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Conflitos e

Contradições na
História
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André Ricardo Valle Vasco Pereira
Rossana Gomes Britto
Ueber José de Oliveira
Vitor de Angelo
Rafael Cerqueira do Nascimento
Graziela Menezes de Jesus

Conflitos e
Contradições na
História:
Anais do XI Encontro de História

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Bruno César Nascimento

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Bruno César Nascimento

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Mulher com flor em manifestação contra guerra do Vietnã
Washington DC, 1967 - Marc Riboud

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


C748
Conflitos e contradições na história: anais do XI Encontro de História/
André Ricardo V. V. Pereira [et al.]. (orgs.) . Serra, ES: Editora Milfontes,
2017.
372p.

ISBN: 978-85-94353-02-3

1. Conflitos. 2. Contradições. 3. História. 4. ANPUH-ES. 5. Encontro


de História I. PEREIRA, André Ricardo V. V. II. BRITTO, Rossana Gomes.
III. OLIVEIRA, Ueber José. IV. ÂNGELO, Vitor. V. NASCIMENTO, Rafael
Cerqueira do. VI. JESUS, Graziela Menezes. VII. Título.

CDU: 981
SUMÁRIO

Apresentação............................................................................7
O Direito como matriz esclarecedora...............................9
Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza

Polícia e clientelismo: o uso político do cargo de


subdelegado (1971-1989).......................................................23
Amarildo Mendes Lemos

Elites na capitania do Espírito Santo: uma análise da


sua composição e atividades econômicas........................41
Anna Karoline da Silva Fernandes

Institucionalização do indigenismo no México: O


congresso de Pátzcuaro e o fortalecimento da
antropologia...........................................................................59
Caroline Faria Gomes

A estatização da Estrada de Ferro Leopoldina sob a


ótica do movimento sindical (1951-1953).........................73
Celio Teixeira Alves Gusmão

Marketing político, estratégias de campanha e


pesquisas eleitorais...............................................................95
Darlan Silveira Campos

“A Verdade sobre a Central brasileira”: O campo


político e a esfera pública capixaba de 1940 – 1949....107
Douglas Edward Furness Grandson

A Primeira Onda de Nacionalismo: O Cotidiano Japonês


durante a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) nos escritos
de Lafcadio Hearn................................................................125
Edelson Geraldo Gonçalves
O surgimento da imprensa periódica no Espírito Santo
e as transformações na vida política no século XIX 137
Fernanda Cláudia Pandolfi

Políticas públicas para a zona rural: Serviço Social


Rural e as leituras conservadoras do papel do Estado
(1951-1952)...............................................................................149
Irlan de Sousa Cotrim

Defensores da Ordem e Conciliadores da Nação: a


atuação da imprensa liberal conservadora no processo
de emancipação política da América Portuguesa (1821)
167
Jorge Vinícius Monteiro Vianna

Disputas sobre a morte e o morrer no imaginário


oitocentista capixaba: os relatórios de presidente de
província como fonte de pesquisa...................................185
Júlia Freire Perini

Tribunal do Júri: competência para apreciação de


crimes eleitorais no Brasil (séc. XIX).............................197
Lara Ferreira Lorenzoni

As perspectivas de estudo sobre o Partido Trabalhista


Brasileiro capixaba (1945 – 1964) sob os dilemas de
Angelo Panebianco e contribuições de outros (as)
estudiosos (as) do trabalhismo........................................215
Lucian Rodrigues Cardoso

Cairu na condição de Censor Régio: contribuições para


o fortalecimento do Poder Real.....................................231
Marcela Portela Stinguel

A Vigilância da Polícia Política Sobre os Professores


da Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo no Ano de
1979...........................................................................................243
Márcio Gomes Damartini
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

A construção da nação no pensamento de Edgard


Roquette-Pinto ....................................................................265
Mariana Calazans Wanick

Os portuários nas páginas do jornal Folha Capixaba


(1954 – 1961).............................................................................283
Penha Karoline Pulcherio de Araújo

A afirmação da Ordem Imperial: Sabinos no banco dos


réus...........................................................................................303
Renan Rodrigues de Almeida

Perfil intelectual de Manoel Bomfim............................319


Ruth Cavalcante

Notas sobre o processo de expropriação das terras


indígenas das vilas de Nova Almeida e Santa Cruz (1850-
1889)..........................................................................................327
Tatiana Gonçalves de Oliveira

Por ser pobre e cativo: demandas aos governadores da


capitania do Espírito Santo para arbitrar relações
senhoriais...............................................................................343
Thiara Bernardo Dutra

Raízes brasileiras de Thomas Mann................................355


Wander Luiz Demartini Nunes

7
Conflitos e Contradições na História

8
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Apresentação

Estamos trazendo a público os Anais do XI Encontro Regional
da Associação Nacional de História, Seção Espírito Santo (ANPUH-
ES), que ocorreu em novembro de 2016, na Universidade Federal
do Espírito Santo. O tema do evento foi Conflitos e Contradições
na História. Além das comunicações livres e coordenadas, tivemos
a oportunidade de contar com três minicursos: sobre a redação de
textos científicos, pelo prof. Dr. Julio Bentivoglio (UFES); sobre
Cinema, História e Televisão, pela profa. Dra. Rossana Gomes
Britto (UFES); e sobre o controle social na Antiguidade bíblica e
no Medievo, pelo prof. Dr. Sergio Alberto Feldman (UFES) e pela
mestranda Anny Mazioli.
A ANPUH-ES se articulou com o Laboratório de Estudos
de História Política e das Ideias da UFES (LEHPI/UFES), que
trouxe, com recursos do Programa de Pós-Graduação em História
(PPGHIS/UFES), a profa. Dra. Regina Crespo, da Universidade
Nacional Autônoma do México (UNAM), para um debate com o
prof. Dr. Antonio Carlos Amador Gil (UFES) sobre as resistências
na América Latina, materializando uma das atividades do convênio
UFES/LEHPI com a UNAM/CIALC.
Em que pese a variedade de abordagens e questões trazidas
à baila em todas as atividades desenvolvidas, como é, aliás, padrão
nas ações da ANPUH-ES, todas, de alguma forma, tocaram no tema
central, que reflete não só uma das feições da pesquisa em História
como também salta aos olhos na conjuntura de alta polarização
ideológica na qual nos encontramos na atualidade. Neste sentido,
a abertura do Encontro contou com a “prata da casa”, os professores
Drs. Ueber José de Oliveira, Vitor Amorim de Angelo e André R. V.
V. Pereira, debatendo a questão: Houve golpe no Brasil em 2016? E,
a conferência de encerramento, proferida pelo prof. Dr. Francisco

9
Conflitos e Contradições na História

Carlos Teixeira da Silva, abordou o problema da relação entre Islã,


guerra e terrorismo na contemporaneidade.
Seguem-se, então, 23 textos de comunicações livres e/ou
coordenadas que oferecemos a todos como fonte de informação,
análise e crítica, elementos que se encontram tão em falta no Brasil
e no mundo no qual vivemos. Na atual gestão, inauguramos um
novo site da entidade, desta vez hospedado no domínio da ANPUH
Nacional (http://www.es.anpuh.org/). Ali está inserido este volume
de Anais, no formato de e-book, com o fito de democratizar o acesso.
Esperamos, desta forma, que ele cumpra a sua função.

André Ricardo Valle Vasco Pereira


Diretor da ANPUH-ES – Gestão 2015/17

10
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

O Direito como matriz esclarecedora


Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza1

O juiz de Paz Weberiano


O Direito possui um papel central na visão de Weber no
que tange à explicação do surgimento do capitalismo no Ocidente
do século XVIII. Entende Max Weber ser esse capitalismo aquele
baseado na “organização industrial racional, voltada para um
mercado regular e não para as oportunidades especulativas de lucro,
tanto políticas como irracionais,” possuindo ainda uma “separação
dos negócios da moradia da família, fato que domina completamente
a vida econômica e, estritamente ligada a isso, uma contabilidade
racional” (WEBER, 2001, p.7).
Weber relata assim que não apenas fatores técnicos da
ciência moderna foram determinantes para que o capitalismo se
desenvolvesse no Ocidente, mas a própria noção de racionalidade
é essencial para o entendimento desse fenômeno. Racionalidade
essa que existe na organização da indústria, na contabilidade
e nas relações jurídicas. Nesse sentido, um sistema jurídico e
administrativo racional é fator essencial para o surgimento de um
capitalismo com as características descritas, uma vez que
o moderno capitalismo racional não necessita apenas dos meios
técnicos de produção, mas também de um sistema legal calculável
e de uma administração baseada em termos de regras formais. Sem
isso, o capitalismo aventureiro e de comércio especulativo e todo
tipo de capitalismo politicamente determinado seriam possíveis,
mas não o empreendimento racional da iniciativa privada, com
capital fixo e cálculos certeiros (WEBER, 2001, p.9).
Mas o que seria um sistema jurídico racional? Weber associa a
racionalidade com a abstração dos conceitos jurídicos, em oposição
a uma solução casuística, que ele chama de formal. Essa última é a
solução empregada no sistema do Common Law anglo-saxão, por
exemplo, caracterizado pelo domínio de práticos, principalmente
advogados. Weber explica:
1 Doutorando PPGHIS-UFES.

11
Conflitos e Contradições na História

Mas a prática jurídica também não procurava a sistemática


racional, mas a criação de esquemas de contratos e queixas
praticamente úteis, orientados nas necessidades concretas,
tipicamente repetidas, dos interessados no direito. Produziu,
por isso, aquilo que, no âmbito romano, se chamava
“jurisprudência cautelar” e, além disso, por exemplo, o
emprego de ficções processuais, que facilitava a classificação e
decisão de casos novos pelo esquema de casos já conhecidos,
e semelhantes manipulações práticas. Dos motivos de
desenvolvimento a ela imanentes não nasce nenhum ‘direito
racionalmente sistematizado, nem uma racionalização do
direito em geral, mesmo que seja em sentido muito estreito, pois
os conceitos por ela criados estavam orientados por situações,
de fato materiais, palpáveis e correntes na experiência cotidiana
e, nesse sentido, formais; constelações que ela delimitava
convenientemente entre si segundo características externas e
unívocas e cujo número ampliava, quando necessário, pelos
meios já mencionados. Não eram conceitos gerais formados
por abstração do sensível, por interpretação lógica do sentido,
generalização e subsunção, mas empregados silogisticamente
como normas (WEBER, 1999b, p. 87).
Essa constatação não significa para Weber que o Direito
moderno – o Direito que deu origem ao capitalismo moderno
– seja puramente racional – no sentido apresentado. De fato,
Weber descreve, em sua sociologia compreensiva – ou seja, numa
sociologia baseada na análise histórica –, a história em uma vertente
não evolucionista, em que não há um rumo unívoco, mas ricas
variações. Assim, as formas puras são um instrumento didático e
não uma realidade histórica. Segundo Weber, o mais importante é
lembrar que essas variações nas formas do Direito ocorrem muito
mais em consequência de fatores políticos do que econômicos.
Essa é uma visão totalmente oposta a uma explicação marxista do
processo histórico, uma vez que, para Marx, o direito faz parte de
uma superestrutura determinada pela infraestrutura, formada pela
economia.
Nas palavras de Weber:
O fato de que as etapas de racionalização, aqui teoricamente
construídas, na realidade histórica nem sempre seguem uma
à outra precisamente na ordem da racionalidade crescente,
e nem sempre se realizaram todas elas ou sequer existem

12
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

hoje em dia nem mesmo no Ocidente, e que, além disso, as


causas da forma e do grau da racionalização do direito foram
historicamente — como já mostra nosso breve esboço — de
natureza muito diversa, tudo isso será ignorado ad hoc neste
lugar, onde importa apenas a constatação dos traços mais
gerais do desenvolvimento. Queremos somente lembrar que
as grandes diferenças no desenvolvimento estavam (e ainda
estão) principalmente condicionadas, em primeiro lugar, pelas
diferenças nas relações de poder políticas [...] (WEBER, 1999b,
p.143-144).
Esboçada essa base teórica geral, é possível explicar o que
seria o juiz de paz weberiano. Esse ator possui como característica
marcante o fato de ser leigo. Para Weber, a consequência dessa
característica é uma justiça não formal, uma vez que o leigo, por
carecer de formação universitária, não aplicaria conceitos gerais
e subsunção lógica da norma, agindo, assim, de forma casuística.
Weber explica:
O pensamento jurídico do ‘leigo’ está ligado, por um lado, a certas
palavras. Sobretudo costuma ele tornar-se um rábula palavroso
quando acredita argumentar ‘juridicamente’. E, além disso, é
um hábito natural dele buscar a conclusão do detalhe a partir de
outro detalhe: a abstração jurídica do ‘especialista’ lhe é alheia.
Em ambos os aspectos, porém, como vimos, tem parentesco
com a arte da jurisprudência empírica. Pode ser-lhe pouco
simpática — nenhum outro país do mundo conhece queixas e
sátiras tão amargas contra as práticas jurídicas dos advogados
quanto a Inglaterra —, e as formas de construção dos juristas
cautelares podem ser-lhe completamente incompreensíveis: o
que em mais alto grau é o caso também na Inglaterra. Mas sua
peculiaridade, de princípio, lhe é compreensível; pode ‘revivê-
la’ e conformar-se com ela contratando de uma vez por todas e
pagando — como o faz todo homem de negócios inglês — um
confessor jurídico para todas as situações da vida. Por isso, não
tem, diante do direito, exigências e esperanças que possam ser
frustradas por construções lógico-jurídicas (WEBER, 1999b,
p.150).
Ao comentar sobre a jurisdição de paz na Inglaterra, Weber
descreve-a como patriarcal e irracional, o juízo das causas de
bagatela, formando, assim, o lado oposto da racionalidade jurídica
alcançada no continente europeu. Weber também descreve a Justiça
formada por jurados que, assim como os Juízes de Paz, são leigos. Os

13
Conflitos e Contradições na História

jurados funcionariam como uma espécie de oráculo irracional com o


propósito de alcançar uma resposta jurídica às demandas de classes
menos privilegiadas. Contra o Júri, Weber levanta dois argumentos.
Em primeiro lugar, ele destaca sua parcialidade, em oposição a uma
objetividade dos especialistas. Os jurados seriam assim objeto de
luta de classes, do modo como ocorria na antiguidade romana. Em
segundo lugar, Weber relata a falta de possibilidade de recursos
de suas decisões. Contra isso, os juristas especializados costumam
exigir possibilidade de revisão ou, ao menos, uma decisão colegiada
com membros leigos e especialistas. Weber, entretanto, reconhece
que nem a Justiça especialista está livre de influências políticas e que
os anseios das classes trabalhadoras não seriam necessariamente
atendidos dentro de um sistema racional do Direito.
Ao discutir o poder patriarcal, Weber credita à criação do
cargo do juiz de paz um modo de self-government (WEBER, 1999a,
p. 249). O poder patriarcal é relacionado com oikos, ou seja, como
numa grande casa. Nesse sentido, o juiz de paz pertenceria a uma
classe estamental, a quem foram delegadas certas incumbências
referentes à gestão de uma comunidade. Seria assim um funcionário
do soberano, residente no distrito em que atuaria. Sua função estava
relacionada à pacificação e à segurança. O policiamento formava
assim o núcleo de suas atividades. O autor destaca que o juiz de paz
inglês2 era nomeado pela Coroa, apesar de infrutíferas tentativas de
ser eleito pelos próprios honoratiores3 locais (WEBER, 1999a, p.
279). Nem sempre remunerado, o cargo era sinônimo de prestígio
e poder social, sendo essas as razões que levavam a disputas por
sua ocupação. Em termos locais, tudo era decidido por esses juízes,
ressaltando que os assuntos mais importantes deveriam ser decididos
de forma colegiada. Poderia até receber instruções da Coroa, mas
essas funcionam como aconselhamentos e não como determinações.
O juiz de paz inglês tornou-se responsável, ainda, em
2 Weber discute o juiz de paz tomando como base o caso inglês. Nesse sentido,
uso como sinônimas as expressões juiz de paz inglês e juiz de paz weberiano.
3 Para Weber, os honoratiores – portadores de honra - são aquelas pessoas
dotadas de conhecimento especializado.

14
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

certo momento por atividades administrativas; essas atividades,


entretanto, não eram desenvolvidas de forma burocrática, mas sim
de modo “repressivo, não-sistemático, reagindo, em regra, somente
a graves infrações diretamente perceptíveis ou ao apelo de um
prejudicado”(WEBER, 1999a, p. 281).
Desse modo, é possível chegar a uma definição do juiz de paz
weberiano como sendo o leigo que pratica uma Justiça casuística, sem
observância de preceitos codificados, cuja jurisdição está circunscrita
em situações consideradas de menor importância, de natureza
jurisdicional e administrativa; possui justificação de existência na
busca de soluções jurídicas para as classes mais desprivilegiadas. É
portador assim de um poder patriarcal, derivado da Coroa. Em suas
decisões estariam ausentes aspectos de segurança jurídica, uma vez
que as toma de modo irracional – caso a caso –, não sendo passíveis,
muitas vezes, de recurso.

O juiz de paz Imperial


A Constituição Política do Império do Brasil, do ano de 1824,
previu, em seu artigo 162, a existência de juízes de paz eleitos, que
seriam responsáveis pela reconciliação entre as partes litigantes, sem
a qual nenhum processo teria início. A Constituição ainda previu a
possibilidade do aumento do rol de competências desses juízes por
meio de lei.
Em 1827 foi decretada a Lei de 15 de Outubro, criando um
juiz de paz para cada freguesia ou capela curada.4 O artigo 5º da
Lei estabelecia uma longa lista de funções que seriam exercidas
pelos juízes de paz, incluindo o julgamento em causas civis e de
posturas, além de atribuições policiais5. Em 1832, com a publicação
do Código de Processo Criminal, essas funções foram alargadas,
4 O artigo 1º dessa lei previa que o juiz de paz atuaria nos distritos, assim que
fossem criados; a criação desses distritos foi regulada pelo artigo 2º do Código de
Processo Penal de 1832.
5 Algumas dessas atribuições eram: a realização do auto de corpo de delito,
concessão fiança, manutenção da ordem, prisão dos bêbados e delinquentes e
interrogatório dos detidos.

15
Conflitos e Contradições na História

principalmente com a previsão do julgamento de crimes cuja pena


não excedesse a multa até cem mil réis, prisão, degredo, ou desterro
até seis meses, com multa correspondente à metade deste tempo, ou
sem ela, e três meses de casa de correção, ou oficinas públicas.
O juiz de paz deveria ter a qualidade de eleitor6 e sua eleição
era disciplinada pela Lei de 1º de Outubro de 1828, ocorrendo de
quatro em quatro anos. O artigo 3º da Lei definia que caberia aos
votantes fazer a escolha sobre quem seria o juiz de paz, podendo
seu voto ser enviado por carta. A listagem desses votantes era feita
pelo próprio juiz de paz, cabendo recurso definitivo à Assembléia
Eleitoral7 pelo cidadão. O Código de Processo Criminal de 1832
definia que seriam eleitos quatro juízes de paz para o quatriênio, que
serviriam durante um ano, cada um, sucessivamente.
O aparecimento do Juízo de Paz no Brasil deu ensejo a uma
série de debates e desentendimentos entre muitas autoridades e
intelectuais8 do Império, como deputados e juristas. Esses debates
giravam em torno de como essa instituição deveria funcionar e quais
responsabilidades deveria ter9. A figura de juiz de paz absorveu,
naquele momento, muitas das funções que antes eram exercidas por
outras autoridades judiciais, como o juiz ordinário, juiz de vintena
e o juiz almotacel10, tornando seu o rol de competência e atribuições
6 Essas qualidades são definidas pelo artigo 94 da Constituição de 1824.
7 Essas assembléias eram disciplinadas pelo Decreto de 26 de março de 1824,
sendo presidida pelo juiz de fora ou ordinário.
8 Essas discordâncias foram evidenciadas em documentos como os anais da
Câmara de deputados, livros de doutrina jurídica e decisões de Governo.
9 O aviso nº 358 de 18 de outubro de 1834, por exemplo, fornece esclarecimentos
sobre a alçada criminal do juiz de paz.
10 (a) Juiz ordinário, eleito de forma indireta a cada três anos, tinha autoridade
sobre questões civis limitadas pelo valor da causa e, durante o século XVIII, foram
substituídos nas cidades mais importantes pelos juízes de fora. Identificados com o
período colonial, eram acusados de falta de preparo técnico, patronato em assuntos
de interesse local e abusos eleitorais; (b) Juiz de vintena, autoridade muito restrita,
sem autoridade penal, ou civil sobre bens de raiz. Nomeados pelos conselhos
municipais em vilarejos localizados a uma légua ou mais da sede da cidade/condado,
com vinte ou mais famílias. Foi totalmente substituído pelo juiz de paz; (c) Juiz
de almotaçaria, ou almotacel, cargo ocupado por um mês consecutivo somente,
objeto de burlas, cuja função era colocar em vigor as regras prescritas pelo conselho
municipal (FLORY, 1986, apud BRANCO, 2008).

16
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

deveras extenso (FLORY, 1981, p. 55).


Entretanto, em 1841, essa situação foi alterada, com a
promulgação da Lei nº 261, em 3 de dezembro daquele ano,
reformando o Código do Processo Criminal. Com ela, praticamente
todas as atividades do juiz de paz desenvolvidas em âmbito criminal
foram transferidas para os chefes de polícia e delegados11, sendo
ressalvadas, conforme artigo 65 do Regulamento nº 120 de 31 de
janeiro de 1842, as atribuições de fazer pôr em custodia o bêbado,
evitar as rixas, fazer que não haja vadios, nem mendigos e corrigir
os bêbados, por vício, turbulentos, e meretrizes escandalosas, que
perturbam o sossego público. No que tange à jurisdição civil, o
artigo 2º do Regulamento nº 143 de 15 de março de 1842 garantia
a permanência da competência do juiz de paz12; e, segundo o
artigo 1º do mesmo Regulamento, também permanecia sua função
conciliadora.
Em relação às eleições dos juízes de paz, algumas alterações
ocorreram com a Lei de 19 de agosto de 1846. A lista dos votantes
seria elaborada agora por uma Junta de qualificação, presidida pelo
juiz de paz mais votado na eleição anterior. As reclamações sobre a
lista seriam recebidas pela Junta, que daria decisão motivada. Caberia
ainda recurso para o Conselho Municipal de recursos, composto
pelo juiz municipal, presidente da Câmara Municipal e o eleitor mais
votado da paróquia cabeça do município; e, finalmente, seria possível
último recurso para a Relação do distrito. A Lei ainda determinava
que, para ser eleito, o juiz de paz deveria residir no distrito; os
votantes deveriam votar pessoalmente; e as eleições poderiam ser
anuladas pelo Governo central em caso de irregularidades.
Em 1871, em 20 de setembro, ocorreu uma reviravolta na
legislação referente aos juízes de paz por ocasião da promulgação
da Lei nº 2.033, reformando o Judiciário. O juiz de paz, de acordo
11 Incluídas em matéria criminal estavam as infrações às posturas municipais,
que podiam culminar em pena de privação de liberdade. Seu julgamento era
disciplinado pelo Código de Processo Criminal de 1832, artigos 205 a 212.
12 O julgamento proferido pelo juiz de paz, de acordo com esse artigo, era feito
de modo definitivo, ou seja, sem recursos.

17
Conflitos e Contradições na História

com o artigo 2º, recebia de volta sua competência referente ao


julgamento das infrações às posturas municipais; segundo o mesmo
artigo, também voltava a conceder fiança. Em matéria civil, o artigo
22 aumentou sua alçada de 16 mil para 100 mil réis13. Em 1879, por
meio do Decreto nº 2827 de 15 de março, em seus artigos 69 a 82,
era instituída nova competência para o juiz de paz: julgar causas no
âmbito do contrato de locação de serviços, que poderiam ensejar
penas até de privação de liberdade.14
As eleições dos juízes de paz também foram alteradas nesse
período. O Decreto 2.675 de 20 de outubro de 1875 definiu que
a Junta eleitoral teria membros eleitos e a lista de votantes por ela
produzida deveria incluir idade, estado, profissão, filiação, domicílio
e renda do votante, além de indicar se ele é alfabetizado. Os recursos
agora não seriam julgados pelo Conselho Municipal, mas pelo juiz de
direito. Surgia o título de qualificação, que deveria ser apresentado
na hora da votação. Determinava ainda o Decreto que, para ser
eleito, o juiz de paz deveria ter, ao menos, dois anos de residência
no distrito; e caberia ao juiz de direito anular as eleições em caso de
irregularidades.
Em 1881 foi publicada a Lei nº 3.029 de 8 de janeiro,
reformando a legislação eleitoral. Uma das principais alterações
nesse momento foi a extinção da figura do votante, tornando todas
as eleições diretas15. A lista dos eleitores seria preparada pelos juízes
municipais e organizada pelo juiz de direito, que julgaria diretamente
as queixas referentes às listas, cabendo recurso à Relação. A Lei ainda
definia que o título de qualificação passaria a receber o nome de
título de eleitor, convertendo em crime a utilização de título alheio.
Outros crimes também foram previstos na Lei, alguns com a pena de
privação de voto ativo e passivo16 por determinado período.

13 De suas decisões em matéria civil caberia agora recurso ao juiz de direito.


14 Essa lei também previa recurso para os juízes de direito.
15 Vale ressaltar que as eleições para juiz de paz sempre foram diretas; essa
mudança repercutiu mais diretamente nas eleições em nível nacional.
16 Voto ativo refere-se à ação de votar enquanto voto passivo ao direito de ser
votado.

18
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Após a reforma judiciária de 1871 e a eleitoral de 1881, as


características do juiz de paz seriam modificadas somente com a
proclamação da República em 15 de novembro 1889. De fato, esse
evento alterou todo o funcionamento do Poder Judiciário, uma vez que
as bases do ordenamento jurídico brasileiro foram estruturalmente
transformadas pelo princípio federativo. O Decreto nº 1 de 15 de
novembro de 1889 estabeleceu, em seu artigo 3º, a soberania dos
Estados-membros, no sentido de estabelecer seu próprio governo,
suas leis e seu sistema judiciário. Nesse cenário, o Estado brasileiro
passaria a contar com uma esfera judiciária em âmbito estadual e
outra em âmbito federal. Pela leitura do artigo 60 do Decreto nº 510,
de 22 de junho de 1890, que instituiu a Constituição dos Estados
Unidos do Brasil, fica evidente essa separação, pois determina que
a Justiça Federal não poderia interferir nas decisões das Justiças dos
Estados.
Caberia agora aos estados definir sobre a manutenção dos
juízos de paz em seu território, conferindo-lhes suas competências.
Isso não significa que houve uma ruptura brusca em relação ao
juízo; as leis do Império podiam ser recepcionadas e alteradas por
cada estado-membro da Federação.
Dada uma descrição legal do juiz de paz imperial, é possível
transpassá-la e adentrar na busca pelo significado dessa instituição
dentro do mundo jurídico do Oitocentos. Bartolomé Clavero (2007),
ao estudar a noção de Poderes na construção do constitucionalismo,
associa o Júri a um direito antecedente à própria noção de três
poderes, porque o Júri, juntamente com o Parlamento, forma a base
constitucional de garantia dos direitos. Os poderes – Executivo,
Legislativo e Judiciário, por outro lado, passaram a ocupar um
espaço que anteriormente era ocupado pelo direitos, justamente por
conta da supressão do Júri. Creio ser possível tecer um raciocínio
semelhante para o juiz de paz imperial, uma vez que, assim como Júri,
formam instituições liberais defendidas por um mundo iluminista.
Ao se analisar o discurso de senador José Thomaz Nabuco de
Araújo, em 20 de junho de 1871, em que fazia apontamentos sobre

19
Conflitos e Contradições na História

a reforma judiciária que culminou na Lei 2.033 do mesmo ano, é


possível entender em que sentido o juiz de paz imperial pode ser
concebido como garantia constitucional do cidadão. Nesse discurso,
o senador debate a liberdade provisória e defende sua ampliação,
a exemplo do direito inglês, em que os crimes mais leves possuem
fiança definida pelo juiz de paz. O objetivo almejado pelo senador
é coibir as prisões abusivas, em que os réus respondem presos e sua
liberdade provisória em nada atrapalharia o andamento processual.
Somente a autoridade judicial competente, e não a autoridade
policial, poderia decidir sobre a prisão processual, pois só ela poderia
julgar sua necessidade. Essa autoridade competente, nos pequenos
crimes, é justamente o juiz de paz. Para o senador, o juiz de paz é a
justiça ao pé da porta do cidadão, consagração da revolução francesa
de 1789 (ANAIS DO SENADO, 1871, vol. 11).
A partir dos apontamentos feitos, é possível definir o juiz
de paz imperial como sendo o cidadão eleito responsável pelo
reconciliamento das partes litigantes, necessário para o início de
qualquer ação judicial. Possui ainda competência na esfera criminal,
eleitoral e civil, sendo possível em alguns casos recursos para juízes
leigos e especializados. Em termos ontológicos, o juiz de paz imperial
é um direito, no sentido de ser uma conquista liberal e uma garantia
da concretização do conceito de Justiça oitocentista.

