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História das Ideias Políticas e Sociais

Parte II- O Cristianismo e o paradigma da religião

1- O Cristianismo não é uma doutrina política

Ao falar-se da doutrina cristã não é possível dissociá-la do pensamento judaico,


por causa do fundador Jesus Cristo.
O pensamento político judaico reflete um nacionalismo de sentido teológico,
pois o povo judeu considera-se o povo de Deus. Os seus chefes ou reis eram escolhidos
e ungidos por Deus.
O sentimento de nacionalismo e o messianismo – o que miraculosamente virá
a acontecer – são traços característicos do pensamento cristão herdado do judaísmo.
O cristianismo não sendo uma doutrina política (Cristo disse: “O meu reino não
é deste mundo”) é, contudo, uma doutrina visto que encerra valores e virtudes como a
concórdia, o amor e a caridade, a justiça, a paz, a bem-aventurança e a vida eterna
anunciados por Jesus Cristo.
A doutrina do cristianismo continha um poder dissolvente de certas hierarquias
e de certos valores sociais. Por isso, Cristo foi acusado no seu tempo de revolucionário,
por uns e de anarquista, por outros. A sua doutrina era espiritual e não terrena ou
temporal. Assim, o poder, a riqueza, a sabedoria, o prestígio social são valores
temporais e efémeros.
O cristianismo surge como uma doutrina muito próxima da estóica, na medida
em que ambas dão a mesma importância à moral nas relações sociais e a mesma
valorização do indivíduo na comunidade humana.
Na resposta que Jesus deu aos fariseus quando lhe perguntaram se era lícito
não pagar impostos, claramente distingue as regras dos valores que regem a vida
terrena do homem na sociedade política, das regras morais e valores espirituais que
regem a vida e a alma humana na sua ligação a Deus. Quando responde “ Dai a César o
que é de César e a Deus o que é de Deus”, não só está a afirmar a existência, como a
distinção, de duas ordens – a natural (abarca o social e o político) e a sobrenatural (diz
respeito ao espiritual e ao divino) mas também está a afirmar, no plano temporal, a
legitimidade da autoridade política e a obrigatoriedade da obediência civil.
A doutrina do Cristianismo destinando-se, no plano espiritual a toda a
humanidade, parece dirigir-se de forma especial aos deserdados, aos pobres e infelizes
deste mundo com a promessa da bem-aventurança eterna. Portanto a doutrina cristã
contêm um pensamento político. Cristo não foi um político, não foi um libertador dos
Judeus do domínio romano, mas libertador da escravidão e subjugação do mal moral.

2- A influência dos valores cristãos nas sociedades.

Ao longo de toda a Idade Média, não faltou quem pretendesse levar à prática
social os ensinamentos cristãos e a aplicação dos valores do cristianismo à política.
São Paulo, teólogo dos Evangelhos, leva aos Cristãos nas Epístolas os
ensinamentos da mensagem de Cristo para porem em prática na sua vida em
sociedade sem necessidade de alteração das formas sociais e políticas da organização
em que convivem. Ensinamentos como obediência à autoridade política, o exercício
dos direitos e cumprimentos dos deveres de harmonia com a ordem instituída no
respeito pela justiça, equidade e caridade; também, no respeito pela propriedade. Não
há, portanto, uma organização social especificamente cristã, mas uma maneira cristã
de cumprir os deveres sociais na organização política constituída.
É, no entanto, numa Epístola de São Paulo (Epístola XIII aos Romanos) que, é
formulado, na doutrina cristã um princípio sobre a origem divina do poder que vai
prevalecer na teoria política Escolástica durante toda a Idade Média – princípio Paulino
(a sua formulação é a seguinte: “ Nulla potestas nisi a Deo”). Este princípio sustenta
que não existe nenhum poder senão o proveniente de Deus. Quer dizer, todo o poder
– temporal ou espiritual – tem origem divina porque é criação de Deus enquanto
criador da Natureza.
Nesse texto da política cristã diz-se “que toda a pessoa se submeta às
autoridades superiores, porque não existe poder que não venha de Deus e as
autoridades que existem foram instituídas por Deus…”.
A formulação daquele princípio fundamenta e justifica a obediência absoluta
aos deveres, a obediência à autoridade instituída. Por outro lado, encara-se com
emanação de Deus enquanto criador da ordem universal onde cabem tanto a ordem
natural (direito natural; família; sociedade), como a ordem sobrenatural (lei eterna;
espírito; Igreja; poder espiritual).
A conceção Paulina de que o poder é de origem divina e sendo o poder o centro
da política leva a pensar que Deus faz parte da ordem política do mundo.
Com efeito a presença de Deus vais ser uma constante no pensamento político
medieval, não só através da participação dos cristãos nos atos políticos mas, também,
na formação da teoria teológica-política das relações entre a Igreja e os Reinos (“o
meu reino não este mundo”). Em suma, formar a “cidade ideal” onde não há judeu
nem grego; onde não existe escravo ou homem livre; pois todos são livres e iguais e
irmãos em Cristo. É um pensamento que São Paulo proclama, indo mais longe que os
estóicos, pois esta cidade não tem fronteiras geográficas, nem barreiras sociais e
religiosas. Um exemplo será a “Respublica Christiana” que tem como chefe supremo o
Papa. Nasce, então, as condições para a formação da ideia de unidade e solidariedade
entre os homens.
São Paulo é o precursor da existência de duas cidades: a celeste (natureza
espiritual) e a terrena (natureza temporal), que São Agostinho desenvolve em termos
teológicos na sua obra “Civitas Dei”.
De começo gerou-se a ideia maniqueísta em relação às duas cidades: a cidade
celeste, formada pelos cristãos e a cidade terrena formada pelos pagãos (os não
convertidos ao cristianismo), contra a qual se insurgiu o filósofo Celso, que defendia a
participação política e obediência ao imperador. Celso censurava os cristãos por se
absterem ao cumprimento dos deveres civis e militares exigidos pela elaboração de
todos na sociedade política (“ se todos nos comportássemos como vós… desapareceria
de entre os homens o vosso culto e a verdadeira sabedoria”). Assim, defendia a
participação ativa dos cristãos indispensável ao pagamento de impostos devidos ao
imperador que velava pela sua segurança.
Em face a isto, os pagãos não podiam admitir a teoria de dois reinos por causa
das consequências sociais e políticas a que conduzia.
Em contrapartida, os cristãos em vez de praticarem uma solidariedade política,
estavam absorvidos pela solidariedade espiritual que os levava a recusar o sacrifício e
o culto ao Imperador e só a Deus conceder obediência e honras divinas. Apenas,
reconheciam como válidas as leis não escritas da moral. Era a existência de uma lei
natural diferente das leis positivas, conforme a afirmação de São Paulo (Epístola aos
Romanos, II). Concepção próxima, mas ao mesmo tempo distinta, do estóicos, pois
para estes a lei natural era fundamento e fonte de legitimidade da lei positiva.
Esta posição dos cristãos na concepção política do direito fez com que fossem
acusados e aliados dos bárbaros do exterior e considerados os bárbaros do interior do
Império romano e, consequentemente, responsáveis pela crise que se abatia sobre o
império assim como pela dissolução da civilização romana.
As acusações de Celso dirigiam-se, especialmente, contra o grupo dos cristãos
que seguiam Tertuliano (155-220), apologista do cristianismo segundo os
ensinamentos de São Paulo. Seguindo o princípio paulino sobre a origem do poder,
defendia que os imperadores romanos deviam ser respeitados porque os governantes
do povo são escolhidos por Deus, na medida em que o poder que estes exercem é
emanação divina. Porém, o imperador não é nenhum Deus, pois o império é realidade
terrena. Para Tertuliano o reino de César e o de Deus são de natureza radicalmente
distinta.
Orígenes (185-254) procura integra no pensamento cristão uma parte da
herança pagã, particularmente a filosofia grega, como melhor forma de preparar o
ensino do cristianismo. Para ele nem tudo é mau no mundo do império romano.
Invoca o triunfo dos bárbaros, que por sua vez, virão a ser cristãos no mundo
unificado. Partindo da sociedade civil considera o homem na sua dupla dimensão de
ser humano: a da alma que o determina como homem no mundo terrestre; e a do
espírito que o liga a Deus como ser religioso. Pela dimensão da alma os homens devem
estar dirigidos só a Deus. Esta dupla dimensão leva Orígenes a considerar múltiplas
distinções: as duas cidades – a de Deus e do mundo; as duas sociedades – a política e a
Igreja Cristã; a das duas leis – a civil, que é a dos homens, e a natural, que é a de Deus.
Nesta dualidade formam-se duas ordens distintas mas não antagónicas. E, assim,
afirma a legitimidade do poder civil pelo facto de ser uma emanação de Deus.
Em relação às duas cidades, Orígenes vê nelas além da hierarquia uma
complementaridade. Por isso, não admite insurreição contra o poder civil se no
exército deste não houver violação da lei natural. Neste sentido, acha que a “cidade do
mundo” desbravou o caminho para a “cidade de Deus”. É, por isso, que ele invoca
tanto para o Império romano a proteção divina. Deste modo, a cidade terrena pode
caminhar ao encontro da cidade de Deus, isto é, fazer este caminho à medida que se
torne mais justa e traga Deus ao Mundo.

