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FELICIDADE
O tema deste texto é a ética em Epicuro, filósofo grego que nasceu em 341
a.C., em Samos. Esse filósofo, um dos mais originais da Antigüidade Clássica,
afirmava que o homem deveria encontrar a felicidade no prazer, proposta
inovadora em sua época. Em sintonia com as mudanças econômicas e políticas de
seu tempo, o epicurismo procurou repensar a formação do homem grego com
base em um novo ideal de homem e de sociedade: aquele é o sábio que se refugia
na meditação filosófica, enquanto esta deveria ser unida pelos laços de amizade, e
não políticos.
A felicidade foi um dos principais temas de Epicuro, o que talvez tenha
sido o motivo de haver atraído para sua escola tanto a elite quanto o povo. Sua
época estava dilacerada pelas guerras, pela superstição e pelo debate sobre o
Estado, por isso ela exigia uma filosofia que proporcionasse ao indivíduo uma
nova regra de conduta: conceder ao homem autonomia (FARRINGTON, 1968).
Sua opção por conceder autonomia à vontade individual associava-se às
condições políticas de Atenas. A cidade, centro político da Grécia Clássica, sempre
foi o referencial pelo qual o grego se orientava, mas a sua sujeição ao império
macedônico pôs fim aos ideais da vida pública grega. A derrocada da Grécia
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contribuiu para o fim do modelo democrático e de cidadão, ampliando as crises
de ordem econômica, política e filosófica.
Com a ruptura da identificação entre homem e cidadão, o grego perdeu o
gosto pela administração pública e pelas referências morais que a ela estavam
associados. Tal condição obrigou os homens, por força dos acontecimentos, a
fecharem-se em si mesmos e buscar no seu íntimo os conteúdos éticos e as metas
que lhes orientariam a vida (REALE, 1994).
Foi nesse contexto que Epicuro pensou sua doutrina filosófica: opôs-se à
Cidade-Estado, não desejando sua restauração, mas, ao contrário, o afastamento
do homem da vida pública. Aconselhou seus discípulos a absterem-se da política,
por considerá-la a causa da infelicidade e a doença de seu tempo. Em sua “Escola
Jardim” empenhou-se em oferecer os remédios para os males do mundo,
recomendando aos seus seguidores uma vida simples, dedicada à meditação
filosófica e à busca do prazer proporcionado pela convivência com os amigos. Ao
fazê-lo, consciente de seu papel, Epicuro forneceu as bases de um perfil de
sociedade que passava pela educação do homem.
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leis (FARRINGTON, 1986). A amizade deveria ser cultivada pelo homem como
um meio para alcançar a tranqüilidade do espírito, uma vez que ajudava a
suportar o sofrimento.
Essa postura de Epicuro era nova na Grécia. Os gregos acreditavam que a
felicidade dependia da participação do cidadão na vida pública, mas a conquista
de Atenas por Alexandre Magno tirou da cidade política a capacidade de
assegurar, no plano social e político, a liberdade do homem. A felicidade, nesse
caso, só poderia acontecer na individualidade e na convivência com os amigos.
Nesse caso, as leis políticas passaram a ser substituídas, no Jardim, pela busca do
prazer enquanto ideal.
Diferente de seus antecessores, que tinham no cidadão o modelo de
conduta, Epicuro, em sua doutrina, propunha ao homem a valorização da
simplicidade, sem os apegos à riqueza ou à vida pública. Para alcançar essa
felicidade e a tranqüilidade o homem só precisa de si mesmo; não lhe serviam,
portanto, a cidade, as instituições, a nobreza, as riquezas todas, nem mesmo os
deuses: o homem é perfeitamente autárquico (REALE, 1994)
Além disso, não tinha preocupações teóricas, mas práticas. Seu objetivo era
encontrar os remédios para os males que afligiam o homem, tais como as falsas
crenças, o medo da morte e os sofrimentos de toda espécie, considerados as
barreiras que impediam a felicidade.
Este discurso tornava todos os homens iguais, pois a felicidade não
dependia de bens ou títulos, pois para ser feliz era necessário apenas estar vivo.
