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Ao longo de toda a Idade Média, não faltou quem pretendesse levar à prática
social os ensinamentos cristãos e a aplicação dos valores do cristianismo à política.
São Paulo, teólogo dos Evangelhos, leva aos Cristãos nas Epístolas os
ensinamentos da mensagem de Cristo para porem em prática na sua vida em
sociedade sem necessidade de alteração das formas sociais e políticas da organização
em que convivem. Ensinamentos como obediência à autoridade política, o exercício
dos direitos e cumprimentos dos deveres de harmonia com a ordem instituída no
respeito pela justiça, equidade e caridade; também, no respeito pela propriedade. Não
há, portanto, uma organização social especificamente cristã, mas uma maneira cristã
de cumprir os deveres sociais na organização política constituída.
É, no entanto, numa Epístola de São Paulo (Epístola XIII aos Romanos) que, é
formulado, na doutrina cristã um princípio sobre a origem divina do poder que vai
prevalecer na teoria política Escolástica durante toda a Idade Média – princípio Paulino
(a sua formulação é a seguinte: “ Nulla potestas nisi a Deo”). Este princípio sustenta
que não existe nenhum poder senão o proveniente de Deus. Quer dizer, todo o poder
– temporal ou espiritual – tem origem divina porque é criação de Deus enquanto
criador da Natureza.
Nesse texto da política cristã diz-se “que toda a pessoa se submeta às
autoridades superiores, porque não existe poder que não venha de Deus e as
autoridades que existem foram instituídas por Deus…”.
A formulação daquele princípio fundamenta e justifica a obediência absoluta
aos deveres, a obediência à autoridade instituída. Por outro lado, encara-se com
emanação de Deus enquanto criador da ordem universal onde cabem tanto a ordem
natural (direito natural; família; sociedade), como a ordem sobrenatural (lei eterna;
espírito; Igreja; poder espiritual).
A conceção Paulina de que o poder é de origem divina e sendo o poder o centro
da política leva a pensar que Deus faz parte da ordem política do mundo.
Com efeito a presença de Deus vais ser uma constante no pensamento político
medieval, não só através da participação dos cristãos nos atos políticos mas, também,
na formação da teoria teológica-política das relações entre a Igreja e os Reinos (“o
meu reino não este mundo”). Em suma, formar a “cidade ideal” onde não há judeu
nem grego; onde não existe escravo ou homem livre; pois todos são livres e iguais e
irmãos em Cristo. É um pensamento que São Paulo proclama, indo mais longe que os
estóicos, pois esta cidade não tem fronteiras geográficas, nem barreiras sociais e
religiosas. Um exemplo será a “Respublica Christiana” que tem como chefe supremo o
Papa. Nasce, então, as condições para a formação da ideia de unidade e solidariedade
entre os homens.
São Paulo é o precursor da existência de duas cidades: a celeste (natureza
espiritual) e a terrena (natureza temporal), que São Agostinho desenvolve em termos
teológicos na sua obra “Civitas Dei”.
De começo gerou-se a ideia maniqueísta em relação às duas cidades: a cidade
celeste, formada pelos cristãos e a cidade terrena formada pelos pagãos (os não
convertidos ao cristianismo), contra a qual se insurgiu o filósofo Celso, que defendia a
participação política e obediência ao imperador. Celso censurava os cristãos por se
absterem ao cumprimento dos deveres civis e militares exigidos pela elaboração de
todos na sociedade política (“ se todos nos comportássemos como vós… desapareceria
de entre os homens o vosso culto e a verdadeira sabedoria”). Assim, defendia a
participação ativa dos cristãos indispensável ao pagamento de impostos devidos ao
imperador que velava pela sua segurança.
Em face a isto, os pagãos não podiam admitir a teoria de dois reinos por causa
das consequências sociais e políticas a que conduzia.
Em contrapartida, os cristãos em vez de praticarem uma solidariedade política,
estavam absorvidos pela solidariedade espiritual que os levava a recusar o sacrifício e
o culto ao Imperador e só a Deus conceder obediência e honras divinas. Apenas,
reconheciam como válidas as leis não escritas da moral. Era a existência de uma lei
natural diferente das leis positivas, conforme a afirmação de São Paulo (Epístola aos
Romanos, II). Concepção próxima, mas ao mesmo tempo distinta, do estóicos, pois
para estes a lei natural era fundamento e fonte de legitimidade da lei positiva.
Esta posição dos cristãos na concepção política do direito fez com que fossem
acusados e aliados dos bárbaros do exterior e considerados os bárbaros do interior do
Império romano e, consequentemente, responsáveis pela crise que se abatia sobre o
império assim como pela dissolução da civilização romana.
As acusações de Celso dirigiam-se, especialmente, contra o grupo dos cristãos
que seguiam Tertuliano (155-220), apologista do cristianismo segundo os
ensinamentos de São Paulo. Seguindo o princípio paulino sobre a origem do poder,
defendia que os imperadores romanos deviam ser respeitados porque os governantes
do povo são escolhidos por Deus, na medida em que o poder que estes exercem é
emanação divina. Porém, o imperador não é nenhum Deus, pois o império é realidade
terrena. Para Tertuliano o reino de César e o de Deus são de natureza radicalmente
distinta.
Orígenes (185-254) procura integra no pensamento cristão uma parte da
herança pagã, particularmente a filosofia grega, como melhor forma de preparar o
ensino do cristianismo. Para ele nem tudo é mau no mundo do império romano.
Invoca o triunfo dos bárbaros, que por sua vez, virão a ser cristãos no mundo
unificado. Partindo da sociedade civil considera o homem na sua dupla dimensão de
ser humano: a da alma que o determina como homem no mundo terrestre; e a do
espírito que o liga a Deus como ser religioso. Pela dimensão da alma os homens devem
estar dirigidos só a Deus. Esta dupla dimensão leva Orígenes a considerar múltiplas
distinções: as duas cidades – a de Deus e do mundo; as duas sociedades – a política e a
Igreja Cristã; a das duas leis – a civil, que é a dos homens, e a natural, que é a de Deus.