3- Os Evangelhos.
A doutrina de Cristo surge como revolucionária, relativamente a uma cidade
judia em atitude expectante. Com efeito, quando ele pregava que o tempo chegara,
que era filho de Deus e que a lei fora abolida, quando denunciava o formalismo e a
opressão dos Fariseus, essa revolução teológica e espiritual trazia nas entranhas uma
revolução social, isto num meio onde a religião era tudo, não se apresentava como tal.
Pelo contrário, Cristo anunciava o reino de Deus, isto é, precisamente, o fim da
política, na medida em que esta é uma tentativa racionada para organizar a cidade
humana (“ Fazei penitência, porque o reino de Deus está próximo.” ; “ Em verdade vos
digo que alguns entre os presentes não morreram antes de ter visto o reino de Deus.”).
Os seus ensinamentos resumiram-se numa fórmula que, através de muitas
interpretações, dominará o pensamento cristão: “O meu reino não é deste mundo”. É,
portanto, normal que o ensino de Jesus não contenha nenhuma doutrina política, uma
vez que, de certo modo, a Boa Nova implica uma anulação do pensamento político.
Cristo tenta despertar em cada um dos seus auditores o sentido da vida espiritual,
chamar-lhe a atenção para um universo novo que cada um trás dentro de si e que é
precisamente a imagem do reino de Deus. Para atingir esse fim, procura destruir todos
os prestígios que as paixões terrenas, as ambições sociais ou o orgulho que os Fariseus
acumulam no caminho.
É inegável que esta doutrina continha um poder dissolvente perante certas
hierarquias e certos valores sociais, podendo surgir como a de um revoltado ou
mesmo de um anarquista. Chamando a atenção para a inutilidade desses valores e, em
contrapartida, para a importância do esforço interior substituindo esses prestígios,
geralmente aceites por critérios puramente espirituais. Cristo ensinava os seus
discípulos que nem o poder, nem a fortuna, nem a respeitabilidade social, são valores
seguros. Sem trair o espírito do Cristianismo, antevia-se o que o tornava semelhante
ao estoicismo: em ambos os casos concede-se a mesma importância ao valor moral e,
em face da sociedade dos seus preconceitos e formalismos, a mesma valorização do
indivíduo (despojado de vestes sociais e adornado com a simplicidade do coração). Os
Fariseus não podiam deixar de se aperceber do alcance destrutivo desta pregação e
tentaram, segundo os Evangelhos, arrancar a Jesus diretrizes comprometedoras.
“Mandaram junto dele os seus discípulos com o Herodianos, dizendo: « Mestre,
nós sabemos que és verdadeiro e que ensinas com verdade o caminho de Deus, sem te
preocupares com o que quer que seja, porque não atentas na aparência dos Homens.
Diz-nos, pois, o que te parece: é lícito, ou não, pagar o tributo a César?». Jesus,
conhecendo a sua malícia respondeu: « Hipócritas, porque me tentais? Mostrai-me a
moeda com que se paga o tributo.». Eles apresentaram-Lhe um dinheiro. Jesus
perguntou-lhes: « De quem é esta imagem e esta inscrição?». «De César»,
responderam eles. Então, Ele disse-lhes: «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus»” (Mat, XXII, 16-22). Este texto decisivo marca bem o limite da crítica
cristã. A vida social e política faz parte da vida terrena; todas as suas regras e valores
são terrenos. Devido a isso, é que não se pode comparar com a vida da alma, que só a
Deus diz respeito: mas a conclusão que Jesus dela extraí, segundo os Evangelhos, e
contrária à conclusão dos cínicos. Longe de afirmar: não nos devemos subter às
necessidades políticas, porque delas não têm valor, ele conclui: devemos submeter-
nos porque elas não têm valor. Devemos pagar o imposto, símbolo da obediência civil,
precisamente, porque nada tem a ver com Deus.
Portanto, a pregação de Jesus dirige-se, particularmente, aos deserdados, para
lhes demonstrar que a verdadeira felicidade é de uma espécie diferente da que
oferecem os prazeres da Terra e que se torna necessário suportar as infelicidades
terrenas, físicas ou sociais. Pode hesitar quanto à interpretação comparativa entre o
texto de São Mates: “ Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino
dos céus. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados.”
e o texto de São Lucas “ Bem-aventurados sois vós, ó pobres, porque o reino dos céus
vos pertence. Bem-aventurados vos, que hoje estais famintos, porque amanhã sereis
saciados”. Entre estes dois textos existe mais do que uma subtil diferença, visto que
um nos apresenta um apóstolo dos justos e um outro profeta dos pobres; porém o
espírito permanece idêntico. Todas as infelicidades deste mundo que pertencem ao
corpo e que como tal devem ser tomadas; a Terra impõe uma série de provas que o
homem deve suportar o melhor possível com o auxílio da sua vida espiritual.
Nos Evangelhos não existe pensamento político, precisamente porque as coisas
da comunidade terrena são sentidas como radicalmente diferentes das coisas da
comunidade celeste e repudiadas em bloco, não por serem mais, mas por constituírem
um dado da condição humana, na qual não interessa operar distinções.

4- São Paulo.
Depois de uma pura atitude expectativa que aguardava para breve a realização
das profecias, sucederam-se atos que comprometeram mais profundamente o
pensamento cristão. Houve quem procurasse realizar, desde esse momento, o reino de
Cristo, muito embora respeitando os conselhos de prudência de Jesus. Os apóstolos
puseram os respetivos bens em comum (Actos 11, 44-45); era a emulação da virtude e
a exaltação da pobreza; a doutrina não postulava nada disso, porém as imaginações
exaltavam-se. O Apocalipse de São João traduz com bastante clareza e efervescência
que provocava a expectativa do fim do mundo exacerbada pelas infelicidades da
época. Imaginamos facilmente que os ensinamentos de Cristo podiam ser recebidos
como uma perspetiva anarquizante, sobretudo em vésperas de acontecimentos
definitivos. Os valores e os deveres sociais eram tidos precários e vis, em face dos
impulsionados, dos sacrifícios ou das renúncias.
São Paulo tentou refrear esta tentação. As Epístolas estão recheadas de apelos
à calma social. Ele recomenda aos escravos a obediência (Colossenses, III, 22-25:
“Servos, obedecei em tudo aos vossos senhores, segundo a carne”). E, até, este
conselho está integrado numa longa lista em que São Paulo convida toda a gente a
cumprir com justiça os deveres inerentes ao seu estado, senhor, pai, marido, esposa,
filho. Por outras palavras, a sociedade civil não perde nenhum dos seus direitos.
Compete apenas aos Cristãos cumprir ou desempenhar com equidade e caridade cada
um dos deveres que provêm da vida social. Nem mesmo a propriedade é objeto de
qualquer crítica em parte nenhuma: São Paulo limita-se a recomendar a caridade e o
uso honesto da riqueza. Em suma, São Paulo, desenvolvendo os Evangelhos, dá a
entender que não existe uma organização social especificamente cristã, mas sim uma
maneira cristã de cumprir os deveres sociais na organização vigente.

5- Os reinos deste mundo e o reino de Jesus.


Os reinos deste Mundo.
Mais concreto ainda no que diz respeito ao poder civil, São Paulo prega a
obediência (Romanos, XII, 1-7) num longo comentário que ficará como texto básico da
política cristã: “Q eu toda a pessoa que se submeta às autoridades superiores; porque
não existe autoridade que não venha de Deus e as autoridades que existem foram
instituídas por Deus. É por isso que aquele que resiste à autoridade resiste à ordem
que Deus estabeleceu, e aqueles que resistirem atrairão uma condenação sobre si
próprios. Desejas não temer a autoridade? Pratica o bem e terás a sua aprovação. O
magistrado é servidor de Deus para teu bem.”. E na epístola I de São Pedro ressoa a
palavra de paz: “Sede submissos… honrai o rei.”, ambos afirmam a necessidade de
respeitar a ordem estabelecida e de não reivindicar a liberdade para atacar as
instituições, a necessidade de não “fazer da liberdade um véu para tapar a malícia”
(São Pedro, I, 2, 16). Neste passo, ainda São Paulo revela-nos o cidadão romano que
nos descrevem os Actos, preocupado em invocar e defender uma legalidade positiva.
Um e outro, porém, vão mais longe e, para justificarem a obediência absoluta
aos deveres, formulam uma teoria que viria a ter um largo futuro: “Nulla potestas nisi
a Deo”. Certamente a intenção dos apóstolos era apenas legitimar a ordem para
melhor a fazerem respeitar, contudo, em relação aos Evangelhos, quer o quisessem,
quer não, estava dado um grande passo. A política teria de deixar de ser considerada
como uma dessas necessidades puras e simples da vida do corpo; o poder emana de
Deus, que tem, pois, a sua parte na ordem política do mundo e portanto dos atos do
poder político deixaram de ser aquela matéria indiferente a que nos submetemos para
não embaraçar a vida espiritual; serão dali em diante uma atividade até certo ponto
significativa, reintegrada no universo cristão. Sem dúvida que o problema está mais
equacionado do que resolvido; sem dúvida que a fórmula irá sofrer diversas
interpretações; poder-se-á, por exemplo, concretizar que só emana de Deus o
princípio do poder, a autoridade em si, e não as suas modalidades nem o seu exercício;
nem por isso a fórmula de Cristo: “O meu reino não é deste mundo” deixaria de
suprimir sem apelo todo e qualquer problema – ao passo que a fórmula: “Os reinos o
mundo são de Deus” iria mais longe, dando origem a uma germinação teológico-
política, ao sabor das relações entre a Igreja e o Estado. Uma vez que César é, bom ou
mau, um servidor, consciente ou inconsciente, dos desígnios de Deus, aquilo que se lhe
dá muda de significado. Não pode continuar a considerar-se esta dívida como
puramente formal e a fronteira entre o reino terrestre e o reino celeste, tão
nitidamente traçada por Cristo, tornar-se permeável e vaga. São Paulo Funda a
realidade teológica da cidade do Mundo.

O reino de Jesus.
Seguindo um caminho mais paralelo, São Paulo vai também organizar o
advento da cidade celeste. Seguindo a letra do Evangelho ele exclama: “Mas a nossa
cidade está nos Céus.” (Fil., 3, 20). Esperançados no regresso de Cristo, os cristãos vão
permanecer unidos por uma solidariedade mais forte que todos os laços terrenos, o
que forma entre eles uma cidade ideal, invisível, no próprio coração da cidade deste
mundo: é já a cidade de Deus (“Deixa de existir o judeu, ou o negro; deixa de existir o
escravo ou o homem livre; deixa de existir o homem e a mulher, porque todos vós sois
em Jesus Cristo.” (Gálat., III, 28). Semelhante à cidade do sábio estóico, cresce uma
cidade invisível que não tem fronteiras geográficas, nem barreiras sociais. São Paulo
vai mesmo mais longe que os estóicos, uma vez que não reconhece nenhuma especial:
“Onde está o sábio, onde está o escriba? Não condenou Deus como loucura a
sabedoria do mundo.”(Corint., I, 20-27). Desvaneceu-se desde logo até ao próprio
critério de cultura ou de sabedoria filosófica que salvaguarda o estoicismo. Nunca terá
de insistir muito na importância desta pregação. Muito mais seguramente do que pelas
conceções abstratas do estoicismo se encontrava assim garantida e sensível ao
coração a ideia da unidade entre os homens e a solidariedade do seu último destino.
Enfim, para firmar os alicerces morais desta cidade de Deus, São Paulo, imitando os
estóicos, vai mesmo, assaz paradoxalmente, ao ponto de reconhecer a existência de
uma lei natural à margem da lei positiva.
Começam assim a delinear-se essas duas cidades na teologia de São Paulo, mas
por ora não antagónicas. É verdade que os estóicos encorajam o homem a participar
na vida social e política, São Paulo limita-se a pregar a obediência e o respeito pelos
deveres civis, mas tal compromisso por enquanto, não levanta nenhum problema.
Porém exige apenas uma vida espiritual intensa e constantemente alimentada de
esperanças a curto prazo e, por outro lado, implica deveres cívicos que não chocam a
moral cristã. Virá o tempo em que as fórmulas de São Paulo perderão a virtude parar
as consciências dilaceradas.

6- O édito de Milão.
O édito de Milão (313) ao autorizar os cultos dos cristãos ao seu Deus ao lado
do culto dos pagãos, coloca a necessidade de rever a posição dos cristãos face aos
problemas da relação com o Império e a possibilidade da sua participação política.
Pode dizer-se que o édito de Milão consagrou a liberdade de consciência ao permitir a
liberdade de culto aos cristãos. A Igreja oriental procura, agora, influenciar o poder do
imperador, substituindo-se ao neoplatonismo, doutrina com a qual o cristianismo tem
diversos pontos de contacto. A figura da Igreja que personificou essa ação foi Eusébio
(260-337), bispo de Cesareia, ao elaborar uma teologia imperial de apoio a
Constantino. Assim, o principio paulino “Nulla potestas nisi a Deo”, é interpretado num
sentido profundamente positivo, na sua aplicação ao Império. Desta forma, nesta
teologia política ressalta a antiga ideia de Orígenes, da complementaridade entre as
duas cidades que conduz a um papel ativo do imperador na expansão do Cristianismo.
Para justificar, o bispo de Cesareia explica a forma como o poder do imperador emana
de Deus. Afirma que o príncipe está ligado a Deus e de que este é o representante de
Deus na terra, o que o “fortalece por meio dos seus eflúvios, o ilumina com as suas
revelações, partilha com ele as suas virtudes”. Nesta teoria do poder combinam,
também, aspetos do estoicismo e do neoplatonismo. A corte terrena do imperador é a
imagem da corte celeste, na mesma forma em que o Império é a imagem do universo.
Há um paralelismo entre as duas cidades, embora se situem, hierarquicamente, em
sítios diferentes, porém não deixa de existir uma ligação a Deus. A autoridade do
imperador vê-se, assim, legitimada e fortalecida e a pessoa do imperador numa
posição hierocrática. Nesta teologia política o imperador mantendo-se, embora,
tolerante em relação ao paganismo, passa a ter um magistério moral exercido fora da
Igreja: “é o bispo de fora”. Esta teoria confere-lhe a direção espiritual do mundo
pagão, por um lado, e o dever, em continuação da ação civilizadora do império, de
conduzir os súbditos para a evangelização da Igreja, por outro lado.
A demonstração desta teologia política é a forte influência das ideias cristãs na
legislação do Imperador Constantino. O poder imperial encontra-se ao serviço da Igreja
cristã do Oriente. Mas esta situação permitiu a intervenção do poder temporal do
imperador nas questões de foro próprio da Igreja e a criação de um sistema que iria
prosperar durante cerca de um século na política dos reinos do ocidente. Este é o
caminho que vai ser seguido por aqueles que pretendem no mundo fazer da cidade
terrena uma cidade cristã. Outros porém, seguem outro caminho: monaquismo –
concretização do anacoretismo preconizado por Tertuliano.
Aquele caminho vai levar, no século IV, à liberdade social na direção moral que
consistirá, essencialmente, em dar uma conformação cristã às diversas questões da
vida social e política e, assim como, às instituições.
Por sua vez, o princípio da liberdade de consciência concedido pelo édito de
Constantino era, agora restringido pelo cristianismo em relação aos outros cultos, que
vai suscitar uma discussão entre os pagãos liberais (em defesa da tolerância religiosa),
a luz da seguinte ideia: todas as religiões adoram o mesmo Deus, sob diferentes
fórmulas e crenças. Tais ideias de tolerância desapareceram.

