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Texto em Construção
25/03/2018
Resumo
∗
Doutor em Filosofia Analı́tica pela UFPB–UFRN–UFPE; Mestre em Lógica Matemática pela
UFPB; Professor Adjunto de Filosofia e Teoria do Direito na Universidade Estadual da Paraı́ba
(UEPB – CCJ) e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN – DA – CERES).
1
—————————————– O que é o direito? ————————————— 2
1 Um Paradoxo
Criamos e usamos certas palavras com o propósito especial de dizer algo com
sentido sobre nós e/ou sobre o mundo (fı́sico ou cultural). Uma palavra, segundo
esta perspectiva, pode ser entendida como um “signo” que, sob certo aspecto ou
modo, representa algo para alguém1 . Nesta aula pretendemos entender como, em
geral, os juristas contemporâneos percebem os referentes (significados e/ou práticas
jurı́dicas) do signo “direito”.
De inı́cio, analisemos um curioso “paradoxo”. Embora seja recorrente o uso
da palavra “direito” em nossos discursos diários, o que por um lado releva que temos
certa familiaridade com aquilo que ela descreve, por outro lado, quando questionados
sobre o seu significado somos tomados por um embaraço, pois não sabemos dizer ao
certo o que o direito é.
O filósofo Santo Agostinho, em sua obra Confissões, Livro XVI, 17, fala-nos
sobre este entrave ao citar o uso que fazemos da palavra tempo:
(...) Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e
brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pen-
samento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito?
E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conver-
sas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o
que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando
dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém
me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a per-
gunta, já não sei.
Com a palavra “Direito” este incomodo se mantém. Convivemos com o
direito, fazemos uso frequente dessa palavra no nosso dia a dia, entretanto quando
nos perguntam: “o que é, pois, o Direito?”, já não sabemos mais responder com
certeza o que ele é.
Mas por que palavras como tempo, amor, felicidade, igualdade, justiça e
direito, para citarmos apenas estas, são difı́ceis de ser definidas com objetividade
ou em poucas linhas? Em termos semânticos (ou seja, observada as relações das
palavras com o mundo) e pragmáticos (isto é, identificado os usos das palavras pra-
ticados pelos falantes), entendemos que isto ocorre porque o “processo de definição”
de uma palavra não é simples: primeiro, não é nada fácil criar uma palavra que
expresse com eficácia aquilo do mundo que se quer falar (semântica); e, segundo,
uma vez definido aquilo de que se quer falar, podemos conferir diversos significados à
palavra criada conforme os distintos usos que os falantes fazem desta (pragmática),
com isso os membros da comunidade linguı́stica podem ter certas dificuldades de
interpretação quanto à etimologia da palavra ou quanto à parte ou quanto à tota-
lidade dos “contextos de uso” (significados por eles sugeridos à palavra usada), os
quais surgem a todo instante no âmbito das nossas práticas sociais.
1
Vide Peirce (2015, p. 46).
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2 Agenda Pragmática
Como observamos na seção anterior, não é uma tarefa fácil compreender as
palavras polissêmicas. Isto ocorre porque surge a dificuldade de entendermos (1)
como se deu a primeira tentativa de estabelecer num primeiro contexto (“contexto
originário” de definição) o “significado primeiro” da nova palavra criada para nomear
( e fazer entender) aquilo que se quer falar pela primeira vez; e (2) como os falantes
conferiram outros significados desta palavra ao longo de outros contextos (“contextos
posteriores” de definição e uso). Como as palavras acima tempo, amor, felicidade,
igualdade, justiça e direito seguem esta lógica, dizemos que elas são polissêmicas,
sendo os seus significados tantos quantos forem os contextos nos quais são usadas
(ou quantos forem os jogos da linguagem 2 ).
Definir algo não é uma tarefa fácil, exige de nós muita energia e perspicácia.