Nesta dualidade formam-se duas ordens distintas mas não antagónicas. E, assim,
afirma a legitimidade do poder civil pelo facto de ser uma emanação de Deus.
Em relação às duas cidades, Orígenes vê nelas além da hierarquia uma
complementaridade. Por isso, não admite insurreição contra o poder civil se no
exército deste não houver violação da lei natural. Neste sentido, acha que a “cidade do
mundo” desbravou o caminho para a “cidade de Deus”. É, por isso, que ele invoca
tanto para o Império romano a proteção divina. Deste modo, a cidade terrena pode
caminhar ao encontro da cidade de Deus, isto é, fazer este caminho à medida que se
torne mais justa e traga Deus ao Mundo.
3- Os Evangelhos.
A doutrina de Cristo surge como revolucionária, relativamente a uma cidade
judia em atitude expectante. Com efeito, quando ele pregava que o tempo chegara,
que era filho de Deus e que a lei fora abolida, quando denunciava o formalismo e a
opressão dos Fariseus, essa revolução teológica e espiritual trazia nas entranhas uma
revolução social, isto num meio onde a religião era tudo, não se apresentava como tal.
Pelo contrário, Cristo anunciava o reino de Deus, isto é, precisamente, o fim da
política, na medida em que esta é uma tentativa racionada para organizar a cidade
humana (“ Fazei penitência, porque o reino de Deus está próximo.” ; “ Em verdade vos
digo que alguns entre os presentes não morreram antes de ter visto o reino de Deus.”).
Os seus ensinamentos resumiram-se numa fórmula que, através de muitas
interpretações, dominará o pensamento cristão: “O meu reino não é deste mundo”. É,
portanto, normal que o ensino de Jesus não contenha nenhuma doutrina política, uma
vez que, de certo modo, a Boa Nova implica uma anulação do pensamento político.
Cristo tenta despertar em cada um dos seus auditores o sentido da vida espiritual,
chamar-lhe a atenção para um universo novo que cada um trás dentro de si e que é
precisamente a imagem do reino de Deus. Para atingir esse fim, procura destruir todos
os prestígios que as paixões terrenas, as ambições sociais ou o orgulho que os Fariseus
acumulam no caminho.
É inegável que esta doutrina continha um poder dissolvente perante certas
hierarquias e certos valores sociais, podendo surgir como a de um revoltado ou
mesmo de um anarquista. Chamando a atenção para a inutilidade desses valores e, em
contrapartida, para a importância do esforço interior substituindo esses prestígios,
geralmente aceites por critérios puramente espirituais. Cristo ensinava os seus
discípulos que nem o poder, nem a fortuna, nem a respeitabilidade social, são valores
seguros. Sem trair o espírito do Cristianismo, antevia-se o que o tornava semelhante
ao estoicismo: em ambos os casos concede-se a mesma importância ao valor moral e,
em face da sociedade dos seus preconceitos e formalismos, a mesma valorização do
indivíduo (despojado de vestes sociais e adornado com a simplicidade do coração). Os
Fariseus não podiam deixar de se aperceber do alcance destrutivo desta pregação e
tentaram, segundo os Evangelhos, arrancar a Jesus diretrizes comprometedoras.
“Mandaram junto dele os seus discípulos com o Herodianos, dizendo: « Mestre,
nós sabemos que és verdadeiro e que ensinas com verdade o caminho de Deus, sem te
preocupares com o que quer que seja, porque não atentas na aparência dos Homens.
Diz-nos, pois, o que te parece: é lícito, ou não, pagar o tributo a César?». Jesus,
conhecendo a sua malícia respondeu: « Hipócritas, porque me tentais? Mostrai-me a
moeda com que se paga o tributo.». Eles apresentaram-Lhe um dinheiro. Jesus
perguntou-lhes: « De quem é esta imagem e esta inscrição?». «De César»,
responderam eles. Então, Ele disse-lhes: «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus»” (Mat, XXII, 16-22). Este texto decisivo marca bem o limite da crítica
cristã. A vida social e política faz parte da vida terrena; todas as suas regras e valores
são terrenos. Devido a isso, é que não se pode comparar com a vida da alma, que só a
Deus diz respeito: mas a conclusão que Jesus dela extraí, segundo os Evangelhos, e
contrária à conclusão dos cínicos. Longe de afirmar: não nos devemos subter às
necessidades políticas, porque delas não têm valor, ele conclui: devemos submeter-
nos porque elas não têm valor. Devemos pagar o imposto, símbolo da obediência civil,
precisamente, porque nada tem a ver com Deus.
Portanto, a pregação de Jesus dirige-se, particularmente, aos deserdados, para
lhes demonstrar que a verdadeira felicidade é de uma espécie diferente da que
oferecem os prazeres da Terra e que se torna necessário suportar as infelicidades
terrenas, físicas ou sociais. Pode hesitar quanto à interpretação comparativa entre o
texto de São Mates: “ Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino
dos céus. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados.”
e o texto de São Lucas “ Bem-aventurados sois vós, ó pobres, porque o reino dos céus
vos pertence. Bem-aventurados vos, que hoje estais famintos, porque amanhã sereis
saciados”. Entre estes dois textos existe mais do que uma subtil diferença, visto que
um nos apresenta um apóstolo dos justos e um outro profeta dos pobres; porém o
espírito permanece idêntico. Todas as infelicidades deste mundo que pertencem ao
corpo e que como tal devem ser tomadas; a Terra impõe uma série de provas que o
homem deve suportar o melhor possível com o auxílio da sua vida espiritual.