7- Polémicas acerca da abstenção cívica.


As igrejas deviam sentir-se satisfeitas durante muito tempo com esta atitude,
absorvidas como estavam pelas múltiplas tarefas do apostolado e o proselitismo. Mas,
pouco a pouco, sobretudo a partir do século II, a situação modifica-se. Internamente
primeiro: uma vez que o fim do mundo demora, o cristão deve construir uma moral,
pelo menos provisória, em relação à cidade. Em seguida, por causa do recrutamento: o
cristianismo deixara de se espalhar apenas nas comunidades judaicas ou nas classes
baixas (“Os cristãos estão em toda a parte”- proclama Tertuliano). Mas as pessoas
importantes convertidas ao cristianismo não podem pelo que lhes diz respeito, iludir o
problema que as suas obrigações civis impõem à sua fé. A partir daí a filosofia participa
num debate, e no intervalo das perseguições, é através de uma polémica violenta que
se elabora a doutrina da comunidade. As crenças e os ritos dos cristãos podiam
justamente parecer irracionais ou vulgares aos olhos de certos pagãos. Mas seria
possível acreditar que a sua atitude de renúncia política lhes acarretaria em
contrapartida o silêncio e talvez a indulgência. Ora, é justamente este aspeto que a
maioria das vezes vai exasperar os críticos: Celso é testemunha da revolução que o
cristianismo operava na consciência antiga.

8- Celso.
Nada sabemos de exato acerca do filósofo que, provavelmente por volta do
último terço do século II, se armou em paladino do helenismo político, filósofo e
religioso contra os cristãos. Felizmente que os fragmentos da sua obra, “Discurso
Verdadeiro”, chegaram até nós devido à conservação de Orígenes, no próprio livro em
que este refutava que, o polemista pagão, “Contra Celso”. Os textos que possuímos
provam à sociedade que, defendessem-se como se defendessem, a atitude dos
cristãos mostrava-se ligada a uma opção política. Parecia já escandaloso o
recrutamento de uma seita que recebe, e até procura, os escravos e os pobres; marca-
se ai uma traição aos olhos dessa aristocracia urbana e instruída que dirige o Império,
assim como às fórmulas consagradas da vida cívica. Mas essa traição social, pouco a
pouco passa a ser uma traição política. A principal razão de queixa de Celso – em torno
da qual ele orienta todas as outras – é a secessão ou deserção. Censurando sobretudo
aos cristãos o facto de se furtarem aos deveres da vida política – militares ou civis –
numa página assaz brilhante (“Contra Celso”, VIII, 55), coloca-os diante de uma
alternativa: se vós recusais as honras àqueles que são a garantia da vida social coletiva
(imperador e seus representantes), abstende-vos de participar em qualquer ato dessa
vida social e retirai-vos francamente da sociedade. Se desejais participar nas atividades
que ela comporta, é indispensável pagar o vosso tributo de honra àqueles que velam
por ela. E as suas instruções são mais concretas: “Vós deveis ajudar o imperador com
todas as vossas forças, trabalhar por ele em prol do que é justo, combater por ele…
Sois também obrigados a aceitar as magistraturas no vosso país, se a salvaguarda das
leis e a piedade o exigem” (VIII, 75). Na sua opinião, os cristãos devem sentir-se
solidários com uma civilização de que aceitam as vantagens e a proteção. E conclui: “
Se todos nos comportássemos como vós… o universo cairia nas mãos dos bárbaros
mais dissolutos e ferozes. E assim desapareceria de entre os homens o vosso culto e a
verdadeira sabedoria” (VIII, 68).
O modus vivendi que poderia ser estabelecido pelo evangélico conselho “dai a
César o que é de César” está aqui evidentemente ultrapassado. Os pagãos não podiam
admitir as reservas que implicavam a teoria dos dois reinos. Neste mundo não é
possível servir a dois senhores (VIII,2). A seita que Plínio tolerava, porque nela via
apenas “uma superstição absurda e extravagante acompanhada de uma perfeita
inocência de costumes” deixou de ser inocente a partir do momento em que
aumentou de úmero e atingiu as classes elevadas. Por outro lado, a obediência por
desprendimento, completamente passiva, que Cristo concedia e que devia ser posta
em causa pelo mais ínfimo escrúpulo, não satisfazia de forma alguma o império, que
exigia agora uma obediência repleta de convicção e iniciativa, o sentimento de uma
solidariedade política que o cristão, completamente absorvido pela solidariedade
espiritual da Igreja, lhe recusava. É a recusa do sacrifício e do culto imperial que
materializava esta abstenção, porque os cristãos só concedem as honras divinas a
Deus.
Mas o conflito tem outro alcance. O império havia recuperado o ideal espiritual
da cidade antiga; o ideal de um mundo fechado sobre si próprio. O cristão tornava-se
pois, o representante e o soldado de um poder desconhecido, não domiciliado e
inquietante. A recusa do juramento era mais do que uma recusa de lealdade;
constituía aos olhos de um pagão o sintoma de uma lealdade de origem estrangeira,
uma secessão no próprio coração do Império, segundo dizem os polemistas,
reencontrando, em virtude de um movimento significativo, a linguagem da política. E
como interpretariam eles de outra forma a afirmação de Orígenes no século seguinte,
ao reconhecer que para um cristão, no seio de cada cidade, existe uma outra
comunidade de pátria. Tais sentimentos explicam talvez a maneira de como um
magistrado instrutor poderia, ao interrogar um cristão, interrogar-se acerca da
localização geográfica desta Jerusalém celeste, da qual lhe parceria ser agente
(Eusébio, Mart. Pal., XI, 12).
Poucas coisas restavam em comum, uma vez que, submissos na aparência, os
cristãos só reconheciam no fundo do seu coração como verdadeiramente válidas as
leis não escritas da sua moral. Já em São Paulo diversos textos deixam transparecer a
existência de uma lei natural diferente das leis positivas (Romanos, II, 11-15); pouco a
pouco, a teoria integrou-se nos factos e os cristãos, submetendo-se de preferência,
mesmo por necessidades da vida prática, aos costumes e à arbitragem das suas
comunidades, acabaram por formar um Estado dentro de um Estado. Deste modo, imã
sem dúvida ao encontro dos estóicos na análise e na descoberta de uma lei natural,
mas alargando o fosso visto que os estóicos faziam dela o sustentáculo da lei positiva
ou um conjunto de leis existentes, e os cristãos consideravam-na uma lei de essência
diversa. Não é de admirar que, nestas condições, alguns, como Élio Aristides, tenham
até certo ponto confundido os cristãos e os cínicos e os hajam combatido, a uns e
outros, não apenas como traidores, mas ainda como destruidores da civilização
romana. Não são apenas aliados, conscientes ou não, dos bárbaros do exterior; são os
bárbaros do interior.

