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Cartografia digital para historiadores: algumas noções básicas1

Tiago Luís Gil2

Este texto visa àqueles historiadores que querem incrementar a variável “espaço”
em suas análises, ou simplesmente, como muitos dizem, “mostrar alguma coisa no mapa”.
Muita coisa pode parecer óbvia ou já conhecida, mas a proposta aqui é permitir que qualquer
historiador possa cartografar suas pesquisas e, para isso, precisamos começar com um
vocabulário comum. Antes de tudo, é preciso fazer uma advertência: não vamos analisar
mapas históricos, não diretamente. Eles podem ser importantes no que vamos fazer, mas não
são a única fonte. Nosso propósito aqui é a produção de mapas que vão representar
informações fruto de pesquisa ou, por outro lado, que ajudarão eles mesmos na pesquisa,
apresentando novos dados para análise. Entendo, assim, que este texto não vai falar de
cartografia histórica, entendida aqui como o estudo sistemático de mapas “históricos”
(independente do nosso critério de “histórico”). Vamos falar de cartografia digital para
historiadores. E isso significa atribuir lugares na superfície terrestre para as informações
históricas.

Os usos da cartografia entre os historiadores

A dimensão espacial pode ser importante em muitas abordagens e cartografar


pode ser útil, mas nem sempre. A prova disso é a própria relação que os historiadores tiveram
com a geografia ao longo do século XX. Apenas para tomar um exemplo, as sucessivas
gerações de pesquisadores ligados aos Annales foram se afastando da geografia ao longo do
tempo. Se observamos os contemporâneos da primeira geração, há uma profunda influência
da geografia de Vidal de la Blache na formação daqueles jovens historiadores. Esta influência
não apenas é documentada em diversos trabalhos sobre aquele grupo como pode ser vista na
escolha dos temas de pesquisa predominantes até os anos 1950.(BURKE, 1991) Imigração,
demografia, região, rural e urbano, dentre outros, eram temas importantes nas obras mais
afamadas e na agenda dos historiadores os mais concorridos.

1
Esta pesquisa contou com apoio da CAPES e do CNPq.
2
Professor do Departamento de História da Universidade de Brasília, UnB, onde desenvolve pesquisas sobre
economia do Brasil colonial, história e bancos de dados, coordenando também o projeto “Atlas Digital da
América Lusa”. Email: tiagoluisgil@gmail.com.
Em 1958, Fernand Braudel, sobre o qual não pairam dúvidas de seu interesse por
geografia (especialmente pelo célebre “Mediterrâneo”) já percebia uma mudança nas relações
entre as duas disciplinas: "Mas quem é que está preparado para transpor fronteiras e prestar-se
a reagrupamentos, no momento em que a geografia e a história se encontram à beira do
divórcio?"(BRAUDEL, 1972 p. 8) Em 1988, outro célebre historiador, Georges Duby, falava de
uma época na qual história e geografia eram irmãs, coisa que no seu entender já não
eram.(DUBY, 1993) Tomando apenas os temas dos artigos da revista “Annales” entre 1929 e
1999, Sarah Resende percebeu uma mudança ao longo dos anos 1960.(SANTOS, 2012)
Segundo seu levantamento, temas como geografia, espaço e região (agrupados no conjunto
“geografia”) foram sendo lentamente esquecidos ao longo do período, enquanto temas como
cultura, antropologia e política foram ganhando lugar.

90

80

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40

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20

10

0
193 194 195 196 197 198 199

Soma de Espaço Soma de Antropologia


Soma de Política Soma de Região
Soma de Geografia Soma de Cultura

Figura 1 - Gráfico de temas encontrados em títulos de artigos da Revista "Annales", entre 1930 e 1999, agrupados por
década (ex.: 193 = 1930)

Recentemente há um leve e discreto interesse renovado pela geografia por parte


dos historiadores. Ainda que haja quem fale em um “spatial turn”,(History and GIS, 2013) este
movimento não parece querer os brilhos dos anos Braudel, mas apenas um lugar no debate.
Há várias iniciativas interessantes ao longo do mundo: o Spatial History Project, em Stanford,
coordenado por Zephyr Frank3, o projeto “Cassini”, desenvolvido pelo LaDeHis da EHESS,
em Paris4, apenas para dar dois exemplos de grandes centros de pesquisa. No Brasil há
diversos projetos e o tema foi alvo de vários eventos nos últimos cinco anos. Boa parte destas
iniciativas busca “reconstruir” regiões, países ou cidades a partir de certos problemas de
pesquisa. Mas esta não é a única utilidade da chamada “cartografia digital” para os
historiadores. Ela continua sendo usada para ilustrar apresentações de resultados de pesquisa,
por exemplo, para localizar o leitor diante de seu recorte geográfico ou apresentar um
contexto específico, uma cena de batalha, um processo ou certa configuração. Resta saber
como a cartografia digital pode ajudar em nossas pesquisas, diante de um número enorme de
possibilidades.

Algumas noções (muito) básicas de cartografia

Precisamos criar um vocabulário comum e relembrar algumas coisas. Você pode


passar para o próximo item, se achar oportuno, mas prometo não demorar. Vamos dar uma
espiada em temas como: a definição de mapa; as escalas; desenho e generalizações; projeções;
coordenadas geográficas; a linguagem cartográfica (incluindo pontos, linhas e polígonos); as
diferenças entre raster e vetor. Tudo isso vem da cartografia “analógica”, digamos assim,
aquela que era feita com papel, compasso, lápis, prancheta e bússola. As inovações da era da
informática, essas veremos depois. Comecemos de baixo. Um mapa “é uma representação
geométrica plana da superfície esférica da terra.”(CASTRO, 2012) Esta definição implica em
fazer algo bastante arbitrário: “encaixar” numa superfície algo que tem um formato esférico.
Isso nos remete para o tema das projeções. De acordo com o tipo de projeção que escolhemos,
vemos as coisas de um jeito distorcido ou de um jeito ainda mais distorcido. Sempre será
assim, pois o desenho de uma esfera não cabe no plano sem algum ajuste. Não é possível, por
exemplo, trabalhar com alguns dados em uma projeção e outros em outra projeção. É preciso
usar sempre a mesma na hora de produzir seus mapas. Mas não se preocupe: é possível
converter de uma projeção para outra com o auxílio de certos programas.

