegurar-nos, não somos apenas
“usuários” de um sistema verbal pré-existente, mas também participamos da sua
criação; não somente possuímos as regras da nossa língua no cérebro, como também
todo nosso corpo está envolvido nas situações reais nas quais usamos e criamos
linguagem, de modo que a linguagem é muito mais do que uma atividade mental.
Vamos criando a linguagem, e a linguagem, por sua vez, vai nos criando...10

De modo geral, a pragmática é considerada como a disciplina que estuda a linguagem


tal qual se manifesta em um contexto comunicativo. Seu objeto será, conforme Escandell
Vidal (2006), o estudo das condições que determinam tanto o emprego do enunciado concreto
por um falante concreto em um contexto comunicativo concreto, como sua interpretação por
parte do sujeito a quem está endereçado o enunciado. Neste sentido, a interpretação completa
de um enunciado, e principalmente dos enunciados humorísticos, não pode prescindir de uma
análise semântico-pragmática que dê conta de aspectos que determinam não só os sentidos
convencionais previstos pelo sistema da língua, mas principalmente os sentidos adicionais,

10
“Ahora se afirma que, contra lo que parezcan asegurarnos algunos, no somos solamente ‘usuarios’ de un
sistema verbal preexistente, sino que participamos en su creación; no sólo tenemos las reglas de nuestra lengua
en el cerebro, sino que todo nuestro cuerpo está metido en las situaciones reales en las que usamos y creamos
lenguaje, de modo que el lenguaje es mucho más que una actividad mental. Vamos creando el lenguaje, y el
lenguaje, a su vez, nos va creando... ” (Transcrição como no original. A tradução é nossa.)
106

dependentes do contexto de enunciação. Em vista disso, partiremos de considerações que


dizem respeito ao contexto, aos interlocutores e ao enunciado.
Comecemos, pois, por aquilo que parece ser a base de uma análise pragmática: o
contexto ou a situação comunicativa. De acordo com Levinson (2007, p. 5-6), contexto pode
ser compreendido como um termo que abrange “as identidades dos participantes, os
parâmetros temporais e espaciais do acontecimento discursivo”, e mais “as crenças, o
conhecimento e as intenções dos participantes do acontecimento discursivo”. Nesta mesma
direção, Kerbrat-Orecchioni (2006) define o contexto como a soma de vários elementos,
dentre os quais identifica o quadro espaço-temporal, os objetivos global e específicos da
interação e os participantes. Sperber & Wilson (2005), por sua vez, partindo de uma
abordagem pragmático-cognitiva, apresentam o contexto como uma soma de informações ou
suposições mentais que o indivíduo mobiliza para inferir sentidos a partir dos enunciados.
Tais informações são obtidas não só a partir da observação dos enunciados e da percepção
sensorial do ambiente físico, mas também a partir de conhecimentos de mundo
compartilhados, ao que os autores denominam memória enciclopédica, onde estão
armazenadas as crenças e conhecimentos de cada grupo social. Cada um desses elementos
contextuais exerce, em maior ou menor grau, influência sobre os sentidos de um enunciado,
ou em outras palavras, os aspectos linguísticos quando não codificam um elemento
contextual, como no caso dos dêiticos que codificam os interlocutores (eu, tu), o espaço (aqui)
e o tempo (agora), pelo menos interagem com características do contexto, permitindo, por
exemplo, sua atualização (p.e.: “ano passado” atualiza o tempo, a partir de sua interação com
o momento da enunciação – “agora”).
A produção de efeitos humorísticos depende do contexto em vários aspectos: o
contexto pode criar ou desfazer ambiguidades, pode ressaltar ou diminuir sentidos
conflitantes, pode criar novas interpretações etc. Revisitando o anúncio 26 – “use saia” (p.
102) e acrescentando-lhe as informações relativas ao contexto, percebemos que a produção do
humor, por um lado, depende da intenção do publicitário, que procurou manipular a língua de
modo que a mensagem não só se tornasse mais atraente e interessante para os leitores da
revista, mas principalmente que fosse coerente com a imagem que se queria construir do
produto; por outro lado, a percepção do humor fica dependente do leitor da revista, que deverá
reconhecer a intencionalidade do publicitário e aceitar cooperativamente sua proposta. Além
disso, ambos precisam compartilhar determinadas informações relativas ao momento sócio-
histórico em que vivem, como a preocupação com a saúde e com a estética corporal
vivenciada principalmente pelo público feminino, a crença de que a ingestão de alimentos
107

light contribui favoravelmente para a saúde e o emagrecimento etc. Assim, a interpretação


dada anteriormente ao anúncio torna-se possível dentro deste contexto. Se fosse destinado a
um grupo social que não tem as mesmas preocupações e crenças com relação à saúde e à
estética corporal, provavelmente o anúncio não criaria efeitos humorísticos em seus
destinatários.
A mesma questão contextual está na base do humor suscitado pela piada do corcunda
(p. 99). Naquela piada, o humor deve-se ao fato de que o corcunda, ao ler o anúncio no jornal,
interpreta a expressão “um limão” como se referindo ao fruto do limoeiro, interpretação que
logo teve que ser rejeitada quando o anunciante introduziu o termo “liminha” (lima pequena).
Veja-se que, neste caso, a ambiguidade criada pela polissemia da expressão “um limão” é
mantida pelo contexto que não exclui nenhuma das duas possibilidades de interpretação: sua
significação é atualizada tanto na interpretação pelo personagem do corcunda, que a interpreta
como fruto; quanto na produção pelo produtor do anúncio referido na piada, que a coloca com
alusão ao tamanho da lima. Vemos, com esse exemplo, que ocorre uma assimetria entre o
sentido pretendido pelo produtor do enunciado e o sentido reconstruído por seu receptor. A
expressão “um limão” não foi entendida da mesma forma pelos dois interlocutores, pois cada
um tinha referências contextuais distintas para a interpretação, fato que provocou entre eles
uma incompreensão risível.
Vemos, pois, que o sentido de um termo ou de um enunciado não é fixo, não depende
unicamente do sistema linguístico em si mesmo. Na piada acima, o valor atribuído a “limão”,
não depende apenas de sua relação com outros signos, ao contrário, sua significação só pode
ser atualizada em contexto: a relação significante/significado do signo não é, pois, dada a
priori, mas na interação. Concordando com Maingueneau (2001, p. 20),

o que se quer dizer é que, fora de contexto, não podemos falar realmente do sentido
de um enunciado, mas, na melhor das hipóteses, de coerções para que um sentido
seja atribuído à sequência verbal proferida em uma situação particular, para que esta
se torne um verdadeiro enunciado, assumido em um lugar e em um momento
específicos, por um sujeito que se dirige, numa determinada perspectiva, a um ou a
vários sujeitos.

Ainda que, como vimos, estejam incluídos no contexto, gostaríamos de destacar o


papel dos interlocutores ou os sujeitos a que se refere Maingueneau (idem), na citação anterior
– trata-se do locutor e do alocutário. Por locutor entendemos o indivíduo que produz
intencionalmente um enunciado, seja oralmente, seja por escrito; e por alocutário, aquele a
quem está dirigido o enunciado. Dentro de uma análise pragmática os interlocutores podem
108

ser considerados desde um ponto de vista mais concreto 11, enquanto seres de carne e osso,
providos de intenção, responsáveis pela produção e/ou interpretação da mensagem linguística
(autores, escritores, falantes, ouvintes, leitores etc.). São eles os responsáveis pela
mobilização de informações contextuais, pela projeção e reconhecimento das intenções, dos
objetivos e dos conhecimentos compartilhados que facilitarão a troca. Esses indivíduos atuam
cooperativamente, atribuindo relevância aos enunciados produzidos, resgatando inferências,
valores ilocutórios e mobilizando as informações contextuais necessárias para a atribuição de
sentidos. São, pois, dotados não só de capacidades psico-fisiológicas que lhes permitem a
atividade de produção e/ou interpretação do enunciado, como também capacidades
intelectuais que permitem ao emissor formular um pensamento e depois articulá-lo por meio
de seu aparelho fonador (ou escrevê-lo) e ao destinatário receber um pensamento seja por
meio auditivo, seja por meio visual e processá-lo. A intencionalidade dos interlocutores tem
valor fundamental – ao formular sua mensagem, o locutor tem em mente um receptor preciso
e um quadro situacional específico, assim, o alocutário será sempre o receptor eleito pelo
locutor de acordo com a circunstância, e não um receptor qualquer que recebeu a mensagem
casualmente –, é disso que depende o sucesso da interação. Mesmo quando não tem acesso
direto a seu alocutário, o locutor precisa supor um provável receptor – uma mensagem não
será recebida necessariamente da mesma forma por uma criança e por um adulto, por um
homem ou por uma mulher, por um habitante de uma grande cidade ou por um trabalhador
rural.

Por tudo isso, parece que fica estabelecido que o uso da linguagem como atividade
consciente reflete a atitude do falante ante o entorno e responde a uma determinada
intenção. Resulta, portanto, não só perfeitamente legítimo, mas inclusive necessário,
abordar o estudo dos enunciados – isto é, das emissões reais –, tendo em conta as
intenções dos sujeitos que os produziu. (ESCANDELL VIDAL, 2006, p. 38)12

No entanto, ainda que a intencionalidade seja um fator decisivo, nada garante a


simetria entre o que o locutor pretendeu e o que o alocutário de fato vai interpretar. Conforme
Maingueneau (2001, p. 20), um ato de enunciação “é fundamentalmente assimétrico: a pessoa

11
Veremos mais adiante que Ducrot (1987) propõe a abstração desse sujeito dentro de uma análise polifônica da
enunciação. No entanto, o que podemos depreender de todos os demais estudiosos da pragmática (LEVINSON
(2007), REYES (1994), ESCANDELL VIDAL (2006), KERBRAT-ORECCHIONI (2005) entre outros) é a
noção de sujeito intencional, como descrevemos aqui.
12
“Por todo ello, parece que queda establecido que el uso del lenguaje como actividad consciente refleja la
actitud del hablante ante el entorno y responde a una determinada intención. Resulta, por tanto, no sólo
perfectamente legítimo, sino incluso necesario, el abordar el estudio de los enunciados – esto es, de las emisiones
reales –, teniendo en cuenta la intención del sujeto que los produjo.” (Transcrição como no original. A tradução é
nossa.)
109

que interpreta o enunciado reconstrói seu sentido a partir de indicações presentes no


enunciado produzido, mas nada garante que o que ele reconstrói coincida com as
representações do enunciador”.
Além desse fato, havemos de considerar outro igualmente importante. Uma interação
direta, face a face, requer dos interlocutores uma predisposição pragmática distinta da
requerida por uma interação diferida, indireta, como a que ocorre no caso dos anúncios
publicitários. Uma piada contada por um humorista a um auditório presente pressupõe um
ambiente partilhado no qual os interlocutores dispõem da entonação de voz, dos gestos e
outros recursos que contribuem para o efeito de humor da piada. Um anúncio, ao contrário, é
elaborado num ambiente distinto do que habita seu possível alocutário, as referências não
dependem da situação imediata, mas de informações dadas no próprio texto. A apreensão do
humor em um anúncio requer assim a habilidade do alocutário em reconhecer no texto
mecanismos tanto linguísticos quanto pragmáticos deixados pelo locutor para a produção dos
sentidos pretendidos.
Chegamos, portanto, a outro aspecto importante de uma abordagem pragmática: o
enunciado. Maingueneau (2001, p. 56-57), inicialmente, apresenta diferentes valores que
podem ser associados à palavra “enunciado” e que vão determinar seu emprego. Se
“enunciado” se opõe a “enunciação”, ele será “a marca verbal do acontecimento que é a
enunciação” (MAINGUENEAU, 2001, p. 56), neste caso, se assemelha à noção apresentada
por Ducrot (1987). Sua extensão pode variar: desde um enunciado simples, com poucas
palavras, até a enunciação de um livro inteiro. Mas, a palavra “enunciado” pode referir ainda
qualquer unidade elementar de sentido, sintaticamente completa, como é o caso das
interjeições (Oh!). O enunciado pode, também, ser definido em oposição à frase,
considerando-se que uma única frase inscrita em diferentes contextos se transforma em
enunciados diferentes. E por fim, enunciado pode ser entendido como uma sequência
comunicativa assimilada ao gênero de discurso – pode ser curto (provérbios, grafites etc.) ou
muito longo (uma conferência, um telejornal etc.). Com base em Escandell Vidal (2006), no
âmbito da pragmática o termo “enunciado” se usa especificamente para fazer referência a uma
mensagem construída de acordo com um código linguístico, por um falante concreto em uma
situação concreta, é uma unidade do discurso que se define com critérios próprios que não os
gramaticais, sua interpretação depende de seu conteúdo semântico e das condições
contextuais de produção.
Outra característica importante do enunciado é seu poder de modificar seu entorno. Ao
enunciar, o locutor, de alguma forma, modifica um estado de coisas preexistente à sua
110

enunciação. Neste sentido, o enunciado tem o poder de ato, de ação, constituindo os atos de
fala. De acordo com Gonçalves (2005, p. 130), ao estabelecer a Teoria dos Atos de Fala,
Austin “argumentava que a língua não se presta somente a descrever a ‘realidade’, mas
também a alterá-la e, até mesmo, a criar novas realidades”. Desta forma, a Teoria dos Atos de
Fala, inicialmente, considerava dois tipos de entidades linguísticas bem distintas entre si:
uma, as frases (ou sentenças), era destinada apenas à descrição da realidade, tendo função
constatativa; a outra, os enunciados, era destinada à modificação da realidade, ou ainda à
criação de novos status de real, tendo valor de ato. Surgiu, assim, a separação entre os
enunciados constatativos e os atos de fala – os primeiros poderiam ser testados com base na
veracidade ou falsidade dos estados de coisas descritos, submetendo-se, pois, às condições de
verdade; os últimos realizariam uma determinada ação sob certas condições de felicidade.
Percebeu-se que os atos linguísticos podiam acumular as duas funções a uma só vez,
ou seja, tanto descrevendo como modificando a realidade. Desta forma, chegou-se à
conclusão de que todos os atos linguísticos portavam, em maior ou menor grau, certa força
que lhe atribuía valor de ato. “Desse modo, o que se afirma é que todas as declarações, além
de significar o que quer que signifiquem, executam ações específicas (ou “fazem coisas”) por
terem forças específicas” (LEVINSON, 2007, p. 299). Disto, resulta que, por meio de nossa
enunciação, executamos simultaneamente três tipos de atos: os locutórios, os ilocutórios e os
perlocutórios. O ato locutório (ou locucionário) é o ato de dizer alguma coisa. Resulta do
conjunto de sons articulados para a produção de fonemas da língua, é o ato de pronunciá-los
dentro de um contexto interlocutivo. Além da articulação e combinação de sons, o ato
locutório também é aquele que possibilita às palavras se relacionarem sintaticamente umas
com as outras constituindo sequências linguísticas. O ilocutório (ou ilocucionário) é o ato que
se realiza ao se dizer algo: pedido, promessa, ordem etc., promovendo alguma modificação
entre os interlocutores. A enunciação, por si mesma, constitui uma transformação nas relações
entre os interlocutores; assim, ao dizer “prometo” se está de fato prometendo; ao se fazer uma
pergunta se está ao mesmo tempo interrogando e obrigando o outro a oferecer uma resposta.
Já o perlocutório (ou perlocucionário) é o ato que se realiza pelo fato de ter-se dito algo. Seus
efeitos são indiretos: questionamento, medo, convencimento etc.; efeitos que podem realizar-
se ou não. Esse ato, por seu caráter indireto, pode nem ser percebido pelo alocutário. Ao
receber uma visita em casa, o anfitrião pode, numa determinada hora, fazer o seguinte
comentário: “São dez horas.” O visitante certamente vai perceber o ato ilocutório realizado, o
de informar as horas, mas pode também perceber tratar-se de uma advertência de que já é o
momento de retirar-se, ou um lembrete de que tem algum compromisso neste horário etc. Na
111

frase: “Você pode fechar a porta?”, o ato locutório se relaciona com o conteúdo proposicional
expresso sob forma de pergunta; o ato ilocutório é o valor de pedido; o ato perlocutório seria,
por exemplo, a manifestação da preocupação com a discrição, com uma advertência, por parte
do enunciador, de que o assunto a ser tratado pelos interlocutores é confidencial.
De acordo com Levinson (2007), um ato locucionário pode revestir-se de diferentes
forças ilocucionárias nas diferentes circunstâncias em que ocorrer e, consequentemente, de
diferentes efeitos perlocucionários também. Em geral, um ato ilocucionário se associa a
procedimentos convencionais (ordenar, perguntar, aconselhar etc.), ao passo que o ato
perlocutório “é específico das circunstâncias da emissão” e “não é conseguido
convencionalmente”, não se pode relacionar um ato perlocutório a uma circunstância
específica antecipadamente, como no caso do ilocutório; além disso, “inclui todos os efeitos,
visados ou não visados, muitas vezes indeterminados, que certa enunciação específica numa
situação específica pode causar” (idem, p. 301).
Buscando ilustrar um pouco mais, imaginemos a seguinte situação: ao adentrar em
uma sala, uma pessoa deixa aberta a porta que se encontrava fechada. Outra pessoa, que já se
encontrava no local, diz: “A porta está aberta.” Ao que a primeira pessoa, após fechar a porta,
responde: “Desculpe-me.”. Ao dizer que a porta estava aberta (ato locucionário), a pessoa fez
uma acessão com valor de solicitação (ato ilocucionário direto) e ao mesmo tempo uma crítica
ou repreensão, que é o que está por traz da solicitação feita (ato ilocucionário indireto). O
efeito que este enunciado pode ter sobre o alocutor (ato perlocucionário) não é controlável e
depende grandemente da situação comunicativa. Outra situação: uma pessoa questiona a outra
sobre se uma terceira está em casa, obtendo a resposta: “A porta está aberta”. Temos o mesmo
ato locucionário empregado antes, mas com valor ilocutório e efeito perlocutório bastante
diferentes.
Podemos aproveitar este exemplo para destacar outra propriedade do ato de fala: a de
manifestar-se indiretamente, ou, “quando dizer é fazer uma coisa sob a aparência de outra”
(KERBRAT-ORECCHIONI, 2005, p. 47). Nos casos acima, tanto ao fazer uma solicitação,
quanto ao dar a resposta, o ato foi emitido sob a aparência de uma constatação. De acordo
com a teoria dos atos de fala, podem-se distinguir dois modos de realização dos atos de
linguagem: os atos diretos e os indiretos. Os atos de linguagem diretos podem se realizar tanto
através das expressões performativas quanto através das formas das frases (exclamativas,
declarativas, interrogativas e imperativas).
Assim, um mesmo valor ilocutório pode se manifestar através de diferentes
formulações linguísticas. Por exemplo:
112

Mesmo valor ilocutório (pergunta) Diferentes manifestações linguísticas


“Qual é o seu nome?” Frase interrogativa
“Queria saber o seu nome.” Frase declarativa
“Diga o seu nome.” Frase imperativa
Fig. 6: valor ilocutório X manifestação linguística

Do mesmo modo, um único conteúdo proposicional pode manifestar-se como atos


ilocutórios diferentes, dependendo do contexto comunicativo, como no enunciado “Está
fazendo corrente de ar”, que de forma indireta, pode ser uma constatação, uma reclamação,
uma solicitação ou tudo ao mesmo tempo.
A interpretação adequada dos atos de fala depende das condições de felicidade,
condições relativas ao contexto de enunciação que possibilitam ao ato realizar-se
efetivamente. Tais condições determinam as inferências pragmáticas obtidas a partir das
suposições contextuais às quais os interlocutores recorrem cooperativamente durante uma
interação. É por isso que uma mesma frase, repetida em diferentes contextos, adquire um
valor ilocutório diferente, ou ainda, que não seja qualquer locutor que esteja autorizado a
executar determinados atos (por exemplo, para ordenar, o locutor necessita de autoridade que
o habilite para isso) etc. As condições de felicidade determinam as inferências que deverão ser
feitas para resgatar as informações implícitas. É por meio de inferências pragmáticas que é
possível “querer dizer (num sentido geral) mais do que é efetivamente ‘dito’ (isto é, mais do
que se expressa literalmente pelo sentido convencional das expressões linguísticas)”
(LEVINSON, 2007, p. 121), como ocorreu no exemplo supracitado, no qual uma solicitação
comunicou também uma repreensão. Destarte, o que o locutor diz literalmente, em geral,
comunica mais do que aparenta; e o mais importante, o alocutário, em geral, entende o que é
comunicado efetivamente sem que seja necessário explicitar todos os conteúdos ocultados na
enunciação. Há, pelo menos, dois tipos de inferências pragmáticas: as que dependem de
formas linguísticas (pressupostos) e as que dependem do contexto de enunciação (as
implicaturas ou subentendidos). Essas noções, embora sejam fundamentais em uma análise
pragmática, suscitam controvérsias que evitaremos neste momento. Consideremos, então em
linhas gerais, como podemos distingui-las.
Para Levinson (2007, p. 124), a noção de implicatura oferece explicação para o fato de
que uma mesma expressão linguística possa remeter a diferentes sentidos em diferentes
circunstâncias. “As expressões das línguas naturais realmente tendem a ter sentidos simples,
estáveis e unitários (em muitos casos, pelo menos), mas que sobre este núcleo semântico
estável há muitas vezes uma camada pragmática instável, ligada ao contexto” (idem, p. 124).
113