Análise Comparativa entre o juiz de paz weberiano e o juiz


de paz imperial
Antes de iniciar uma análise comparativa entre os dois
conceitos de juiz de paz apresentados, é preciso enfatizar que essa
comparação só pode ser feita de modo indireto, uma vez que foram
construídos usando abordagens distintas. Como dito anteriormente,
o conceito weberiano parte de uma sociologia compreensiva,
ou seja, de uma análise comparativa do processo histórico em
busca da solução de um problema; enquanto o segundo conceito
aproxima-se mais de uma história conceitual do político como
descrita por Pierre Rosanvallon (2002), em que uma instituição é

20
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

analisada contextualmente, vista, assim, como uma história em si


mesma17. Contudo, essas formas de abordagem se aproximam na
medida em que partem da premissa de que a história é uma ciência
contextualizada, além de utilizarem a comparação como método
fundamental.
É importante destacar também que o conceito weberiano
nasceu de uma observação da realidade inglesa, onde funcionava o
Common Law, muito diferente da realidade do Brasil Império, cuja
herança portuguesa trouxe o Civil Law. Por conta disso, a primeira
diferença a ser apontada entre os dois conceitos é o fato de o juiz
de paz imperial ter sua atuação pautada na legislação, enquanto o
juiz de paz weberiano desconhece majoramente a lei como fonte do
direito, pois as instruções que recebe da Coroa estão mais próximas
de serem conselhos do que ordens, como se mencionou.
Não se pode dizer que o juiz de paz imperial é um juiz de
bagatela, pois sua jurisdição, embora em constante modificação, é
sempre ampla, principalmente em matéria civil. Ademais, mesmo
em matéria criminal, o juiz de paz imperial sempre desempenhou
algum rol de funções, seja mais amplo ou mais restrito. É verdade
que o juiz de paz weberiano também é considerado central ao
se adotar uma perspectiva local, mas estava longe da figura em
discussão no Brasil em termos de sua amplitude jurisdicional.
Afirmo isso em virtude do fato de o instituto ter sido intensamente
debatido e modificado ao longo do Império. Weber, por outro lado,
coloca que o juiz de paz inglês como o único juiz disponível para as
populações desprovidas de recursos financeiros, enquanto as elites
dirigiam-se aos tribunais reais em Londres (WEBER, 1999a, p.281).
Essa dinâmica do Common Law não poderia existir no Brasil, uma
vez que a jurisdição do juiz de paz imperial – assim como dos outros
juízos – era determinada por lei, não havendo possibilidade de
escolhas.
São outras duas diferenças, entretanto, que considero as mais

17 Nessa perspectiva, a Justiça de Paz não teria uma história, mas seria em si
uma história.

21
Conflitos e Contradições na História

marcantes nas duas definições. Em primeiro lugar, destaco o papel


central do juiz de paz imperial dentro do ordenamento jurídico
do Império, uma vez que todo processo teria início somente após
tentativa de reconciliação feita por esse juiz. Em segundo lugar,
destaco o fato de o juiz de paz imperial ser eleito, fazendo com
que sua importância não possa ficar restrita a um caráter jurídico,
mas também político. José Murilo de Carvalho, por exemplo, ao
referenciar Pimenta Bueno, destaca a função do juiz de paz imperial
dentro do próprio exercício da cidadania no Brasil do século XIX:
Pimenta Bueno acrescenta ainda, como direito político
importante, a participação direta no poder judicial possibilitada
pelo exercício da função eletiva de juiz de paz. A Constituição
de 1824 previa a existência de um juiz de paz, eleito pelo voto
direto, em cada distrito do território nacional. A jurisdição
do juiz de paz variou ao longo do século mas em geral se
concentrava na resolução de conflitos pela conciliação e no
julgamento de pequenas causas (CARVALHO, 1996, p.341).
Assim, o juiz de paz imperial torna-se fundamental para
entender a própria noção de cidadania que se construía no Brasil
oitocentista. Ademais, seu cunho liberal aproxima-o da noção de
direito, no sentido de que o juiz de paz era forma de garantia contra
abusos de poder.
Em relação ao aspecto irracional associado ao juiz de paz
weberiano, não seria possível sua aplicação ao juiz de paz imperial,
uma vez que, mesmo sendo leigo, suas decisões deveriam ser pautadas
na legislação, utilizando-se, como os especialistas, de abstrações
jurídicas e silogismo lógico. É preciso, ademais, questionar até que
ponto a Justiça especializada é, por princípio, puramente racional em
suas decisões. A própria noção de uma decisão puramente racional
soa vacilante quando se lembra da característica social e transitória
dos ordenamentos jurídicos, de modo que toda segurança jurídica
deve sempre ser entendida como relativa e provisória, na medida em
que o Direito muda em compasso com a realidade na qual existe. Isso
não significa uma inadequação da abordagem adotada por Weber;
pelo contrário. Ao utilizar a ideia de uma racionalidade do Direito,
Weber está tentando chegar a uma resposta sobre o problema do

22
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

desenvolvimento do capitalismo no ocidente; funciona assim


como uma teoria, que busca fornecer respostas para uma pergunta
ainda não inteiramente respondida. A pergunta por mim feita – o
significado do juízo de paz para o Brasil Império– é diferente e, por
isso, enseja numa análise distinta. A obra de Weber, contudo, foi-
me fundamental para entender as particularidades desse juiz de paz
imperial, pois fornece farto material teórico-comparativo, além de
ser fonte secundária para o estudo da jurisdição de paz inglesa.

Conclusão
Como forma de conclusão deste trabalho, gostaria de explicar
a escolha do título O Direito como matriz esclarecedora. O que
quero dizer com a firmação de que o Direito pode ser usado como
matriz esclarecedora? É justamente nesse ponto que as abordagens
utilizadas para a definição dos dois conceitos apresentados de juiz
de paz se tocam. Isso porque as duas usam o Direito como fonte
para responder às perguntas propostas, sob a perspectiva de uma
história-problema. É exatamente nisso que consiste o uso do Direito
como matriz esclarecedora.
Em relação ao juízo de paz imperial, pude observar que esse
instituto revela muitos elementos do momento histórico em que
surgiu no início da nação brasileira: a busca pelo significado da
cidadania por meio dos direitos políticos, a crença em uma Justiça
eficiente acessível a todos e, principalmente, as dúvidas sobre as
escolhas políticas. Afinal, seria o juiz de paz uma faceta da disputa
de poder na nação nascente ou um órgão genuíno de jurisdição
popular? São opções-limite de uma resposta que, para ser alcançada,
necessita de pesquisa mais profunda. Seu resultado, provavelmente,
indicará algum ponto entre esses dois extremos.

Referências
ANAIS DO SENADO. Discursos. Volume 11. 1871.

23
Conflitos e Contradições na História

Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/


PQ_Pesquisar.asp. Acesso em: 1. out. 2016.
BRANCO, L. Juízes e eleições: entre o poder pessoal e o Estado
no Brasil do século XIX. Iniciação Científica, 2008. Disponível em
http://aquiembranco.blogspot.com/2010/05/juizes-e-eleicoes-
entre-o-poder-pessoal.html. Acesso em: 1. out. 2016.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: tipos e percursos.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.18, 1996.
CLAVERO, Bartolomé. El Orden de los Poderes. Madrid:
Editorial Trotta, 2007.
FLORY, T. Judge and Jury in Imperial Brazil 1808-1871.
Austin: University of Texas Press, 1981.
ROSANVALLON, Pierre. Por uma historia conceptual de
lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2002.
WEBER, Max. Estruturas e Funcionamento da Dominação.
In: Economia e Sociedade: fundamentos de uma sociologia
compreensiva. v. 2. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 1999a.
WEBER, Max. Sociologia do Direito. In: Economia e
Sociedade: fundamentos de uma sociologia compreensiva. Volume
2. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999b.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 2001.

24
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Polícia e clientelismo: o uso político do


cargo de subdelegado (1971-1989)
Amarildo Mendes Lemos1

O ano de 1989 foi um período de intensos debates e também


de intensificação de conflitos diversos no Brasil e no Espírito Santo.
O debate sobre a eleição direta para presidente, depois de 29 anos,
repercutiu, juntamente com as investigações e prisões relacionadas
ao crime organizado no Estado do Espírito Santo, no noticiário
capixaba. Nessa conjuntura foi extinto o cargo de subdelegado
contratado como trabalhador vinculado à Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) que foi criada em 1971, durante a ditadura militar,
pelo então governador Arthur Carlos Gerhardt.
A extinção do cargo e a exoneração de 197 subdelegados em
1989 não envolveu somente questões trabalhistas ou administrativas
sucedeu-se em uma conjuntura de queixas interpostas pela
Associação de Polícia Civil do Espírito Santo (APCEES), por meio
de seu presidente Custódio Serrati Castelani, que denunciava o uso
político do cargo de subdelegado e a degeneração dos nomeados
fortalecendo o crime organizado no Espírito Santo. O debate sobre os
subdelegados apareceu nos jornais depois de meses de investigações
realizadas pela Polícia Federal para o combate ao crime organizado
no estado. As operações policiais eram solicitadas inclusive pelo
Governador do Estado, Max de Freitas Mauro, o que demonstra
sinais de certa autonomia do aparato repressivo em relação ao
controle exercido pelo governo do Estado sobre a polícia capixaba.
Durante todo o ano de 1989 a Polícia Federal agiu no estado
do Espírito Santo. No conjunto das investigações, três grandes
operações merecem destaque: em fevereiro foi deflagrada a Operação
Alegoria, para combate ao tráfico de drogas e ao videopôquer, cujo
desenvolvimento chegou aos nomes de José Carlos Gratz e ao
delegado Cláudio Guerra; em setembro foi deflagrada a Operação

1 Instituto Federal de Ensino - Espírito Santo.

25
Conflitos e Contradições na História

Marselha, cujos alvos foram ladrões de carros e envolveu nomes


policiais em um esquema que estaria conectado ao Cartel de Medelín
da Colômbia, onde os carros seriam trocados por cocaína para ser
exportada; em outubro foi deflagrada a Operação Dinossauro,
que “estourou seis fortalezas do jogo do bicho, apreendeu vasta
documentação sobre a contravenção e teve como seu maior saldo a
detenção do bicheiro José Carlos Gratz”.2
Trataremos aqui de expor alguns aspectos da organização do
aparato repressivo no Espírito Santo por meio dos fatos narrados
em coberturas jornalísticas. Analisaremos nas matérias veiculadas
no noticiário o papel político desempenhado pelos subdelegados
no conjunto das relações sociais. Naquele contexto diversos
movimentos sociais e partidos políticos defendiam a ruptura com as
tradições oligárquicas e autoritárias presentes no regime que havia
sucumbido. Pretendia-se um reordenamento jurídico fundamentado
em princípios democráticos que promovessem uma modernização
do serviço público retirando o poder de clientela relacionado às
indicações para ocupar cargos na burocracia estatal. Dessa forma,
ao instituir a Polícia de carreira, a lei 3.400 de 1981, complementada
três anos antes pela lei 3.705, estabeleceu que, para ocupar cargo
comissionado, o candidato deve ser um policial concursado,
classificado na terceira categoria – último nível da carreira.
De acordo com a lei, na realidade não existe mais o cargo de
subdelegado. Indiferente ao preceito legal, o Governo do Estado
mantém uma política sistemática de nomear pessoas para o
exercício dessa função.3
Com fundamentos contrários à política tradicional clientelista,
a Constituição Estadual de 1989 incorporou os princípios de nossa
carta magna de 1988 e asseverou que a formação de quadros do
serviço público estadual deveria se realizar exclusivamente por
meio de concurso público. Contudo, em oposição à premissa desse
novo ordenamento jurídico, “a contratação de funcionários na área
da Polícia Civil foi iniciada em 1971, durante o governo de Arthur
2 CAMARGO fará sugestões contra crime. A Gazeta: Vitória, p.11, 10 out.
1989.
3 POLÍCIA denuncia governo de empreguismo. A Gazeta: 24 de setembro de
1989, p.31.

26
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Carlos Gerhardt Santos, e somente sustada a partir do governo de


Max Mauro,”4 que, após enfrentar muitas críticas ao uso político
da nomeação de subdelegados em seu governo durante o conflito
com a APCEES, determinou a exoneração de todos os subdelegados
contratados.

Modernização conservadora e reforma administrativa


A degeneração da polícia civil reforçava o controle da ordem
social e política pelas elites capixabas que atuava em consonância
com os imperativos da produção advindo do Grande Capital.
Conforme analisou a professora Maria da Penha Smarzaro Siqueira,
tanto a agricultura quanto o setor de serviços tendem a reproduzir
as condições criadas pela ação modernizadora, direta ou indireta,
da Aracruz Celulose, Petrobrás e CVRD no que diz respeito,
principalmente, à estrutura fundiária, relações de trabalho, gestão
empresarial e esquemas de incentivos e viabilização econômica. [...]
Desse modo há toda uma conversão do médio e grande proprietário
de terras em empresário rural, com uma diversificação tecnificada
de cultivos, apoiada por todo um esquema de incentivos fiscais,
com alta concentração de terras, em regime de assalariamento,
inclusive temporário, tudo vinculado às necessidades dos centros
de poder (SIQUEIRA, 2006, p. 13.)
Com baixa participação no conjunto da economia nacional,
diminuta população e representação parlamentar na Câmara dos
Deputados, o Espírito Santo encontrava-se em posição secundária
no quadro político nacional e os projetos locais permaneceram
subordinados à centralização levada a cabo pelos militares. Durante
o governo de Artur da Costa e Silva e de Ernesto Geisel, os militares
implementaram uma agenda que incluía o estado como parte das
políticas de modernização econômica do país. O território capixaba
foi, dessa forma, reintegrado no sistema econômico mundial. Além
do café, a produção industrial e o papel de corredor de exportação
(aproveitando posição estratégica em relação ao centro do Brasil e
suas estradas, ferrovias e portos) passaram a ocupar lugar na agenda

4 GOVERNO demitirá todos os policiais civis contratados. A Gazeta: Vitória,


p.16, 16 out. 1989.

27
Conflitos e Contradições na História

política local.
Apesar do golpe de 1964 ter sido legitimado, entre outras
coisas, pela crítica à corrupção e aos desvios na administração
pública promovidos pelas classes políticas, na Ditadura Militar, o
objetivo de realizar uma reforma administrativa no Espírito Santo,
fundamentada na “estrita observância do mérito”, como estava
contido no programa da Arena (GRINBERG, 2009, p. 67), não
alcançou a organização da Polícia Civil capixaba. Dessa forma, a
modernização econômica do Espírito Santo se fez acompanhar
de uma reforma administrativa promovida pelos governadores
Christiano Dias Lopes e Arthur Carlos Gerthardt que ao contrário
de superar o clientelismo da política tradicional capixaba manteve
condições para que ela assumisse o controle político local ao mesmo
tempo em que funcionava como “correia de transmissão” das
necessidades dos centros de poder.
Assim, observa-se que a ordem econômica do Governo
Christiano Dias Lopes seguiu as diretrizes formuladas pela
Federação das Indústrias do Espírito Santo – FINDES – e contidas
no Diagnóstico para o Planejamento Econômico do Espírito Santo.
Mais do que um estudo, para a esfera econômica, esse documento
passou a ser “o próprio plano de Governo de Dias Lopes, embora
este levantasse duras críticas à exportação de minério pelo porto
capixaba.” (VILASCHI, 2011, p. 65). Os incentivos criados com o
Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo (FUNRES) e o
Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (FUNDAP)
compensaram as elites locais e o “dirigismo econômico do Governo
Federal, em circunstâncias do Regime Autoritário, teve boa aceitação
no Espírito Santo, vindo a repercutir de forma positiva sobre as
estratégias traçadas pelo grupo de poder local” (VILLASCHI, 2011,
p. 75).
Vale ressaltar que a criação de incentivos fiscais e do
FUNDAP para promover a modernização econômica do Espírito
Santo se fez a partir de uma negociação com o Governo Federal que
somente concordou com a criação desses mecanismos utilizados

28
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

pelos empresários capixabas para promover o desenvolvimento


econômico local depois do consentimento dos estados do norte –
da SUDAM - e do nordeste – da SUDENE (VILLASCHI, 2011, p.
73). Dessa forma, para se obter a permissão dos governadores dessas
regiões foi feita uma peregrinação pelos estados com o objetivo de
negociar com eles diretamente o aval para a implementação das
políticas requeridas pelos capixabas. Na defesa desse projeto, além
de Christiano Dias Lopes, outra importante liderança política da
ARENA atuou com bastante empenho, o deputado federal João
Calmon (SILVA, 1993, p. 161).
Apesar do discurso de combate à corrupção que mobilizou
a sociedade no apoio ao golpe de 1964, foi justamente durante a
Ditadura Militar que o mecanismo de preenchimento de postos na
burocracia estatal, no caso, o cargo de subdelegado contratado pela
CLT, foi criado. Desta forma contratou-se servidores para “cargos
técnicos, conforme vários casos existentes no setor de perícia
criminal. Também ingressaram na instituição policial, através de
contratações, médicos legistas, agentes de presídio, fotógrafos,
escrivãs e investigadores.”5

Clientelismo e degeneração
Diante da crise instalada em 1989, com a presença de Policiais
Federais investigando a polícia capixaba, a Associação de Polícia Civil
do Estado do Espírito Santo (Apcees), por meio do seu presidente
Custódio Serrati Castelani, anunciou a mobilização realizada pela
entidade para acionar o poder judiciário contra o Executivo estadual
requerendo a anulação de “nomeações irregulares”, pois segundo
a associação haviam ocorrido “207 nomeações ilegais, sendo que
189 dos beneficiados sequer pertencem aos quadros da Polícia de
carreira.” Estariam regularizadas, segundo ele, somente 11 das 218
nomeações para cargos comissionados. Castelani, em sua denúncia,
ainda “chama à atenção para o fato de que essa ilegalidade está

5 GOVERNO demitirá todos os policiais civis contratados. A Gazeta: Vitória,


p.16, 16 out. 1989.

29
Conflitos e Contradições na História

contribuindo para o fortalecimento do crime organizado no Estado.”


E, demonstrando a corrupção dentro da instituição que deveria
combater o crime, ressaltou que “nesse meio tem ladrão de carros,
traficantes de cocaína, estupradores, estelionatários, envolvidos até
os cabelos em vários tipos de delitos.”6
De forma confusa, a mesma matéria ressalta, contudo, que
seriam “198 subdelegados nomeados ilegalmente pelo Governo do
Estado, que sequer pertencem aos quadros de carreira da instituição.”
No entanto, no mesmo texto fica bem explícito que
o critério principal para alguém ser nomeado em alguma função na
Polícia Civil começa a ser definido nos períodos eleitorais. Antes da
eleição, para ficar comprovada a intenção política o futuro policial
é atrelado aos interesses em jogo. Passadas as eleições as nomeações
também ocorrem para não deixar na mão quem trabalhou duro na
campanha. ‘Na maioria dos casos é o que acontece. Mais da metade
desse pessoal é despreparada, sem nenhuma formação profissional,
e muitos tem até ficha criminal,’ revolta-se Castelani, Assim, basta
ter uma simples nomeação para se obter um passaporte para o crime
organizado. [...] ‘Atualmente, as nomeações obedecem somente ao
interesse político’, ressalta Castelani.
As críticas apontam o uso político do cargo de subdelegado para
a composição de alianças políticas articuladas entre o Governador
do Estado do Espírito Santo e os prefeitos. Apesar da prerrogativa
de nomeação ser do governador, os prefeitos seriam os responsáveis
por indicar os nomes de aliados políticos que constituíam sua
clientela. Assim, era a prestação de serviços ao poder local, a lealdade
ao chefe político do município que determinava a ocupação da
subdelegacia estabelecida em determinada municipalidade. Dessa
forma, observamos nessa reportagem a explicação de que
O interesse político na nomeação, é exatamente para que o
subdelegado, na condição de autoridade, passe a exercer influência
sobre a comunidade, visando às eleições. Mas o despreparo
acaba, invariavelmente, levando o subdelegado a cometer abusos,
praticando extorsão, principalmente contra os comerciantes do
local, em troca de suposta segurança. Além disso, todo o tipo de
violência é praticada contra membros da comunidade, sobretudo se

6 POLÍCIA denuncia governo de empreguismo. A Gazeta: 24 de setembro de


1989, p.31.

30
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

o local for habitado por trabalhadores da classe mais pobre.


Assim, se valendo e indo além da discricionaridade do poder
conferido aos subdelegados, eles exerciam um poder de polícia a
serviço dos poderes locais contra adversários políticos e contra
a população, permitindo o controle social e político por meio de
ações violentas e da disseminação do medo. Em decorrência disto,
a crise no interior da Polícia Civil capixaba era agravada. A falta de
credibilidade da instituição era tal que a sociedade capixaba não
enxergava a Polícia Civil como uma instituição capaz de apurar os
responsáveis por diversas ações criminosas que envolviam furtos,
assassinatos, extorsões e outros delitos cometidos por organizações
criminosas. Era frequente o envolvimento de pessoas instaladas no
interior dos poderes públicos com o crime organizado no estado
do Espírito Santo, que foi alvo de operações pela Polícia Federal
que trouxeram visibilidade às ligações clandestinas entre agentes
públicos e organizações criminosas.
Devido à gravidade da situação, as páginas dos jornais traziam
notícias sobre o retorno, se é que ele havia deixado de existir, do
Esquadrão da Morte. E nesse contexto a ação policial na proteção
ao crime organizado reforça a ideia de degeneração ligada à forma
como o cargo de subdelegado ingressava nos quadros da polícia
capixaba. Como efeito do tipo de perfil requerido ao postulante
ao cargo, identificamos a perpetuação do clientelismo levado a
cabo pelos poderes locais no interior do sistema político marcado
pela atuação de forças centrípetas. A corrupção e participação em
atividades criminosas tornou-se, a partir cãs críticas observadas,
algo endêmico no interior da Polícia Civil, em especial no que diz
respeito aos subdelegados. Reforçando essa linha de raciocínio, o
jornal A Gazeta registrou exemplos de subdelegados envolvidos
com atividades ilegais:
O ex-subdelegado do Rio Marinho, Walmor José dos Santos, [...]
integrante do crime organizado do estado, foi preso no Rio de
Janeiro com um carro roubado, um Caravan. O ex-subdelegado do
distrito de São Rafael, no município de Linhares, Antônio Carlos
Piana, o Carlinhos Piana, logo após nomeado, matou um sargento
PM e depois estuprou a mulher da vítima, em Linhares. Depois ele

31
Conflitos e Contradições na História

comandou uma quadrilha de assaltantes e estupradores, composta


por dois cunhados seus, fornecendo, inclusive, coletes da Polícia
Civil, que eram usados pelos comparsas durante os assaltos. [...]
O ex-subdelegado do Bairro da Penha, Samuel Gomes, [...], colocou
um mecânico no pau-de-arara e ateou fogo no seu corpo, para obter
confissão de furtos. No Bairro das Flores, na Serra, o subdelegado
Rodovaldo da Silva prendeu dois pivetes e os deixou com fome
durante três dias. O ex-subdelegado de Santa Rita, Onofre Francisco
Lessa, torturou e aleijou o paneleiro Juarez Firmino dos Santos. O
também ex-subdelegado de Santa Rita, Carlos Giovani, está sendo
processado sob acusação de ter matado o soldado PM Carlinhos e
um traficante.7
No entanto, a prática de ilegalidades, o controle sobre
as atividades criminosas por agentes públicos em organizações
criminosas chamadas de Esquadrão da Morte existia desde a década
de 1960. Em 1969, segundo o advogado Ewerton Montenegro
Guimarães ligado à Arquidiocese de Vitória, as investigações sobre
as ações do Esquadrão da Morte objetivaram livrar de acusações
a cúpula da polícia, o superintendente de Polícia Civil José Dias
Lopes, promovido a secretário de Estado para ganhar imunidade,
e seu irmão o então Governador Christiano Dias Lopes Filho.
Ewerton Guimarães expôs como o superintendente de polícia civil
José Dias Lopes e seu irmão o Governador Christiano Dias Lopes
Filho eram atores importantes no cenário estadual e chancelavam
os crimes cometidos por policiais correligionários. José Dias Lopes
chegou a ser acusado de “desovar” um cadáver, isto é, de jogar
cadáver da ponte Florentino Avidos com finalidade de ocultação e
desaparecimento do mesmo. Como parte da organização criminosa,
alguns presos também recebiam privilégios para prestar serviços
para os criminosos da alta cúpula (GUIMARÃES, 1978, p. 178).
As denúncias de Guimarães envolviam comércio de armas no
interior, no meio rural; proteção da polícia ao jogo do bicho; extorsão
feita por policiais a comerciantes; furto e desvio de carros roubados;
homicídios; ocultação de cadáveres; espancamento e tortura
para obtenção de informações e confissões; perseguição a pessoas
7 MAX anuncia que vai reestruturar a Polícia Civil. A Gazeta: Vitória, p.13, 21
out. 1989.

32
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

que fazem política para o Movimento Democrático Brasileiro;


interferência do governador no poder judiciário no sentido de que
correligionários tivessem a benevolência dos juízes. As ações levadas
a cabo pela polícia no Espírito Santo, mesmo servindo aos interesses
de combate ao comunismo, também geravam receios entre os
militares, que por meio da Lei 667 subordinava as forças policiais
diretamente ao Exército.
Os militares, enquanto endureciam o regime contra as
organizações de defesa dos trabalhadores e partidos de esquerda,
davam passos lentos no sentido de investigar a corrupção e a
degenerescência do sistema policial para esquadrões da morte.
Somente depois de denúncias de três policiais civis que acusaram
a corporação da qual participavam de atuar na venda de armas,
algumas inclusive roubadas, de roubo de carros e falsificação de
documentos de identidade, além de tortura, execução sumária de
desaparecimento dos cadáveres, que foram feitos procedimentos
para investigar os crimes no interior da estrutura política capixaba.
Por que “aparentemente, os militares perceberam que deveriam agir
contra esse tipo de esquadrão da morte porque eles respondiam por
suas ações somente perante a Polícia Civil do Estado e os mais altos
membros do governo estadual” (HUGGINS, 1998, p. 208).
Contudo, Christiando Dias Lopes e José Dias Lopes não
foram responsabilizados por quaisquer atos criminosos. Apesar
das evidências contra José Dias Lopes, ele permaneceu no cargo de
secretário de Segurança até o fim do ano de 1970. Segundo Huggins,
uma possível explicação para a postura dos militares em deixar de
apoiar a demissão do governador e seu irmão seria por que talvez
“a investigação estadual independente estivesse também revelando
a relação dos próprios militares com os esquadrões da morte”
(HUGGINS, 1998, p. 210).
Os casos de envolvimento de policiais com esquadrões da
morte registrados na década de 1980 podem revelar elementos que
permitem reforçar a ideia de continuidade desse fenômeno que
ocupou o noticiário no final das décadas de 1960 e 1980. O suposto

33
Conflitos e Contradições na História

retorno do Esquadrão da Morte ocupava a atenção dos capixabas e


gerava temores na sociedade capixaba. Nos anos 1980, o Esquadrão
da Morte atuava por meio de uma entidade legalizada, supostamente
fundada com objetivos filantrópicos, a Scuderie Detetive Le Cocq. A
real finalidade deste organismo foi revelada pela Polícia Federal e
de acordo com o Delegado de Polícia Federal Badenes essa entidade
Utiliza-se de meios e recursos próprios das milícias e “contribuições
empresariais”. Incorpora em seus quadros de associados centenas
de policiais (civis, militares e federais), serventuários da Justiça,
Delegados, Advogados (que normalmente ocupam a presidência),
funcionários da administração pública, Promotores de Justiça e
até Juízes de Direito, Desembargadores, Políticos, empresários,
comerciantes e banqueiros de jogo do bicho. A Scuderie surgiu
como um meio operacional de apoio à criminalidade organizada do
Estado do Espírito Santo, compondo-se basicamente dos seguintes
serviços:
- intermediação nos assassinatos de mando;
- execução desses assassinatos;
- acobertamento e desvirtuação nas investigações policiais
pertinentes a estes assassinatos;
- garantia da total impunidade na esfera judiciária.
Quanto à clientela da Scuderie, é basicamente composta por
empresários e políticos que se interligam ao crime organizado. Essa
clientela articulou esquemas de violência (contando, para tal, com
o sistema operacional da Scuderie), com o escopo de controlar o
Poder Político das Administrações Municipais do Espírito Santo.
Já detém o poder político em diversas prefeituras municipais do
Espírito Santo, com o objetivo de se coligarem para se apoderarem
da Administração Pública Estadual. (BADENES, s/d, p. 3)
A Scuderie Detetive Le Cocq, ou “esquadrão da morte”,
como ficou conhecida, foi fundada em 1984 e extinta em 2002.
Nos noticiários da década de 1980, quando não havia sentenças
condenatórias contra a entidade, observamos notas divulgadas nos
noticiários onde ela reiterava o seu papel de instituição filantrópica
para se defender das acusações. Assim, antes dos policiais federais
assumirem as responsabilidades pelas investigações do crime
organizado no Espírito Santo, quem investigou as denúncias

34
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

sobre o “novo ‘Esquadrão da Morte’”8 foi um importante ator na


coordernação de diversas atividades criminosas, o delegado Cláudio
Antônio Guerra, que em 1989, foi peso pela Polícia Federal sob
a acusação de ser membro ativo do crime organizado no estado.
Cláudio Guerra foi acusado de matar o bicheiro Jonas Burlamarques,
atendendo interesses de outros bicheiros.
O então delegado, Cláudio Guerra, negou o envolvimento
e apontou como autor do crime contra Burlamarques o tenente
Odilon Carlos de Souza, especialista em explosivos. Segundo
Guerra o tenente Odilon, também promovia, a serviço dos militares,
atentados que pudessem ser atribuídos ao Partido Comunista
Brasileiro. Odilon teria assassinado Burlamarques pois ele estaria
chantageando “dois coronéis do Exército que ocupavam a chefia
da polícia e a Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo”
(GUERRA et. al; 2012, p. 31).
Os estudos sobre a ditadura militar e a redemocratização no
Espírito Santo não permitem ainda compreender a conexão entre os
esquadrões da década de 1960 e 1980. Há que se explicar as tensões
existentes entre os militares e os policiais civis no Espírito Santo e a
capacidade de controle das policias pelos chefes políticos aos quais o
aparato repressivo local está subordinado.