Mas, por que definir algo é tão difı́cil? Aquele que pretende definir o que a coisa
é deve estabelecer limites, contornos, traçar fronteiras ou mesmo enunciar os seus
atributos especı́ficos, de modo a torná-la, em nosso discurso, inconfundı́vel com as
demais coisas (objetos, animais, ações, sentimentos, fatos etc.) já definidas por nós3 .
Quando definimos o que algo é, na verdade, estamos construindo uma identidade a
coisa que pretendemos definir. Por exemplo, ao entendermos o cı́rculo como uma
“figura plana contida por uma linha [que é chamada circunferência], em relação à
qual todas as retas que a encontram [até a circunferência do cı́rculo], a partir de um
ponto dos pontos no interior da figura, são iguais entre si”4 , estamos lhe enunciando
atributos sui generis que lhe conferem uma identidade. Estes atributos constituti-
vos da identidade nos permitem não confundir um triângulo com um cı́rculo, por
exemplo.
No entanto, nem sempre é fácil traçar a fronteira que define algo sem que
esta fronteira esteja em interseção com outras fronteiras ou mesmo borrada. Pense-
mos... Será que é possı́vel definirmos com segurança as diferenças existentes entre a
arte e o artesanato? Entre o que é pornô e o que é erótico? Ou ainda, entre o direito
e a justiça? Onde começa um e onde termina o outro? Em parte, esta dificuldade se
deve a pragmática: uso que os falantes fazem de uma palavra ou de uma expressão
em diferentes contextos, os quais nos remetem a diferentes significados5 .
2
O conceito “jogos de linguagem” foi introduzido pelo filósofo Wittgenstein (2002) em seus
cursos e registrado em suas Investigações Filosóficas (Philosophical Investigations, 1953, § 7 ss.)
para entender como se dá a produção linguı́stica nos mais diversos âmbitos da linguagem. Para
se entender uma linguagem, afirma ele, é preciso saber como ela funciona. Entender uma palavra
numa linguagem não é de antemão uma atividade a priori de compreensão do seu significado,
mas antes um saber acerca do seu uso, do funcionamento, em um entre outros tantos “jogos de
linguagem”. A linguagem não é para Wittgenstein (2002) uma trama de significações independentes
da vida de quem a usa: é uma trama integrada à trama de nossa vida. A linguagem é um complexo
de atividades regidas por regras. Por isso, falar uma linguagem é parte de uma atividade, ou de
uma forma de vida. São exemplos desses jogos, entre outros: dar ordens e obedecê-las; formular e
verificar uma hipótese; perguntar; agradecer; saudar; pedir; informar sobre um acontecimento.
3
De modo semenhante Hart (2005, p. 18) entende que a “definição, como a palavra sugere, é
primariamente uma questão de traçar linhas ou de distinção entre uma espécie de coisa e outra, as
quais a linguagem delimita por palavras distintas.”
4
Euclides. Os Elementos, Livro I.
5
Como entendido por Charles William Morris (1970, p. 6-7).
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A partir de 1910, Hans Hahn, Phillipp Frank e Otto Neurath, e posteriormente M. Schlick e R.
Carnap, formaram um grupo de pesquisadores: o “Cı́rculo de Viena”, que ambicionaram construir
uma “filosofia da ciência”, com “uma linguagem cientı́fica que, evitando todo pseudo-problema,
permitiria enunciar prognoses e formular as condições de seu controle mediante enunciados de
observação” (NEURATH apud MORA, 2001, p. 3019). Este uso da palavra cı́rculo (“Cı́rculo de
Viena”) não é significativo para a matemática, a qual só atribui importância ao significado unı́voco
construı́do exclusivamente por ela: o cı́rculo como estrutura matemática (ou objeto matemático).
Algo do tipo já não acontece com o termo “direito” que no âmbito do direito-saber comporta
polissemia.
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Ius pluribus modis dicitur: uno modo, cum id quod semper aequum ac bonum est ius dicitur,
ut est ius naturale, altero modo, quod omnibus aut pluribus in quaque civitate utile est, ut est ius
civile (...) (Paulus. Digesto I, 1,11).
