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O MONTANISMO FOI MESMO UMA HERESIA?

Segundo Alister McGrath, o conceito de heresia pode ser entendido através de


manifestações específicas de grupos nos quais “continuam a existir porque expressam
ideias que permanecem como significativas, ressoando a experiência de indivíduos e
comunidades” (2014:45). O foco da heresia, segundo o catedrático do King’s
College em Londres, gira em torno de suas significações. Numa linguagem analítica,
podemos definir seus rituais e práticas como a demonstração do conteúdo primordial
para concepção de um corpo doutrinário ou um pensamento elementar do qual emanará
diversos outros, partindo de pressupostos metafísicos e místicos, centrados na própria
idealização do indivíduo. Desta forma, o que torna essencial para sua subsistência são as
diferenças entre ela e a ortodoxia (entenda-se por ortodoxia a verdade que é o
Cristianismo, portanto, centralizando-o e afirmando-o como paradigma). Nitidamente
uma heresia ou uma falsa doutrina ou um movimento herético coopera insistentemente
para ser diferente do padrão estabelecido, tecendo uma teia de significações que
chegam, inclusive, a encantar o expectador para em seguida internalizar os conceitos e
as significações em questão. Seu trabalho seria executar uma proclamação controversa
do que foi firmado como verdade e estabelecer um novo canal para se entender
determinada doutrina sob um outro viés. A heresia, portanto, tem a necessidade de se
contrapor à verdade, subsistindo em decorrência do antropocentrismo, do equívoco
interpretativo, da mera oposição e da resistência intencional e malfadada. Se não
houvesse verdade proclamada, a heresia não surgiria, porquanto é da verdade
dependente. Pfeiffer, Vos e Rea referem-se à heresia como “um desvio da doutrina da
verdade biblicamente revelada, ou uma visão equivocada” (2007:915). Os três autores
ecoam com uma voz acertada quando definem a heresia como desvio, como de fato o é.
Desviar é afastar-se, é contrapor-se, é caminhar em sentido divergente da verdade
definida como tal; é uma digressão propositada numa tentativa de superação para tornar
o falso aquilo que é verdadeiro e o verdadeiro o que é falso; é, por fim, uma ação de
confundir e causar dúvidas diante de afirmativas e ensinos divinos. Na pior das
hipóteses, seu objetivo tende para o engano, ou seja, trabalha-se de modo malicioso para
tirar a atenção do verdadeiro afirmando ser outro o fundamento autêntico.

Dentro do contexto primitivo, o apóstolo Pedro alertou quanto a prática da heresia (II Pe 2:1) entre a
comunidade cristã. Exortou a Igreja a ter grande atenção nos falsos profetas que se introduziram no
ajuntamento de crentes. Esses falsos profetas seriam aqueles que nitidamente se “relacionariam”
com o Cristo (pelo menos seria essa a falácia), mas sua prolação desentoaria dos preceitos outrora
estabelecidos pelo Salvador, ocasionando uma identificação da falsidade que carregavam sem
quaisquer problemas. Rienecker e Rogers (2003:574) reafirmam a motivação de Pedro, indicando
que “havia também alguns falsos profetas em Israel e a história estava se repetindo na época de
Pedro”, mas também desvendam o significado do título para o apóstolo e afirmam que “o prefixo da
palavra pode significar falsamente nomeados, ou pode indicar a falsidade do trabalho realizado”. Da
mesma maneira, falsos doutores introduziriam encobertamente heresias. Percebamos que Pedro,
discernindo as intenções dos corações previamente, nos conduz a perceber a estratégia utilizada por
alguns homens no contexto da Igreja para imperarem sobre ela. O termo encobertamente denota a
malignidade de seus atos, portanto classificando como nociva à espiritualidade cristã. Refletindo
ainda sobre a palavra encobertamente do texto Pedrino, encontramos razão para crê que se refere a
“contrabandear” algum conceito de uma corrente religiosa ou de uma filosófica para furtivamente
introduzir no conjunto doutrinário da Igreja. Quando não verificamos um ensino aberto e claro, a
exemplo do trabalho de ensino de Cristo e de seus apóstolos, logo somos impelidos a detectar uma
inserção fora de contexto, podendo retrucar diante do fato. Mas ao que parece, esses falsos doutores
eram exímios na arte da falsidade de modo que, mesmo tendo a exortação apostólica presente,
conseguiam se infiltrar, deixar suas marcas e comprometer a saúde espiritual de alguma comunidade.