3
Spatial History Project. http://www.stanford.edu/group/spatialhistory.
4
EHESS/LaDeHis. Des villages de Cassini aux communes d’aujourd’hui.
http://cassini.ehess.fr/cassini/fr/html/1_navigation.php
Não é possível fazer um mapa sem usar escalas. Possível até é, mas seria inútil ter
um mapa do tamanho real do mundo. A utilidade dos mapas está em representar
esquematicamente algo maior, permitindo o conhecimento. E a problematização deste mundo,
vai depender da escala de observação. Escala é relação entre o tamanho do objeto
representado com sua representação. Para análises de história no espaço é muito importante
entender isso, pois diferentes problemas de pesquisa vão demandar diferentes escalas de
análise. Comércio internacional demanda uma escala, a ocupação agrícola de um vale, outra,
apenas para exemplificar. Na produção de mapas em escalas diferentes, será preciso adaptar
as representações. Para isso há o que chamamos de generalizações. Trata-se da simplificação
do desenho. Por exemplo, a costa brasileira é feita com esmero em escalas locais, mas
simplificada (generalizada) no mapa-mundi. Nem sempre este problema se coloca, mas saber
disso ajuda na leitura dos mapas e é relevante ter isso em conta na hora da sua produção.

Latitude e longitude todo mundo conhece, mas convém ver algo voltado para
nosso trabalho. Não é preciso saber o fundamento matemático sobre ambas para fazer mapas,
mas é importante saber que isso ajuda a posicionar um lugar no mundo e que regiões podem
ser compostas por séries de pontos. Importante também saber que o mundo precisa ter um
formato perfeito para que as coordenadas funcionem. Como ele não tem, trata-se de um
geoide com um formato muito estranho, longe mesmo da esfera, precisamos inventar um
modelo matemático para “fazer de conta” que ele é perfeito. O nome disso é “datum”. Sempre
que usamos coordenadas, elas fazem sentido dentro de um certo “datum”. Não precisa
entender isso profundamente, mas é importante saber que existe e que pode atrapalhar nosso
trabalho. Para facilitar, use sempre o mesmo, tal como já fez com a projeção.

Sobre os sistemas de coordenadas, tampouco há muito para dizer, é muito


simples. O mundo se divide em quatro áreas. Separadas pela linha do equador (latitude) e pelo
Meridiano de Greenwich (longitude). Há vários tipos de sistemas de coordenadas. Recomendo
usar o sistema de graus decimais. Parece-me mais fácil de trabalhar, ainda que isso seja algo
um tanto pessoal. Tendo em conta este sistema, a terra se divide em áreas positivas e
negativas. Ao norte do equador, está o positivo da latitude, ao sul, o negativo. Ao leste de
Greenwich está o positivo da longitude, a oeste, o negativo. Desta maneira, o Brasil está
duplamente negativo em quase todo o seu território, estando negativo (longitude) e positivo
(latitude) somente acima de Macapá. Brasília, por exemplo, é -15.79 (latitude) -47.86
(longitude), enquanto Roma fica em 41.89 (latitude) 12.49 (longitude). Com isso,
identificamos qualquer lugar no mundo. Contudo, quanto mais casas decimais, mais precisa
nossa identificação. Seis casas é bastante bom para a maioria dos trabalhos, garantindo uma
exatidão de aproximadamente um metro (dependendo do “datum”).

A cartografia permite representar as informações no espaço a partir de três


elementos: pontos, linhas e polígonos. Com estes três, mostramos praticamente tudo o que
queremos. Uma cidade pode ser representada por um ponto (pense num mapa do Brasil
político, com as capitais) e, dependendo da escala, pode ser representada por um conjunto de
linhas e polígonos, numa escala local, como numa planta urbana, por exemplo. Podemos usar
elementos da chamada “semiologia gráfica” para incrementar nossos pontos, linhas e
polígonos. Basta usar pontos grandes para cidades populosas e pontos pequenos para as
menores. Para o mesmo caso, poderíamos usar cores diferentes ou a mesma cor com
diferentes intensidades. Podemos indicar regiões utilizando cores diferentes ou hachuras
diversas (linhas verticais, horizontais e diagonais, por exemplo). Além disso, podemos usar
diversos ícones como símbolos, com o desenho de um avião, para indicar a localização de um
aeroporto. Semiologia gráfica parece uma coisa muito complexa, mas é bastante simples.

Para finalizar, vamos apresentar uma última informação, que por ora não será tão
importante. Trata-se dos conceitos de raster e vetor, atribuídos às imagens que se usam na
cartografia. Raster ou matricial é a imagem obtida por sensoriamento remoto, ou seja, por
fotografia aérea ou de satélite. Contudo, uma foto não é um mapa. É preciso usar a foto como
referência do nosso objeto e, para tanto, podemos “desenhar por cima” da foto linhas, pontos
e polígonos que vão compor nosso mapa. Para isso é preciso saber reconhecer as imagens das
fotos. Dizemos que as fotos têm formato matricial pois elas realmente são matrizes. Se você
tomar uma imagem digital e aproximar (zoom) muito, mas muito mesmo, você verá que a foto
é composta de milhares (ou milhões) de quadradinhos com cores ou tons diferentes que, no
conjunto, à distância, criam uma imagem que faz sentido. O formato vetorial esquematiza
estes pontinhos em uma imagem simplificada, porém, com as informações relevantes para o
estudo.