9- Tertuliano.
Esta acusação é mais ou menos justificada, visto que no seio do cristianismo se
digladiavam diversas correntes espirituais; mas não há dúvida de que Tertuliano
representa muitíssimo bem (a posteriori) a tendência daqueles contra quem eram
dirigidas as acusações de Celso. Este fogoso apologista seguia com fervor os
ensinamentos de São Paulo; porém, o seu rigorismo, aquela paixão lógica que o levava
a reduzir tudo a regras, talvez também as lutas e as cisões que dividiam a Igreja em
África, iriam conduzi-lo à heresia montanista. As suas ideias políticas caracterizavam-
se por um zelo excessivo, sendo discutível se ele representava na verdade o ponto de
vista autêntico de um cristianismo que não transige. Observa-se, em todo o caso, que a
sua doutrina só se compreende dentro de uma perspetiva apocalítica: para ele fim do
mundo está iminente, e por isso mais medíocre ainda se lhe afigura o valor das coisas
terrestres. Em segundo lugar, possui um espírito jurídico, mas de forma nenhuma um
espírito político. O seu ponto de vista é sempre exclusivamente religioso e o termo
“Capitólio” não evoca para ele o centro da vida cívica, mas unicamente a ideia do
“templo dos Demónios” (De Spect. 12). No entanto, foi obrigado a abordar, na sua
Apologética e no seu tratado de Idolatria, os problemas que a um cristão, põem o
Império e os deveres cívicos.
Nas fórmulas que preconiza segue a doutrina paulista: “Respeita-mos nos
imperadores os juízos de Deus, que os escolheu para governar os povos; sabemos que
provém da vontade de Deus o poder de que estão investidos” (Apol., XXXII). Prega,
portanto, a obediência, sobretudo no que respeita os impostos. Acentua mesmos que
os cristãos são cidadãos escolhidos, uma vez que a sua moral mais exige, garante a
correção da sua conduta (Ibid., XLIII), e não hesita num impulso hiperbólico, que se
tornará frequente, em acentuar o que o império deve ao cristianismo e pode esperar
dos cristãos “O imperador é mais nosso do que ninguém, visto ter sido o nosso Deus
que o escolheu” (Ibid., XXXIII), e as orações dos cristãos sustentarão o Império. Mas
nessa lealdade formal, vislumbra-se o processo; Tertuliano quer mostrar, no Império,
uma força puramente terrena, entregue apenas nas mãos de Deus, quer despojá-lo de
toda a sua grandeza intrínseca.
Na aparência, contudo, satisfaz-se em fixar como limite, à obediência dos
cristãos, os ritos do culto imperial. Fá-lo com rudeza, mas dignamente: “O Que
constitui a verdadeira grandeza do imperador é o facto de ele ter necessidade de que
lhe recordem que não é um Deus.” (Ibid., XXXIII), e recusa-se a jurar pelo génio do
imperador que não passaria de um demónio. Mas se neste ponto ele se limita a trazer
ao ensino de São Paulo os complementos que exigiam as crescentes opressões do
culto imperial, ele confere a este ensino, explicitamente ou não, um desenvolvimento
que lhe modifica o alcance. Para ele, o poder imperial da mesma forma que os
Impérios de todos os tempos, provém de Deus, mas sem participar das virtudes da
divindade; não é mais do que uma coisa criada por Deus para servir os seus desígnios e
a sua origem divina não lhe aumenta a moralidade nem a dignidade. Antes pelo
contrário, César é preciso ao mundo, mas nunca poderia ser cristão (Apol., XXI). Ao
proclamar a incompatibilidade da essência de César e da essência de cristão,
Tertuliano manifesta uma oposição que São Paulo não indicara. Nos ensinamentos dos
Evangelhos, o reino de César e o reino de Deus são de ordens radicalmente diferentes;
para Tertuliano são exclusivos um do outro. De resto, a posição que assume esclarece-
se se tivermos em vista a sua doutrina escatológica. Para ele, apenas a duração do
império separa o homem do fim dos tempos; o fim do mundo e o inicio do Império
coincidirão. Pouco importa que seja ou não para desejar o prolongamento desta
trégua. Não passa de uma simples trégua. O Império nada é, portanto, de positivo por
si só; não passa da forma pela qual se instalou, o mundo para viver os últimos anos, o
artificio mercê do qual Deus prolonga a vida de um moribundo.
Em conclusão, o universo de Tertuliano está povoado de potências
intermediárias, os demónios, criados por Deus como todas as suas coisas, mas maus
em si (Apol., XXII). Todo o paganismo adora esses demónios e é movido por eles. O
culto imperial deve-se aos seus artifícios, assim como, para além do culto, todo o
sistema de crença que implica; pactuar com ele é pactuar com os demónios. Sob esse
aspeto, o poder imperial já não é uma realidade indiferente, mas sim um conjunto
doutrinalmente demoníaco. E sem que Tertuliano desenvolva o seu ponto de vista de
modo a construir um sistema, podemos reconstituir-lhe o conjunto. O Império faz
parte da Terra, de tudo aquilo que é preciso vencer-se para ser cristão, de tudo aquilo
que nos devemos despojar: deixou de ser tudo aquilo que devemos respeitar com
indiferença, para se transformar naquilo que é necessário vigiar com inquietação. Na
luta surda em que se debatem o campo da luz e o campo das trevas (“Castra lucis e
castra tenebrarum”) existem muitas probabilidades de que o Império, figura e forma
do paganismo, se encontre no campo das trevas. É por isso que ele dificilmente poderá
continuar a manter as concessões que primeiro fizera ao Império: “Ninguém pode
servir a dois senhores ao mesmo tempo”; “Que há de comum entre a luz e as trevas ?”
(De Spect., 62). Se ele admite o pagamento dos impostos, por outro lado proíbe
praticamente o serviço militar aos cristãos e faz depender o exercício de outros cargos
de tais condições que equivalem a uma proibição. Já se notou que a palavra
“obediência” nunca figurava nas passagens relativas ao soberano. E finalmente, ele
não possui sentimentos patrióticos: “A nossa república é o mundo” (Apol., XXXVIII), e
recusar-se-á a considerar os bárbaros como inimigos. O auxílio que ele propõe ao
Império – mobilizar os soldados de Cristo contra os demónios – será para as
autoridades uma espécie de deserção disfarçada. É por isso que incorre plenamente
nas acusações de secessão que lhe fazia Celso e ele próprio as admite: “Secessi de
populo” (De Pallio, 5). A sua posição só podia ter uma saída se o mundo prolongasse a
existência: o anacoretismo, e foi de facto esta a solução que, desprezando a vida
política, vieram a escolher, cento e cinquenta anos mais tarde, os discípulos do nosso
apologista.

10- Orígenes.
Orígenes é à primeira vista o menos político dos doutores. Os Comentários de
São Mateus ou a Epístola aos Romanos são extremamente breves no que se refere aos
textos fundamentais da política cristã. Até o “Contra Celso” (cerca de 250), é
paradoxalmente, muito pobre de conteúdo político. No entanto mesmo dentro do
quadro da sua escatologia e da sua soteriologia (estudo da doutrina de redenção), não
podia ficar insensível aos problemas que inquietavam as consciências cristãs. O espírito
dentro do qual Orígenes aborda estas questões é muito diverso de Tertuliano. Por um
lado, tenta integrar no património cristão um aparte da herança pagã, e
particularmente a filosofia grega, na qual vê, não como Tertuliano, a fonte de toda a
heresia, mas sim uma preparação para o ensino de Cristo. Isto é, a história da
Humanidade e a história da salvação, longe de voltarem as costas uma à outra,
caminham a par, pelo menos até certo ponto; portanto, nem tudo é mau no mundo
nem no Império, que constitui o palco e a imagem desta civilização. Por outro lado,
Orígenes opõem-se violentamente ao milenarismo que Tertuliano defendia, e até
mesmo o seu sistema, fortemente imbuído de racionalismo, é em absoluto contrário a
toda e qualquer preocupação apocalítica encarada como tal. Os mesmos dados serão,
pois, estudados por ele a uma nova luz: afirma a indubitável superioridade do mundo
invisível, recusa deixar-se apaixona pelas fórmulas políticas particulares em torno das
quais Celso pretende congregar as boas-vontades e invoca se angústia em triunfo dos
Bárbaros, pois que estes virão a ser, por sua vez, cristãos num mundo unificado
(“Contra Celso”, VIII, 68). Mas ele tem em conta a sociedade civil: o homem é um ser
duplo – nele a alma (é o que o determina como homem no mundo terrestre) e o
espírito (é o que o liga a Deus. Desta forma, o apóstolo Paulo tem razão quando, na
Epístola aos Romanos, recomenda a todas as almas que sejam submissas aos poderes.
É Assim, São Paulo e São João, que já nada tinham de terreno, portanto nada deviam a
César, mas todo o cristão que possui interesses no mundo deve submeter-se aos
poderes superiores (Ibid., col. 1226 C.). Se não era de natureza de satisfazer Celso, esta
doutrina tinha pelo menos uma vantagem de, limitando a parte de César, a consolidar,
excluindo do seu domínio todos os conflitos.
Orígenes multiplica assim as distinções; há em toda a parte duas cidades: a de
Deus e a do mundo, em cada comunidade a ecclesia política e a Igreja cristã (“Contra
Celso”, III, 30); cada cristão tem duas pátrias: “Em cada cidade existe um outro género
de pátria fundada pelo Verbo de Deus” (Ibid., V, 37). Mas embora afirmando a
predominância indiscutível da parte espiritual, Orígenes procura sobretudo mostrar
que essas duas ordens não têm nenhum motivo, com exclusão do problema do
juramento pelo Império, para entrar em conflito. Ele esforça-se por provar a
legitimidade do poder civil; o poder civil foi dado por Deus, tal como os sentidos
humanos, para que dele se faça bom uso, “ad vindictam malorum, laudem bonorum”;
um exercício condenável desses poderes é punível, mas não volta a pôr em causa a
origem desses poderes (P.G., XIV, col. 1227 A.). Não podemos negar que as potências
sejam auxiliares de Deus (“minister Dei”). A lei divina não tem de se ocupar de certo
número de crimes cujo o carácter condenável é indiscutível, mas ela exige mais do que
essa virtude civil prevista pela lei positiva (Ibid., col. 1229). Há, portanto, duas
categorias de moralidade: o poder civil conserva e garante a primeira, elementar; a lei
de Deus impõe e faz respeitar a segunda. Assim, Orígenes, esboçando sem insistência a
teoria das duas cidades e respeitando a respetiva hierarquia, destaca mais o seu
carácter complementar do que a eventual oposição que as separa. Chega até a
acentuar que nos insurgimos contra o poder civil, sem um motivo. Porque o que é
realmente imposto pela lei natural, é obedecer ao orgulho, e não à lei e, assim, o
castigo recebido será a punição justa a esse orgulho, e não um glorioso martírio.
Orígenes está convencido de que o Império facilitou a difusão do Evangelho,
que a cidade do mundo desbravou os caminhos para a cidade de Deus (“Contra Celso”,
II, 30) e se as ambições do proselitismo católico ultrapassam os contornos dos “limes”
(VIII,68), uma parte do caminho pode ser percorrido em conjunto. É por isso que ele
invoca diretamente para o Império as bênção divinas. Pensa que, assim como, Abraão
intercedeu por Sodona, os justos da Igreja podem proteger Roma. Isto explica-se pelo
facto de que o Império, para um heleno, mesmo cristianizado, é a chave do universo.
Não se trata já, como em Tertuliano, de orar pelo Império, a fim de fazer recuar o mais
possível o fim do mundo; o Império não é apenas uma trégua cega, preferível somente
aos cataclismos de Dies Irae, é o meio, tanto no tempo como no espaço, de
desimpedir, mediante a difusão do Evangelho, o acesso à cidade eterna de um número
Ada vez maior de criaturas. Desta forma, a cidade terrena pode ir entroncar na cidade
de Deus; o Império povoado e vivificado pelos cristãos, pode ser uma introdução no
reino de Cristo.
Por conseguinte, diversas tendências coexistem no seio da comunidade cristã:
aquele que, interpretando de uma maneira restritiva as fórmulas evangélicas, nada
querem dar a César, e aqueles que aceitam, estabelecendo uma diferença radical entre
as duas ordens, organizar a sua coexistência conservando os olhos postos em objetivos
mais altos e mais baixos. As teorias de Orígenes são o sintoma da vitalidade de uma
Igreja oriental consciente da sua força, que consente em dar a César o que lhe é devido
porque ela quer e, por sua vez, dar a Deus ao mundo. Ela e suficientemente forte para
desejar conquistar, deveras poderosa para merecer ser objeto de conquista.
Constantino, convertido e conquistador, colocando o cristianismo à frente das forças
do Império, ia lançá-los na política e povoar a Igreja de todos os demónios do poder
temporal.

11- As doutrinas da Igreja vitoriosa.


Uma vez autorizado o culto pelo édito de Milão (313), arredados os obstáculos
que por causa do juramento separavam o cristão da vida política, sendo a Igreja
favorecida e solicitada pelo poder político, impunha-se uma revisão da atitude dos
cristãos em face do Estado. Na doutrina em que a Igreja elabora, as ideias nem sempre
são originais. Pondo de parte a fé, não existe uma distância considerável entre o bispo
– Eusébio – e o retórico – Temístio. No fundo, o cristianismo molda-se muitas vezes às
formas do pensamento do neoplatonismo que quer vir a substituir na ideologia
imperial e cujas funções deve preencher totalmente. Efetivamente, os pontos de
contacto são frequentes entre as duas doutrinas; mas talvez mais do que a ortodoxia, a
heresia ariana seria favorável a essas osmoses; é um facto que o arianismo forneceu
aos imperadores, os seus mais fies propagandistas, e o principal teórico político cristão
do século IV, Eusébio, não é estranho a esse movimento.