O fim dos subdelegados


A Associação de Polícia Civil responsabilizava o uso político
do cargo de subdelegado pela corrupção no interior da instituição.
As denúncias promovidas pela associação em 1989 municiaram
a oposição na Assembléia Legislativa contra o governador Max
Mauro. No noticiário de A Gazeta vemos o deputado Lúcio
Merçon, que na ocasião era relator do novo texto constitucional
capixaba, defender a exoneração imediata daqueles que haviam
sido nomeados ilegalmente. Já o deputado estadual Antônio Pelaes,
cobrava uma posição da Secretaria de Segurança e acusava Governo
8 GUERRA apura 13 crimes do “Esquadrão da Morte”. A Gazeta: Vitória. 09
dez.1986, p. 13

35
Conflitos e Contradições na História

do Estado de proteger “bandidos dentro da Polícia Civil”. Eleito


pelo PMDB Pelaes encontava-se à época no PRN. Além de criticar
a exoneração do delegado Emerson Gonçalves da Rocha, chefe do
Departamento de Administração da Polícia Civil, disparou contra o
governo dizendo que “a Polícia está cheia de cabos eleitorais de Max
Mauro, sendo que a maioria é formada por bandidos portando arma
e carteira policial.”9
O jornal A Gazeta dando voz à denúncia realizada pela
Associação de Polícia Civil relatava que
a exoneração dos subdelegados é uma velha aspiração da Polícia
Civil. Já em 1981, com a criação da Polícia de Carreira, a lei 3.400,
complementada pela lei 3.705, já estabelecia que o cargo deveria
ser preenchido por policial concursado, de terceira categoria.
Entretanto, a lei foi desrespeitada e muitos cabos eleitorais,
despreparados para a função, foram nomeados para o cargo,
segundo denúncias de membros da Associação da Polícia Civil.10
Em resposta à matéria que denunciava o empreguismo na
Polícia Civil, o governador do Estado do Espírito Santo, Max de
Freitas Mauro, por meio do subsecretário de Segurança, coronel
Lézio Pires da Luz, informou à imprensa que a denúncia contida no
“ofício 131/89 de 1º de setembro, que pediu a relação dos ocupantes
em cargos de comissão que exercem função na Polícia Civil,” seria
apurada. Reforçando a argumentação oficial, o subsecretário reiterou
que “a Lei 3.705, no seu artigo 24, mantém o cargo de subdelegado
que somente será extinto com a promulgação da nova Constituinte
Estadual.” Ao mesmo tempo a matéria informava que “o chefe de
Polícia Civil, delegado Carmini Alberto Ponzo, preferiu não se
manifestar sobre a questão.” Diante de um assunto que dividiu a
categoria, a chefia de Polícia Civil preferiu manter o silêncio e,
na ocasião, o porta voz da Polícia Civil, delegado Gilson Gomes,
declarou que “a chefia não vai interferir no caso, ‘o presidente da

9 PELAES diz que Max protege bandidos na PC. A Gazeta: Vitória, p.11, 02
out. 1989.
10 MAX anuncia que vai reestruturar a Polícia Civil. A Gazeta: Vitória, p.13,
21 out. 1989.

36
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

APC representa a categoria e deve saber o que está fazendo’, frisou.”11


Diante do acirramento dos conflitos entre o governo e a
categoria, presidente da Apcees, Custódio Serrati Castelani, apesar
da denúncia, preferiu poupar o Secretário de Segurança alegando
acreditar que “o secretário Aurich não tinha conhecimento das
irregularidades, até por que ele tem excelentes propostas para a
Polícia Civil”. Apesar do próprio Aurich ter sido subdelegado em
Colatina, Custódio Serrati Castelani, alegava que “a Polícia Civil está
pagando um preço alto por causa dessas distorções.” Preferindo não
entrar em embate direto com a Secretaria de Segurança, Castelani
diz acreditar que as distorções seriam corrigidas “por que é intenção
da Secretaria de Segurança profissionalizar a Polícia Civil.”12
Nessa matéria do dia 28 de setembro de 1989, publicada
no jornal A Gazeta, o secretário de Segurança, coronel Sérgio
Aurich anunciou que, em virtude da promulgação da Constituição
Estadual, todos os 198 subdelegados seriam exonerados. O empenho
do secretário em resolver o problema com a categoria privilegiou a
aproximação com a associação dos delegados para encaminhar um
fim para o impasse entra os policiais civis e o Governo. Para tanto,
Aurich se reuniu com Adão Rosa, presidente da Associação dos
Delegados (Adepol), deixando de lado a Apcees que havia entrado
em rota de colisão com o Governo do Estado.
Em decorrência do conflito com o Governo do Estado, pairava
um temor no interior da categoria dos Policiais Civis, registrado por
A Gazeta dessa forma, lemos na referida reportagem:
Dentro da Polícia Civil, a denúncia de nomeações ilegais passou
a ter como resposta um silêncio total por parte dos policiais. A
razão, segundo um deles, foi a exoneração do delegado Emerson
Gonçalves da Rocha, que elaborou o documento onde constam os
nomes dos policiais nomeados de forma irregular. Emerson era
chefe do Departamento de Administração e na lista fornecida por ele
figuravam o nome de pessoas que exerciam cargos comissionados.

11 MAX exige explicação sobre empreguismo. A Gazeta: 26 de setembro de


1989, p.13.
12 DENÚNCIA de empreguismo causa queda de delegado. A Gazeta: Vitória,
p.13, 27 set. 1989.

37
Conflitos e Contradições na História

Contudo, diante da reação do Governo de se valer do artigo


129 da Constituição Estadual, que previa o concurso público como
forma exclusiva de recrutamento dos quadros da polícia civil, para
demitir 224 funcionários contratados da Polícia Civil, o presidente
da Apcees, Custódio Serrati Castelani, passou a se posicionar no
sentido de garantir a permanência dos contratados. Para tanto, ele
teria se reunido com o secretário de Segurança Pública, Luiz Sérgio
Aurich, que segundo Castelani, “prometeu que os contratados seriam
submetidos a um concurso público interno.” Castelani mudou
então o discurso, provavelmente em virtude de pressões internas, e
passou a defender que a decisão de demissão dos contratados seria
inconstitucional invocando o artigo 8 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias no que refere à compatibilização dos
quadros de pessoal. Catelani argumentava que “ao perder o poder
de Polícia, o funcionário estaria desprotegido contra os inimigos que
porventura tenha conquistado durante o período de trabalho.”13

Considerações finais
Em 10 de novembro de 1989, em defesa do delegado Cláudio
Guerra, quando ainda era possível defendê-lo publicamente, a
Associação dos Delegados de Polícia do Espírito Santo (ADEPOL)
publicou no jornal A Gazeta uma nota de repúdio contra o
“tratamento descortês e impróprio dispensado ao Delegado”, cujo
nome foi escrito em letras garrafais. Tentando evitar a continuidade
das investigações realizadas pela Polícia Federal no combate ao
crime organizado no Espírito Santo, a ADEPOL defendia que a
apreciação das acusações contra Guerra devia ser realizada no
Espírito Santo, pela polícia local. Tal estratégia visava obviamente
manter a impunidade à qual seus membros estavam acostumados.
Dos indiciados no processo de 1969, julgados no Espírito Santo, não
houve nenhuma condenação para os réus arrolados no inquérito.14
13 MAX anuncia que vai reestruturar a Polícia Civil. A Gazeta: Vitória, p.13,
21 out. 1989.
14 CEMITÉRIO clandestino na Serra pode ser uma farsa. A Gazeta: Vitória.
30 abr. 1989, p. 19.

38
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Pelo contrário, os três policiais que denunciaram a corrupção e


degenerescência no interior da Polícia Civil foram indiciados e
retiraram a denúncia contra José Dias Lopes para conseguir redução
de pena e salvaguardar suas vidas (GUIMARÃES, 1978).
Assim, a degeneração das funções da polícia civil era reforçada,
portanto, ainda mais pela interferência de políticos em contratações
que se tornaram possíveis a partir de 1971 no governo de Arthur
Carlos Gerhardt. Somente em 1989, quando estavam em vigor,
respectivamente, a Constituição Federal (1988) e a Constituição
Estadual (1989) asseverando a necessidade de concurso público,
foi possível a extinção do clientelismo direto dos políticos sobre os
subdelegados que permaneciam submetidos aos interesses de quem
havia possibilitado sua nomeação.
Em 1989 a credibilidade da Polícia estava em baixa e a
população clamava pela intervenção da Policia Federal no sentido de
buscar solução para crimes de mando. De acordo com A Gazeta, em
levantamento do número e da qualificação das queixas registradas
na delegacia de plantão localizada na sede da Chefatura de Polícia,
observa-se que a população recorria à polícia, na maioria dos casos,
para notificar a perda de documentos. O descrédito chegou a tal
ponto que a maioria das vítimas preferia não registrar queixa na
delegacia por considerar esta providência mera perda de tempo.
Além disto, muitas pessoas garantiam ter mais medo da Polícia
do que dos próprios bandidos, em virtude do grande número de
arbitrariedades praticadas por policiais civis e militares.15
O descrédito do aparato repressivo diante da sociedade era
fruto do desvirtuamento de sua função de proteção. Na ditadura
militar cabos eleitorais que se esforçavam nas eleições também
podiam ser recompensados com contratações como essa. Esse
procedimento foi realizado até a década de 1980 quando ficou
patente o inchaço da máquina pública. Os aliados eram agraciados
nos mais diversos departamentos, inclusive na condição de policiais.

15 POLÍCIA perde crédito e vítima não registra queixa. A Gazeta: Vitória. 22


jan.1989, p.17.

39
Conflitos e Contradições na História

Após o processo eleitoral, os cabos eleitorais que agiram com


lealdade e empenho recebiam uma carteira funcional e uma arma
e passavam a dispor de um poder conferido pelo Estado por meio
da indicação política. Dessa forma, passavam a atender interesses
desses padrinhos políticos. Nesse esquema entravam delegados,
subdelegados, investigadores, escrivãs, agentes de presídio, médicos
legistas e fotógrafos.16
Os subdelegados subordinavam-se aos políticos locais embora
integrassem um sistema político cuja principal característica era a
centralização política. Quanto ao nível de autonomia do aparato
repressivo local em relação aos militares e aos poderes locais ainda não
podemos traçar conclusões. Porém, fica evidente que a constituição
do aparato repressivo durante a ditadura militar permitiu que, por
meio de nomeações, grupos políticos locais pudessem dispor de
um braço armado para a defesa de seus interesses particulares. Ao
mesmo tempo, determinadas relações estabelecidas pelos membros
do aparato repressivo os conectam com demandas e hierarquias
externas ao governo, o que é evidenciado pela necessidade da ação da
Polícia Federal na investigação do “crime organizado”, que denota a
não confiança do governador na Polícia Civil, e pela forma como se
realizava, durante o período de 1971 a 1989, a investidura do cargo
de subdelegado, gerando lealdades e estreitamento de vínculos entre
a polícia e o poder local.

Referências
BADENES, Francisco. Império da Lei: Justiça Federal decreta
a dissolução judicial da Scuderie Detetive Le Cocq. In: Revista
Phoenix Magazine, disponível no site <http://www.sindepolbrasil.
com.br/sindepol07/segurança1.html>. Acesso em: 15 jul. 2016.
GUERRA, C.; MEDEIROS, R.; NETTO, M. Memórias de
uma Guerra Suja. Rio de Janeiro: Topbooks editora, 2012.
GRINBERG, Lúcia. Partido político ou bode expiatório:
16 PROMOTOR denuncia impunidade de policiais militares. A Gazeta:
Vitória. 26 out. 1989, p. 16.

40
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional – ARENA (1965-


1979). Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.
GUIMARAES, Ewerton M. A chancela do crime. Rio de
Janeiro: Ambito Cultural, 1978.
LEMOS, Amarildo M. Modernização econômica e conflito
social na década de 1980. In: RIBEIRO, Luiz Cláudio M. [et. al.].
Modernização e modernidade no Espírito Santo. Vitória: Edufes,
2015.
SIQUEIRA, Maria da Penha S. Industrialização e
Empobrecimento Urbano: o caso da Grande Vitória (1950-1980).
2. ed. Vitória: Grafitusa, 2010.
VILLASCHI, Arlindo (org.). Elementos da economia
capixaba e trajetórias de seu desenvolvimento. Vitória: Flor
Cultura, 2011.

41
Conflitos e Contradições na História

42
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Elites na capitania do Espírito Santo: uma


análise da sua composição e atividades
econômicas
Anna Karoline da Silva Fernandes1
Inicialmente apropriaremos da discussão historiográfica do
termo elite empreendida por Maria Fernanda Bicalho (2005), na
sociedade de Antigo Regime no Brasil. Segundo Bicalho, podemos
conceituar as elites a partir de um critério econômico, de acordo com
o qual as elites coloniais seriam os grupos que mais riquezas teriam
acumulado. Muito provavelmente, o acúmulo de riquezas conferia
statuse poder na sociedade colonial. Em Portugal, a constituição
das elites atendiam aoutros critérios, comoo pertencimento às casas
nobres, a “pureza do sangue”, a legitimidade da ascendência em casas
tradicionais, sua melhor identificação. Desse modo, no contexto
europeu do Antigo Regime podemos abordar elites mercantis, ou
elites administrativas, constituídas por nobres, por eclesiásticos
ou por letrados. De modo que é possível imaginar em uma elite
camarária, concelhia, em uma nobreza da terra ou nobreza civil e
política, atribuída à governança das localidades (BICALHO, 2005).
No entanto, no ultramar também é possível pensar a
constituição das elites a partir do serviço ao rei, tal como acontecia
em Portugal. Desse modo, a conquista e a defesa do território, a
prestação de serviço ao rei, o exercício de cargos administrativos
e as mercês régias oferecidas em retribuição aos serviços prestados
podem ser entendidos como critérios de formação e de definição das
elites coloniais. No entanto, no caso do Brasil ou o império atlântico
português havia como característica singular em relação a Portugal
o fato de suas elites serem constituídas numa sociedade escravista.
Nesse sentido, as conclusões de Bicalho para o termo elites estão
relacionadas à acumulação econômica advindas da ocupação de
cargos administrativos e recebimento de mercês régias por serviços

1 Mestranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, com o


projeto “A administração espanhola no Brasil durante a monarquia dual (1580-
1640): o caso do Espírito Santo”.

43
Conflitos e Contradições na História

prestados (BICALHO, 2005).


Para compreender a elite em formação no Espírito Santo
analisamos a relação entre os indivíduos e a Coroa, baseada no
Sistema de Mercês, ou seja, política de distribuição de terras, cargos
régios, privilégios e títulos nobiliárquicos oferecidos pelo monarca,
como forma de remuneração dos serviços dos vassalos prestados
à Coroa, de modo que a formação da elite colonial brasileira está
relacionada às benesses reais que permitiam ampliar seus ganhos
(MELO, 2014). Na mesma perspectiva foram os trabalhos do
historiador João Fragoso na abordagem da acumulação de recursos
para a primeira elite senhorial do Rio de Janeiro. De acordo com
ele, a administração real era um eficiente mecanismo de acumulação
de riqueza, fenômeno que possibilitava, além do poder em nome
del Rey, diferentes benesses mediante sistema de mercês, à medida
que permitiram a apropriação de recursos não somente de um ramo
particular da economia, mas sim de excedentes gerados por toda
uma sociedade colonial em formação (FRAGOSO, 2010).
O conjunto de mecanismos econômicos que permitia a
acumulação de riqueza baseado nos benefícios e serviços públicos
da Coroa foi chamado por João Fragoso de economia do bem
comum, uma vez que as mercês concedidas pelo rei e os serviços que
prestavam eram de interesse da Coroa, portanto do bem comum.
Esta relação entre o rei e seus vassalos foi chamada por Ângela Xavier
e Antônio Manoel Hespanha de economia do dom, segundo a qual
os serviços prestados eram devidamente remunerados e assumiam a
forma de concessão de terras e até ofícios régios (FRAGOSO, 2012).
Nesse sentido, o sistema de mercês permitia a participação dos
vassalos na estrutura administrativa da Colônia, estratégia utilizada
pela Coroa para efetivar seu projeto de ocupação e dominação do
território, oferecendo cargos no funcionalismo como recompensas
dos serviços prestados pelos vassalos, transformados em funcionários
régios nas diversas capitanias do Brasil. Esse processo foi a base
para a formação da elite colonial brasileira, constituída a partir da
obtenção de mercês por homens que ofereciam seus serviços a fim

44
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

de serem recompensados (RICUPERO, 2009).


Com o propósito de analisar o exercício desses cargos por
membros da elite na capitania do Espírito Santo no início do século
XVII, buscamos identificar quem eram os ocupantes dos principais
cargos da administração local, pois entendemos que o prestígio e o
poder que possuíam eram fundamentais para serem considerados
um grupo social privilegiado. Embora, provavelmente se tratasse de
indivíduos de escalões sociais mais baixos a quem eram reservadas
as oportunidades de serviços socialmente menos valorizadas como
os postos menores nas capitanias, a esse respeito falaremos mais
adiante (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010).
A análise dos autos da devassa, ocorrida na Alfândega do
Espírito Santo iniciada em 15 de março de 1618, ordenada a partir de
carta régia de Felipe II (1598-1621) datada em 13 de agosto de 1617,
revelou o grupo de administradores locais da capitania no início do
século XVII, a começar pelo capitão-mor, Gaspar Alves de Siqueira,
a quem o monarca escreveu a Carta de Lei “Eu el Rey faço saber a vos
gaspar alves de siqueira capitão mor na capitania do Spirito Santo
das partes do Brasil”.2 Também identificamos o escrivão da Câmara
e da Ouvidoria por meio do próprio escrivão Bartolomeu Freire “eu
bertolomeu freire escrivão da camara e da ouvidoria nesta villa de
nossa senhora da vitoria capitania do Espírito Santo”.3 Segundo o
mesmo, o capitão mor Gaspar Alves de Siqueira acumulava o cargo
de ouvidor “[...] o capitão mor e ouvidor gasparalves de sequeira
comigo escrivão [...]”.4 Bartolomeu Freire, ainda completou: “[...] o
capitão mor gasparalves de Sequeira me deu juramento dos santos
evangelhos, para que bem e verdadeiramente sirva de escrivão nos
cazos conteúdos na dita carta de sua magestade [...]”.5
2 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
3 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
4 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
5 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.

45
Conflitos e Contradições na História

O escrivão dos depoimentos da devassa, Bartolomeu Freire,


foi nomeado pelo capitão-mor da capitania, cumprindo ordem régia
de nomeá-lo para o cargo:
[...] mande que tomeis pera servir de escrivão desta
diligencia e suas dependencias a pessoa que vos pareser de mais
confiança e emtelegente e segredo que ouver nesta capitania
a qual fareis juramento dos santos evangelhos para que bem e
verdadeiramente sirva guardando em tudo meu serviço [...].6
Como autoridade local, o capitão-mor e demais funcionários
régios, como o ouvidor-geral e outros funcionários tinham
autonomia para oferecerem postos na governança, desde que
tivessem a aprovação do monarca. Apesar de em geral os cargos
mais importantes serem concedidos pelo rei (RICUPERO, 2009).
Nesse sentido, conseguimos identificar dois servidores de
cargos importantes da governança local: capitão mor, ouvidor,
escrivão da Câmara e da Ouvidoria. Outros funcionários régios foram
identificados no documento, conforme se verifica no testemunho de
vários moradores da capitania convocados para depor no processo
investigativo. Exemplo o testemunho de Luis Furtado, 40 anos “jorge
pinto provedor e almoxarife que foy”. Também, Antônio Gomes
Miranda, 60 anos, incluiu “marcos dazeredo que foy provedor da
fazenda” e completou que “era compadre de marcos dazeredo e
que algúm tempo que senão comuniqua com ele e que outrosihe
compadre de jorge pinto e que tabé se não comuniquavacóelle”.7
Os postos de provedor e almoxarife estavam diretamente
ligados e se relacionavam com a arrecadação e fiscalização das
rendas régias, seus ocupantes, Marcos de Azeredo e Jorge Pinto,
respectivamente, faziam parte do grupo social privilegiado, que
dominava os principais cargos da capitania. Eles recebiam salários
pagos pela Fazenda Real para o exercício de tais funções, portanto,
servidores do rei que se ligavam a ele por meio do sistema de mercês.

6 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
7 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.

46
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Alguns funcionários régios prestaram depoimento no


processo investigativo, exemplo de Bernaldo da Fonseca, provedor
dos defuntos e ausentes, 45 anos; Estevão Machado, meirinho da
Alfândega, 34 anos; André Gomes, meirinho da Ouvidoria, 52 anos;
Gaspar Carneiro Rangel, escrivão da Fazenda, 48 anos e Antônio
Ribeiro, meirinho do mar, 40 anos.8
Quadro 1 - Distribuição de cargos ocupados na capitania do
Espírito Santo no início do século XVII
Cargo Nomeado
Capitão Mor Gaspar Alves de Siqueira
Ouvidor Gaspar Alves de Siqueira
Escrivão da Ouvidoria Bartolomeu Freire
Escrivão da Câmara Bartolomeu Freire
Provedor Marcos de Azeredo
Almoxarife Jorge Pinto
Provedor dos defuntos e ausentes Bernaldo da Fonseca
Meirinho da Alfândega Estevão Machado
Meirinho da Ouvidoria André Gomes
Escrivão da Fazenda Gaspar Carneiro Rangel
Meirinho do mar Antônio Ribeiro
FONTE: Elaboração própria com base na documentação CTA: AHU-
ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.
Através dessas informações conseguimos compor parte
do quadro político-administrativo que assegurava a gestão da
capitania. Digo parte, porque ainda desconhecemos os cargos de
eleição da Câmara de Vitória e, provavelmente Vila Velha, além
dos ofícios militares. Concluída a identificação de alguns cargos
da administração da capitania do Espírito Santo, passaremos agora
para as origens sociais dos titulares nomeados para tais postos da
governação ultramarina.
8 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04

47
Conflitos e Contradições na História

A princípio é importante compreender que ao longo dos


séculos XVII e XVIII, a base da pirâmide nobiliárquica foi se
ampliando cada vez mais, ao mesmo tempo que o topo, pelo menos
até meados do setecentos, se cristalizou com a constituição de uma
primeira “nobreza de corte”. De maneira oposta a uma polarização
entre nobres e não nobres (ou nobres e mecânicos), constatamos
uma imensidade de distinções e hierarquias e com a extrema
dificuldade em definir uma estratificação nobiliárquica abrangendo
toda a Monarquia, pelo menos abaixo da “primeira nobreza” da
corte (MONTEIRO, 2005).
A esse respeito, o historiador João Fragoso salientou que
a grande aristocracia titulada estimava que os serviços militares
terminavam no Marrocos. Ao sul do Marrocos, os principais agentes
da coroa eram provenientes da pequena nobreza (FRAGOSO,
2010). A historiadora Mafalda Soares da Cunha corrobora os
argumentos anteriores, em recente trabalho apontou indícios de
que os fidalgos tinham mais disposição para os serviços no reino
de Portugal. Assim, entre a fidalguia grada difundia-se o desapreço
pelos serviços no império, o contrário passava-se entre os escalões
sociais mais baixos, que eram obviamente mais abundantes. Para
esses, os serviços ultramarinos representavam eficiente recurso de
ascensão social através das oportunidades de serviço e consequente
remuneração (CUNHA, 2010).
Assim, há indícios de falta de empenho de fidalgos em tomar
conta desse governo em decorrência de possíveis descontentamentos
por certos tipos de postos ultramarinos. Diante da dificuldade de
apresentar propostas de nomes para o governo das conquistas
é possível deduzir os obstáculos dos órgãos de decisão para
conseguir indivíduos apropriados para os postos de menor relevo
à medida que o grupo dos fidalgos que era numericamente escasso
faziam constantes reivindicações. Logo, deduzimos que boa parte
dos postos ultramarinos atraíam mais os sujeitos de mais baixa
estratificação. Para eles, os cargos de comando ultramarino podiam
representar possibilidades que não eram encontradas no Reino.

48
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Também, tinham perspectivas diferentes, interessados em formas


de sobrevivência e riqueza mais rápidas que as estruturas políticas e
administrativas oferecidas na metrópole (CUNHA, 2010).
Apesar de serem mais numerosos, ainda assim não eram
indicados senão para os postos menores, o que foi de fato
predominante, mas não exclusivo, pois a coroa pretendia dar
continuidade à elitização governativa que a monarquia tencionava
como recurso para os problemas que o império enfrentava. No
entanto, o escasso grupo dos fidalgos de alta qualidade demonstrava
um elevado nível de desinteresse pelo serviço ultramarino. Desse
modo, os raros casos de fidalgotes que alcançaram governos de
maior importância provavelmente pode demonstrar a extensão
dos inconvenientes de recrutamento que a monarquia hispânica
enfrentava (CUNHA, 2010).
É verdade que o quadro de oportunidades da fidalguia
aumentou bastante após 1580, momento da anexação de Portugal.
As guerras em que a monarquia hispânica estava envolvida
aumentaram as possibilidades de desempenho militar em território
europeu. Assim, os sujeitos atuavam em um conjunto político
maior com possibilidades de serviço mais variadas. Ademais, a nova
organização político-administrativa aumentara o número de cargos
políticos. Como essas possibilidades de serviço não se equivaliam
estavam criadas as concorrências com os tradicionais espaços de
serviço da fidalguia portuguesa (CUNHA, 2010).
As oportunidades de serviços no ultramar teriam sido
aproveitadas pela gente de menos boa extração, que estava na
fronteira inferior do grupo nobiliárquico ou até na transição
para o escalão dos privilegiados, sujeitos evidentemente mais
numerosos, atraídos pelas possibilidades de ascensão social por
meio da remuneração e da acumulação de riqueza possibilitadas
pelo sistema de remuneração dos serviços prestados à Coroa,
dominante na história do período colonial brasileiro, estratégia da
Coroa para garantir a dominação dos territórios conquistados. Essa
gente de menos boa extração teria viajado para o Brasil buscando o

49
Conflitos e Contradições na História

enobrecimento por meio da ocupação de cargos régios. Além disso,


o fato de servirem ao rei nas suas conquistas, os inseria na economia
de mercês como importantes merecedores da generosidade régia.
Daí resultava um poder político considerável alcançado através do
sistema de mercês, no qual homens comuns eram transformados
em funcionários reais e em camaristas, por recompensas dos seus
serviços prestados à Coroa, apesar dela se mobilizar para recrutar
sujeitos dispostos a dar continuidade à elitização da governança
(CUNHA, 2010).
Assim, o sistema de mercês foi indispensável para movimentar
uma máquina administrativa à medida que possibilitava ocupar
todos os postos da administração militar, justiça, civil e fiscal
com indivíduos atraídos pelas mercês distribuídas que conferiam
o prestígio e o poder de um grupo social privilegiado. Desse
modo, nossa investigação entende que as elites na capitania do
Espírito Santo estavam vinculadas ao exercício dos poderes locais
(RICUPERO, 2009).
As mercês reais eram conquistadas por meio de pedidos e
solicitações dos próprios interessados para o empreendimento dos
serviços em cartas enviadas ao rei ou pelas súplicas de funcionários
régios para certos indivíduos. Outra possibilidade era a concessão
feita pelos próprios servidores régios, pois como representantes da
Coroa, tinham a autoridade de oferecerem eles próprios recompensas
em nome do rei quando julgassem merecido. Em todos os casos, as
reivindicações necessitavam ser aceitas pelo monarca (RICUPERO,
2009).
É importante considerar que a Coroa só permitia que
determinados cargos fossem ocupados por indivíduos com
condições de arcar com os custos dos serviços. Essas condições
eram aceitas por homens enriquecidos, pois os mesmos se sentiam
atraídos pelas recompensas que poderiam receber, acreditando que
elas ressarciriam os investimentos realizados (RICUPERO, 2009).
Nesse sentido, a política de mercês, ao mesmo tempo que
provia os funcionários da administração colonial, reforçava o

50
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

poder econômico, na medida em que a maioria dos servidores era


recompensada com salários, vantagens comerciais e tributárias
como isenção de impostos, terras, direitos e outros privilégios,
após serviços já prestados ou futuros. Esse sistema proporcionou
a formação de uma elite possuidora dos recursos econômicos no
Espírito Santo (RICUPERO, 2009).
Assim se caracterizavam os chamados homens-bons da
capitania, através da ocupação de postos no funcionalismo e
acumulação de recursos provenientes dos préstimos oferecidos ao
rei, meio pelo qual se constituiu uma elite vinculada ao governo.
De modo que a conquista de cargos e mercês foi a gênese para a
constituição da elite (RICUPERO, 2009).
À medida que a ocupação de cargos régios possibilitava
a acumulação de recursos financeiros, investimentos em outras
atividades econômicas poderiam ser realizados, o que nos leva a
inferir que provavelmente a ocupação de ofícios não significava
que a elite não se envolvesse com outras atividades, mas que
tais mecanismos eram apenas um dos instrumentos usados no
rendimento das primeiras fortunas coloniais, sem que sobressaísse
sobre os demais (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010). Desse modo,
consideramos o envolvimento com o comércio, as atividades
agrárias e a usura,9 fontes de enriquecimento indispensáveis para
compreender a formação de elites econômicas do Espírito Santo,
conforme mostraram as fontes históricas desta capitania.
Todas essas atividades garantiam a produção de riqueza da
elite colonial e eram fundamentais para o processo de dominação
do território de modo que garantiam a ocupação, povoamento e
defesa das terras da América. Assim, os vassalos compreendiam o
seu dever com a monarquia e isto era feito com o desenvolvimento
de atividades produtivas, pois unidos por laços de dependência
se sentiam parte de um projeto político que excedia a gestão local
(FRAGOSO, 2012).

