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CEARÁ COlONIAl- PRIMÓRDIOS DE UM from tbe work of the Jesuits and the early

reformers of the Empire.


PROJETO FORMATIVO CIVllIZADOR
Key words: Colonial period - formation project-
Ercília Maria Braga de Olinda 1
civilization

Resumo I BCH-UFC I
Onde chegasse a proa dum navio português podia
aparecer ou não a espada, surgia com certeza a cruz.
Serafim Leite, S].

São poucos os estudos sobre o Ceará colonial e


muito menores ainda são 05 registros e análises
Aprendi no convrvro com projetos edu-
respeitantes às experiências educativas naquele
cativos populares e no diálogo com a obra de Pau-
período. Neste trabalho, reúno trechos de docu-
mentos históricos com o intuito de sistematizar lo Freire o exercício da tolerância que busca
algumas notas que ofereçam pistas sobre o modo superar os preconceitos e garantir um convívio
como a educação se vinculou ao projeto saudável com o diferente. Hoje, em geral, a com-
civilizador europeu, esmagando as manifestações preensão sobre o multiculturalismo faz identifi-
culturais do nosso povo. O obscurantismo imposto car as diferenças culturais, sem, contudo, eleger
pelos portugueses, tanto no plano econômico uma cultura como superior a outra. Mas esse
quanto no cultural e educacional, deixou marcas aprendizado ainda é débil, pois trazemos em nossa
no incipiente sistema educacional que se preten- memória coletiva ecos de práticas domesticadoras
deu construir a partir da ação dos jesuítas e dos e civilizatórias muito fortes.
primeiros reformadores do Império.
Neste artigo pretendo recuar ao Ceará co-
lonial para entender as origens de um projeto
Palavras-Chave: Período colonial- Projeto forma-
formativo que negou o outro nas suas dimensões
tivo - Civilização.
constitutivas, para plasmar uma realidade tida
como correta e única possível. Não se trata de
fazer uma história/julgamento/tribunal, mas, tão-
Abstract: Colonial Ceará - The Beginnings of a somente localizar a racional idade do projeto
Project of Civilization formativo que inaugurou as práticas educativas do
colonizador na Terra da Luz. Para ilustrar o senti-
There are very few studies in existence
do de tal projeto, inicio trazendo um fragmento
concerning Ceará in its colonial stage. There even
do discurso usado na cerimõnia de batismo do
less accounts registered and analysis's made of
africano que era embarcado para o Brasil no sé-
educational experiences in that period. This work
culo XVIII: "considerem-se desde já filhos de Deus.
puts together extracts from historical documents
Vocês vão para o país dos portugueses onde vão
in an effort to systematize some references that
may help us to understand the way education aprender as coisas da fé. Esqueçam seus países de

was linked to a European civilization project that origem, deixem de comer cães, ratos e cavalos.
Sejam contentes". 2
crushed the cultural aspirations of our people.
The vagueness imposed by the Portuguese, not A colonização do Ceará teve início um sé-
only in economic projects but also in education culo após a chegada de Cabral ao Brasil e se con-
and cultural oties, has left its mark on our solidou na década de 1720, com a afirmação da
incipient educational system which was built pecuária, situada, principalmente, nas bacias dos

1 Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal


do Ceará. Professora da Faculdade de Educação da Universida- 2 Esta inscrição encontra-se exposta no Museu do Ceará, próxi-
de Federal do Ceará. mo aos instrumentos usados para torturar os escravos.