Nos Evangelhos não existe pensamento político, precisamente porque as coisas
da comunidade terrena são sentidas como radicalmente diferentes das coisas da
comunidade celeste e repudiadas em bloco, não por serem mais, mas por constituírem
um dado da condição humana, na qual não interessa operar distinções.
4- São Paulo.
Depois de uma pura atitude expectativa que aguardava para breve a realização
das profecias, sucederam-se atos que comprometeram mais profundamente o
pensamento cristão. Houve quem procurasse realizar, desde esse momento, o reino de
Cristo, muito embora respeitando os conselhos de prudência de Jesus. Os apóstolos
puseram os respetivos bens em comum (Actos 11, 44-45); era a emulação da virtude e
a exaltação da pobreza; a doutrina não postulava nada disso, porém as imaginações
exaltavam-se. O Apocalipse de São João traduz com bastante clareza e efervescência
que provocava a expectativa do fim do mundo exacerbada pelas infelicidades da
época. Imaginamos facilmente que os ensinamentos de Cristo podiam ser recebidos
como uma perspetiva anarquizante, sobretudo em vésperas de acontecimentos
definitivos. Os valores e os deveres sociais eram tidos precários e vis, em face dos
impulsionados, dos sacrifícios ou das renúncias.
São Paulo tentou refrear esta tentação. As Epístolas estão recheadas de apelos
à calma social. Ele recomenda aos escravos a obediência (Colossenses, III, 22-25:
“Servos, obedecei em tudo aos vossos senhores, segundo a carne”). E, até, este
conselho está integrado numa longa lista em que São Paulo convida toda a gente a
cumprir com justiça os deveres inerentes ao seu estado, senhor, pai, marido, esposa,
filho. Por outras palavras, a sociedade civil não perde nenhum dos seus direitos.
Compete apenas aos Cristãos cumprir ou desempenhar com equidade e caridade cada
um dos deveres que provêm da vida social. Nem mesmo a propriedade é objeto de
qualquer crítica em parte nenhuma: São Paulo limita-se a recomendar a caridade e o
uso honesto da riqueza. Em suma, São Paulo, desenvolvendo os Evangelhos, dá a
entender que não existe uma organização social especificamente cristã, mas sim uma
maneira cristã de cumprir os deveres sociais na organização vigente.
O reino de Jesus.
Seguindo um caminho mais paralelo, São Paulo vai também organizar o
advento da cidade celeste. Seguindo a letra do Evangelho ele exclama: “Mas a nossa
cidade está nos Céus.” (Fil., 3, 20). Esperançados no regresso de Cristo, os cristãos vão
permanecer unidos por uma solidariedade mais forte que todos os laços terrenos, o
que forma entre eles uma cidade ideal, invisível, no próprio coração da cidade deste
mundo: é já a cidade de Deus (“Deixa de existir o judeu, ou o negro; deixa de existir o
escravo ou o homem livre; deixa de existir o homem e a mulher, porque todos vós sois
em Jesus Cristo.” (Gálat., III, 28). Semelhante à cidade do sábio estóico, cresce uma
cidade invisível que não tem fronteiras geográficas, nem barreiras sociais. São Paulo
vai mesmo mais longe que os estóicos, uma vez que não reconhece nenhuma especial:
“Onde está o sábio, onde está o escriba? Não condenou Deus como loucura a
sabedoria do mundo.”(Corint., I, 20-27). Desvaneceu-se desde logo até ao próprio
critério de cultura ou de sabedoria filosófica que salvaguarda o estoicismo. Nunca terá
de insistir muito na importância desta pregação. Muito mais seguramente do que pelas
conceções abstratas do estoicismo se encontrava assim garantida e sensível ao
coração a ideia da unidade entre os homens e a solidariedade do seu último destino.
Enfim, para firmar os alicerces morais desta cidade de Deus, São Paulo, imitando os
estóicos, vai mesmo, assaz paradoxalmente, ao ponto de reconhecer a existência de
uma lei natural à margem da lei positiva.
Começam assim a delinear-se essas duas cidades na teologia de São Paulo, mas
por ora não antagónicas. É verdade que os estóicos encorajam o homem a participar
na vida social e política, São Paulo limita-se a pregar a obediência e o respeito pelos
deveres civis, mas tal compromisso por enquanto, não levanta nenhum problema.
Porém exige apenas uma vida espiritual intensa e constantemente alimentada de
esperanças a curto prazo e, por outro lado, implica deveres cívicos que não chocam a
moral cristã. Virá o tempo em que as fórmulas de São Paulo perderão a virtude parar
as consciências dilaceradas.
6- O édito de Milão.
O édito de Milão (313) ao autorizar os cultos dos cristãos ao seu Deus ao lado
do culto dos pagãos, coloca a necessidade de rever a posição dos cristãos face aos
problemas da relação com o Império e a possibilidade da sua participação política.
Pode dizer-se que o édito de Milão consagrou a liberdade de consciência ao permitir a
liberdade de culto aos cristãos. A Igreja oriental procura, agora, influenciar o poder do
imperador, substituindo-se ao neoplatonismo, doutrina com a qual o cristianismo tem
diversos pontos de contacto. A figura da Igreja que personificou essa ação foi Eusébio
(260-337), bispo de Cesareia, ao elaborar uma teologia imperial de apoio a
Constantino. Assim, o principio paulino “Nulla potestas nisi a Deo”, é interpretado num
sentido profundamente positivo, na sua aplicação ao Império. Desta forma, nesta
teologia política ressalta a antiga ideia de Orígenes, da complementaridade entre as
duas cidades que conduz a um papel ativo do imperador na expansão do Cristianismo.
Para justificar, o bispo de Cesareia explica a forma como o poder do imperador emana
de Deus. Afirma que o príncipe está ligado a Deus e de que este é o representante de
Deus na terra, o que o “fortalece por meio dos seus eflúvios, o ilumina com as suas
revelações, partilha com ele as suas virtudes”. Nesta teoria do poder combinam,
também, aspetos do estoicismo e do neoplatonismo. A corte terrena do imperador é a
imagem da corte celeste, na mesma forma em que o Império é a imagem do universo.