9 Resultado das pesquisa de Carla Almeida acerca da formação da elite mineira


(MELO, 2014).

51
Conflitos e Contradições na História

O excerto da Carta de Lei de Felipe II (1598-1621) que


ordenou a devassa destaca que chegavam três e às vezes até quatro
navios por ano à capitania. Assim, os documentos apontaram o
envolvimento de homens da capitania com atividades ligadas ao
comércio. Conforme escreveu Rodrigues Caminha, 42 anos: “[...]
vem do reino a esta capitania da cidade de Lisboa tres ou quatro
navios em cada húanno com fazendas [...]”.10
A versão foi confirmada por outras testemunhas, entre elas,
Antonio Velho, 33 anos: “[...] a esta villa vem todos os anos duas
três embarcaçois e quatro muitas vezes em dereitura com fazendas
[...]” e Gonçalo Mendes Barboza, 50 anos: “[...] em cada ano vem
a esta dittavillatresembarcaçois e quatro as vezes com fazendas em
dereitura do reino [...]”.11 Diogo Dias Sanches, 45 anos, por sua vez,
acrescentou que: “[...] fazendas lhe vinhão do reino e da baia [...]”.12
Conforme verificamos na documentação, o comércio
envolvia atividades de importação de mercadorias com a Metrópole
e com a capitania da Bahia, para abastecimento do mercado interno.
Desse modo, havia uma acumulação de riquezas provenientes
das atividades comerciais, e que, por isso se construiu uma elite
econômica na capitania do Espírito Santo voltada para o comércio.
Também, através da devassa foram identificados alguns
dos proprietários das mercadorias que chegavam na capitania do
Espírito Santo vindas de Portugal e da Bahia. O testemunho de
Manoell Lourenço Valença, 50 anos, informou que: “[...] a mor parte
das fazendas que a esta villa vem são de leonardo froes e marcos
fernandez monsanto e de luiscorea seu filho [...]”.13
Jorge de Almeida Lobo, 40 anos, informou que: “[...] por

10 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
11 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
12 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
13 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.

52
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

outras vezes vira despachar fazendas junto as cazas de antonio froes


[...]”.14 Também, Bento Pimenta, 38 anos, assegurou: “[...] que as
dittas fazendas as despachavão na pedra e no porto de antoniofroes
[...]”.15
Logo, identificamos como negociantes de mercadorias da
capitania do Espírito Santo, Leonardo Froes, Marcos Fernandes
Monsanto, Luis Correa Monsanto e Antônio Fróes (morador na
vila), filho e procurador de Leonardo Fróes. No entanto, por meio
do testemunho de outros moradores da vila, os mesmos homens
envolvidos com a mercancia foram apontados como proprietários
de unidades agroindustriais, indicando que as atividades mercantis
eram conciliadas com a produção agrícola e agrofabril, conforme
se reconheceu no testemunho de João Del Rio, 39 anos: “[...] as
fazendas que ordinariamente vem a esta capitania sam de marcos
fernandezmonsanto e de leonardofroes e de manoell Teixeira
senhores de engenhos [...]”.16
Jorge de Moura, 60 anos, confirmou o fato: [...] as fazendas
que ordinariamente vem nas ditas embarcaçois de purtugal a esta
dita villasam dos senhores de engenhos dela e a saber leonardofroes
marcos fernandezmonsantoluiscorea seu filho [...].17 Gonçalo
Mendes Barbosa, 50 anos, acrescentou: “[...] amtoniofroes senhor
de tres engenhos pelo qual respeito lhe deixavão levar as fazendas
que lhe vinhão para suas cazas [...]”.18
Assim, através da análise do documento, percebemos que
além de negociantes Marcos Fernandes Monsanto, Leonardo Froes,
Luís Correa, Antônio Froes e Manoel Teixeira se envolviam também
14 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
15 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
16 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
17 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
18 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.

53
Conflitos e Contradições na História

com a produção açucareira. Na sociedade portuguesa a burguesia


comercial, constituía um grupo cujo status era considerado inferior.
Assim, podemos inferir que os senhores de engenhos da capitania do
Espírito Santo tinham origens sociais pouco valorizadas, tal como
observou o historiador Stuart Schwartz, em relação à constituição
das elites coloniais no Recôncavo baiano. De acordo com ele,
muitos dos primeiros senhores de engenhos baianos vinham de
famílias menos proeminentes, quiçá um terço dos engenhos do
Recôncavo na década de 1580 fosse posse de comerciantes que
haviam substituído o comércio pela atividade açucareira, alguns
permaneciam exercendo as duas atividades simultaneamente. Desse
modo, Schwartz argumentou que o financiamento dos primeiros
engenhos baianos se originou na acumulação mercantil (BICALHO,
2005).
A respeito da mistura composta por alianças e negócios entre
senhores de engenhos e comerciantes, são válidas as considerações
de Rae Flory e David Grant Smith. Segundo os autores, acerca da
definição do termo elites coloniais, a dicotomia comerciantes versus
proprietários de terras e plantações de açúcar, predominante na
historiografia, oferece uma oposição demasiado rígida, que não
corresponde às circunstâncias diante do difícil e quase sempre
ambíguo contato entre esses segmentos no conjunto da camada
superior da sociedade baiana (BICALHO, 2005).
No que respeita a composição social do Recôncavo da Bahia,
os referidos autores propõem que o conceito de elite seja corrigido
de maneira que inclua certos tipos mercantis no mesmo nível das
famílias agrárias. Tal como podemos sugerir para a composição
social da capitania do Espírito Santo, à medida que os documentos
mostraram que os mercadores tinham propriedades de engenhos.
Desse modo, entendemos que a posse de engenhos foi uma estratégia
de enobrecimento dos mercadores, transformando o seu êxito
econômico em prestígio social e poder político, através de diversos
atributos que os faziam penetrar o interior da elite da capitania
do Espírito Santo, entre eles, fortuna, a posse de propriedades

54
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

territoriais, desenvolvimento de atividades agrárias, tal como


observou Schwartz no estudo sobre a elite baiana (BICALHO, 2005).
Ainda de acordo com os autores, Rae Flory e David Grant
Smith, o grupo de mercadores baianos, tanto no século XVII, quanto
no século posterior, era composto em sua maioria de imigrantes
provenientes do Reino, e em menor número das ilhas atlânticas.
Uma vez estabelecidos em Salvador, embora mantivessem seus
negócios mercantis, os comerciantes elaboravam estratégias de
enobrecimento que aliavam o investimento na aquisição de terras
(BICALHO, 2005). Do mesmo modo que observamos na capitania do
Espírito Santo. Os documentos inclusive apontaram o quantitativo
de propriedades, conforme se verifica no testemunho de Gonçalo
Mendes Barbosa, 50 anos: “[...] marcos fernandez monsanto senhor
de dous emgenhos e antonio froes senhor de tres emgenhos [...]”.
19
Também, Estevão Machado, meirinho da Alfândega, 34 anos,
acrescentou: “[...] leonardo froes senhor de tres engenhos [...]”.20
De acordo com os excertos dos documentos, podemos
identificar cinco engenhos pertencentes a esses indivíduos na
capitania do Espírito Santo, sendo dois de Marcos Fernandes
Monsanto e três da família Froes, cujos negócios na capitania eram
administrados por Antônio Froes, filho e procurador de Leonardo
Froes – talvez os mercadores permanecessem no Reino e deixassem
os negócios a cargo dos seus filhos e procuradores. No entanto,
havia ainda os engenhos de Luís Correa e Manoel Teixeira, não
quantificados nos documentos, mas que revelam a existência de
outros engenhos além daqueles cinco que conseguimos quantificar.
Ainda o estudo do historiador Luiz Cláudio M. Ribeiro, também
apontou a existência de outras unidades produtivas na capitania do
Espírito Santo entre as décadas finais do século XVI e 1609,21 embora
19 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
20 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
21 Engenho Santo Antonio, de Henrique Manoel de Medeiros (residente em
Lisboa), construído em 1577 na Ribeira da Arittaguape, Vila Velha; Engenho
Santo Antonio, de Leonardo Fróes e Henrique Manoel de Medeiros, na localidade

55
Conflitos e Contradições na História

não podemos atestar que todas as unidades produtivas levantadas


no estudo de Ribeiro (2011) continuassem em funcionamento no
período da devassa (1618). Assim, ainda não é possível fazer um
levantamento preciso da quantidade de engenhos existentes na
capitania do Espírito Santo naquele ano.
Embora os documentos mostrem a produção de açúcar e a
mercancia associadas, é importante considerar que apesar da maior
quantidade de mercadorias pertencerem aos donos de engenhos
conforme se registrou no depoimento de Antônio Ribeiro, meirinho
do mar, 40 anos: “[...] a mor parte das fazendas que a esta dita villa
vem são dos senhores de engenho [...]”,22 a prática mercante também
era desenvolvida por homens que não foram identificados como
produtores de açúcar, apenas como mercadores, como se verificou
no testemunho de Diogo Dias Sanches: “[...] lhe despacharam em
caza dele testemunha fazendas que lhe vinhão do reino e da baia
[...]”.23 O depoimento de Jorge de Almeida Lobo, 47 anos, citou
outro mercador: “[...] Simão luiz mercador estante na dita capitania

de Roças Velhas, Vila Velha, reconstruído em 1592; Engenho de Nossa Senhora


do Rosário, de Leonardo Fróes (residente em Lisboa), em Roças Velhas, Vila
Velha, construído em 1601; o Engenho São Francisco, construído na localidade
de Itaquari termo de Vila Velha, pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho
foi vendido a Diogo Rodrigues (residente em Évora), parece ter se acabado. Por
volta de 1576, no mesmo local, Anrique Rodrigues Barcellos construiu um novo
Engenho São Francisco. Este engenho parece ter sido vendido ao mesmo Diogo
Rodrigues que cuidou de reconstruí-lo em 1596; Engenho Trindade, construído em
1583 por Miguel de Azeredo em Ribeira de Manicara (ou rio de maguanicara ou
maguaricara), ou Ribeira do Coripe, em Vila Velha. Este engenho foi reedificado
em 1594. Após outra reedificação em 1609 mudou de nome para Engenho São
Miguel e foi vendido para Leonardo Fróes; Engenho de Santtiago de Guaraparim,
de Marcos Fernandes Monsanto, merquador, residente em Lisboa, construído em
Vila Velha em 1588 (ou 1592) e reconstruído em 1598; Engenho de Nossa Senhora
da Paz, de Marcos Fernandes Monsanto, construído em Guaraparim, termo de Vila
Velha, em 1599. Em 1618, o mesmo Marcos Fernandes Monsanto, em que pese ser
morador de Lisboa, já figurava como feitor da capitania e, junto com seu filho Luis
Correa Monsanto, possuía outros 2 engenhos: o de Nossa Senhora do Rosário, em
Guaraparim, e outros engenhos em Perocão, localidades pertencentes a Vila Velha
(RIBEIRO, 2011).
22 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
23 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.

56
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

[...]”.24Tanto Diogo Dias Sanches como Simão Luis não foram


apontados nos documentos como proprietários de engenhos, nos
levando a entender que ambos praticavam estritamente a mercancia
e não se envolviam com atividades agrícolas.
Os mesmos indivíduos envolvidos com atividades agrárias
e com a mercancia foram apontados nos documentos como
financiadores de crédito, praticando paralelamente o empréstimo à
juros. Conforme demonstrou o testemunho de Amrique Lopes de
Duenhas, contratador, 39 anos: “[...] marcos dazeredo provedor que
foy da fazenda deve muito dinheiro a marcos fernandez monsanto
senhor de dous emgenhos, e que sabe mais que o dito marcos
dazeredo devia muyto dinheiro a leonardo froes senhor de tres
engenhos [...].25
Brás Pinheiro de Araújo, 60 anos, certificou que:
[...] o provedor marcos dazeredo que foy deve copia de dinheiro
a marcos fernandes monsanto senhor de dous engenhos e sabe
que pelo conseguinte deve a amtonio froes procurador de seu pay
e sabe que outro senhor jorge pinto almoxarife e procurador digo
provedor que foy deve outrosi a leonardo froes muita copia de
dinheiro [...].26
Os documentos revelaram ainda as quantias dos empréstimos,
como atestou Diogo Dias Sanches, 45 anos: “[...] marcos dazeredo
deve a marcos fernandezmonsanto senhor de dous engenhos
quinentos mil rés pougo mais ou menos [...]”. Igualmente Lourenço
da Villa, 50 anos assegurou: “[...] que o almoxarife jorge pinto deve
ao dito leonardo froes perto de setecentos mil rés [...]”. Também,
Gonçalo Mendes Barbosa, 50 anos, testemunhou: “[...] o dito
almoxarife jorge pinto deve ao dito amtoniofroes senhor de tres
emgenhos mill e quinetos cruzados [...]”.
De acordo com esses depoimentos, sabemos que o negociante
24 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
25 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.
26 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007,
cx. 01, doc. 04.

57
Conflitos e Contradições na História

e proprietário de engenhos Marcos Fernandes Monsanto emprestou


a quantia de 500$000 (quinhentos mil réis) mais ou menos ao
provedor Marcos de Azeredo e uma quantia não declarada a Jorge
Pinto. Por sua vez o almoxarife Jorge Pinto não possuía dívidas com
Marcos Fernandes Monsanto; apenas com os Fróes devia quantia
equivalente a 700$000 (setecentos mil réis) a Leonardo Fróes
(residente em Lisboa) e mil e quinhentos cruzados para Antônio
Fróes, que aparece como filho e procurador de Leonardo. Os
empréstimos são importantes na investigação das relações que os
negociantes e donos de engenho teciam com as autoridades locais,
à medida que apontam uma relação de dependência entre esses
indivíduos, consubstanciada na relação credor e devedor.
Portanto, por meio da análise das fontes conseguimos perceber
que no início do século XVII havia na capitania do Espírito Santo
a predominância de uma elite colonial voltada para a ocupação de
cargos régios, atividades comerciais e agrárias. Tal como considerou
John Norman Kennedy, para a constituição da elite colonial baiana
do fim do período colonial, como os mais ricos proprietários
rurais, comerciantes, aqueles que ocupavam os mais altos postos da
burocracia fiscal e administrativa, e ainda os que integravam os mais
elevados graus dos exércitos regulares e locais (BICALHO, 2005).

Referências
Documentação primária
Carta de Lei (treslado) do Rei [Felipe II], ao Capitão-
Mor da Capitania do Espírito Santo, Gaspar Alves de Siqueira, a
ordenar a devassa nos descaminhos da alfândega, e constando dos
procedimentos dos culpados, apontou escrivão de confiança para
levar essa diligência na alfândega da dita capitania. Anexo: auto de
testemunhas (01 doc. 60 fls.) CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01,
doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

Obras de apoio

58
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercês e


poder local:a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura
política do Antigo Regime. Almanack braziliense, n. 2, p. 21-34,
2005.
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Elites coloniais: a
nobreza da terra e o governo das conquistas. História e historiografia.
In: MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda S.
da (Org.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 73-97.
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral.
Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português
séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio
de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séc. XVI e XVII). In:
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F.; GOUVÊA, Maria F. (Org.).
O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010, p. 29-71.
FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor
do engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compadre de
João Soares, pardo: notas sobre a hierarquia social costumeira (Rio
de Janeiro, 1700-1760). In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria F.
(Org.). Na trama das redes: política e negócios no império português,
séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.
243-294.
FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada economia
colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas para um
ensaio. História, v. 31, n. 2, p. 106-145, 2012.
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F.; GOUVÊA, Maria
F. (Org.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria F. (Org.). Na trama das

59
Conflitos e Contradições na História

redes: política e negócios no Império português, séculos XVI e


XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
MELO, K. C. Elites em perspectiva: uma discussão sobre
hierarquias, composição da riqueza e consolidação dos grupos
hegemônicos em São João Del Rei. Oficina do historiador, v. 7, p.
4-22, 2014.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘ethos’ nobiliárquico no final
do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social.
Almanack Braziliense, n. 2, p. 4-20, 2005.
RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o
governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira centúria.
In: Congresso Internacional UfesUfes/Université Paris-Est/
Universidade do Minho: territórios, poderes, identidades (territoires,
pouvoirs, identités), III. Anais... Vitória: GM, 2011, p. 1-19.
RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil,
c.1530 - c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009.

60
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Institucionalização do indigenismo no
México: O congresso de Pátzcuaro e o
fortalecimento da antropologia
Caroline Faria Gomes1

O México é um país de longa trajetória indigenista. De modo


geral podemos dizer que o indigenismo foi uma política formulada
por não índios para tratar da população indígena. À época da
colônia esse tratamento se traduziu em uma liberdade protegida e
um controle político e econômico. De acordo com Manuel Maria
Marzal, o colapso da conquista significou o desaparecimento de
alguns grupos indígenas por meio de guerras, pestes ou miscigenação
com a sociedade colonial. No entanto, havia o desejo de salvar
e proteger a população indígena já que seu trabalho era a base da
economia colonial (MARIA MARZAL, 1993, p. 15).
Numa concepção ampla vários autores afirmam que o
indigenismo designa qualquer preocupação relativa aos indígenas
a partir do século XVI. Dentro de tais correntes que analisam o
indigenismo a partir da longa duração podemos encontrar os
antropólogos Henri Favre e Manuel Maria Marzal que, partindo da
premissa de que o indigenismo é toda política formulada por não
índios para lidar com a população indígena, iniciam suas análises na
época colonial. Ambos autores utilizam os cronistas coloniais, como
Bartolomé de Las Casas e Bernadino de Sahagun, para validarem
suas análises.
Maria Marzal afirma que o projeto político destinado aos
indígenas à época da colônia era o de conservação sob um rígido
controle. O desejo de salvar e proteger a população indígena viria
da importância de seu trabalho que era a base da economia colonial.
De modo geral, o autor divide a política indigenista em três grandes
momentos: o colonial baseado na defesa e exploração do indígena;
o liberal baseado na assimilação total do indígena pautado na

1 Doutoranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

61
Conflitos e Contradições na História

miscigenação e o integracionista baseado na integração do indígena


à sociedade nacional (MARIA MARZAL, 1993, p. 15).
Favre parte da premissa de que a essência do indigenismo
seria a presença de uma opinião favorável ao indígena. Nesse
panorama ele parte desde Bartolomé de Las Casas para apontar
os antecendentes coloniais desse movimento. Ao problematizar
o racismo científico do século XIX, Favre afirma que as ideias
indigenistas surgiram como uma proposta de miscigenação entre a
raça indígena e a raça branca. As ideias de Favre são importantes,
pois nos levam a pensar a corrente indigenista como um elemento
usado pelos Estados latino-americanos para forjar as nacionalidades
baseando-se na mestiçagem (JESUS, 2012, p. 178).
Para a autora Laura Giraudo, tais definições são bastante
genéricas. No México o indigenismo alcançou maior relevância,
pois se tornou a base ideológica de um movimento de promoção da
mestiçagem. No começo do século XX a questão indígena se inseriu
na problemática nacional. Nesse sentido o indigenismo pode ser
considerado como a principal forma que assume o nacionalismo em
alguns países da América latina (GIRAUDO, 2008, p. 40).
Em 1940 a política indigenista avançou com relação a sua
institucionalização com a realização do I Congresso Indigenista
Interamericano em Pátzcuaro, Michoacán, entre 14 e 24 de abril.
Neste congresso estiveram presentes historiadores, etnólogos,
antropólogos e sociólogos de todos os continentes. Na delegação
mexicana estiveram presentes representantes de várias correntes,
como Moisés Sáenz, Alfonso Caso, Manuel Gamio, Vicente
Lombardo Toledano, Andrés Molina Enríquez e outros. Quem
também esteve presente foi o então presidente mexicano Lázaro
Cárdenas. Logo em seu discurso inaugural, Cárdenas afirmou que
o objetivo das políticas indigenistas não seria o de indigenizar o
México, mas sim mexicanizar os indígenas. No discurso inaugural
desse congresso Cárdenas expos que:
México tiene entre sus primeras exigencias la atención del problema
indígena y, al efecto, el plan a desarrollar comprende la intensificación
de las tareas emprendidas para la restitución o dotación de sus

62
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

tierras, aguas, bosques, créditos y maquinaria para los cultivos;


obras de irrigación, lucha contra las enfermedades endémicas y
las condiciones de insalubridad; fomento de las industrias nativas;
acción educativa con el fin de elevar sus condiciones de vida y para
enseñar-les sus derechos y responsabilidades para entrar en la
comunidad nacional (SÁNCHEZ, 1999, p. 41).
A solução de Cárdenas passava pela via da reforma agrária.
Embora as personalidades da delegação mexicana pertencessem
a diversas correntes, todos elas apoiaram a versão cardenista.
Consuelo Sanchez afirma que, a princípio, o indigenismo definido
no congresso seguiu um sincretismo entre o agrarismo cardenista
e as teorias indigenistas formuladas até então, principalmente por
Manuel Gamio e Moisés Sáenz. Com o tempo, a vertente puramente
integracionista se desenvolveu melhor e se impôs sobre as demais
(SANCHEZ, 1999, p. 41).
De maneira geral, as decisões do congresso se deram no
sentido de que a incorporação dos indígenas seria tarefa do Estado
por intermédio de medidas governamentais de caráter legislativo e
administrativo. O propósito era o de integrar os indígenas na vida
econômica, social e cultural da nação.
Na tarefa da integração dever-se-ia utilizar as virtudes das
“raças” indígenas objetivando o progresso coletivo da nação. O
presidente também chamou atenção para a dimensão continental da
questão indígena, assim como o pertencimento dos indígenas a uma
classe social na tarefa coletiva de produção, ou seja, assim como os
mestiços, os indígenas também eram parte importante na produção
de riquezas do México e, por conseguinte, no progresso da nação
(SANCHEZ, 1999, p. 40).
Nesse primeiro Congresso Indigenista realizado em Pátzcuaro,
foram criadas as metas oficiais das políticas indigenistas. Alejandro
Marroquín em sua obra “Balance del indigenismo” publicada pelo
Instituto Nacional Indigenista em 1972 resumiu as recomendações
oficiais no capítulo “Metas oficiales del indigenismo”. De acordo com
Marroquín, no âmbito político o congresso recomendou a criação,
em cada país, de órgãos para tratarem dos assuntos indígenas. Outra

63
Conflitos e Contradições na História

determinação importante de ser analisada é a econômica no qual


recomendou-se que não se mantivessem os indígenas na produção
agrícola, mas que os orientassem para a indústria. De acordo com
Marroquín o Congresso colocou a meta de “que no se pretenda
mantener el índio em la agricultura; que cuando sea conveniente se
le canalice para la indútria” (MARROQUÍN, 1972, p. 24).
A intenção dessa resolução seria a de fortalecer a disciplina
dos grupos e conservar os aspectos tidos como positivos deles, ou
seja, aqueles que estivessem de acordo com as aspirações nacionais.
O desenvolvimento das comunidades deveria ser guiado visando
a integração indígena à vida nacional de cada país. Para realização
de todas essas tarefas, reuniões periódicas com representantes
indígenas de cada país permitiriam conhecer e cooperar com a ação
indigenista (BARRE, 1985, p. 36).
As elaborações desse congresso podem ser vistas como uma
síntese de como se operacionalizaria a política indigenista mexicana
a partir de 1940. Embora a política indigenista seja vista como uma
elaboração original e adequada ao “problema indígena”, o autor
Hector Díaz-Polanco (1978, p. 20) afirma que na verdade a ação
indigenista respondeu à prática do sistema capitalista em geral, que
tenta um constante processo de assimilação e destruição das demais
formas de contato. Podemos notar a pertinência de tais ideias ao
tomarmos como referência algumas resoluções do congresso de
Pátzcuaro. O que se esconde por trás da ideia de melhorar a situação
econômica das comunidades é o desejo de inserir os indígenas
na lógica de produção capitalista. O desejo de orientá-los para os
trabalhos industriais traz em seu fundo a vontade de expandir o
mercado interno e incorporar ao processo de exploração técnica
algumas regiões que até então haviam sido refúgio dos indígenas.
Antonio Carlos Amador Gil também corrobora essa ideia ao afirmar
que:
A partir dos anos de 1940 e, principalmente a partir dos anos de 1950,
podemos citar, como exemplos desta política, os assentamentos
étnicos em zonas periféricas, as “regiões de refúgio”, os projetos
hidrelétricos e industriais e outros, que visavam eliminar a semi-

64
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

independência econômica e a identidade cultural dos grupos


indígenas, para convertê-los num proletariado rural, isto é, numa
massa com consciência de classe, mas desprovida de qualquer
sentido significativo de identidade étnica (GIL, 2012, p. 311).
Nessa perspectiva podemos entender o indigenismo também
como um recurso utilizado pelo governo e pelas elites para perpetuar
e reforçar o sistema de poder estabelecido. O limite das mudanças
engendradas pelos programas indigenistas seria o de não alterar nem
colocar em perigo a estrutura de poder nem os canais de exploração
econômica que caracterizavam a sociedade majoritária (WARMAN,
1970, p. 31).
Podemos entender o Congresso de 1940 como um marco
na transformação da política indigenista que, antes dele, atuava
principalmente no plano da educação, e após o congresso passou
para uma dimensão de introdução à produtividade, ao consumo e
ao desenvolvimento tecnológico (BÁEZ-JORGE, 2012, p.23). As
campanhas de alfabetização empreendidas durante a década de 20
e 30 no México devem ser inseridas no contexto da tentativa dos
governos de fundarem um novo pacto social pós revolução e acelerar
o processo de desenvolvimento econômico. Via-se na educação o
instrumento certo para alcançar uma integração nacional e uma
assimilação dos elementos tidos como marginais. Nesse cenário
o professor foi tido como de suma importância na mediação
do processo de integração. Um exemplo disso foram as grandes
campanhas de alfabetização que foram apresentadas como cruzadas
contra a ignorância, como as missões culturais de José Vasconcelos.
A partir da década de 1940 a política indigenista ganhou novos
contornos. A antropologia passou a ser o caminho para as políticas
integracionistas. Sendo assim, ela foi concebida no México como
parte de um grande projeto para criar a sociedade nacional baseada
na homogeneização guiada pelo Estado. A antropologia serviu como
instrumento para a aculturação e assimilação das diferenças no
continente americano e como parte de um projeto de Estado para
elaboração da identidade nacional (PUIG, 2012, p. 2).
Os antropólogos foram vistos como principais agentes sociais

65
Conflitos e Contradições na História

e mediadores do processo de mudança sociocultural, e, no caso


mexicano, como os executores das políticas públicas de mestiçagem.
Para esses intelectuais a função da antropologia enquanto servidora
do Estado mexicano era necessária. Essa fusão daria um caráter
científico às ações governamentais. Ao mesmo tempo caía-se numa
contradição, pois ao passo que alguns indigenistas afirmavam uma
vontade de dar voz às culturas indígenas, eles ocupavam importantes
cargos políticos e administrativos nas mais diferentes instituições de
difusão e aplicação do discurso integracionista estatal.
A valorização da antropologia nessa época pode ser comprovada
pela criação de diversas escolas e institutos de antropologia no México
que objetivavam pensar os problemas do país. Uma das escolas
criadas foi a Escola Internacional de Arqueologia e Etnologia das
Américas (EIAEA) criada no final de 1910, que apesar dos esforços
dos antropólogos que estiveram em sua direção, como Franz Boas
(1911-1912), Jorge Engerrad (1912-1913), Alfred Marston Tozzer
(1913-1914) e Manuel Gamio (1915), encerrou seu programa em
1915 devido às instabilidades políticas advindas da Revolução
Mexicana. Em 1937 o ensino de antropologia foi reintroduzido a
partir da fundação do Departamento de Antropologia (DA), do
Instituto Politécnico Nacional (IPN). Esse Departamento já em
1938 passou a ser vinculado ao Instituto Nacional de Antropologia
e História (INAH) que também criou a Escola Nacional de
Antropologia e História (ENAH) que até a atualidade exerce
papel de suma importância nos estudos antropológicos. Em 1950,
visando aumentar seu quadro de profissionais, o Instituto Nacional
Indigenista (INI) firmou um convenio com a ENAH para que esta
oferecesse o curso de Antropologia Social Aplicada, com ênfase nas
questões indígenas. Os alunos interessados podiam exercer suas
práticas dentro das regiões indígenas trabalhadas pelo INI, e, além
disso, ao final de sua formação poderiam conseguir cargos dentre
desse órgão. Nota-se com isso que a integração almejada pelo
indigenismo dos anos 1910 à 1940 teve como principal mediador a
figura do professor, no entanto a partir de 1950 é o antropólogo que
ganha destaque na mediação (CASAS MENDONZA, 2005, p. 196).