A noção de implicatura, de acordo com o autor, relaciona-se com inferências comunicadas


intencionalmente numa determinada circunstância e baseia-se no princípio cooperativo e nas
máximas conversacionais de Grice, dos quais extrai sua relevância comunicativa. A respeito
dessas máximas, Levinson (idem, p.127) nos diz resumidamente que elas “especificam o que
os participantes têm de fazer para conversar de maneira maximamente eficiente, racional,
cooperativa: eles devem falar com sinceridade, de modo relevante e claro e, ao mesmo tempo,
fornecer informação suficiente”. O princípio cooperativo deve ser tomado como norteador da
troca, está na base de qualquer comunicação, garantindo que, quando um enunciado pareça
infringir alguma das máximas previstas, o alocutário lhe atribua alguma relevância
comunicativa, buscando algum sentido possível.
O outro tipo de inferência pragmática, a pressuposição, ainda que tenha estreito laço
com as formas da língua, também está, com base em Levinson (idem), atrelado a fatores
contextuais. Para Ducrot (1987), a pressuposição é o que está na base dos atos ilocutórios,
tendo, portanto, a influência de uma força convencional; além de não manifestar
explicitamente a intenção do locutor. “A pressuposição aparece como uma tática
argumentativa dos interlocutores; ela é relativa à maneira pela qual eles se provocam, e
pretendem impor-se uns aos outros, um certo modo de continuar o discurso” (DUCROT,
1987, p. 40-41).
Tanto a noção de implicatura (ou subentendido para Ducrot) quanto a de
pressuposição, preveem uma série de dificuldades que não é relevante para nós no momento.
Há autores, como no caso de Escandell Vidal (2006), que preferem não considerar a
pressuposição como um problema relativo a uma análise pragmática, mas sim à semântica. De
nossa parte, nos interessa principalmente considerar as inferências pragmáticas como um todo
e não adentrar nesta discussão conceitual. A noção de inferência pragmática nos ajuda a
entender casos em que um aparente mal-entendido é reinterpretado como significando algo,
ou ainda, quando um enunciado sem sentido pode ser interpretado, como acontece com
algumas piadas ou chistes. Também depende de aspectos pragmáticos que determinados jogos
de palavras, explorando os limites das normas convencionais das expressões linguísticas,
encontrem respaldo interpretativo em determinados contextos. De acordo com Reyes (1994,
p. 72),

fazer jogos de palavras, falar ironicamente, manipular sons em lugar de sentidos, escrever
poemas, inventar diálogos possíveis e, em geral, ‘não falar sério’, são atividades que
114

parecem desafiar as normas de cooperação linguística, mas que realmente as pressupõem e


reforçam.13

O humor verbal depende em certa medida das inferências pragmáticas – é necessário


que a situação comunicativa possibilite ao locutor burlar, jogar, criar efeitos cômicos e, ao
alocutário reconhecer e aceitar a brincadeira. Um dito popular salienta que “brincadeira tem
hora” e isso é muito válido quando se trata de criar efeitos humorísticos: não é qualquer
situação que autoriza o locutor a produzir e o alocutário a interpretar um enunciado como
sendo humorístico. E ainda assim, mesmo quando a situação a autoriza, a produção
humorística ainda depende de o alocutário querer ou não aceitar o jogo, participar dele, junto
com o locutor.
As reflexões feitas acerca dos atos de fala não se restringem apenas a enunciados
curtos ou à alternância de fala entre dois interlocutores. Em geral, um discurso se estrutura
globalmente em torno de um valor ilocucionário principal, ainda que esteja composto de um
conjunto de atos com forças ilocutórias distintas. Sob esta perspectiva, um anúncio
publicitário enquadra-se como um ato mais amplo, que pode compor-se de um ou vários atos
de fala que convergem para um único propósito principal. Neste sentido, os anúncios ganham
o estatuto de macroatos, como posto por Kerbrat-Orecchioni (2005, p. 175), para quem as
mensagens publicitárias são “macroatos de tipo diretivo, geralmente indiretos, em que o valor
intrinsecamente conativo da mensagem (“Compre o produto X”) se dissimula sob a aparente
distribuição de enunciados descritivos ou expressivos”.

Anúncio 27 – Chevolet: “viver no interior”.

Fonte: Revista Veja, edição 526, outubro de 1978, p. 11, 12 e 13.

13
“Hacer juegos de palabras, hablar irónicamente, manipular sonidos en lugar de sentidos, escribir poemas,
inventar diálogos posibles y, en general, ‘no hablar en serio’, son actividades que parecen desafiar las normas de
cooperación lingüística, pero realmente las presuponen y refuerzan.” (Transcrição como no original. A tradução
é nossa.)
115

Um anúncio pode, por exemplo, expressar sentimentos (como é bom viver no interior)
e descrever um estado de coisas (lá tem espaço, beleza, conforto e muito silêncio), como no
anúncio anterior, com fim principal de influenciar o leitor a comprar o produto.
Similar ao ato de fala, o macroato também se reveste de força ilocucionária,
evidenciando uma intencionalidade subjacente, propósitos e finalidades envolvidos na
produção e interpretação, atualizados de acordo com o contexto de interação. Assim a
atribuição de uma força ilocutória a um macroato requer a observação do contexto
comunicativo, o compartilhamento de conhecimentos e crenças sobre os interlocutores, sobre
a situação comunicativa, sobre o tipo de interação que se estabelece etc. No caso de um texto
publicitário, é preciso situá-lo no espaço e no tempo de sua veiculação, além de considerar o
tipo de produto anunciado e os consumidores potenciais desse produto; uma vez que é a sua
intenção de vender um produto X a determinados destinatários, receptores previstos num
determinado momento sócio-histórico, o que vai orientar sua elaboração enquanto macroato
diretivo, de modo que seu valor persuasivo tenha sucesso na captação do interesse dos
consumidores potenciais a quem está dirigido.
A ambiguidade construída no anúncio 27, acima, com a palavra “interior”, por
exemplo, só foi possibilitada porque a publicidade ancorou seu efeito perlocutório no contexto
comunicativo em que foi produzida. E isso provavelmente acontece porque, na época, final da
década de 70, supostamente fazia parte do imaginário coletivo a ideia de que a vida no
interior, longe dos centros urbanos, era uma vida mais confortável, mais tranquila, bonita etc.
É a isto que Maingueneau (2001, p. 92) define como cenas validadas, ou seja, “já instaladas
na memória coletiva, seja a título de modelos que se rejeitam ou de modelos que se
valorizam”. Neste caso, toma-se um modelo valorizado – o campo como um espaço que
oferece qualidade de vida. Foi ao encontro desta aspiração que o anúncio se propôs a ir para
alcançar seus objetivos.
O reconhecimento da força ilocutória de um macroato tanto pode ser estabelecida
convencionalmente como pode ser atualizada em contexto. Uma publicidade qualquer,
independentemente de sua configuração (auditiva ou impressa), se enquadra como um
macroato convencional. Sua ilocução baseia-se na interpelação do destinatário a fim de atuar
sobre suas escolhas, convencendo-o a adquirir o produto oferecido. Essa interpelação pode
ocorrer diretamente (Compre o produto X), ou, o que é cada vez mais comum, de forma
indireta, como no caso dos anúncios bem-humorados que buscam a cumplicidade do leitor por
meio dos jogos de palavras ou de pensamentos. O efeito perlocutório de uma publicidade é
bastante variável, havendo, por exemplo, a possibilidade de criar uma necessidade antes
116

inexistente, ou a de apresentar uma solução a um problema cotidiano, ou a de tornar possível


o impossível etc.
O sucesso comunicativo de um anúncio depende de que o seu destinatário imediato
aceite o contrato proposto, remetendo a uma espécie de pacto pragmático entre
anunciante/publicitário (locutor) e os consumidores potenciais previstos (alocutários). Disto
decorre que entre os interlocutores deve existir uma espécie de colaboração mútua – o locutor
projeta o anúncio tendo em vista o alocutário; e este, por sua vez, o recebe, tendo em mente a
intenção do locutor. O grande desafio da publicidade é exatamente este, conseguir a adesão do
alocutário, uma vez que o espaço midiático está saturado pela grande quantidade de
informação publicitária. A presença do humor na publicidade é, a nosso ver, uma das formas
de criação de que dispõe o publicitário para conseguir atrair a atenção, mas essa tentativa só
terá efeito se o ambiente criado propiciar a cooperação, possibilitando ao macroato realizar-se
efetivamente.

4.3 Polifonia, humor e publicidade

Dentre os linguistas que embasaram seus estudos linguísticos na teoria pragmática,


encontra-se Oswald Ducrot (1987), que, através da disciplina que intitula “semântica
pragmática” ou “pragmática linguística”, defende que a semântica e a pragmática estão
vinculadas. Vai, desta forma, desenvolver estudos que evidenciam como a pragmática está
integrada à língua, identificando nos enunciados marcas linguísticas que definem seu estatuto
pragmático. Sua preocupação não está tanto em estudar a ação humana realizada pela
linguagem, mas a forma pela qual linguagem apresenta-se a si mesma como ação, ou, segundo
o próprio Ducrot (1987, p. 163), “não se trata mais do que se faz quando se fala, mas do que
se considera que a fala, segundo o próprio enunciado, faz”.
A partir do conceito de dialogismo de Bakhtin (2000), para quem os textos (ou
sequências de enunciados), principalmente os literários, deixam ouvir várias vozes, Ducrot
(1987) buscará refutar o postulado da unicidade do sujeito, apresentando o seu “esboço de
uma teoria polifônica da enunciação”.
Conforme Bakhtin (2006), o dialogismo é constitutivo da linguagem, pois toda palavra
é produzida a partir da relação entre, pelo menos, dois interlocutores:
117

Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito


grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto
pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém.
Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me
em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é
uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim
numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o
território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 2006, p. 115)

Nessa relação entre os interlocutores, muitas vozes podem aparecer, já que “não existe
palavra que não seja de alguém” (BAKHTIN, 2000, p. 350). Ao dizer, o locutor diz a partir da
imagem que faz de seu alocutário e de todo o contexto social no qual se comunicam. E neste
sentido, “em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas,
quase despersonalizadas (a voz dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), inapreensíveis, e vozes
próximas que soam simultaneamente” (idem, p. 351). Aplicando a noção de dialogismo aos
textos literários, Bakhtin (2000) buscou analisar como vozes que podem ser atribuídas a
autores anteriores ou a destinatários hipotéticos se somam à voz do narrador do texto e dos
personagens para, enfim, ilustrar a voz do próprio autor da obra. É o caso da obra de François
Rabelais, na qual Bakhtin (2010, p. 156) examina “o papel da praça pública e das suas
‘vozes’” na construção do tom alegre e risonho que o texto apresenta e que ao mesmo tempo
evidencia características do momento histórico e a visão do autor sobre o seu contexto social.
Com base nesta noção, Ducrot (1987) vai partir do enunciado isolado, tomado como
unidade que constitui textos, para mostrar que também este revela diferentes vozes que ora se
identificam com o responsável pelo enunciado, ora se apresentam como certo ponto de vista
adotado.
A polifonia apresentada por Ducrot (idem) mostra-se produtiva para explicar a
multiplicidade de vozes que uma publicidade pode trazer. E quando se fala em multiplicidade
de vozes, não se está fazendo referência aos diferentes sujeitos empíricos que um texto pode
apresentar, mas a seres fictícios que se encontram no interior do enunciado e que ora são os
responsáveis por ele, ora aparecem apenas como pontos de vista ou atitudes relevantes para o
que se diz.
Um enunciado pode ser produzido (articulado, escrito) por um ou por vários autores.
Numa conversa cotidiana, por exemplo, cada interlocutor produz seu próprio enunciado,
assumindo a autoria de sua enunciação. Um anúncio publicitário, no entanto, pode apresentar
muitos autores ou, melhor dizendo, muitos indivíduos responsáveis por seu aparecimento,
como o anunciante, o publicitário (que pode ser mais de um), o editor etc. Nestes casos em
que há mais de um autor, o enunciado faz surgir uma voz coletiva que, conforme Ducrot
118

(1987, p. 182), “constitui uma só pessoa moral, falante de uma única voz: sua pluralidade
apresenta-se fundida em uma personagem única, que engloba os indivíduos diferentes”. Este
autor empírico do enunciado, seja ele um ou vários, não é o sujeito que interessa a uma teoria
polifônica da enunciação.
Outra noção que precisa ser definida para que se possa entender o conceito de
polifonia, diz respeito ao que se toma por “sujeito” ou “sujeito falante”. Em seu “Esboço de
uma teoria polifônica da enunciação”, Ducrot (1987) combate a “teoria da unicidade do
sujeito” através da qual para cada enunciado existiria um único autor responsável pelo que é
dito. Para ilustrar sua tese, o autor começa por fazer um desdobramento deste sujeito,
apresentando três propriedades que lhe podem ser atribuídas.
Primeiramente, pode-se definir o sujeito como um ser dotado de capacidades psico-
fisiológicas que lhe permitem a atividade de produção do enunciado, aquele que possui
capacidades intelectuais para formular um pensamento e depois articulá-lo por meio de seu
aparelho fonador (ou escrevê-lo). Uma segunda propriedade do sujeito refere-se ao fato de
poder ser-lhe atribuída a autoria dos atos ilocutórios realizados na produção dos enunciados,
fazendo com que seja considerado como aquele que ordena, que pergunta, que afirma etc.
Considerando-se como legítima a unicidade do sujeito, poder-se-ia dizer que o sujeito que
produz as palavras que constituem um enunciado é o mesmo que se responsabiliza por ele.
Assim, um sujeito que produzisse o enunciado “o tempo está bom”, além de selecionar e
articular as palavras que constituem o enunciado, estaria, ao mesmo tempo, afirmando o bom
tempo. Por fim, uma terceira forma de identificar o sujeito falante, é atribuir-lhe as marcas de
primeira pessoa (eu). Para ilustrar seu raciocínio, o autor analisa alguns exemplos que vão
mostrar como a tese da unicidade do sujeito não se sustenta diante de alguns casos.
Considerando um diálogo em que, para responder à pergunta “onde você estava
semana passada?”, o locutor (L) apresenta a resposta “Semana passada eu estava em Lyon”,
pode-se argumentar que 1) L é o produtor da resposta, é ele quem seleciona as palavras e as
articula; 2) L assume a responsabilidade do ato de afirmação que apresenta; 3) L se designa
por “eu”, é a ele que a marca de primeira pessoa se refere. Neste caso, estaria assegurada a
crença num sujeito único, visto que as três propriedades podem ser atribuídas ao mesmo
indivíduo. Vejamos outro exemplo no qual já começa a se delinear outra visão: L, ao receber
uma crítica (como “Você é um imbecil”) poderia retrucar dizendo “Ah! Eu sou um imbecil;
muito bem, você não perde por esperar!”. Neste caso, tem-se que 1) L articula as palavras; 2)
L se designa por “eu”; 3) L não assume a responsabilidade do ato de fala afirmado (“eu sou
um imbecil”). Este ato é atribuído ao seu interlocutor e foi retomado em sua fala apenas para
119

que pudesse contestá-lo. Tal exemplo mostra que nem sempre o sujeito falante é o
responsável pelo que diz, ele pode apenas reproduzir um ato que, na verdade, é de
responsabilidade de outro. Mais um exemplo, um pouco mais complexo: ante a afirmação de
um amigo que diz não ter dormido à noite, o locutor pode comentar “Pode ser que você não
tenha dormido, mas, de qualquer forma, você roncou solenemente”. L, ainda que seja o
produtor do enunciado, não se responsabiliza por sua totalidade – a primeira parte do
enunciado (“pode ser que você não tenha dormido”) é atribuída ao seu interlocutor mesmo
que suas palavras não tenham sido reproduzidas ao “pé da letra”. Neste fragmento, é o ponto
de vista do outro que é apresentado. Logo é possível identificar que um mesmo enunciado foi
produzido a partir de dois sujeitos diferentes: um, assimilado ao sujeito falante, e outro,
assimilado a um ponto de vista adotado por este falante.
Com tais exemplos, Ducrot (idem) justifica seu combate ao sujeito único e introduz a
distinção entre autor, locutor e enunciador.
Inicialmente, é preciso fazer abstração do autor, o produtor empírico do enunciado, ou
seja, o falante concreto, o ser no mundo, ou conforme Ducrot (1987, p. 162) o “ser que não
deve ser levado em conta por uma descrição linguística preocupada somente com indicações
semânticas contidas no enunciado”. O produtor empírico de um enunciado, ao produzi-lo,
projeta sobre seu enunciado um distanciamento enunciativo que permite a um homem
enunciar-se como mulher, ou vice-versa; a um adulto enunciar-se como criança, ou vice-versa
etc. Desta forma, uma história infantil, mesmo imaginada e escrita por um adulto, pode
projetar uma voz infantil para narrar a história; ou, ainda, num poema, um poeta evocar uma
voz feminina etc. Neste sentido, pode-se estabelecer um paralelo entre o autor do livro e o
autor do enunciado, de um lado, e o narrador e o locutor, de outro. O narrador não se
confunde com o autor, mas, antes, funciona como uma voz que pertence ao próprio texto; da
mesma forma, o locutor não se confunde com o autor empírico do enunciado. Com relação à
distinção autor empírico/locutor, acrescenta Ducrot (1987, p. 195):

Esta distinção do narrador (equivalente literário de meu “locutor”) e o autor


(correspondendo ao que chamei o “produtor efetivo”, e exterior à narrativa como o
produtor é exterior ao sentido do enunciado) permite mesmo [...] fazer realizar o ato
de narração por alguém de quem se diz, ao mesmo tempo, que ele não existe ou não
existe mais. Se para escrever é necessário existir, isto não é necessário para narrar.

