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I Fábula

sso é o que contam por aí, dizem que vem lá de terras ao sul...

Um homem rodeado por uma imensa biblioteca,


com os livros mais bonitos de toda a literatura mundial em todos os idiomas
possíveis, não sabe ler. Todo dia esse homem se martiriza por sua
incapacidade de desfrutar de coisa tão rara, ele chora às vezes folheando
livros em que se encontram apenas rabiscos incompreensíveis, esses dias
passam muito devagar e quando vai se deitar, o homem até é capaz de
pensar que no dia seguinte botará fogo em tudo, mesmo que com isso, ele
mesmo seja consumido pelas chamas. No outro dia o homem acorda meio
que de supetão. O peso da noite anterior se dissipou um pouquinho. Ele
toma chá enquanto observa as estantes cheias com os livros mais bonitos
que já viu, lombadas coloridas, algumas adornadas com ouro e prata. Seus
pensamentos junto de seu olhar vagueiam e ele começa a se imaginar lendo
livro por livro. Pensa por qual livro começaria, esquematiza uma ordem bem
amarrada em que poderia ler todos sem desorganizar o modo como estão
agrupados. Passa o dedo pela poeira acumulada das coleções mais antigas.
Chega até a sonhar que, talvez, ao final da leitura de todos eles - ou no
mínimo daqueles que sempre lhe chamaram mais atenção, ele mesmo
compraria uma resma de folhas muito bonitas e ásperas, e com um tinteiro e
um bico de pena nem grosso nem fino, escreveria uma história, encadernaria
as folhas, costurando com cuidado um longo fio de sisal em uma capa de
couro bem escura, e colocaria junto dos livros aquela obra sem título que
escrevera. Assim, perdido em seus sonhos, esse homem já tem seu chá frio,
as pontas dos dedos empoeiradas e um sorriso grandioso que cobre seu rosto
de uma ponta à outra. Talvez, mas isso não tenho certeza, seus olhos brilhem
um brilho que não é mais da angústia do choro, mas da leveza que é a
felicidade, e uma lágrima role pelo seu rosto.
O futuro desse homem e de todos esses livros, eu não sei dizer... o
que dizem por essas terras vastas é que... talvez um dia, cansado e dominado
por pensamentos muito pesados, ele acabe de propósito derrubando uma
vela em meio aos papéis e consumando por fim aquilo que ele achava nunca
poder alcançar. Mas talvez, um dia, ele aconchegue-se com seu chá munido
com diversos livros e comece a tateá-los e com esforço entender a construção
das palavras, o significado dos verbos, a poesia rimada...

E o velho Alejandro Borges vai embora e não diz mais nada...

Eu nunca nego cigarros se os tenho em


fartura em meu bolso. O que aprendi ao longo dos anos
como fumante foi que o fato de ser generoso quanto a
cigarros não implica necessariamente ter que sair
oferecendo-os por ai, como um arauto tabagista. Se
vierem me pedir um cigarro, o dou. Se estou no meu
último cigarro, ofereço um trago, geralmente as pessoas
negam, acho que por compaixão. Esse homem que
começou a me acompanhar na rua, e que não para de
falar, não negou um trago, além disso, fumou o cigarro
inteiro.
Ensaio sobre a incompletude

andei um pouco em círculos pela cidade a fim de colocar o meu


corpo em movimento já que a cabeça não consegue focar em
nada, cá de volta estou na praça a ouvir o último cantar dos
passarinhos antes que a noite tome forma no céu. pego a caneta e
o caderno para anotar alguns versos que desenrolo livremente

desnudada a alma

o que segue é o corpo que continua a pulsar,

é que coisas da carne ficam,

mas o espírito límpido ganha altura

em vista de, em meio às nuvens,

poder autoanalisar-se
é que têm tantas coisas que me escapam

que chego a perder um pouco o rumo

...