Os sistemas de informação geográfica (GIS)

A geografia mudou completamente com o uso das novas tecnologias, muito mais
do que a história. E com isso ela ocupou espaços antes não imaginados ou então inacessíveis.
Os sistemas de informação geográfica, ou Geographic Information Systems (GIS), tiveram
um peso fundamental nesta mudança. Trata-se da aplicação das novas tecnologias da
informação para a análise do espaço, resultando daí o que se chama de “geoprocessamento”.
É passar a cartografia do papel para o computador, permitindo algumas inovações, como o
cruzamento automático dos mapas com bancos de dados e com imagens, de satélite ou
fotografias aéreas, dando grande velocidade ao processo e permitindo intensificar a produção
de novos dados.

Em boa medida, o aprendizado sobre este tipo de sistema passa pelo aprendizado
de certos softwares, geralmente comerciais.5 Sendo uma atividade extremamente específica,
não há como avançar neste campo sem aprender algumas coisas destes programas. Em geral,
eles são bastante parecidos, ainda que a quantidade de recursos seja muito variável, assim
como o tempo de aprendizado. Da mesma forma que geralmente usamos processadores de
texto, como o Microsoft Word e o Open Office, que correspondem aos formatos de arquivo
DOC e ODT, há também certos programas e certos arquivos mais populares no
geoprocessamento. O mais difundido é o formato SHP, criado pela empresa ESRI, que
desenvolveu o programa ArcGis. Outro formato bastante conhecido é o KML, muito
empregado pela Google no Google Earth. Contudo, outros programas, igualmente úteis, como
Quantum Gis e Diva Gis também são capazes de trabalhar com estes arquivos. Cada arquivo
destes corresponde a um lugar, digamos assim. Podemos dispor de um arquivo KML com o
desenho da América do Sul, como podemos ter o mapa mundi dentro de um arquivo SHP.
Qualquer um dos dois pode ter apenas o ponto que localiza uma cidade, ou um conjunto delas.
Organizamos e guardamos estes arquivos como quem coleciona selos, colocando em pastas
diferentes arquivos de lugares diferentes. E montamos mapas sobrepondo as imagens destes
arquivos como quem empilha figurinhas. Quase todos os programas tem um botão com um
sinal de “ + ”. Clicando neste botão, podemos abrir os arquivos e colocá-los na ordem, do
mais fundo para o mais raso, digamos assim, colocando primeiro o leito do oceano, para
assentar nele os continentes e, nestes, os dados que temos das coisas que ocorrem dentro
deles, como as cidades, as estradas, etc. Como os arquivos estão todos “georreferenciados”,

5
Uma pequena nota informativa sobre alguns termos que serão aqui utilizados: por software comercial, entende-
se aquele desenvolvido para fins de venda, como o nome já indica, em alguns casos, com o pagamento anual de
licenças. Em oposição, há os softwares gratuitos, que não cobram nada pelo recurso. Por outro ponto de vista, há
os softwares “proprietários” e os “open source”. Proprietários são programas “fechados”, do qual não se conhece
o código, geralmente comerciais. Open source são softwares de código aberto, de modo que qualquer pessoa
pode tomá-los, usá-los, melhorá-los ou o que quiser. Geralmente são gratuitos, mas seguem critérios de uso
GNU (impedindo, por exemplo, o uso comecial de alguma parte do código.
eles encaixam perfeitamente, desde que tenham o
mesmo datum, a mesma projeção e o mesmo
sistema de coordenadas. Convém ver isso antes de
“importá-los” para nosso mapa.

Falando deste jeito, parece que


podemos conseguir os arquivos de mapas, como os
KML e os SHP em algum lugar e logo montar
nossos mapas. Mas é isso mesmo, geralmente
encontramos mapas prontos, feitos por alguém,
direto na internet. Convém citá-los,
evidentemente, mas quase sempre são abertos.
Vários órgãos governamentais disponibilizam
estes trabalhos, assim como algumas empresas
privadas. Nem todos são tão bons. Convém saber
se o cartógrafo que os fez abusou da generalização
ou se caprichou nos contornos. Uma costa muito
acidentada por ter sido simplificada com um
preguiçoso risco reto na mão de um cartógrafo
apressado (como no exemplo ao lado, feito por
este autor). Descobrimos isso ao dar um “zoom”
na imagem e ver como está. Se não encontramos o
mapa que queremos, podemos desenhar
diretamente, bancando os cartógrafos. Para isso,
temos duas alternativas. A primeira, mais
Figura 2 - Passo a passo da adição de camadas em
ortodoxa, é conseguir uma imagem (foto de um programa GIS (como se trata de um esquema, o
mapa-múndi está estilizado)
satélite ou fotografia aérea) do local que
queremos. Vamos desenhar “por cima” dela, como
se fizéssemos com um papel manteiga. Mas a imagem precisa, ela também, estar no lugar
certo das coordenadas, ou seja, georreferenciada. Para isso, precisamos identificar
visualmente certos pontos na imagem e atribuir-lhes as coordenadas destes pontos. Não é
muito fácil e requer algum esforço, mas boa parte dos programas permite esse
empreendimento.
Outra solução, mais simples, é tomar um programa que já tenha a imagem no
lugar, como o Google Earth, desenhando por cima com as ferramentas disponibilizadas no
software. Um dos programas mais fáceis de se trabalhar é o Google Earth. Sua grande arma é
a versatilidade. É muito fácil criar pontos, linhas e polígonos com ele. Também é possível
sobrepor mapas históricos à imagem de satélite atual (pode dar trabalho, mas não exige um
grande aprendizado) o que em outros programas GIS não ocorre, já que estes dispõem de
poderosas ferramentas para sobrepor mapas. Contudo, o Google Earth também tem seus
trunfos: ele permite sobrepor o mapa com os conteúdos do programa, fotos atuais de satélite,
quase sempre em alta resolução (algo difícil de obter em outro lugar). Isso facilita a
sobreposição e permite o uso de conteúdos adicionais, como pontos de referência e fotos
feitas por usuários (que podem ser boas pistas para localizar prédios históricos, por exemplo).
Os dados dele podem ser exportados para outros programas na hora de preparar os mapas.
Basta salvar o arquivo KML, que poderá ser aberto em qualquer outro programa de sistema
de informação geográfica. Mas tente descobrir, antes, se alguém já fez isso, poupa muitas
horas de trabalho.