9- Eusébio.
Eusébio, bispo de Cesareia (260-337), primeiro historiador da Igreja, já foi um
erudito, objetivo a um sábio administrador. Revelou-se também, não só partidário da
estabilidade, como um teólogo sem excessivas exigências. Portanto, não se deve
estranhar que em Niceia se tenha mostrado permeável às doutrinas de Constantino.
Graças aos seus escritos, conselhos e discursos, contribuiu para que se elaborasse uma
teologia imperial, a primeira da história do cristianismo, o essencial da qual se
encontra no “Elogio de Constantino” (335), na “Vida de Constantino” (337) e também,
disperso, na “Teofania Evangélica” (333?). Para se avaliar a sua originalidade é
indispensável ter em conta, por um lado, o que eram as máximas políticas cristãs antes
do édito de tolerância e, por outro lado, o neoplatonismo, que constituía desde então
a filosofia dominante.
Eusébio, com os seus escritos, traz a Constantino um apoio sem reservas. A
fórmula “Nulla potestas nisi a Deo” reveste-se, pelo que respeita o Império, de um
sentido muito positivo. Para reabilitar o Império de qualquer desonra passada, Eusébio
explica que Deus suscitou voluntariamente as perseguições para pôr os cristãos à
prova, e destaca o lamentável fim dos soberanos por elas responsáveis. Fica, portanto,
assim, do mesmo passo, salva a instituição e preservado o prestígio dos bons monarcas
do passado e do futuro. E desta forma se encontra estabelecida, dentro de uma
perspetiva coerente, a ideia já antiga da coincidência providencial do Império e da
predicação evangélica, ideia que constituirá a base de toda a arquitetura desta
teologia política. Assim como o império está historicamente ligado à Providência,
também a monarquia, por assim dizer, se encontra cosmologicamente ligada a Deus.
Retomando um grande número de ideias estóicas, e a maior parte das vezes
neopitagóricas ou neoplatónicas, Eusébeio indica a forma como o poder político
emana de Deus. Deus, o Deus do universo, reina no mundo por intermédio do seu
Verbo, que é, simultaneamente, a racionalidade de criação e o agente de Deus, o seu
intendente, o seu procurador junto da história humana. Aquilo que o Verbo é para
Deus pode simplificadamente dizer-se que é o mesmo que o imperador deve ser o
Verbo. Com efeito, o Verbo, lei viva, exerce o seu Império sobre os homens por
intermédio de um rei que é o seu lugar-tenente. Vê-se bem a propósito disto em que
medida o arianismo (doutrina herética de Arius) permita que se estabelecesse esta
escala hierárquica e as condições em que se encontrava para captar as simpatias da
corte imperial. O príncipe está ligado ao Verbo, de que é reflexo terreno, porque o
Logos o “fortalece por meio dos seus eflúvios, o ilumina com as suas revelações,
partilha com ele as suas virtudes”. A doutrina neoplatónica da emanação vem dar
apoio à doutrina cristã da Providência para construir a teologia imperial.
Desta forma, o Império nada perdia ao exceptuar os cristãos do culto imperial,
uma vez que em troca a divindade do poder imperial se via justificada não pela
divinização do imperador, mas pela revelação necessária que passava a estabelecer-se
entre a divindade e a função monárquica. Praticamente , as vantagens combinadas do
estoicismo e do neoplatonismo vão reunir-se numa nova teoria do Poder. A corte
terrena do imperador é o reflexo da corte celeste, da mesma forma que o Império é o
reflexo do universo. As duas cidades situam-se de certa forma paralelamente , mas em
níveis diferentes, conforme a vontade de Deus, e unidos pelo mesmo laço que liga ao
Verbo e a Deus a pessoa do imperador, como o afirmava, com mais ou menos reserva,
a tradição neopitagórica. A autoridade do soberano vê-se assim fortalecida e a
etiqueta da corte reforçada, graças à nova doutrina.
A oposição que separa as duas comunidades ficará atenuada no plano teórico,
uma vez que o imperador, ainda que se mantenha o Poder, passa a ser reconhecido
como instrumento de um magistério moral exercido fora da Igreja; ele é “o bispo de
fora”.
A legislação de Constantino, muito influenciada pelas ideias cristãs, é a melhor
demonstração desta teoria. As ideias acentuadamente espirituais formuladas por
Orígenes concretizavam-se. A Igreja para ele, é o sal da humanidade renovada por
Cristo; para Eusébio, a Igreja encontra no poder imperial o instrumento de uma
pedagogia exercida em seu proveito.
12- Santo Agostinho.
A Igreja ocidental oferece-nos outras perspetivas, muito mais subtis. Mais
diretamente ameaçado pelos Bárbaros, menos apoiado pelo poder do império, o
mundo ocidental está em crise, e particularmente a uma comunidade cristã. Com
efeito, os pagãos movem-se contra ela, numa polémica muitas vezes eficaz, armando-
se em defensores incondicionais de uma causa nacional que os cristãos, segundo
diziam, não perfilham sem reservas.
Santo Ambrósio (330/340-397), alto funcionário que tardiamente ascendeu ao
sacerdócio, provou-lhes, no entanto, pelos seus atos, que um prelado pode aceitar
corajosamente, responsabilidades políticas esmagadoras. Mas a sua posição conserva-
se, acima de tudo, a um cristão, extremamente representativa do pensamento político
da Igreja ocidental. “O imperador encontra-se na Igreja, mas nunca acima da Igreja”,
Santo Ambrósio sente-se ligado ao Império por este ser cristão, mas exige do
imperador uma conduta digna de um cristão. Está disposto a dedicar-se inteiramente à
causa imperial ameaçada pelas usurpações, mas ao mesmo tempo opõe-se
violentamente, de uma maneira mais firme que os bispos orientais, aos abusos arianos
sustentados pela corte, e mesmo, para além destas questões puramente dogmáticas,
arvora-se em defensor da moral cristã. Quando, em 390, Teodósio ordena o famoso
massacre de Tessalónica, Santo Ambrósio excomunga-o até ele se arrepender
completamente. Por outras palavras, a Igreja lança, pela primeira vez na história de
uma condenação contra um imperador, em virtude de atos privados ou sociais que não
dizem respeito à fé. Isto marca uma data muito importante na evolução da consciência
política.
O estado de espírito manifestado na obra de Santo Agostinho explica, sem
dúvidas, a forma como a Igreja ocidental, no tempo de Teodósio, decidiu entregar o
direito de julgar as decisões de poder civil.
Santo Agostinho (354-430) não é de forma nenhuma um político. Nascido em
Tagaste, professor de Retórica, adere ao cristianismo após uma juventude inquieta e
teve o seu epílogo na célebre conversão do jardim de Milão. Bispo de Hipona a partir
de 396, consagra-se à defesa da religião, sobretudo contra os donatistas e os plágios. A
sua doutrina, onde muitas vezes se notam influências maniquéistas ou platónicas da
juventude, quase nunca é política. Em 410, Roma é saqueada pelo visigodo Alarico. Os
pagãos aproveitaram o ensejo para atribuir a responsabilidade deste desastre aos
cristãos, cujo Deus não soubera proteger o Capitólio, ao mesmo tempo que eles, com a
sua impiedade, irritaram as verdadeiras divindades. Santo Agostinho ficou muito
abalado com esta catástrofe e com aquelas acusações; assim empreendeu a tarefa de
refutar essa tese, pondo sobretudo em destaque as fraquezas de Romã pagã, no
intuito de demonstrar que a Roma cristã em nada lhe era inferior. Porém, a sua obra
“A Cidade de Deus” (413-427) ultrapassa rapidamente os limites de um escrito
polémico, para se tornar numa reflexão acerca da história e da cidade. Esta obra,
ardente e grandiosa, não expõe propriamente uma doutrina; toda ela é recheada de
sentimentos contraditórios. Representa, acima de tudo a meditação apaixonada de um
adepto do cristianismo, romano pela cultura, que perante o desmoronamento de um
Império agonizante, se sente dilacerado entre a desorientação, o desejo de enfrentar
as contingências imediatas e a certeza profunda de que tal derrocada irá originar algo
eterno. Esta meditação acerca da história universal encontrou um duradouro eco, mas
deformante, em toda a Idade Média. Serviu para alicerçar uma doutrina política que,
sob a hégide do bispo de Hipona, programatizará a absorção do direito do Estado pela
Igreja. Mas assim como o neoplanismo não representa o pensamento real de Platão ,
também o agostinianismo político não deve ser confundido com a doutrina de Santo
Agostinho, muito mais rica e subtil.

13- As duas cidades na visão de Santo Agostinho.


A teologia política de Santo Agostinho assenta essencialmente na distinção das
duas cidades que partilham entre si a Humanidade: “Dois amores construíram duas
cidades: o amor-próprio, que conduz ao desprezo por Deus, fez a cidade terrena, o
amor de Deus, que vai até ao desprezo por nós próprios, erigiu a cidade celeste”
(“Cidade de Deus”, XIV, 28). Esta ideia não é original; estava já contida, pelo menos em
germe, na obra de São Paulo e de Origenes, mas Santo Agostinho confere-lhe forma e
valor explicativo e a sua doutrina orienta e ilumina a história inteira. Já não se trata de
um reino de Deus que sucede à vida terrena; Santo Agostinho abandona
completamente a prespetiva milenariarista. As duas cidades nunca deixaram de existir
lado a lado, desde a sua origem; uma tem Caim e outra Abel por fundador. Uma cidade
é terrena, com os seu poderes políticos, a sua moral, a sua história, as suas exigências;
a outra, a cidade celeste, que antes da vinda de Cristo fora simbolizada por Jerusalém,
é hoje a comunidade dos cristãos participantes no ideal divino: esta cidade é neste
mundo apenas uma peregrinação ou um exílio como o dos Judeus em Babilónia; as
duas cidades permaneceram lado a lado até ao fim dos tempos; mas depois, só a
cidade celeste subsistirá para participar na eternidade dos santos. É importante notar
a oposição radical das duas cidades edificadas sobre princípios adversos e ao mesmo
tempo a ligação que as une neste mundo. Porém, Santo Agostinho esforçou-se para
atenuar estas divisões: só Deus pode reconhecer a que cidade cada um pertence.

14- A sociedade civil vista por Santo Agostinho.


As consequências políticas desta conceção são muito menos sistemáticas do
que se poderia supor. Quando Santo Agostinho observa a cidade terrena na sua
qualidade de sociedade civil, portanto sob o aspeto político, ele vê-a e define-a muito
simplesmente como fazia Cícero: o povo é uma multidão reunida pela aceitação do
mesmo direito e a mesma comunidade de interesses. Em suma fornece-nos um
estatuto natural de povo e do Estado que à primeira vista não se relaciona
necessariamente com Deus. Santo Agostinho tanto pode negar a existência de um
Estado autêntico na Terra como atribuir esse nome a todas as sociedades. Esta
definição, suficientemente lata para abarcar todas as comunidades, não vai além de
Aristóteles. Perante este ponto de vista, observa-se que Santo Agostinho pode
demonstrar que, em princípio não existe nenhuma cidade terrena perfeita, dado que
eventualmente todas as características necessárias postulariam todos os caracteres da
cidade de Deus, e admitir, na prática, que qualquer sociedade organizada de acordo
com o direito positivo é um Estado político.
Esta sociedade embora seja natural, está ligada à ordem divina de diversas
maneiras. Primeiramente “todo o poder vem de Deus”, aqui Santo Agostinho não se
afasta de São Paulo. Assim, o homem não tem autoridade sobre o homem por direito
da natureza, pois a essência do Poder não se centra no chefe supremo do Estado, visto
este ser um ser secundário, e sim em Deus. Seguidamente, “Uma vez que Deus é o
autor e o regulador de tudo, é impossível que ele tenha querido deixar reinos na Terra
fora das leis da Providência”. Aqui Santo Agostinho, liga a política à divindade, por
outras palavras: a história dos Impérios e dos regimes particulares obedece a um
plano geral da Providência. Esta fornece a cada país e a cada época o regime que lhe
convém.
Vê-se claramente que Santo Agostinho utiliza, para delimitar o acontecimento
ou o ato político, dois raciocínios diferentes, mas que provêm de um intuito comum.
Por um lado , Deus legitima o Poder em si, mesmo sem garantir o exercício concreto
desse Poder; por outro lado, a economia geral da Providência explica cada ato
concreto da política, mas sem isso lhes conferir a cada um em particular o carácter de
atos moralmente cristãos. Desta forma, um cristão pode simultaneamente afirmar que
nada se faz sem Deus, do qual procedem conjuntamente o princípio da autoridade e a
orientação misteriosa dos factos, e ao mesmo tempo, ele pode evitar que o
cristianismo se responsabilize moralmente por este ou aquele acontecimento
particular.
Vê-se então quais são os objetivos para que tende no fundo a teoria de Santo
Agostinho, tão pessoal da cidade de Deus: mostrar que existe para os crentes uma
forma de comunidade garantida por Deus, irredutível a todas as comunidades terrenas
e que sobreviveu a quantos naufrágios neste mundo. “Roma não é eterna, porque
apenas Deus é eterno”.