na verdade, não sei muito bem o que tenho a dizer, é que tem
uma coisa estranha se passando em minha cabeça, tirando-me o
eixo, dissipando o esforço, agarrando a vontade… um não sei o
quê do pensamento que faz a vista observar os caminhantes em
suas pressas de fim do dia, os automóveis buzinarem-se nas
esquinas e os comércios encerrarem seus expedientes. já doei
cigarros de palha a mendigos e emprestei meu fogo aos
maconheiros, assim a consciência devia fazer-se limpa, mas
carrego algo no peito que amarra. pego então minha cachaça que
vai na mala para entornar um gole, dissipo um pouco a
consciência para ver se encontro um pouco de minha alma.
observo um cachorro de madame a mijar por todo o canto e uma
mulher catando latinhas ao redor dos bancos. em um prédio um
tanto distante surge uma silhueta com a lâmpada recém-acesa e
continuo sem desvendar essa sensação que me estranha, foco
então o meu olhar às formas geométricas do parquinho de
criança que tem dois cavalos de madeira, desses feitos para
balançar, e nem essa imagem de infância traz algum resquício da
lembrança daquilo que está a me perturbar.

(certa vez um amigo me mostrou um livro do kundera, o mais


famoso dele, e li logo no início uma reflexão sobre o eterno
retorno retirada de nietzsche. naquelas três ou cinco páginas
ficou-me marcada a questão de que se tudo age em ciclos e se
apenas alguns eventos são os que carregam o signo da não
repetição, e por isso têm seu peso assegurado pelos livros de
história, todo resto é muito leve, a vida, as alegrias e a danação. o
autor perguntava-se, o que para ele era uma pergunta sem
resposta até então, se podemos atribuir valor positivo ou
negativo para o peso ou a leveza. como não li o livro e fiquei
apenas nessa parte, não sei dizer se ele encontrou resposta para
isso.)

pensando na leveza e no peso da vida, sou obrigado a abandonar


o meu pouso na praça devido a uma chuva rasa que começara a
cair. encontrei abrigo para a intempérie passageira em um boteco
sujo no meio do caminho de minha casa. sentei ali recolhido e
juntei umas moedas para tragar uma cerveja barata enquanto
meus ouvidos atentavam para uma conversa na mesa ao lado.
uma mulher desabafava para seu marido, amante, amigo, filho,
desconhecido, não sei, a respeito do quão bagunçada lhe parecia
sua vida. narrou toda uma rotina de afazeres e preocupações,
cuidar do pai já muito idoso e do neto que ainda está nas fraldas,
algumas dívidas acumuladas e outras coisas dessa ordem; como
sentia a vida abarrotada de uma forma que nada ali entrava ou
sequer saia. enquanto isso, entornava mais uma dose de bavaria
no copo ainda pela metade, bebia um gole, com um esboço de
deboche, “apenas um porre se encaixa”, e sorria com uma cara
disforme. de repente, me vi tomado por essa encenação e, com
isso, penetrou no mais profundo de meu eu o relato que acabara
de me ser narrado, senti uma angústia e um lampejo de excitação
na face da mulher ali defronte a mim sentada e,
despropositadamente, esqueci daquilo para que até então eu não
encontrara palavra. um velho de fronte sisuda e olhos opacos
surgiu em meu campo de observação e atraiu de repente minha
atenção, encaminhou-se para a jukebox que ladeava o balcão do
bar e retirou de um dos bolsos da calça uma moeda, tilintou-a
dentro da máquina e escolheu uma canção, enquanto a música
não começava se postou embaixo do toldo do bar, acendeu um
cigarro e ficou a observar a leve correnteza que a água da chuva
formava na guia da calçada. reconheci de imediato o som
mecânico que tomou o boteco e invadiu meus pensamentos,
comecei a cantar internamente aquela música e, quando os
versos

“a minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a


experiência com coisas reais”