Logo, o ser que o enunciado apresenta como sendo seu autor é o locutor. E é a partir
dele que se faz a análise do sujeito do enunciado. Este, além de poder ser marcado pela
primeira pessoa, também figura como o responsável pelo enunciado.
120

Por definição, entendo por locutor um ser que é, no próprio sentido do enunciado,
apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a
responsabilidade deste enunciado. É a ele que refere o pronome eu e as outras
marcas da primeira pessoa. (DUCROT, 1987, P. 182)

Para ilustrar sua concepção de locutor, Ducrot (idem, p. 182) apresenta o seguinte
exemplo: “Suponha que meu filho me traga uma circular da escola, em que está escrito: ‘Eu,
abaixo-assinado, ... autorizo meu filho a [...]. Assinado...’”. Primeiramente, não há como
identificar exatamente quem é o autor empírico deste enunciado (o diretor, sua secretária etc.);
mas com certeza pode-se dizer que o “eu” deste enunciado não se refere a este autor empírico
que o produziu efetivamente, e sim a uma voz que o enunciado guarda em si mesmo. Assim,
ao ser assinado, o enunciado atribui ao seu sentido um determinado ser empírico que ainda
que não tenha sido seu produtor real, assume sua responsabilidade e passa a ser designado
pelas marcas de primeira pessoa. Tanto é assim que este mesmo texto, assinado por pais
diferentes, vai adquirir a partir de cada assinatura, um responsável diferente, ainda que guarde
uma mesma voz. O locutor é um ser do discurso, presente apenas no enunciado; enquanto o
autor é um ser do mundo, exterior ao enunciado.
No exemplo apresentado anteriormente (“Eu, abaixo-assinado, ... autorizo meu filho a
[...]. Assinado...”), vimos que o locutor não só não correspondia ao seu autor efetivo, como
também se assimilava a um outro ser do mundo, mais especificamente, aquele que o viesse a
assinar. Tal assimilação foi possível por causa das marcas de primeira pessoa que aparecem
no enunciado, visto que tais marcas, ao mesmo tempo em que apresentam a enunciação como
de responsabilidade de um locutor (entendido como uma voz que o enunciado guarda em si
mesmo), também permitem que esse locutor se assimile a um ser do mundo, ainda que este
ser não seja o produtor empírico do enunciado. Isso explica um primeiro tipo de polifonia: um
enunciado – dois locutores, um, meramente discursivo; outro, assimilado a um ser do mundo.
Ducrot (1987, p. 185), ainda apresenta outro exemplo:

Se Pedro diz “João me disse: eu virei”, como analisar, no que concerne ao locutor, o
discurso de Pedro tomado na sua totalidade? Encontram-se aí duas marcas de
primeira pessoa que remetem a dois seres diferentes. Ora, não se pode ver aí dois
enunciados sucessivos, o segmento João me disse não pode satisfazer a exigência de
independência contida na minha definição de enunciado: ele não se apresentaria
como “escolhido por si mesmo”. Sou, pois, obrigado a dizer que um enunciado
único apresenta aqui dois locutores diferentes, o primeiro locutor sendo assimilado a
Pedro e o segundo a João. Assim, é possível que uma parte do enunciado imputado
globalmente a um primeiro locutor seja, entretanto, imputado a um segundo locutor
(do mesmo modo que, num romance, o narrador principal pode inserir no seu relato
o relato que lhe fez um segundo narrador).
121

Dessa forma, pode-se distinguir dentro da própria noção de locutor dois seres
discursivos distintos: o “locutor enquanto tal” (locutor “L”) e o “locutor enquanto ser do
mundo” (locutor “λ”). O locutor “L” responsabiliza-se pela enunciação em sua totalidade, o
locutor “λ” além de ser a origem do enunciado, é assimilado, por meio das marcas de primeira
pessoa, a um ser fora do enunciado. Voltando ao exemplo, distingue-se o locutor “L” (“João
me disse: eu virei”), locutor “λ”1 (“João me disse”) e locutor “λ”2 (“eu virei”), ou seja, o
enunciado apresenta um “locutor enquanto tal” e dois “locutores enquanto seres do mundo”
(cada um identificado através das respectivas marcas de primeira pessoa – “me” para Pedro e
“eu” para João). A existência de dois locutores distintos torna-se mais evidente em casos
como este, em que há uma dupla enunciação, visto que, em geral, o locutor “L” e o locutor
“λ” aparecem associados, como os dois lados de uma mesma moeda. Mais uma forma de
dupla enunciação se encontra neste outro exemplo, também dado por Ducrot (1987), onde
alguém retoma o discurso de outro em sua totalidade, para em seguida refutá-lo ou contestá-
lo: “Eu não estou bem: não creia que você vai me comover com isso”, onde se percebe um
“eu” que refere ao locutor retomado e um “me” que refere ao locutor que o retoma, ou seja,
dois locutores “λ” diferentes.
Além do locutor, o enunciado pode apresentar um ou mais enunciadores que, embora
não sejam responsabilizados pelo que dizem, deixam transparecer pontos de vistas que podem
ser assimilados ou não pelo locutor. Essa é a segunda forma de polifonia de que trata Ducrot
(1987).
Chamo “enunciadores” estes seres que são considerados como se expressando
através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles
“falam” é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu
ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas
palavras. (Ducrot, 1987. P. 192)

Tem-se agora que o locutor, ao responsabilizar-se pelo enunciado, evoca pontos de


vistas, opiniões, atitudes, posições, que não são necessariamente seus, mas de enunciadores,
com os quais pode identificar-se, ou mesmo, deles discordar. Se tais enunciadores são
selecionados pelo locutor é porque seu ponto de vista traz alguma contribuição relevante para
o que diz, como explica Ducrot (1987, p. 193):

... o locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enunciadores


de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes. E sua posição própria pode se
manifestar seja porque ele se assimila a este ou aquele dos enunciadores, tomando-o
por representante (o enunciador é então atualizado), seja simplesmente porque
122

escolheu fazê-los aparecer, e que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que
ele não se assimile a eles ...

Para explicar melhor a distinção entre locutores e enunciadores, o autor estabelece


alguns paralelos ilustrativos com o teatro e com a literatura. No teatro, sabe-se que é o autor
da peça quem escreve as cenas, no entanto, a imagem da peça que se tem é a de atores que
interpretam personagens, representam suas ações, comportamentos e falas. Essa imagem da
cena teatral pode ser comparada à imagem da enunciação dada pelo enunciado – os atores
correspondendo ao locutor e os personagens correspondendo aos enunciadores. Não
existissem personagens, não existiriam atores, uma vez que a função destes é emprestar sua
voz àqueles. Da mesma forma, os enunciadores só se fazem ouvir através do locutor que é
quem vai dar-lhes voz, representar-lhes as atitudes, as opiniões etc. De igual maneira, a
narrativa literária apresenta um narrador que não se confunde com o autor: este imagina ou
inventa os acontecimentos, enquanto aquele os relata. Mas, ao relatar, o narrador pode fazê-lo
a partir de um “centro de perspectiva” (ou um “sujeito de consciência”) que o aproxima da
maneira de ver de alguns dos personagens, sem, no entanto, confundir-se com eles. Se o autor
escreve e o narrador relata, o centro de perspectiva corresponde a quem vê os acontecimentos.
É a este centro de perspectiva que corresponde a noção de enunciador.

... o locutor apresenta uma enunciação de que se declara responsável – como


exprimindo atitudes de que pode recusar a responsabilidade. O locutor fala no
sentido em que o narrador relata, ou seja, ele é dado como a fonte de um discurso.
Mas as atitudes expressas neste discurso podem ser atribuídas a enunciadores de que
se distancia – como os pontos de vista manifestados na narrativa podem ser sujeitos
de consciência estranhos ao narrador. (DUCROT, 1987, p. 196)

Um exemplo onde se percebe a relevância da distinção entre locutor e enunciador diz


respeito à ironia. Para Ducrot (1987, p. 198), “falar de modo irônico é, para um locutor L,
apresentar a enunciação como expressando a posição de um enunciador.” No entanto, ao
apresentar a posição deste enunciador, o locutor não concorda com ela e, se a apresenta, é
porque ela lhe oferece um poder argumentativo que de outra forma não seria alcançado.
Imagine-se o seguinte enunciado irônico, onde também se evidencia uma dupla enunciação:
“Tenho certeza de que o esperto do João vai me dizer: não entendi nada.” Nele, identifica-se o
locutor “L” responsável por todo o enunciado; também se distinguem dois locutores “λ” ao
qual remetem as marcas de primeira pessoa do verbo “tenho” e do pronome “me” (assimilado
ao locutor “L”) e do verbo “entendi” (assimilado a João).
123

Além desta primeira forma de polifonia, identifica-se uma segunda forma expressa
pela ironia – o locutor “L” enuncia um ponto de vista que não é o seu (João é esperto), nem
dos locutores “λ”. Na verdade, ao dizer que João é esperto, o locutor “L” dá voz a um
enunciador que supostamente teria esta opinião, mas ao fazer ouvir a voz deste enunciador o
locutor não a assimila, ao contrário, demonstra não concordar com ela. Por isso, Ducrot
(1987) afirma que com relação à ironia é importante perceber que o locutor ao enunciar não
assume a posição expressa, mas, ao contrário, considera-a absurda. Essa opinião absurda é
atribuída a um enunciador que é a origem do ponto de vista expresso na enunciação. Assim,
no exemplo dado, tem-se um locutor “L” que, ao enunciar que João é esperto, está, na
verdade, dizendo que não acredita na esperteza de João e que por isso mesmo não espera que
ele entenda o que é necessário entender.

Anúncio 28 – Cerveja Nova Schin: “se rebolar, não derrame”.

Fonte: Revista Veja, edição 2100 de 18 de fevereiro de 2009, p. 136.

Outro exemplo apresentado trata da negação. Algumas vezes a negação pressupõe a


existência de uma opinião inversa. Assim, ao dizer “Pedro não é gentil”, o locutor “L” coloca
124

em cena dois enunciadores: um, ao qual se assimila, que nega a gentileza de Pedro; e outro
que afirma a gentileza de Pedro, e ao qual o primeiro se opõe. Assim, a negação põe em cena
dois enunciadores, sendo um destes assimilado pelo locutor “L”, enquanto o outro se faz
ouvir, mas não é apresentado como o ponto de vista favorecido na enunciação.
Com base no escopo teórico descrito anteriormente, vejamos como as vozes
polifônicas de alguma forma contribuem com os efeitos humorísticos nos anúncios.
Veja-se, inicialmente, o anúncio 28, acima, no qual é possível identificar os dois tipos
de polifonia a que se refere Ducrot (1987) – o primeiro tipo, relativo ao locutor e o segundo
tipo, relativo ao enunciador. Quanto ao locutor, pode-se dizer que há um locutor “L”
responsável pela totalidade do anúncio, e também um locutor “λ” responsável apenas pelo
slogan “Se beber, não dirija.”, voz que pode ser claramente atribuída a um ser do mundo,
mais exatamente uma voz institucionalizada, que remete à legislação vigente, voz que pode
aparecer em muitos outros anúncios – como é o caso do slogan “Se persistirem os sintomas, o
médico deverá ser consultado.”
O segundo tipo de polifonia, relativo ao enunciador, é o que de fato produz efeito de
humor. Primeiramente, o locutor “L”, no enunciado “Se rebolar, não derrame” faz ouvir o
mesmo enunciador de “Se beber, não dirija”, mas o faz através de uma imitação. Note-se que
em “Se rebolar, não derrame”, o locutor não afirma “Se beber, não dirija”, mas faz ouvir esta
voz. Neste anúncio, o efeito chistoso deriva da percepção desse enunciador, que de certa
forma foi imitado: ao ler o enunciado imitado, o leitor se recordará imediatamente do original
e se divertirá com a criatividade do locutor em reconfigurar essa voz para trazê-la à tona.
A palavra “pega-leve” também se mostra polifônica ao fazer ouvir não só a voz
popular, que retoma uma gíria dos anos 1980 que significava “ir devagar”, com calma; mas
também o enunciador institucionalizado que recomenda a não dirigir após beber. O humor
deste anúncio consiste exatamente em fazer o leitor perceber essas “vozes” que brincam com
a enunciação – o leitor logo percebe que há ali um jogo de ideias, uma brincadeira. É possível
ainda perceber que este anúncio faz alusão a outras vozes – vozes que retomam o contexto do
carnaval: rebolar, carnavais do Brasil e as serpentinas que formam, na imagem, o desenho das
mãos que abrem a lata de cerveja.
Outro exemplo de polifonia bem-humorada que também recorre à imitação de um
enunciador encontra-se no anúncio 29.
O enunciador ouvido, neste caso, retoma o dito popular “lavar a égua”. A relação entre
o dito imitado e sua imitação produz um efeito exclusivamente lúdico – ao ler esta imitação o
leitor “ouvirá” imediatamente o enunciador popular e perceberá o jogo de ideias que se
125

estabeleceu entre eles. No caso do dito popular, “lavar a égua” significa algo próximo de
“levar vantagem”, “se sair bem de uma situação”, “aproveitar muito, mais do que o normal”
etc. A imitação deste dito com “Sujamos a égua” brinca com o sentido original do dito,
trocando lavar por sujar para fazer alusão às condições do terreno por onde o carro anunciado
teve que passar para ganhar o rally.
Ao fazer uso desse dito popular, o locutor do anúncio faz com que se ouça através de
sua própria fala, outra voz, repetida inúmeras vezes, à qual atribui a responsabilidade do que
enuncia. Assim, afirma que o carro em questão levou vantagem, venceu o rally, mas saiu de lá
todo sujo de poeira – fato que pode ser constatado pela imagem que mostra o veículo em uma
estrada empoeirada.

Anúncio 29 – Chevrolet: “sujamos a égua”.

Fonte: Revista Veja, Edição 1969, de 16 de agosto de 2006, p. 95.


126

Recordemos ainda o enunciado “Quem vê cara, não vê configuração” que consta no


anúncio 16 – Dell (p. 72). Conforme Maingueneau (2001, p. 195), “proferir um provérbio (...)
significa fazer com que seja ouvida, por intermédio de sua própria voz, a da ‘sabedoria
popular’, à qual se atribui a responsabilidade do enunciado”. Nesse caso, ao captar o
provérbio, este anúncio tomou a mesma direção enunciativa, reapresentou uma verdade já
presente na memória popular – a de que o caráter de uma pessoa não se mede por sua
aparência – para então reaplicá-la ao produto anunciado, enfatizando que suas vantagens não
podem ser vistas por fora, mas sim, por dentro, como reforça o subtítulo do anúncio “À
primeira vista é só um computador, até a hora em que você olha o que tem dentro.”
127

5. O HUMOR NA PUBLICIDADE: “Fuja do padrão”

As palavras são um material plástico, que se presta a todo tipo de


coisa. (FREUD, 1987)

Anúncio 30 – Nissan: “fuja do padrão”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 581, agosto de 2008, p. 18-19.

Após o percurso teórico que levamos a cabo nos capítulos anteriores, sentimo-nos em
condições de, enfim, retomar nosso propósito inicial de analisar os principais mecanismos de
produção de efeitos humorísticos em anúncios de revista. Este gênero publicitário apresenta a
particularidade de ser elaborado principalmente com recurso ao verbal. Mesmo quando o
icônico parece predominar, haverá alguma informação verbal (marca do produto, slogan,
título etc.) que complementará a significação icônica. Por exemplo, no anúncio acima, é o
128

nome da marca (Nissan) que define tratar-se de um carro desta marca e não de outra, fato que
em publicidade tem grande relevância. Além disso, o título (“sair Quando você da rotina
vai?”) e o slogan (“Fuja do padrão.”) que aparecem justificam sua iconicidade, além de
contribuir com as características do produto que o anunciante quer destacar. Como vimos no
capítulo 3, tópico 3.3, toda imagem publicitária é inevitavelmente polissêmica e pressupõe
várias significações; caberá ao leitor escolher algumas e ignorar outras. Mas, essa seleção não
é aleatória, ela depende em grande medida da configuração do anúncio, da cenografia, do
contexto de enunciação, das intenções postas em jogo, enfim, da forma como a publicidade
quer recriar o mundo.
Também vimos no capítulo 2 que alguns autores já haviam empenhado seus esforços
no sentido de elucidar diversos aspectos relativos ao humor, ao cômico, ao riso em geral.
Principalmente os trabalhos de Bergson (1987), Freud (1987) e Bakhtin (2010), que, cada um
com seus próprios objetivos, apresentaram extensa reflexão sobre o tema. Trata-se de
reflexões importantes no meio acadêmico, retomadas sempre que se quer abordar de alguma
forma o humor. Por isso mesmo, não poderíamos deixar de iniciar nossa análise retomando o
que tais estudiosos propuseram, demonstrando que os mecanismos de análise oferecidos por
eles de fato explicam muitos aspectos relativos à produção do humor verbal encontrados em
nosso corpus.
No entanto, como vimos, cada um destes autores tinha seus próprios objetivos ao
iniciarem um estudo sobre o humor e o cômico, propósitos que não eram fundamentalmente
linguísticos como o nosso. Por este motivo, além de aplicar os conceitos que cada autor
oferece para a análise dos efeitos risíveis, procuraremos também analisar quais são os
mecanismos linguísticos e pragmáticos que estão envolvidos na produção do humor verbal.
Desta forma, iniciaremos o capítulo retomando as reflexões de Bergson (1987) sobre o
cômico de palavras, seguido das de Freud (1987) sobre os chistes e das de Bakhtin (2010)
com o riso carnavalesco, acrescentando, ao final, reflexões linguísticas embasadas nas teorias
que apresentamos no capítulo 4 desta dissertação.

5.1 O cômico de palavras na publicidade

Não se pode dizer que a publicidade explora o riso sob seu aspecto denegridor,
corretivo e insensível, mas principalmente, sob o aspecto social que lhe permite alcançar
maior cumplicidade com seus consumidores. A publicidade não quer exatamente corrigir ou
129

denegrir, muito menos mostrar-se insensível ao seu interlocutor; ela quer, antes de tudo,
conquistá-lo; e para isso, se apropria de fenômenos risíveis que permeiam a sociedade,
principalmente os que podem ser suscitados e criados por meio da linguagem. Por isso
mesmo, das categorias de cômico propostas por Bergson (1987), o cômico de palavras é o que
suscita maior interesse para nossas análises.
Ao abordar o cômico de palavras, o autor enfatizou sua semelhança com o cômico de
situações, dizendo que a comicidade da linguagem deve corresponder, ponto por ponto, à
comicidade das ações e das situações e que aquela não passa da projeção destas no plano das
palavras (idem, p. 61). Sendo assim, recuperemos as imagens dos brinquedos com que ilustrou
as situações e as ações cômicas: o que há de cômico no boneco de molas é a repetição de seu
movimento mecânico, quanto mais comprimido mais ele salta; quanto ao fantoche, sua
comicidade reside na manipulação de seus cordões, dando-lhe movimentos que não lhe são
naturais, e sim mecânicos; já a bola de neve é a imagem da combinação e da interferência,
uma ação que se soma a outra levando a uma terceira, e que quanto mais se propaga mais ela
se acrescenta a si mesma, ganhando proporções potencialmente cômicas. Bergson (idem)
destaca ainda que os procedimentos que estão por trás destas três imagens cômicas são a
repetição, a inversão e a interferência de séries. Tais procedimentos, no entanto, só tornam o
objeto cômico se, por traz de seu funcionamento, permitem identificar uma rigidez, algo de já
feito, certa mecanicidade que se sobrepõe ao vivo, ao humano, ao natural, ao esperado.
Pensemos no cômico da linguagem. As palavras também podem ser repetidas de modo
que uma ideia inicialmente comprimida pela convenção seja distendida para voltar a ser
comprimida e distendida inúmeras vezes, como um boneco de molas; as palavras também
podem ser manipuladas, invertidas, desviadas de seu curso habitual de significação,
lembrando a imagem do fantoche a cordas; e ainda, as palavras podem, sem perderem seu
sentido habitual, sofrer interferência de outras palavras ou do contexto, tendo sua significação
acrescida de outras possibilidades, como ocorre com a bola de neve. Os procedimentos que
estão por trás da comicidade de palavras, portanto, são análogos aos que estão por trás da
comicidade de situação, são eles: a inversão (que o autor considera o menos interessante dos
três para o cômico de palavras), a interferência (que dá origem a vários jogos de palavras) e a
transposição (que é o procedimento mais produtivo dos três de acordo com o autor).
Existem, em nossa língua, frases que, de tão repetidas, enrijeceram-se, comprimiram-
se e tornaram-se modelos consagrados de frases. Este é o caso dos provérbios, dos ditos
populares, dos jargões, dos idiomatismos e de outras tantas frases feitas. Essas frases, no
entanto, são fontes de inúmeras imitações cômicas, bastando para isso distendê-las,
130

acrescentar-lhes uma ideia absurda, inserir-lhes qualquer expressão que lhes quebre a rotina,
fazer com que duas séries de raciocínios bem diferentes se cruzem num mesmo enunciado,
enfim, evidenciar que ela foi manipulada de alguma forma, como um dos brinquedos da
infância.
Vimos, em capítulos anteriores, algumas publicidades que captavam provérbios e ditos
populares de modo que sua inserção no anúncio resultava em efeito potencialmente risível.
Este é o caso do anúncio Chevrolet (anúncio 29, p. 125), cuja comicidade foi construída a
partir do idiomatismo “lavar a égua”. Os idiomatismos são, de acordo com Possenti (2010, p.
62), “expressões formadas segundo as regras de sintaxe da língua, mas que são interpretadas
como se fossem uma palavra”. Há, nesta definição, uma remissão à rigidez da linguagem,
visto que tais expressões que se comportam como as palavras, sofrem poucas adaptações de
aspectos morfossintáticos (e algumas vezes nenhuma adaptação). Logo, essas expressões
encontram-se comprimidas, encapsuladas pela convenção. No caso do idiomatismo em
questão, para que ainda possa ser interpretado como tal, ele até pode sofrer adaptações
relativas ao tempo verbal (lavei, lavou, lavaram etc.), mas não modificações lexicais (lavar os
cavalos, os cachorros etc). Porém, neste anúncio, essa regra de construção dos idiomatismos
foi quebrada sem que sua interpretação original se tenha perdido. O emprego de “sujamos”
em lugar de “lavamos” rompe com um padrão pré-estabelecido, provoca uma surpresa, um
estranhamento, além de evidenciar o quanto essa expressão é rígida em nossa língua.
A rigidez dos idiomatismos está associada a um valor convencional proveniente do
uso comunicativo corrente. São expressões tantas vezes repetidas que acabam remetendo
sempre a uma mesma enunciação coletiva, como se não houvesse um único responsável por
ela, mas vários, na verdade, todos os que povoam a coletividade social. Sob uma perspectiva
discursiva, diremos então que este anúncio, ao subverter uma expressão como esta, nos
permite ouvir a voz de um enunciador proveniente do senso comum, como já observamos no
capítulo precedente.
Lembremos ainda outro exemplo análogo: “Quem vê cara, não vê configuração”
(anúncio 16, p. 72) que transpõe a enunciação proverbial “Quem vê cara, não vê coração” a
uma enunciação publicitária, atribuindo ao produto a mesma legitimidade discursiva do senso
comum. Também neste caso, esta voz é proclamada por meio de um enunciado polifônico.
Nos termos de Bergson (idem) trata-se de uma transposição de ideias, uma ideia que
circula num determinado ambiente é repetida em outro ambiente, adquirindo assim, um novo
matiz, uma nova tonalidade. Esse procedimento é, segundo o autor, uma fonte riquíssima de
comicidade de palavras, uma vez que possibilita ressignificar os provérbios, os ditos e as
131