-
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1i
zuaribe e Acaraú. Ao contrário do vizinho luta com os franceses e seus aliados silvícolas, na
liS~o de Pernambuco, aqui, o sistema de Capi- serra da Ibiapaba, que se tornara o principal ponto
criado por D. João 111 não vingou. Os dois de confronto aberto entre colonizadores e nativos.
lIDoa:t;á'ij"osque tentaram chegar ao Ceará, sucum- A permanência de Pero Coelho no Ceará foi
em tempestades e o terceiro, Antônio Car- pontilhada de desavenças com indígenas e de mui-
e Barros, sequer tentou tomar posse da parte tas dificuldades financeiras e materiais. Ao perce-
e fora concedida (GIRÃO, 1995). ber que não existiam os propalados metais
historiografia tradicional arrola os fatores preciosos na serra da Ibiapaba, avançou ferozmen-
plicam o atraso na colonização - a aridez te contra os índios, inclusive seus aliados, aprisio-
"ma, a agressividade do nativo e as dificulda- nando-os e vendendo-os como escravos>. A
de navegação. Paradoxalmente, durante os prepotência daquele guerreiro que só conhecia a
anos de abandono português, aqui aportaram força das armas inviabilizou qualquer empreendi-
eses, ingleses e holandeses que mantiveram mento e forçou a migração de centenas de índios
50 escambo com os indígenas, sabendo para as terras do Maranhão. A primeira seca regis-
" 'á-Ios e explorá-Ios. A esse respeito, Martim trada na história do Ceará (1605-1606) o expulsou
res Moreno dá a seguinte notícia: definitivamente, vitimando seu filho primogênito.
Girão, não concordando com os historia-
Apartavam muitos piratas que com aqueles ín- dores que denunciaram os métodos brutais do
dios comercializavam e carregavam muitos na- conquistador português, faz um balanço positivo
vios de algodões e pimenta malagueta, muitos
de sua intervenção, alegando as atribulações por
bichos, como papagaios, bugios (macacos),
que passou junto à família e, sobretudo, sua cora-
sagüis e muito pau a que os índios chamavam
uburaquatiara, que é o melhor que até agora se gem e grandeza de intenções, voltadas para a "con-
há descoberto em todo o Brasil, por ser como quista civilizadora" (1962:41).
damasco, e também carregavam pau de tinta e Na mesma linha de raciocínio, Barroso de-
algum âmbar (1967, p. 181). dica ao conquistador português palavras poéticas
que o elevam, a um só tempo, a mártir e herói:
A fundação da França Equinocial no
aranhão chamou a atenção da Metrópole. O ris- A verdade, no entanto, é que escreveu (Pero
co de perder a nova colônia fê-los, inevitavelmen- Coelho) com o suor das angústias, as lágrimas
e, lembrar-se das terras do Ceará cuja posição da dor e o sangue do martírio a primeira página
geográfica poderia ser estratégica para a expulsão da história do Ceará, a qual como que foi o anún-
cio do destino impiedoso duma terra de sol e
dos franceses.
de dor. Essapágina gloriosa dos conquistadores
A "bandeira" ou "entrada" exploradora de
da Ibiapaba demonstra que: sobre o poderoso
Pero Coelho de Sousa foi a primeira a tentar colo-
nizar as terras do Ceará, entre os anos de 1603 e
3 As leis régias protegendo os indígenas foram elaboradas pos-
1607. Esse açoriano, antes residente na Paraíba, teriormente, a saber: 1570, Carta Régia de D. Sebastião garan-
veio ao Ceará seduzido pelas notícias sobre pe- te liberdade aos índios; 1595, Lei de Filipe li proíbe a
escravização dos índios; 1655, Lei dá plenos poderes aos jesu-
dras preciosas, portando o título de capitão-mor e
ítas sobre os índios; 1680, Lei proíbe a escravização dos índi-
acompanhado por sessenta e cinco soldados e os. Como sabemos essas determinações legais nunca foram
satisfatoriamente cumpridas e as desavenças com os indígenas
duzentos índios Tabajaras e Potiguaras (GIRÃO,
foram permanentes, principalmente com as concessões de
1962, p. 36). Sua missão era expulsar os france- sesmarias nas terras das nações Tupi e Tapuias que povoavam
ses do Maranhão e se apossar das terras conquis- o sertão, serra e litoral cearense. Djacir Menezes registra esse
fato, afirmando que não faltavam documentos C .. ) de capitães-
tadas. Esse intento não foi alcançado, pois seus mores acusando Paiacus, Quxe/ôs, Cariris, Anasés, Jaguaribaras,
subordinados recusaram-se a seguir viagem até o Carateús, Icós, lucés etc, de sanguinários e predatórios e acon-
selhando "guerre de morte" ao "gentio de corso" (MENEZES,
Maranhão, após terem se envolvido em intensa 1945, p. 350).

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domínio da Espanha imperial, a alma de Portu- apaziguá-Ios e conseguir sua amizade. Girão, re-
gal nunca deixou de palpitar, cheia de vida, nas produz suas palavras registradas na sua Relação
terras que seus filhos descobriram e povoaram,
do Siará: "para conseguí-Io me despia nu e me
devassando-as, explorando-as, aumentando-as,
rapava a barba, tingido de negro, com um arco e
expulsando delas os intrusos e invasores, domi-
nando serranias e sertões, varando os rios, flechas, ajudando-me de índios, falando-Ihes de
palmilhando os litorais costurando as soluções contínuo a língua e perguntando-Ihes o que já
de continuidade e prosseguindo sem pausa ou sabia bem fazer" (ld. Ibid.).
desfalecimento a obra formidável da dilatação Em 1613, Martim Soares Moreno ausentou-
da fé e do Império (1971 :31).
se do Ceará para combater os franceses no
Maranhão, só retornando a essasterras em 1621.
O colonizador foi permanentemente exal-
Em recompensa pelos martírios sofridos nessaluta,
tado pelos historiadores tradicionais que não se
ganhou o título de Capitão-mor, além de receber
cansaram de enaltecer sua "missão civilizadora"
duas léguas de terra, um ordenado anual de qua-
numa terra de "bárbaros" e mestiços. Do ponto
trocentos cruzados e o direito de governar o Cea-
de vista daqueles que se inquietavam com o atra-
rá por dez anos. Até 1631 o donatário da Capitania
so na colonização cearense, a ação do homem
do Ceará amargou o descaso da Metrópole ~ssuas
branco civilizado e "superior" era fator de pro-
solicitações, ficando impedido de realizar qual-
gresso, "seus erros perdoáveis e as suas grandes
quer obra de maior envergadura, o que não foi
virtudes dignas de exaltação" (GIRÃO,1962, p.
empecilho para Pedro Calmon agraciá-Io com o
282). Todos os esforços relativos à domesticação,
título de Patriarca da Civilização do Ceará.
instrução e conversão dos índios foram conside-
Entre os anos de 1637 e 1654, o Ceará foi
rados elementos fundamentais na luta contra o
ocupado duas vezes por holandeses. Da primeira
atraso secular cearense. O sangrento contato do
vez vieram a pedido dos próprios índios lidera-
europeu com os nativos no Ceará seiscentista e
dos por Algodão. Vejamos um trecho da carta de
os violentos métodos de aculturação postos em
25 de agosto de 1637, que o Conselho do Brasil,
prática nos aldeamentos foram analisados como
instalado em Pernambuco, enviou à direção da
episódios inevitáveis e desejáveis, pois se acredi-
Companhia das índias Ocidentais na Holanda:
tava que não havia mais lugar para superstições,
heresias e ritos pagãos. Os índios deveriam ser
Chegaram aqui há algum tempo dois índios do
convencidos de que os padres eram abnegados
Ceará, cujo bando em número de cerca de qua-
servos que Ihes mostrariam a verdadeira religião renta pessoas ficara no Rio Grande. Declararam
e o modo de vida que os salvariam da deprava- ter sido pelos seus enviados para pedir-nos que
ção e da barbárie. A nova ordem sociocultural tentássemos um empreendimento, pois eles
imposta ao indígena foi guiada pelo ideal de ho- queriam entregar-nos o castelo do Ceará, aju-
dar-nos a expelir os portugueses e fazer-nos se-
mem temente a Deus e à Coroa.
nhores daquela região; e para mais nos animar,
A posse oficial do território do Siará Gran-
disseram que havia naquelas cercanias belas
de ocorreu somente em 1612, com Martim Soa- salinas que podiam dar muito sal como encon-
res Moreno. Aquele a quem José de Alencar trariam também muito âmbar e algodão
imortalizou na lenda do Ceará como amante e (BECK,1967, p. 207-208).
pai do filho de Iracema, foi impiedoso com os
concorrentes: "só em 1611 degolou mais de du- O grande interesse pelo sal seexplicava pelo
zentos desses flibusteiros franceses e flamengos, fato de os holandeses terem que se deslocar até o
e Ihes tomou três navios, um dos quais enviado arquipélago do Cabo Verde para obter esse con-
ao Rei" (GIRÃO, 1962, p. 50). Já com os índios, dimento. Gedeon Morris de longe assumiu a dire-
ele soube usar de inúmeros artifícios para ção da empresa no Ceará, iniciando o "ciclo do