se pronunciaram, veio um nó na garganta que me deixou


intranquilo, esqueci-me completamente daquela mulher com sua
bagunça própria, enchi meu copo já vazio com a cerveja já
quente e fui em direção daquele homem que fumava. a meia
distância me pus a observa-lhe as feições enquanto a música o
invadia. aquele rosto outrora sisudo se tingiu de uma expressão
serena e pensativa, e seus olhos fizeram-se vagos com uma
sombra de umidade, analisei com mais atenção aquela figura que
estava me ladeando, sua testa com uma ruga cortante de lado a
lado, uma barba cinzenta e rala por lhe preencher quase que a
totalidade da parte inferior de sua face, seu cigarro queimando e
produzindo uma cinza que não se quebrava e só crescia de
proporção, suas roupas um tanto quanto sujas e gastas
preenchiam um corpo esguio cheio de veias e artérias que
saltavam de seus braços. reconheci aquela figura como um
lampejo de meu futuro, era o eu de aqui uns tantos anos que
estava ali a observar a chuva, sem tristeza ou alegria, se
debatendo apenas com a confusão de seus próprios pensamentos
indizíveis. tive vontade de abraçar-lhe, colocar sua cabeça entre
minhas mãos, beijar-lhe os olhos e falar-lhe que não estava
sozinho, que podia contar com o seu eu ainda moço, que podiam
se apreenderem juntos, caminhar na chuva em busca de algum
significado para as suas frustrações, que talvez seriam felizes se
morassem juntos em um quarto de um hotel fuleiro no centro da
cidade, compartilhando, o mais jovem, suas esperanças, e o mais
velho, suas lembranças, e com isso se completarem, sem mais
nenhuma necessidade exterior a eles mesmos, que eram um.

(li ou ouvi de alguém que não me lembro a respeito de uma


necessidade primordial que o ser humano tem de gritar, gritar
como um urro animal, um grito nunca praticado devido às
convenções sociais que desagradam esse tipo de comportamento.
o grito então fora relegado apenas a momentos determinados de
muita dor ou de perigo, e a sociedade ocidental inteira estava
fadada a viver com uma imensa vontade nunca colocada em
prática de gritar sem motivo aparente ou necessário. certa feita,
caminhando pelo centro de alguma cidade onde estava de
passagem, me deparei com uma cena triste em uma viela paralela
a uma grande avenida movimentada: uma garotinha de menos de
oito anos segurava um gato morto apertado ao peito que
soluçava. em choque, desviei dessa vista pois não consigo lidar
com essas coisas da morte, mesmo quando são de animais
indefesos. longe dali, tive uma imensa vontade de gritar.)

um estraçalhar de vidro intromete-se em meu devaneio, a


mulher com a vida bagunçada desata a berrar com seu marido,
amante, amigo, filho, desconhecido, ameaça, xinga e quebra
coisas a sua volta. diante dessa confusão entorno minha cerveja e
seu gosto quente diluído me rasga o estômago vazio de alimento,
acho que hoje não comi nada, me esgueiro da maneira mais
felina possível e pego minha mala e me ponho a ir embora
daquele lugar que cheira a tragédia de programa televisivo de fim
de tarde, não quero ser testemunha de nada. enquanto saio,
procuro o velho sisudo e percebo que ele já se foi ou
desapareceu, em vista disso acredito mesmo que ele é minha
encarnação de alguns anos, ou um anjo travestido de mim
mesmo no futuro que estava ali para me passar algum sinal
necessário que não tive tempo de compreender. ponho-me a
caminho de casa a passos fracos já que a chuva diminuíra
consideravelmente sobrando apenas alguns poucos pingos
gordos descompassados. passo pela avenida principal da cidade e
já não há tanto movimento para além de carros apressados que
rasgam sinais de trânsito e cantam pneus, não sei que horas são,
pois meu celular está descarregado já há alguns dias. vou me
tingindo de uma grande ideia de escrever um livro, um romance
que narra as desventuras de um homem de meia-idade que tem a
incrível capacidade de não completar nada daquilo que se
propõe, ele sempre está a desviar de seus compromissos firmados
e principalmente daqueles planos que ele mesmo se impõe. o
livro deveria narrar o dia a dia desse ser desencontrado no
período de um ano onde nada de interessante aconteceria,
mostraria as agruras de ganhar seu sustento parco serviente
apenas para pagar o aluguel de um cômodo nos fundos da casa
de uma idosa doente que cria trinta e oito gatos antes
abandonados, alimentar-se de coisas muito baratas servidas em
pratos encardidos e, com a quantia que lhe sobra, comprar
cartões de felicitações que coleciona desde a adolescência, mas
que nunca encontraram pessoa intimamente conhecida e
merecedora de seus envios. esse homem seria feliz a sua maneira,
isso é importante e essa é a grande questão que me entrava já
que não consigo encontrar na minha arte poética interior a forma
exata de descrever sua felicidade. talvez não haja em mim
felicidade suficientemente inscrita para que eu consiga escrever a
felicidade dessa personagem que me habita.