frases feitas a partir de sua reinserção em um novo ambiente discursivo. Transpõe-se uma
frase de seu uso mais sério, solene, formal, para um uso mais familiar, mais informal, ou vice-
versa.
As transposições analisadas acima são ainda acompanhadas de uma inserção que
quebra a rotina do dito popular, evidenciando uma das leis propostas pelo autor para o
surgimento da comicidade de palavras – a de que ao inserir uma ideia absurda num modelo
consagrado de frase, obteremos uma expressão cômica. Nos dois anúncios comentados, esta
“ideia absurda” foi conseguida pela substituição de palavras – “sujamos” em lugar de
“lavamos” e “configuração” em lugar de “coração”.
Foi também por meio do procedimento de transposição que os anúncios seguintes
elaboraram seus títulos bem-humorados. Tais anúncios, a partir de uma recomendação
institucional veiculada principalmente nas publicidades de bebidas alcoólicas (“Se beber, não
dirija” ou “Se for dirigir, não beba”), deram-lhe nova roupagem, transpondo-a de seu tom
mais sério e formal a um menos sério e mais descontraído, além de adaptá-la a outros tipos de
publicidade que não os de cerveja.
Vale lembrar que esse slogan foi amplamente repetido nas propagandas do governo
federal e nas publicidades de cervejas por um longo período e por isso instalou-se na memória
coletiva, adquirindo um estatuto quase proverbial. Tal fato facilitou que ele pudesse ser
imitado diversas vezes com outros propósitos, que não mais o de alertar os motoristas sobre
os efeitos nocivos do álcool. Lembremo-nos inicialmente do anúncio da cerveja Nova Schin
(anúncio 28, p. 123). Nele, por tratar-se de uma publicidade de cerveja, o slogan aparece tanto
em sua forma institucional, ao pé da página, como transposto a um tom menos formal no alto:
“Se rebolar, não derrame”. Também este é um caso de polifonia, uma vez que “Se rebolar,
não derrame” faz ouvir o enunciador de “Se beber não dirija”.
Nos três anúncios seguintes, no entanto, essa voz é resgatada e associada a anúncios de
carro, servindo a outros propósitos. Sua transposição, ainda que não apague a ideia inicial de
recomendação, adquire novos matizes, também lúdicos, num jogo que favorece ao anunciante
chamar a atenção, criar interesse e garantir a memorização do produto anunciado pelo
consumidor.
No anúncio 31, ao se substituir “beber” por “babar” se cria um jogo com a sonoridade
que há entre as duas palavras, mas ao fazê-lo, a voz que enuncia o slogan institucional não foi
apagada, ao contrário, essa voz legitima a enunciação, torna-a reconhecível e familiar e, por
isso mesmo, divertida. No entanto essa não é a única voz que o anúncio permite ouvir. Ele
também aciona outra voz popular, aquela relacionada ao verbo “babar”, que em nossa língua
132

comumente adquire um sentido figurado, algo próximo a gostar muito ou ter satisfação com
algo.
Na verdade, além da similaridade fônica entre “beber” e “babar”, também há uma
brincadeira entre “babar” significando estado de satisfação e “babar”, sujar com baba. Isso
ocorre porque “babar” é uma ação decorrente de “salivar” que por sua vez está relacionada ao
fato de que quando se gosta ou se quer muito uma comida, se produz mais saliva. Daí, a
palavra “babar” adquire em seu uso conotativo este sema virtual que significa satisfação,
gosto, fato que foi aproveitado em prol do tom bem-humorado do anúncio.

Anúncio 31 – Volkswagen: “se babar, não dirija”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1581, de 20 de outubro de 1999, p. 16-17.

Para que possamos perceber a polifonia deste enunciado, precisamos recorrer a


conhecimentos que acreditamos também serem do locutor que as empregou. Afinal, em se
tratando de um anúncio, sabemos que esta subversão não é imune à intenção do publicitário,
portanto, cabe pressupor-lhe alguma relevância. Para tanto, temos inevitavelmente que
recorrer ao contexto comunicativo e aos interlocutores previstos para o anúncio.
Sendo assim, que contribuições essas vozes acrescentariam ao anúncio? Primeiro,
sugere que o comprador de um carro como o anunciado vai ficar muito feliz e satisfeito com
sua aquisição, vai portanto “babar” o carro. Mas isso é dito de maneira indireta, por meio do
133

jogo lúdico que resgata o slogan institucional. Este por sua vez é subvertido de modo que a
preocupação não é mais com o fato de o consumidor beber antes de dirigir, mas sim de que
ele fique tão satisfeito que babe literalmente o carro, sujando-o com sua baba.
Vejamos, agora, no anúncio 32, que o mesmo slogan foi transposto de modo diferente.
Também neste caso, considerando a terminologia de Bergson (1987), ocorre uma
transposição. Mas, diferentemente do que aconteceu no outro exemplo, cujo sentido foi
modificado unicamente pela alteração de uma palavra, aqui todo o slogan foi alterado com a
inserção do sintagma “o carro”.

Anúncio 32 – Toyota: “se o carro beber, não dirija”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 483, de outubro de 2000, p. 60, 61

Tanto o enunciado “se beber, não dirija” quanto “se o carro beber, não dirija” são
recomendações direcionadas aos motoristas, com a diferença de que o primeiro aconselha o
motorista a não beber e dirigir, enquanto o segundo aconselha a não dirigir um carro que
consome muita gasolina, modificação possibilitada pela inserção de “o carro” no slogan
original. Esse procedimento de inserir algo novo em uma frase estereotipada como os slogans
é um procedimento potencialmente cômico, tanto quanto a transposição de uma tonalidade
institucional a outra, menos formal, como a da publicidade. Como afirma Saussure (1972), o
valor de um signo depende de sua correlação com outros signos, fato que explica a mudança
134

de sentido sofrida pelo slogan ao sofrer tal modificação. Por mais que o enunciado inicial
tenha sido fixado pela convenção social e que isso lhe garanta certa estabilidade significativa,
o valor de suas partes continua obedecendo às regras da língua. Assim, ao inserirmos algo
novo numa frase feita, ela inevitavelmente se reacomodará para receber o novo signo e
adaptar-se à sua presença. Mas esta reacomodação não nos é dada a priori, ela depende em
grande medida de nossas experiências linguísticas e comunicativas com nosso grupo social e
cultural.
Ainda que possamos perceber a alusão que se faz ao slogan institucional, neste novo
exemplo, a interpretação inicial é desviada: já não é mais o motorista que está em questão,
mas o carro. A palavra “beber” adquire um valor conotativo, polissêmico na verdade, uma vez
que aponta tanto para beber um líquido como para consumir muita gasolina. Assim, o leitor
precisa encontrar alguma relevância para o fato de o locutor referir-se ao carro ao invés do
motorista, e tal relevância depende do conhecimento partilhado entre ambos – o de que os
carros “bebem”, consomem muita gasolina e que isso aumenta os gastos. As imagens (a do
carro e a da prancheta com um teste comparativo que mede o consumo do carro) também
facilitam esta interpretação.
Para criar comicidade com as palavras, também podemos manipulá-las, como fazemos
com o fantoche a cordas, fazendo-as dizer mais do que normalmente dizem. Trata-se neste
caso do mesmo procedimento de causar estranhamento, introduzindo uma ideia absurda em
algum modelo pré-estabelecido, de modo que a rigidez a que estava submetida a expressão
linguística torne-se evidente. Na classificação de Bergson (1987), trata-se de uma
interferência de séries, ou melhor, dois sentidos bem distantes são aproximados de alguma
forma de modo que um interfira no outro, como ocorre no anúncio 33.
Comecemos por observar a cenografia deste anúncio. O colorido da imagem, a semi-
nudez, o adorno na cabeça da personagem, a pintura corporal, tudo remete a uma cena
carnavalesca. É por meio desta cenografia que o leitor estabelece seu primeiro contato com o
anúncio, mobilizando, portanto toda a sua competência linguística e enciclopédica sobre o
tema – tudo o que sabe sobre carnaval, o vocabulário que circula em torno desse assunto etc.
O leitor fica então preparado para receber uma mensagem ou uma informação relativa ao
carnaval, fato que, de alguma forma, se não direciona, pelo menos interfere em sua
interpretação do texto publicitário.
É com esta cenografia em mente que o leitor inicia sua leitura do enunciado “Por ela,
você viraria mestre-sala, mestre-quarto e mestre-banheira-com-hidro.” A cenografia eleita
para essa enunciação é constituída basicamente pela linguagem icônica, mas como vimos no
135

capítulo 3, tópico, 3.3, toda imagem é polissêmica e é no verbal que em geral ela encontra sua
ancoragem. A linguagem verbal vai determinar quais sentidos devem ser atribuídos à imagem.
Assim, neste anúncio, para interpretá-lo com mais precisão, é preciso relacionar os dois tipos
de linguagens presentes. A primeira informação verbal, a que aparece no alto do anúncio, já
nos dá uma primeira pista, mas ainda pode deixar dúvida sobre a figura feminina que está em
destaque – é uma sambista? Está representando alguma escola de samba? Está apenas
ilustrando a divulgação de algum evento carnavalesco?

Anúncio 33 – Playboy: “mestre-sala”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 588, fevereiro de 2009, p. 67.


136

A atribuição de sentido se concretiza quando lemos a próxima informação verbal, que


vem abaixo na página: “Jéssica Maia, a Rainha do Carnaval 2009 na Playboy de fevereiro.” A
partir deste momento, a interpretação do primeiro enunciado não coloca em dúvida tratar-se
de um jogo de palavras que alude à sexualidade.
Este jogo se inicia com a palavra “mestre-sala”, cuja significação não guarda nenhuma
similaridade com as unidades lexicais que a originam – “mestre” e “sala”. Trata-se de uma
estrutura corrente em nossa língua, que de tão repetida já não nos faz lembrar o sentido
concreto de suas partes. No entanto, essa palavra ganha espirituosidade e torna-se cômica ao
ser contrastada com outras que recorreram ao mesmo processo de composição, mas que, ao
contrário, não são usuais, não possuem um sentido que lhe seja próprio senão o de suas partes.
A construção de “mestre-quarto” e “mestre-banheira-com-hidro” por não serem construções
comuns, acabam desviando o significado corrente de “mestre-sala”, tornando evidentes os
significados das partes quando tomadas isoladamente. A palavra “mestre-sala” sofreu
interferência das duas outras composições, tendo seu sentido convencional desviado. Vemos
que, neste caso, as palavras foram manipuladas de modo a significarem mais do que
denotariam em seu uso cotidiano. Ademais, não podemos ignorar a importância da cenografia
mobilizada para esta enunciação humorística. Ela torna-se mais efetiva pelo fato de a imagem
reportar a uma cena típica do período do carnaval.
Se essas palavras não possuem significados próximos, como ocorre essa interferência?
Ou por que ela ocorre?
Numa relação de associação, os termos “sala”, “quarto” e “banheira com hidro”,
tomados isoladamente, podem tirar sua significação de {casa, mansão, hotel, pousada, motel
etc.}. O termo sala, no entanto, como vimos, compõe uma palavra composta “mestre-sala”
que não se insere neste sistema significativo, faz parte de outro {porta-bandeira, passistas,
samba-enredo, carnavalesco etc.}. Como as palavras “mestre-quarto” e “mestre-banheira com
hidro” convencionalmente não se inscrevem neste último, seus valores terão que ser
encontrados dentro do primeiro (casa, hotel, motel...).
Os sememas “sala”, “quarto” e “banheira com hidro”, tomados assim isoladamente,
possuem um sema genérico comum a todos – que poderia ser traduzido como /relativos a uma
casa (ou a um hotel, ou a um motel)/. Mas como sala faz parte de um todo não pode ser
considerado isoladamente, resta analisar “quarto” e “banheira com hidro”, que por sua vez,
em seu conjunto de traços distintivos, podem apresentar em comum o sema específico
/relativos a um hotel ou motel/. Dentro do anúncio em questão, estes sememas adquirem um
sema virtual / relativo a sexo/ que só é atualizado dentro do contexto apresentado,
137

constituindo a conotação que possibilita o jogo cômico com as palavras. Fica assim,
justificado que tenha havido entre as palavras uma interferência de séries.
Existem palavras em nossa língua que, embora possuam significados diferentes, são
escritas de maneira idêntica (homonímia), como é o caso de “pulso”; e existem também
palavras cujo significado desliza entre duas ou mais significações mais ou menos próximas
(polissemia), como é o caso de “cortar”. Essas duas palavras ainda podem se unir, formando o
idiomatismo “cortar os pulsos”, que em linhas gerais significa ficar desesperado, fora de si,
suicidar-se ou algo próximo. Assim, a interpretação dessa expressão será necessariamente
filtrada por uma dessas possibilidades, fato que só será possível dentro de um contexto
específico, como ilustrado no anúncio 34.

Anúncio 34 – Intelig: “cortar os pulsos”.

Fonte: Revista Veja, 1905, 18 de maio de 2005, p. 95.


138

No anúncio, no entanto, o que se percebe, no caso de “pulso”, é que dois sistemas de


significações, que em nossa língua são independentes, acabaram interferindo um no outro,
causando um efeito surpreendentemente cômico. Isto é, dois sistemas de ideias diferentes –
pulso telefônico e pulso (parte do corpo humano) – que se superpõem na mesma frase, ambas
expressas por uma única palavra, o que permite que as duas ideias possam interferir uma na
outra. “Cortar os pulsos” remete tanto à auto-mutilação, forma interpretada pelos
personagens, como à redução de despesas com ligação telefônica. Temos, assim, de acordo
com Bergson, o mecanismo de interferência entre dois sistemas de significações diferentes
criando um efeito cômico no anúncio.
O procedimento da inversão, como já previa Bergson (1987), é o menos produtivo.
Ainda assim, encontramos um caso de inversão potencialmente cômica no anúncio Ford
(anúncio 24, p. 96). Veja-se que a inversão, que ocorreu no âmbito sintagmático “mal
começou”, “começou mal”, além de colocar o anunciante em uma situação favorável frente à
concorrência, também produz um jogo bem-humorado com as palavras.

5.2 O chiste publicitário

De acordo com Freud (1987), uma das características do chiste é sua condição de ser
expresso exclusivamente por meio verbal e de depender em geral dessa verbalização para
surtir efeitos risíveis. Com base neste postulado inicial, o autor vai apresentar três técnicas
principais, por meio das quais se alcança efeito chistoso: a condensação, o deslocamento e a
representação indireta.
A condensação consiste na técnica de produção dos chistes de palavras; neste caso o
humor depende principalmente da verbalização, da escolha das palavras, ou da manipulação a
que elas foram submetidas, resultando, em geral, num jogo com duplo sentido. O tipo de
condensação mais conhecido é a formação de um novo vocábulo a partir de dois outros já
existentes, como no caso da palavra “familionariamente” resultante da junção de
“familiarmente” com “milionariamente”, exemplo dado por Freud (1987, p. 25). No entanto,
como vimos no capítulo 2, o autor também define como condensação o uso múltiplo do
mesmo material (quando duas palavras ou expressões possuem algum tipo de similaridade
fônica), os jogos de palavras e as expressões com duplo sentido, visto que todas são técnicas
que possibilitam a economia. Reconhecemos a condensação quando uma palavra, expressão
ou até mesmo uma frase inteira remete a mais de uma possibilidade de interpretação. O duplo
sentido depende exclusivamente da seleção das palavras que expressam uma ideia e não da
139

ideia em si mesma. Por este motivo, ao ser parafraseado o chiste perde seu efeito e sua graça.
Nestes casos, o chiste aponta desde o início sua múltipla possibilidade de sentidos, depende
do alocutário a quem o chiste é contado perceber que ele condensa várias significações, que
ele remete a duas ou mais interpretações possíveis.
A condensação aproxima-se muito do que Bergson (1987) chamou de cômico de
palavras. A maioria das ilustrações usadas no tópico anterior (O cômico de palavras na
publicidade) também ilustra os chistes de palavras. O anúncio Chevrolet (p. 125), por
exemplo, é uma condensação com formação de substituto (“lavamos” em lugar de
“sujamos”). Aplicando o procedimento de redução proposto por Freud (1987), poderíamos
dizer que a expressão “Sujamos a égua” se parafraseada significa algo como: “neste rali,
conquistamos o que pretendíamos (lavamos a égua), mas como o caminho era muito
empoeirado, saímos de lá bastante sujos (sujamos a égua)”. Veja-se que, neste caso, ocorrem
dois processos, primeiro, a expressão “conquistamos o que pretendíamos” está condensada em
“lavamos a égua”, depois, a palavra “sujamos” em lugar de “lavamos” condensa toda a
paráfrase feita; um raciocínio que, parafraseado, não resulta no mesmo efeito. Outro exemplo
de condensação com formação de substituto em que ocorre uma modificação é o anúncio Dell
(p. 72) “Quem vê cara não vê configuração”. Neste caso, a modificação não ocorre em uma
palavra, mas no próprio provérbio “Quem vê cara, não vê coração”, em que a palavra
“coração” do provérbio original foi substituída por “configuração.” O sentido a que remete o
provérbio é aproveitado, mas atribuído não mais a pessoas, mas ao computador, donde a
palavra “configuração” ser mais adequada que “coração”.
Um típico exemplo de condensação, similar à que ocorre em “familionariamente”,
pode ser encontrada no anúncio 64 (p. 177), onde encontramos a seguinte frase: “Gripe
francesa: aquela que zidana com tudo”. A palavra “zidana” condensa em sua forma verbal
todo um pensamento que dito de outra forma perderia sua graça, uma vez que nesta palavra
podemos reconhecer dois vocábulos bem distintos: o substantivo “Zidane” (sobrenome do
jogador francês Zinedine Zidane) e o verbo “danar” (causar danos). Um possível quadro
diagramático desta construção seria
Zinedine Zidan e
Danar
zidana
Uma paráfrase deste chiste poderia ser proposta nos seguintes termos: “gripe francesa:
aquela que causa danos tanto quanto nos causou danos o jogador Zinedine Zidane,
responsável por dois dos três gols que nos levou à derrota na copa de 98”. Expresso desta
140

forma, o pensamento perde seu efeito de chiste, sua graça está justamente na economia que a
formação do novo vocábulo permitiu realizar. Mas a economia pode ser obtida ainda de outras
formas, como veremos nos exemplos seguintes.
O anúncio 31 – Volkswagen (p.133) é um exemplo de condensação com uso múltiplo
do mesmo material. Ele explora a semelhança fônica das palavras “babar” e “beber”, em uma
formulação que reproduz outra bastante conhecida pelos leitores: “Se beber não dirija. Se
dirigir não beba.” Neste caso, ocorreu uma leve modificação no interior da palavra, de modo a
manter a semelhança fônica entre elas. A graça de “Se babar, não dirija. Se dirigir, não babe.”
depende principalmente dessa proximidade fônica que é o que possibilita que o pensamento
expresso seja chistoso, mesmo que não haja uma possível correlação de significados entre as
duas palavras. Outro exemplo de uso múltiplo do mesmo material, mas agora por inversão das
palavras, é o anúncio Ford (p. 100), no qual as expressões “começou mal” e “mal começou” é
que garantem alguma graça ao anúncio, pois invertem completamente os sentidos pretendidos
pelo anunciante que compara seu produto ao dos concorrentes. A simples inversão dessas
palavras produz expressões completamente diferentes entre si quanto ao significado, mas com
similaridade fônica.
Também é um caso de condensação o jogo de palavras produzido quando há
ocorrência de duas palavras ou expressões de grafia igual que possuem significados distintos,
como ocorre no anúncio 34 (p. 137), em que vimos um caso típico de duplo sentido com a
expressão “cortar os pulsos” na frase “Quando eu disse que era para cortar os pulsos, eu tava
falando da conta telefônica.” A frase é chistosa em decorrência da dupla possibilidade de
significação da expressão “cortar os pulsos” que possui dois significados diferentes, sendo
que no anúncio, o mais possível não era o da auto-mutilação sugerida pela imagem e sim o da
conta telefônica. Pode ocorrer ainda um jogo de palavras ou um duplo sentido quando os dois
sentidos de uma palavra ou expressão não são óbvios da mesma maneira, sendo um deles
mais esperado dentro de um determinado contexto. Por meio de uma espécie de alusão, o
significado menos provável ganha proeminência, saltando ao primeiro plano de acordo com o
contexto em que a sentença for produzida, como o que ocorre no anúncio 35 que
apresentamos a seguir.
A palavra “cavalos” remete a dois sistemas significativos bem diferentes: refere-se
tanto a animal quanto à potência do carro. A cenografia nos indica que a melhor interpretação
seria a segunda, visto que tudo neste anúncio nos remete a uma publicidade de carro – a
imagem, as especificações técnicas, os detalhamentos. No entanto, o enunciado “São 145
cavalos que acham que estão sendo perseguidos” atribui à palavra “cavalos” o traço semântico
141

/+ animado/ que a afasta dessa interpretação. Esta similaridade é coerente com as


características que se quer atribuir ao carro, já que os cavalos (animal) são considerados
fortes, potentes, rápidos etc., fato que legitima a potencialidade do veículo. Por isso, podemos
dizer que a palavra “cavalos” neste anúncio é um exemplo de condensação: remete às duas
possibilidades por meio de um único vocábulo.