15- A direção moral na formação do estado ético.


A formação do Estado ético é consequência do processo que se inicia com a
tentativa da criação da “cidade cristã” quando, no século IV, se leva à sociedade
política a direção moral. O objetivo era definir o papel dos cristãos no que concerne a
todos os problemas da vida social e política. As principais figuras desse século que se
ocupavam da direção moral foram: Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e João
Crisóstomo.
Essa direção no sentido da organização e da disciplina da comunidade cristã na
sociedade foi elogiada por Julião junto dos pagãos.

16- A influência do cristianismo na formação do estado ético do Ocidente.


Para a formação do estado ético do Ocidente sob a influência do cristianismo, a
principal figura dessa ação foi Santo Agostinho (354-430) através, especialmente, da
sua obra “Cidade de Deus”. Mas, a primeira figura que pela sua intervenção afronta o
poder do imperador romano do ocidente, por causa da prática de atos atentatórios da
dignidade humana, foi Santo Ambrósio (330/42-397). Assume a representação do
pensamento político da Igreja ocidental quando afirma “O imperador encontra-se, na
Igreja, mas nunca acima da Igreja”. Considera-se como cidadão romano e cristão
interessado na causa do Império, ameaçado pelas invasões germânicas sem abdicar da
defesa da moral cristã. É, assim, que, em 390, excomunga o imperador Teodósio por
ter ordenado o massacre de Tessalónica. É a primeira vez na história que a autoridade
eclesiástica condena um soberano temporal por atos que não estão, diretamente,
relacionados com o foro da Igreja. Situações análogas, contudo, ir-se-ão repetir ao
longo da Idade Média.
Também, na sua obra Santo Agostinho (romano por cultura) arroga-se o direito
de julgar as decisões do poder imperial. Não sendo um político e não escrevendo de
propósito sobre política, a “Cidade de Deus”- que tem por fim a defesa dos cristãos
contra as injustas acusações de serem os responsáveis da ira dos deuses que
abandonaram o império à crise em que caiu e não o protegerem das invasões bárbaras
– serviu, todavia, para criar uma doutrina conhecida por agostinianismo político. Esta
doutrina, na verdade, não reflete o pensamento de Santo Agostinho.
Na linha do pensamento de São Paulo e de Orígenes, o bispo de Hipona
concebe, também, a vida da comunidade humana de duas cidades: a cidade celeste
ou cidade de Deus; e a cidade terrena. Na conceção de Santo Agostinho, estas duas
cidades existem lado a lado. A primeira é formada por aquela comunidade de crentes
que na terra cumprem a vontade de Deus na caminhada para a bem-aventurança
eterna. Na interpretação de outros, essa comunidade seria formada por todos aqueles
que, na sociedade política, praticam o bem e a justiça. A segunda, em contrapartida,
seria aquela cidade formada pelos que na sociedade não praticam o bem, nem
respeitam a justiça. Num outro entendimento a cidade terrena seria a sociedade
política conforme define Cícero: uma comunidade ou povo reunido pela aceitação do
mesmo direito e a mesma comunhão de interesses.
Num sentido lato, Santo Agostinho considera haver sociedade política sempre
que há uma sociedade organizada de harmonia com o direito positivo. E entende, por
sua vez, que a sociedade humana que lhe está subjacente é natural e, por via da
natureza, está ligada à ordem divina de diversas maneiras. Assim, está ligada pelo
poder visto que, como princípio de ordem, “todo o poder vem de Deus”. Na verdade, o
homem não pode ter autoridade sobre alguém por direito da natureza. Sendo certo
que é por natureza que os homens se associam a outros homens que formarem a
sociedade.
Depois a escolha da autoridade por uma das formas – sufrágio,
hereditariedade, cooptação, sorteio – ou qualquer outra, depende já da vontade da
comunidade, mas a legitimidade funda-se, ainda, na conceção do poder como
delegação do poder divino. Portanto, a escolha de um regime e do mundo de escolha
da autoridade depende da vontade da comunidade.
Há, também, uma outra ligação que é a da política a Deus como Autor e
Providência da Natureza.
Em conclusão, no pensamento de Santo Agostinho, a existência da cidade
celeste como comunidade dos cristãos garantida por Deus e irredutível às cidades
terrenas, não obstaculiza a obediência dos cristãos à autoridade do príncipe ou
imperador, mesmo que ele não faça parte ou não esteja integrada na cidade celeste ou
cidade de Deus.
O pensamento do Santo Agostinho quanto à relação dos cristãos com o Império
não se harmoniza à conceção defendida pelos doutores da Igreja oriental, ou seja, a
necessidade da coincidência entre o Império e a Igreja…
Esta, no entanto, não se opõe ao Império, isto é, não se opõe aos deveres dos
cidadãos para com a sua pátria…
Porém, aquela coincidência não é defensável porque são entidades de natureza
distinta: aquele de natureza temporal e esta de natureza espiritual.
Por outro lado, distingue a lei natural da lei positiva.
A lei natural que reside no coração de cada homem, é a lei de Deus; e a lei
cristã é a divulgação da lei interna da alma. Para ele, o direito positivo deve ser o
desenvolvimento da lei natural.
O Império ou o Estado ocupam-se das coisas temporais e materiais através de
uma autoridade política, enquanto a Igreja ocupa-se dos interesses espirituais e da
vida interior do homem, através de uma autoridade moral. Defende, contudo, uma
relação da harmonia e cooperação entre estes dois poderes. Aspira, no fundo, a que o
Império se subordine, moralmente, à Igreja.
Portanto, defrontam-se duas teorias: a do Oriente cristão defensora da
identidade entre Império e comunidade cristã, que implica a existência de uma ordem
unificada em que se misturam e, mutuamente, se aceitam o temporal e o espiritual; a
do Ocidente cristão, concebida segundo o pensamento de Santo Agostinho, defensora
da distinção e independência entre as duas ordens (a temporal e a cristã ou espiritual).
Esta ideia vai ser seguida na Idade Média, com algumas alterações que
conduzem ao predomínio e superioridade hierárquica da ordem espiritual em relação
ao temporal por razões sociais e pela excelência da moral.

17- O agostinianismo político: as relações entre a Igreja e os Estados e a existência do


Estado ético.
A Igreja nas relações com os Reinos da Alta Idade Média pretendem seguir o
pensamento de Santo Agostinho expresso na Cidade de Deus. Ao fazê-lo afastou-se do
verdadeiro sentido que o Bispo de Hipona expôs sobre as duas cidades. Por um lado, o
sentido místico das duas cidades foi esquecido e, por outro lado, a independência
entre os dois poderes temporal e espiritual, sem prejuízo da missão daquele poder no
plano divino, foi afastado. O desvio do seu pensamento deu lugar ao agostinianismo
político.
A carta que o Papa Galásio I (Pontificado de 492-496) dirigiu ao imperador
Anásticio expressa a doutrina do agostinianismo político, porque, admitindo, embora
a distinção entre o poder do pontífice e o poder régio, considera que o poder dos reis
deve ser submisso à ordem espiritual e obedecer à vontade dos prelados. Esta
doutrina foi desenvolvida por Gregório, o Grande (Pontificado de 590 a 604), ao ponto
de afirmar que o imperador “deve proteger com extrema solicitude a paz e a fé” para,
desse modo, assegurar a concórdia que conduzirá à paz da Igreja e do Estado
inteiramente ligados entre si. Numa carta ao imperador Maurício diz que o poder do
reino terreno deve estar ao serviço do reino dos Céus. E dirigindo-se às realezas
ocidentais diz que o que importa não é ser rei, mas ser um rei católico. Neste sentido,
a ordem política confunde-se com a ordem moral. Desta forma, estamos perante a
existência do Estado Ético.
No reino visigótico da Hispânia, Santo Isidoro de Sevilha (562-636) defendeu
que o poder régio devia usar todos os meios, mesmo à força quando necessário, ao
serviço do poder da Igreja sempre que esta não pudesse realizar o seu múnus.

18- A comunidade universal do Império de Bizantino e as relações entre o poder


temporal e a Igreja.
Com a desagregação do Ocidente do Império Romano e a formação de reinos
sobre o desmembramento do território, desaparece a comunidade universal assente
na unidade política imperial. Subsiste, porém, o Império Bizantino (Império Romano do
Oriente) que se estende da Ásia à Europa constituindo uma comunidade de povos cuja
unidade é reforçada pelo cristianismo.
As relações entre o Imperador e o Patriarca são baseados numa conceção
hierocrática, ou mesmo, teocrática. Quer dizer, que o poder de origem divina é
transmitido pelo imperador por intermédio da entidade sagrada – o Patriarca –
simbolizada pelo ato solene da coroação ou, mesmo, s sua transmissão dá-se,
diretamente, para o Imperador como se de uma escolha divina se tratasse.
Desta hierocrática ou teocracia decorre que o imperador detém, teoricamente,
todos os poderdes inclusive o domínio da Igreja, que lhe impõe o compromisso de ser
um soberano solidário e a fé ortodoxa. Este tipo de relação da Igreja e do Estado é
designado de “cesaropapismo”.
A hierarquia eclesiástica deve ajudar o imperador no governo temporal e este
não pode sob qualquer condição deixar de respeitar e defender os interesses
espirituais da comunidade. Por isso, por razões de natureza espiritual está submetido à
ortodoxia da doutrina da Igreja “ratione pecati”. Se a violar é condenado como
herético.
Contudo, neste tipo de cesaropapismo sempre que a colaboração se efetive na
normalidade, a superioridade na relação está no imperador.
E, por isso, possa intervir em matéria teológica e se arrogava o direito de dizer a
última palavra.
Desta forma, surgiram as divergências teológicas que deram lugar a diversas
heresias.

19- A doação de Constantino e a formação do Estado Pontifício.


Sob a ameaça do exército lombardo contra Roma, em meados do século VIII, o
Papa solicitou o Pepino, o Breve, rei dos francos apoio militar, depois do seu pedido de
auxílio ao imperador bizantino não ter sido atendido. O rei dos francos derrotou
Astolfo, rei dos lombardos. Derrotados, porém, não restituiu as terras forçando a nova
intervenção de Pepino, mas de cujas terras libertadas Bizâncio se tentou apoderar. Só
após, uma terceira intervenção as terras voltaram à posse do Papa procurou até
alargá-lo apoiando-se no documento conhecido por “Doação de Constantino”.
Este documento apócrifo, elaborado nos anos de 750 a 760, atestava que o
imperador Constantino, reconhecendo a primazia do Papa de Roma, fez a entrega das
insígnias imperiais a Silvestre I e aos seus sucessores, colocando Itália e o Ocidente sob
a sua suprema autoridade. Em lugar de uma teocracia laica, esta doação dava origem à
criação de uma teocracia hierocrática. Citando algumas passagens do documento,
Constantino declarava, “Estamos decididos a honrar e a respeitar tanto o poder da
sacrossantra Igreja romana […] conferindo-lhe [ao Papa] o poder, a dignidade,a glória,
a força e a honra imperiais. Decretamos portanto que o pontífice passe a exercer o
primado sobre as quatro principais sedes de Alexandria, Antioquia, Jerusalém e
Constantinopla […] decretamos também que o nosso venerado pai, Silvestre, pontífice
supremo, assim como os seus sucessores passam a usar a diadema, quer dizer, a coroa
de ouro muito puro […] E para que o prestígio do pontificado […] se torne ainda mais
resplandecente do que a dignidade do Império e o poder da glória deste, nós
concedemos e abandonamos […] não apenas o nosso palácio de Latrão […] mas ainda a
cidade de Roma, assim como todas as províncias, povoações e cidades de Itália e das
regiões ocidentais […] concedendo-as esta constituição para sempre e de direito à
Igreja romana.”
Com esta doação, Constantino transferia o Império com o seu poder para o
Oriente, construindo na província de Bizâncio uma cidade com o seu nome e se
tornaria a capital do Império.
Carlos Magno ao tomar conhecimento dos termos da doação de Constantino,
exerceu uma política de limitação de território e de poder do Pontífice romano. Isto
não impediu, contudo, à criação do Estado de Pontifício que, em certa medida, deu ao
Papa e à Igreja não só segurança, mas também independência e poder.