(outro dia dei de frente em uma esquina com uma oferenda de


macumba, duas velas iam acesas e uma galinha se encontrava
morta jazida em um prato de louça escuro. suas penas eram
pretas e tinham riscos brancos em suas extremidades, seu corpo
ia jogado e o pescoço torcido findava em uma cabeça com olhos
revirados, crista murcha e um filete de sangue e baba saindo do
bico amarelado. tinha muito sangue sobre o prato, o que
mostrava que a galinha tinha sofrido uma punhalada bem dada
em seu peito, talvez nem tivesse um coração ali dentro da
carcaça. voltei dois dias depois àquela esquina, as velas não mais
havia, mas o corpo da galinha ali ainda permanecia. uma
enxurrada de moscas cobriam feridas causadas por algum felino
ou cachorro vira-latas, que, com sorte, encontrou alimento
naquele não-ser-mais oferecido. nenhuma mão humana
profanou aquele ato. sete dias depois, o santuário foi lavado e
apagado completamente daquela esquina.)

ao passar pelo cemitério que ladeia uma das ruas que dá de


encontro ao meu caminho de volta, reparo que seus portões
laterais estão levemente encostados, mas não trancados, e
invadido por um sentimento de curiosidade me esgueiro pela
entrada daquele local, como meu medo de alma penada é muito
menor do que o das sombras que minha mente contém, caminho
entre os túmulos com a única pretensão de não ser percebido
pela alma humana e viva que ali deve ter adentrado. não demoro
muito a encontrar aquilo que procuro, prostrado em um grande
mausoléu dos idos do século dezenove está uma figura esquia
trajada com vestes carcomidas segurando uma garrafa em sua
mão esquerda e uma vela vermelha acesa na direita. sua pele é
negra e seu rosto ostenta uma longa barba branca encrespada,
não tem cabelos na cabeça, e não consigo observar com clareza
seu rosto devido à iluminação proveniente apenas da vela em
suas mãos e da pouca luz que adentra o cemitério advindas dos
postes elétricos de fora. o silêncio de repouso é cortado pela voz
rouca que sai da garganta da figura, que parece discursar para os
mortos, palavras que, por mim, foram assim entendidas

“a noite toma contornos fluorescentes

e as almas cantam um lamento iridescente

hoje você pode ter acordado em um dia escuro

acreditando na falta de um naco

daquilo que se pensa ser si mesmo

mas te confesso absurdo animalzinho

que se eu deixar cair esse todo de vidro que vem em minhas


mãos

contra a pedra azul que se chama terra aqui estendida

ela vai desfazer-se em mil estrelas

tantas quanto as partes que em ti e em mim habitam


e se com cada caco incrustássemos na carne

com o único prazer de nos fazermos inteiros

somente uma dor quase montanha

contaminaria nosso corpo, espaço e cerebelo

porque a garrafa de vidro novamente não formaria

daqueles seres que mais se fizeram passageiros

e nunca se sentiram ao todo inteiros

belum selezai talvez seja o primeiro

já que ele vive forasteiro

nos recantos dos pássaros e de outros seres pequenos

não é poeta apesar de rimar sons

mas de poesia só entende aquele que está amando por completo

ou aquele que se tortura diariamente sem sabê-lo

belum selezai não ama e nem tortura

belum selezai só anda a catar pedaços

e se uma nuvem se junta a outra para fazer chuva

e se uma folha da árvore cai para outra poder brotar

e se um grão de areia vira ilha depois de um centilhão de anos

e se duas células que se unem formam uma criança


para belum selezai as coisas não se dão assim

a chuva, a árvore, a ilha e a criança

são todas imagens da cabeça que se quer inteiramente

a nuvem, a folha, o grão e a célula

servem então apenas para sua semelhança infinitesimal

seríamos então partes preenchidas de todos?