66
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

As teorias racialistas do século XIX permitiram a elaboração


de esquemas que hierarquizavam as sociedades, sob as denominações
de inferiores e superiores, e permitiam estabelecer graus de progresso
em que cada uma se encontrava. Como vimos, essas ideias foram
usadas na tentativa de assimilar as populações indígenas e os integrar
à sociedade nacional. Esse processo de assimilação implicava o
abandono por parte dos indígenas de suas características culturais
vistas como negativas e responsáveis pelo atraso mexicano. O
congresso de 1940 expressou uma mudança de atitude ao rechaçar
tais teorias baseadas no evolucionismo cientifico para adotar, pelo
menos ao nível teórico, a perspectiva do relativismo cultural de
origem norte- americana.
A concepção evolucionista será vista como etnocêntrica para
doravante buscar uma integração dos indígenas à sociedade nacional
respeitando aspectos de sua cultura. No entanto, os integracionistas
logo se darão conta da contradição entre o respeito às culturas e
a necessidade do Estado de implementar projetos de integração.
Afinal, se levassem em conta o absoluto respeito à cultura indígena,
o ideal de homogeneização buscado pelo Estado-nação moderno
ficaria totalmente comprometido. Diante de tal situação, os
antropólogos integracionistas logo buscarão, mesmo que de forma
implícita, reintroduzir velhas ideias do etnocentrismo a que tanto
haviam criticado. Com isso, as culturas indígenas só passarão a
ser respeitadas nos aspectos que não contrariavam a formação da
cultura nacional.
As determinações do Congresso de Pátzcuaro resultaram na
criação do Instituto Indigenista Interamericano (III). Moisés Sáenz
foi nomeado primeiro diretor desse órgão, cargo que ocupou até
1942 quando Manuel Gamio assumiu a direção e se manteve até
sua morte em 1960. Segundo as atas do Congresso de Pátzcuaro,
algumas das tarefas do III seriam: resgatar o patrimônio cultural
indígena; melhorar suas condições de saúde e educação; lutar
contra a discriminação racial; defender a propriedade das terras e
sua reforma agrária; defender o patrimônio cultural preservando a

67
Conflitos e Contradições na História

memória histórica dos povos indígenas; preservar a arte indígena;


vincular a medicina tradicional à ocidental buscando-se sempre
métodos preventivos e campanhas de alfabetização em língua
materna.
Esses eram os objetivos oficiais do III, no entanto, é preciso
confrontá-los com a prática e os interesses por trás dessas metas.
Fala-se em preservação dos valores indígenas, no entanto, só há
vontade de preservar os valores que coincidem com a cultura
nacional homogênea, dominada pelos valores mestiços. Os demais
valores indígenas foram sempre vistos como distantes e folclóricos,
como peças de museus a serem preservadas, mas nunca tomadas
como condizentes com a realidade e a contemporaneidade. A
ideia central indigenista era a de educar os indígenas para que eles
abandonassem seus hábitos vistos como atrasados e incompatíveis
com a cultura nacional moderna. Podemos questionar até mesmo a
ideia de que a ação indigenista empreendida dentro das comunidades
era destinada à população indígena já que a finalidade última de
tais empreendimentos visava a formação da nação homogênea
por intermédio do que os indigenistas chamavam de aculturação
(BONFIL BATALLA, 1981, p. 91).
De acordo com Henry Favre, os trabalhos do Instituto
Indigenista Interamericano, basearam-se em três princípios
fundamentais. O primeiro é de que a questão indígena é de interesse
público e urgente, por isso todos os governos devem dar prioridade
a ela. O segundo princípio é que tal questão não é de ordem racial,
mas de natureza cultural, social e econômica. O último princípio
diz respeito à defesa dos direitos indígenas e garantias de que eles
terão assegurado o acesso ao progresso econômico e aos recursos
modernos ocidentais (FAVRE, 1998, p.104).
Após a criação do Instituto Indigenista Interamericano em
1940, cada país deveria criar seu próprio instituto indigenista. Já em
1943, Colômbia, Equador e Bolívia criaram seus institutos nacionais.
A partir daí, outros países como Peru, Argentina, Guatemala e
Costa Rica seguiram o mesmo modelo. Seguindo as orientações do

68
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Congresso de Pátzcuaro, foi criado no México, em 1948, o Instituto


Nacional Indigenista (INI). A criação desse instituto fez parte de um
projeto associado ao desenvolvimentismo do governo de Miguel
Alemán (1946 – 1952) marcado pelo chamado “milagre econômico”,
período de forte industrialização baseado na substituição de
importações no México. A função desse instituto seria a de elaborar
e aplicar a política indigenista no México, através da investigação
das comunidades indígenas (BARRE, 1998, p. 104).
De acordo com Casas Mendonza, três princípios nortearam
as práticas do INI: a racionalidade das práticas a serem estimuladas,
o enfoque regional e o caráter integral dos programas, isso quer
dizer que o desenvolvimento deveria atingir um leque de ações
(saúde, educação, economia, comunicações, entre outras). Em suma
a atuação do INI deveria ser planificada, atingir diferentes campos, e
ser aplicada a uma região, mas entendida como um todo articulado
(CASAS MENDONZA, 2005, p. 175).
A participação dos antropólogos se tornou vital, pois se
considerava que o modelo anterior, que dominou durante a
etapa incorporacionista, tinha fracassado por não ter levado em
consideração as diferenças socioculturais e os contextos regionais. A
direção do INI foi dada ao já destacado antropólogo Alfonso Caso.
Alfonso Caso se formou em Direito na Universidad Nacional
Autónoma de México em 1919. Entre 1918 e 1940 foi professor de
filosofia da Unam e da Escola Nacional de Leis da Universidade de
Chicago. Seu interesse pela arqueologia era latente, tanto que, entre
1930 e 1933 se tornou diretor do Departamento de Arqueologia
do Museu Nacional. Uma de suas contribuições mais importantes
foram as investigações das culturas zapotecas e mixtecas (NÚÑES
LOYO , 2000, p. 34).
Caso buscou definir a população indígena para saber a quem
dirigir os esforços integracionistas. Para ele, a definição de índio não
poderia ser rigorosa nem absoluta e deveria ser resultado da análise
do processo de mestiçagem biológica e, principalmente, cultural.
Isso levou a reformulação da imagem do indígena no mundo

69
Conflitos e Contradições na História

acadêmico. Suas ideias foram influenciadas por figuras como Robert


Redfield, que realizou uma investigação sobre Tepoztlán, e Radccliffe
Brown, ambos da Universidade de Chicago. Como diretor do INI,
Alfonso Caso pretendeu definir quem eram os indígenas do México,
para assim poder determinar a quem seria dirigida a ação do INI.
No entanto, para Alfonso Caso, os estudos sobre as comunidades
impossibilitou a definição do indígena como indivíduo isolado, mas
somente como parte de uma comunidade. Esse autor buscou definir
o indígena através da comunidade, ou seja, não como indivíduo, mas
como um ser integrante de um grupo que com ele compartilha seus
valores e seu sentimento de pertencimento, logo a comunidade em
seu conjunto é que deveria receber as ações do INI (NÚÑES LOYO
, 2000, p. 36). De acordo com Margarita Nolasco Armas (1981, p.
71), Alfonso Caso utilizou quatro critérios para definir os indígenas:
o biológico (pessoas com características físicas não europeias), o
cultural (grupos que utilizam objetos, técnicas, ideias e crenças
de origem pré-hispânica, ou de origem europeia mas adotados
e adaptados comoindígenas), o linguístico (pessoas que falam
idiomas indígenas) e o sociológico (indivíduos que se sentem parte
da comunidade indígena). Sobre a definição do indígena, Alfonso
Caso postulou que:
Es indio todo individuo que siente pertenecer a una comunidad
indígena; que se concibe a sí mismo como indígena (consciencia de
pertenencia) porque esta consciencia de grupo no puede existir sino
cuando se acepta totalmente la cultura del grupo; cuando se tienen
los mismos ideales étnicos, estéticos, sociales y políticos de grupo;
cuando se participa de las simpatías y antipatías colectivas y se es de
buen grado colaborador en sus acciones y reacciones. Es decir que es
indio el que se siente pertenecer a una comunidad indígena (CASO,
2000, p. 37)
Para Alfonso Caso a discriminação social contra os
indígenas os impediam de se expressarem e de se desenvolverem
economicamente. O conjunto das comunidades é que deveriam
receber os benefícios dos programas integracionistas. Como diretor
do INI, Caso teve a tarefa de dar forma e conteúdo ao instituto. Sua
função principal foi a de criar um aparato governamental capaz

70
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

de integrar os indígenas, melhorar suas condições de vida e dar


verdadeiro valor à comunidade e à arte indígena dentro da cultura
nacional (NÚÑES LOYO , 2000, p. 37). Seus esforços passaram pela
promoção dos trabalhos artesanais, e o empenho de capacitar as
comunidades indígenas, e não só o indivíduo. Uma vez definida as
características das comunidades indígenas, deveria então integrá-las
a outras comunidades indígenas e mestiças. A integração significaria
também descartar os aspectos indígenas vistos como negativos, como
as velhas técnicas de cultivo, as práticas vistas como bruxaria, assim
como também impedir a marginalização dos indígenas, e cultivar
os aspectos tidos como positivos, tais como a produção artística, a
vestimenta, as festas tradicionais e outras (NÚÑES LOYO , 2000, p.
35).
Alfonso Caso se interessou por uma integração cujo
conhecimento das comunidades seria fundamental. A princípio se
deveria estudar e analisar as comunidades para depois criar vias de
integração. Vale a pena analisar o projeto de aculturação proposto
por Alfonso Caso. Segundo ele:
Existen grupos atrasados que forman comunidades a las que
hay que ayudar para lograr su transformación en los aspectos
económico, higiénico, educativo y político; es decir, en una palabra,
la transformación de su cultura, cambiando los aspectos arcaicos,
deficientes- y en muchos casos nocivos, de esa cultura- en aspectos
más útiles para la vida del individuo y la comunidad. Lograr esta
transformación es lo que se llama aculturación (CASO, 2000, p. 37).
Segundo Consuelo Sanchez (1999, p. 42), Caso afirmava que a
ação integracionista consistia em “uma aculturação planificada pelo
Governo Mexicano”. A integração que propôs Caso implicava em
transformações culturais e econômicas das comunidades indígenas.
Essa definição de aculturação deixa claro que, para os antropólogos
integracionistas, muitos aspectos da cultura indígena eram nocivos
ao projeto de nação mexicana, por isso havia urgência de transformá-
los. Para efetivar essa ideia, Caso afirmava que os indígenas deviam se
colocar sob direção e controle do Estado mexicano. Somente quando
a comunidade tivesse aceitado as trocas culturais indispensáveis
é que acabaria a sujeição dessas comunidades ao Estado. Nesse

71
Conflitos e Contradições na História

caso, quando os indígenas tivessem assimilado a cultura nacional


e tivessem desaparecido os inúmeros grupos étnicos, a política
indigenista assim como o INI desapareceria.
Vale ressaltar que a teoria da aculturação dominou o
cenário das políticas públicas destinadas aos indígenas. Diversos
antropólogos mexicanos dissertaram sobre o tema, como Manuel
Gamio, Alfonso Caso, Moisés Sáenz e Gonzalo Aguirre Beltrán.
Apesar das divergências em alguns detalhes, todas essas formulações
foram elaboradas a partir dos estudos vigentes nas universidades
norte-americanas onde se destacavam nomes como os de Melville J.
Herskovits, Robert Redfield, Ralph Linton e George Foster. De modo
geral, esses autores afirmaram que a inter-relação entre culturas
distintas, produz um processo de assimilação que dá origem a uma
nova cultura resultado dessa síntese. No caso mexicano a cultura
que resultaria dessa síntese seria a mestiça que sobreporia seus
valores aos indígenas. O que intencionava o INI e seus antropólogos
dirigentes era acelerar esse processo através de ações dirigidas pelo
Estado (PUIG, 2012, p. 2).

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e seu destino final: o indigenismo. In: JUNQUEIRA, Carmen;
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Conflitos e Contradições na História

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histórica de la antropología mexicana. In: De eso que llaman
antropología Mexicana. Mexico: Editorial Nuestro Tiempo. 1970.

74
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

A estatização da Estrada de Ferro


Leopoldina sob a ótica do movimento
sindical (1951-1953)
Celio Teixeira Alves Gusmão1

Introdução
O presente trabalho teve como objetivo analisar os jornais
Imprensa Popular e Última Hora para abordar a estatização da
Estrada de Ferro Leopoldina sob a ótica do movimento sindical
de 1951-1953. Ao analisar, o jornal Imprensa Popular, o qual era
o jornal do PCB, Partido Comunista do Brasil, concluí-se que o
projeto do partido era posto em prática organizando a base dos
trabalhadores da Empresa. As denuncias feitas, pelo jornal, tinha
como foco, que os trabalhadores tomassem consciência da sua
realidade e direcionassem as lutas para a direção da Empresa.
Durante a pesquisa ao Jornal, nota-se que essas lutas são ampliadas,
a partir das reivindicações pelo aumento de salário passa para o
âmbito de outras instituições, exemplo quando os funcionários da
Leopoldina brigam para se enquadrarem como servidores públicos
e autárquicos na comissão que existia. A postura do Jornal Última
Hora era de corroborar com o trabalhismo empregado por Getúlio
Vargas. A forma de apoiar as reivindicações do Sindicato pela JCJ era
a forma legal e sempre evitar ao máximo o conflito, no qual Vargas
seria o mediador desse conflito. Os temas tratados serão condição de
trabalho, sindicato, sindicalismo num sentido mais amplo, o PCB na
Leopoldina, a empresa Estrada de ferro Leopoldina e a política num
sentido mais amplo. Para analise metodológica foi utilizado Adam
Przeworsky e E. P. Thompson, os quais nos trazem uma concepção
da formação da classe trabalhadora que será debatida.
A Estrada de Ferro Leopoldina foi construída a partir de 1873
e inaugurada em 1886, incorporou diversas empresas de menor
porte, espalhando-se por vastas extensões territoriais dos estados

1 Graduado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

75
Conflitos e Contradições na História

de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, superando 3 mil


quilômetros, transportando cargas, encomendas e passageiros.
Em 1890, a Companhia E. F. Leopoldina adquiriu várias linhas,
a saber: Carangola, Ramal de Itabapoana, Ramal de Patrocínio,
Araruama (Tronco), Estrada de Ferro Grão Pará, Norte, Juiz de
Fora a Piáu, Central de Macaé, Imbetiba a Campos, Campos a São
Sebastião, Santo Antonio de Padua, Ramal Férreo de Cantagalo e
Santo Eduardo a Cachoeiro de Itapemirim. Em primeiro de julho de
1895, foi inaugurada a estação de Mimoso, na estrada de ferro Santo
Eduardo a Cachoeiro de Itapemirim. Em 1891, a extensão total
da rede da Companhia Estrada de Ferro Leopoldina era de 2.127,
km582, sendo 884, km 117 da Rede Mineira, 1.246, km465 da Rede
Fluminense e 37 quilômetros da Rede Espírito-santense, segundo
Edmundo Siqueira (1938). A E. F. Leopoldina, vale lembrar, passou
por vários governos, dentre os quais, inicia-se no final do Brasil
Império e posteriormente Brasil República.
Com os desdobramentos dos fatos narrados acima, em
06/12/1897 foi organizada em Londres a The Leopoldina Railway
Company Ltd. Autorizada no ano seguinte, pelo Decreto n. 2.797,
de 14/01/1898, a funcionar no Brasil. Seus diretores eram ingleses.
Essa empresa, obrigada pelo contrato a cumprir os acordos
realizados com as empresas incorporadas, assumiu todos os bens
e empreendimentos da E. F. Leopoldina. Com a ajuda do governo
e com o passivo existente, construiu e reformou a empresa. Com
novas concessões, prolongou os trilhos até Vitória, no Espírito
Santo. De Ponte Nova, a ferrovia estendeu-se até Raul Soares e de
Carangola a Manhuaçu. A Leopoldina recebeu 2.118 quilômetros de
linha, construiu 618 e adquiriu 280 quilômetros.
A cidade de Cachoeiro do Itapemirim foi o ponto final de
um dos ramais. Cachoeiro também era grande produtor de café e
dali escoava a produção para outras regiões. E havia o trânsito de
passageiros que permitia a comunicação com as cidades de Campos
e o Rio de Janeiro.
Até 1920, a empresa continuou sendo uma ferrovia cafeeira,

76
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

quando o valor dos laticínios ultrapassou o valor do café. Com


salários baixos, condições de trabalho péssimas e perseguições dentro
da empresa por parte da diretoria aos ferroviários que reivindicavam
melhores condições de trabalho, as greves eram constantes e também
constantes as intervenções federais para solucionar conflitos
trabalhistas e os déficits. Esses fatores associados à queda do café foi
um dos “pecados capitais” cometido pela empresa. Por volta de 1948,
havia um total de 2.546 trabalhadores nas estações, distribuídas nas
funções de: chefe de estação; ajudantes de estação; fiscais de rodízio;
porteiro; guarda salão; cabineiros; bagageiros; manobreiros de pátio;
guarda-chaves; trabalhadores; guarda passagens; vigias e folgadores;
distribuídos em 307 estações; 200 paradas e 35 postos telegráficos.
Decidida a encampação, as negociações efetuaram-se entre
os anos de 1948 e 1949, nas cidades do Rio de Janeiro e Londres.
A direção da empresa empenhava-se em garantir um preço de 11
milhões de libras, mas a proposta do Ministério da Viação (aceita
pelo Ministro da Fazendo e pelo presidente Dutra) era o de não
pagar mais de 7,5 milhões de libras. Havia uma “oposição ácida
às negociações” no próprio governo, no mundo da política e dos
negócios no Brasil. Os ingleses acreditavam que, por conta dos
temores quanto à situação trabalhista na empresa, o governo acabaria
aceitando um preço alto. No final de 1948, conforme a expectativa
dos britânicos, o governo estava disposto a aumentar o valor. No
acordo final, ficou a União responsável por todos os encargos
financeiros da empresa, sendo designado um administrador geral
para atuar junto à diretoria inglesa, a partir de 30 de abril de 1949.
Isto é o que nos coloca a historiadora Dilma Andrade de Paula
(2000) em sua tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Fluminense com o título: Fim de
linha. A extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-
1974.
Pela Lei 1.288, de 20/12/1950, a Leopoldina Railway foi
encampada e seu nome oficial passou a ser novamente Estrada de
Ferro Leopoldina. O governo brasileiro pagou 10 milhões de libras

77
Conflitos e Contradições na História

esterlinas pela estrada de ferro, com todo seu material fixo e rodante,
instalações auxiliares, bem como todas as propriedades imobiliárias
da Companhia do Brasil, estranhas à via férrea. Combinou-se que
o material do almoxarifado e dos armazéns de abastecimento seria
pago pelo preço de custo. O Governo desobrigava a Empresa de
ônus.

Literatura sobre o tema


Nesta pesquisa, foram utilizados dois autores para o
embasamento: o cientista político Adam Przeworski e o historiador
Edward Palmer Thompson. Os dois tratam da formação da classe
trabalhadora. Przeworski será importante para entender como a
base do operariado da ferrovia E. F. Leopoldina consegue eleger um
deputado a partir de uma liderança vinculado ao PCB. Já Thompson
mostra que a formação da classe trabalhadora é um processo
histórico, que se constrói. Diz que a experiência aparece como
determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe, a
qual dependera da exploração, percepção, cultura, cotidiano, a luta
de classe.
Przeworski (1991) discute o processo de formação de classes.
Inicia dizendo que há dificuldades encontradas pela teoria marxista
em analisar a estrutura de classes de sociedades capitalistas concretas
já se haviam revelado na época da formação do movimento
socialista. Segundo, Marx os processos de formação de classes são
vistos como uma transição necessária de uma “classe em si” para
uma “classe para si”, formulação essa em que as relações econômicas
são classificadas como condições objetivas e todas as outras relações
são consideradas como pertencentes a esferas de ações subjetivas.
Contudo, Przeworski, em vez de tomar essa formulação por base
sugere outra, concebida por Marx, de que as condições econômicas,
políticas e ideológicas estruturam conjuntamente a esfera das
lutas que tem como resultado a organização, desorganização
e reorganização de classes. Assim sendo, as classes devem ser
consideras como efeitos de lutas estruturadas por condições

78
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

objetivas que são ao mesmo tempo de ordem econômica, política


e ideológica. A partir dessa formulação, Przeworski afirma que
uma conseqüência necessária do desenvolvimento capitalista é o
fato de que uma certa quantidade de força de trabalho socialmente
disponível não encontre emprego produtivo e essa força de trabalho
excedente pode torna-se socialmente organizada de várias formas,
as quais não são determinadas pelo processo de acumulação, mas
sim diretamente pela luta de classes.
Przeworski diz que a ambivalência encontrada no conceito de
proletariado proposto por Marx encontra-se na própria dinâmica do
desenvolvimento capitalista por ser uma transformação continuada.
Cito o autor:
O desenvolvimento capitalista transforma continuamente a
estrutura de lugares no sistema de produção e realização do
capital, bem como em outros modos de produção que passam a
ser dominados pelo capitalismo. Mais precisamente, a penetração
do modo de produção capitalista em todas as áreas de atividade
econômica resulta na separação de vários grupos da propriedade
dos meios de produção ou da efetiva capacidade de transformar
a natureza em produtos úteis. Ao mesmo tempo, a crescente
produtividade do trabalho diminui, em termos relativos, a
utilização da força pelos capitalistas. Em conseqüência, o processo
de proletarização no sentido de criação de lugares de trabalhadores
produtivos. Essa divergência gera relações sociais que não se
enquadram nos termos das classes do modo de produção capitalista,
pois conduz exatamente à separação das pessoas de qualquer
processo de produção socialmente organizado (PRZEWORSKI ,
1991, p. 79).
Portanto, Przeworski argumenta que “proletarização” é um
conceito de duplo significado. Em termos da destruição de lugares
na organização da produção pré-capitalista e nos primórdios
do capitalismo significa separação da propriedade dos meios de
produção e da capacidade de transformar a natureza em recursos
próprios. Porém, em termos de criação de novos lugares no interior
da estrutura do capitalismo desenvolvido, o termo proletarização
não denota necessariamente a criação de novos lugares relativos a
trabalho produtivo manual. Pois a criação de novos lugares por uma
variedade de grupos de status ambíguo não necessariamente precisa

79
Conflitos e Contradições na História

ser de novos lugares relativos a trabalho manual produtivo. E o autor


irá falar que esse hiato que existe na conceituação de proletarização
aumentou.
O autor procurará mostrar que a questão da identidade de
classe dos trabalhadores não-manuais obriga-nos a reconsiderar toda
a problemática da formação de classes. Como agentes históricos, as
classes não são determinadas unicamente por posições objetivas, nem
mesmo a de operários e capitalistas. Portanto, Przeworski afirmara
que a própria relação entre agentes históricos (classes em luta) e os
lugares nas relações de produção deve torna-se problemática:
As lutas de classes não tem o caráter de epifenômenos e nem
são livres de determinação. São estruturadas pela totalidade das
relações econômicas, políticas e ideológicas, e produzem um efeito
autônomo sobre o processo de formação de classes (PRZEWORSKI,
1991, p. 86).
E o autor irá argumentar que as posições nas relações de
produção, ou quaisquer outras relações, não são mais, portanto,
consideradas objetivas no sentido de serem anteriores às lutas de
classes. São objetivas apenas na medida em que tornam os projetos
específicos realizáveis ou não. E aqui o mecanismo de determinação
não é único, vários projetos podem ser viáveis em uma dada
conjuntura. E finaliza dizendo que as classes são efeito de lutas que
ocorrem em uma determinada fase do desenvolvimento capitalista.
Devemos compreender as lutas e o desenvolvimento em sua
articulação histórica concreta, como um processo.
Portanto, o autor argumentará que o processo de formação
de classes se dá no decorrer de lutas, que são estruturadas por
condições econômicas, políticas e ideológicas sob as quais ocorre, e
que essas condições objetivas, simultaneamente econômica, política
e ideológica, moldam a prática de movimentos que procuram
organizar os operariados em classe. Przeworski irá citar Marx e
Gramsci a respeito como essas praticas se moldam.
Como afirmou Marx, e Gramsci não se cansou de repetir, é na
esfera da ideologia que as pessoas tomam ciência das relações sociais.
Aquilo em que passam a acreditar e o que fazem é efeito de um longo

80
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

processo de persuasão e organização por forças políticas e ideológicas


engajadas em numerosas lutas pela realização de seus objetivos. As
classes não antecederam a prática política e ideológica. Qualquer
definição das pessoas como operários ou indivíduos, católicos,
francófonos, sulistas, etc. – é necessariamente inerente à pratica de
forças políticas engajadas em lutas para manter ou alterar de várias
maneiras as relações sociais existentes. As classes são organizadas
e desorganizadas em conseqüência dessas lutas contínuas. Partidos
que se definem como representantes dos interesses de várias classes
e partidos que se pretendem representantes do interesse geral,
sindicatos, jornais, escolas, burocracia oficial, associações civis e
culturais, fabricas e exércitos e igrejas - todos participam do processo
de formação de classes no decorrer de lutas que dizem respeito
fundamentalmente à própria divisão da sociedade.
Przeworski cita Thompson, o qual vai concordar com sua
definição que a classe é definida pelos homens ao viverem sua própria
historia e, no fim, essa é a única definição. Mas explica que não
quer dizer que as classes se organizem espontaneamente, significa
que as classes são efeitos contínuos da totalidade das lutas, lutas
essas que assumem formas especificas conforme a organização das
relações econômicas, políticas e ideológicas. A política e a ideologia
têm um efeito autônomo sobre os processos de formação de classes
porque condicionam as lutas no decorrer das quais as classes são
organizadas, desorganizadas e reorganizadas. O autor cita Rosa
Luxemburgo, a qual consegue esclarecer melhor a divisão entre luta
política e luta econômica na democracia capitalista:
No desenvolvimento pacifico “normal” para a sociedade burguesa,
a luta econômica é fracionada, desagregada em um sem-número de
lutas parciais limitadas a cada empresa, a cada ramo da produção.
Por outro lado, a luta política é conduzida não pelas massas por
intermédio da ação direta, mas, em conformidade com a estrutura
do Estado Burguês, no estilo representativo, pela pressão sobre o
corpo legislativo (PRZEWORSKI , 1991, p. 92).
A partir desse Estado Burguês, os operários se organizam
em classes. Przeworski explica que o movimento socialista tem
por objetivo buscar essa classe operária, mas que, para ganhar uma

81
Conflitos e Contradições na História

eleição, é necessário ampliar o termo de classe operária e abarcar


essa nova classe que surgiu, segundo o autor, em meados do século
XIX nas sociedades capitalistas concretas. Portanto o autor diz que
não é o proletariado que está sendo organizado como classe, e sim
uma variedade de pessoas, algumas das quais estão separadas do
processo de produção. Os processos de constituição dos operários
em classe não ocorrem no vácuo, são inextricavelmente vinculados
às totalidades dos processos pelos quais coletividades surgem em
luta em determinado momento da história. As classes são formadas
como efeitos de lutas, à medida que lutam, transformam as condições
sob as quais se formam as classes.
Przeworski segue individualismo metodológico para analisar
a classe. Seus membros, a partir de escolhas que os indivíduos fazem,
norteiam sua escolha para se identificarem como operários ou não,
cooperar com outros operários ou não, votar em um partido socialista
ou não, mesmo pertencendo ao objetivamente ao operariado.
Thompson (1987) afirma que a classe é um processo histórico
se constrói a partir de sua vivência e experiência a partir da luta de
classes, diferentemente de Przeworski. Cito uma parte do inicio do
prefácio, onde o autor entende por classe:
Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série
de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto
na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que
é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura”,
nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre
efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações
humanas (THOMPSON, 1987, p. 9).
O autor fala o que acontece quando alguns homens, como
resultados de experiências comuns (herdadas ou partilhadas),
sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e
contra outros homens cujos interesses diferem e geralmente se
opõe ao seu. A consciência de classe afirma que é a forma como
essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em
tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a
experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com
a consciência de classe, elas surgem em tempos e lugares diferentes,

82
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

mas nunca exatamente da mesma foram. Thompson ira explicar


que, se examinarmos homens durante um período da história de
mudanças sociais, veremos padrões em suas relações, suas ideias e
instituições. Portanto, o autor entende a classe operária como uma
formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser
estudados quando eles mesmos operam durante um considerável
período da história. Portanto, tanto Przeworski quanto Thompson
nos trazem uma visão heterodoxa e inovadora sobre o marxismo.