Diante do exposto, surge uma pergunta: seria o Montanismo um movimento realmente herético que
desentoava dos caminhos ortodoxos do legado apostólico? Lembremos que Eusébio de Cesareia, em
sua obra A História Eclesiástica, utilizando-se de alguns referenciais como Jerônimo, Apolinário,
Serapion e outros, os quais teve acesso, possivelmente, na biblioteca de Orígenes, não o classificou
como um movimento tipicamente cristão, antes o definiu como a heresia dos catafrigas. Baseado
nesse historiador, a História da Igreja tem trazido o Montanismo, em alguns casos, como o primeiro
grande cisma da Igreja em decorrência das supostas pseudodoutrinas, tipificando-o como um
absurdo religioso e contrassenso pragmático. Mas, terá sido o Montanismo realmente o que Eusébio
atestou? Para respondermos nosso questionamento necessitaremos fazer uma incursão nas tendências
de Eusébio e no contexto onde fluiu o movimento Montanista a partir da leitura dos ideais
tertulianistas.

Eusébio recebeu enormes influências de Orígenes (teólogo, filósofo neoplatônico, prolífico escritor
de grande erudição ligado à escola catequética de Alexandria), sendo apreciador de seus dogmas em
decorrência do amparo de seu mestre Panfílio, um devotado admirador da obra Originiana; mas,
Orígenes foi declarado herege no segundo concílio de Constantinopla devido à heresia monofisita (o
Cristo encarnado só tinha uma natureza ao invés de duas) e a concepção sobre a pré-existência da
alma. Além disso, Orígenes acreditava que haveria uma restauração de todas as coisas
(apocatástase), inclusive um chamado à vida de quem estava no inferno, no primado de Pedro, o
dogma de Maria, “mãe de Deus” (Theotókos), e especulações oriundas do seu tato filosófico.
Eusébio, além disso, acolheu Ário na época da controvérsia ariana, mesmo sendo ele um severo
opositor de Alexandre, o grande defensor da Trindade no Concílio de Niceia. Por essa conduta,
Eusébio demonstrou interesses e afinidades com a heresia ariana que defendia que Cristo era
subordinado ao Pai e não era o próprio Deus, denotando um certo partidarismo com o ideal
sabelianista. Era, também, muito próximo do Imperador Constantino de modo que havia naqueles
tempos alguns acertos políticos para melhor acomodar a Igreja junto ao Estado, ou seja, ele
trabalhou para a institucionalização da Igreja. Deste modo, Justo L. Gonzalez (1988:52-54) desvenda
o caráter inovador e contrariante de Eusébio da seguinte maneira:

“O mais grave de tudo isto, entretanto, não está no que Eusébio disse ou deixou de dizer sobre
Constantino. O mais grave está em que em toda a obra de Eusébio nós podemos ver como boa parte
da teologia cristã, mesmo sem o perceber, foi se ajustando às novas condições, em muitos casos
abandonando ou transformando alguns dos seus temas tradicionais. Vejamos alguns exemplos.

No Novo Testamento, e na igreja dos primeiros séculos, aparece com frequência o tema de que o
evangelho é em primeiro lugar para os pobres, e que os ricos têm mais dificuldades para entendê-lo e
segui-lo. De fato, a questão de como uma pessoa rica pode ser salva preocupou os cristãos dos
primeiros séculos. Agora, a partir de Constantino, a riqueza e a pompa começaram a ser
consideradas um sinal do favor divino…

Da mesma forma Eusébio descreve com grande contentamento e orgulho os luxuosos templos que
estavam sendo construídos; o resultado real dessas construções e da liturgia que evoluiu nelas foi o
surgimento de uma aristocracia clerical, semelhante e paralela à aristocracia imperial; a igreja
começou a imitar os costumes do Império não só em sua liturgia, mas também em sua estruturação
social…

O esquema que Eusébio concebeu em termos de história o obrigou a abandonar um dos temas
fundamentais da pregação cristã primitiva: a vinda do Reino…

A partir da época de Constantino, em parte por causa da obra de Eusébio e de outros com ele,
começou a dominar a tendência de negligenciar ou esquecer a esperança da igreja primitiva, de que
seu Senhor retornaria nas nuvens para estabelecer um Reino de paz e justiça…

Em épocas posteriores a maioria dos grupos que voltaram a enfatizar esta esperança foram
considerados hereges e revolucionários, e condenados como tais.”