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sal" ou a exploração das salinas, onde se empre- mer e beber. Durante o correr do ano ingerem
gava mão-de-obra indígena. Esta atividade, em- toda sorte de bebidas com que costumam
embebedar-se, isto é, vinho de caju, e também
bora primitiva, se afirmou como o primeiro
de batata e milho. Alguns têm roças, mas a mai-
trabalho organizado no Ceará e o motivo maior
oria procura o alimento nos matos. Não posso
do descontentamento dos indígenas, que logo se obter desses índios o mínimo serviço ou auxílio
aliaram aos portugueses para expulsar seus anti- sem pagar. Dizem que nada absolutamente fi-
aos convidados. Câmara, na introdução do Diá- zeram para os portugueses e muito menos hão
rio de Matias Beck, faz a seguinte afirmação: de fazer alguma coisa para nós, por quanto a
terra Ihes pertence (BARROSO, 1971, p. 44).

° tratamento desumano que Ihes impunham os


Esses seguidores da Reforma luterana, que
flamengos, as perseguições, a exploração exces-
siva no trabalho, a falta de pagamento, contrari- repudiavam o costume indígena de ingerir bebidas
amente à racional política de apaziguamento alcoólicas, eram os mesmos que pagavam dias de
preconizada pela direção da Companhia no trabalho pesado aos índios e caboclos que estive-
Recife, acabaram por indispor os indígenas con-
ram a seu serviço, com aguardente e fumo. Em
tra seus aliados de ontem (1967, p. 210).
três passagens de seu "diário", Matias Beck dá essa
informação. O que mais impressiona é que, apesar
Da segunda vez, os flamengos foram chefi-
de explorados e subestimados pelo europeu, seja
os por Matias Beck que esperava encontrar mi-
ele espanhol, português, holandês ou francês, essa
as de prata na serra de Maranguape. O sonho da
"turba" soube resistir com heroísmo em diferen-
ineração resultou na construção do forte de
tes episódios, principalmente com a Confederação
choonemborch, posteriormente, Forte de Nossa
dos Cariris. Apesar de toda a violência simbólica
enhora da Assunção, a partir do qual surgiu o
contra os índios e das contínuas guerras que os
deamento que deu origem à cidade de Fortaleza.
escravizavam ou os eliminavam, os indígenas
A ocupação holandesa no Brasil expressou
defenderam ardorosamente suas terras, seus cos-
luta dos Países-Baixos pelo livre comércio e con-
tumes, sua segurança e sua liberdade",
zra o monopólio luso-ibérico instituído com a rota
Barroso, mesmo corroborando a tese de que
os descobrimentos e expansão do capitalismo
a raça indígena era inferior e precisava ser civilizada,
ercantilista. Mesmo com objetivos estritamente
lamenta o genocídio promovido pelos portugueses:
omerciais os holandeses ensinaram índios e mes-
ços aliados a ler e escrever:
Assim, acabou melancolicamente a terrível

° padre Antônio Vieira ao embarcar na Bahia para


Confederação dos Cariris, que durante 30 anos
trouxe em sobressalto as gentes que iam povo-
Lisboa,em 1655, recebera o mensageiro Tabajara,
ando e civilizando as terras do Rio Grande do
que vinha da Serrada Ibiapaba, e lhe trazia cartas
Norte e do Ceará. Foi uma das mais notáveis
escritas de Veneza e seladas com lacre holandês,
experiências duma conjugação de esforços rea-
e de quem, segundo todas as possibilidades, havi-
lizadas por selvagens do Brasil, sempre tão
am aqueles naturais aprendido a escrita
desavindos e inimigos entre si, com o fito de
(SOUTNEY, citado por CASTELO, 1970, p. 19).
obstar a conquista de suas terras, esforço balda-
do, pois sua sorte diante do invasor fora lançada
O estilo colonizador do holandês não foi e não seria a bravura instintiva suficiente para
uito diferente do português. Barroso reproduz a
4 Sobre as lutas de resistência dos nativos cearenses, ver Pinhei-
inião de um oficial holandês sobre aqueles que
ro (2000). Numa análise fartamente documentada, o professor
itavam o Ceará: do curso de História da UFC mostra as estratégias indígenas para
preservação de seu território e cultura, as quais incluíram, desde
conflitos armados diretos (predominantes na segunda metade
É uma turba selvagem e ímpia. Os homens têm do século XVII)até os pedidos de concessão de sesmarias feitas
duas ou três mulheres. Nada fazem senão co- pelos principais das aldeias ao Rei de Portugal.