Anúncio 35 – Ford Focus: “145 cavalos”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2139, de 18 de novembro de 2009, p. 12-13.

Também é uma condensação o jogo entre as palavras “patrão” e “patroa” no anúncio


36. “Patrão” significa normalmente aquele que emprega, que ordena, que comanda
funcionários em uma empresa, indústria ou comércio. “Patroa”, apesar de ser o feminino de
patrão, adquire em geral a significação de mulher do patrão, ou ainda a dona de casa que
gerencia serviços domésticos. O jogo, neste caso, provém do uso conotativo da palavra
“patroa” que em seu sentido figurado significa “esposa”, aquela que manda em casa. Torna-se
cômica a ideia de que o caminhoneiro recorrendo praticamente à mesma palavra (uso múltiplo
do mesmo material) tenha conseguido referir-se a seu empregador e à sua esposa. Ambos, sob
perspectivas diferentes, têm autoridade para influenciar seu comportamento – o patrão lhe
determina o serviço a ser feito e a patroa o estimula a querer voltar.
142

Anúncio 36 – Ford: “patrão X patroa”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2192, de 24 de novembro de 2010, p. 36-37.

Anúncio 37 – Cerveja Sol.

Fonte:
Revista Veja, Ed. 1980, de 1 de novembro de 2006, p. 32-33.

Vejamos ainda a expressão “tomar sol” que aparece no anúncio da Cerveja Sol,
também um caso de condensação por múltiplo uso do mesmo material. Esta expressão é
143

chistosa por seu caráter ambíguo – “tomar sol” aquece, uma vez que o sol é um astro que
emite calor; mas “tomar Sol”, a cerveja, refresca, uma vez que cerveja se toma gelada. Além
disso, faz parte da cultura das pessoas que habitam próximo ao litoral brasileiro o costume de
ir à praia “tomar sol” e “tomar cerveja”, logo, se o nome da cerveja é “Sol”, as pessoas podem
“tomar Sol” nos dois sentidos que lhe podem ser atribuídos.
Como dissemos antes, os chistes de palavras não ocultam nenhum dos sentidos
possibilitados pela verbalização. Podemos até demorar a percebê-los, mas eles estão ali desde
o início, materializados pela forma linguística escolhida para expressá-los. Basta identificar a
palavra ou expressão que foi manipulada, bem como a ideia que ela está apresentando de
forma condensada para que seu efeito cômico se manifeste. Tais chistes são fontes de
economia psíquica, pois ao condensarem em uma palavra ou expressão mais de uma
possibilidade interpretativa, nos desobrigam de raciocinar seriamente sob os moldes da
educação intelectual a que fomos acostumados.
Os chistes de pensamento são outra espécie de chiste; não se manifestam por sua
forma de expressão linguística, como nos exemplos dados até agora, mas sim por sua forma
de guiar o raciocínio, fazendo com que a própria ideia expressa seja chistosa. Dentre as
principais técnicas de elaboração destes chistes, destacam-se o deslocamento e a
representação indireta. O que torna os chistes produzidos por deslocamento risíveis é o fato de
que a ideia expressa inicialmente parece desviar-se abruptamente para uma direção
inesperada. Comparando o deslocamento com a condensação, percebemos que nesta, o
alocutário tem, desde o início, elementos linguísticos que indicam que aquilo que está
ouvindo (ou lendo) contém mais de um sentido previsível, ao passo que naquele, o alocutário
parece ser inicialmente enganado, e só percebe que o raciocínio foi desviado ao final. Quanto
à representação indireta, trata-se de dizer uma coisa querendo na verdade dizer outra, ou
ainda, de fazer alusão ou estabelecer similaridade entre duas coisas que inicialmente não
teriam nada em comum. Neste caso, é possível que o alocutário perceba desde o início o que é
que está por trás da ideia que lhe é transmitida, embora isto possa de fato não ocorrer.
A técnica de condensação pode perfeitamente combinar-se com a do deslocamento ou
com a da representação indireta. Lembremo-nos do anúncio da Toyota (p. 133) “Se o carro
beber, não dirija”. Esta expressão, por um lado, carrega em si duas interpretações
(condensação), por outro, ela promove um desvio da interpretação convencional para outra,
potencialmente cômica. Este é um típico caso de deslocamento.
Ainda explorando o mesmo slogan, vejamos o anúncio seguinte, que não subverte o
enunciado inicial, mas acrescenta-lhe uma informação pressuposta, a de que quem bebe fica
144

alegre – “Quem dirige um Fiat fica alegre do mesmo jeito”. Neste caso, estabelece-se uma
similaridade entre a ação de beber e a de dirigir o veículo anunciado, um típico caso de
representação indireta.

Anúncio 38 – Fiat: “se dirigir, não beba”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 586, de dezembro de 2008, p. 2, 3.

Os chistes de pensamento, geralmente, promovem um desvio no curso do pensamento


que nos surpreende e nos deixa atônitos por alguns segundos, até descobrirmos que a
interpretação resvala noutra direção, como ilustrado no anúncio Goodyear, a seguir. Nele
temos um exemplo de chiste de pensamento com deslocamento por meio de um raciocínio
aparentemente lógico, mas que resulta quase num absurdo. A afirmação possui inicialmente
uma configuração lógica e coerente: “Nem todo Goodyear chegou em primeiro no Rally dos
Sertões” – conclui-se daí que apenas alguns carros que usavam tais pneus chegaram em
primeiro.
No entanto, a continuação da sentença mostra-se absurda em comparação com esta
primeira: “Os pneus traseiros, por exemplo, chegaram depois dos dianteiros”. A leitura desta
última frase nos revela que a interpretação dada inicialmente estava equivocada, por que
afinal todos os carros que chegaram em primeiro lugar estavam usando pneus Goodyear, fato
que é confirmado pela imagem dos três primeiros lugares da competição. A graça desse
145

anúncio não reside na forma escolhida para sua verbalização, mas no desvio que o raciocínio
encontra no meio do caminho.

Anúncio 39 – Goodyear: “nem todo Goodyear”

Fonte: Revista Veja, Ed. 1969, de 16 de agosto de 2006, p. 73.

A sequência de ilustrações que segue constitui um anúncio que ocupou várias páginas
da revista, criando certa expectativa ao apresentar uma sucessão de fatos importantes da
história mundial contemporânea: a queda do muro de Berlim, o ataque terrorista de 11 de
setembro nos Estados Unidos e o pentacampeonato do Brasil na Copa do Mundo. Com esta
distribuição em várias páginas o anúncio conduziu o raciocínio do leitor de modo que cada
página percorrida fizesse aumentar a curiosidade sobre qual seria o próximo acontecimento
importante que seria apresentado.
146

Anúncio 40 – Sky: “1989”

Fonte: Revista Veja, Ed. 1828, de 12 de novembro de 2003, p.61.

Anúncio 41 – Sky: “2001”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1828, de 12 de novembro de 2003, p.63.


147

Anúncio 42 – Sky: “2002”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1828, de 12 de novembro de 2003, p.65.

Anúncio 43 – Sky: “2003”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1828, de 12 de novembro de 2003, p.67.


148

Anúncio 44 – Sky: “+”

Fonte: Revista Veja, Ed. 1828, de 12 de novembro de 2003, p.68-69.

Essa publicidade da Sky conseguiu um efeito potencialmente chistoso por conduzir o


leitor a esperar algo mais do anúncio. Tal efeito deveu-se ao fato de mostrar como a TV, em
certos momentos importantes da história, mobilizou o mundo diante de si e o leitor é
conduzido de certa forma a esperar que o anúncio ao final proponha algum outro fato
importante. No entanto, a expectativa criada é quebrada com o enunciado “2003: A TV parou
para você ir ao banheiro”. Diante de fatos tão importantes para a história, ir ao banheiro
parece minimamente banal. Além do deslocamento no curso do pensamento, este anúncio
também explora a representação indireta, pois, ao apresentar um fato aparentemente tão banal,
quer mesmo chamar a atenção para a evolução dos aparelhos de televisão. Se antes o mundo
tinha que parar para acompanhar os fatos importantes, agora, é a TV que para para o
telespectador ir ao banheiro sem se preocupar em perder a notícia.
Além da informação aparentemente banal, há também a postura do apresentador na
TV que nitidamente indica que está aguardando o telespectador “voltar do banheiro” para
continuar o noticiário. Vale destacar ainda que junto com os acontecimentos apresentados, o
anúncio foi ilustrando a evolução do próprio aparelho de televisão que de 1989 a 2003 foi se
transformando, tornando-se cada vez mais moderno e atendendo cada vez mais às
necessidades do consumidor (como dar pausa para que ele possa fazer outras coisas e retomar
a programação de onde a havia deixado).
149

Também é um chiste de pensamento o que ocorre com a fala da personagem no


anúncio seguinte: “Relaxa, querida. É arroz integral...”. Este enunciado parece absurdo –
inicialmente a preocupação poderia parecer sem importância para a situação ilustrada. No
entanto, sua relevância encontra respaldo no possível destinatário do produto anunciado:
pessoas preocupadas com uma alimentação mais saudável. Para atribuir sentidos ao que o
personagem diz, o leitor do anúncio precisa ser cooperativo. Isso porque, um texto
publicitário, enquanto ato de comunicação, pressupõe relevância, as informações veiculadas
servem de alguma forma às propriedades do produto anunciado. Para entender, o enunciado
em questão, pois o leitor mobilizará o que sabe da situação de comunicação proposta pela
cenografia instituída para que possa interpretá-lo adequadamente.

Anúncio 45 – Fruthos: “arroz integral”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2079, 24 de setembro de 2008, p. 188.

No entanto, o objetivo do anúncio é evidenciar uma preocupação que está ganhando


proporções cada vez maiores na sociedade, fato que faz com que as pessoas se preocupem
excessivamente. O produto oferecido se destaca dentre outros da mesma categoria ao oferecer
150

ao consumidor a possibilidade de não precisar ter este tipo de preocupação. Logo, aquele
pensamento que inicialmente parecia absurdo, ganha sua lógica. O raciocínio inicial faz
sentido porque representa indiretamente outro raciocínio. É a técnica da representação
indireta, que no anúncio em questão, coloca em destaque a propriedade do produto que é ao
mesmo tempo saboroso e saudável.
Outro caso de representação indireta é o anúncio Kaiser, a seguir, que faz alusão a algo
mais ou menos oculto no anúncio, sugerindo que o consumo de cerveja está associado a
outras imagens que permeiam o imaginário masculino. Em geral, as publicidades de cerveja
estão associadas à imagem feminina – a “loura” gelada, a “boa”, “devassa bem loura” etc.,
estabelecendo-se alguma relação entre a cerveja, o prazer sexual e as mulheres bonitas. Neste
anúncio, essa imagem não é explicitada, mas aludida pelo enunciado “Você dá um gole, fecha
os olhos, suspira um ‘aaaaaaah’ e vamos parando que isso aqui é uma revista de família”. Dar
um gole, fechar os olhos, suspirar são ações associadas pelo publicitário a essas imagens que
circundam o imaginário masculino, fato comprovado pela sequência “e vamos parando que
isso aqui é uma revista de família”. Percebe-se também que o anúncio se apropria de
representações sociais sobre o que é ou não apropriado para a família, e pensar na mulher
como ela normalmente aparece neste tipo de publicidade – seminua, perfeita para o ato sexual
– não é próprio de ser mencionado numa revista dita de família.

Anúncio 46 – Kaiser: “revista de família”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2139, de 18 de novembro de 2009, p. 204.


151

Os chistes publicitários, principalmente os de pensamento, originam-se geralmente da


quebra de uma expectativa que o leitor teria a respeito do tema ou da situação colocada em
cena. Para que a publicidade chistosa produza seu efeito bem-humorado é importante que os
interlocutores mobilizem seus conhecimentos de mundo compartilhado; o publicitário coloca
em jogo aquilo que acredita ser do conhecimento de seu alocutário e este, por sua vez, tenta
recuperar aquilo que acredita compartilhar com o locutor. Entra em questão, portanto, o
princípio de cooperação, a partir do qual os interlocutores atribuirão relevância ao desvio, à
alusão e à economia, encontrados nas mensagens publicitárias.

5.3 A publicidade carnavalesca

Ao analisar a obra de Rabelais, Bakhtin (2010) procurou relacioná-la ao contexto da


época, apontando que o riso carnavalesco era suscitado pelas imagens que permeavam a vida
popular em seus momentos de maior liberdade e descontração. Assim, associou o riso em
Rabelais às imagens de seu tempo, ao vocabulário da praça pública, às imagens e às formas
das festas populares, ao banquete entre amigos e familiares, e tantas outras imagens que a
sociedade medieval e renascentista cultivava sobre o corpo, a sexualidade etc. Com isso o
autor demonstrou que o riso da época representava na verdade a luta entre duas culturas
opostas entre si, a cultura popular que era reprimida e a cultura oficial que a reprimia. De
acordo com Bakhtin (idem), a obra de Rabelais transpôs para a linguagem escrita as palavras e
as imagens que circulavam na língua falada, introduzindo numa esfera oficial (a literatura)
esse riso ambivalente que manifestava os anseios populares.
Desde a Idade Média e o Renascimento, a história da humanidade passou por muitos
momentos e transformações, mas é certo que o embate entre as duas culturas – a popular e a
oficial – sempre existiu e provavelmente continuará existindo, sendo possível reconhecê-las e
diferenciá-las claramente. Como o próprio autor afirma, “não se pode compreender
convenientemente a vida e a luta cultural e literária das épocas passadas, ignorando a cultura
cômica popular particular, que existiu sempre, e que jamais se confundiu com a cultura oficial
das classes dominantes.” (BAKHTIN, 2010, p. 418)
A publicidade é uma instância comunicativa que busca alcançar massivamente a todos
os públicos, sejam eles ligados à cultura popular ou à cultura oficial. Para tanto, ela se apoia
nos mais variados recursos, e não propõe classificações estanques que a diferenciem de
acordo com seu público-alvo. O que estamos chamando de publicidade carnavalesca,
152

portanto, é essa publicidade que resgata a cultura popular, suas imagens, seus mitos, seu
vocabulário, suas crenças, sem distinção de público. Essas publicidades em geral alcançam
grande número de consumidores, independentemente de seu status. Caracterizá-las como
“carnavalescas” pode sugerir que despertam um riso intenso, no entanto, como veremos nos
exemplos dados, tais publicidades são bastante sutis. É possível que, ao reconhecer a
transposição de um elemento cultural popular, familiar, para o ambiente publicitário, o leitor
de divirta, mas não necessariamente ria francamente, como se ouvisse uma piada inédita.
Já vimos, em ilustrações anteriores, alguns anúncios que recorriam a provérbios e ditos
populares de modo criativo e bem-humorado. Todo jargão ou dito popular tem seu espaço
bem delimitado na vida cotidiana, faz parte do dia-a-dia das pessoas na rua, com os amigos,
ou em casa com a família. Seu emprego, portanto, em espaços oficiais, causa, no mínimo,
estranhamento podendo provocar tanto descontração como crítica. Na verdade, o que se
percebe no emprego dessas expressões no âmbito da publicidade é o mesmo que Bakhtin
percebeu em relação à obra de Rabelais: é a voz popular que reflete a sua alegria, a sua
capacidade de suavizar situações tensas, o seu poder de contribuir com os efeitos humorados
pretendidos pelo produtor do anúncio. A publicidade que se configura com base na cultura
popular se aproxima ainda mais de seus consumidores, evocando um ethos reconhecidamente
familiar e por isso mesmo legitimado, confiável. Damos a seguir alguns exemplos de como a
publicidade recruta a cultura popular, suas crenças, seus mitos, suas fantasias, seu modo de
agir e de pensar, estabelecendo com isso uma relação bem-humorada com seus consumidores.
Há casos, inclusive, em que a publicidade resgata expressões ou palavras que já não faziam
mais parte do convívio, reinserindo-as na sociedade, como ocorre com o anúncio Sadia
(anúncio 9, p. 52), que retoma a expressão “Nem a pau, Juvenal!”.
Vejamos a seguir alguns anúncios que empregam elementos da cultura popular que se
tornaram potencialmente cômicos ao serem reinseridos em novo contexto que não o do
cotidiano.
Alguns verbos, como pedir, mandar, achar etc. propiciam uma série de construções
típicas do registro oral, como “ele tá pedindo uma surra”, “ele tá mandando bem” ou “ele tá
se achando”. Já vimos alguns exemplos destas construções mais acima: “tomar sol”, “cortar
os pulsos”. A ilustração seguinte mostra como o anúncio da Brahma explorou ludicamente
uma das possibilidades de uso do verbo “pedir” – “Pede, né?”, que em seu uso conotado
significa aproveitar uma boa oportunidade, ou executar uma ação inevitável.
153

Anúncio 47 – Brahma: “Pede, né?”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2166, de 26 de maio de 2010, p. 40-41.

Anúncio 48 – Ford Fiesta: “se manca”.

Detalhe:

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 568, de agosto de 2007, p. 2-3.


154

Temos ainda o anúncio 48 com a expressão “se manca”, também proveniente do


âmbito coloquial. Os dois anúncios colocam em cena situações bem familiares: no anúncio
47, o enunciado “sua mulher e a dos seus amigos vão passar a tarde de domingo num chá de
panela” sugere que os homens, não tendo que dar atenção às suas mulheres, ficarão livres para
se reunirem e beberem cerveja, por isso a situação “pede”; já no anúncio 48, a cena familiar é
a do comerciante que com a desculpa de que não possui troco oferece balas, mas que ao
receber a contraproposta de receber com bala se sente ofendido, solicitando ao cliente que
perceba a inconveniência de sua proposta (“se manca”). Nos dois casos, o reconhecimento de
situações cotidianas, familiares, bem como o emprego de jargões que seriam possivelmente
comuns a estas situações, pode promover a cumplicidade do leitor, divertindo-o.
Em geral, o que estamos chamando de publicidade carnavalesca, ao explorar as frases
feitas, os provérbios e os ditos populares, também apresenta situações bem cotidianas e
comuns na vida das pessoas (como acima), ou saberes que circulam entre as pessoas sem
poderem ser atribuídos a ninguém, pois fazem parte das representações sociais, às quais o
publicitário recorre em busca de elementos culturais que possuam aceitação geral, e que,
preferentemente, não sejam questionados ou criticados por ninguém. Em geral, tais elementos
são manipulados, apresentados sob uma nova roupagem, de modo a responderem
positivamente aos benefícios que se quer transmitir do produto. Dependendo do tipo de
consumidor a que está destinado, percebemos que o humor suscitado neste tipo de publicidade
pode ser mais ou menos tendencioso. Em anúncios destinados aos homens, é mais recorrente
a alusão à sexualidade, à conquista e à traição, por exemplo; mas se, ao contrário, é destinado
ao público feminino, exploram mais o romantismo, a beleza e a sensualidade. Este é o caso
dos dois exemplos seguintes, que exploram esse imaginário que a sociedade alimenta sobre o
comportamento masculino.
O primeiro, um anúncio dos sapatos Ferracini, coloca em cena um homem sorridente
que, usando os sapatos anunciados, parece despertar o interesse e a atenção das três mulheres
que se encontram com ele no vagão de um trem.
No alto do vagão aparece escrito “Próxima estação: Paraíso”, e abaixo, o slogan “O
seu dia pode ser diferente”. O poder de conquista do homem vem associado aos atributos do
sapato. Adquirir os sapatos torna-se, pois, um meio de conquistar a atenção do público
feminino, fato que deixará o homem no paraíso, isto é, do jeito que ele gosta de estar ou como
ele gosta de se sentir.
155

Anúncio 49 – Ferracini 24h – “paraíso”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 611, de dezembro de 2010, p. 33.