Para amparar e dar maior sustentação a nossa argumentação em favor do movimento Montanista
recorreremos a Tertuliano para que através dele venhamos perceber nuanças outrora não
identificadas pelos historiadores de visão limítrofe e cristalizada. Para não restarem dúvidas da
dignidade Montanista, façamos uso de um dos tratados mais apropriados para a problemática em
questão: Prescrições contra todas as heresias. A referida obra é anterior ao ingresso de Tertuliano
na comunidade de Montano, portanto traz em si elementos preciosos para um exame equilibrado
sobre a heresia: neutralidade e imparcialidade quanto aos catafrigas. Assim, de acordo com Podolak
(2010:65), “…interpretes estão de acordo em situá-la depois das obras apologéticas de 197-198 e
antes das outras obras doutrinais (por volta de 206)”.

Importa salientar, antes de citar propriamente sua obra, demonstrarmos quem era de fato Tertuliano.
De acordo com Campenhausen (2005:181), um dos maiores estudiosos da Patrística:

Tertuliano conheceu a Bíblia muito cedo, e aderiu a esta por toda a sua vida. Ele a conhecia
profundamente, e referia-se a ela em cada situação que fosse possível, não hesitando em interpretá-
la de modo independente, conforme fosse necessário, de acordo com o texto original grego. Em
ouvir a voz de Deus de forma direta – na palavra dos profetas, do próprio Salvador e dos seus
discípulos – Tertuliano não era, sem dúvida, original. Partilhava a sua crença “nas Escrituras” com
os demais cristãos que lhe eram contemporâneos. Porém muito mais do que qualquer um
deles, possuía também um imediato senso do caráter inigualável da Bíblia.”

Ele sabia, e declarava de tempos em tempos, que este caráter é absolutamente diferente do espírito e
da sabedoria do mundo, por mais nobres que estes possam ser, a sua moderação, o seu realismo
direto e aberto, revelado por uma afinidade natural com o fervor e a sobriedade básica das Santas
Escrituras, e o caráter concreto e paradoxal destas, não pode ser abordado por qualquer ideologia
aparentemente religiosa. E aceitando-as nesta particularidade, e amando-as naquilo que nos poderia
parecer estranho, Tertuliano tornou-se o mais original e, em muitos aspectos, o mais perspicaz
exegeta de toda a Igreja Primitiva, cuja precisão de detalhes e entendimento não foi excedido por
nenhum dos teólogos que viveram depois dele.

Sobre o conteúdo dos seus escritos apologéticos, demonstra o zelo que tem Tertuliano pela Escritura
a qual lhe instiga a contrariar argumentativamente toda iniciativa que tenta desaboná-la, avançando
com intrepidez para a sabatina teológica. Campenhausen (2005:184) nos informa:

A maior parte de seus escritos tem, contudo, uma natureza diferente. É polêmica quanto à
abordagem, e combativa contra os inimigos e perseguidores, os hereges e os enganadores da
Igreja. E é nisto que os seus dons e talentos superiores revelam-se integralmente…

Porém, ele gostava também de agir como um nobre que levanta controvérsias, que retém os seus
golpes por não querer condenar alguém sem uma cuidadosa investigação, e que primeiramente
dá a cada oponente aquilo que lhe é devido, e até mesmo mais do que lhe é devido.