Neste último exemplo, estamos pensando em polígonos, como no caso dos


continentes ou dos países. Podemos fazer a mesma coisa com os rios e estradas, que quase
sempre são representados com linhas. Se vamos trabalhar com pontos, para indicar, por
exemplo, a localização de certas localidades, podemos usar um outro recurso, bem mais
simples: uma tabela. Pode ser feito em um software de planilha eletrônica, como o Microsoft
Excel, ou o Open Office Planilha. O importante é que o arquivo seja feito com alguns
cuidados. É preciso criar algumas colunas: o nome do lugar é uma delas, fundamental. Outras
duas colunas, também essenciais, são a latitude e a longitude. Com elas, geramos nossa tabela
georreferenciada. Depois disso, precisamos salvar nosso arquivo em um formato que possa
ser lido pelo programa de geoprocessamento. Um formato bem simples é o CSV (comma
separated values, valores separados por vírgula). Ele apresentará os dados da seguinte forma:

Como é o arquivo CSV Como ele é entendido pelo programa


Id,Nome,Latitude,Longitude Id Nome Latitude Longitude
1,LugarXXX,-30.41,-51.56 1 LugarXXX -30.41 -51.56
2,LugarYYY,-32.54,-52.86 2 LugarYYY -32.54 -52.86

Repare que temos apenas uma coluna, que separa os valores em ordem, por
vírgula. O primeiro dado, chamado de “ID” é apenas um identificador, seguido pelo nome e
outros dados que desejamos, como o país, latitude e longitude. Podemos acrescentar outras
informações, como o total da população destas localidades, por exemplo, ou alguma outra
variável que queremos estudar. Se as colunas latitude e longitude vão colocar o ponto
exatamente onde quero, a coluna com alguma variável, vai me permitir diferenciar os pontos
entre tipos diferentes, atribuindo cores e formatos para facilitar a leitura do mapa, quando
estiver pronto.

Onde posso conseguir informação sobre a latitude e longitude dos lugares? Basta
ter um aparelho de GPS que indique estes dados e ir até o local que você deseja. Se achar
mais prático, basta usar sites como o Open Street Maps e o Google Maps, além de programas
como o Google Earth. É o caso de anotar e organizar cada uma destas informações, uma por
uma. É trabalhoso, mas os dados poderão ser utilizados diversas vezes. Feito isso tudo,
podemos “importar” o arquivo CSV para nosso mapa. Quase todos os programas fazem isso,
certamente Quantum Gis e ArcGis fazem. Isso varia de programa para programa, mas
geralmente haverá um botão de “importar dados de texto” para o mapa. Os pontos vão
aparecer na tela e poderão ser alterados (cores, tamanho, formato). Linhas e polígonos podem,
igualmente, ser alterados em sua apresentação.

Isso tudo preparado, já podemos preparar nossos próprios mapas. Mas isso, claro,
se já soubermos de antemão todos os dados que precisamos para uma pesquisa em história.

Sistema de informação geográfica para a história (HGIS)

O historiador britânico Ian Gregory(GREGORY; ELL, 2007) consagrou o termo


HGIS para designar a utilização de sistemas de informação geográficas voltados para os
estudos em história. Trata-se de acrescentar o “quando” às perguntas “o quê” e “onde”, que
caracterizam o GIS não histórico. Vários trabalhos recentes têm salientado as vantagens, os
desafios e os problemas de trabalhar o HGIS.(History and GIS, 2013) Entre um entusiasmo
alucinante de alguns e o ceticismo de outros, podemos perceber algumas questões relevantes.
Uma das críticas mais frequentes diz respeito ao perigo do neo-positivismo, visto muitas
vezes como quase inerente ao esforço de geoprocessar a informação, colocando as coisas num
ingênuo “lugar certo”. Além disso, nem sempre as relações sociais se distribuem na
regularidade do espaço cartográfico. Uma favela pode ficar ao lado de um bairro rico e, neste
caso, a distância não é no espaço físico, na pequena diferença de latitude e longitude que
separa os dois mundos, mas é social e um mapa euclidiano6 enfatizaria uma proximidade
inexistente.(FONSECA, 2004)

A acusação de neo-positivismo não é exclusiva deste tipo de abordagem, aliás,


tem sido muito empregada para denunciar exageros no uso ou na confiança dos documentos,
mesmo em pesquisas que se baseam nos princípios da chamada “história-problema”. Mas as
mesmas pessoas que acusam de neo-positivismo tomam aviões que usam sistema de
coordenadas “exatas” e esperam chegar ao “lugar certo” e não em um lugar imaginário. E
uma separação clara entre passado e presente que liberasse estas pessoas desta falta (desta
crença ilusória no destino do avião) seria mais típica do positivismo do que pensar que uma
Igreja do século XVI está lá desde o século XVI, ainda que o significado dela e sua geografia
social tenham mudado. De resto, uma acusação bastante pertinente seria a de anacronismo.
Mas este pecado não é um luxo de quem usa mapas. Ele pode ser facilmente feito por escrito.
É preciso saber ler um mapa da mesma forma que é preciso saber interpretar textos e nenhum
dos dois é neutro, jamais.