Há um paralelismo entre as duas cidades, embora se situem, hierarquicamente, em
sítios diferentes, porém não deixa de existir uma ligação a Deus. A autoridade do
imperador vê-se, assim, legitimada e fortalecida e a pessoa do imperador numa
posição hierocrática. Nesta teologia política o imperador mantendo-se, embora,
tolerante em relação ao paganismo, passa a ter um magistério moral exercido fora da
Igreja: “é o bispo de fora”. Esta teoria confere-lhe a direção espiritual do mundo
pagão, por um lado, e o dever, em continuação da ação civilizadora do império, de
conduzir os súbditos para a evangelização da Igreja, por outro lado.
A demonstração desta teologia política é a forte influência das ideias cristãs na
legislação do Imperador Constantino. O poder imperial encontra-se ao serviço da Igreja
cristã do Oriente. Mas esta situação permitiu a intervenção do poder temporal do
imperador nas questões de foro próprio da Igreja e a criação de um sistema que iria
prosperar durante cerca de um século na política dos reinos do ocidente. Este é o
caminho que vai ser seguido por aqueles que pretendem no mundo fazer da cidade
terrena uma cidade cristã. Outros porém, seguem outro caminho: monaquismo –
concretização do anacoretismo preconizado por Tertuliano.
Aquele caminho vai levar, no século IV, à liberdade social na direção moral que
consistirá, essencialmente, em dar uma conformação cristã às diversas questões da
vida social e política e, assim como, às instituições.
Por sua vez, o princípio da liberdade de consciência concedido pelo édito de
Constantino era, agora restringido pelo cristianismo em relação aos outros cultos, que
vai suscitar uma discussão entre os pagãos liberais (em defesa da tolerância religiosa),
a luz da seguinte ideia: todas as religiões adoram o mesmo Deus, sob diferentes
fórmulas e crenças. Tais ideias de tolerância desapareceram.
8- Celso.
Nada sabemos de exato acerca do filósofo que, provavelmente por volta do
último terço do século II, se armou em paladino do helenismo político, filósofo e
religioso contra os cristãos. Felizmente que os fragmentos da sua obra, “Discurso
Verdadeiro”, chegaram até nós devido à conservação de Orígenes, no próprio livro em
que este refutava que, o polemista pagão, “Contra Celso”. Os textos que possuímos
provam à sociedade que, defendessem-se como se defendessem, a atitude dos
cristãos mostrava-se ligada a uma opção política. Parecia já escandaloso o
recrutamento de uma seita que recebe, e até procura, os escravos e os pobres; marca-
se ai uma traição aos olhos dessa aristocracia urbana e instruída que dirige o Império,
assim como às fórmulas consagradas da vida cívica. Mas essa traição social, pouco a
pouco passa a ser uma traição política. A principal razão de queixa de Celso – em torno
da qual ele orienta todas as outras – é a secessão ou deserção. Censurando sobretudo
aos cristãos o facto de se furtarem aos deveres da vida política – militares ou civis –
numa página assaz brilhante (“Contra Celso”, VIII, 55), coloca-os diante de uma
alternativa: se vós recusais as honras àqueles que são a garantia da vida social coletiva
(imperador e seus representantes), abstende-vos de participar em qualquer ato dessa
vida social e retirai-vos francamente da sociedade. Se desejais participar nas atividades
que ela comporta, é indispensável pagar o vosso tributo de honra àqueles que velam
por ela. E as suas instruções são mais concretas: “Vós deveis ajudar o imperador com
todas as vossas forças, trabalhar por ele em prol do que é justo, combater por ele…
Sois também obrigados a aceitar as magistraturas no vosso país, se a salvaguarda das
leis e a piedade o exigem” (VIII, 75). Na sua opinião, os cristãos devem sentir-se
solidários com uma civilização de que aceitam as vantagens e a proteção. E conclui: “
Se todos nos comportássemos como vós… o universo cairia nas mãos dos bárbaros
mais dissolutos e ferozes. E assim desapareceria de entre os homens o vosso culto e a
verdadeira sabedoria” (VIII, 68).
O modus vivendi que poderia ser estabelecido pelo evangélico conselho “dai a
César o que é de César” está aqui evidentemente ultrapassado. Os pagãos não podiam
admitir as reservas que implicavam a teoria dos dois reinos. Neste mundo não é
possível servir a dois senhores (VIII,2). A seita que Plínio tolerava, porque nela via
apenas “uma superstição absurda e extravagante acompanhada de uma perfeita
inocência de costumes” deixou de ser inocente a partir do momento em que
aumentou de úmero e atingiu as classes elevadas. Por outro lado, a obediência por
desprendimento, completamente passiva, que Cristo concedia e que devia ser posta
em causa pelo mais ínfimo escrúpulo, não satisfazia de forma alguma o império, que
exigia agora uma obediência repleta de convicção e iniciativa, o sentimento de uma
solidariedade política que o cristão, completamente absorvido pela solidariedade
espiritual da Igreja, lhe recusava. É a recusa do sacrifício e do culto imperial que
materializava esta abstenção, porque os cristãos só concedem as honras divinas a
Deus.
Mas o conflito tem outro alcance. O império havia recuperado o ideal espiritual
da cidade antiga; o ideal de um mundo fechado sobre si próprio. O cristão tornava-se
pois, o representante e o soldado de um poder desconhecido, não domiciliado e
inquietante. A recusa do juramento era mais do que uma recusa de lealdade;
constituía aos olhos de um pagão o sintoma de uma lealdade de origem estrangeira,
uma secessão no próprio coração do Império, segundo dizem os polemistas,
reencontrando, em virtude de um movimento significativo, a linguagem da política. E
como interpretariam eles de outra forma a afirmação de Orígenes no século seguinte,
ao reconhecer que para um cristão, no seio de cada cidade, existe uma outra
comunidade de pátria. Tais sentimentos explicam talvez a maneira de como um
magistrado instrutor poderia, ao interrogar um cristão, interrogar-se acerca da
localização geográfica desta Jerusalém celeste, da qual lhe parceria ser agente
(Eusébio, Mart. Pal., XI, 12).