Pela sua vasta produção contra heresias, podemos concluir que Tertuliano era um exímio apologista.
Nas suas veias corria o sangue da ortodoxia, portanto, não havia interesse surrealista nem
neoplatônico que tenderia a uma adequação da predica herética à ortodoxa, culminando num
sincretismo medonho. Que o diga Campenhausen (2005:192):
…a luta contra as heresias ocupa a maior parte dos trabalhos deixados por Tertuliano. Estas
constituem ao mesmo tempo os escritos que mais claramente apresentam a sua determinação e
interesse objetivo, a despeito da polêmica disputa e dos agravos… Tertuliano não sofre para
compreender os seus oponentes a partir do ponto de vista das próprias pressuposições deles, ou para
fazer justiça às suas “preocupações” no momento; procura expô-los, e repetidamente derrama o seu
agudo sarcasmo contra eles. Contudo ele dificilmente veria algo culpável neste fato. Precisamente
por preocupar-se a respeito da causa da verdade e da existência da fé cristã é que procurava lutar e
destruir as heresias com todas as armas disponíveis…Tertuliano não é um caluniador, alguém
que divulga reprovações baratas que foram inventadas. Ele compreendeu os elementos comuns e
essenciais da posição herética, apresentou-as e combateu-as em seus aspectos gerais, muito tempo
antes de os escolásticos modernos terem abordado de modo conjunto os incontáveis grupos e
correntes das heresias do período sob a simples designação de “gnosticismo”.

Para demonstrar o equilíbrio de Tertuliano quanto à adesão ao movimento montanista,


Campenhausen (2005:200) informa que “Como montanista, Tertuliano não se tornou nada além do
que sempre foi. Podemos ver isto pelos temas agora abordados, e igualmente pelas conclusões às
quais chega”. Deste modo, há um alinhamento de convicções e crenças que nos leva a concluir o
inevitável: os montanistas e Tertuliano criam nos mesmos fundamentos bíblicos. Para justificar esse
ponto, Campenhausen (2005:201) ainda relaciona a doutrina cristã e o Paracleto, apresentando a
percepção de Tertuliano quanto à maneira de operacionalização desta relação, de modo que: “…é
também a convicção pessoal de Tertuliano, a qual ele repete várias vezes, que oParacleto nunca
muda as antigas doutrinas da Igreja, mas apenas as endossa e, desse modo, apresenta provas de
sua legitimidade”. Concluída essa exposição preliminar, agora, busquemos alguns referenciais em
suas obras.

Ao abrir o tratado contra as heresias, Tertuliano apresenta as justificativas para seu escrito
heresiológico bem claramente: “A situação dos tempos presentes nos obriga a dirigir esta
advertência: não devemos nos admirar destas heresias, nem de que existam, como foi anunciado que
seriam, nem de que arruinou a fé de alguns, porquanto para isto existem…” (cap. I, 1, p.141). De
imediato podemos perceber que existe um vigor contra o erro, uma exposição dos seus efeitos e uma
boa medida de exortação para que se tenha cuidado diante dessa cruel adversidade. Esses elementos
do discurso tertulianista reforçam nosso entendimento no qual acreditamos ser ele um defensor
sincero e bem fundamento das doutrinas cristãs, portanto, muito ortodoxo. Sendo assim, consegue
extrair da heresia sua essência e desnudá-la diante de seus próprios adeptos, como mencionará no
capítulo VI quando nos informa as admoestações paulinas quanto ao critério de julgamento das
heresias e o afastamento das mesmas, apresentando somente o fundamento doutrinário apostólico
para firmar a Igreja. Quanto a sua concepção de que Paulo fala para a Igreja de todas as gerações,
Tertuliano nos diz que “A nós, porém, não nos está permitido introduzir nada por nosso próprio
arbítrio, nem eleger o que alguém por seu próprio arbítrio introduziu. Nós temos como mestres os
Apóstolos do Senhor, que nem mesmo eles elegeram algo por seu próprio arbítrio para apresentá-lo,
se não que fielmente entregaram aos pagãos a doutrina recebida de Cristo” (cap. VI, 3-4, p. 159). Por
consequência, toda comunidade cristã deve se nortear pelos fundamentos e pilares apostólicos de
modo a não aceitar nenhuma suposição particular, porquanto, para o apóstolo, é objeto de repulsa e
está desassociado da sensibilidade à inspiração divina.

Prevenido que nem mesmo um anjo de luz poderia transmitir alguma doutrina além daquela que fora
estabelecida, antes seja esta anatematizada, baseado na Epístola de Paulo aos Gálatas 1:8-9,
discerniu uma ocorrência na qual imediatamente classifica como herética, pois “… e em seguida o
Espírito Santo havia previsto que certa virgem chamada Filomena seria um anjo de sedução
transfigurado em anjo de luz, induzida por cujos presságios e enganos nos quais Apeles introduziu
uma nova heresia” (cap. VI, 6, p.159). Desta maneira, afirma que um coração fiel percebe e discerne
a ocorrência de fatos místicos-heréticos, revestidos de uma fantasia carismática, para atestarem que
essas práticas são, na verdade, provenientes de homens e de demônios, nutridas também pela astúcia
e sabedoria mundana.