Veja-se que ao apresentar esta cenografia, o anúncio colhe do mundo os aspectos que
se supõe fazerem parte das representações sociais sobre o comportamento masculino, suas
fantasias, seus ideais de felicidade, e recria um mundo perfeito (um “paraíso”), onde o homem
pode viver o que quiser, tendo a atenção de todas as mulheres a seu redor, bastando para isso,
adquirir o produto anunciado, os sapatos Ferracini 24h. A expressão facial do personagem
demonstra satisfação com a situação, possibilidade que é oferecida ao consumidor por meio
do enunciado “O seu dia pode ser diferente”. Todas essas informações encontram-se
implícitas no anúncio. Para recuperá-las, o leitor precisa ser cooperativo. Sua potencialidade
cômica reside na economia psíquica que ele permite fazer ao sugerir tudo isso de modo bem
simples, com o mínimo de informação verbal, mas explorando ao máximo o poder de
sugestão das imagens.
Tomando esta mesma direção, o anúncio seguinte também explora esse imaginário
masculino, aludindo à conquista, à sexualidade e, a nosso ver, à traição. Seguindo os
parâmetros da ilustração acima, a modelo posta em cena é uma representante fiel do que seja
156

uma mulher atraente, bonita, enfim desejada pelo homem. Tal característica é enfatizada com
dados – nome e medidas – que correspondem a uma imagem feminina socialmente
reconhecida como ideal. O poder de sugestão deste anúncio encontra-se também marcado
verbalmente, por meio de expressões que recuperam o estereótipo de homem “mulherengo”
(“você pode ter qualquer companhia em seu carro”), mas que prefere guardar sigilo (“para que
você mostre o que quiser”). O produto proposto, associado a estas imagens, transforma-se
numa necessidade para os homens que se identificarem com a proposta. E o anúncio torna-se
divertido exatamente por suscitar uma forma de pensar bastante peculiar aos homens.

Anúncio 50 – Intercontrol: “calor interno”

INTERCONTROL REDUZ O CALOR INTERNO


EM SEU CARRO.
MAS SÓ O DOS RAIOS SOLARES.

Você pode ter qualquer companhia no seu


carro, menos a dos raios UV. É por isso que
InterControl bloqueia até 99% deles, além de
aumentar a segurança e reduzir o calor interno,
economizando ar condicionado e combustível.
As Películas de Proteção e Controle Solar
InterControl são fundamentais no seu carro,
casa ou ambiente de trabalho, para que você
mostre o que quiser.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 606, julho/2010, p. 51.

O efeito de humor depende em grande medida da relação entre o icônico e o verbal. A


interpretação da imagem é direcionada pelo título do anúncio: “Intercontrol reduz o calor
interno em seu carro. Mas só o dos raios solares.”, constituindo um exemplo de ancoragem.
Assim, a imagem que poderia possibilitar diversos sentidos, como “a mulher é a dona do
carro”, “está aguardando alguém”, “está indo a uma festa” etc. acaba ganhando um sentido
inusitado, surpreendente, que, caso seja percebido pelo alocutário, pode gerar descontração,
157

divertimento. Tal interpretação da imagem também é possibilitada pelas informações relativas


à mulher – altura, peso, cintura etc. Essa configuração textual do anúncio constitui a
cenografia escolhida e evoca um ethos bem-humorado, divertido, que se afasta do mundo
tenso e sério, mas que ao mesmo tempo sabe de que forma o produto oferecido pode
beneficiar o consumidor.
O efeito cômico conseguido neste anúncio só é possível porque os interlocutores
postos em cena são homens. Caso seu alocutário fosse mulher, as inferências suscitadas de
nossa interpretação seriam, em algum grau, negativas para o anunciante, pois colocaria em
risco a imagem do produto, e ofensivas para o destinatário do anúncio, caso ele não aceitasse
a brincadeira. O ato humorístico funcionou como uma estratégia de captação, uma forma de
despertar o interesse do leitor da revista para o produto anunciado. Tanto que o recurso
efetivamente humorístico é o que está em destaque, apresentado tanto por meio verbal, quanto
por meio icônico. O texto, que traz as informações sobre o produto aparece em letras
pequenas, ao pé da imagem. Ao conseguir captar a atenção do leitor, fazendo-o perceber sua
estratégia bem-humorada, o anunciante transforma seu leitor em um cúmplice, em alguém que
compartilha do seu senso de humor, aumentando assim as chances de atingir seu fim principal
que é vender seu produto.
Os anúncios da sequência do Boticário que apresentamos a seguir, que são destinados
ao público feminino, são mais discretos, resgatando imagens que estão supostamente
relacionadas ao imaginário que circunscreve o universo feminino. Embora também explorem
este lado sensual da mulher, o faz sob a ótica do sonho e da ilusão, recorrendo aos contos de
fadas.
Os contos de fadas são parte do imaginário social e permeiam as expectativas de
felicidade que se supõe que as mulheres constroem para si. Mulheres sonham com o príncipe
encantado. Esta é uma fantasia atribuída às mulheres por gerações. Toda mulher quer ser uma
princesa bonita e rica que vai encontrar o príncipe, um homem ideal para protegê-la dos
perigos, casar-se com ela e fazê-la feliz para sempre. Foi deste consenso sobre o imaginário
feminino que os anúncios se apropriaram, convertendo-o em sua cenografia. Com a diferença
de que, com os produtos da marca anunciada, já não são mais as mulheres que sonham com o
príncipe, mas eles é que sonham com elas.
158

Anúncio 51 – O Boticário: “Cinderela”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1905, de 18 de maio de 2005, p. 38-39.

Anúncio 52 – O Boticário: “Branca de Neve”

Fonte: Revista Caras, Ed. 602, de 20/05/2005, p. 52-53.


159

Anúncio 53 – O Boticário: “A donzela e o Dragão”.

Fonte: Revista Caras, Ed. 602, de 20/05/2005, p. 52-53.

Anúncio 54 – O Boticário: “Chapeuzinho Vermelho”.

Fonte: Revista Caras, Ed. 602, de 20/05/2005, p. 52-53.


160

Esse imaginário, entretanto, foi resgatado por meio da intertextualidade entre os


anúncios e os contos de fadas. Tanto as imagens quanto as palavras dialogam com esses
contos consagrados pela cultura popular, repetidos por séculos e que estão impregnados na
memória coletiva desde a infância.
Dialogar com estes contos permitiu a estas publicidades criar um mundo de sonhos
que por meio da aquisição do produto poderia tornar-se real. Para tanto, o anúncio atualizou
algumas informações, transformando o mundo sonhado num mundo verossímil. Vemos, por
exemplo, as figuras femininas, que podem representar qualquer mulher real que esteja
folheando a revista, ou as imagens masculinas suscitadas tanto verbalmente como
iconicamente, que resgatam o tipo de homem ideal que a mulher contemporânea desejaria
conquistar. O humor, por sua vez, é decorrente das associações suscitadas – príncipes perdem
o sono porque a princesa usa Boticário: vários príncipes de uma só vez disputam a sua
atenção, quando no conto original eram várias princesas que se apresentavam como a dona do
sapatinho de cristal perdido (anúncio 51), vários morenos de 1,80m em lugar de sete anões
(anúncio 52), o dragão ficou manso (anúncio 53), a Chapeuzinho coloca o lobo mau na coleira
(anúncio 54).
Já que estamos falando de publicidades carnavalescas e o carnaval é uma das nossas
principais manifestações da alegria popular, não podíamos deixar de apresentar também
alguns anúncios em que esta temática foi explorada.
Havíamos visto um exemplo (anúncio 28, p. 123) onde as imagens (serpentinas,
pandeiro, cerveja) e as palavras “carnaval”, “rebolar” etc. remetiam a uma cenografia criada
em torno do carnaval. O anúncio 55 também se constrói em torno destas imagens que são
apresentadas por meio de uma cenografia validada, construída por meio do verbal (“quem não
gosta de samba e de Grant’s bom sujeito não é”) e do icônico (as serpentinas e o violão). O
título é polifônico, constrói-se com recurso à intertextualidade, pois dialoga com um samba
popular (“o samba da minha terra” de Dorival Caymmi) bastante conhecido. O locutor deste
anúncio se apresenta como o responsável por sua enunciação, mas apresenta o ponto de vista
de um enunciador que resgata um fragmento do samba: “quem não gosta de samba bom
sujeito não é”. Esse ponto de vista é assumido pelo locutor, que o aproveita em função do
produto anunciado.
161

Anúncio 55 – Grant’s: “quem não gosta de samba”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 74, de 4 de fevereiro de 1970, p. 2.

Também há polifonia no anúncio 56, no qual o carnaval serve como pano de fundo
para criar comicidade. Ao por em cena uma mulher usando um fio dental, imagem esta em
harmonia com o enunciado “Com tanto fio dental na avenida...”, o texto publicitário sugere
referir-se ao carnaval, no entanto, ao acrescentar “creme dental e escova”, desloca a
compreensão inicial numa outra direção. Neste caso, o anúncio explora a homonímia entre
“fio dental”, parte inferior do biquíni e “fio dental”, fio para higiene dos dentes. Isso é
162

possível porque o fio dental é uma peça bastante usada pelas passistas das escolas de samba
durante os desfiles, como ilustrado pela imagem.

Anúncio 56 – Aquafresh: “fio dental”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1689, de 28 de fevereiro de 2001, p. 47.

Há muitas outras formas da publicidade recuperar a cultura popular. Apresentamos


aqui apenas algumas que nos pareceram bastante emblemáticas. Mas ainda veremos, a seguir,
exemplos de publicidades que exploram o gosto dos brasileiros pelo futebol, suas crenças
sobre outras nações, o modo como encaramos os relacionamentos etc.
A publicidade carnavalesca, assim como ocorre com a maioria das publicidades bem-
humoradas, não suscita necessariamente um riso intenso. Entretanto, caso o elemento popular,
seja reconhecido e aceito pelo leitor, poderá criar uma situação comunicativa descontraída e
familiar, que facilitará a adesão do leitor à proposta do anunciante, tornando-o um cúmplice.
A publicidade que constrói seu humor com base neste mecanismo dependerá em alguma
163

medida do conhecimento de mundo, das crenças, dos estereótipos, enfim, das representações
sociais vigentes em cada grupo social.

5.4 O humor implícito na publicidade

Para Saussure (1972), o signo é social por natureza, ele nasce como uma forma de
atender ao convívio comunicativo da coletividade social. A sociedade cria signos a partir dos
quais significa o mundo, podendo assim comunicá-lo. No entanto, ainda conforme o autor,
uma vez constituído, o signo ganha vida própria, escapando tanto à vontade individual quanto
à social. A partir de então, o signo conforma um sistema fechado em si mesmo, cujos
elementos delimitam seus espaços reciprocamente. Em outras palavras, ao entrarem para o
sistema linguístico, os signos ficam interdependentes de tal forma que a alteração de um tende
a modificar a configuração dos demais dentro do sistema.
Vimos, no entanto, que os usos individuais que os falantes fazem da língua dentro de
um contexto social possibilita deslizamentos de sentido dependentes das circunstâncias,
referidos como sentidos figurados ou conotativos. Com isto, podemos considerar que o signo
linguístico, por um lado, carrega uma significação que lhe é própria, devido a sua inserção no
sistema da língua e, por outro, se atualiza a cada nova enunciação. O que é próprio do signo é
aquilo que, ao ler um enunciado, percebemos de imediato, é o que está de fato dito, são as
informações explícitas; já o que atualiza o signo são elementos do contexto que dependem dos
interlocutores, são as informações implícitas que precisam ser inferidas.
As inferências publicitárias dependem em geral do imaginário social, de informações
construídas e compartilhadas por um determinado grupo. Toda sociedade tem seus mitos, seus
tabus, suas fantasias, suas crenças, seus costumes, seus ditos populares, suas convenções
comunicativas e comportamentais etc. Muitas dessas informações, embora sejam
compartilhadas em maior ou menor grau por toda a sociedade, fazem parte principalmente de
uma cultura popular, como previa Bakhtin em seu trabalho sobre Rabelais, não tendo boa
aceitação na esfera oficial. Dessa forma, embora o uso de um jargão popular numa conversa
entre amigos não cause nenhuma surpresa ou efeito particular, seu uso num discurso solene
como o do presidente da república desperta a atenção dos ouvintes, podendo suscitar efeitos
diversos, como crítica, aprovação, conivência, desacordo etc. Além disso, muitas dessas
informações são censuradas pela educação intelectual, não devem, pois, ser ditas em qualquer
ocasião, uma vez que podem agredir a face tanto de quem as profere quanto de quem as ouve.
164

A enunciação humorística permite, entretanto, que muitos desses temas controversos


que permeiam a sociedade possam ser ditos de modo implícito, como um dito não-dito,
fazendo-se ouvir informações que embora não estejam explicitadas linguisticamente, podem
ser inferidas pragmaticamente. Produzir humor requer do locutor a habilidade de mobilizar os
elementos linguísticos explorando sua significação convencional e sua possibilidade de
atualizar-se em diferentes contextos, jogando com explícitos e implícitos, convocando
inferências que dependem tanto do enunciado como de informações contextuais. O alocutário,
por sua vez, precisará recuperar a intenção humorística, agindo cooperativamente, atribuindo
relevância a partir de sua competência enciclopédica, do conhecimento de mundo que supõe
compartilhar com o locutor.
Muitas vezes, as inferências podem ser depreendidas do próprio enunciado, em forma
de pressuposições; outras, no entanto, vêm subentendidas, implicitadas e, embora sejam
suscitadas pelo enunciado, não dependem dele para se revelarem. As pressuposições
dependem, em geral, de convenções linguísticas, vêm marcadas de alguma forma no
enunciado e podem ser recuperadas a partir dele. Os subentendidos implicitados, ao contrário,
dependem do contexto de enunciação, dos interlocutores da troca e de condições que
favoreçam sua interpretação, fatores que possibilitarão ao alocutário encontrar relevância para
que o que se diz tenha sido dito desta forma e não de outra.
As inferências humorísticas carregam normalmente informações que só foram ditas
desta forma porque não era cabível serem enunciadas de outra, ou porque tratavam de
assuntos proibidos para a circunstância comunicativa em que ocorreram ou porque não teriam
servido ao propósito de fazer graça, motivo pelo qual dependem em larga escala do fator da
relevância. Dizer de modo implícito revela-se uma ação muito mais instigante para o humor,
além de ser uma forma de explorar a criatividade, permitindo que o locutor humorista se
defenda de críticas que sua enunciação possa suscitar nos alocutários, fato que em publicidade
é fundamental: o publicitário tem que evitar ofensas a muitas faces: a do anunciante, a do
publicitário, a do próprio produto anunciado e a dos consumidores reais ou potenciais do
produto.
Iniciamos o capítulo 4 apresentando alguns empregos da expressão “discutir a relação”
que retomamos aqui.
1) “Você e seu carro: chegou a hora de discutir a relação.”
2) “Neste artigo, temos o propósito de discutir a relação entre oralidade e escrita.”
3) “Todo casal tem seu momento de discutir a relação.”
165

Observando as três ocorrências desta expressão, vemos que em cada uma podemos
identificar uma significação distinta. Para explicar tal fato, lembremo-nos de que Saussure
(1972) ao estudar o signo linguístico postula que a significação depende tanto da relação entre
significante e significado, interna ao signo, quanto do valor que esse signo adquire em sua
relação com outros signos.
Gostaríamos de lembrar também que em nossa língua a expressão “discutir a relação”
é uma dessas construções linguísticas que de tão repetidas ganhou estatuto de idiomatismo,
foi fixada pela convenção e ganhou um sentido estabilizado: “discutir a relação” significa
conversar sobre o relacionamento. Esse é o sentido que encontramos na terceira ocorrência:
“Todo casal tem seu momento de discutir a relação”. Nesse contexto, a expressão carrega
alguns traços distintivos específicos, como por exemplo, o sema /ação realizada entre
humanos/, traço que só pode ser atribuído devido a sua relação com a palavra “casal”. Na
primeira ocorrência, no entanto, extraída do anúncio Quatro Rodas (p. 90), a expressão é
empregada para referir-se a outro tipo de relacionamento, o que o motorista tem com o seu
carro. Neste caso, a expressão não perde seu sema /+humano/, mas atribui ao carro o mesmo
estatuto que se atribuiria a um dos parceiros do relacionamento humano, possibilitando uma
transposição potencialmente cômica. Como nos diz Bergson (1987), a comicidade reside
naquilo que é humano ou que guarda alguma semelhança com ele. Tratar o carro como se
fosse um homem ou uma mulher com o qual é preciso “discutir a relação” guarda, pois, certa
comicidade. Mas voltando-nos para a compreensão da expressão nestas duas ocorrências,
podemos concluir que além de informações implícitas, partilhadas pelos interlocutores acerca
do uso que se faz desta expressão em sociedade, há também informações explícitas (carro,
casal) que são fundamentais para o entendimento que se pode derivar do enunciado.
Essa interpretação, no entanto, não pode ser atribuída à segunda ocorrência. Isso se
deve ao fato de que ali, não temos uma expressão cristalizada, mas sim palavras
independentes que se uniram especificamente nesta frase e obedecem às regras combinatórias
da língua. Neste caso, “discutir a relação” já não pode ser entendida como uma expressão
fixa. Para interpretar as ocorrências 1 e 3 temos que considerar que a combinação dessas três
palavras formam um todo [discutir a relação], comportando-se, portanto, como um signo –
possui, de certa forma, significante e significado próprios – que está estabilizado no sistema
da fala. Para interpretar 2, ao contrário, temos três palavras independentes, sendo cada uma
um signo em si mesma: [discutir]+[a]+[relação], elementos linguísticos que fazem parte da
língua e que encontram seu valor e sua função dentro deste sistema. Vejamos mais uma
ocorrência dessa mesma expressão no anúncio seguinte.
166

Anúncio 57 – Chevrolet Meriva: “discutir relação”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 575, Fevereiro de 2008, p. 10-11.

Neste caso, a expressão também vem empregada em seu sentido corrente na fala
cotidiana, referindo os relacionamentos entre homens e mulheres. Para adquirir tal sentido,
entretanto, essa expressão depende em grande medida de conhecimentos pré-existentes a esta
enunciação. Neste caso, a graça reside nas inferências que o emprego dessa expressão
possibilita extrair. Há alguns sentidos que circulam em torno dessa expressão em seu uso
cotidiano, como por exemplo, o de que quem faz o convite para discutir a relação é a mulher,
o de que para a mulher o homem sempre está errado etc. Ao dizer que “Discutir a relação
deveria ser como usar o câmbio da Meriva. De um jeito ou de outro, você sempre tem razão”
o anúncio resgata esse conhecimento compartilhado, levando o consumidor a reconhecê-lo e
analisá-lo a partir das associações estabelecidas pelo enunciado. Com isso, o leitor efetua uma
economia de esforços intelectuais, como formulado por Freud (1987), pois reconhece numa
expressão que lhe é familiar, múltiplas possibilidades de interpretação que promovem
instantes de relaxamento e descontração.
O emprego dessa expressão leva o leitor a extrair do anúncio diversas informações,
algumas ditas explicitamente, outras, implicitamente. Explicitamente, o anúncio diz que usar
o câmbio da Meriva é de fácil manuseio, pois faz o que o motorista quer, sem dificuldades.
Junto a esta informação, aparecem outras pressupostas no enunciado, como: usar o câmbio da
Meriva é mais fácil que discutir a relação; ao discutir a relação, o homem não tem razão nem
167

de uma forma nem de outra, ou seja, nunca tem razão. Além destas, também há informações
implícitas que, embora não possam ser extraídas do enunciado em si, são ditas junto com ele e
recuperadas por meio de nossa competência enciclopédica, ativadas quando da leitura do
anúncio. Para exemplificar é possível dizer que dentre as informações que tal anúncio pode
suscitar, está a de que os casais costumam, em algum momento do relacionamento, discutir a
relação, sentar para conversar sobre algo que não esteja bem para algum dos cônjuges. Além
disso, há um consenso de que quem toma essa iniciativa em geral é a mulher, e que o homem
é posto numa posição de réu, em geral é o culpado pelo que se quer discutir etc.

Anúncio 58 – Mapfre Seguros: “barbeiro”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 592, junho de 2009, 155.