20- O Império de Carlos Magno e o Imperium Christianum


Se o Estado Pontifício oferecia segurança contra os perigos do exterior,
nenhuma proteção garantia ao Papa contra a rebelião dos súbditos. No ano de 799,
por causa de acusações que lhe são lançadas, Leão III vê-se na necessidade de pedir
auxílio a Carlos MAGNO.
Este rei julga ter o dever de lhe prestar apoio e arroga-se a obrigação de
“defender em todos os lugares a Igreja de Cristo pelas armas: no exterior, contra os
pagãos infiéis; no interior, protegendo-a pela difusão da fé católica”. Esta a obrigação
de Carlos Magno na defesa dos valores morais e espirituais da Igreja mediante o
exercício do poder temporal que detinha. Ao Pontífice competia o desempenho do
poder espiritual a oração e as súplicas a Deus para o êxito das armas na defesa da
Igreja.
Os autores do atentado contra Leão III foram julgados por Carlos Magno
segundo a lex romana.
A hierarquia do mundo de então, é retratada pelo frade Alcuíno numa carta
dirigida ao próprio rei franco: “Até agora três pessoas tiveram no cume da hierarquia
do mundo: 1º o representante do alto apostólico: Pedro […]; 2º vem em seguida o
titular da dignidade imperial [refere-se a Constantino] […]; 3º vem em terceiro lugar a
dignidade real, que Nosso Senhor Jesus Cristo vos reservou para que possais governar
o povo cristão [ refere-se a Carlos Magno][…]”.
Para homologação de uma situação de facto existente, consagra-se a coroação
imperial de Carlos Magno na cerimónia de 25 de Dezembro de 800. No entanto,
procura mostrar a Bizâncio que não é candidato à sucessão de um Império único. O
império de Carlos Magno raramente é designado pela expressão de “Imperium
Romanum”; mas aparece com frequência a designação de “Imperium Christianum”.
A coroação de Carlos Magno é vista como uma ação do Papa em representação
de Deus, porque ela deve-se diretamente a Deus - “a Deo coronatus”. Estaremos
perante uma teocracia laica.
Por isso, Carlos Magno não se considerava um ministro do Papa segundo a
conceção dos Papas Gelásio I e Gregório, o Grande, mas rex et sacerdos ou
representante de Deus no temporal com missão profética de evangelizar através dos
seus mensageiros (os missi). A conceção de Carlos Magno é de sentido místico, é de
uma “visão religiosa da ordem do mundo”.
Com o desaparecimento de Carlos Magno, o Império carolíngio será tomado
pela Igreja. A ideia de cristandade imanente à Respuplica Christiana manter-se-à na
dispersão territorial que vai acontecer sob a firme autoridade da Igreja.
No reinado de Luís, o Piedoso, que sucede a Carlos Magno, a influência da
Igreja na direção do Imperium Christianum é notória. Mediante o ordinatio imperii
com a sucessão de Lotário como único sucessor de Luís, o Piedoso, pretende-se
assegurar a unidade do Império mas não se eliminam as perturbações criadas pelas
pretensões dos irmãos. A instabilidade política provocada, assim, no poder temporal
vai ser aproveitada pelos bispos que invocavam a necessidade de preservar a obra
carolíngia e a obrigação de combater a ordem e a desagregação do império; e que
como vigários de Cristo têm o dever de a todos guiar para o caminho da verdade e
proteger o governo imperial contra os que causaram a ruína do povo. Neste sentido
acusam Luís, o Piedoso de perturbar a paz (perturbator pacis), impondo-lhe penitência
pública. Por isso, o imperador sente-se moralmente sancionado a renunciar ao
governo do império, como consequência de um processo de natureza sacramental.
A partir daqui, vai seguir-se o governo dos bispos. Os principais teóricos desta
forma de governo foram Jonas de Orleães, bispo da cidade, e Hicmar, arcebispo de
Reims (835-882). O bispo de Orleães ao distinguir na sociedade três ordens, a dos
laicos (onde se encontra o rei), a dos monges (com a função de orar) e a dos clérigos (a
que pertencem os bispos), considera que elas se harmonizam entre si com vista à paz
social e religiosa sob a dependência pastoral direta dos bispos, à qual cabe velas pelas
outras ordens: a dos laicos e a dos monges.
Portanto para Jonas de Orleães o grau máximo de hierarquia do Império
pertence à ordem dos clérigos, o que significa a supremacia do poder da Igreja em
relação ao poder do Império. Estamos perante, no domínio das relações entre si, o
agostinianismo político. O arcebispo de Reims segue a mesma linha de pensamento,
fundamentando-se nas verdades bíblicas.
De harmonia com a sagrada Escritura diz que se o rei está no vértice da
hierarquia temporal, acima dele só se encontra o rei dos reis; e o rei só pode agir
submetendo-se à vontade do rei dos reis. E acrescenta: ao lado dos bispos é essencial:
é a eles que cabe ensiná-los sob a verdade do rei dos reis.
Hincmar defendeu a cerimónia da sagração real como sendo uma função
jurídica dos bispos e na qual em 869, introduziu a prestação do professio (juramento)
pelo rei, cuja violação o tornaria culpado de perjúrio e, consequentemete, réu de
excomunhão. Pelo professio feito perante Deus, no altar, o rei fica totalmente
submetido à autoritas dos bispos. Esta é, também , uma posição relativamente à
relação entre os dois poderes, de agostinianismo político. Hicmar no seu livro “De
ordine palatti” afirma a existência de “dois poderes que governam o mundo: a
autoridade do Papa e a autoridade do rei, sendo a autoridade do pontífice superior à
dos reis”.
Com base em documentos canónicos o Papa proclama a independência e a
supremacia do poder pontifício e, em consequência, liberta os bispos da subordinação
ao poder temporal. O Pontífice era a cabeça da Igreja estando a ele sujeitos a todos os
poderes. Intervém sempre que há desvios da ordem moral ou violação dos valores
espirituais com o recurso à ameaça ou aplicação da excomunhão, mediante
fundamentação teológica. Defende a concórdia entre os herdeiros, divididos entre si,
do Império de Carlos Magno para garantir a paz católica e a unidade da Respublica
Christiana.
A dinastia dos Otões vai tentar a restauração do Império do Ocidente com o fim
de impedir a supremacia do poder Papa. Otão I reconhecia o Império Romano do
Oriente, não pretendia ser imperador dos romanos (que desprezava), mas dos francos
conforme a tradição. Porém, Bizâncio não reconhece Otão I como imperador. Mas este
e os seus partidários, também, não reconhecem o imperador bizantino seu
representante, quando muito seria “imperador dos gregos” e, por isso, não podia
invocar quaisquer direitos sobre eles. Foi Otão III, coroado por Gregório V, em 996,
que restaurou o Imperium Christianum instituído por Carlos Magno, tornando-se o
segundo chefe da cristandade e cabendo aos Papas, apenas, o ministério da oração.
No Oriente os dois domínios – Império e Igreja – confundem-se com a
subalternização do poder eclesiástico. No Ocidente, o Império afunda-se com a
formação progressiva dos reinos. A ideia imperial perde prestígio e os reis
abandonarão a pretensão de se tornar imperadores.
A Baixa Idade Média caracteriza-se pelo jogo de relações entre Império, Igreja,
Reinos.

21- Papado, império e realeza.


O período da Baixa Idade Média apresenta importantes modificações na
estrutura da sociedade e na organização do poder. O poder político manifesta-se
dividido de forma plural e exercido segundo um princípio hierárquico.
No começo do segundo milénio a Igreja padecia, ainda, das perversidades
causadas pela simonia, pelo Nicolaísmo e pela nomeação dos papas por certas pessoas
ou grupos de interesses temporais.
A primeira reação a pôr termo a um destes males partiu do Consílio de Latrão,
reunido em 1059, onde é promulgado o decreto que regula a nomeação do papa por
eleição de cardeais, a ser depois homologada por todo o clero e povo cristão. Mas, o
grande reformador da Igreja foi Gregório VII, cujo o objetivo era exclusivamente de
natureza espiritual que pôs fim à simonia e ao nicolaísmo. A reforma teve, também,
por objetivo a proclamação do primado pontifício que conferia ao papa o poder de
depor bispos, reis e imperadores.
Na aplicação desta prerrogativa depôs e excomungou, em 1076, o imperador
Henrique IV, como resposta à sua reação da proibição do Papa da investidura laica a
eclesiásticos.
Embora Gregório VII tenha morrido no exílio, prisioneiro, de Henrique IV, a
reforma da Igreja triunfou por ação dos seus sucessores, consagrando-se a hierocrática
teocrática que substitui a hierocrática laica.
De entre os apoiantes da doutrina de Gregório VII destacam-se Pedro Damião
(1007-1072), cardeal-bipo de Óstia, seguidor do agostinianismo político; o cardeal
Humberto defensor da primazia efetiva do Pontífice da Igreja de Roma e adversário
acérrimo dos vícios eclesiásticos, particularmente do simonismo; e os canosnistas
Anselmo de Luca e Deusdedit que reuniram textos de justificação das perrogativas do
Papa.

22- Feudalismo: sociedade e ordem feudal.