Poucas coisas restavam em comum, uma vez que, submissos na aparência, os
cristãos só reconheciam no fundo do seu coração como verdadeiramente válidas as
leis não escritas da sua moral. Já em São Paulo diversos textos deixam transparecer a
existência de uma lei natural diferente das leis positivas (Romanos, II, 11-15); pouco a
pouco, a teoria integrou-se nos factos e os cristãos, submetendo-se de preferência,
mesmo por necessidades da vida prática, aos costumes e à arbitragem das suas
comunidades, acabaram por formar um Estado dentro de um Estado. Deste modo, imã
sem dúvida ao encontro dos estóicos na análise e na descoberta de uma lei natural,
mas alargando o fosso visto que os estóicos faziam dela o sustentáculo da lei positiva
ou um conjunto de leis existentes, e os cristãos consideravam-na uma lei de essência
diversa. Não é de admirar que, nestas condições, alguns, como Élio Aristides, tenham
até certo ponto confundido os cristãos e os cínicos e os hajam combatido, a uns e
outros, não apenas como traidores, mas ainda como destruidores da civilização
romana. Não são apenas aliados, conscientes ou não, dos bárbaros do exterior; são os
bárbaros do interior.
9- Tertuliano.
Esta acusação é mais ou menos justificada, visto que no seio do cristianismo se
digladiavam diversas correntes espirituais; mas não há dúvida de que Tertuliano
representa muitíssimo bem (a posteriori) a tendência daqueles contra quem eram
dirigidas as acusações de Celso. Este fogoso apologista seguia com fervor os
ensinamentos de São Paulo; porém, o seu rigorismo, aquela paixão lógica que o levava
a reduzir tudo a regras, talvez também as lutas e as cisões que dividiam a Igreja em
África, iriam conduzi-lo à heresia montanista. As suas ideias políticas caracterizavam-
se por um zelo excessivo, sendo discutível se ele representava na verdade o ponto de
vista autêntico de um cristianismo que não transige. Observa-se, em todo o caso, que a
sua doutrina só se compreende dentro de uma perspetiva apocalítica: para ele fim do
mundo está iminente, e por isso mais medíocre ainda se lhe afigura o valor das coisas
terrestres. Em segundo lugar, possui um espírito jurídico, mas de forma nenhuma um
espírito político. O seu ponto de vista é sempre exclusivamente religioso e o termo
“Capitólio” não evoca para ele o centro da vida cívica, mas unicamente a ideia do
“templo dos Demónios” (De Spect. 12). No entanto, foi obrigado a abordar, na sua
Apologética e no seu tratado de Idolatria, os problemas que a um cristão, põem o
Império e os deveres cívicos.
Nas fórmulas que preconiza segue a doutrina paulista: “Respeita-mos nos
imperadores os juízos de Deus, que os escolheu para governar os povos; sabemos que
provém da vontade de Deus o poder de que estão investidos” (Apol., XXXII). Prega,
portanto, a obediência, sobretudo no que respeita os impostos. Acentua mesmos que
os cristãos são cidadãos escolhidos, uma vez que a sua moral mais exige, garante a
correção da sua conduta (Ibid., XLIII), e não hesita num impulso hiperbólico, que se
tornará frequente, em acentuar o que o império deve ao cristianismo e pode esperar
dos cristãos “O imperador é mais nosso do que ninguém, visto ter sido o nosso Deus
que o escolheu” (Ibid., XXXIII), e as orações dos cristãos sustentarão o Império. Mas
nessa lealdade formal, vislumbra-se o processo; Tertuliano quer mostrar, no Império,
uma força puramente terrena, entregue apenas nas mãos de Deus, quer despojá-lo de
toda a sua grandeza intrínseca.
Na aparência, contudo, satisfaz-se em fixar como limite, à obediência dos
cristãos, os ritos do culto imperial. Fá-lo com rudeza, mas dignamente: “O Que
constitui a verdadeira grandeza do imperador é o facto de ele ter necessidade de que
lhe recordem que não é um Deus.” (Ibid., XXXIII), e recusa-se a jurar pelo génio do
imperador que não passaria de um demónio. Mas se neste ponto ele se limita a trazer
ao ensino de São Paulo os complementos que exigiam as crescentes opressões do
culto imperial, ele confere a este ensino, explicitamente ou não, um desenvolvimento
que lhe modifica o alcance. Para ele, o poder imperial da mesma forma que os
Impérios de todos os tempos, provém de Deus, mas sem participar das virtudes da
divindade; não é mais do que uma coisa criada por Deus para servir os seus desígnios e
a sua origem divina não lhe aumenta a moralidade nem a dignidade. Antes pelo
contrário, César é preciso ao mundo, mas nunca poderia ser cristão (Apol., XXI). Ao
proclamar a incompatibilidade da essência de César e da essência de cristão,
Tertuliano manifesta uma oposição que São Paulo não indicara. Nos ensinamentos dos
Evangelhos, o reino de César e o reino de Deus são de ordens radicalmente diferentes;
para Tertuliano são exclusivos um do outro. De resto, a posição que assume esclarece-
se se tivermos em vista a sua doutrina escatológica. Para ele, apenas a duração do
império separa o homem do fim dos tempos; o fim do mundo e o inicio do Império
coincidirão. Pouco importa que seja ou não para desejar o prolongamento desta
trégua. Não passa de uma simples trégua. O Império nada é, portanto, de positivo por
si só; não passa da forma pela qual se instalou, o mundo para viver os últimos anos, o
artificio mercê do qual Deus prolonga a vida de um moribundo.