168

Mais um exemplo de como o humor nos anúncios depende da colaboração de


implícitos e explícitos. O anúncio Mapfre faz um jogo com a palavra “barbeiro”, jogo que nos
é dado tanto pelas imagens como pelas palavras que compõem a publicidade. Iniciando pela
imagem: um homem, atrás de uma cadeira de barbeiro, ao fundo uma porta de vidro onde se
lê “barbearia” e onde também se vê a figura de uma tesoura. Em seu bolso, um cartão do
Club Mapfre. Informação verbal:

Club Mapfre. Barbeiro bom de verdade, só de passar na rua deixa todo mundo de cabelo
em pé. Promoção, o maior barbeiro do Brasil. A Mapfre está a procura do maior barbeiro
do Brasil. Acesse www.omaiorbarbeirodobrasil.com.br e conte a sua história. Se você
provar que conhece alguém que dirija tão mal quanto o barbeiro aí em cima, pode ganhar
prêmios incríveis. MAPFRE seguros. A seguradora diferente. (Transcrição do anúncio 58)

O anúncio apresenta elementos icônicos e verbais que alimentam a ambiguidade da


palavra “barbeiro” fazendo com que ela aponte igualmente para duas possibilidades: 1) aquele
que corta cabelos e 2) o mau motorista. Apontando para a primeira possibilidade, é possível
ler, na porta de vidro ao fundo, a palavra “barbearia”, acompanhada do desenho de uma
tesoura e uma cadeira de barbeiro, além da expressão “cabelo em pé” que aparece no texto;
apontando para a segunda, temos a própria palavra “barbeiro”, que é repetida diversas vezes
no texto, além da palavra “rua” e da expressão “dirija tão mal”. Vemos, assim, que a
ambiguidade desta palavra foi criada de modo explícito. Há elementos postos no anúncio que
a reforçam para criar um tom descontraído. Ainda assim, é preciso inferir a informação de que
em nossa sociedade um mau motorista recebe a denominação de barbeiro, como indicando
sua imprudência ao volante.
Esse mesmo jogo polissêmico foi empregado no anúncio da Itaú Seguros com o
enunciado “Não é você que é barbeiro, são os postes que atravessam a rua sem olhar para os
lados.” Há, também neste caso, a imagem do profissional que corta cabelos que sublinha a
ambiguidade da palavra.
A comicidade deste anúncio baseia-se também na ideia absurda à qual ele alude: os
postes “atravessam as ruas sem olhar para os lados”. Este absurdo decorre da atribuição do
comportamento de um ser animado (“atravessam”, “olhar”) a um ser inanimado (“postes”), o
que remete ao mecanismo de que trata Bergson (1987). Apresentar um enunciado assim
construído num anúncio publicitário tem um propósito específico, e os leitores do anúncio
terão que buscar em que sentido isto pode ser relevante para o anunciante. Tal relevância é
atribuída como uma forma de causar graça, de ser descontraído, bem-humorado.
169

Anúncio 59 – Itaú Seguros: “barbeiro”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 1575, de 2 de dezembro de 1998, p. 138-139.

Nos dois casos apresentados, a cenografia torna-se difusa ao colocar em cena tanto o
profissional, quanto o mau motorista, possibilitando uma interpretação culturalmente
consolidada. Embora haja uma palavra ambígua que desencadeia todo o jogo, a cenografia faz
com que o anúncio se torne polissêmico por inteiro.
Analisemos agora, um anúncio em que as informações dadas implicitamente não
poderiam ser veiculadas de outra forma senão pelo viés humorístico. Trata-se de uma
publicidade da Revista Playboy, que ao contrário do que normalmente acontece, não tem
nenhuma imagem de mulher semidespida. Além das frases “Façam suas apostas” e “Cláudia
Ohana está de volta, na edição de novembro”, vemos as figuras de três objetos cortantes: um
aparelho de barbear, uma tesoura pequena e uma tesoura de jardinagem, ao lado das quais
constam parênteses que delimitam um espaço onde se deve marcar uma das opções.
A graça deste anúncio é totalmente dependente de informações implícitas tanto sobre a
revista como sobre Cláudia Ohana. São as inferências possibilitadas pelo anúncio que
possibilitarão compreender o porquê de, em lugar da imagem da atriz, aparecerem esses três
objetos.
170

Anúncio 60 – Playboy: “Cláudia Ohana”.

Fonte: Revista Quatro Rodas, Ed. 584, de novembro de 2008, p. 170.

O anúncio 61, seguinte, também constrói sua graça baseando-se em inferências que
precisam ser recuperadas pelo alocutário em sua competência enciclopédica, em estereótipos
que compartilha com o locutor – mulheres, em geral, falam mais que homens, usam mais o
telefone etc. Assim, o contraste entre “40 recados de homem” e “10 de mulher” brinca com
uma informação que o leitor também tem, tornando-o um cúmplice do jogo. Mas, para chegar
a tais inferências, o leitor depende de sua competência enciclopédica, das informações que
compartilha em seu meio social, associando-as à situação comunicativa instituída por meio da
cenografia dada e buscando relevância para o enunciado.
Desta forma, infere-se do anúncio que o telefone anunciado tem boa capacidade,
comporta “uns 40 recados de homem”, mas apenas 10 de mulher porque elas falam por mais
tempo que os homens.
171

Anúncio 61 – Thoshiba: “recados”.

:
Fonte: Revista Caras, Ed. 364, de 27/10/2000, p. 41.

Quisemos, com estes exemplos, apontar para o fato de que o humor depende tanto de
informações explícitas, que vêm marcadas no anúncio pelo verbal e pelo icônico, quanto de
informações implícitas que dependem da cooperação dos interlocutores, que deverão recorrer
172

à sua competência enciclopédica e ao contexto de enunciação proposto, reconhecendo


informações que contribuam para a relevância do que é dito daquela forma.
A relação entre os elementos verbais e os não verbais é determinante na criação do
humor publicitário, uma vez que há uma colaboração recíproca entre ambos. Como postulado
por Barthes (1990), a imagem é necessariamente polissêmica, sua significação depende em
grande medida das experiências de mundo de cada grupo social, fato que possibilita a uma
mesma imagem ter inúmeros significados dependendo do contexto sócio-cultural em que
ocorre. Além disso, uma imagem pode apresentar significados denotados e significados
conotados. A denotação depende da convenção, é a forma como uma imagem é normalmente
interpretada por uma coletividade; já a conotação é não convencional, está relacionada a
sentidos simbólicos ou ocasionais ou a valores culturais para os quais aponta
independentemente de sua denotação. Desse modo, é comum que uma imagem publicitária
seja portadora tanto de informações explícitas, denotadas, quanto de informações implícitas,
conotadas.
Para visualizar melhor o que se está tentando dizer aqui, retomemos um detalhe de um
anúncio da Natura que vimos no capítulo 2 (anúncio 1, p. 23):

Embora se pudesse falar mais acerca desta imagem, gostaríamos de nos deter
especificamente sobre a figura que vemos sair da fechadura da porta. As formas, os traços,
tudo nesta figura nos remete à figura de uma bandeira, este é seu significado denotado, é
assim que por convenção interpretamos uma imagem como esta. Igualmente, vale lembrar que
uma figura como essa pode conotar mais de um sentido para nossa cultura: uma bandeira pode
ser símbolo de um grupo social (bandeira nacional, estadual, municipal, de uma instituição, de
um time de futebol etc.), ou pode ser um pedido de paz (bandeira branca). O que vai resolver
173

a ambiguidade dessa figura é a informação verbal que a acompanha, “desarme-se”, fixando-a


como um pedido de paz.
Há um conjunto de informações explícitas e implícitas que, para serem descritas,
dependem fundamentalmente dessa complementaridade entre o verbal e o icônico, por
exemplo: a bandeira aparece introduzida na fechadura de uma porta, de fora para dentro,
indicando que há alguém do lado de fora; quem está dentro, diante da porta, é uma mulher que
sorri na direção da porta, em uma posição que indica sua intenção de abrir a porta; na legenda,
a expressão “desarme-se”, que significa baixar as armas, ou conotativamente, “perdoar”. Daí,
implicitamente, se pode entender que quem está do outro lado é provavelmente um homem,
que por algum motivo está pedindo desculpas à mulher que, por sua vez, se estava chateada
com ele, pode vir a desculpá-lo.
A ilustração seguinte é uma publicidade de televisão. Por isso, a figura de uma TV
está no centro do anúncio. A imagem mostrada na tela parece indicar uma multidão segurando
bandeiras azuis e brancas num estádio de futebol. Diante da TV há quatro homens sentados
num sofá. Sendo que dois deles vestem camisas de cor verde e branca. Um dos homens parece
estar vibrando, fato que é confirmado pela posição dos braços e das mãos. Essa vibração, no
entanto, não é compartilhada pelos outros três: dois deles parecem chateados com a atitude do
primeiro e o quarto homem parece lamentar alguma coisa. Fizemos até agora uma descrição
do que essa imagem denota explicitamente. Passemos a uma descrição do que ela, de acordo
com nossa competência enciclopédica (que supomos compartilhar com o possível leitor desta
dissertação), pode significar conotativamente.
Em se tratando de uma partida de futebol que está sendo exibida na TV, as bandeiras
agitadas significam que o time cujas cores são azul e branco ganhou a partida. Tais cores
remetem às cores da bandeira Argentina, logo, quem ganhou o jogo foi a seleção argentina.
As pessoas que estão assistindo o jogo vestem camisas verde e amarela, cores da bandeira
brasileira; supomos então tratar-se de um jogo entre Brasil e Argentina, no qual o Brasil saiu
perdendo. O homem que está vibrando com a vitória da Argentina veste camisa verde e
amarelo, logo, ele está torcendo pelo time adversário, justificando os protestos dos seus
companheiros.
Os sentidos humorísticos deste anúncio são consolidados quando lemos a informação
verbal que segue a imagem, a asserção: “Promoção palpite campeão. R$ 500.000,00. Acertou
ganhou. Agora você não vai torcer só pelo Brasil”. A partir destas informações, entendemos
porque o brasileiro parece vibrar com a vitória da Argentina – ele certamente está
participando da promoção e acertou o placar do jogo.
174

O humor neste caso depende tanto do icônico quanto do verbal. É imprescindível


reconhecer a que o icônico alude e o que simboliza em nossa cultura. É preciso compartilhar
que, no futebol, brasileiros e argentinos são rivais, para estranhar o fato de um brasileiro ficar
feliz com a vitória argentina. E é preciso ter a informação verbal para entender os motivos
deste brasileiro para reagir desta forma. Vemos então que a relação entre as informações
verbais e as não verbais são complementares e suscitam explícitos e implícitos.

Anúncio 62 – Philips: “palpite Campeão”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2168, de 5 de junho de 2010, p. 85.

Nosso primeiro contato com o anúncio nos coloca diante da mensagem icônica
denotada. Tal mensagem nos apresenta formas, cores, espaço físico, enfim, elementos que nos
ajudam a identificar objetivamente a cena mostrada. Após este contato inicial, somos levados
175

a interpretar esta imagem, afinal, sabemos que, numa publicidade, essas escolhas não são
ingênuas, mas evocam algo que está além, as imagens são inevitavelmente conotativas.
Assim, chegamos à compreensão de que as cores azul e branca representam a Argentina, o
verde e o amarelo, o Brasil, bandeiras azuis e brancas sendo agitadas indicam a vitória da
Argentina. Pela reação dos homens que assistem ao jogo de futebol concluímos que são
brasileiros e que lamentam a derrota brasileira etc.
Mas, a vibração de um destes homens não pode ser determinada sem recurso ao
verbal. Poderia tratar-se de um argentino, mas ele usa a camisa do Brasil. Por outro lado, um
brasileiro dificilmente torceria pela Argentina. Assim, a imagem encontra sua delimitação na
informação verbal. Neste caso, o anúncio apresenta uma informação icônica denotada, uma
informação icônica conotada e uma informação linguística. É esta última que vai
complementar as informações icônicas, ela serve de ancoragem para o não verbal.
O anúncio da Bioslim, que se segue, também ilustra a função de ancoragem que o
linguístico tem em relação à imagem. É a mensagem linguística que nos ajuda a identificar
denotativamente um espelho e não um retrato de corpo inteiro, por exemplo, ou nos ajuda a
simbolizar essa imagem do espelho como sendo a forma como a mulher acredita que será
vista pelos homens.
Há nesta relação entre o verbal e o icônico publicitário um jogo de explícitos e
implícitos que precisam da cooperação do alocutário. Dizer por meio destas palavras e não de
outras, por meio destas imagens e não de outras, sugerindo estas informações e não outras,
tudo isso garante ao anúncio sua validade, sua atualidade, sua relevância e sua intenção.
Por que a imagem de um espelho? E principalmente por que um homem no espelho?
Entender as informações que estão por trás destas escolhas é tarefa do alocutário e para isso
ele dispõe de seu conhecimento de mundo, conhecimento que também era do locutor ao
mobilizá-las e organizá-las de modo a configurar sua mensagem.
Recorrendo ao senso comum, podemos dizer que as mulheres, em geral, estão
preocupadas com sua aparência e com seu corpo e objetivam obter a atenção do público
masculino. Diante do espelho, a maioria das mulheres busca auto-aprovação a partir de
parâmetros que julga serem os mesmos utilizados pelos homens ao olharem para uma mulher,
porém, normalmente não ficam satisfeitas com o que veem. Desta forma, a imagem no
espelho ilustra esta preocupação do público feminino. A personagem do anúncio, entretanto,
por consumir o produto anunciado, está despreocupada; não precisa olhar para o espelho para
saber que receberá olhares de aprovação, como o mostrado no espelho. A cenografia deste
anúncio resgata aspirações que estão ilustradas tanto na informação icônica quanto na verbal,
176

recriando um mundo onde é possível ser auto-confiante, como proposto no slogan “Fique bem
o ano inteiro. Tome Bioslim.” e no texto “Neste inverno, faça as pazes com seu espelho”. O
bom-humor desse anúncio deve-se ao poder de sugestão da imagem que, ao nos fazer
recuperar as informações que não foram ditas, nos proporciona prazer pela economia
suscitada.

Anúncio 63 – Bioslim: “faça as pazes com seu espelho”.

Fonte: Revista Caras, Ed. 875, de 13/08/2010, p 56.


177

5.5 Publicidades polifônicas bem-humoradas

Anúncio 64 – Naldecon: “copa do mundo”.

Fonte: Revista Veja, Ed. 2168, de 5 de junho de 2010, p. 47.


178

Como vimos no capítulo 4, a polifonia é um recurso que nos permite enunciar


atribuindo a responsabilidade pelo que enunciamos a alguém que não fala naquele momento.
No entanto, ao fazermos isso, podemos compartilhar do mesmo ponto de vista, ou ao
contrário, rejeitá-lo. Além disso, a polifonia pode suscitar uma fala, reproduzindo-a com as
mesmas palavras com que foi proferida em outro momento, ou pode simplesmente trazer um
ponto de vista, uma opinião, uma forma de dizer etc. A intertextualidade, a paródia e a alusão,
por exemplo, podem ser consideradas formas de polifonia. Além disso, um enunciado
polifônico pode servir a muitos propósitos, dentre os quais, o de dar legitimidade à
informação que se quer transmitir, ou ridicularizá-la, desprestigiando-a. Na publicidade
especificamente, a polifonia serve para acrescentar ao produto alguma propriedade já dita e
reconhecida por locutores e enunciadores legitimados no meio social e, como veremos,
também pode ser fonte de humor.
Vimos já, alguns exemplos de anúncios nos quais era possível perceber o recurso à
polifonia (p. 72; 123; 125 etc.), no entanto, esta era baseada em enunciados que faziam alusão
a outros enunciados estereotipados, provérbios, ditos e frases feitas. Porém há outras formas
de se identificar um enunciado polifônico bem-humorado, como se vê no anúncio 65.
O locutor desse anúncio apresenta por meio de sua enunciação alguns pontos de vista
que podem ser atribuídos a enunciadores que são postos em cena por meio de sua fala. No
entanto, antes de especificar os pontos de vista enunciados, vale destacar que além desse
locutor (“L”), autor do que é dito, este anúncio apresenta o outro tipo de locutor definido por
Ducrot (1987) como “locutor enquanto ser do mundo”, a origem do que se diz. Estes locutores
enquanto seres do mundo fazem-se ouvir através do locutor enquanto tal (locutor “L”), que é
quem coloca a voz daqueles (locutores “λ”) como responsáveis pelo que é dito. Retomando a
comparação de Ducrot (1987), ter-se-ia uma narração em que o narrador principal deixa ouvir
a narrativa de outros narradores. Seria como se o narrador dissesse o que alguém teria dito.
Com base nisto, pode-se dizer que, neste anúncio, o locutor “L” (narrador principal) apresenta
três locutores diferentes como a origem do enunciado (narradores secundários): um
assimilado a uma voz coletiva, não especificada; outro assimilado ao anunciante; e, por fim,
um assimilado ao farmacêutico.
Em uma narrativa tradicional, este anúncio poderia ser transcrito da seguinte forma:
“As pessoas dizem: “Gripe francesa: aquela que zidana com tudo. Gripe argentina: Uma
gripezinha, mas acha que é uma epidemia. Gripe brasileira: Já pegou 5 vezes e vai pegar a 6ª
em 2010. Gripe alemã: Achimdeslingbuntenchafen.”. O anunciante indica: “Naldééécon Pack.
Para você ter um dia mais ativo e uma noite mais tranquila. Disponível nas versões blister e
179

caixa. Naldecon. Dia e noite contra os sintomas da gripe.”. O farmacêutico informa:


“Naldecon Pack: M. S. Reg. No. 1.0180.0394. [...]” Esta narrativa apresentaria, pois, um
narrador principal e três narradores secundários assimilados, respectivamente, às “pessoas”,
ao “anunciante” e ao “farmacêutico”. Vejamos que o humor está presente no fragmento cuja
origem pode ser atribuída às pessoas em geral, é um conhecimento compartilhado por todos
que é retomado como forma de provocar o riso. Os outros dois locutores precisam preservar
sua seriedade para que o produto anunciado não perca credibilidade.
No entanto, o humor identificado, ainda que tenha sua origem nas representações que
circulam pela sociedade, apresenta-se como pontos de vistas que não são assumidos pelos
locutores do anúncio, mas por enunciadores que têm suas opiniões evidenciadas. Retomando
a comparação feita por Ducrot (1987) entre a enunciação e o teatro, diz-se que o locutor
coloca em cena os enunciadores assim como o autor da peça coloca em cena os personagens.
Neste anúncio, o locutor “faz ouvir” discursos que veiculam pontos de vista que, no momento
da enunciação, não são os seus próprios, mas de enunciadores que embora não tenham suas
falas reproduzidas fazem-se ouvir pela fala do locutor.
No anúncio analisado, por exemplo, o locutor não assume nenhum dos pontos de vista
que seu discurso faz ouvir: ele não diz que Zinedine Zidane é o responsável pela derrota do
Brasil na copa de 1998, não diz que os argentinos são prepotentes, não diz que o Brasil
ganhou cinco copas do mundo e pretende ganhar de novo, também não diz que a língua alemã
é difícil, mas faz ouvir vozes que o dizem. Em “Gripe alemã: Achimdeslingbuntenchafen”,
faz-se ouvir a voz de um enunciador que vê o alemão como uma língua difícil e complicada
de ser pronunciada, em que um simples espirro é representado como uma palavra
exageradamente grande e incompreensível. Um brasileiro que tenha em mãos este anúncio
certamente vai identificar-se imediatamente com o enunciador de “Gripe brasileira: Já pegou
5 vezes e vai pegar a 6ª em 2010”, vai ver-se representado, vai ouvir-se a si mesmo e a seus
compatriotas durante o período de copa do mundo. Ao fazer ouvir estas vozes, o locutor
convida o leitor a identificar estes enunciadores, mostrando-se, desta forma, um locutor bem-
humorado e, por isso mesmo, conquistando a simpatia de seus interlocutores.
Para entender o enunciado “Gripe francesa: aquela que zidana com tudo”, busca-se no
nível da frase a significação da palavra “zidana”, ou seja, instruções que contribuam com o
sentido (que poderia ser algo como: “zidana” não é uma palavra da língua portuguesa, mas se
aparece com a estrutura de um verbo conjugado na 3ª pessoa do presente do indicativo,
busque-se uma aproximação entre ela e uma palavra da língua cuja estrutura seja próxima. E
aí, chega-se ao verbo danar).
180

Conforme Basílio (2006, p. 10), “o léxico corresponde não apenas às palavras que um
falante conhece, mas também ao conhecimento de padrões gerais de estruturação, que
permitem a interpretação ou produção de novas formas”. É assim que palavras de outras
línguas passam a fazer parte do léxico do português (deletar, escanear etc.) e são estruturadas
como uma palavra da língua. “Zidana” é uma palavra que, de acordo com as regras de
formação de palavras, seria derivada do verbo “zidanar” que, como vimos no tópico 5.2,
remete ao nome do jogador francês Zinédine Zidane (da mesma forma que “deletei” permite
recuperar a forma “deletar” originada do inglês “delete”). Voltando-se ao nível do sentido,
estas instruções permitem identificar nesta enunciação a opinião de um enunciador que aponta
o jogador francês como responsável pela derrota brasileira. Ao fazer uso da palavra “zidana”,
o locutor faz ouvir este enunciador. É dele que o leitor do anúncio vai se lembrar no momento
da leitura, podendo, inclusive, com ele se identificar. Como vimos anteriormente, o uso de
“zidana” condensa informações que ditas de outra forma não possibilitariam a mesma
economia e, consequentemente, não seriam fonte de prazer e descontração.
No enunciado “Gripe argentina: uma gripezinha, mas acha que é uma epidemia”
também se fazem ouvir enunciadores cujos pontos de vista são postos em evidência. A
significação da frase orienta a identificar dois enunciadores com pontos de vistas distintos. O
emprego da conjunção “mas” indica que as duas proposições são opostas, mas que a
conclusão deve ser tirada da segunda. Assim, no enunciado em questão, tem-se uma primeira
proposição [Gripe argentina: uma gripezinha] cuja conclusão poderia ser “não é grave”. De
acordo com as instruções dadas pela conjunção “mas” seria esperado que a segunda
proposição [mas acha que é uma epidemia] indicasse uma proposição oposta que levasse à
conclusão “é grave”. Mas não é o que acontece: a conclusão da segunda proposição é a
mesma da primeira (“não é grave”). A instrução indicada pela frase foi desobedecida. Isso
ocorre porque o locutor recorre à ironia, apresentando um enunciador ridículo que tem sua
enunciação desqualificada. Tal enunciado faz ouvir dois enunciadores – um que diminui a
gravidade da gripe e outro que afirma sua gravidade. Mas este enunciador que afirma a
gravidade da gripe é posta como ridícula. Também neste caso, o leitor encontra uma ideia
formulada de forma surpreendente, um chiste que brinca com pontos de vistas conhecidos
pelo leitor, um caso de chiste de pensamento cuja técnica de produção é o deslocamento.
Vejamos mais alguns exemplos de anúncios polifônicos, identificando a presença de
vozes que se revelam de modo surpreendente e divertido.
181

Anúncio 65 – Volkswagen: “vim, vi, venci”.