A formação do feudalismo atribui-se ao clima proveniente do costume de
dividir à morte do rei o território entre os seus filhos, surgindo daí rivalidades e lutas
entre si, implicando também os aristocratas das diferentes regiões. Este clima de
insegurança implicava um duplo tipo de necessidades: necessidade de proteção
privada por parte do mais poderoso e necessidades militares da parte daqueles que
viam as suas terras afetadas por essas lutas. Ambas as necessidades se puseram em
relação: outorgava-se a proteção em troca da prestação de serviço militar e de defesa.
Surge assim o feudalismo. O feudalismo é, portanto, um conjunto de instituições que
criam e regem obrigações de obediência e serviço – principalmente miltar por parte do
chamado “vassalo” para o “senhor” e obrigações de proteção de sustento por parte do
“senhor” para com o “vassalo”, resultando daqui a obrigação de sustento tinha a
maioria das vezes, com efeito, a concessão feita pelo “senhor” ao “vassalo” de um
“bem”, chamado feudo. O feudalismo compreende assim dois elementos: o elemento
pessoal ou contrato vassálico de onde derivam as obrigações e direitos do “senhor” e
do “vassalo” e o elemento real ou bem concedido pelo “senhor” ao “vassalo”,
chamado feudo.
De contrato de vassalagem derivam obrigações tanto para o vassalo como para
o senhor.
As obrigações do vassalo são a fidelidade e as prestações auxilium et consilium:
o auxilium consistia na prestação militar (regra) ou também pecuniária (algumas
vezes); o consilium era o dever do conselho, quando pedido, prestado em regra
coletivamente (na corte do senhor).
As obrigações do senhor soa, igualmente, a fidelidade e as prestações de
proteção e sustento. A proteção é a ajuda militar e defesa jurídica (defendê-lo
juridicamente perante o rei) e garantir-lhe a posse pacífica de feudo, em relação ao
qual o senhor mantinha propriedade e o vassalo o usufruto e, mais tarde, a posição
refletida no domínio dividido: direto do senhor e útil do vassalo. A partir do século XI o
elemento real predomina nas relações feudo – vassálicas; é o elemento casual. Esta
conceção restrita do fenómeno feudal formula-se, principalmente a partir do
desmembramento do Império Carolíngio e vigora só do século X ao século XIII.
O feudalismo como modo de produção parte das relações de produções feudais
forjadas em torno da terra porque repousa numa economia de base agrícola . As
relações de produção feudais configuram-se a partir da relação proprietário e
trabalhador, em que o proprietário tem não só a propriedade sobre a terra e os
direitos de natureza económica, mas também que dessa propriedade derivam direitos
e meios e natureza jurídico-política que se convertem em meios coativos para atuar
sobre o trabalhador dessa terra.
No feudalismo a propriedade vai indissoluvelmente unida à autoridade, pelo
que produz-se uma unidade orgânica de economia e política, e a manutenção do
sistema depende da manutenção das instâncias e extra económica das quais depende
a obtenção do excedente.
A sociedade feudal é uma sociedade baseada em vínculos pessoais de sujeição
entre senhor/proprietário e vassalo/trabalhador, que se manifesta clara e diretamente
enquanto são publicamente reconhecidos e legitimados. Assim, a dependência pessoal
e a manifestação pública dessa dependência estão na base da sociedade feudal, nas
suas relações de produção.
A classe dominante feudal, afirma a sua posição económica mediante a força e
a conquista e configura-se, portanto, como uma classe necessária e profissionalmente
guerreira, e que dispõe e controla, em consequência, a força militar.
A servidão não é a única relação de dependência do feudalismo. Existem outras
formas de dependência não servis. O homem livre vê limitada a sua liberdade pela
busca de proteção e tutela, pelo pagamento de taxas ou impostos para poder casar,
transmitir os seus bens – no caso de bens de “mão morta” para transmitir por herança.
Ao estar baseado nesta relação de dependência, o sistema feudal adquire uma
forte tendência para a estabilidade. Na economia feudal, configura-se mais uma
economia para o uso do que para a troca. A falta de mobilidade económica traduz-se
numa falta de mobilidade social, acentuando-se a estratificação da sociedade
contribuindo à consolidação da ordem feudal.
A dinâmica feudal radica a fragmentação política característica do feudalismo.
Esta fragmentação política é dupla e corresponde à dupla fragmentação económica: a
divisão política (horizontal) que coincide com a existência dos distintos senhorios e
feudos constituídos em unidades económicas e políticas; e a divisão política (vertical)
que coincide com a hierarquia feudal que se relaciona com os distintos graus de
propriedade.
O feudalismo possuía uma fragmentação super-estrutural na política. Isso
supunha a ausência de um poder uniforme e compacto e, pelo contrário, a existência
de múltiplos centros que configuravam um poder desigual e disperso, tornou possível
a existência de espaços que escapavam a essa organização e que, em certa maneira,
ficavam fora do esquema feudal. Entre eles cabem citar as terras chamadas de aludais
ou alódios (sem cargos feudais) e as terras de exploração comunal, que deram lugar às
comunidades de aldeia. Mas, sem dúvida, o mais importante foi o aparecimento da
cidade medieval (o concelho) como comunidade autogovernada, com autonomia
corporativa, política e militar relativamente à nobreza e ao clero e dedicada aos ofícios
e ao comércio (manufatura). Não se pode entender “cidade medieval” separada do
sistema feudal porque a sua origem esteve protegida pelo senhor.
No sistema feudal não existe, propriamente, como elemento separado, o
ideológico, jurídico-política ou social. A sua interrelação faz-se através do termo
“extra-económico” que abarca todos os componentes de todo o complexo.
A ideologia feudal é de carácter fundamentalmente religioso e a sua influência
na configuração do resto dos elementos não económicos, ou seja, nos de ordem
jurídico-política e de ordem social não oferece dúvidas.
Quanto à influência do religioso na ordem jurídico-política , cabe distinguir a
respetiva influência no âmbito “universal” e no âmbito “local”.

23- Feudalismo: relação do poder espiritual e temporal no âmbito universal.


Em face do dito anteriormente, a referência a um âmbito universal pode
surpreender. Alguns dados da realidade social e política feudal impulsionaram a
existência desse âmbito universal; nesse sentido, é de assinalar, na ordem social a
fusão que se produziu entre os invasores (povos germânicos) do Império Romano e
invadidos (povos romanizados) que deu lugar tanto à síntese de cultura como a formas
de propriedade, como etnias mediante vinculação que se produziu entre a aristocracia
germânica e romana. Na ordem politica, a escassa ou nula identidade e conexão dos
grupos humanos contidos nas unidades políticas feudais (existência de nações)
atenuava notavelmente o sentido de fragmentação.
Existia, porém, uma conceção política – a Imperial, e por outro lado, uma
conceção religiosa – a Igreja Católica. A conceção Imperial, com raízes em Roma,
subsistiu. E o Império Romano tinha consolidado a ideia – de origem estóica e
justificando a conquista – da existência de uma união universal de todos os povos, que
se realizava através do Império e sob a direção do imperador. Esta ideia não
desapareceu. A subsistência do Império de Constantinopla, a aparição do Império
Carolíngio e o surgimento do Sacro Império Romano- Germânico, mantiveram a ideia
de uma organização política universal.
A conceção religiosa da Igreja traz o outro – principal – suporte do ideal
universalista e unitário que recolhe o feudalismo. Segundo ela, o princípio contrutivo
do universo é a unidade, enquanto deriva da própria natureza de Deus que, como ser
absolutamente único, está antes da pluralidade. Dentro desse todo universal, a
Humanidade é um todo parcial que compreende duas ordens bem distintas: a
espiritual e a temporal.
No feudalismo o ideal universalista e unitário existe através da ordem
espiritual. Esta encarna na Igreja, e ai está o valor universal que a própria Igreja se
atribui tanto no espaço, como na competência. No espaço enquanto era um poder
legitimado para se estender a todo o mundo; porque como entendia que a dimensão
básica e definitória do homem era a religião, o homem era – deveria ser – antes de
tudo cristão e o conjunto dos homens, de todos os homens, eram – deveriam ser –
Igreja; daí a conceção universalista do mundo como “ordem cristã”. Na competência, a
extensão das competências da Igreja eram igualmente universais enquanto derivam
daquela atribuição feita por Cristo a Pedro : “tudo o que atares… e tudo o que
desatares” e aos Apóstolos “Ide e ensinai a todos”.
Isto mostra a relação e conexão entre o espiritual e o temporal, o divino e o
humano, que não era por outra parte uma criação da Igreja feudal. Surge assim, um
aprofundamento de indubitável valor teórico e formal: a igualdade e dignidade dos
homens proíbem que um homem mande sobre outro homem de maneira que só é
legítimo poder o de Deus.
Com a vinda de Messias dá-se a separação entre os “dois reinos”, entre o “reino
deste mundo” e o “reino que não é deste mundo”, entre o que “é de Deus” e o que “é
de César”. Em Roma, à medida que se consolida o Império, volta-se a estabelecer uma
vinculação entre os dois reinos, entre o Cristianismo e o Império.
Estas ideias levadas à prática pelo agostinianismo político, conduzem à
absorção pura e simples do poder político sobre o religioso. Assim, a ordem política
deve tentar a realização de sentir de Deus sobre a terra a fim de restaurar a ordem
originária quebrada pelo pecado. Produz-se a indiferenciação e recíproca influência
entre o político e o religioso, representados ambos por símbolos que unem a unidade
entre o natural e o sobrenatural, porque o sobrenatural é a perfeição de uma
realidade que no natural só está iniciada.
Dai, a unidade do ser humano nas suas duas ordens – temporal e espiritual –
realiza-se pela Igreja.
Por conseguinte, se todo o poder se concentrasse no Papa, qualquer outro
poder que existia na comunidade humana, como poder temporal, procede dele. Mas
se o Papa possui inicialmente as “duas espadas” – espiritual e temporal – conserva na
mão apenas a espiritual e entrega ao Príncipe que desempenha assim um ofício
eclesiástico, um ministerium, enquanto encarregado de cumprir funções auxiliares,
como a defesa da Igreja, a erradicação do mal através da realização da paz e da justiça.
Assim, a revelação entre o poder temporal e o Papa integra-se na conceção
feudal: o imperador é um vassalo. Mas a realidade não se adequava a esta conceção.
Ao tratar a Igreja de tornar efetiva a conceção do agostinianismo político,
estalou o conflito dialético entre os dois universos que coexistem no feudalismo: a
Igreja e o Império.
24- A monarquia feudal.
É neste âmbito que se encontra a ordem jurídico-política específica do
feudalismo correspondente à sua fragmentação económica. Assim, a um economia de
base agrícola em que os trabalhadores possuem direitos de usufruto e ocupação sobre
a terra cuja propriedade pertence ao senhores que exigem prestações que
correspondem a um série de vinculações pessoais e sucessivas. Desta maneira forma-
se a escala hierárquica que dá lugar a uma organização jurídico-política em que a
autoridade se exerce de pessoa para pessoa, se fundamenta na relação pessoal e, por
conseguinte, não há suburdinação geral e uniforme a uma doutrina comum. Em
definitivo, torna-se impossível a existência do Estado.
A monarquia feudal inter-relaciona-se com o próprio sistema feudal, como se
deduz do seguinte:
- a monarquia vive do sistema de relações feudais que lhe procuram o
substrato económico e similar necessário, mas também o próprio aparelho
administrativo
- as relações feudais sobre as quais se fundamenta a monarquia, impedem o
seu progresso e fortalecimento.
- a monarquia feudal responde às exigências históricas do conflito de classes. A
oposição existente entre dominantes e dominados, deu lugar a que os setores menos
poderosos (senhores eclesiásticos e médios) buscassem apoio na monarquia e seu
fortalecimento.
A monarquia feudal configurava-se com base em dois ingredientes básicos:
- um que é exterior ao sistema feudal e que está constituído por seu carácter
teocrático
- e o outro que deriva da sua inserção no próprio sistema que é, portanto,
interior a ele mesmo e que está constituído pelo seu carácter propriamente “feudal”.

25- A estrutura da sociedade medieval.


A função de integração social que a Igreja desenvolve através dos sacramentos
e atos litúrgicos contribuiu a tornar mais coesa a nobreza e fixar e institucionalizar o
conjunto da estrutura social.
A unidade só deriva da ordem da desigualdade; a ideia de que a desigualdade é
necessária para evitar a desordem, encontra-se já em Santo Agostinho e Santo Isidoro,
para quem a hierarquia deriva da proximidade de Cristo.
Na sociedade a desigualdade e hierarquia adequadas resultam da existência de
três ordens e funções diferentes: os que guerreiam (nobreza); os que oram (clero); e
os que trabalham e sustentam com os seu trabalho os que guerreiam e que oram
(povo).
A sociedade da Alta Idade Média é um modelo “trifuncional”., que tentava
conservar um certo equilíbrio formulado no século XVII.

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