Análise das fontes


No presente estudo, foram pesquisados dois jornais: Imprensa
Popular e Última Hora, que são disponibilizados na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Ambos eram localizados na cidade
do Rio de Janeiro, capital do Brasil à época. O recorte da pesquisa
realizou-se nos anos de 1951 a 1953. Primeiramente, importa situá-
los nessa pesquisa, pois ambos tinham visões diferentes naquele
momento. O Imprensa Popular era uma publicação de esquerda,
que focava aspectos da vida da classe trabalhadora, noticiava seus
problemas e criticava o Governo. Este jornal tinha um cunho político.
Sendo ligado ao PCB, o jornal era visto como uma ferramenta para
difundir as suas ideias. Via-se claramente no seu noticiário, por
exemplo, propagandas eleitorais de candidatos filiados ao partido.
Neste momento, o PCB encontra-se na ilegalidade mais uma vez, de
forma que um órgão como este servia ao propósito de divulgar o seu
projeto político. Já o Última Hora funcionava como via de apoio ao
Governo, ou seja, apoiava o presidente Getúlio Vargas (1951-1954).
Esta postura era notória em suas manchetes. O impresso seguia
uma linha próxima ao ideário trabalhista, pois, no que se refere às
denúncias feitas sobre condições de trabalho do operariado, a forma
típica de argumentação remetia à mediação do poder de Estado para
buscar a solução de problemas. Aumentos de salários deveriam dar
origem a processo de dissídio coletivo na Justiça do Trabalho, por
exemplo. A via legítima era concebida no campo desta forma legal
de reivindicação dos funcionários das Empresas e, assim, evitando

83
Conflitos e Contradições na História

o conflito aberto. Portanto, o projeto de Nação do varguismo, era


priorizado no Última Hora.
A leitura do Imprensa Popular sobre a Estrada de Ferro
Leopoldina em 1952 permitiu revelar seis temas: 1) Condição de
trabalho; 2) Sindicato; 3) Sindicalismo em sentido mais amplo; 4) O
PCB na Leopoldina; 5) A Empresa Estrada de Ferro Leopoldina; 6)
Política num sentido mais amplo. A seguir, tratarei dos seis temas.
A E. F. Leopoldina passou por grandes mudanças durante o
Governo de Getúlio Vargas. O tema tratado será sobre a estatização
desta. A empresa foi encampada no Governo de Getúlio, mas a
“negociata” teria ocorrido anteriormente, no Governo de Dutra. A
greve de 1948, durante o Governo de Dutra, foi pela encampação
da Leopoldina. Os ferroviários alegavam que a empresa Leopoldina
Railway Company Ltd. não vinha cumprindo o contrato,
disponibilizando um serviço de péssima qualidade aos passageiros,
que as condições de trabalhos dos ferroviários eram ruins, que eram
baixos os salários pagos aos funcionários, etc. Além disso, o contrato
e o prazo de arrendamento findariam em 1952. Os ingleses queriam
vendê-la, mas com uma indenização muito alta. Durante a Segunda
Guerra Mundial, o Governo brasileiro havia acumulado créditos
na sua balança comercial com o Reino Unido e desejava fazer uso
dele, mas o governo britânico suspendeu a conversibilidade da libra
esterlina e o crédito de £60 milhões disponível foi limitado, em 1948,
apenas ao pagamento de dívidas e à aquisição de empresas britânicas
de serviços públicos. A proposta do Brasil para a compra foi de £7,5
milhões enquanto a diretoria da Empresa queria £11 milhões, mas,
no final da barganha, a empresa foi comprada por £10 milhões.
Houve, então, uma reação nacionalista contra este pagamento,
o que gerou falas de parlamentares a respeito da compra. Com a
posse de Getúlio Vargas em 1951 esse tema sobre como se deu a
encampação da Leopoldina se tornou corrente no Imprensa Popular
e no Última Hora. Denúncias eram feitas sobre a “negociata” que
resultou da atitude de muitos empresários que, sabendo de antemão
da encampação pelo Governo, aproveitaram para compraram

84
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

ações a baixo preço, auferindo grandes lucros, enquanto a estrada


permanecia em péssimas condições de funcionamento.
Gerson Moura (2013) aborda esse tema. Ele constata que não
é possível afirmar que a encampação da Leopoldina tenha sido uma
negociata com as evidencias e sim mais uma questão política, pelo
fato do movimento de esquerda está crescendo no mundo e dentro
da Empresa. Isso explica a boa vontade do Governo brasileiro
em fechar o negócio, mesmo a Grã-Bretanha colocando tantos
impedimentos, como aumentando o preço.
Outro fato também noticiado eram as condições de trabalho
noticiadas pelo Imprensa Popular e pelo Última Hora. Os dois jornais
denunciavam o caso da reestruturação dos cargos dos funcionários
da Leopoldina. Segundo os funcionários, a empresa estruturou os
cargos, mas não respeito critérios de antiguidade, tempo de serviço
e deu um aumento significativo ao pessoal da administração. Essas
eram as denúncias a respeito da reestruturação. Diante disso, os
empregados reivindicaram que a diretoria respeitasse critérios
impessoais. Neste sentido, é interessante notar a postura dos dois
jornais. O Última Hora noticiava o quadro da estruturação com
o viés político do trabalhismo, afirmando ser necessário que os
funcionários que se sentissem prejudicados dessem entrada com
processos na Justiça do Trabalho. Diante da situação, a via legal
seria a mais adequada. Já o Imprensa Popular noticiava com outra
ótica. Ele denunciava o não pagamento de direitos trabalhistas,
como o salário família, a licença-prêmio, o desrespeito ao horário
de almoço, o corte das diárias para os que trabalhavam nos trens
em longas viagens, as escalas de serviço que desconsideravam o
descanso entre os turnos e a existência de níveis salariais distintos
para os que realizavam as mesmas tarefas, como maquinistas e
foguistas, os critérios de promoções não respeitados pela empresa.
Desta forma, refletindo a leitura do PCB, o foco se dirigia para
as medidas da empresa que buscavam desunir os trabalhadores.
Ou seja, mecanismos de disciplinarização da mão-de-obra para
combater a solidariedade dos funcionários.

85
Conflitos e Contradições na História

Durante a pesquisa no Imprensa Popular outro aspecto que


evidenciou a presença do PCB na empresa foi a guinada na atitude
de não mais apoiar o sindicato. Até a metade do ano de 1952, o jornal
apoiava as atitudes do sindicato, mas, com a chegada para eleição
sindical, ele mudou de postura e passou a criticar abertamente a
direção, pois se preparava para disputar o comando da entidade. O
PCB apoiava as lutas e reivindicações dos funcionários. Ele agia na
base da empresa, organizando e politizando-a. Especificamente, no
jornal, surgem dois movimentos paralelos: uma era um memorial que
a agremiação enviou às autoridades reivindicando aumento salarial
e melhores condições de trabalho. O outro era o da militância junto
aos funcionários públicos e autárquicos, que haviam se unificado
em torno de uma pauta única de aumento. O memorial era enviado
à diretoria da empresa e outro ao Presidente da República para
atender as suas reivindicações. Mesmo que não fossem atendidas,
Jorge Ferreira (2011) nos mostra que esse fenômeno era uma prática
comum. A partir do Estado Novo foi identificada a prática de enviar
cartas, telegramas e memoriais ao Presidente, que montou um serviço
para dar-lhes resposta. Desta forma, no caso em questão, chegou a
tal ponto de se aberto uma mesa de negociação no Departamento
Nacional do Trabalho, mas que também não deu em nada.
Outro ponto noticiado pelo jornal foi a questão da CAP, a
Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Funcionários da Leopoldina.
Havia a denúncia da entidade sobre o aumento que ocorreu para
o financiamento de casas para os funcionários, especificamente
em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, que estava sob
o comando municipal do PTB e cancelou a concessão de alguns
terrenos nos quais seriam construídas casas para os respectivos
funcionários. A partir daí, desenvolveu-se uma expectativa de que o
sindicato desenvolvesse uma particular militância.
O presidente do sindicato dos ferroviários naquele momento
era Dimpino Martins Lessa. A reportagem do Imprensa Popular
chegou a enviar a reportagem a estação Central da Leopoldina,
conhecida como Barão de Mauá, para saber se os ferroviários

86
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

aprovavam o trabalho do Sindicato. Os relatos foram que aprovavam,


pois estavam gostando das reivindicações pelo aumento do salário.
Mas, como exposto à cima, o Jornal era neste momento, neutro
quanto à diretoria do sindicato. Em novembro, porém, mudou
radicalmente, ao ter conhecimento que Dimpino Lessa prosseguiu
até a Estação em Campos, onde se encontrava o militante comunista
Jacy Barbeto, com o objetivo de tentar recrutá-lo para campanha
sindical. Ele se recusou, o que gerou perseguições, inclusive
denúncias de que queriam transferi-lo para outro lugar, para, assim,
conseguir desorganizar a base que o PCB vinha organizando na
Leopoldina. Sabemos pelo trabalho de Leonardo Soares dos Santos
(2016) que Jacy Barbeto havia sido enviado com seu irmão pelo PCB
a Campos para fazer trabalho de base, o que foi bem sucedido, já que
em 1963 ele foi eleito vereador. O PCB tinha grande influência em
Campos e entre os ferroviários.
Portanto, quando a entidade passou a atacar a base que se
organizava, o jornal mudou de atitude e iniciou o ataque a direção
constituída. Antes disso, procurava defender todas as formas de
lutas e reivindicações da entidade, não elogiava essa a prática típica
do reformismo, mas não deixava de apoiar, tendo em vista a dura
repressão desencadeada contra o PCB na empresa desde a greve de
1948. Havia uma orientação por parte dos seus militantes de apoiar
qualquer forma de luta e reivindicação estabelecendo um confronto
com a Empresa, mesmo que fosse apoiar uma pratica típica
reformista que a entidade fazia. O PCB, a partir dessas práticas,
mostra uma atitude de se aproximar da realidade dos trabalhadores
e conseguir direcionar o foco de luta contra a direção da Empresa. A
possível vitória para a direção sindical iria encontrar este trabalho já
feito e pronto para um novo salto qualitativo.
A partir desse viés de sindicalismo empregado na empresa,
de um sindicalismo construído pela base e sua relação com questões
mais amplas devemos ver o tópico de sindicalismo mais ampliado. O
PCB tinha seu próprio projeto político, que constava de uma leitura
própria do modelo elaborado no primeiro governo de Vargas, que

87
Conflitos e Contradições na História

era a industrialização via estatal dos recursos naturais em aliança com


o capital privado nos outros setores e acompanhando da ampliação
dos direitos trabalhistas e sociais, principalmente para o campo. Os
seus componentes são bem analisados por Guido Mantega (1987).
O ponto do qual partia o projeto comunista era o de identificar os
inimigos da modernização capitalista, base para uma futura mudança
mais profunda, em direção ao socialismo. Assim, os indicados eram
os latifundiários e as empresas estrangeiras (trustes), que lucravam
no campo dos recursos naturais e que, portanto, atuavam contra o
projeto do PCB. Entre outras palavras, lutar contra o “imperialismo”
era ser a favor do monopólio estatal do petróleo e da estatização das
atividades econômicas.
Os interesses dos “trustes” eram vistos como de alinhamento
com o governo dos Estados Unidos em sua luta contra a URSS e
os países socialistas. Sendo encarados como componentes do
imperialismo, eles eram tidos como engrenagens fundamentais
não só do desenvolvimento do capitalismo nos países centrais
como meios para o enfrentamento econômico e militar do bloco
socialista. Não é à toa que o PCB desenvolveu, na mesma época,
uma mobilização pelo controle das bombas atômicas, a Campanha
pela Paz, no bojo da qual também se condenava a Guerra da
Coréia e a pressão dos EUA para que o Brasil dela participasse. O
PCB, desta forma, identificava os inimigos: os EUA, os trustes, os
latifundiários e as lideranças políticas ligadas a esses inimigos, como
era o caso do próprio Getulio Vargas. Por fim, o partido via no
conflito as conquistas dos direitos trabalhistas e sociais, enquanto o
trabalhismo, que também preferia estimular uma visão nacionalista,
via Vargas como mediador desse processo de alianças e acordos, no
qual a Justiça do Trabalho e os sindicatos deveriam agir em busca da
conciliação, evitando ao máximo a luta social.
O destaque pelo partido ao conflito dependia de sua
capacidade de mobilização da uma base de apoio e sua politização
de certa forma. Em qual sentido ele buscava fazer isso? Denunciado
as condições de trabalho, ou mesmo o sindicato que, se não atendia

88
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

aos anseios dos trabalhadores, passava a ser criticado. Mas, para


solução desses problemas, era necessário que os trabalhadores
entendessem que a luta precisaria se dar de uma forma mais ampla.
Nesse sentido, o Imprensa Popular estimulou a categoria a aderir
à Central Pró-Aumento de Salários dos Funcionários Públicos e
Autárquicos. Ou seja, as denúncias pelo aumento do custo de vida,
da falta de vontade do governo Vargas em enfrentar o problema
e da necessidade de obter aumentos de salários e controlar preços
era constante. A grande questão era a de obter níveis maiores de
politização e organização, reunindo os trabalhadores em formas
cada vez mais amplas e organizadas de luta. A Comissão Central
cumpria um papel neste sentido. Sua pauta era a de um aumento
linear para todos os servidores públicos. O sindicato assumiu essa
demanda, no entanto, o governo alegou que os funcionários da
Leopoldina, pela recente encampação, não poderiam perceber tais
tipos de ganho, porque sua situação não estava definida em termos
de pertencimento funcional à categoria de servidor público ou de
autarquias. Isto dependia de um Projeto de Lei parado no Congresso.
Portanto, o Governo se beneficiou de uma medida legalista para
justificar o não enquadramento do funcionalismo da Leopoldina.
A postura do sindicato foi a de insistir junto ao Executivo pelo
enquadramento dos funcionários da Leopoldina como autárquicos
e pela concessão de um aumento específico para eles, como foi
descrito acima. Este caminho recebeu destaque no Imprensa Popular,
pois era coerente com uma leitura que defendia a unificação dos
trabalhadores em níveis cada vez mais amplos. Nesta linha, de unidade
e solidariedade, não só no interior da categoria, mas também com
relação a outros setores em luta, o jornal noticiou a campanha pelo
fundo de greve dos empregados nas empresas têxteis, que recebeu
apoiada por parte dos ferroviários da Leopoldina. Nisso nota-se
a linha do PCB entre os trabalhadores visando à solidariedade de
classe entre os trabalhadores numa forma mais ampla. Vale notar
que muitas das notícias deste tipo citam iniciativas que podem ter
sido tomadas por grupos ligados ao partido entre os ferroviários e
não necessariamente uma atitude ampla do grupo.

89
Conflitos e Contradições na História

Esta última observação remete às matérias no jornal que


permitem identificar a presença do PCB na Leopoldina. O esforço
do partido em politizar sua base contra a Guerra de Coréia e a
Campanha pela Paz mostra a atuação do partido na base da empresa.
Sobre este assunto, Jayme Ribeiro (2011) mostra o empenho do
partido em colocar em prática a mobilização popular contra o
imperialismo. A contribuição desta pesquisa, por sua vez é a de
demonstrar o esforço dos comunistas em popularizar a campanha
no interior das empresas nas quais ele buscava crescer. Assim, em
fevereiro, o Imprensa Popular mostrou que funcionários de “diversas
corporações” e da Leopoldina em particular (provavelmente uma
célula de comunistas) saíram em “comando de paz”, para recolher
assinaturas do Conselho Mundial de Paz. O termo “comando”,
naquele momento, se referia a grupos de militantes que tinham a
tarefa de mobilizar para recolher as referidas assinaturas. E, no
mesmo mês, eles recolheram assinaturas para um abaixo-assinado
em solidariedade a Luís Carlos Prestes. Isso mostra a organização do
partido dentro da empresa. Sua prática, além de colher informações
sobre as condições de trabalho e preparar uma chapa para a futura
disputa pelo comando do sindicato, incluía a tentativa de conquistar
apoios para lutas políticas mais amplas, tanto no plano nacional
quanto internacional. Falar de Prestes, o líder máximo do PCB,
pressionar por sua anistia, comemorar seu aniversário, era uma
iniciativa deste tipo.
Os últimos dois temas elencados na leitura do Imprensa
Popular são: a empresa Estrada de Ferro Leopoldina e a política num
sentido mais geral. Os trabalhadores estavam enviando memoriais
ao Presidente para readmissão dos ferroviários que foram demitidos
devido à greve de 1948, dentre os quais havia militantes do PCB.
Um detalhe importante é o seguinte: em 1951 deu-se a aprovação de
um Decreto Legislativo por meio do qual os funcionários demitidos
por motivo de greve até então recebiam anistia e poderiam voltar ao
serviço. Esta medida, porém, não se deu na Leopoldina. Ou seja, os
trabalhadores da Leopoldina que subscreveram o memorial estavam
criticando a empresa e o sindicato, visto no episódio como um

90
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

apêndice da administração. A perseguição a comunistas que atuaram


na onda de greves de 1948, estimuladas pelo PCB após a cassação
dos mandatos de seus parlamentares, se deu em vários lugares,
como é o caso da Companhia Vale do Rio Doce, que, a exemplo da
Leopoldina era dona de uma ferrovia e também atuava no Espírito
Santo. Este processo foi estudado por pesquisadores do Laboratório
de Estudos de História Política e das Ideias da Universidade Federal
do Espírito Santo (LEHPI/UFES). É o caso dos trabalhos de Maísa
Prates do Amaral (2014) e de André R. V. V. Pereira (2013; 2014).
André R. V. V. Pereira (2011) mostra, em outro estudo, a
importância da Companhia Vale do Rio Doce no Espírito Santo.
O seu papel foi de fundamental importância da modernização
conservadora que se processou. Desta forma, os mecanismos de
disciplinarização da força de trabalho ali desenvolvidos tiveram
impacto na trajetória da classe trabalhadora local. Da mesma forma,
a Leopoldina desenvolveu formas de controle semelhantes às da
Vale que se mostravam visíveis no momento da pesquisa.
Além destas denúncias, outras serviam para expor a empresa.
A primeira remeteu à construção de um palacete em Campos,
no estado do Rio de Janeiro, por meio do desvio de materiais da
empresa e funcionários na construção da obra. E a segunda se
baseava nas críticas à forma como se deu a estatização da Leopoldina,
feita a partir de uma negociata no governo Dutra. Neste aspecto,
repete o Última Hora, mas com o detalhe de comprometer muitos
empresários, que teriam sabido da encampação por antecedência, o
que os levou a adquirir as ações da ferrovia por preços baixos. Desta
forma, auferiram grandes lucros, enquanto a empresa permanecia
em péssimas condições. O PCB era favorável a processos de
estatização, mas denunciava a negociata com os ingleses e, de forma
diversa do porta-voz do trabalhismo, buscava identificar alianças
com o empresariado nacional, bem de acordo com a visão que
separava campos de alianças entre estrangeiros e brasileiros de classe
dominante que agiam de forma “entreguista”.
O último tema aparece na questão de reivindicações

91
Conflitos e Contradições na História

mais amplas. O aumento da majoração do custo de vida devido


a isso a reivindicação pelo aumento salarial era tido como de
responsabilidade de Vargas. Outra denúncia que se colocava num
sentido mais ampliado se referia à atuação da Comissão Mista Brasil
- Estados Unidos. Em seu livro, O Segundo Governo Vargas, Maria
Celina D’Araújo (1992) mostra o papel desta entidade, constituída
por técnicos norte-americanos e brasileiros, que desenvolviam
estudos sobre a direção que a industrialização do país deveria
seguir, como mostra Helio Silva (2007). Vale notar que o governo
de Getúlio, por sua vez, formou um grupo paralelo de técnicos, com
orientação diversa à da Comissão, mas não havia condições políticas
de ignorá-la, devido à dependência e mesmo expectativa de ingresso
de investimentos dos EUA na linha de um apoio semelhante ao
Plano Marshall. No caso então da Comissão conforme o Imprensa
Popular, seu objetivo era o de vender minério de ferro para
construção de bombas atômicas a serem utilizadas contra os países
do bloco socialista. Além disso, a ela era considerada um braço do
imperialismo na empresa, devido à sua sugestão de que os custos do
transporte ferroviário no país fossem sustentados com o aumento das
passagens. A articulação entre os dois temas se mostra interessante
na publicação. A Comissão era, ao mesmo tempo, agente de uma
expropriação de riquezas nacionais, estimuladora da guerra nuclear
e defensora de um aumento a ser pago pelos passageiros, apelando,
neste caso, em particular, aos moradores dos subúrbios da cidade do
Rio de Janeiro.

Conclusões
A finalidade desse trabalho foi a de estudar o processo
de estatização da E. F. Leopoldina, a partir da analise dos jornais
Imprensa Popular e Última Hora. Pode-se concluir que o primeiro,
sendo uma ferramenta de divulgação do projeto do PCB, se mostrou
fiel ao seu projeto. Pouco depois dos eventos aqui narrados, uma
chapa liderada pelo partido venceu a eleição para o sindicato dos
ferroviários, mas não foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho,

92
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

convocando-se novo pleito e resultando em nova vitória dos


comunistas. A entidade, presidida pelo capixaba conhecido como
Batistinha, assumiu uma postura combativa nos poucos meses
que conseguiu se manter no cargo, tendo sofrido intervenção do
governo logo após a morte de Vargas. Somente alguns anos mais
tarde o mesmo grupo retornaria ao comando da entidade.
Tudo isto nos mostra a relevância do estudo sobre o
momento inicial, abordado aqui por meio dos dois jornais,
que revelam propostas diversas para a base sindical da mesma
empresa. O Última Hora, como demonstrado acima, corroborava
apoiando o projeto trabalhista emplacado por Getúlio Vargas. Nas
reivindicações dos trabalhadores, sempre destacava a resolução do
conflito por meios institucionais. Num sentido de disciplinarização
da mão-de-obra, esta via priorizava as formas legalistas e o apelo ao
nacionalismo, em particular no sentido da denúncia da venda da
empresa pelo governo anterior, o que servia para justificar as más
condições encontradas e a suposta dificuldade para resolvê-las. Este
entendimento foi questionado pelo PCB, que conseguiu construir
uma base na empresa e disputar a representação no seu interior, mas
com alguns reveses, seja por meio de formas abertas de repressão a
seus militantes, seja pela disputa simbólica com o trabalhismo.

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95
Conflitos e Contradições na História

96
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Marketing político, estratégias de


campanha e pesquisas eleitorais
Darlan Silveira Campos1

Introdução
Na época de eleições, o tipo de pesquisa mais divulgado é a
quantitativa. Através dela a população descobre quem está na frente
nas disputas pelos cargos públicos. Elas são importantes e cumprem
bem o seu papel. Entretanto, o grande público não sabe que de forma
efetiva as pesquisas fundamentais para as campanhas eleitorais
são as de cunho qualitativo. É através deste tipo de pesquisa que
candidatos e grupos políticos montam estratégias para as campanhas
eleitorais. Para a construção de um trabalho profissionalizado, seja
em campanha ou mandato parlamentar, é imprescindível o uso
de técnicas de coleta de dados qualitativas e quantitativas. Desde a
campanha eleitoral dos governantes à divulgação de suas realizações,
depois de eleitos, as ações são pensadas de maneira estruturada,
planejada e profissional.
Neste trabalho, o foco está no entendimento de como
as pesquisas são utilizadas durante as campanhas eleitorais e a
importância delas na construção das estratégias. A utilização de
pesquisas esclarece sobre determinado assunto e dá à comunicação
mais subsídios para o desenvolvimento assertivo de seus objetivos.
Para Mendonça, (2001) as pesquisas eleitorais levam a todos
as mais recentes percepções da população sobre um determina do
fato. Funcionam como indicadores para medir o grau de aceitação
dos candidatos em relação aos eleitores revelando as avaliações que
as pessoas fazem dos políticos. Elas funcionam como uma fotografia
da realidade em um dado momento e demonstram a dinâmica de
toda a sociedade.
Na visão de Santa Rita (2002), as pesquisas são utilizadas
1 Pós-graduado em História. Diretor Executivo da República Marketing Político
(http://republicamarketingpolitico.com.br/), analista de pesquisas eleitorais do
Instituto Brand Pesquisas. E-mail: darlan.campos@gmail.com

97
Conflitos e Contradições na História

para fazer diagnósticos de determinadas situações, para avaliar


conjunturas e cenários e conseguem mapear particularidades de
regiões, de classes sociais, de determinados segmentos da sociedade:
por idade, por sexo, por escolaridade. Desta forma, as pesquisas
eleitorais movimentam hoje um grande número de profissionais,
empregam muitas pessoas, têm custos significativos, mas são
fundamentais na construção das estratégias eleitorais.

Marketing Político
Cid Pacheco (1994) considera que o marketing político ainda
é cercado de desinformação, e controvérsia quanto à sua natureza e
abrangência. Segundo ele, por ser uma atividade ainda relativamente
recente no campo da política. Antes de tudo é necessário fazer a
diferença entre o marketing político e o eleitoral. O marketing
eleitoral é um fato não-político que se tornou um dos fatos políticos
mais relevantes da política contemporânea, isto porque o marketing
vem de fora da política e diz respeito ao mercado. Surge do mercado
para o mercado. Mas, sua presença na política não deve ser vista
como estranha ao mundo contemporâneo. Da mesma forma que
o marketing foi uma necessidade para os mercados complexos
da sociedade de consumo de massas, tornou-se necessário para
a atuação política em eleitorados massivos, como os das atuais
democracias liberais. Pacheco chama a atenção que “é assim que
o marketing se associa à política: para atender a uma necessidade
histórico-social. É chamado, não por intromissão”.
Para Ney Figueiredo (1994), a atividade de marketing
político na América Latina é relativamente nova, em parte pela
falta da prática de eleições. O Brasil tem se destacado nas técnicas
do marketing político, estando muito mais próximo dos Estados
Unidos do que da própria América Latina, sendo que as técnicas
se aprimoraram a partir de 1982 com a redemocratização do país
e a prática de eleições quase que de dois em dois anos, para cargos
proporcionais e majoritários.
O marketing político é geralmente associado à propaganda

98
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

propriamente dita (horário gratuito na TV), sendo o marketing


político profissional um fenômeno recente. Rubens Figueiredo
acredita que devido às descontinuidades do regime democrático a
sua utilização foi retardada, vindo a ser utilizado com maior rigor
a partir das eleições majoritárias de 1982. E, para quem pensa que
foram Getúlio Vargas e Jânio Quadros os pioneiros do marketing
político no Brasil, o autor ressalta,
[...] sempre tiveram sua ‘marca’, que garantia uma grande
identidade com o povo. A atuação de ambos, entretanto, pouco
tinha a ver com o marketing político moderno. Tratava-se da era da
quase pré-comunicação de massa. E tanto um como outro seguiram
muito mais seu feeling pessoal do que o conselho de especialistas ou
as indicações das pesquisas (FIGUEIREDO, 1994).
Todas as técnicas de comunicação dirigida, de propaganda
mercadológica e de relações públicas têm se convertido em aliados
do discurso político, quando medir a opinião publica passa a ser
indicador para diagnosticar a vida pública e privada. As pessoas são
solicitadas a se manifestar em como eleitores, consumidores, opinião
pública e trabalhadores. A opinião pública é atualmente entendida
e utilizada como o espaço privilegiado de avaliação dos diferentes
movimentos e sujeitos da política através das pesquisas de opinião.
Outro especialista no tema, Gaudêncio Torquato Rego, destaca que,
[...] a prática política, no Brasil, a par das qualidades inatas, da
experiência e da habilidade dos seus agentes, tende a incorporar as
vantagens das técnicas e dos processos reconhecidamente eficazes
nos países desenvolvidos. Isso não significa que a política brasileira, de
repente, passe a substituir seus métodos tradicionais, desenvolvidos
ao sabor das culturas regionais, por técnicas importadas. Mas o
que se observa é um processo de absorção de conhecimentos da
área de marketing pela política, que tem como fundamentação, a
competição acirrada entre candidatos, a urbanização das cidades, a
influência dos meios de comunicação, a abertura política, a pressão
dos grupos organizados, a industrialização e a diminuição do poder
dos “coronéis” da política interiorana. (REGO, 1985).
Sobre a inserção do marketing político no Brasil, Ronald
Kuntz destaca as peculiaridades do mercado nacional
O mercado eleitoral brasileiro apresenta características distintas de
qualquer outro, uma vez que é cercado de altos riscos, infestado de
‘picaretas’, leigos e ‘charlatões’, calotes, fornecedores oportunistas,

99
Conflitos e Contradições na História

tudo isso regida por uma legislação inadequada e ultrapassada que


acabam levando todos - candidatos, partidos, fornecedores - a agir
na clandestinidade e ilegalidade, sob os olhos complacentes de uma
justiça eleitoral despreparada. (KUNTZ, 1998).

Pesquisa, pesquisa e pesquisa


Quando se pensa em eleições, mais que aliada,
A pesquisa é a própria atividade essencial na base do
desenvolvimento da estratégia de uma eleição. Três são as mais
importantes ferramentas para operar uma campanha e entender
o eleitor: a pesquisa, a pesquisa e a pesquisa. (1) a pesquisa para
saber o que as pessoas estão pensando; (2) a pesquisa sobre a
qual se constrói toda a estratégia eleitoral; e (3) a pesquisa fator
fundamental por excelência que permite o desenvolvimento tático
da operação eleitoral. (SERPA, 2013)
Apesar da utilização das pesquisas qualitativas ter adquirido
um papel importante nas campanhas políticas, ao contrário das
pesquisas quantitativas que são divulgadas amplamente pela mídia,
elas não alcançam o grande público. O acesso aos seus resultados é
restrito aos profissionais que atuam na campanha do candidato que
compra esse tipo de trabalho, usualmente utilizado em estratégias de
campanha. Conseqüentemente, as pesquisas qualitativas usadas em
campanhas eleitorais são pouco exploradas pela Ciência Política e
têm pouca utilização nas investigações acadêmicas.
A centralidade das campanhas passou a ser as telas das
televisões e sua modernização nas sociedades democráticas constitui
um fenômeno mundial irreversível. Usa-se a mídia na construção
das campanhas, para persuadir e ganhar o voto do eleitor. O destaque
à figura do candidato é maior do que à imagem do partido. Com a
personalização das campanhas, os apelos publicitários emotivos com
retóricas são mais atraentes que as propostas políticas ideológicas. No
Brasil, o HGPE constitui o principal meio de embate dos candidatos
envolvidos na disputa eleitoral, conforme Veiga e Godim (2001). Em
períodos eleitorais, os meios de comunicação se destacam como elo
entre eleitores e seus representantes. As necessidades da população
e decisões políticas são efetivadas e legitimadas e se tornam de

100
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

conhecimento público por exposição na mídia.