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vencer com arcos e flechas a inteligência sagaz, antes metralhado, aprisionando e escravizando
a pólvora, as balas de chumbo e a cultura su- grande número de seus companheiros? (BAR-
perior do europeu. Como a humanidade ROSO, 1971, p. 33).
Tupi, embora menos maleável, a humanidade
Tapuia teria de ser dominada e absorvida pelo Na Relação do Maranhão, escrita em 1608
colonizador (1971, p. 60-61).
ou 1609, o Padre Luiz Figueira explica os objeti-
vos da viagem:
Se as ações armadas dos soldados reais fo-
ram interpretadas pela historiografia tradicional Pax Christi. No mez de janeiro de 1607 p. or-
como heróicas manifestações civilizatórias, com dem de Fernão de Cardim principal, nos parti-
maior entusiasmo referiu-se às atividades apazi- mos pêra a missão do Maranhão o padre
guadoras e educacionais dos "soldados de Cris- Francisco Pinto e eu co obra de sessenta índios,
to"s. As missões jesuíticas, por mais de um século co intenção de pregar o evangelho aaquella
desemperada gentilidade, e fazermos cõ q' se
e meio, organizaram as escolas de ler, escrever,
lançassem da parte dos portugueses, distando
cantar e tanger nos aldeamentos. Bem assim, man-
de si os frãcezes corsairos q' lá residem pêra q'
tiveram os colégios e seminários onde se ensina- indo os portugueses como determinão os não
vam humanidades e se preparavam os futuros avexassem nem captivassem, e pêra q'esta nos-
clérigos. Até o ano de 1759, foram apenas eles a sa ida fosse sem suspeita de engano pareceo bem
se ocuparem do ensino público no Ceará. ao padre principal q'não levássemos conosco
Os objetivos políticos e econômicos do co- portugueses e assi nos partimos sós co aquuelles
sessenta índios (1967, p. 76).
lonizador sealiaram a objetivos religiosos, inician-
do-se longa fase de catequese com a vinda dos
Com esta citação, vemos claramente que os
primeiros jesuítas à serra da Ibiapaba. Os padres
objetivos catequéticos e os propósitos políticos se
Francisco Pinto e Luis Figueira, em 1607, tiveram
conciliavam e que, ao falhar a espada do guerrei-
que enfrentar a desconfiança e resistência de ín-
ro, a palavra evangelizadora era acionada. Enten-
dios que haviam sofrido duramente com a perma-
dendo bem a política colonizadora portuguesa,
nência de Pero Coelho naquela região:
José Aurélio Saraiva Câmara, prefaciando o livro
Três Documentos do Ceará Colonial, comenta
A indiada ressabiada ainda pela derrota, rece-
beu-os com grande desconfiança. Que deseja- sobre a missão jesuítica que veio consertar os
vam esses homens vestidos de preto e de tão desmandos de Pero Coelho:
mansas palavras que lhe falavam dum Deus des-
conhecido, cuja brandura sacrifício e misericór- À fé católica, que sempre funcionou admiravel-
dia dificilmente impressionariam suas índoles mente como componente mística da política co-
batalhadoras? Que vinham fazer em seguimen- lonial portuguesa, caberia agora a missão de
to àqueles arcabuzeiros terríveis que os haviam corrigir os equívocos e repor os erros, incutindo,
no aborígene temeroso, a confiança e o espírito
5 Na Bula Regimini Militantis Ecc/esiae de 1540, que aprovou de colaboração que o levariam a fortalecer o sis-
a criação da Companhia de Jesus, está escrito: Qualquer um tema econômico-militar-religioso sobre que as-
que na nossa Companhia, que desejamos seja assinalada com
sentavam o poder e a glória da cristandade lusa.
o nome de Jesus, quiser militar como soldado de Deus, debai-
xo da bandeira da cruz, e servir ao único senhor e ao Romano
Pontífice, Vigário seu na terra, depois de fazer voto solene de Nesse ponto abro um parêntese para desta-
castidade perpétua, assente consigo que é membro de uma
Companhia, sobretudo fundada para, de um modo principal, car que a Igreja Católica continuou tendo uma
procurar o proveito das almas, na vida e doutrina cristã, propa- participação decisiva nos modos de pensar e con-
gar a fé, pela pública pregação e ministério da palavra de Deus,
pelos exercícios espirituais e obras de caridade, e, nomeada- duzir o ensino no Estado do Ceará. O Padre Uno
mente, ensinar aos meninos e rudes as verdades do cristianis- Deodato, eleito pelo Partido Conservador para
mo, e consolar espiritualmente os fiéis no tribunal da confissão
(Citado por Leite,1938:06). deputado provincial, em polêmica sobre verba a