A interpretação equivocada das Escrituras, portanto, provinha de um espírito de enganação cujo


trabalho era a dissuasão da verdade. A interpretação que é fruto de uma inspiração latente demonstra
qual era realmente o agente indutor da heresia. Para Tertuliano, um dos agentes responsáveis era o
próprio satanás. Ele o menciona no tratado quando afirma: “Mas se pergunta por quem é interpretado
o significado daqueles [textos] que favorecem as heresias. Naturalmente, pelo diabo, cuja função é
perverter a verdade…” (cap. XL, 1, p.287). Faz também uma severa crítica aos que praticam as
ordenanças provenientes destas más interpretações:

“Também ele batiza alguns, obviamente seus crentes e fiéis: promete a purificação dos pecados em
virtude do banho… Celebra também a oblação do pão e introduz uma imagem da ressurreição…
Portanto, quem com tanta rivalidade tem buscado reproduzir nas práticas da idolatria as mesmas
ações com as quais se executam os sacramentos de Cristo, o mesmo, também, sem dúvida, e com a
mesma inteligência, tem desejado e tem conseguido adaptar uma fé profana e rival incluindo os
instrumentos das realidades divinas e das doutrinas cristãs… E assim, ninguém deve duvidar que
foram enviados pelo diabo maus espíritos dos quais provieram as heresias, ou que estas [não]
diferem da idolatria…” (cap.XL, 3-8, p.289-293).

No Tratado contra os Valentinianos, outra obra que encara a heresia, Tertuliano inicia o texto de
forma vigorosa, fazendo valer sua intenção de contrariar as prerrogativas deste grupo dissidente que
queria comprometer a comunhão da Igreja. Tertuliano apresenta-os com um teor de desqualificação
ácida e possante:
“Os valentinianos formam claramente a associação mais numerosa entre os hereges; e, por serem
apóstatas da verdade eles estão inclinados às fábulas e não se amedrontam com a disciplina, não se
dedicando a mais nada que a ocultar aquilo que pregam; se é que pregam aqueles que ocultam. A
obrigação do sigilo é um disfarce para o remorso. Prega-se a confusão, enquanto se assevera
falsamente a religião. Decerto, também nos mistérios de Elêusis, uma heresia própria da superstição
ática, eles calam devido à vergonha.” (cap. I, 1).

Como Valentino foi um mestre na comunidade cristã de seu tempo, indignando-se pelo fato de não
ser recomendado para a sucessão episcopal, resolveu atrever-se contra a verdade para destituí-la de
sua posição. Qual o problema dos valentinianos? Sincretismo com diversas vertentes religiosas e
com a filosofia helenística (medioplatonismo). Em razão disso, e consciente de seu conteúdo,
Tertuliano dispara:

Guarda-se cuidadosamente aquilo que se recebeu de forma lenta. Quanto ao mais, tamanha
divindade presente nos áditos, a maior aspiração dos epoptas e o maior de seus segredos, revela-se
como uma imagem do membro viril. Entretanto, a composição alegórica, valendo-se do venerável
nome da natureza, oculta o sacrilégio mediante a proteção da figura arbitrária, e justifica aquela
balburdia em honra das falsas imagens. Por conseguinte, aqueles que nós denominamos hereges
elaboraram as mais vãs e torpes fantasias com os santos nomes, títulos e argumentos da
verdadeira religião, graças à evidente facilidade originada pela copiosidade das Escrituras, uma vez
que é possível elaborar muitas fantasias a partir de sua abundância; estes transformaram os Mistérios
de Elêusis nos de Valentino, uma libertinagem santificada pelo profundo silêncio e admirável
somente devido à dissimulação. (cap. I, 3)

E com uma intensidade que é própria de seu discurso, utiliza-se de substantivações e adjetivações
robustas, categorizando negativamente os contradizentes da verdade. Apesar do seu gênio caloroso
não nos parece ser exasperação o cerne de sua fala, antes veemência para defender a verdade.
Obviamente a verdade não precisa de defensor, mas todo cumpridor dessa verdade, quando
inquerido ou ofendido por uma falsa doutrina, se vê na obrigação de propor o real sentido da
doutrina cristã e desabonar o engano propositado. Por isso discorre:

E, assim, a serpente se esconde o quanto pode e distorce toda prudência na obscuridade de seus
covis; esta besta lucífuga habita as profundezas, precipita-se nas trevas, apresenta-se pelo
encadeamento de suas artimanhas e avança sinuosamente, sempre de forma parcial. Entretanto,
nossa pomba possui uma morada simples, sempre em locais elevados, abertos e voltados para a luz.
A figura do Espírito Santo ama o oriente, a imagem do Cristo. A verdade não enrubesce por nada, a
não ser quando é escondida, pois ela não envergonhará a ninguém que lhe dê ouvidos, que reconheça
aquele Deus que a natureza já lhe confiou, o qual se percebe cotidianamente em todas as suas obras,
pouco conhecido somente por não ter sido considerado único, uma vez que fora nomeado em forma
numerosa e adorado em outros deuses. (cap. III,1-2)

Fazendo valer sua concepção escriturística, Podolak (2010:66) demonstra sua maior atenção:
“Reclamando a anterioridade da doutrina das Igrejas em relação à da heresia e demonstrando como
as Escrituras estiveram desde sempre na posse das Igrejas apostólicas, conclui que toda doutrina e
todo texto que não concordem com aqueles devem ser considerados antecipadamente errôneos”.

Após apresentarmos Eusébio e Tertuliano, cada qual com breves características, seria interessante
apontarmos o que foi bem destacado. Eusébio foi um “cristão” flexível, relativista e tendenciosa (não
foi honesto). Quem entende as Escrituras sabe que elas são absolutas e invariáveis. Então, Eusébio
criou um grande problema para si: o de ser um transgressor do preceito estabelecido. Ao proceder
dessa maneira, desqualifica-se para tratar de assuntos doutrinários e equívocos interpretativos, pois
se alguém adéqua o inadequável às conveniências episcopais pelo mero fetiche ao Estado e à
autoridade eclesiástica reformulada, passa a ser não um autêntico intérprete, mas um herege. Mesmo
tendo sido o historiador da Igreja, sua conduta em relatar os acontecimentos montanistas não foi
honesto em razão de existir um contraponto entre ambos. O Montanismo era crítico severo da
hierarquização da sucessão apostólica adepta da estrutura romanista do Império. Eusébio não, visto
que lhe favorecia, apesar de ter sido um líder medíocre. Os montanistas eram contra os lapsis que
negavam a fé e após as perseguições retornavam à Igreja sem quaisquer contrariedades. Com
exceção de Cipriano de Cartago, Pai latino da Igreja, e Tertuliano, os bispos dos séculos II e III não
pareciam se preocupar com tal situação: corrente herdada por Eusébio. Eusébio via nestas objeções a
necessidade de depreciar os Montanistas, porquanto não estavam enquadrados nas pretensões que
assumiram os bispos em fase de descaminho. Logo, a inferência eusebiana é suficiente para
assumirmos um papel de reprovação da direção tomada.

De contrapartida, Tertuliano vem trazer alento à concepção do Montanismo como vertente cristã.
Pelas posições que o Pai latino da Igreja adotou diante das heresias, examinando-as cuidadosamente
à luz das Escrituras e argumentando solidamente, verificamos que suas ações cooperam para
entendermos que antes de ele adentrar em campo montanista prestou-se ao exame de suas
motivações e convicções. Ele não aderiu ao movimento intempestivamente. Ele esquadrinhou e
percebeu que ambos estavam alinhados nos mesmos propósitos. Para muito além do rigorismo que
alguns autores tentam incutir para explicitar suas razões de adesão, Tertuliano verificou que aquele
movimento cumpria com um retorno às origens, comportamento que sua comunidade tinha
abandonado. Tertuliano aderiu ao movimento Montanista em 207 e, possivelmente, em 220 afastou-
se e logo em seguida morreu. O que importa mencionar foi o tempo de permanência entre os
seguidores de Montano: treze anos (tempo significativo no qual contrariou os psíquicos – termo
utilizado contra os adeptos da Igreja geral da qual Eusébio fez parte). À vista disso, será que das
exposições de estudiosos de Tertuliano não concluiremos que esse cristão era de fato ortodoxo?
Sendo ele ortodoxo, ficaria tanto tempo em um grupo heteroxo, caso o fossem os Montanistas? Não
teremos, pelos menos a partir de agora, uma sensata colocação para nos desvencilharmos do estigma
perpetrado por Eusébio de Cesareia?