Em conclusão, o universo de Tertuliano está povoado de potências
intermediárias, os demónios, criados por Deus como todas as suas coisas, mas maus
em si (Apol., XXII). Todo o paganismo adora esses demónios e é movido por eles. O
culto imperial deve-se aos seus artifícios, assim como, para além do culto, todo o
sistema de crença que implica; pactuar com ele é pactuar com os demónios. Sob esse
aspeto, o poder imperial já não é uma realidade indiferente, mas sim um conjunto
doutrinalmente demoníaco. E sem que Tertuliano desenvolva o seu ponto de vista de
modo a construir um sistema, podemos reconstituir-lhe o conjunto. O Império faz
parte da Terra, de tudo aquilo que é preciso vencer-se para ser cristão, de tudo aquilo
que nos devemos despojar: deixou de ser tudo aquilo que devemos respeitar com
indiferença, para se transformar naquilo que é necessário vigiar com inquietação. Na
luta surda em que se debatem o campo da luz e o campo das trevas (“Castra lucis e
castra tenebrarum”) existem muitas probabilidades de que o Império, figura e forma
do paganismo, se encontre no campo das trevas. É por isso que ele dificilmente poderá
continuar a manter as concessões que primeiro fizera ao Império: “Ninguém pode
servir a dois senhores ao mesmo tempo”; “Que há de comum entre a luz e as trevas ?”
(De Spect., 62). Se ele admite o pagamento dos impostos, por outro lado proíbe
praticamente o serviço militar aos cristãos e faz depender o exercício de outros cargos
de tais condições que equivalem a uma proibição. Já se notou que a palavra
“obediência” nunca figurava nas passagens relativas ao soberano. E finalmente, ele
não possui sentimentos patrióticos: “A nossa república é o mundo” (Apol., XXXVIII), e
recusar-se-á a considerar os bárbaros como inimigos. O auxílio que ele propõe ao
Império – mobilizar os soldados de Cristo contra os demónios – será para as
autoridades uma espécie de deserção disfarçada. É por isso que incorre plenamente
nas acusações de secessão que lhe fazia Celso e ele próprio as admite: “Secessi de
populo” (De Pallio, 5). A sua posição só podia ter uma saída se o mundo prolongasse a
existência: o anacoretismo, e foi de facto esta a solução que, desprezando a vida
política, vieram a escolher, cento e cinquenta anos mais tarde, os discípulos do nosso
apologista.
10- Orígenes.
Orígenes é à primeira vista o menos político dos doutores. Os Comentários de
São Mateus ou a Epístola aos Romanos são extremamente breves no que se refere aos
textos fundamentais da política cristã. Até o “Contra Celso” (cerca de 250), é
paradoxalmente, muito pobre de conteúdo político. No entanto mesmo dentro do
quadro da sua escatologia e da sua soteriologia (estudo da doutrina de redenção), não
podia ficar insensível aos problemas que inquietavam as consciências cristãs. O espírito
dentro do qual Orígenes aborda estas questões é muito diverso de Tertuliano. Por um
lado, tenta integrar no património cristão um aparte da herança pagã, e
particularmente a filosofia grega, na qual vê, não como Tertuliano, a fonte de toda a
heresia, mas sim uma preparação para o ensino de Cristo. Isto é, a história da
Humanidade e a história da salvação, longe de voltarem as costas uma à outra,
caminham a par, pelo menos até certo ponto; portanto, nem tudo é mau no mundo
nem no Império, que constitui o palco e a imagem desta civilização. Por outro lado,
Orígenes opõem-se violentamente ao milenarismo que Tertuliano defendia, e até
mesmo o seu sistema, fortemente imbuído de racionalismo, é em absoluto contrário a
toda e qualquer preocupação apocalítica encarada como tal. Os mesmos dados serão,
pois, estudados por ele a uma nova luz: afirma a indubitável superioridade do mundo
invisível, recusa deixar-se apaixona pelas fórmulas políticas particulares em torno das
quais Celso pretende congregar as boas-vontades e invoca se angústia em triunfo dos
Bárbaros, pois que estes virão a ser, por sua vez, cristãos num mundo unificado
(“Contra Celso”, VIII, 68). Mas ele tem em conta a sociedade civil: o homem é um ser
duplo – nele a alma (é o que o determina como homem no mundo terrestre) e o
espírito (é o que o liga a Deus. Desta forma, o apóstolo Paulo tem razão quando, na
Epístola aos Romanos, recomenda a todas as almas que sejam submissas aos poderes.
É Assim, São Paulo e São João, que já nada tinham de terreno, portanto nada deviam a
César, mas todo o cristão que possui interesses no mundo deve submeter-se aos
poderes superiores (Ibid., col. 1226 C.). Se não era de natureza de satisfazer Celso, esta
doutrina tinha pelo menos uma vantagem de, limitando a parte de César, a consolidar,
excluindo do seu domínio todos os conflitos.