Em seu trabalho, Dias (2000), afirma que tanto os grupos
focais quanto as entrevistas individuais são empregadas em
pesquisas mercadológicas desde os anos 50 despertando interesse
das mais diferentes áreas do conhecimento a partir dos anos 80.
Por sua utilização e crescente aplicação técnica e por ser ainda
pouco explorada na literatura científica, é oportuno analisá-la como
alternativa às técnicas de dados quantitativos mais tradicionais.
Apesar da atenção crescente dada a estudos sobre campanhas
eleitorais, a investigação acadêmica sobre a eficácia dos instrumentos
de elaboração de campanhas eleitorais não é muito explorada, assim
como a avaliação da efetividade da pesquisa qualitativa no marketing
eleitoral.
Dentre os objetivos das pesquisas de cunho político com
abordagem qualitativa destacam-se os seguintes:
I) Conhecer os eleitores, mapeando suas demandas e
frustrações;
II) Compreender sua percepção acerca do quadro político,
apontando aspectos positivos e negativos;
III) Identificar suas expectativas com relação à solução dos
problemas sociais;
IV) Avaliar a imagem dos candidatos e as razões para votar ou
não nos mesmos e
V) Aferir a avaliação de propostas e programas de governo.
Durante o processo de campanha, a pesquisa qualitativa
passa a ter como objetivo a avaliação das estratégias de divulgação
por meio da análise do impacto na opinião pública dos programas
veiculados pelo Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE)
e isto pode vir a ser útil no esclarecimento de questões relativas ao
comportamento do eleitor, de grande interesse acadêmico.
A pesquisa qualitativa nos fornece mais a natureza ou
a estrutura das atitudes ou motivações que sua freqüência ou
distribuição. Seu principal objetivo é explorar a profundidade dos

101
Conflitos e Contradições na História

sentimentos e crenças que as pessoas detêm e aprender como estes


sentimentos podem influenciar comportamentos.
Segundo Dias (2000), entre as técnicas mais utilizadas em
pesquisas qualitativas destacam-se: entrevistas não direcionadas,
entrevistas semi-estruturadas, as técnicas projetivas, grupos focais. As
entrevistas não direcionadas e as semi-estruturadas são individuais,
porém diferenciam-se pelo maior ou menor grau de intervenção e
direcionamento exercido pelo entrevistador, ao estruturar o tópico
pesquisado ou a seqüência de perguntas. São empregadas em
pesquisas qualitativas exploratórias, fenomenológicas e clínicas.
Por sua vez, as técnicas projetivas são usadas quando o pesquisador
considera praticamente impossível aos entrevistados responderem
sobre as reais razões que os levam a assumir certas atitudes e
comportamentos. Muitas vezes as próprias pessoas desconhecem
seus sentimentos e opiniões a respeito de determinado assunto,
sendo incapazes de verbalizar seus verdadeiros sentimentos e
motivações. O pesquisador, nesses casos, apresenta um estímulo
ambíguo aos entrevistados e observa suas reações no relacionamento
com esse estímulo. [...] Apesar de ser utilizada também em
pesquisas exploratórias, é uma técnica voltada, essencialmente,
para a abordagem clínica da pesquisa qualitativa (DIAS, 2000).
Porém um problema muito encontrado, quando se executa a
pesquisa, diz respeito s utilização dos resultados obtidos. O risco está
no emprego da pesquisa qualitativa, como resultados conclusivos
e aplicado para fazer generalizações em relação à população-alvo.
Assim, o ideal é a utilização de pesquisas quantitativas como
complemento, buscando-se generalizações dos resultados, ao invés
de usá-las mutuamente como concorrentes (HUNT, 1991). Todavia
a pesquisa qualitativa possui variações em sua formação, conhecidas
como técnicas. No próximo tópico discutiremos especificamente
seis destas técnicas de pesquisa.

Grupos de Foco
O grupo focal ou grupo de discussão, como técnica de pesquisa
qualitativa, apresenta-se como uma possibilidade para compreender
a construção das percepções, atitudes e representações sociais de

102
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

grupos humanos acerca de um tema específico. O grupo de foco


(focus group) teve origem na sociologia. Hoje, é amplamente utilizado
na área de marketing e também tem crescido em popularidade em
outros campos de ação Os grupos focais podem ser usados segundo
Veiga e Godim (2001), como fonte principal e suplementar de
dados, tanto para subsidiar programas de intervenção, quanto para
elaborar instrumentos de pesquisa experimental e quantitativa, e
como fonte complementar de dados, ao serem associados às técnicas
de entrevistas em profundidade e de observação participante.
As raízes dos grupos de foco estão na diversidade d os métodos
de comportamento científico e na psicoterapia. Essas técnicas foram
desenvolvidas por Robert K. Merton e descritas em um livro em co-
autoria com Patrícia L. Kendall (1956).
A característica da entrevista focal é que os entrevistados são
expostos a situações concretas, cujo caráter objetivo é conhecido e
foi previamente analisado pelo entrevistador. Eles puderam assistir
a um filme, programa de rádio, ler um panfleto ou um anúncio
em uma revista ou jornal e assim participaram do experimento
psicológico. Em outras palavras, a entrevista foca-se em uma
experiência do entrevistado- exposição a uma situação de estímulos.
(MERTON, KENDALL, 1956)
Atualmente, a pesquisa qualitativa - especialmente o
procedimento conhecido como entrevista de grupo de profundidade,
ou grupo de foco - é uma das técnicas de pesquisas mais amplamente
utilizadas e válidas. O número de projetos de entrevista de grupo,
autorizado a cada ano, excede largamente o número de levantamentos
quantitativos, os surveys.
Sua utilização tem uma variedade de propósitos, além dos
tradicionais da pesquisa de mercado, uma das suas mais usuais
aplicações é o levantamento de informações para subsidiar o
marketing eleitoral.
Para Malhotra (2001), em contraste com a pesquisa estatística
ou a contagem de indivíduos, nenhuma entrevista de grupo poderá
ser precisamente repetida; cada uma será sempre única, o que não
quer dizer que a entrevista de grupos não possui regras e protocolos.

103
Conflitos e Contradições na História

O moderador desempenha um papel chave para o sucesso de


um grupo de foco. Ele deve estabelecer relação com os participantes,
manter ativa a discussão e motivar os respondentes a trazerem à
tona suas opiniões mais reservadas. Além disso, o moderador pode
desempenhar um papel central na análise e interpretação dos dados.
Portanto, ele deve ter habilidade, experiência e conhecimento do
tópico em discussão e deve entender a natureza da dinâmica do
grupo.
Segundo Yin (2008), os grupos de foco são geralmente
utilizados para a definição de problemas com boa precisão. Podem
também gerar rumos alternativos de ação e ajudar na elaboração
da abordagem de problemas. Através dos grupos podemos obter
relevantes informações para estruturar questionários para os
consumidores. Além disso, os grupos nos fornecem subsídios para
a geração de hipóteses que poderão ser testadas quantitativamente e
para a interpretação de resultados quantitativos obtidos previamente.
O focus group constitui-se na técnica mais importante de pesquisa
qualitativa.

Entrevistas em profundidade
A entrevista em profundidade é uma entrevista não-
estruturada, direta, pessoal, em que um único respondente é
questionado por um entrevistador altamente treinado, para
descobrir motivações, crenças, atitudes e sentimentos a respeito de
um determinado assunto.
Neste processo o entrevistador inicia com uma pergunta
genérica, e posteriormente incentiva o entrevistado a falar livremente
sobre o tema. Por sua vez a duração pode variar de 30 a 60 minutos,
embora existam casos especiais que podem levar até mesmo
horas, dada a natureza do problema Quando aplicada, a entrevista
individual pode ser classificada em três categorias distintas, em
função do grau de estruturação do guia de entrevista utilizado
pelo entrevistador (MARCHETTI, 1995). A saber: entrevista não-
estruturada; entrevista semi-estruturada e entrevista estruturada.

104
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

A entrevista em profundidade é uma técnica utilizada em


casos especiais quando um grupo de respondentes não resultasse
num levantamento proveitoso, quer seja pelo tempo necessário que
mais de um entrevistado levaria para responder as perguntas, quer
seja pela delicadeza do assunto abordado. Segundo Malhotra (2001)
as entrevistas individuais, na maioria das vezes, são utilizadas nos
seguintes casos:
I) Para uma sondagem detalhada do entrevistado, quando é
necessária uma explicação minuciosa de suas preferências e rejeições.
II) Na discussão de tópicos confidenciais, delicados ou
embaraçosos. Neste caso, a entrevista individual é utilizada para
evitar constrangimentos e para preservar o respondente da exposição
em grupo de temas muito íntimos.
III) Quando, em decorrência de normas sociais sólidas, o
entrevistado puder ser facilmente influenciado pela resposta do
grupo.
IV) Diante da necessidade de compreensão mais detalhada de
um comportamento complicado.
V) Nas entrevistas com profissionais
VI) Nas entrevistas com concorrentes que não desejem revelar
a informação em um contexto de grupo
VII) Nas situações em que a experiência de consumo de u
m produto é sensorial por natureza, afetando estados de espírito e
emoções.
É necessário que o pesquisador reconheça que nem sempre
é conveniente utilizar métodos plenamente estruturados (formais)
para obter informações dos respondentes. Algumas pessoas podem
não querer responder a certas perguntas; ou, mesmo que sejam
incapazes disso, o seu comportamento é influenciado por fatores
de que eles não têm consciência ou que eles simplesmente não
queiram mencionar diretamente em razão de certos mecanismos
de defesa (MARCHETTI, 1995). Além do mais, é importante que o
pesquisador não somente deixe o entrevistado o mais livre possível

105
Conflitos e Contradições na História

para expressar suas opiniões, como também possua conhecimentos


de psicologia e lingüística (ou contratar profissionais com tal
gabarito) para a análise dos dados.

Conclusões
A consolidação da democracia e os avanços tecnológicos
traçaram novos rumos para a vida social e modelaram novos
moldes para as disputas eleitorais. Se a própria disputa por si
mesma é vulnerável a acontecimentos que fogem ao controle e à
previsibilidade, a dinâmica das campanhas exige, a cada pleito, mais
profissionalismo, planejamento e estratégias mais seguras e com
menor risco. A pesquisa qualitativa veio consolidando-se ao longo da
história científica como prática que possibilita o desvendamento de
objetos subjetivos que, por sua complexidade, exigem compreensão
mais aprofundada dos fenômenos que os envolvem. Em alguns
casos, de nada adianta uma pesquisa quantitativa sem antes se ter as
qualidades para serem quantificadas.
O eleitor comum é capaz de opinar sobre questões que o
afetam diretamente; seu grau de compreensão é maior, quanto mais
próximas de sua realidade forem às questões abordadas. Ele também
traz consigo a informação, tanto cultural como proveniente da
mídia televisiva, de que os políticos deveriam ser os garantidores da
funcionalidade da coisa pública, entendida, principalmente, como
serviços básicos, habitação, segurança pública, transporte, saúde e
educação de qualidade.
Os atores políticos mantêm sua autonomia e constroem
suas estratégias ao buscarem visibilidade na mídia, de maneira a
se favorecerem e a obterem mais vantagens que seus concorrentes.
Este fato obriga os atores políticos a construírem um novo discurso
no qual cada vez mais, se vê o declínio dos partidos políticos e o
crescente personalismo das campanhas, revelando o despontar de
novas formas de fazer política.
As técnicas de pesquisa qualitativa, que fornecem ao eleitor a

106
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

oportunidade de ser ouvido e entendido, são as mesmas que lhe dão


espaço para reivindicar, criticar e expressar seus sentimentos.
Profissionais de marketing, pesquisadores, institutos de
pesquisas e aspirantes a pesquisadores poderão, com este trabalho,
sanar dúvidas que altercam a utilização da pesquisa qualitativa em
marketing e conhecer detalhadamente o conglomerado de suas
características e variações.
A capacidade de ouvir eleitores, analisar conteúdos e, a partir
daí, construir estratégias de campanhas, é que fará a grande diferença
nas campanhas vitoriosas. A utilização das pesquisas qualitativas
como instrumento do marketing eleitoral está consolidada entre
os profissionais de marketing e as pesquisas são percebidas como
instrumentos adequados para enfrentar as acirradas disputas que
trazem, a cada pleito, novas exigências.
A principal vantagem da abordagem qualitativa é que ela se
apresenta como um recurso que permite compreender o contexto
pessoal, no caso da técnica de entrevista em profundidade, e grupal,
em se tratando dos grupos focais, a partir dos quais são construídas
as opiniões e a visão de mundo dos participantes que avaliam os
candidatos, os partidos políticos e decidem sobre o seu voto.
As pesquisas, para os profissionais de marketing, funcionam
como sinalizadores que vão direcionando o terreno fértil onde
poderão jogar suas sementes para que possam gerar frutos. É inegável
a sua utilização como um dos instrumentos mais importantes e
eficazes na construção de campanhas assertivas.

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Conflitos e Contradições na História

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André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

“A Verdade sobre a Central brasileira”: O


campo político e a esfera pública capixaba
de 1940 – 1949
Douglas Edward Furness Grandson1

Debate teórico
O “chão” que dá base a esse trabalho tem origem de dois
autores, um filósofo e o outro sociólogo, Habermas e Bourdieu. Suas
leituras atentas às estruturas permitem ao pesquisador observar e
captar as nuances históricas da conformação da realidade segundo
seus conceitos, que são de esfera pública e campus. Desse modo, para
estudar a realidade capixaba, ficou entendido que era necessário
observar, num plano mais amplo, a esfera pública, que, como será
observado, constitui o espaço de debates privados sobre o estado e
suas atribuições; e em um plano intermediário, o campo intelectual,
especificamente, aquele dos escritores e colunistas de jornal, por
vezes médicos ou políticos. A esfera pública e campo intelectual
dão acesso ao campo político estabelecido com o processo de
redemocratização brasileira em 1945, após o Estado Novo. Dentro
do sistema de trocas simbólicas, a linguagem predominante foi
aquela estabelecida pela elite, representada pelo PSD e pela UDN,
partidos que tiveram maior peso na Constituinte. Para além disso,
uma concepção geral direcionou os discursos dos mais diversos
atores, a ideia de equilíbrio, pautada na efetividade das instituições,
caso os atores cumprissem suas obrigações.
O período em questão, a década de 40 capixaba, ainda muito
marcada pela agricultura e com a maioria da população no campo,
é marcada por uma esfera pública restrita, a qual o debate sobre o
estado foi monopolizado pela elite dominante, e, principalmente,
debatendo temas nacionais fragmentários, haja vista seu reduzido
tamanho. Ou seja, os temas amplos da sociedade debatidos nos
grandes centros chegavam no Espírito Santo redimensionados,

1 Mestre em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

109
Conflitos e Contradições na História

reduzidos em comparação ao tamanho que tinha nos principais


centros. Mesmo assim, os debates ocorreram, abordando o estado
e suas atribuições, no caso em questão, como se verá, o papel de
fiscalização de uma empresa estrangeira, a Central Brasileira de
Força Elétrica. Como se verá, os debates partiram de jornais cuja
propriedade era privada a grupos de interesse, que apresentavam
interesses privados como se fossem públicos, ou apresentavam
obrigações privadas como sendo públicas.
A contribuição de Bourdieu, em O poder simbólico pertinente,
pois aborda os conceitos campus e habitus. Esse autor buscou
identificar em grupos específicos da sociedades (intelectuais, artistas,
políticos) a existência de um campo que os separa da sociedade.
Este, permeado de regras, características e hábitos historicamente
construídos tem uma autonomia da sociedade variável, conforme o
período. Isso por a sua existência, em qualquer área que seja, deve
ser legitimada pela sociedade, cabendo aos membros deste obtê-la.
Desse modo, se o campo separa um grupo da sociedade, por sua
especificidade, isso é possível através da validade que a sociedade
lhe atribui. O habitus, por sua vez, é o capital dos indivíduos que
fazem parte do campo, é o “corpus de saberes específicos (teorias,
problemáticas, conceitos, tradições históricas, dados econômicos,
etc.) produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais
do presente e do passado” (BOURDIEU, 1989, p. 169). Estes, para
fazerem parte do grupo, devem estar munidos de competências de
ordem técnica, necessários para as suas atividades. Quanto mais os
componentes de um campus adquirem habitus inalcançáveis pela
população, maior a sua autonomia frente à sociedade, que se vê, por
questões práticas a se verem atendidas por esses indivíduos.
É estabelecido um poder simbólico entre um campus e a
sociedade, através do controle deliberado daquele sobre o que
chega a esta. O capital simbólico que permite essa relação delimita
a ação da sociedade com relação às atividades exercidas pelo
campo. Esse fato é explicado por Bourdieu pela oferta e demanda,
conceitos importados da economia política. A sociedade que está

110
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

fora do campus é colocada por este enquanto consumidora de seus


produtos, e estes são deliberadamente selecionados pelo grupo. São
disponibilizados para a sociedade os instrumentos de percepção e
expressão de determinada área (intelectual, artística, política), que
são limitados de modo que certo número de conhecimentos se
mantenha com prerrogativa do grupo, com o fito de manter sua
autoridade. Segundo Bourdieu, referindo-se a um campo específico:
O campo da política exerce de fato um efeito de censura ao limitar
o universo do discurso político e, por este modo, o universo daquilo
que é pensável politicamente, ao espaço das tomadas de decisão
efetivamente realizadas no campo [...] a fronteira entre o que é
politicamente dizível ou indizível, pensável ou impensável para
uma classe de profanos [...] (BOURDIEU, 1989, p. 165).
Portanto, no mercado da política, arte, intelectualidade, os
produtos são distribuídos conforme os interesses desses campos,
que buscam sua legitimidade social através da manutenção de um
poder simbólico frente a seus consumidores, pautado em seu capital
simbólico, a delimitação do que é ou não possível. Discordamos do
funcionalismo de Bourdieu que trata o agente enquanto “operador
prático de construções de objeto” e que considera que a sociedade
muito passiva apenas pela via simbólica (e os mecanismo de
coerção. Mas sua contribuição é válida, guardada a devida cautela.
O campus é formado historicamente, e podemos observar isso com
relação ao campo político e intelectual capixaba. Se por um lado, a
redemocratização de 1945 mudou o regime político, manteve um
campo político com marcas de um governo autoritário. A política
nacional, e por sequência regional, foram pautadas pela ação da
autoridade na resolução dos problemas nacionais, assim como nas
escolhas político- econômicas. Delimitou-se o espaço da sociedade
frente aos problemas políticos, que seria apenas o de trabalhar e
reclamar dos problemas, quando fossem casos extremos. A classe
política deveria resolver esses problemas, pois seriam os órgãos
competentes. Com isso, a colocação intencional da sociedade em
posição de consumidor foi instrumentalizada pelos políticos que
implementaram o processo de redemocratização do país. Esse
campo político estruturou, por sua vez, o campo intelectual que

111
Conflitos e Contradições na História

atuou na esfera pública capixaba. O discurso dominante, pautado


em uma noção de equilíbrio, era caracterizado pelo ativismo dos
políticos e o simples papel de reclamante da população. Porém,
os indivíduos não eram passivos. Tanto no campo político quanto
intelectual, havia a adoção de linhas políticas que utilizavam o
campus político conforme a conjuntura, e depois mudavam de
atitude, confrontando as práticas políticas delineadas pelo poder
estabelecidas. O cálculo político entra em cena, dentro da estrutura
política das elites capixabas, assim como ocorreu em outros estados
da federação. O discurso nacionalista foi articulado tanto por
aqueles que se mantiveram dentro do campus, quanto por aqueles
que partiram para o enfrentamento. O campo intelectual se torna,
desse modo, o meio de acessar as disputas simbólicas travadas entre
os agentes políticos no Espírito Santo, pois, ao invés de operar o
habitus, havia a possibilidade de confrontá-lo. Por meio dos jornais
capixabas isso é passível de observação.
Apontando as limitações de uma abordagem que não fornece
o limite preciso entre ações a não intencionais (inconscientes) e a
intencionais (conscientes), é feita uma proposta teórica (PEREIRA,
2015) que leva em conta as três temporalidades históricas de maneira
alternativa ao uso da ideologia proposta pelos autores acima. Nesse
caminho, entende-se que no plano estrutural estão às concepções
de mundo, valores, crenças, que são muito vagos e construídos
historicamente a partir da experiência humana. Nas conjunturas as
coletividades e indivíduos podem se apropriar desses valores, dar-
lhes um conteúdo com o fito de organizar ou desorganizar pessoas,
de modo a gerar consentimento acerca de um tema, isso feito a
partir de um projeto. No plano da ação, para atingir objetivos, são
adotadas táticas de convencimento por parte dos atores, chamadas
aqui de propaganda.
No campo da esfera pública, a proposta de interpretação supõe
que existem ferramentais de análise apropriados para objetos precisos
na História Política brasileira, tratando diferentes partidos políticos
com diferentes teorias. Para análise de partidos conservadores, como

112
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

o PSD e UDN, que encaram a esfera pública como susceptível apenas


de sua ação política, subordinando os demais, as noções de Bourdieu
de campus e habitus permitem a análise das ações dos grupos e
indivíduos dessas agremiações, que estabeleceram o campo político
na redemocratização. Por outro lado, para partidos diretivos, como
PCB, PTB e PSB, o conceito de Gramsci de intelectual orgânico
se mostra adequado analiticamente, pois, tem como contribuição
a análise de grupos com projetos visando o consentimento e a
ação, com vistas à transformação. Os dois usos são mediados pela
concepção habermasiana de esfera pública. Por fim, eixos temáticos
serão expostos, apontando os diversos projetos de nação elaborados
para o país na década de 40 por diversos grupos e indivíduos que
fizeram uma leitura da realidade nacional, buscando saídas para o
problema do subdesenvolvimento e crises econômicas no Brasil.

Aplicando a teoria e identificando a(s) fala(s)


A política capixaba, seguindo o delineamento do poder a
nível nacional, foi organizada pelos interventores estaduais, sobre
influência de Vargas. Quando se abriu franca concorrência da
oposição antivarguista, marcada pelo lançamento do brigadeiro
Eduardo Gomes - sem mesmo um código eleitoral! - o governo
foi pressionado a dar andamento ao processo. Foi uma manobra
inteligente da oposição, que, ciente das pressões internas decorrentes
da aliança do Brasil com as democracias, em combate com a ditadura,
já deu o processo como inevitável e lançou um candidato. Isso era um
estímulo que exigiu resposta do estado. E esse foi o de dar andamento
ao processo eleitoral. Vargas acionou seus interventores, que em
reunião decidiram sobre o código eleitoral. Também substituiu o
ministro da justiça, Marcondes Filho, por Agamenon Magalhães,
mais simpático à redemocratização, portanto, mais interessante para
Vargas no cargo naquele momento (GOMES, 2005). Logo, surgiram
a Lei Constitucional n°9 (ato adicional) de 28 de fevereiro de 45 que
chamava eleições gerais, assim como o Decreto Lei n° 7.586, que
estabelecia a criação de partidos de âmbito nacional, a legislação

113
Conflitos e Contradições na História

eleitoral tomou forma. As eleições para presidência da república


se dariam no mesmo ano, junto aos deputados da Constituinte, e
governadores (HIPÓLITO, 1985).
Do lançamento de Eduardo Gomes, surgiu a UDN. Um mês
depois, surgiu o PSD, partido formado pelos interventores de Vargas,
os mesmo que estruturaram o processo eleitoral. No Fim de um
ano turbulento, com a deposição de Vargas em outubro, o general
Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD, venceu as eleições. Os deputados e
senadores que participaram da Assembleia Constituinte eram, em
sua maioria, do PSD e, em segundo lugar da UDN.
No Espírito Santo, esses dois partidos foram os maiores, como
efeito do código eleitoral lançado a nível nacional. O interventor
Jones dos Santos Neves refundou o PSD, chamando as mais
diversas lideranças políticas, incluindo adversários. Foi uma forma
de garantir a vitória para a situação. Estratégia eficiente manteria
o partido até a eleição para governador, quando as dissidências
fizeram personalidades saírem do partido e criarem outras legendas,
como foi o caso de Asdrúbal Soares e Atílio Vivácqua, que fundaram,
respectivamente, o Partido Social Progressista (PSP) e o Partido
Republicano (PR) capixabas (SILVA, 1995). O poder no PSD ficou
nas mãos do grupo de Jones e Carlos Lindenberg, coronéis que se
mantiveram junto a situação estado novista. Seu poderio no Espíito
Santo foi hegemônico, sendo apenas confrontado quando havia
dissidências internas e, ao mesmo tempo, uma aliança da oposição,
como ocorreu em 1955 e 1962, anos da vitória da coligação
democrática (UDN – PR – PSP –PTB -PDC) (PEREIRA, 2014).
Os jornais capixabas, aqueles escolhidos para permitir o
acesso ao campo intelectual e ipso facto, político, serviram de
veículos de propaganda dos grupos políticos capixabas, sendo A
Gazeta e A Tribuna jornais da situação e oposição, marcando a
disputa intraelites capixaba. As oposições à esquerda tinham o
A Época, de Cachoeiro de Itapemirim, jornal socialista com forte
liberalismo, e o Folha Capixaba, jornal comunista. O PTB capixaba
não tinha jornal, tendo seus intelectuais escritos nos jornais acima,

114
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

conforme as alianças conjunturais. Um exemplo disso é a presença


de Mario Gurgel, petebista, escrevendo em A Gazeta em seu período
situacionista.
Cabem melhores apontamentos sobre os jornais. Segundo
Martinuzzo (2005) A Gazeta foi um jornal situacionista desde
sua fundação em 1919 até 1942, quando foi vendido para Aurino
Quintaes e Oscar Guimarães (MARTINUZZO, 2005). A venda não
alterou o conteúdo, pois foi mantida a linha política de apoio ao
governo oficial. Posteriormente, o jornal passou da situação para a
oposição. Em outubro de 1945, foi comprado pelo coronel de São
Mateus, ao norte do Estado, para servir de propaganda política para
o brigadeiro Eduardo Gomes. Portanto, era udenista. Em 1948,
Elosippo Cunha vendeu o jornal, sem saber, porém, a quem. Um
grupo com ligações ao seu adversário político o comprou, sendo,
de fato, do Carlos Lindenberg. A natureza oculta da negociação
pode ser observada na linha política do jornal. Ao invés de saltar
novamente da oposição para situação, manteve sua linha política
udenista até meados de 1949.
Se A Gazeta saltava, lentamente, de oposição para situação,
A Tribuna fazia o caminho inverso. Segundo a compilação de
Martinuzzo (2005), o jornal teria sido fundado em 1938, por Reis
Vidal, jornalista paulista afinado com o fascismo, e assim teria
permanecido até ser vendido em 1950. A informação está equivocada,
pois o jornal foi vendido em 1949, para o mesmo Elosippo Cunha
que havia sido dono de A Gazeta. O já perrepista tinha a maioria das
ações da Gráfica A Tribuna S.A., com 6.600 mil ações entre ordinárias
integralizadas e não integralizadas, preferenciais integralizadas e não
integralizadas, seguido por Fernando Duarte Rabelo (PDC), com
100 ações, entre outros2. Desse modo, o jornal passou do governismo
à oposição.Os jornais de esquerda permaneceram sob o poder da
mesma agremiação, mesmo com as dificuldades financeiras.

2 Informações encontrada em A TRIBUNA, na edição do dia 04/06/49, p. 6- 4.

115
Conflitos e Contradições na História

A Central Brasileira
Um tema fez as mais diversas posições políticas se
manifestarem. Foi a Central Brasileira. O setor energético capixaba,
assim como na maioria dos estados brasileiros na década e 40, era
provido pelo setor privado. A Light e a Amforp dividiam o mercado,
em 70% e 30% respectivamente. A segunda empresa chegou mais
tarde, em 1927, enquanto aquela estava instalada nos principais
centros desde 1895 (JOELSONS, 2014). Dentro de um contexto
de internacionalização do capital norte americano, a Amforp foi
criada para atuar especificamente no mercado latino americano.
Sua chegada ao Brasil seguiu, segundo Joelsons (2014), as cidades
litorâneas não atendidas pela Light. No Espírito Santo e em
Cachoeiro de Itapemirim ela era a Companhia Central Brasileira
de Força Elétrica. Em todos os estados, a razão social da empresa
era distinta, o que se configurava em uma maneira de se esquivar
da fiscalização tributária (FERREIRA, 2012). A empresa assumia
os serviços de bondes, lanchas, telefone, produção e distribuição de
energia elétrica.
Gabriel Bittencourt (2011) apontou para o fato de que, no
Espírito Santo a empresa passou a ter deficiências no atendimento
de seus serviços. Concessionária desde o governo Florentino Avidos
(1924 – 1928), a empresa havia atendido a demanda de energia
elétrica e até estimulado o consumo de seus produtos e serviços, o
que se alterou na década de 40. Isso foi notável através da publicidade
da empresa, o Sr./ ”Seu”3 Kilowatt. Esse personagem foi identificado
em vários estados da federação, segundo os trabalhos de Moraes &
Araújo (2011), Arruda (2014), Felduhes (2008), Castro (2014), Ávila
(2014) e Cadena (2016), em empresas da Amforp. Mas não era um
personagem exclusivo a empresa, pois era outra empresa que fornecia
os direitos de imagem, e também era norte-americana, Tratava-se da
Reddy Kilowatt Inc. Esse personagem, um simpático boneco com
corpo em formato de raio, nariz de lâmpada e mãos e pés encapados
3 O Sr. Kilowatt era assim chamado até 1941, quando passou a ser chamado de
“Seu” Kilowatt. Se antes o slogan era: “Sr. Kilowatt, seu criado elétrico”, passou a ser
chamado de “’Seu’ Kilowatt, o criado elétrico”.