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er aplicada na vinda de duzentos imigrantes de- viriam para introduzir uma nova espécie de per-
fendeu a idéia de que o dinheiro fosse aplicado versidade, onde os conhecimentos materiais se
aliariam a uma profunda ignorância do bem e
na reforma das igrejas matrizes que estavam em
do belo, e do verdadeiro destino do homem".
completo estado de decadência e ruínas, não pa-
recendo "templos erigidos e consagradosem honra
Voltemos, porém, aos nossos dois soldados
do verdadeiro Deus". E arremata:
da Companhia de Jesus,os quais não tiveram tem-
po para realizar obra mais sólida. No ano seguin-
Seria isso mais conveniente, porque, por esse
te ao das suas chegadas, enquanto celebrava a
meio, faríamos arraigar no espírito do povo, os
piedosos sentimentos da Religião e da moral; missa, o Padre Francisco Pinto foi morto a golpes
seria mais conveniente, repito porque nação al- de tacape pelos índios tocarijus, ao mesmo tem-
guma jamais se impôs no conceito do mundo po em que seu companheiro fugia com a ajuda
civilizado, faltando-lhe o primeiro elemento de de aliados. Segundo Barroso, Padre Luiz Figueira
vida dos povos - o elemento religioso (SOUSA, "continuou a salvar para Nosso Senhor JesusCris-
1960, p. 80).
to as almas primitivas da indiada bárbara" (1971,
p. 34t até que em 1643, o barco que o transpor-
Nossos representantes liberais e positivistas,
tava naufragou no rio Amazonas, onde foi morto
na sua maioria, eram também fiéis seguidores dos
pelos índios Aroans.
postulados cristãos. As luzes do saber não se se-
Depois da expedição anteriormente referida,
param das luzes da religião e a igreja, como fiel
três outras foram feitas à serra da Ibiapaba, fun-
depositária da verdade, vai ser o guia maior no
dando a missão que consolidaria o município de
projeto de regeneração moral de um povo a quem
Viçosa do Ceará como o núcleo inicial da forma-
não se pretendeu outorgar o estatuto de cidada-
ção intelectual, educacional e religiosa do Ceará.
nia. Para fechar esse parêntese, vou reproduzir
Raimundo Girão, na sua Pequena História
trechos dos relatórios de Thomaz Pompeu de
do Ceará, ao tratar da formação religiosa do povo
Sousa Brasil de 1853 e 1854, em que esse estudi-
cearense, acentua que uma nova tentativa dos
oso defende explicitamente a necessidade da co-
inacianos de conquistar a gentilidade da serra da
munhão entre instrução e religião:
Ibiapaba logrou êxito e, em 4 de julho de 1656,
por ordem do Padre Vieira, os padres Antônio
o principal defeito que se nota, nas escolas, Ribeiro, Gonçalo de Veras e Pedro de Pedrosa
quanto ao programa de ensino, é a quase total
ausência do ensino religioso, o mais necessá-
chegaram à Serra e, "sem demora, foram conver-
rio, entretanto, para formar o coração e inspirar tendo a gente selvagem, improvisadas uma igreja
o sentimento do dever. A Lei manda ensinar e uma escola" (GIRÃO, 1962, p. 281). Com base
princípios de Religião do Estado, mas este ensi- nos registros do Padre Vieira/, que permaneceu
no, quando tem lugar, limita-se a um catecismo naquela missão entre os anos de 1654 e 1661,
resumidíssimo, cujos princípios são decorados, Serafim Leite anota que, passados dois anos da
materialmente, porque nem os mestre explicam,
vinda dos padres anteriormente citados, registra-
nem os alunos compreendem.
vam-se ali 2500 almas que os amavam e Ihes da-
Na Prússia, a educação é profundamente religi- vam os filhos para "'os ensinarem, como ensinam
osa e a lei estabelece que o fim da instrução é a a ler, escrever, cantar e a toda polícia que neles
educação religiosa. Se as escolas populares, diz cabe" (1970, p. 17).
mr. Cousin, só tivessem por fim esclarecer o
espírito, sem desenvolver, ao mesmo tempo, os 6 Estes documentos estão disponíveis no Arquivo Público do
estado do Ceará.
sentimentos de moral e de piedade próprios para
7 A direção moral e intelectual dos jesuítas na Ibiapaba foi sua
a boa educação das classes laboriosas, tais es- última missão no Ceará, pois logo após voltaria a Portugal, onde
colas fariam mais mal do que bem, e talvez ser- a Inquisição o trancafiou no cárcere de Coimbra.

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Castelo informa que há consenso, entre os benefícios, evangelizando e instruindo para o
historiadores, de que, Senhor (1970, p. 15).

Onde quer que levantassem uma casa ou abris- Serafim Leite, na sua minuciosa História da
sem um colégio, inauguravam, simultaneamen- Companhia de Jesus no Brasil, comenta sobre a
te com a catequese do gentio e as aulas para os ação dos jesuítas entre os anos de 1662 e 1671,
próprios irmãos da companhia delas necessita- mostrando que esta se desdobrou entre a Ibiapaba,
dos ainda, a escola de primeiras letras, que se-
Camocim, Fortaleza e Parangaba, sob o comando
ria o germe de onde sairia a escola primária
do Padre Jacobo Cócleo. A retomada definitiva
brasileira, quando mais tarde o Estado viesse a
preocupar-se da instrução pública (1970, p. 17). do intenso trabalho na Ibiapaba se deu com a di-
nâmica direção dos padre Ascenso Gago e Manu-
Pelos documentos disponíveis, pode-se afir- el Pedroso, entre os anos de 1691 e 1759.
mar que antes de tudo se procurou mudar os há- Em 1727, por ordem do Rei e a expensas
bitos locais através de lições orais, preces e cantos. do Reino, foi construído o Real Hospício do Cea-
Todos os jesuítas seguiam a máxima de Manoel rá em Aquiraz. A idéia original do padre Ascenso
da Nóbrega, segundo a qual "com música e har- Gago era de que essa casa de repouso e estabele-
monia de vozes se atrevia a trazer a si todos os cimento oficial do ensino de Latim e Humanida-
gentios da América" (LEITE, 1938, p. 22-23). A des fosse instalada em Viçosa do Ceará, mas, com
educação do sentimento se fazia pela instrução a demora na vinda dos recursos houve uma mu-
oral e pelo exemplo dos padres e dos principais dança de planos e Aquiraz se firmou como novo
das tribos (tuxauas). Daí por que estes teriam que núcleo de irradiação da ação dos jesuítas.