Por outro lado, o fato de certos problemas sociais não encontrarem respostas com
o auxílio de mapas euclidianos não invalida a tentativa de responder aos problemas que
efetivamente podem ser respondidos com o uso destes mapas. Problemas agrários como
concentração fundiária, demográficos, como concentração urbana e migração, encontram nas
análises baseadas no espaço euclidiano um bom auxílio. Mas há outras possibilidades, como o
estudo de rotas de viajantes, de peregrinações, de remodelamento urbano, de intensidade
comercial entre regiões que também podem obter boas respostas desta abordagem, tudo isso
dentro de uma perspectiva de história baseada na problematização de objetos e fontes. Há
outros problemas que afetam uma tentativa de geoprocessamento em história. A inclusão da
variável “tempo” a um lugar no espaço não é tarefa fácil. Ou mesmo a inclusão da variável
“espaço” a um lugar ou processo no tempo. Como disseram Gregory e Ell:

GIS originated in disciplines that use quantitative and scientific approaches in a data-rich
environment. Historical geography is rarely data-rich; in fact, data are frequently incomplete and
error-prone.7

Em história, quase sempre trabalhamos com dados incompletos, fluidos, incertos e


é preciso criar maneiras de representar isso na cartografia ou, no mínimo, alertar os leitores

6
Euclidiano faz referência ao grego Euclides, considerado o pai de geometria.
7
“GIS [é] originado em disciplinas que usam abordagens quantitativas e científicas em um ambiente rico em
dados. Geografia histórica raramente é rica em dados; de fato, os dados são geralmente incompletos e propensos
a erros.”
para a regularidade deste problema. Mas é possível fazer um pouco mais do que isso. Há
formas, trabalhosas, de melhorar nosso desempenho no geoprocessamento em história. Vou
argumentar que:

1. É mais fácil achar todos os pontos (locais no passado) do que apenas um;

2. É fundamental ter erudição “toponímica”8 histórica;

3. É fundamental fazer cruzamentos de dados com múltiplas fontes;

4. É importante ter em mente que o trabalho nunca vai acabar.

Vejamos agora, em parte, cada uma destas afirmações. Em primeiro lugar, apesar
de não parecer, faz sentido pensar que é mais fácil achar todos os lugares do passado do que
apenas um, uma vez que podemos localizar as coisas na relação que elas têm com as outras,
na vizinhança delas. Se uma sesmaria, unidade agrária do período colonial, diz ficar na
fronteira com outra, podemos não saber onde ficam as duas, mas já sabemos que são vizinhas.
É o princípio exato do quebra-cabeça. Tendo apenas uma peça na mão, não tenho muita ideia
de onde ela ficaria no conjunto da obra, mas tendo todas consigo montar completamente. É
claro que nosso trabalho não tem a precisão de um quebra-cabeça, lembrando, antes, um vaso
quebrado que deve ser restaurado, pela usar uma metáfora usada por Ian Gregory. Mas a
dificuldade de saber o local de uma única peça é igual e, por isso, é preciso ter em conta a
posição relativa dos lugares na hora de encontrá-los.

A segunda afirmação complementa a primeira. Podemos saber onde ficam os


lugares na relação que eles têm entre si, ou quem é vizinho de quem, sem saber exatamente
onde isso vai dar na superfície terrestre. Mas se temos erudição toponímica, se sabemos os
nomes dos lugares no passado, já podemos encontrar algumas referências que vão permitir
colocar o conjunto todo no espaço euclidiano. Muitas vezes isso é possível com o uso
informações do presente, como a localização atual de certos locais, como edificações, ruas ou
praças. Mas se para o mundo urbano isso é difícil, para o mundo rural é quase impossível. De
qualquer forma, conhecer a região que vamos estudar no presente e buscar informações sobre
os nomes destes lugares no passado pode ajudar muito no geoprocessamento em história.

Para viabilizar isso tudo, é preciso cruzar todas estas informações de toponímia
com as fontes históricas, não apenas mapas históricos, como muitos gostam de relacionar com

8
Topônimo significa “nome de um lugar”. No mapa, são os nomes de lugares que apresentados na carta.
a cartografia digital em história, mas igualmente com documentos textuais, dados de
patrimônio histórico e registros arqueológicos. Para tanto, é recomendável criar um bom
banco de dados que faça isso tudo dialogar de modo organizado e fácil de recuperar. Podemos
inclusive fazer o banco de dados exportar arquivos CSV para que os programas de GIS
possam criar os mapas.

Por fim, é preciso ter clareza de que nunca acabaremos de montar este quebra-
cabeça, ou o vaso quebrado de Gregory. Mas podemos ir testando peças e o simples estudo de
localização deste passado pode ser importante na proposição de novos problemas e novos
objetos, afastando completamente este trabalho da sua aparente relação com o positivismo.
Por fim, seria importante retomar algumas das vantagens destacadas por Gregory no trabalho
de HGIS. Para ele, poderíamos dividir os benefícios desta metodologia em três categorias: a
organização das fontes, a facilidade para visualizar as fontes (no mapa) e os resultados
advindos da análise destas fontes e a facilidade de fazer análises espacial com os dados (com
recursos estatísticos, por exemplo). Ainda nos resta pensar como organizar uma pesquisa em
história com os olhos voltados para o espaço. Já temos algumas dicas, os nossos “princípios”
acima expostos, mas vejamos isso na prática.

Como organizar uma pesquisa em HGIS: montando um dossiê

O trabalho começa como qualquer pesquisa em história: com uma problema de


pesquisa. É certo que muitas vezes a gente começa com uma fonte, pois encontramos uma que
parecia interessante ou que estava disponível. Mas a pesquisa verdadeiramente começa
quando sabemos o que perguntar para nossos documentos, ou melhor dizendo, quando, com
uma pergunta, conseguimos transformar papel velho9 em uma fonte. Para isso, é preciso
conhecer os relatos que chegaram às nossas mãos, como foram confeccionados, em que
contexto, por quem, para quê, para quem, dentre outras coisas relevantes.