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normativas” Isto é, direito como “sistema de normas jurı́dicas” ou direito como
“ordenamento de normas jurı́dicas”.
Em 2015 os empregados domésticos (jardineiros, copeiras, cuidadores de
idosos, caseiros, babás etc.) obtiveram uma grande vitória no cenário jurı́dico bra-
sileiro ao adquirirem, por meio da Lei Complementar 150/2015, que regulamentou
a Emenda Constitucional no 72, direitos trabalhistas fundamentais como os direitos
ao fundo de garantia, seguro desemprego, salário famı́lia, adicional noturno e hora
extra, até esse momento inéditos, já que a Constituição promulgada originalmente
em 1988 não havia lhes garantido tais direitos. Em virtude dessa importante atri-
buição de direitos, hoje, podemos afirmar: (3) “São assegurados à categoria dos
trabalhadores domésticos, por exemplo, os direitos de fundo de garantia,
seguro desemprego, salário famı́lia, adicional noturno e hora extra.”
Podemos interpretar (3) com ênfase na ideia de que certos sujeitos de direi-
tos têm as suas necessidades, interesses ou demandas atendidas por intermédio da
contraprestações sociais de cidadãos e do Estado que os reconhecem como deten-
tores de direitos trabalhistas básicos. A palavra “direito”, nestes termos, adquire
sentido subjetivo. O termo “subjetivo” refere-se ao poder, à prerrogativa, à facul-
dade, à pretensão, ao interesse, ou mesmo à imunidade de se ter certos direitos,
isto é, aponta para a possibilidade jurı́dica que um sujeito tem de ser considerado
“sujeito de direitos” com relação ao idealizado contexto das normas jurı́dicas (ou
com relações às concretas decisões jurı́dicas).
No sentido subjetivo da palavra “direito” percebemos uma guinada quanto
ao “objeto de estudo” proposto em (2). Enquanto no sentido objetivo dessa palavra
o “objeto de estudo” da teoria do direito é a norma jurı́dica e o ordenamento de
normas jurı́dicas, no sentido subjetivo o objeto da teoria do direito passa a ser o
“sujeito de direitos”.
Pertence, por exemplo, a agenda de investigação do sentido subjetivo da pa-
lavra “direito” as seguintes questões: (a) Como se situam os sujeitos em relação ao
sistema jurı́dico? O que cabe aos membros de uma comunidade perante tais normas
e em razão delas?; (b) Qual é o significado da expressão “ter um direito”?; (c) Quais
seres podem ser considerados “sujeitos de direitos”? Por quê? (d) Como os direitos
subjetivos conferem aos “sujeitos de direitos” o poder, a faculdade, a pretensão, a
prerrogativa, a imunidade ou mesmo o privilégio de ser depositário de direitos?; (e)
O que é a personalidade jurı́dica? Qual é o seu fundamento?; (f) O “direito subje-
tivo” pode ser reduzido a concepção de “direito objetivo”? As questões de (a)–(f)
são abordadas, em geral, por meio do estudo da dicotomia: direito objetivo vs. di-
reito subjetivo; pelas investigações da concepção de personalidade jurı́dica e algumas
teorias dos direitos subjetivos, tais como as teorias voluntaristas de Hugo Grócio e
Winscheid; a teoria dos interesses jurı́dicos de Rudolf von Jhering; a teoria dos inte-
resses sencientes de Peter Singer e teoria dos valores intrı́nsecos de Immanuela Kant
e Ronald Dworkin.
Em 10 de junho de 2015, por unanimidade, a plenária do Supremo Tribunal
Federal julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 4815 e
declarou inexigı́vel a autorização prévia para a publicação de biografias. Seguindo
o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, a decisão dá interpretação conforme a
Constituição da República aos artigos 20 e 21 do Código Civil, em consonância com
os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artı́stica,
cientı́fica e de comunicação, independentemente de censura ou licença de pessoa
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Para uma abordagem didática e provocativa do tema: Alves (2007).
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Referências