Orígenes multiplica assim as distinções; há em toda a parte duas cidades: a de
Deus e a do mundo, em cada comunidade a ecclesia política e a Igreja cristã (“Contra
Celso”, III, 30); cada cristão tem duas pátrias: “Em cada cidade existe um outro género
de pátria fundada pelo Verbo de Deus” (Ibid., V, 37). Mas embora afirmando a
predominância indiscutível da parte espiritual, Orígenes procura sobretudo mostrar
que essas duas ordens não têm nenhum motivo, com exclusão do problema do
juramento pelo Império, para entrar em conflito. Ele esforça-se por provar a
legitimidade do poder civil; o poder civil foi dado por Deus, tal como os sentidos
humanos, para que dele se faça bom uso, “ad vindictam malorum, laudem bonorum”;
um exercício condenável desses poderes é punível, mas não volta a pôr em causa a
origem desses poderes (P.G., XIV, col. 1227 A.). Não podemos negar que as potências
sejam auxiliares de Deus (“minister Dei”). A lei divina não tem de se ocupar de certo
número de crimes cujo o carácter condenável é indiscutível, mas ela exige mais do que
essa virtude civil prevista pela lei positiva (Ibid., col. 1229). Há, portanto, duas
categorias de moralidade: o poder civil conserva e garante a primeira, elementar; a lei
de Deus impõe e faz respeitar a segunda. Assim, Orígenes, esboçando sem insistência a
teoria das duas cidades e respeitando a respetiva hierarquia, destaca mais o seu
carácter complementar do que a eventual oposição que as separa. Chega até a
acentuar que nos insurgimos contra o poder civil, sem um motivo. Porque o que é
realmente imposto pela lei natural, é obedecer ao orgulho, e não à lei e, assim, o
castigo recebido será a punição justa a esse orgulho, e não um glorioso martírio.
Orígenes está convencido de que o Império facilitou a difusão do Evangelho,
que a cidade do mundo desbravou os caminhos para a cidade de Deus (“Contra Celso”,
II, 30) e se as ambições do proselitismo católico ultrapassam os contornos dos “limes”
(VIII,68), uma parte do caminho pode ser percorrido em conjunto. É por isso que ele
invoca diretamente para o Império as bênção divinas. Pensa que, assim como, Abraão
intercedeu por Sodona, os justos da Igreja podem proteger Roma. Isto explica-se pelo
facto de que o Império, para um heleno, mesmo cristianizado, é a chave do universo.
Não se trata já, como em Tertuliano, de orar pelo Império, a fim de fazer recuar o mais
possível o fim do mundo; o Império não é apenas uma trégua cega, preferível somente
aos cataclismos de Dies Irae, é o meio, tanto no tempo como no espaço, de
desimpedir, mediante a difusão do Evangelho, o acesso à cidade eterna de um número
Ada vez maior de criaturas. Desta forma, a cidade terrena pode ir entroncar na cidade
de Deus; o Império povoado e vivificado pelos cristãos, pode ser uma introdução no
reino de Cristo.
Por conseguinte, diversas tendências coexistem no seio da comunidade cristã:
aquele que, interpretando de uma maneira restritiva as fórmulas evangélicas, nada
querem dar a César, e aqueles que aceitam, estabelecendo uma diferença radical entre
as duas ordens, organizar a sua coexistência conservando os olhos postos em objetivos
mais altos e mais baixos. As teorias de Orígenes são o sintoma da vitalidade de uma
Igreja oriental consciente da sua força, que consente em dar a César o que lhe é devido
porque ela quer e, por sua vez, dar a Deus ao mundo. Ela e suficientemente forte para
desejar conquistar, deveras poderosa para merecer ser objeto de conquista.
Constantino, convertido e conquistador, colocando o cristianismo à frente das forças
do Império, ia lançá-los na política e povoar a Igreja de todos os demónios do poder
temporal.
9- Eusébio.
Eusébio, bispo de Cesareia (260-337), primeiro historiador da Igreja, já foi um
erudito, objetivo a um sábio administrador. Revelou-se também, não só partidário da
estabilidade, como um teólogo sem excessivas exigências. Portanto, não se deve
estranhar que em Niceia se tenha mostrado permeável às doutrinas de Constantino.
Graças aos seus escritos, conselhos e discursos, contribuiu para que se elaborasse uma
teologia imperial, a primeira da história do cristianismo, o essencial da qual se
encontra no “Elogio de Constantino” (335), na “Vida de Constantino” (337) e também,
disperso, na “Teofania Evangélica” (333?). Para se avaliar a sua originalidade é
indispensável ter em conta, por um lado, o que eram as máximas políticas cristãs antes
do édito de tolerância e, por outro lado, o neoplatonismo, que constituía desde então
a filosofia dominante.
Eusébio, com os seus escritos, traz a Constantino um apoio sem reservas. A
fórmula “Nulla potestas nisi a Deo” reveste-se, pelo que respeita o Império, de um
sentido muito positivo. Para reabilitar o Império de qualquer desonra passada, Eusébio
explica que Deus suscitou voluntariamente as perseguições para pôr os cristãos à
prova, e destaca o lamentável fim dos soberanos por elas responsáveis. Fica, portanto,
assim, do mesmo passo, salva a instituição e preservado o prestígio dos bons monarcas
do passado e do futuro. E desta forma se encontra estabelecida, dentro de uma
perspetiva coerente, a ideia já antiga da coincidência providencial do Império e da
predicação evangélica, ideia que constituirá a base de toda a arquitetura desta
teologia política. Assim como o império está historicamente ligado à Providência,
também a monarquia, por assim dizer, se encontra cosmologicamente ligada a Deus.
Retomando um grande número de ideias estóicas, e a maior parte das vezes
neopitagóricas ou neoplatónicas, Eusébeio indica a forma como o poder político
emana de Deus. Deus, o Deus do universo, reina no mundo por intermédio do seu
Verbo, que é, simultaneamente, a racionalidade de criação e o agente de Deus, o seu
intendente, o seu procurador junto da história humana. Aquilo que o Verbo é para
Deus pode simplificadamente dizer-se que é o mesmo que o imperador deve ser o
Verbo. Com efeito, o Verbo, lei viva, exerce o seu Império sobre os homens por
intermédio de um rei que é o seu lugar-tenente. Vê-se bem a propósito disto em que
medida o arianismo (doutrina herética de Arius) permita que se estabelecesse esta
escala hierárquica e as condições em que se encontrava para captar as simpatias da
corte imperial. O príncipe está ligado ao Verbo, de que é reflexo terreno, porque o
Logos o “fortalece por meio dos seus eflúvios, o ilumina com as suas revelações,
partilha com ele as suas virtudes”. A doutrina neoplatónica da emanação vem dar
apoio à doutrina cristã da Providência para construir a teologia imperial.