Enquanto outros filósofos ensinavam nas academias e nas praças públicas, onde se
encontravam os homens importantes da cidade, Epicuro ensinava no seu jardim,
onde todos poderiam ter acesso aos ensinamentos do mestre: nobres, escravos,
ricos, pobres, homens e mulheres.
O discurso proveniente da sua escola apontava para o entendimento de que
a realidade era perfeitamente penetrável e conhecível pela inteligência do homem,
motivo de sua doutrina estar dividida em três partes: a lógica, a física e a ética.
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A filosofia de Epicuro encontrou outros instrumentos para o homem
alcançar a felicidade, além do afastamento de seus discípulos do Estado. O ponto
de partida de sua doutrina é a substituição das crenças pela correta compreensão
da natureza das coisas, especialmente da natureza e do próprio homem. Desse
modo, compreendeu que o prazer sereno, como bem supremo, sustenta-se no
conhecimento verdadeiro, na ciência da natureza. Nesse sentido, o epicurismo
entendeu por lógica uma crítica do conhecimento, objetivando determinar os
critérios que permitissem separar o verdadeiro do falso, eliminando as opiniões
errôneas e buscando os fundamentos para uma vida feliz e serena (PESSANHA,
2007).
A lógica epicurista tem o objetivo de estabelecer uma metodologia para
alcançar a verdade, por isso foi dividida em três critérios: as sensações, as
prolepses e os sentimentos.
A sensação é o critério fundamental para alcançar a verdade. Passiva, não é
produzida por si só, mas por alguma coisa da qual é efeito. Ela é produzida pelo
contato dos objetos com nosso corpo, que apenas a recebe. De todos os objetos
emanam “simulacros”, entendidos como átomos que se desprendem de seus
objetos e voam pelo ar e, nesse sentido, a sensação é produzida pela penetração
destes “simulacros” em nós. Justamente por isto, a sensação é objetiva e
verdadeira, pois é produzida, portanto é garantida pela própria estrutura
anatômica da realidade (REALE, 1994).
Para o filósofo, as sensações são absolutas. Qualquer dado obtido por elas é
verdadeiro. Então, como explicar os indiscutíveis erros provenientes das
sensações? Epicuro diz que o erro não está nas sensações, mas na opinião de quem
as sente. O Mestre do Jardim deixa clara essa perspectiva na carta a Heródoto:
“Erros e conclusões errôneas, porém, sempre ocorrem por causa daquilo que foi
presumido a mais” (Epicuro, 2006, pág. 52).
As sensações percebem partes da realidade e o indivíduo antecipa sua
opinião julgando a sensação de forma errada. Para Epicuro, não é a sensação que
erra, mas a pessoa que a avalia:
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Se rejeitares qualquer percepção dos sentidos e não distinguires
entre aquilo que supuseste em razão da simples expectativa e
aquilo que realmente pudeste perceber, ou seja, entre sensação e
imaginação, rejeitarás igualmente, pela tua opinião errônea, todas
as outras percepções dos sentidos e perderás, desse modo, todo o
critério. Se, por outro lado, aceitares como positivas as mesmas
percepções, considerando como duvidosas as noções baseadas nas
expectativas e tudo aquilo que não for confirmado pelos sentidos,
não serás capaz de controlar qualquer discórdia no teu intimo, e
também a decisão sobre o que estiver certo ou errado (EPICURO,
2006, p. 66).
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constituição do homem e da alma. Para tal fim, Epicuro usou a concepção de
“átomo” como a parte menor e indivisível de todo corpo existente. Todo corpo,
seja orgânico ou não, foi definido por aglomerados de átomos, incluindo os
deuses, os homens e suas almas. Segundo Reale, Epicuro admitiu a existência
desses corpos indivisíveis porque, do contrário, seria preciso admitir uma
divisibilidade dos corpos ao infinito, o que levaria à dissolução das coisas no não-
ser, contrariariando sua doutrina materialista (REALE, 1994).