ser os primeiros a se casar com única mulher e a Em 1759, quando os jesuítas foram afasta-

realizar os sacramentos previstos pela Igreja. dos de sua ação educativa, registravam-se nas cin-

Para Girão, a Missão da Ibiapaba colheu co aldeias cearenses [Vila Viçosa Real (lbiapaba),

grandes frutos e representou a conquista daquela Vi Ia Nova de Messejana (São Sebastião de


região para a "civilização e para a igreja" (1962, Paupina), Vila Nova de Soure (Caucaia), Vila Nova
p. 281). Do mesmo modo, Castelo exalta o de Arronches (Parangaba) e Monte Mor (Paiacu)]

heroísmo dos jesuítas, destacando sua missão trezentos e oitenta e sete alunos nas escolas pri-
civilizadora e sua verdadeira cruzada de reden- márias, além de cento e cinqüenta moças no en-
ção moral, silenciando o jogo de interesses esta- sino doméstico (aprendendo a fiar, tecer e coser)
belecido entre a igreja e o colonizador: e vinte e três rapazes no ensino profissional (CAS-
TELO, 1970, p. 23). Neste mesmo ano, foram fun-
(...)Luta árdua e ingrata, pois que virgem era a dadas pelo Governo português as duas primeiras
terra, cegos de conhecimentos os naturais, ego- escolas oficiais, ou seja, independente dos jesuí-
ístas os colonizadores ... o que se Ihes deparou tas. Estas foram instaladas nas aldeias de Caucaia,
foram pseudo-destruidores de uma gigantesca e
com uma matrícula de 142 alunos, e Pacajus, com
imorredoura tarefa, que esses homens abnega-
163 alunos". Pouquíssimas escolas foram abertas
dos, concientes, destemidos e humildes, cimen-
taram numa unidade preciosa, à custa de saber, em seguida, justificando a opinião de Joaquim
moral e compustura, legando-a generosamente Moreira de Sousa de que a construção das esco-
aos brasileiros. Souberam enfrentar adversários las anteriormente citadas objetivava "primordial-
na Europa e, aqui, encontrariam campo para a mente, a contribuírem para o empenho de que
mais renhida luta, tão proveitosa à pátria e à
igreja, que admira hajam sido a hostilidade e a
8Com esses dados, fica evidente que é falsa a afirmação do
ingratidão a sua recompensa. A igreja, entretan- Senador Pompeu, registrada no Ensaio Estatístico, de que de-
to, já traçara, havia séculos, o seu plano de pois da expulsão dos jesuítas 56 veio aparecer ensino público
palmilhar essas veredas, distribuindo os seus em 1800.