o que completa a vida é tão somente a morte

o que completa o círculo é o seu ponto de início

estou vivo e sei disso e ainda tenho uns outros pontos a cerzir

assim tem dito o profeta, amigo e espírito

cujo nome é belum selezai e não outro”

findadas essas palavras, com um sopro audível, a figura apagou a


vela, e depois de alguns segundos ouvi a garrafa se quebrar a
alguns metros de distância. saí de minha tocaia tentando
reconstituir o caminho de volta para a entrada do cemitério por
onde tinha passado, enquanto repetia para mim mesmo alguns
dos trechos do que tinha ouvido. belum selezai… ganhei a rua e
continuei meu caminho. já em casa, adentrei. e com uma
exaustão tremenda joguei-me no colchão e adormeci
prontamente.
(um sonho. estou em um quarto fantasmagoricamente iluminado
com luz branca, distingo apenas uma diminuta janela, tão
pequena que não seria possível toda essa luz advir apenas dali,
vejo móveis que aparentam ser muito pesados, uma cama, uma
poltrona, uma estante horizontal, e objetos espalhados cujas
formas não trazem nenhum tipo de singularidade. no quarto,
além de mim, reconheço um pássaro, um pequeno pardal de
penugem preta com uma barriga branca. muito pequeno e frágil,
parece ser ainda um filhote. aproximo-me dele a fim de espantá-
lo para que ganhe a liberdade através da janela. ele não entende
meu ímpeto e começa a voar em círculos, debatendo-se muitas
vezes nas paredes e móveis, esganiçando um lamento triste. fico
apavorado em vê-lo nessa contenda e busco a todo custo distraí-
lo para o objetivo que tenho em mente, sua libertação. um tempo
indefinível se dilata nessa dança entre pássaro e homem. em um
momento, cansado, o pequeno pardal pousa ao lado da cama, e o
homem, que sou eu, tenta pegá-lo carinhosamente pelas mãos,
fazendo um movimento delicado com os dedos em busca de
entrelaçá-los sob o minúsculo corpo de ave que pulsa com o
furor do cansaço. devido a sua falta de destreza, a ave solta um
grito e volta a voar em círculos pelo quarto, se debatendo
novamente hora ou outra nos objetos que compõem o cenário.
mais uma vez o pássaro desiste de suas investidas e pousa dessa
vez no pé da estante. mais uma vez o homem, agora todo
banhado de suor, tenta com maior cuidado capturar o pássaro
com as mãos, ele balbucia palavras de conforto e assovia breves
melodias para tentar acalmar o coração da ave, que quase lhe
rompe o peito. mais uma vez uma tentativa frustrada. nova
dança, inquietude alargada. o pássaro, puro a respeito das coisas
do mundo, enfia-se embaixo da poltrona e lá parece parar de se
debater. o homem, atemorizado com a possibilidade de a ave ter
encontrado seu fim, grita e se desespera, tenta empurrar a
poltrona ou levantá-la, mas esta é muitíssimo pesada, e nenhum
de seus esforços consegue movê-la ao menos um centímetro.
pega então um objeto qualquer com o qual ultrapassa rente ao
chão a poltrona por baixo a fim de retirar dali o pássaro sem lhe
causar nenhuma dor. a ave sai toda empoeirada e logo que vê
novamente a luz, retorna seu giro pelo quarto, capenga e sem
direção, com uma maior braveza que resulta em pancadas mais
fortes nas paredes. o pássaro cai novamente em repouso sobre a
cama. o homem não tem certeza se deve novamente tentar pegá-
lo, teme pela vida do animal que lhe está defronte, tem as roupas,
o rosto e os cabelos empapados de suor, o coração chega a subir-
lhe pela garganta e a mente fica exausta. o homem senta-se ao
lado do pássaro que pouco reage, soltando apenas alguns pios de
desabafo pardálico. homem e ave se encontram. abruptamente o
pássaro volta a voar. acordo.)

(sem título)