Convencido o leitor de que a dimensão espacial será pertinente para resolver seu
problema de pesquisa, ele pode começar a tomar algumas providências. A primeira dela é
encontrar obras, artigos, capítulos e livros, que falem sobre o recorte espacial escolhido para o
problema. Nem sempre isso é fácil e ainda não estou falando da dificuldade de encontrar estes

9
Sabendo que papel velho é uma metáfora para os vestígios do passado, que podem ser orais, imagéticos, dentre
outros.
textos. A definição do recorte espacial nunca é simples e deve ser entendida como um
problema adicional de pesquisa. Nos anos 1950, 60 e 70, no meio acadêmico europeu, estava
em voga fazer pesquisas sobre casos regionais. Neste contexto, saíram os clássicos de Pierre
Goubert(GOUBERT, 1968), Pierre Vilar(VILAR, 1988) e Edoardo Grendi(GRENDI, 1976),
apenas para dar três exemplos, e todos os três, como era normal na época, se detém ao longo
de páginas para definir os recortes espaciais de suas obras, já que um dos resultados da
pesquisa era a imprecisão do recorte originalmente pensado e a necessidade de estabelecer
limites para a pesquisa diante de regiões nada naturais.

Agora podemos falar do trabalho mais prosaico, o de encontrar os livros que


falam sobre nosso espaço. Não apenas para saber o que foi dito, para conhecer a
historiografia. Isso é fundamental, mas pensando mais diretamente no nosso desafio,
precisamos encontrar fontes (secundarias) que nos ajudem a desenvolver a erudição
toponímica de que falamos antes. Para isso, precisaremos conhecer as obras de historiadores,
mas também de geógrafos e de folcloristas, historiadores locais, genealogistas e outros que
possam nos ajudar. O mineiro Waldemar de Almeida Barbosa, professor, diretor de escola e
autor de vasta obra, escreveu o célebre “Dicionário Histórico-Geográfico de Minas
Gerais”(BARBOSA, 1971), que conta a história de cada uma das localidades daquele estado.
Trata-se de uma obra fundamental para adquirir erudição toponímica. Nem todas as regiões
têm o seu “Dicionário Histórico-Geográfico”, mas quase todas tem o seu Waldemar Barbosa.
O Ceará tem Raimundo Girão, o Rio Grande do Norte, Câmara Cascudo, só para dar alguns
exemplos.

É preciso ir além para adquirir a competência toponímica. É importante conhecer


bem a hidrografia da região, o que nem sempre vai aparecer na obra dos autores regionais,
mais interessados em cantar as glórias de um lugarejo, mas nem sempre do rio que passa ao
lado. Por esta razão, é importante obter bons mapas hidrográficos atuais. Nem sempre os
cursos d’água conservam seus nomes, mas se alguns mantiveram seu nome, pode facilitar o
trabalho. Mas é importante ter cuidado, pois não estranharia se um rio, com o tempo, fosse
chamado com o nome de outro curso, vizinho, confundindo muito bem o historiador
desavisado e feliz, pois as coisas pareciam fazer sentido. Para este tipo de problema, convém
servir-se de mapas históricos, não apenas da época que vamos trabalhar, mas anteriores e
posteriores, pois podem ajudar na identificação da mudança dos topônimos.
No momento em que começamos nosso trabalho, vamos alternando entre a
bibliografia e o tratamento das fontes. Este último pode se dar de várias maneiras: a simples
leitura, a leitura com apontamentos ou com etiquetas, a criação de uma tabela (dependendo da
fonte, se for o caso) ou de um banco de dados, tanto quantitativo com qualitativo.
Independente da nossa abordagem convém anotar em separado o nome de todos os lugares
que encontramos nas nossas fontes e também nas obras que falam sobre nossa região. Este
procedimento será mais eficiente se criarmos uma tabela para isso, que pode ser feita num
programa de banco de dados ou numa planilha eletrônica. Convém que esta tabela tenha os
seguintes campos: nome do local, referência da fonte, vizinhanças indicadas, jurisdição. Por
ora, não é preciso atribuir coordenadas e talvez nem seja possível. O importante é transformar
isso em um problema que vai complexificar nosso estudo.

Isso pode ser feito com qualquer fonte. Em geral, quando se fala em análise
cartográfica, quase sempre se pensa no uso de mapas históricos. Vou salientar aqui o uso de
fontes escritas, sem ignorar os velhos mapas. Se tomarmos, por exemplo, uma carta, podemos
ter de antemão pelo menos dois locais, o do remetente e do destinatário. Algumas vezes, as
cartas podem fazer referências, no seu interior, a outros locais. Convém anotar todas estas
informações, uma por uma. O mesmo vale para um conjunto de cartas. Por exemplo, em
1961, foram compiladas e publicadas uma série de cartas de Luiz Adolfo de Varnhagen, sua
correspondência ativa.(VARNHAGEN, 1961) Com esta metodologia, poderíamos apresentar
em um mapa, ano por ano, as cidades e as pessoas para quem Varnhagen escreveu ou, por
outro lado, as regiões que foram assunto na correspondência. Em geral, Varnhagen falava de
obras, de autores e de textos que estaria fazendo.(CARVALHO, 2012b) Poderíamos, assim,
relacionar as obras com certas preocupações regionais de Varnhagen ou com certos contatos
que mantinha, obtendo dados que não estavam colocados de modo direto na fonte. De resto a
carta (ou cartas) poderá ser analisada com o auxílio de outras metodologias, sem perda
alguma para a pesquisa.
Uma fonte escrita para a qual o trabalho de geoprocessamento é bastante aplicável
são as crônicas e notícias de viagem. Boa parte delas permite um tratamento tão apurado que
poderíamos criar uma série de mapas ou uma animação que indicasse ao caminho percorrido
ao longo de dias,
semanas ou meses. Um
exemplo pode ser a
narrativa “Verdadeira
História...” de Hans
Staden, que esteve na
costa brasileira em
meados do século XVI.
No Laboratório de
História Social da UnB,
criamos uma animação
com a narrativa,
permitindo a visualização Figura 3 - Lugares mencionados na obra "Verdadeira História..." de Hans Staden, e
foram produzidos por David de Carvalho.
das andanças de Staden
pelo Atlântico ao longo do tempo entre suas duas viagens.(CARVALHO, 2012a)
Lamentavelmente, um artigo impresso não comporta animações e deixo apenas uma amostra
do trabalho.