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estava possuído o governo português, no sentido rruruo eram reunidos em novos aldeamentos e
de eliminar gradativamente as regalias concedi- missões. Vê-se que a luta pela existência não exi-
das aos jesuítas no setor educacional" (SOUSA, gia conhecimentos escolares, nem mesmo dos
1961,p.311). brancos que se assenhoreavam das sesmarias ou
Após o desligamento do Recife? (1799), as que possuíam currais.
condições econômicas e sociais do Ceará eram Em 1800, a população era perto de 100 mil
precárias. Poucos núcleos populacionais existiam habitantes. Naquele ano, havia no Ceará, apenas
e nem mesmo a agricultura era praticada. Apoi- dez escolas, oito de ler, escrever e contar'? e duas
ando-se em Djacir Menezes, Valdelice Girão as- de Latim, as quais eram mantidas pelos fundos ar-
sinala que o desinteresse pela atividade agrícola recadados através do 11 estabelecido por lei de 10
advinha do fato de o colono "não possuir o se- de novembro de 1772. A partir das reformas
nhorio da terra, não se enraizava ao solo, verifi- pombalinas'? que objetivavam imprimir uma orien-
cando-se mobilidade da população" (GIRÃO, tação ao ensino compatível com o nascente capi-
1995, p. 36). Apenas a Vila de Aracati tinha um tal ismo Iusitano, as escolas criadas nas colôn ias
pouco de destaque por seu comércio de charque, passaram a ser inspecionadas pela Real Mesa Sen-
algodão e couro e pela arquitetura de suas casas. sória. Esta se encarregava da nomeação dos pro-
De acordo com Bernardo Manuel de Vas- fessores que eram chamados "mestres régios" pelo
concelos, primeiro governador do Ceará após a fato de receberem provisões assinadas por EI-Rei.
separação de Pernambuco, os homens da capita- Inicia-se, pois, a intervenção direta da Metrópole
ia viviam "mais segundo a ley da natureza do que na seleção dos professores, que anteriormente de-
segundo os princípios da sociedade e civilidade pendia apenas da autoridade local:
umana e cristã" (Citado por SOUSA, 1960, p. 32).
O flagelo das secas repetia-se de modo catastrófi- Depois de nomeadas, a Mesa Sensória ordena-
co, fazendo-se acompanhar de pestes. Em 1726, va ao Ouvidor exame do mestre que exercia o
cargo durante um ano. Os resultados dos exa-
is de um terço da população foi dizimada em
mes realizados eram enviados para Lisboa, onde
orrência da varíola. No dia 13 de abril daquele
eram estudados. Com a aprovação, expedia-se-
o, a Vila de Fortaleza foi oficialmente instalada, lhe título, provendo-o na cadeira por seis anos
rmanecendo numa posição secundária em rela- (MENEZES, 1945, p. 352).
ão às vilas mais antigas por um bom tempo.
Nesse período, o Ceará tinha uma econo- A precariedade nas condições de trabalho,
ia baseada na agricultura, agropecuária e comér- as pequenas remunerações e a falta de pessoal qua-
-o de carne de sol. As "charqueadas" tiveram lificado para assumir o magistério fizeram com que
ício um pouco antes de 1740 e durante meio o Ceará iniciasse o século XIX com um ensino
10 foram motivo de esperança para a reden-
10 Uma curiosidade não pode deixar de ser registrada: entre as
- da economia da Província. A seca de 1790-
oito escolas de ler, escrever e contar, figura a de Soure, para
793 aniquilou quase a totalidade do rebanho onde foi nomeada a primeira mulher, a fim de assumir uma
turma de meninas, em 16 de novembro de 1799. Tratava-se da
ense, acabando com o sonho do comerciante
senhora Clara da Encarnação (Castelo, 1970:36).
carnes. O caboclo, resultado da união entre 11 Segundo Menezes, este imposto consistia na taxa de dez
co e índio, constituía a maioria da população réis, por canadas de aguardente fabricadas na Ásia, África ou
América; de um real, por arrátel de carne vendida na Ásia ou
índios sobreviventes de um século de exter- na América, bem como por canada de vinho; quatro reais por
quatro canadas de aguardente do reino; 160 réis por pipa de
vinagre. (1945:.352).
Ceará pertenceu ao Governo maranhense de 1621 a 1656, 12 Além de desmontar todo o sistema criado pelos jesuítas, o
o os holandeses foram definitivamente expulsos. A par- Marquês de Pombal organizou o monopólio de tudo, servin-
sa data o Ceará passou à jurisdição de Pernambuco, o do-se das Companhias do Comércio que eram tidas como "bom-
se estendeu até 1799, quando se tornou capitania direta- bas poderosas e asfixiadoras lançadas sobre a econom ia
subordinada a Portugal. colonial" (Menezes:.351).

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incipiente e aquém daquele oferecido pelos jesuí- sequer, aos anseios populares de acesso às pri-
tas, pois se constituía apenas no ensino da leitura, meiras letras. Até a chegada da família Real por-
escrita e tabuada. A prática pedagógica dos jesuí- tuguesa à Colônia, não tínhamos qualquer
tas tinha maior amplitude, pois incluíam exercícios instituição encarregada da divulgação de bens sim-
físicos, música, teatro e a Doutrina Cristã. bólicos, como jornais, bibliotecas e associações
O desprezo pelo nativo e seus descenden- culturais; até mesmo escolas e universidades eram
tes mestiços foi uma marca constante que reper- proibidas. O Brasil, enquanto colônia, foi subme-
cutiu no projeto formativo do Ceará republicano, tido a um isolamento do mundo. Portugal não
quando a educação despontou como dispositivo permitiu nem a criação de um sistema popular de
indispensável para o aperfeiçoamento social e ensino, nem a instituição de escolas superiores.
político. Os intelectuais viam na educação um O Brasil chegou à independência sem nenhuma
instrumento de higienização social, uma vez que universidade e com uma população analfabeta!".
o projeto republicano inspirado por forte De 1759 a 1822, ano da proclamação da
darwinismo social foi construído sobre a repre- Independência do Brasil, em relação a Portugal,
sentação do povo como massaamorfa, degenera- foram criadas no Ceará dezoito escolas para uma
da e indolente, incapaz de exercer a cidadania população estimada em 200.000 habitantes (CAS-
plena; um povo que necessitavaser civilizado pela TELO, 1970, p. 41). Em meio a miséria e analfabe-
ação moralizadora e disciplinadora da educação tismo, começaram a surgir os primeiros doutores
(SOUSA, 1998, p. 283-284). O cientificismo e advindos das classes abastadas que podiam estu-
positivismo que impregnavam a mentalidade da dar no Seminário de Olinda ou em Portugal. Fora
intelectual idade do início do século explicaram o da Província, essesfilhos "bem-nascidos" mantive-
atraso brasileiro pela miscigenação das raças, pelo ram contato com os ideais liberais, iluministas e
misticismo e, em algumas regiões, pelas adversi- positivistas. Os filhos das classesabastadasestuda-
dades climáticas e geológicas. vam no Seminário de Olinda onde mantinham con-
Os anseias de modernização e progresso tato com o ideário liberal. A Revolução Republicana
orientaram leis e discursos, impulsionando a for- de 1817, iniciada em Pernambuco, contou com a
mação de setores médios intelectualizados capa- participação de líderes caririenses e, sobretudo, da
zes de conduzir o ideal formativo humano família Alencar. D. Bárbara, mãe do jovem semi-
necessário ao projeto civilizatório. O Liceu do narista José Martiniano de Alencar e de Tristão
Ceará, criado em 1844, e a Escola Normal inau- Gonçalves, foi a primeira prisioneira política do
gurada em 1884, tiveram um papel relevante nes- Brasil. A Confederação do Equador, em 1824, de-
se processo. Além disso, estratégias higienistas e monstrou mais uma vez a disposição de luta de
comportamentais foram postas em prática, com o parcela da elite cearense, deixando para a história
objetivo de disciplinar a população. Os investi- o nome de mártires como Tristão Gonçalves, Pa-
mentos na reforma urbana eram apoiados na cren- dre Mororó, PessoaAnta, Miguel Pereira Ibiapina,
ça da positividade moral e social que o progresso Major Azevedo Balão e o Coronel Carapinima.
civi Iizador comportava 13. A propaganda abolicionista e republica-
Ao longo da Colônia e do Império, em todo na cresceu a partir desses dois episódios, ape-
o Brasil, e mais dramaticamente no Nordeste, o sar da inegável simpatia dos setores médios e
ensino primário foi esquecido pelas autoridades inferiores da sociedade, assim como de uma
públicas, que, a despeito das boas intenções ex- casta de conservadores que detinham e se locu-
pressasem seus discursos e petições, não conse-
guiram criar um sistema de ensino que atendesse, 14 No livro Primórdios da Educação no Brasil, Alves Matos in-