Rolou para o lado


e saiu do casulo. Seu corpo todo suado e um medo crescente trazido pela
luz do mundo ali fora. Não conseguia distinguir se acordara de um sonho
bom ou se adormecido adentrara em um pesadelo. O corpo estranho
pulsava, sentia medo e não conseguia desgarrar das cobertas. Antes se
encontrava em terreno seguro e confortável, a vida era mansa e os dias
transcorriam com leveza, tudo estava em seu lugar e em ordem. Mas
agora, tudo parecia ser tão opaco, quase que irreal. Apercebeu-se que há
muito tempo não se movia e foi esticando os membros um a um, uma
centelha de alívio invadiu sua cabeça como se no meio da testa, entre
seus olhos, como se sentisse seu corpo por inteiro pela primeira vez. Na
medida em que o corpo esticava e as articulações estalavam, uma
crescente tensão irradiou de seu peito agora arfante, uma dor que
começou fraca, se intrometeu na mente e aumentou; câimbra motora
avassaladora, contração e constrição – cólica do eu. Teve medo de
morrer enquanto lembrava o calor afável do enrolar da cama. Era feliz,
sabia disso e sentia-se completo. Agora o mundo todo se fazia de formas
diferentes de antes, linhas curvas e outras tantas retas e tudo colorido.
Vozes. Sons mecânicos e aves. Que mundo era esse onde mal conseguia
ouvir sua própria voz? – onde o mundo era só seu. “EU” (?) E se
lágrimas rolassem e pudesse voltar atrás, desfazer o tempo, desfazer seus
movimentos? – Mas lágrimas não lhe saiam mais, na realidade seus
olhos estavam bem abertos e as pupilas dilatavam conforme se
acostumava à luz. Sentia dor, mas seu coração freneticamente batendo
parecia jorrar seu sangue para fora do corpo, estava se arrebentando por
dentro mas no fundo sentia um prazer cômico, como que advindo de um
lado de sua personalidade que dizia que a dor ia parar quando ele se
acostumasse; pois a dor era parte de sua vida agora, e isso não era ruim.
Aos poucos, seu corpo se fez leve, e todo o peso que concentrava em si
migrou para um ponto indeterminado das costas, era o seu peso do
mundo, o peso que iria carregar de agora em diante. O peso era o mundo
e o mundo também era ele. Parado, concentrou sua respiração
controlando o ar que entrava e saia do peito, não iria morrer, entendeu
isso e descartada essa possibilidade, tentou organizar as ideias que
desvelavam em sua cabeça. Tudo parecia girar ao encontro daquilo que
tinha sido e naquilo que se transformara. Inexorável. Essa palavra
surgiu-lhe na cabeça corrompida de uma sensação de vazio. Não se
muda aquilo que já foi, mas muda-se mesmo assim, e essa ideia da
permanente mutação que parecia ser aquilo que estava vivendo naquele
instante encheu-lhe de alegria, uma alegria levemente adocicada –
quanto de espera cabe na palavra esperança? – notou que não estava
pensando coisa com coisa, adiava assim seu próximo passo, pois ainda
suas mãos agarravam fortemente os trapos que antes o envolvia, quanto
tempo ainda permaneceria nessa mesma posição? A mente parecia toda
repleta de coisas novas das quais não compreendia, e o esforço de tentar
entendê-las lhe causava mais confusão, sentiu uma iminência de choro, e
dessa vez chorou por inteiro, o corpo todo se estremeceu e se entregou
sem nenhuma piedade a todas essas coisas que não conseguia organizar
no pensamento. O corpo tomado de lágrimas escorria e pingava, e
continuava, mais e mais, até subitamente parar. Com grande esforço
soltou uma das mãos cerradas na coberta, e alisou seu rosto molhado e
salgado. Gostou do conforto do carinho autoimposto, era como que
redescobrir o prazer do toque, o tato. Enrijecia ao passar a mão liberta
pelo pescoço e pelo peito, as dobras dos sovacos sentindo leves cócegas.
Entregou-se a uma risada pura, até que mais uma vez algumas lágrimas
rolaram, só que causadas pelo espanto da gargalhada. Ouviu sua voz.
Voz que achara que perdera, e que louco em seu medo inicial, pensou
não possuir mais. Podia falar, podia então gritar. E como se preencheu de
prazer ao dar seu primeiro grito, como um uivo que traz aos ouvidos algo
que se encontra entre o terror e o desejo. Tomado de uma coragem então
descoberta, firmou as pernas em um enlace dos panos para firmá-las, e
entre pequenos gritinhos e espasmos de humor meio débil – como as
risadinhas de bebês quando recebem cócegas vagarosas na barriga –
esticou os dois braços em busca do vazio e balançou o corpo. Fechou os
olhos para apenas sentir o movimento. Mais rápido, e mais rápido
ainda... não tinha mais como se segurar por causa da velocidade que
atingira. Soltou-se, esticou as asas que lhe era o peso do mundo, bateu-as
sem saber como. E antes mesmo de encontrar o solo, voou inteiro.
Said Leoni é poeta e não existe.

“Pequenos fragmentos” foi composto entre 2016 e


2018. Enviado por carta aos cuidados de Batata Sem Umbigo, que teve o
prazer de fazer a capa, uma ilustração e divulgar esse grande amigo.

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