Fonte: Quatro Rodas, Ed. 612, dezembro de 2010, p. 20-21.

Aqui, a frase “Vim, vi, subi, desci, atravessei, desviei, passei e venci” retoma a célebre
frase latina “Veni, vidi, vici” que em português significa “Vim, vi e venci”, frase repetida em
diversas situações para indicar uma vitória difícil, disputada. Esta voz, não é dita diretamente,
mas é ouvida por meio de um enunciador que tem sua enunciação recuperada, objetivando
atribuir ao carro, as mesmas propriedades referidas pelo enunciador em sua fala inicial. Este
enunciado polifônico parece ter um locutor assimilado ao carro, como se fosse o próprio carro
quem proferisse este enunciado, mas também ao próprio leitor, que é quem vai guiar o carro,
conseguindo, com ele, superar as dificuldades do caminho.
A seguir, a polifonia é devida ao enunciado “bem que sua cartomante te disse que você
encontraria muitas pedras no caminho”.
Este enunciado merece algumas considerações, uma vez que ele possibilita algumas
leituras. Primeiramente, ele apresenta um locutor “L”, responsável pelo anúncio como um
todo, pelas informações dadas verbalmente e iconicamente. Este locutor faz ouvir o
enunciador “cartomante” responsável por dizer que “você encontraria muitas pedras em seu
caminho”, no entanto, ao fazê-lo o locutor ridiculariza o enunciador, mostrando que as
“pedras” que teriam sido referidas pelo enunciador como “dificuldades a serem superadas”
eram, na verdade, as pedras preciosas encontradas nas jóias anunciadas. Vê-se assim que a
182

palavra “pedras” adquire dois sentidos, condensados num único termo, promovendo assim
uma economia.

Anúncio 66 – Guifell: “pedras no caminho”.

Fonte: Revista Caras, Ed. 806, de 17/04/2009, p. 85.


183

Em segundo lugar, ocorre uma intertextualidade, uma vez que o anúncio também
remete ao poema de Drummond que diz “tinha uma pedra no meio do caminho”, cujo termo
“pedra” remete igualmente a dificuldades, as mesmas previstas pela cartomante.

Anúncio 67 – Bombril: “Pelé”.

Fonte: Revista caras, Ed. 739, de 04/01/2008.

O anúncio 67 apresenta um caso interessante de polifonia, pois, além de fazer ouvir


um enunciador conhecido, o Pelé, também apresenta sua imagem, dando a sensação de que
184

ele próprio profere o enunciado “Quem escolhe outra marca não entende. Entende?”.
Sabemos, no entanto, tratar-se de um locutor, voz presente em todo e qualquer enunciado, que
faz ouvir por meio de sua própria voz a voz do enunciador Pelé, embora a cenografia
apresentada faça crer tratar-se da voz do próprio Pelé. O vocábulo “entende” é um vício de
fala atribuído ao atleta, uma atitude repetida involuntariamente, quase mecanicamente, como
se fosse o automatismo que se sobrepõe ao vivo (Bergson, 1987), por isso seu aparecimento
no anúncio, associado à sua imagem, é reconhecidamente risível.
Todos os exemplos de polifonia analisados neste tópico dependem em algum grau do
conhecimento de mundo compartilhado pelos interlocutores; um leitor que não tenha memória
dos jogos da copa do mundo, que não compartilhe os mitos e as crenças que a circunscrevem,
não poderia reconhecer os enunciadores identificados no anúncio 64, não perceberiam a
brincadeira proposta e não se descontrairiam com o enunciado. De igual modo, não se poderia
perceber o jogo humorístico dos anúncios 65, 66 e 67, se não se reconhecesse os enunciadores
que aí são ouvidos de forma inusitada.
Desta forma, podemos dizer que o humor na publicidade impressa depende em grande
escala de fatores pragmáticos: da atualização contextual, dos interlocutores e todas as crenças
e saberes que compartilham e das informações explícitas e implícitas que o enunciado
possibilita recuperar por meio de sua ilocução.
185

6 CONCLUSÃO: “The end”.

Anúncio 68 – Terra: “the end”

Fonte: Revista Veja, Ed. 2195, de 15 de dezembro de 2010, p. 170-171.

Em geral, os anúncios que aparecem nas revistas não despertam o interesse da leitura –
na verdade poucos precisam ser de fato “lidos”, visto que não são elaborados para “informar”
o leitor sobre um determinado produto, mas para torná-lo presente. Por este motivo, procuram
não ser cansativos, explorando mais as imagens que, por sua relação analógica com o mundo,
são de fácil captação. Além disso, a informação verbal é reduzida ao mínimo necessário,
mantendo com a linguagem icônica uma função de fixação dos sentidos da imagem, que por
sua natureza é necessariamente “polissêmica” (Barthes, 1990, p. 32). Os anúncios se
apresentam nas revistas como uma forma de dizer um “Oi, tudo bem?” que vai manter viva a
imagem do produto. Na verdade, da mesma forma que ninguém liga a televisão com o
186

objetivo de assistir aos intervalos comerciais, também não se compra uma revista com o
objetivo de ler os anúncios, mas ao vê-los sempre ali, dando um “Oi!”, o leitor acaba se
recordando deles depois, quando assume seu posto de consumidor.
Mas, eis que de repente um anúncio faz com que o leitor pare de folhear e o observe.
Os olhos, antes distraídos, agora se detêm, atentos, e até sorriem. Quando isso acontece, o
anúncio disse muito mais que um “Oi, tudo bem?”. Certamente, o anúncio fez uma graça que
chamou a atenção, captando, então, o interesse do leitor. E é quando isso acontece que a
leitura de um anúncio pode dar certo prazer, o mesmo que se encontraria ao se ouvir uma
piada, ou ao se ler um poema, ou mesmo ao se encontrar uma notícia cujo tema interesse.
Foi assim que, inicialmente, surgiu nosso interesse por este tema: folheando uma
revista encontramos um anúncio que nos fez rir francamente, fato que nos levou a questionar
o porquê de havermos rido tanto se, afinal, tratava-se de um simples duplo sentido
envolvendo a palavra “cavalo”. Em outra ocasião, novamente folheando uma revista,
distraidamente, nos deparamos com outro anúncio que nos divertiu. Desta vez tratava-se de
um jogo com a palavra “saia”. Percebemos, entretanto, que embora ambos fossem divertidos,
havia entre eles algo em comum (o duplo sentido) e algo diferente, os motivos que os
tornavam engraçados eram distintos. Assim, começamos a folhear outras revistas em busca de
outros anúncios que nos parecessem interessantes, sempre tentando encontrar uma resposta
para a seguinte questão: o que de fato os tornava engraçados? Ou melhor, porque um jogo de
palavras como aqueles nos fazia rir? Como não conseguimos elaborar nenhuma hipótese
sobre o assunto, acabamos deixando-o de lado e elaboramos nosso pré-projeto de mestrado
com base em outra inquietação: nosso interesse estava voltado para entender como a interação
entre palavra e imagem nas capas de revista produzia efeitos de sentido que influenciavam o
leitor a adquirir a revista. Foi na primeira conversa com nosso orientador, cujo foco
investigativo versa sobre o humor, que resgatamos nossa questão sobre os anúncios bem-
humorados e cujo resultado foi apresentado nesta dissertação.
Nosso interesse sobre como os sentidos nos são dados através dos textos que lemos
passou a ser cada vez maior na medida em que desenvolvíamos nosso trabalho docente com
alunos do ensino fundamental e médio, principalmente na educação de jovens e adultos que é
a área em que atuamos na rede estadual. Nossos alunos apresentam grandes dificuldades para
compreender e interpretar textos dos mais variados gêneros, desde os que julgamos mais
simples por fazerem parte de seu cotidiano (cartas, notícias, anúncios etc.) aos mais
complexos (como os literários). Desta forma, ao elaborar nossos planos de aula, sempre nos
questionávamos sobre a forma de ajudar o aluno a atribuir sentidos aos textos. Para ajudá-los,
187

porém, era necessário entender melhor o processo de produção de sentidos, fato que nos
motivou a produzir uma monografia de especialização em torno da leitura de histórias em
quadrinhos por alunos jovens e adultos. Naquele momento, chegamos a uma concepção
interacionista de leitura, que parte do princípio de que ler é um processo que envolve uma
troca contínua entre autor, leitor e texto, logo, os sentidos não estariam exclusivamente no
texto, nem dependeriam unicamente do leitor. Ficou claro que, embora a leitura envolvesse
estas três instâncias, era o texto que o leitor tinha em mãos. Ele não podia chegar a seu autor
se não por meio do próprio texto. Daí surgiu nosso interesse em nos voltarmos para a
compreensão dos mecanismos que o texto oferece para possibilitar a apreensão dos sentidos.
O humor verbal, enquanto efeito de sentido, depende de elementos textuais para ser
apreendido. Assim, acreditamos que investigar o humor e os mecanismos envolvidos em sua
produção contribui grandemente para a prática docente, para a compreensão de que fatores
estão envolvidos na leitura e de como podemos considerá-los em nossas aulas. Ainda assim,
não elaboramos nenhuma proposta didática, nos restringimos a evidenciar os mecanismos de
produção de humor presentes nos anúncios. A partir de então, acreditamos que nosso trabalho
possa se tornar uma fonte de consulta sobre como podemos explicar alguns efeitos
surpreendentes que um texto pode ter, uma vez que trazemos o aporte das principais teorias
sobre o humor, além de fazer algumas considerações importantes em torno do texto
publicitário.
Tendo em vista essas motivações iniciais que nos direcionaram a trilhar o caminho
investigativo sobre o humor, fez-se necessário fazer revisão da literatura especializada sobre o
assunto, com ênfase principalmente nos trabalhos de Bergson (1987), Freud (1987) e Bakhtin
(2010). Destes trabalhos, entretanto, priorizamos os aspectos relacionados ao humor verbal,
aquele que é comunicado intencionalmente, com o propósito lúdico, seja por meio de
manipulação do material linguístico, seja fazendo o enunciado dizer mais do que aparenta
dizer. Bergson (idem), ao evidenciar que a rigidez a que está submetida a linguagem
possibilita a criação cômica, de certa forma, nos faz considerar que essa rigidez é decorrente
da convenção social. A língua se fixa a partir dos usos que um grupo social dela faz. Só é
possível brincar com as palavras porque elas estão enrijecidas pela convenção linguística, ao
manipulá-las, atribuímos-lhes um movimento que não lhes é próprio. De acordo com Saussure
(1972), o natural de uma língua é que ela seja um sistema cujos elementos estejam
determinados por sua função e por sua relação com outros elementos do conjunto. Neste
sentido, a língua possui vida própria, seu uso social. Manipulá-la é, com base em Bergson
(idem), transformar o vivo em mecânico, é evidenciar a rigidez da convenção.
188

Também Freud (1987) se dedicou ao humor verbal, classificando-o em chistes de


palavras e chistes de pensamento. Uma das grandes contribuições de Freud, a nosso ver, foi
mostrar de que maneira os chistes são fontes de prazer, enfatizando que isso é possível porque
os chistes possibilitam economizar a energia psíquica que seria necessária para “manter o
controle”, para raciocinar de acordo com a educação intelectual a qual fomos submetidos. Ao
promover tal economia, toda a energia mobilizada acaba sendo liberada, provocando o riso.
Dentre as principais técnicas de elaboração do chiste, destacamos três que consideramos
serem as principais: a condensação, o deslocamento e a representação indireta. A condensação
é a principal técnica dos chistes de palavras. Consiste em jogar com as palavras fazendo-as
dizer mais do que o esperado, fazendo coincidir dois ou mais sentidos, geralmente divergentes
e distantes. A condensação é uma técnica conseguida principalmente por meio de palavras
homônimas ou polissêmicas, como ilustramos ao longo da dissertação. Desta forma, a
percepção de um chiste de palavras depende principalmente de que o alocutário identifique o
jogo de palavras proposto, jogo dependente exclusivamente do material linguístico que o
enunciado apresenta.
O deslocamento e a representação indireta são as principais técnicas dos chistes de
pensamento. Caracterizam-se por serem técnicas que produzem efeito sobre a ideia expressa e
não sobre a forma de expressão. O deslocamento, por exemplo, possibilita um desvio no curso
do raciocínio, fazendo com que tenhamos que mudar a direção do nosso entendimento. Ao
contrário da condensação, cuja estratégia fica registrada linguisticamente, o deslocamento
depende de fatores não linguísticos, como as regras sociais, os conhecimentos compartilhados
pelos interlocutores, o contexto de produção do chiste etc. A representação indireta consiste
em dizer uma coisa significando outra. Neste caso, o alocutário não é, necessariamente, pego
de surpresa, pois o locutor pode deixar claro desde o início qual é sua intenção comunicativa.
O chiste resulta da forma como se escolhe dizer o que se queria dizer.
Com base na obra de Rabelais, Bakhtin (idem) mostrou como uma obra cômica se
alimentava das imagens que faziam parte do imaginário popular, evidenciando o embate entre
o sério, oficial, e o não sério, popular. Assim, ainda que não tenha se dedicado
especificamente ao humor verbal, mas sim ao riso carnavalesco, nos possibilitou entender que
esse riso, em geral, decorre do reconhecimento de algo que nos é familiar, algo que faz parte
de nosso entorno cultural. Desta forma, observar os aspectos relacionados à cultura popular
nos ajuda a entender porque rimos quando reconhecemos elementos dessa cultura fora de seu
ambiente usual. A publicidade, ao produzir seus enunciados, se utiliza grandemente destes
189

elementos populares, para alcançar seus consumidores, fazendo-os identificarem-se com os


valores que o popular representa.
A compreensão do humor é por si só consideravelmente complexa, se associada ao
texto publicitário, exige ainda mais atenção, uma vez que este humor publicitário é altamente
intencional, destinado a cumprir com os propósitos do anunciante em relação ao produto.
Assim, não podíamos deixar de investigar alguns aspectos relacionados à configuração do
anúncio, dando ênfase à interação entre o verbal e o não verbal. De acordo com Barthes
(1990), em publicidade, a principal função da mensagem verbal é fixar os sentidos da
imagem, determinando em que sentido esta pode ser entendida. No entanto, pudemos
constatar que em alguns casos, é a imagem que interfere na significação verbal, possibilitando
os deslizes de sentido que resultam cômicos.
Ademais, ao elaborar um anúncio, o publicitário será levado a considerar alguns
fatores que lhe permitam transformar o mundo fenomênico em um mundo significado para
aquela publicidade. Para tanto, deverá considerar seu possível alocutário, o público-alvo que
pretende atingir e a forma como quer se apresentar. Tudo isso influenciará as escolhas
linguísticas e icônicas que possibilitarão destacar as características do produto, bem como a
cenografia que escolherá para enunciar. A cenografia eleita tem considerável importância para
a interpretação do humor, uma vez que é por meio dela que o leitor estabelece seu primeiro
contato com o texto e que assimila as informações transmitidas.
Toda publicidade é fundamentalmente persuasiva. Sua finalidade principal é envolver
o leitor de modo a convencê-lo da necessidade de adquirir o produto ou serviço anunciado.
Deste modo, ao apresentar-se ao leitor, o anúncio modifica de certa forma seu entorno, ou
melhor, cria necessidades antes inexistentes, provoca efeitos mais ou menos diretos sobre o
alocutário, efeitos que podem ou não levá-los à ação. Assim, consideramos que uma
publicidade possui um estatuto pragmático, ao “dizer”, ao apresentar-se enunciativamente, ela
“faz”, ela persuade, ela convence, ela cria necessidades etc. Claro que isso não significa que o
leitor será imediatamente levado a adquirir o produto; no entanto, uma ordem não tem
garantia de que será cumprida e ainda assim ela se apresenta como tal.
Tanto o humor quanto a publicidade se apoiam em fatores pragmáticos para surtirem
seus efeitos. Por exemplo, para entender que um enunciado seja ou não humorado, o
alocutário busca ancoragem na situação comunicativa, de modo que encontre relevância para
que tenha sido dito desta forma e não de outra. Também é assim que ocorre na publicidade, o
contexto de produção do anúncio torna relevante a cenografia escolhida, as informações
implícitas que podem ser apreendidas, os jogos de palavras que foram utilizados etc. Desta
190

forma, investigar o contexto nos ajuda a identificar as representações sociais, os mitos, os


estereótipos, as crenças, as convenções, enfim, os elementos a partir dos quais as inferências
podem ser feitas.
Temos ciência de que ao ler um anúncio, o leitor não se detém em detalhes, sua
compreensão é global. No entanto, para explicar o modo pelo qual o texto humorístico
significa precisamos analisá-lo, observando os detalhes, de modo a especificar quais são os
mecanismos envolvidos em sua produção. Tendo em vista esse objetivo principal, muitos
aspectos relevantes da produção humorística certamente foram deixados de lado. Ainda assim,
acreditamos ter dado um passo significativo, articulando três campos relativamente distantes
entre si, o humor, a publicidade e a pragmática.
A função do humor na publicidade, como vimos, é cativar o alocutário, capturando-o
da indiferença e transformando-o num cúmplice, em alguém que compartilha em maior ou
menor grau as mesmas informações, as mesmas aspirações. O locutor é tornado um amigo
próximo, alguém que o entende e que sabe fazê-lo rir, ganhando com isso credibilidade,
legitimidade e adesão. Essa cumplicidade, essa adesão do alocutário ao projeto humorístico
do locutor publicitário decorre da maneira como este se propõe a construir um mundo fictício
perfeito, divertido, descontraído, ideal, recorrendo a conhecimentos partilhados, a
representações sociais etc.
Nenhuma expressão linguística é independente de seu contexto pragmático, uma
mesma expressão, repetida em contextos diferentes, adquirirá sentidos diferentes. Como
vimos, é bastante comum à publicidade repetir enunciados estabilizados, como os provérbios
e os ditos populares. Ao fazê-lo, entretanto, tais expressões são ressignificadas de modo a
atribuir ao produto a mesma verdade que o senso comum encontra nas construções
proverbiais. Caberá ao alocutário ser cooperativo, encontrando para esta apropriação alguma
relevância. Tal relevância dependerá de como o locutor construiu seu texto, e de como o
alocutário reconhecerá as marcas ali deixadas. O sucesso da comunicação humorística e
publicitária depende em larga escala da intenção e da cooperação.
Uma conclusão fundamental que pudemos tirar deste estudo é que os principais
mecanismos de produção do humor publicitário dizem respeito, por um lado, à manipulação
do material linguístico e, por outro, a informações que precisam ser inferidas do contexto
social. Tais inferências, no entanto, são possibilitadas no texto, seja por meio de implícitos
verbais, seja por meio da polissemia icônica. Tais mecanismos fazem, como vimos, apelo à
cumplicidade do alocutário, solicitando que participe do jogo, que aceite a brincadeira de
descobrir efeitos surpreendentes, divertidos, criativos, mas que antes de qualquer coisa
191

acrescente ao produto características importantes. Diremos que o humor na publicidade é uma


brincadeira séria, ao mesmo tempo em que faz rir, ele tem a responsabilidade de vender, de
promover o produto.
Assim, o humor publicitário ocorre “quando dizer é fazer rir para vender mais” 14.

14
O título desta dissertação estabelece intertextualidade com a obra de John L. Austin, cuja tradução para o
português tem como título Quando dizer é fazer. Palavras e ações. Como o livro encontra-se esgotado, tivemos
acesso à sua versão em espanhol, cujo título é Como hacer cosas con las palabras (AUSTIN, 1991).
192

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