Desta forma, o Império nada perdia ao exceptuar os cristãos do culto imperial,
uma vez que em troca a divindade do poder imperial se via justificada não pela
divinização do imperador, mas pela revelação necessária que passava a estabelecer-se
entre a divindade e a função monárquica. Praticamente , as vantagens combinadas do
estoicismo e do neoplatonismo vão reunir-se numa nova teoria do Poder. A corte
terrena do imperador é o reflexo da corte celeste, da mesma forma que o Império é o
reflexo do universo. As duas cidades situam-se de certa forma paralelamente , mas em
níveis diferentes, conforme a vontade de Deus, e unidos pelo mesmo laço que liga ao
Verbo e a Deus a pessoa do imperador, como o afirmava, com mais ou menos reserva,
a tradição neopitagórica. A autoridade do soberano vê-se assim fortalecida e a
etiqueta da corte reforçada, graças à nova doutrina.
A oposição que separa as duas comunidades ficará atenuada no plano teórico,
uma vez que o imperador, ainda que se mantenha o Poder, passa a ser reconhecido
como instrumento de um magistério moral exercido fora da Igreja; ele é “o bispo de
fora”.
A legislação de Constantino, muito influenciada pelas ideias cristãs, é a melhor
demonstração desta teoria. As ideias acentuadamente espirituais formuladas por
Orígenes concretizavam-se. A Igreja para ele, é o sal da humanidade renovada por
Cristo; para Eusébio, a Igreja encontra no poder imperial o instrumento de uma
pedagogia exercida em seu proveito.
12- Santo Agostinho.
A Igreja ocidental oferece-nos outras perspetivas, muito mais subtis. Mais
diretamente ameaçado pelos Bárbaros, menos apoiado pelo poder do império, o
mundo ocidental está em crise, e particularmente a uma comunidade cristã. Com
efeito, os pagãos movem-se contra ela, numa polémica muitas vezes eficaz, armando-
se em defensores incondicionais de uma causa nacional que os cristãos, segundo
diziam, não perfilham sem reservas.
Santo Ambrósio (330/340-397), alto funcionário que tardiamente ascendeu ao
sacerdócio, provou-lhes, no entanto, pelos seus atos, que um prelado pode aceitar
corajosamente, responsabilidades políticas esmagadoras. Mas a sua posição conserva-
se, acima de tudo, a um cristão, extremamente representativa do pensamento político
da Igreja ocidental. “O imperador encontra-se na Igreja, mas nunca acima da Igreja”,
Santo Ambrósio sente-se ligado ao Império por este ser cristão, mas exige do
imperador uma conduta digna de um cristão. Está disposto a dedicar-se inteiramente à
causa imperial ameaçada pelas usurpações, mas ao mesmo tempo opõe-se
violentamente, de uma maneira mais firme que os bispos orientais, aos abusos arianos
sustentados pela corte, e mesmo, para além destas questões puramente dogmáticas,
arvora-se em defensor da moral cristã. Quando, em 390, Teodósio ordena o famoso
massacre de Tessalónica, Santo Ambrósio excomunga-o até ele se arrepender
completamente. Por outras palavras, a Igreja lança, pela primeira vez na história de
uma condenação contra um imperador, em virtude de atos privados ou sociais que não
dizem respeito à fé. Isto marca uma data muito importante na evolução da consciência
política.
O estado de espírito manifestado na obra de Santo Agostinho explica, sem
dúvidas, a forma como a Igreja ocidental, no tempo de Teodósio, decidiu entregar o
direito de julgar as decisões de poder civil.
Santo Agostinho (354-430) não é de forma nenhuma um político. Nascido em
Tagaste, professor de Retórica, adere ao cristianismo após uma juventude inquieta e
teve o seu epílogo na célebre conversão do jardim de Milão. Bispo de Hipona a partir
de 396, consagra-se à defesa da religião, sobretudo contra os donatistas e os plágios. A
sua doutrina, onde muitas vezes se notam influências maniquéistas ou platónicas da
juventude, quase nunca é política. Em 410, Roma é saqueada pelo visigodo Alarico. Os
pagãos aproveitaram o ensejo para atribuir a responsabilidade deste desastre aos
cristãos, cujo Deus não soubera proteger o Capitólio, ao mesmo tempo que eles, com a
sua impiedade, irritaram as verdadeiras divindades. Santo Agostinho ficou muito
abalado com esta catástrofe e com aquelas acusações; assim empreendeu a tarefa de
refutar essa tese, pondo sobretudo em destaque as fraquezas de Romã pagã, no
intuito de demonstrar que a Roma cristã em nada lhe era inferior. Porém, a sua obra
“A Cidade de Deus” (413-427) ultrapassa rapidamente os limites de um escrito
polémico, para se tornar numa reflexão acerca da história e da cidade. Esta obra,
ardente e grandiosa, não expõe propriamente uma doutrina; toda ela é recheada de
sentimentos contraditórios. Representa, acima de tudo a meditação apaixonada de um
adepto do cristianismo, romano pela cultura, que perante o desmoronamento de um
Império agonizante, se sente dilacerado entre a desorientação, o desejo de enfrentar
as contingências imediatas e a certeza profunda de que tal derrocada irá originar algo
eterno. Esta meditação acerca da história universal encontrou um duradouro eco, mas
deformante, em toda a Idade Média. Serviu para alicerçar uma doutrina política que,
sob a hégide do bispo de Hipona, programatizará a absorção do direito do Estado pela
Igreja. Mas assim como o neoplanismo não representa o pensamento real de Platão ,
também o agostinianismo político não deve ser confundido com a doutrina de Santo
Agostinho, muito mais rica e subtil.