Os inventários post-mortem, os registros de compra e venda e as doações de


sesmarias costumam ter, em seu interior, descrições da localização dos imóveis em questão. É
bastante frequente a identificação dos limites e das vizinhanças, além de referências a
elementos naturais como rios, lagoas e montanhas. Há registros que indicam vizinhanças de
quilombos e aldeias indígenas, o que permitiria a localização destes últimos, sempre difíceis
de georreferenciar com o uso de outras fontes. É certo que não se trata de tarefa fácil.
Utilizando esta metodologia, realizamos uma experiência dentro do nosso laboratório,
tomando as descrições das sesmarias da ribeira do Rio Acaraú, no Ceará do século XVIII.
Com uma erudição toponímica precária, obtivemos um sucesso de aproximadamente 50% na
localização de sesmarias, uma vez que umas descreviam as outras como
vizinhas.(PRUDENTE, 2012) Nossa maior falha, além do pouco conhecimento que tínhamos
do terreno, foi na falta de outras fontes para realizar cruzamentos e aperfeiçoar nosso banco
de dados. De qualquer maneira, obtivemos uma visualização bastante interessante dos dados.
Nos dois casos acima relatados, não foram utilizados mapas históricos para a
localização dos pontos. Eles teriam sido úteis, mas não são indispensáveis. Digo isso,
especialmente, pois nem
sempre conseguimos ter
acesso a bons mapas do
passado, seja pela simples
inexistência deles para
algumas regiões ou pela
dificuldade de se obter boas
cópias, o que vem sendo
solucionado pela publicação
online de diversas coleções
nos últimos anos. Trata-se, Figura 4 - Distribuição das sesmarias nos rios Acaraú, Aracati-Mirim e Aracatiaçu na
primeira metade do século XVIII (a intensidade da cor dos pontos indica a variável
contudo, de uma fonte "tempo")
extraordinária, ainda que
sedutora, já que são quase sempre obras esteticamente agradáveis. É preciso quebrar este
encanto e desmontá-las, como estamos habituados a fazer com as fontes escritas e orais. Da
mesma forma, importa conhecer a fonte e no caso de um mapa, convém saber sobre sua
autoria, o contexto de sua produção, as condições técnicas e os recursos artísticos e estilísticos
utilizados para sua confecção. Há uma diferença enorme entre o que o cartógrafo queria
representar e o que ele era capaz de fazer com as informações de que dispunha. E nem sempre
o cartógrafo trabalhava com informações obtidas por ele mesmo, geralmente, obtinha estes
dados de informantes: viajantes, navegadores e outros. Não vamos nos deter nesta análise
aqui, mesmo que fundamental, pois já foi muito bem trabalhada por outro autores.(ALMEIDA,
2001; BUENO, 2007; CORTESÃO, 1969; COSTA, 2007a, 2007b; FERREIRA, 2007; FURTADO,
2011; GUEDES, 1997; KANTOR, 2007; SANTOS, 2007) Parece-me pertinente que o historiador
interessado em usar dos velhos mapas10 saiba organizar seu material de trabalho. É importante
criar uma ficha (digital, se possível, mas não necessariamente) para cada mapa e anotar isso
tudo: autoria, contexto, descrição das técnicas utilizadas, quem fez o levantamento de campo,
quem desenhou, com que materiais, sob encomenda de quem, para que, data, formato,
tamanho e outros detalhes relevantes.

10
Para usar uma termo de Jaime Cortesão, aliás, alguém que soube usar a erudição para desmontar mapas.
Podemos passar para uma outra etapa de análise destas obras, com o seu
tratamento espacial. Me parece que há pelo menos duas formas de se trabalhar com este
material: a análise de distorção e a vetorização. A análise de distorção é uma técnica indicada
para avaliar a correlação entre os pontos apresentados no velho mapa com seus
correspondentes na cartografia atual. Isso ajuda a verificar se o mapa teve distorções e em que
lugar da carta, permitindo, por exemplo, verificar se o autor procurou alargar uma região, com
o objetivo de fazê-la parecer maior, dentro de uma política expansionista. Por outro lado, esta
técnica permite verificar algumas questões da própria produção do mapa, se houve um erro de
cálculo, de projeção ou algum outro. Há vários programas para isso, mas certamente o mais
simples de usar é o MapAnalyst, no site do qual há vasta documentação sobre seu uso.11

A vetorização é um processo mais trabalhoso e nem sempre pode valer a pena,


ainda que seja válido o exercício. Já vimos antes a diferença entre raster e vetor. A
vetorização significa passar do primeiro (fotografia de satélite o aérea) para o segundo
(imagens esquemáticas que formam o mapa no computador). Ou seja, tomamos uma foto
aérea e desenhamos linhas, pontos e polígonos por cima dela, de modo gráfico, para criar com
ela nossos mapas. No nosso caso, geralmente não temos fotos aéreas e muito menos de
satélite para trabalhar, salvo quem estuda uma parte do século XX e o XXI. Mas podemos
fazer a mesma coisa com imagens digitais de velhos mapas, como se fossem fotografias
aéreas.(BORGES, 2013) Tal metodologia já foi aplicada por diversos pesquisadores e permite
um estudo mais aprofundado do mapa.(CASTRO, 2012; DIAS; ALEGRIA, 1994) É possível
fazer um levantamento exaustivo dos topônimos usando a vetorização, além de permitir o
desmembramento do mapa em diferentes tipos de informação, separando, por exemplo,
elementos urbanos de elementos rurais ou de drenagem (hidrografia). Para fazer a
vetorização, há softwares de geoprocessamento que cuidam disso. Se ficar difícil conseguir
um, há programas de vetorização mais acessíveis, dentre os quais um gratuito e de alta
qualidade: o Inkscape.12