Agora, gostaríamos de mencionar cinco observações de Hans Von Campenhausen sobre a conduta
de Tertuliano para que através delas façamos um gancho com sua adesão ao movimento Montanista.
Diz-nos o autor que Tertuliano “aderiu a esta por toda a sua vida. Ele a conhecia profundamente”.
São as Escrituras o motivo dessa afirmação de modo que não temos muito o que refletir, pois está
expresso que Tertuliano tinha suas convicções fundamentadas somente nas Escrituras Sagradas. Era
ela o único instrumento confiável para lhe fazer percorrer os caminhos orientados pelo Senhor. Ele
combatia “os hereges e os enganadores da Igreja”. Por conhecer muito bem as Escrituras tinha o
poder de perscrutar o ideal herético. Lutava com vigor contra o herege, mas de forma retórica, nunca
agressiva, sempre pacífica. Conseguia identificar de longe uma semente de erro e logo a combatia,
antes que crescesse e despertasse para o mal. Desta maneira, podemos concluir que Tertuliano não
identificou nem semente nem coluna de heresia entre os Montanistas. É uma conclusão óbvia e
sensata. A razão foi porque ele “retém os seus golpes por não querer condenar alguém sem uma
cuidadosa investigação”. Nada precisamos falar, pois já discorremos sobre este quesito. O próximo
ponto demonstra seu equilíbrio uma vez que “não se tornou nada além do que sempre foi”.
Equilíbrio passa também a ser sintonia já Tertuliano não adentraria numa comunidade que não
estivesse em harmonia com suas mesmas considerações dos Evangelhos e das epístolas apostólicas.
Para ele, o “Paracleto nunca muda as antigas doutrinas da Igreja”, assim, o que Montano, Maximila e
Priscila apresentaram nada mais era do que uma rememorização da doutrina firme estabelecida pelos
Apóstolos e profetas, confirmada pelo Espírito na vida de homens e mulheres consagrados.

Infelizmente, muitos estudiosos e leitores acreditam que os Montanistas foram exatamente o que foi
notificado no começo de nosso texto: uma heresia; mas há uma grande diferença entre ser um
movimento herege e ser um movimento intencionado em voltar ao padrão da Igreja Primitiva,
distintamente da corrente geral que culminou com a institucionalização, formando o que
conhecemos hoje como o catolicismo romano (como diria o ex-padre Aníbal Pereira dos Reis, a
grande babilônia citada em Apocalipse). Portanto, a aspiração de retorno aos antigos padrões
bíblicos é o grande diferencial que torna a Nova Profecia um movimento autenticamente cristão e
distinto, porquanto não foi dado a inovações nem a modificações. Deste modo, não podemos deixar
de considerá-lo como o remanescente fiel da Igreja Primitiva do seu tempo.

Referências
Baycer Junior, Ivan. Adversvs Valentinianos: tradução da obra e análise dos mecanismos retóricos
empregados por Tertuliano em defesa da proto-ortodoxia. Dissertação (mestrado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2013.

Campenhausen, Hans Von. Os Pais da Igreja – a vida e a doutrina dos primeiros teólogos cristãos.
Rio de Janeiro: CPAD, 2005.

Gonzalez, Justo L. Uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos gigantes. São Paulo: Edições
Vida Nova, 1988.

Podolak, Pietro. Tertuliano. São Paulo: Edições Loyola, 2010.

Tertuliano. “Prescripciones” contra todas las herejías. Madrid (España): Editorial Ciudad Nueva,
2001.

Heládio Santos é pastor da Igreja Batista Moriá em Fortaleza/CE. Bacharel em Ciências Sociais
(UNIFOR), especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem (UFC) e em Teologia Histórica e
Dogmática (FAERPI). É autor do livro "Montanismo e os profetas catafrigas: Uma análise contra-
hegemônica da história do movimento montanista."

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