forma: Saber ler e escrever era privilégio de poucos, na maio-


ria confinados à classe sacerdotal e à alta administração pública
13 Para o aprofundamento dessa discussão ver: Ponte (1999). (Citado por Lima, sd:41).

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etavam no poder. Os anseios pela indepen- BECK, Matias. Diário de Matias Beck. In: Três
ência definitiva da Corte lusitana foi crescen- documentos do Ceará colonial. Fortaleza: Impren-
o na mesma proporção em que um forte sa Oficial, 1967. (Coleção História e Cultura).
timento de nacionalidade reafirmava os ide-
- de liberdade, soprados do Velho Mundo. ° CASTELO, Plácido Aderaldo. História
no Ceará. Fortaleza: Imprensa Oficial, 1970, (Co-
do Ensino

scurantismo imposto pelos portugueses, tan-


leção Instituto do Ceará).
- no plano econômico quanto no cultural e
cacional, era visto como uma treva que im- FIGUEIRA, Luiz. Relação do Maranhão. In: Três
ia o resplandecer das luzes. A modernidade documentos do Ceará colonial. Fortaleza: Impren-
posta e discutida no seio do iluminismo, sa Oficial, 1967, (Coleção História e Cultura).
etudo francês, era um horizonte a ser per- GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará.
ido, e esse sonho não se coadunava com Fortaleza: Instituto do Ceará, 1962.
ações escravistas, nem com um sistema polí-
o absolutista e centralizador.
GIRÃO, Raimundo e MARTINS FILHO, Antônio. °
Ceará. Fortaleza: Edições Instituto do Ceará,1945.
Ao rastrear os primórdios da escola no Ce-
" localiza-se a herança deixada pelos jesuí- GIRÃO, Valdelice Carneiro. Da Conquista à implan-
através de um projeto formativo marcado tação dos primeiros núcleos urbanos na capitania do
o ideal civilizatório, que em grandes linhas Siará Grande. In: SOUSA, Simone(Org). História do
espondeu à permanente afirmação de que, Ceará. Fortaleza:FundaçãoDemócrito Rocha, 1995.
do a cultura nativa inferior, deveria ser subs- LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus
uída pelos costumes, fórmulas religiosas, co- no Brasil. Lisboa: Portugália. Tomo I, 1938.
ecimentos científicos e modos corteses
MENEZES,Djacir. A Educação no Ceará - repasse
ados pelos países europeus. Esse projeto
histórico- social (das origens coloniais a 1930). In:
oou ao longo dos séculos e permaneceu rnis-
do às iniciativas modernizantes de pensa-
GIRÃO, Raimundo e MARTINS FILHO, Antônio. °
Ceará. Fortaleza: Edições Instituto do Ceará,1945.
es, que, a despeito das boas intenções, não
- seguiram fazer valer as idéias de respeito ao MORENO, Martim Soares. Relação do Ceará. In:
ucando. Examinando a história da educação Três documentos do Ceará colonial. Fortaleza: Im-
Ceará, nota-se um grande ecletismo de idéi- prensa Oficial, 1967. (Coleção História e Cultura).
- e intenções políticas a agitar a segunda me-
PINHEIRO, Francisco José. Mundos em confron-
e do século XIX, fazendo efervescer um
to - povos nativos e europeus na disputa pelo
deirão de iniciativas progressistas no plano
território. In: SOUSA, Simone. Uma nova história
cacional, ainda que, em sua maioria, tenham
do Ceará. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2000.
manecido na letra das leis e nos discursos
flamados de grupos de doutores vivendo em SOUSA, R. Fátima. Templos de civilização - a

a de analfabetos e de excluídos dos direitos implantação da escola primária graduada no Es-


cidadania. tado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Ed.
UNESP, 1998, p.283-284.
ferências Bibliográficas SOUSA, Joaquim Moreira de. Lino Deodato - pre-
lado do Nordeste. Fortaleza: Imprensa Universi-
RROSO, Gustavo. À Margem da história do tária do Ceará, 1960.
eará. 3 ed. Fortaleza: Imprensa Universitária do
SOUSA, Joaquim Moreira. Sistema educacional
Ceará. 1971.
cearense. Recife: MEClI NEP, 1961.

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