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Se o autor compreende que o corpo e a alma são constituídos por átomos,
também os deuses teriam a mesma natureza. Os deuses são feitos de átomos,
porém, diferentemente dos homens, são perfeitos e indissolúveis, o que garante
imortalidade ao divino. A teologia epicurista é fonte de polêmica, principalmente
no contexto e época em que foi elaborada. Epicuro nega a noção de divino tal
como era comumente entendida, rompendo, não completamente, mas
significativamente, com toda a compreensão religiosa e filosófica de divindade
concebida na Grécia (REALE, 1994).
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torturam, quer advenham de circunstâncias políticas e sociais, quer sejam
causadas por motivos religiosos (ULLMANN, 1996)
A ética é o motor e a meta da vida humana e está identificada ao prazer.
Mas qual a concepção de prazer em Epicuro? Quando esse filósofo definiu prazer
não se remeteu aos sentimentos efêmeros ou vulgares, mas à ausência de dor e
sofrimento, ou seja, de perturbação da alma.
Prazer para nós significa: não ter dores no âmbito físico, e não
sentir falta de serenidade no âmbito da alma. Pois uma vida cheia
de ventura não é formada por uma seqüência infinita de
bebedeiras e banquetes, pelo gozo de belos mancebos ou de lindas
mulheres, nem tampouco pelo saborear de deliciosos peixes ou de
tudo aquilo que uma mesa cheia de guloseimas possa oferecer;
mas, pelo contrário, somente pelo pensamento claro, que alcança a
raiz de todos os desejos e de tudo o que se deve evitar e que
afugenta a ilusão que abala a alma como se fora um tufão
(EPICURO, 2006, p. 42)
Prazer é o início e o fim de uma vida feliz: ele é o primeiro bem, é inerente
ao ser humano e critério de toda escolha e recusa (EPICURO, 2006, ). De acordo
com Epicuro, o prazer encontra seu momento máximo na ataraxia, ou seja, a
imperturbabilidade da alma. A essa condição chegamos pelo discernimento da
diversidade dos desejos, uma vez que nem todos devem ser atendidos. Epicuro
não só admite a busca de prazeres positivos, mas também delimita quais devem
ser buscados, sempre procurando não afastar-se de seu ideal, a ataraxia. Para ele,
há três tipos de prazer, a saber: prazeres naturais e necessários, prazeres naturais e
não necessários e os prazeres não naturais e não necessários.
Na primeira classe de prazeres Epicuro coloca aqueles que são essenciais
para a sobrevivência e o bem-estar da saúde do corpo e da alma. O epicurista
deveria sempre estar atento a esta classe de prazeres, visto que estes são os que
realmente dão sentido à vida, pois eliminam o sofrimento e permitem a
tranqüilidade da alma.
A voz da carne diz: não passar fome, não passar sede, não sofrer
frio! Aquele, porém, que não é condenado a estes padecimentos,
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ou pode contar com a certeza de que não venham a acontecer,
pode comparar sua ventura à do próprio Zeus (EPICURO, 2006, p.
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O sábio epicurista é, portanto, aquele que, ao compreender racionalmente o
mundo e a vida, pode calcular os prazeres. A felicidade, para ele, se define na
satisfação de poucas coisas materiais, e não na busca de prazeres voluptuosos ou
de iguarias finas. Quanto maior a imperturbabilidade, maior é a felicidade.
É nesse sentido que o Mestre do Jardim educava seus discípulos com base
em quatro virtudes: a razão ou prudência, o cálculo, o autodomínio e a justiça. A
primeira objetivava a busca do verdadeiro prazer, discernindo as diversas
situações da vida cotidiana. “Não é possível viver venturosamente, se não se viver
racional, nobre e justamente; mas, ao inverso, não é possível viver uma vida
racional, nobre e justa, sem se viver venturosamente” (EPICURO, 2006, p. 62).
A segunda máxima de sua doutrina era a habilidade do cálculo, isto é, saber
diferenciar o que realmente é vantajoso daquilo que não é. É esta virtude que guia
as ações dos epicuristas: quando o indivíduo deve fugir de uma dor ou quando
deve suportá-la, quando deve aceitar um prazer e quando recusá-lo.