Isso tudo depende ainda de uma postura comparativa. É melhor trabalhar séries de
mapas do que apenas um, especialmente se forem de cartógrafos diferentes. Na comparação,
as opções do cartógrafo ficam menos naturais e podemos perceber com maior facilidade as
diferenças artísticas, de ênfase no traçado, de levantamento topográfico, dentre outras. Da
mesma forma, podemos comparar os topônimos presentes nos mapas que indicam os mesmos

11
MapAnalyst. Disponível em: http://mapanalyst.org/. Consultado em 02/11/2013.
12
Inkscape. Disponível em: http://inkscape.org. Consultado em 02/11/2013.
lugares, o que vai contribuir para nossa
erudição cartográfica. Assim como fizemos
com os textos, anotando os nomes dos
lugares que aparecem, devemos fazer o
mesmo com os mapas. Para localizar os
pontos dentro do mapa, basta dividi-lo em
quadrantes (A1, A2, B1, B2), o que
facilitará a identificação. Se o mapa tiver
sido vetorizado, podemos comparar os
traçados sobrepondo um sobre o outro e
verificando as diferenças.(BORGES;
MARTINS, 2013; NASCIMENTO, 2012)

O ideal seria organizar todo o


nosso esforço em um banco de dados que Figura 5 - Esquema de preparação para geoprocessamento
articule tudo, mas isso requer alguns em história

conhecimentos adicionais que não teremos tempo de ver nestas páginas. Independente da sua
habilidade com estes recursos, a imagem (Figura 5 - Esquema de preparação para
geoprocessamento em história) apresenta um esquema de como proceder para sistematizar
seus esforços de modo claro. Tendo as fontes, é preciso criar um repositório (uma tabela, um
arquivo de processador de texto) para receber a lista organizada dos lugares ainda não
georreferenciados. Feito isso, procuramos fazer uma busca dentro deste conjunto de modo que
as informações obtidas em uma fonte (primária ou secundária) complementem ou coloquem
em dúvida as outras, de modo a dar rigor para a informação. A fase seguinte é uma busca por
coordenadas, orientada pelas informações complementares resultantes da fase de cruzamento.
Por fim, temos uma tabela georreferenciada, que pode ser transformada em mapa da forma
como vimos no início do texto.

Para finalizar, gostaria de citar um exemplo muito bem sucedido deste tipo de
trabalho. Trata-se da obra do pesquisador Levy Pereira, publicada no Atlas Digital da
América Lusa. Foram mais de cinco anos de trabalho para identificar mais de 1200 elementos
geográficos que ele encontrou no famoso “Mapa de Marcgrave”, de 1653, que retratava o
Brasil holandês.13 Ele isolou cada um dos elementos existentes no mapa histórico e procedeu
uma varredura exaustiva de cada um deles, gerando um relatório na forma de texto que
ultrapassava 500 páginas e permitia a localização dos entes no espaço euclidiano. A lista de
fontes primárias e secundárias utilizadas é igualmente extensa e o mesmo pesquisador foi
pessoalmente investigar diversos locais sobre os quais havia dúvidas, no rastro de indícios
arqueológicos e vestígios que pudessem melhorar as informações já obtidas.

É certo que o trabalho de Pereira é exemplar não apenas pelas dimensões, mas
também pelo volume de trabalho associado. Não se espera de ninguém semelhante
empreitada, ainda mais em um trabalho acadêmico, que varia entre meses de trabalho
(monografia) e anos (mestrado e doutorado). Mas esta obra é uma prova mais do que cabal
das possibilidades do uso de cartografia digital para historiadores. De qualquer forma, cada
vez mais estão disponíveis formas colaborativas de construção de conhecimento e esta pode
ser uma saída para vencer o desafio de reconstruir espacialmente os mundos passados, tarefa
hercúlea, digna de gigantes como Atlas, que sustentava o mundo em seus braços.

Bibliografia

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América Portuguesa (1713-1748). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2001.

BARBOSA, W. DE A. Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais. [s.l.] Editôra


Saterb, 1971.

BORGES, G. A. Como transformar “velhos mapas” em documentos históricos? Uma


proposta metodológica de cartografia histórica. Brasília: UnB, 7 dez. 2013.

BORGES, G. A.; MARTINS, L. C. Geoprocessamento de mapas históricos do entorno da


Vila do Rio Grande, século XVIII. Um estudo com três mapas. Brasília: UnB, jul. 2013.

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1972.

BUENO, B. P. S. Desenhando o Brasil: o saber cartográfico dos cosmógrafos e engenheiros


militares da Colônia e do Império. In: COSTA, A. G. (Ed.). Roteiro prático de cartografia:
da América Portuguesa ao Brasil Império. Belo Horizonte: EdUFMG, 2007.

13
Detalhes sobre a obra monumental podem ser vistos no link, inclusive indicações para textos do autor:
http://lhs.unb.br/biblioatlas/ Coleção_Levy_Pereira
BURKE, P. A escola dos Annales 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São
Paulo: Editora UNESP, 1991.

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1969.

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mapas da América Portuguesa e do Brasil Império. In: COSTA, A. G. (Ed.). Roteiro prático
de cartografia: da América Portuguesa ao Brasil Império. Belo Horizonte: EdUFMG,
2007a.

COSTA, A. G. Roteiro prático de cartografia: da América Portuguesa ao Brasil Império.


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