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“Observando-se atenciosamente os desejos, aprende-se a tirar proveito de tudo o
que procuramos e de tudo o que evitamos para a saúde do corpo e para a
tranqüilidade da alma [...]” (EPICURO, 2006, p. 40).
O autodomínio é a terceira virtude. Ela possibilita ao jovem evitar o que é
supérfluo, a saber: os bens materiais, a cultura sofisticada e a participação na
política. “[...] não zelamos pela obtenção de qualquer prazer, mas deixamos de
lado muitos, dos quais finalmente poderia resultar-nos um mal-estar maior ainda”
(EPICURO, 2006, p. 40).
Por fim, a justiça é a última das virtudes. Essa deve ser buscada por causa
dos frutos que produz. Para Epicuro, o justo é aquele que usufrui da plena
imperturbabilidade da alma.
Somando-se a essas preocupações Epicuro entendeu que a amizade era o
maior bem a ser cultivado, motivo de ser tema de boa parte de seus escritos. Para
ele, a convivência com os amigos era um dos caminhos para a verdadeira
felicidade. Segundo ele, a “faculdade de granjear amizades é de longe a mais
eminente entre todas aquelas que contribuem para a sabedoria da felicidade”
(EPICURO, 2006, p. 67).
Neste sentido o Jardim pode ser visto como a primeira sociedade de amigos
organizada em torno de um objetivo comum: buscar a imperturbabilidade do
espírito. Nessa comunidade, o direito à felicidade é aberto a todos, mesmo àqueles
excluídos dos direitos de cidadania pela democracia de Atenas, tais como as
mulheres, as crianças, os estrangeiros e os escravos. A amizade é, portanto, um
bem universal e instrumento indispensável ao artesanato ético interior, pois a
presença do amigo auxilia na procura e na manutenção da sabedoria
(PESSANHA, 2007). “Não é amigo quem sempre busca a utilidade, nem quem
jamais a relaciona com a amizade, porque um trafica para conseguir a recompensa
pelo beneficio e o outro destrói a confiada esperança para o futuro” (EPICURO,
2006, p. 77).
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Com essas características, o Mestre do Jardim, sempre rodeado de amigos e
discípulos, estabeleceu os fundamentos de uma nova educação, ao preocupar-se
com a formação ética do homem com vista a uma finalidade: superar as
adversidades que uma cidade conquistada produziu.
Segundo Farrington, apesar de contestador, Epicuro não era um anarquista
e muito menos um modista em busca de status, apesar de contrariar o sistema
político vigente. Benjamin Farrington entendeu que Epicuro foi um reformador
com o mesmo espírito que Platão teve ao compor sua República. Ambos
buscavam salvar o homem grego da decadência. Eles apenas deram remédios
diferentes para a mesma doença. Platão acreditava que através das leis e de um
Estado forte os homens se apaziguariam. Epicuro entendeu que esse remédio é
pior do que a doença, é propôs outra solução para o mesmo problema: afastar-se
da política, cultivar a amizade, não temer a morte, não temer os deuses, suportar o
sofrimento e ser feliz. (FARRINGTON, 1967)
Por fim, importa considerar que o retorno à literatura clássica e aos temas
éticos se justifica: o clássico nunca se esgota, porque orienta o nosso pensamento
para compreender o processo de transformação histórica que levou à construção
do homem contemporâneo, enquanto a ética é relevante porque permite debater
as condutas dos homens. No epicurismo, observa-se que os princípios éticos
visavam a fazer do indivíduo um ser virtuoso e feliz, proposta que pode ser
adequada aos complexos problemas da atualidade, de acordo com as
particularidades de cada época.
REFERÊNCIAS
EPICURO. Pensamentos, texto integral. São Paulo: Editona Martin Claret, 2006.
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FARRINGTON, Benjamin. A doutrina de Epicuro. Rio de Janeiro: Editora Zahar,
1967.
MONDOLFO, R. O pensamento antigo. Vol. II. 3. Ed. São Paulo: Editora Mestre
Jou, 1973.
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