116
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

com borracha isolante fazia a propaganda da empresa. A observação


desde sua chegada ao Brasil, especificamente no Espírito Santo, de
1936 até 1950, permitiu identificar 3 fases de sua atuação, que sofreu
alterações nas conjunturas. A 1° fase, de 1936 até 1941 configurou-
se pelo estímulo ao consumo e enaltecimento das capacidades do
Sr. Kilowatt; a 2° fase, marcada pela politização de guerra, na qual o
“Seu” Kilowatt passa a ser um soldado, marcada entre 1942 - 1945;
e a 3° fase, aquela em que o personagem defendia a empresa das
críticas vindas da sociedade civil, política e intelectual.
Já em 1941, na “fase boa” da empresa, a publicidade alternava
a defesa de suas deficiências com o estímulo ao consumo, tendo ali
o início de crise apontada por Bittencourt (2011). A guerra forneceu
ao personagem o argumento para as dificuldades: o racionamento
proveniente da conversão da indústria em indústria de guerra. Com
o término do conflito, sua atuação foi constantemente marcada
pela defesa e justificativa para a situação grave em que a empresa
se encontrava. O fim da guerra fez com que o personagem passasse
a acusar as causas de sua dificuldade e de sua empresa, a “falta de
braços” e a “falta de materiais”.

O campo discursivo em torno da Central


Embora a esfera pública hegemonizada pelos jornais da
elite, havia uma diversidade de atores políticos, como já citado, na
existência de jornais de esquerda, socialista e comunista. Mas, algo
salta aos olhos. Pegando Central Brasileira como objeto de estudo, e
os discursos referentes às suas deficiências, percebe-se que as opiniões
estavam divididas em dois blocos: aquele que defendia a empresa, e
o outro, que acusava seu não cumprimento dos contratos. É difícil
imaginar, nesse contexto e pelo volume de reclamações feitas contra
a empresa, que alguém a defendesse, mas isso ocorreu.
Quando o jornal A Gazeta era governista, ainda dentro do
apoio ao Estado Novo de Vargas e propagandeando o seu projeto
trabalhista, a visão que a empresa tinha ressaltada era de uma
companhia dedicada ao atendimento do consumidor. Logo que o

117
Conflitos e Contradições na História

jornal passou a ser udenista, abriu-se espaço para as críticas. No início


de um período em que as consequências de guerra tornaram-se um
argumento fraco diante a população, para o mau atendimento da
empresa, a crítica liberal udenista, marcada pelo moralismo, seguiu
o que Benevides (1984) havia delineado como marca da agremiação.
O médico e colunista, Américo de Oliveira, escreveu desde 1946
até 1949, colunas no jornal A Gazeta, sempre criticando a falta de
compromisso da empresa no atendimento ao contrato estabelecido
com o governo do estado. A falta de energia elétrica, de bondes em
circulação, telefones mudos, falta de lanchas para o transporte de
pessoas até Vila Velha, a falta de ônibus na antiga rua do comércio, a
cobrança indevida no aluguel dos medidores de energia entre outras
coisas, foram às acusações intensamente repetidas pelo médico. Em
uma matéria, em resposta a publicidade da Central, que em sua
defesa dizia ter tido um pesadelo4 com todas as suas obrigações e
altos custos, Oliveira descreveu ter tido um sonho5. Neste, a central
havia sido vendida, falida, e todos os serviços da nova empresa, a
Transportes Urbanos (TU), foram melhorados. Nessa matéria, o
autor escreveu que o novo dono da empresa era um jovem inglês,
que falava diretamente ao público, que, por sua vez, pedia trilhos
de bonde a localidades desatendidas. O que se percebe é a ideia de
equilíbrio. Se a Central não atendia, deveria abandonar a concessão,
deixando para uma empresa que cumprisse contratos o serviço.
O autor não questionava o fato de a empresa ser estrangeira, nem
privada, apenas a inobservância do contrato. Como já foi dito, o
jornal A Gazeta passou para Lindenberg, mas isso às escondidas.
Em 1949, Américo Oliveira continuava com sua coluna, intitulada
Essa Central Brasileira..., Repisando6 suas críticas a Central. Mas
algo estranho ocorreu. No fim de seu texto, uma nota da edição do
jornal disse que não se responsabilizava pelo que seus colaboradores
escreviam. A resposta de Oliveira foi rápida, dizendo que não pedia a

4 “Pesadelo”: C.C.B.F.E. A Gazeta, 07/12/46, p.4.


5 “Sonhei...” Américo Oliveira In: A Gazeta, 11/12/46, p.3.
6 A coluna Repisando era o nome anterior dado ao espaço dos textos de
Américo Oliveira.

118
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

concordância do jornal, e contribuía ali, com seus escritos, pelo bem


da população. Esse evento deixa o sinal de algo mal resolvido. Como
o jornal, após três anos de espaço cativo, não só para Oliveira como
para outros escritores criticarem a Central, retirava a autoridade do
colunista daquela forma? Especificamente no momento em que o
jornal fazia uma transição para uma leitura governista?
Nesse momento, um evento promoveu o incêndio nos
ânimos, no que concerne a Central Brasileira. A justiça do trabalho
obrigou a empresa, no final de 1948, a pagar um aumento salarial
aos trabalhadores, assim como efetuar o pagamento do descanso
remunerado. A empresa disse que pagaria e pagou, porém, logo
entrou com um pedido de aumento das tarifas de serviços, junto ao
governo do estado. Isso gerou um grande incômodo dos intelectuais
e políticos, pois, em meados de 1948 os serviços da empresa haviam
piorado muito, com críticas estampadas nas colunas de reclamação
de A Gazeta e A Tribuna7. Aumentar as tarifas como “prêmio” aos
serviços da Central era algo absurdo para Oliveira, assim como para
vários políticos e intelectuais.
E outra matéria de A Gazeta, de duas páginas, o título
dizia: “A verdade sobre a Central Brasileira”. Nesta matéria, a fala
simplesmente reproduzia o argumento da direção da multinacional,
representada por Joseph Willian Brown, o gerente geral da Central.
A falta de materiais e falta de braços geraram dificuldades para a
empresa, o que seria uma tendência mundial para o setor de energia
elétrica no após a guerra. O aumento salarial dos trabalhadores,
portanto, deveria ser compensado pelo aumento tarifário. Abaixo da
matéria, a imagem do “Seu” Kilowatt, na qual o jornal questionava
se deveria se confiar nas justificativas no “criado elétrico”, de que ele
melhoraria seus serviços. A resposta do próprio texto foi positiva.
Então fica a pista. O jornal A Gazeta, após ser comprado por
Lindenberg, passou a defender a Central Brasileira.
Quando se observa A Tribuna, têm-se mais elementos para
7 Em A Gazeta não tinha uma coluna específica para reclamações populares, ao
contrário de A Tribuna, que Tinha “A Tribuna do povo”. Nesta, várias reclamações
eram feitas a Central, mas justificadas pela boa vontade da empresa e solucioná-los.

119
Conflitos e Contradições na História

conseguir uma resposta a essa mudança. Até maio de 1949 o jornal


era de Reis Vidal, sendo um jornal de apoio a Lindenberg e ao PSD.
Nos autógrafos das atas da Assembléia Legislativa de 15 de abril
de 1948, foi encontrada uma homenagem do deputado pessedista,
Waldemar Mendes Andrade ao jornal, que tinha a contribuição de
sua agremiação.8 A postura do jornal em sua época situacionista
era a de defesa da empresa, reverberando o discurso da Central,
os mesmo encontrados em A Gazeta quando situacionista. Emil
Sier, um colunista marcantemente liberal, defensor da ortodoxia
do mercado, escreveu algumas colunas chamadas: Coisas da Vida:
C.C.B. Nesta, defendia o discurso de Joseph Willian Brown e do
“Seu” Kilowatt, dizendo que a crise do setor elétrico era mundial,
assim como o aumento de tarifas era necessário, pois, para conseguir
empréstimos para melhorar os serviços da empresa era preciso
ofertar ao mercado números positivos, sendo o resultado negativo
ruim para a empresa e para os consumidores. Desse modo, o ponto
de vista da empresa era defendido. Logo depois de A Tribuna passar
para o grupo do perrepista Lolô Cunha, e do pedecista Fernando
Duarte Rabelo, o jornal passa a criticar a Central Brasileira, ou seja,
quando passou a ser oposição, voltaram-se as críticas moralistas a
multinacional9.
A resposta da empresa a tantas críticas foi uma medida
paliativa. Comprou um motor diesel elétrico para instalar na
Convertidora, a qual já tinha outro instalado no governo Florentino
Avidos. Em julho equipamento chegou, e nos jornais estava
estampada a sua chegada, com discursos dos representantes da
empresa. A Gazeta teve uma cobertura completa, com a fala direta
do gerente geral. A Tribuna, naquele momento, crítica à empresa,
recebeu um engenheiro, e não o gerente Brown. Nesse momento
identificou-se que as críticas da UDN ou a de seus partidos satélites

8 Autógrafos das atas da Assembléia Legislativa do Espírito Santo em 1948.


9 Vale observar que o uso do termo multinacional não foi utilizada pelos
colunistas de A Gazeta , A tribuna e A Época. Américo Oliveira esbarrava na
identificação da origem da empresa, mas apenas sugeria, de forma tangencial. Não
ia direto ao assunto e ficava nas questões contratuais.

120
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

(PR), como identificou Benevides (1984), eram pautadas na ideia de


equilíbrio. Assim que o motor chegou, e uma demonstração de que
os serviços melhorariam foi dada, o jornal voltou atrás em todas as
suas críticas e se redimiu justificando que:
Esse jornal mesmo não tem deixado de reclamar contra a deficiência
dos vários serviços da Central Brasileira, mas o teu interesse único
tem sido orientado pra o bem da coletividade. Por isso é que, ao
lado da crítica, jamais deixou de reconhecer os préstimos, a utilidade
dos serviços da Central Brasileira, a cujos serviços deve nossa capital
muito do seu progresso. Eis o que manda a justiça seja dito e que
dizemos sem constrangimento, de vez que procuramos sempre
evitar quaisquer confusões entre o povo e seus servidores, pois está
bem claro que as confusões geram malentendidos se tira pouco ou
nenhum proveito. (A TRIBUNA, 14/07/49, p. 8 – 6)
Mas essa ideia de equilíbrio não era restrita aos partidos
liberais conservadores. O PSB cachoeirense também seguiu essa
linha, sempre reclamando aos contratos. Seria surpreendente
perceber a mesma atitude com relação ao PCB, o inimigo mais
antigo da Central. Mas isso de um ponto de vista do que Panebianco
intitulou de preconceito teleológico10. A linha política do PCB,
pautada aliança nacional, defendia a “ordem e tranquilidade”, para
que o Brasil se desenvolvesse industrialmente e saísse de um país
feudal (MANTEGA, 1984; SANTANNA, 2001; CARONE, 1982).
No jornal Folha Capixaba, cuja disponibilidade de fontes está
restrita até 1945, o autor dedicado ao tema Central através da coluna
Crônicas da cidade, Ivanhoé, sempre remetia ao não cumprimento
dos contratos, sem nenhuma menção a origem internacional
da empresa, ou politizar a população contra ela. Desde a Aliança
Nacional Libertadora (ANL), os comunistas acusavam a empresa de
extorquir o povo capixaba, para remeter lucro para o estrangeiro.
Segundo Zorzal e Silva (1995), o PCB capixaba foi configurado por
membros da ANL. Então porque a mudança de postura? Explicasse
10 O preconceito teleológico a que o autor se refere é dar como dados os fins
da organização, e buscar através dos meios, ou seja, a execução de ações como
medidor do desvio ou acerto para a consecução daqueles objetivos finais. Para ele,
os objetivos são redefinidos pelas lideranças, que tem como objetivo a sobrevivência
da organização. Então existe uma articulação dos objetivos, aqueles originários do
partido com aqueles necessários a sua sobrevivência organizacional.

121
Conflitos e Contradições na História

pela linha política do partido, que se adequou ao campo político da


elite, sempre referente ao clamor a autoridade, que deveria resolver
o problema da Central, com punições legais e maior fiscalização.
Vindo de uma ditadura extremamente coerciva, o PCB preferiu não
enfrentar a burguesia ou o regime democrático estabelecido, como
prevenção ao risco de voltar outro regime autocrático. Mas logo as
lideranças perceberam que o governo Dutra havia se tornado uma
ditadura vestida de democracia e mudaram sua linha política. Após
a cassação da legenda em 1946, e dos mandatos dos comunistas, o
PCB foi para o enfrentamento, estimulando greves em todo o país,
marcando 1948 com os movimentos paredistas. Logo, o discurso
contra a Central Brasileira mudou no Espírito Santo. Em A Gazeta,
os discursos dos vereadores da câmara municipal de Vitória eram
selecionados e transcritos. Nestes, Hermógenes Lima Fonseca, que
havia sido eleito pelo PR quando a legenda do partidão foi cassada,
fez discursos incisivos contra a empresa, identificando sua origem,
norte americana, mostrando o grupo financeiro do qual fazia parte,
assim como os lucros que a empresa tinha, alegando ser injustificado
o aumento tarifário pleiteado pela Central. De um discurso que
clamava pela autoridade, sem ter criticidade com relação aos
interesses estrangeiros no país, os comunistas passaram para um
discurso que ia além do moralismo edo legalismo, apontando
interesses econômicos geopolíticos estrangeiros espoliadores do
povo brasileiro e capixaba. Logo, Hermógenes fez questão de
mostrar “QUEM É O BANQUEIRO MORGAN”11, apontando para
a sobreposição dos interesses do capital estrangeiro sobre o interesse
nacional. Essa existência, segundo ele, geraria um desequilíbrio
imanente entre as nações, em benefício da mais poderosa, impedindo
o crescimento econômico e social do Brasil. Apesar dos protestos,
a empresa conseguiu o aumento de tarifas, e o governo Dutra
desfechou um período extremamente repressivo com relação à
classe trabalhadora e o PCB. O campo político fechava-se, impondo
pela coerção o campo das trocas simbólicas. Quem deveria agir era o
11 Em seu discurso na Câmara dos vereadores de Vitória, fez essa pergunta, que
ele mesmo respondeu. “Câmara Municipal”. In: A Gazeta, 17/07/49, p.6.

122
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Estado e só! Carlos Lindenberg, em uma gestão pautada no corte de


gastos, provavelmente queria manter a Central como estava, sem ter
custos com uma provável encampação, assim como parecia ter uma
relação com a diretoria da empresa.

Conclusão
A política capixaba teve uma contradição fundamental em
sua esfera pública. A energia elétrica, transporte, telefonia estava
deficitários, sendo acusados de assim estarem por culpa da Central
Brasileira, por políticos, sindicalistas e sociedade civil (RIBEIRO,
2002). O cotidiano da população de Vitória era marcado pelo (des)
atendimento da empresa, que nem a suas novelas no rádio conseguia
escutar, haja vista que o horário crítico de fornecimento de energia,
nos quais aconteciam os apagões, eram de 18:00 até as 22:00, hora de
lazer da população. Não houve, porém, a identificação da empresa
com sua origem estrangeira, através da inclusão do tema em um
debate nacionalista. O PCB o fez, mas estava acossado pela repressão.
Mas o fez com a Campanha do petróleo. Esta era uma campanha que
emanou do Clube Militar e teve protagonismo do PCB. Na ainda
abstração de que havia petróleo em solo brasileiro, sem muitas provas
concretas disso, houve uma total identificação do nacionalismo,
gerando em solo capixaba, uma grande politização acerca desse tema.
A suspeita é de que, essa campanha ganhou relevância por causa do
papel dos militares nesse debate, o que gerava legitimidade para a
população. Assim, os comunistas, atacados pelo regime, juntaram
seu nacionalismo com o etapismo, linha política do partido. Mesmo
em confronto com o regime, a Campanha do Petróleo teve uma
participação decisiva do comunismo. A contradição é: enquanto
um conjunto de fatos concretos ligados a uma empresa estrangeira
concreta não gerou uma campanha nacionalista, uma ideia ou a
convicção de que havia petróleo no Brasil levou ao surgimento de
uma, se não a mais, importante campanha popular do país. Isso
em acusação dos trustes estrangeiros. De fato, tanto nas faltas de
energia, quanto no medo de serem espoliados os trustes estavam no

123
Conflitos e Contradições na História

solo brasileiro, e capixaba, em sua restrita esfera pública.

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126
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

A Primeira Onda de Nacionalismo: O


Cotidiano Japonês durante a Guerra
Sino-Japonesa (1894-1895) nos escritos de
Lafcadio Hearn
Edelson Geraldo Gonçalves1

Introdução
Esta comunicação tem como objetivo analisar as
demonstrações de nacionalismo no cotidiano japonês observado pelo
escritor greco-irlandês Lafcadio Hearn nas cidades de Kumamoto e
Kobe durante a primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895).
Os problemas que norteiam esse texto são: Como foram as
demonstrações de nacionalismo testemunhadas por Hearn e porque
surgiram? E sobretudo quais foram as conclusões que o autor
registrou em seus escritos após observar tal cenário?
As observações de Lafcadio Hearn são relevantes porque mais
do que uma testemunha de época, foi um autor renomado do campo
dos estudos japoneses, ou japonologia, ramo do orientalismo que
lida com o estudo da cultura japonesa.
As fontes principais dessa pesquisa são os ensaios A Wish
Fulfilled (Um Desejo Realizado) contido no livro Out of the East(Do
Oriente) (1895), escrito por Hearn enquanto vivia em Kumamoto, e
After the War (Depois da Guerra) e China and the Western World2
(A China e o Mundo Ocidental), componentes respectivamente dos
livros Kokoro(Coração) (1896) e Karma (1918) textos escritos dessa
vez enquanto o autor morava na cidade de Kobe. O primeiro texto
contém observações de Hearn sobre o período de início da guerra,
o segundo sobre o momento imediatamente posterior ao final do
conflito, e o terceiro contém reflexões do autor feitas no ano seguinte
a guerra. Além disso também consultaremos algumas cartas da
1 Doutorando em História Social das Relações Políticas pela Universidade
Federal do Espírito Santo. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação
do Espírito Santo (FAPES).
2 Originalmente publicado pela revista Atlantic Monthly de abril de 1896.

127
Conflitos e Contradições na História

correspondência de Hearn, escritas durante o período do conflito.


O texto dessa comunicação terá além dessa introdução mais
três tópicos: Lafcadio Hearn e a Era Meiji; no qual faremos uma
contextualização geral sobre o autor e o período no qual ele viveu
no Japão, indo até o desfecho da Guerra Sino-Japonesa, Lafcadio
Hearn e a Guerra Sino-Japonesa; em que nos ocuparemos da forma
como Hearn abordou esse evento em seus escritos, do início ao fim
do conflito. Finalmente na conclusão abordaremos o entendimento
de Hearn sobre o peso da vitória japonesa nos rumos que o país
tomaria a partir dali.

Lafcadio Hearn e a Era Meiji


O escritor greco-irlandês Lafcadio Hearn (1850-1904) fez
carreira como jornalista, tradutor e escritor nos EUA. Em 1890
partiu para o Japão com o projeto de fazer estudos sobre a cultura
japonesa.
Uma vez no Japão Hearn adquiriu a cidadania do país,
constituiu família e trabalhou como professor (nos níveis médio
e superior) e jornalista, enquanto conduzia suas pesquisas sobre
a cultura japonesa, que renderam quatorze livros, compostos de
ensaios, relatos de viagem e contos.
Lafcadio Hearn chegou ao Japão no ano 22 da Era Meiji,
período histórico iniciado em 1868, com o fim do regime político
anterior, o Shogunato Tokugawa, e a restauração do poder do
Imperador, figura afastada do governo efetivo do império desde 1185,
quando iniciou-se o Shogunato, que teve a família Minamoto como
primeira dinastia. Esse processo foi chamado de Restauração Meiji,
que iniciou um novo modelo de governo, que veio acompanhado de
medidas modernizantes que visavam tornar o Japão “civilizado”, aos
olhos das potências industriais do século XIX.
Essas medidas modernizantes (igualdade legal, educação
universal, conscrição, sistema de saúde, voto censitário, etc.) visavam
reverter a situação na qual o Japão se encontrava desde 1854, ano

128
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

da abertura dos portos japoneses às nações estrangeiras, em que o


Shogunato; ameaçado pelo poderio militar moderno dos EUA e
outros países, foi sujeitado à uma série de tratados desiguais, sendo
obrigado a conceder direito de extraterritorialidade a estrangeiros e
abrir mão do controle das taxas tarifárias, sendo que a única garantia
positiva conseguida pelo Shogunato junto aos estrangeiros foi a de
que o tráfico de ópio praticado na China não se estenderia ao Japão.
Esses tratados geraram muito descontentamento doméstico desde
seu início, principalmente em razão de estupros e assaltos cometidos
por ocidentais, e que permaneciam impunes, sendo denunciados
pela nascente imprensa japonesa (GORDON, 2003, p. 50).
O governo Meiji herdou essa situação do Shogunato
Tokugawa, e buscou fazer o possível para revertê-la, adotando para
isso as medidas modernizadoras que já mencionamos, e também
uma tentativa de ocidentalização dos costumes, com ações como o
encorajamento do individualismo e do liberalismo, mudanças na
aparência (vestuários e cortes de cabelo ocidentais) e na alimentação
(consumo de carne) (SANSOM, 1951, p. 378). Essas atitudes
buscavam fazer o Japão ser visto como civilizado pelas potências
ocidentais, na esperança que isso viabilizasse a revisão dos tratados
desiguais (BURUMA, 2003, p. 33-34).
No entanto tal objetivo não foi alcançado, e a modernização
de tipo ocidentalizante que se projetara no início da era Meiji
começou a perder fôlego a partir da década de 1880, dando lugar na
década de 1890 a um projeto de modernização conservadora, com
ênfase no nacionalismo e na valorização das tradições (BURUMA,
2005, p. 34).
Essas tradições eram muitas vezes “tradições inventadas”,
conceito que nas palavras de Hobsbawm (2002, p. 9), é definido da
seguinte forma:
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas;
tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar
certos valores e normas de comportamento através da repetição,
o que implica, automaticamente e; uma continuidade em relação

129
Conflitos e Contradições na História

ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer


continuidade com o passado histórico apropriado.
No caso japonês as tradições inventadas surgiram
principalmente em um processo que Ian Buruma (1984, p. 200-
201) chama de “samuraização” da nação, procedimento pelo
qual buscou-se inculcar os pretensos valores do antigo estamento
samurai (elevado a novo modelo de cidadania); como a lealdade, e a
disposição ao sacrifício, nos grupos de todas as origens sociais.
Tal processo se deu principalmente através do uso do sistema
educacional, no qual o governo Meiji, nas palavras de Will Durant
(1954, p. 918) “fez de cada escola do país um campo de treinamento
militar e um berçário do ardor nacionalista”, e segundo David
Landes (2000, p. 9) “também inculcando a disciplina, obediência,
pontualidade e um honrado respeito pelo Imperador”.
Ainda segundo Landes (2000, p. 9):
Essa foi a chave para o desenvolvimento de uma identidade nacional
transcendendo as lealdades paroquiais nutridas pelo shogunato
feudal. O Exército e a Marinha completaram o trabalho. Sob a
identidade do uniforme e da disciplina, o serviço militar universal
varreu as distinções de classe e de lugar. Isso nutriu o orgulho
nacionalista e democratizou as violentas virtudes da virilidade.
As forças armadas foram de fato um dos campos privilegiados
pela modernização Meiji desde seu início, tanto que “país rico,
exército forte” era justamente um dos lemas principais do país, e
sob isso repousava a memória das humilhações da década de 1850,
ocorrido que o Japão buscava evitar no futuro (DURANT, 1954, p.
918).
Antes da década de 1890 as forças armadas japonesas foram
testadas em uma expedição contra nativos de Taiwan em 1874 e em
um conflito interno (a Revolta de Satsuma ou Guerra Seinan) em
1877; mas foi apenas em 1894 que o Exército e a Marinha Imperiais
enfrentaram seu primeiro grande desafio internacional, uma guerra
contra a China governada pela dinastia Qing.
Essa guerra foi motivadapelo choque de interesses do Japão
e da China em relação a Coreia. O Japão pretendia ter acesso ao

130
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

mercado coreano, para exportar têxteis e importar arroz e soja, o que


foi proibido de fazer em 1882, quando por uma medida protecionista
o rei coreano Gojong (1852-1919) proibiu o comércio com o Japão
(KIKUCHI, 1993, p. 70).
A China por sua vez a muito considerava a Coreia como seu
protetorado, e quando explodiu na Coreia uma rebelião camponesa
que seu governo não foi capaz de reprimir, a Revolta de Donghak3
em 1894, a corte coreana solicitou o apoio de tropas chinesas, e com
isso, valendo-se de um tratado militar firmado com a China em 1882;
que dava ao Japão o direito de tomar uma ação correspondente a
qualquer medida militar chinesa, também enviou tropas à Coreia
(PETERSON, MARGULIES, 2010, p. 133).
Uma vez que a revolta camponesa foi sufocada a Coréia se
tornou o campo de batalha, e o prêmio da Primeira Guerra Sino-
Japonesa.
A campanha japonesa foi rápida, e na época considerada
surpreendente (DURANT, 1954, p. 918), tendo a Marinha japonesa
derrotado a Frota do Norte da Marinha chinesa no Mar Amarelo
ainda em 1894, abrindo caminho para a incursão das tropas
japonesas na Manchúria e a ocupação da península de Liaodong.
O governo chinês rendeu-se em fevereiro de 1895, e em abril
do mesmo ano fechou com o Japão o tratado de Shimonoseki,
que concedia formalmente a independência coreana, mas na
prática colocava o país sob a influência japonesa (PETERSON;
MARGULIES, 2010, p. 133), cedendo também ao Japão a ilha de
Taiwan, a província de Liaoning, as ilhas Pescadores, além de uma
suntuosa multa.
Em razão de temores sobre um possível avanço russo sobre a
Índia e o desempenho que o Japão demonstrou no conflito contra
a China desde 1894, a Inglaterra iniciou uma aproximação mais

3 Uma revolta orquestrada pelo movimento religioso Donghak (“Ensinamento


Oriental”, um culto sincrético que soma Confucionismo, Budismo, Xamanismo,
Taoísmo e magia) e camponeses descontentes com a corrupção dos oficiais políticos
do sul da Coréia (PETERSON; MARGULIES, 2010, p. 130-132).

131
Conflitos e Contradições na História

estreita com o Japão, visando-o como um aliado na Ásia (DURANT,


1954, p. 918). Esse cenário deu origem ao tratado Aoki-Kimberley
de 1894, que datava o fim dos tratados desiguais (o grande objetivo
do governo Meiji) para 1899, além de abrir caminho para o Tratado
Anglo-Japonês de 1902.

Lafcadio Hearn e a Guerra Sino-Japonesa


Quando a Guerra Sino-Japonesa se iniciou em 1894, Hearn
havia a pouco tempo se mudado da cidade de Matsue, na prefeitura
de Shimane da ilha de Honshu, para a cidade de Kumamoto, a
prefeitura de mesmo nome na ilha de Kyushu. Em ambas as cidades
Hearn exercia o cargo de professor de inglês no ensino médio.
Antes mesmo da guerra, em 1893, em uma carta a um amigo,
em que comentava sobre as redações de seus alunos de Kumamoto,
Hearn (1910, p. 120) já relatava que os jovens “expressavam
francamente sua repulsa por estrangeiros” em muitas redações
“expressavam um desejo de guerra”motivado sobretudo por um
sentimento de revolta em relação ao tratamento dos ocidentais aos
povos subjugados como o Havaí e a Índia. Nessa carta Hearn (1910,
p. 120) acreditava que “O Japão está partindo para a retaliação, por
todos os tratamentos arrogantes que já recebeu” e que os funcionários
estrangeiros no país seriam “secretamente desprezados, ou odiados,
ou ambos. Certamente desprezados como mercenários, e odiados
como superiores”.
Ainda sobre esse assunto Hearn (1910, p. 120-121) comenta:
Claro que com os alunos eu sou como um irmão mais velho; não
há problema aí. E eu não tento por em cheque seus sentimentos
sobre estrangeiros, eu prefiro encorajá-los. Eu encorajo-os porque
é patriótico, porque é justo, porque indica recuperação nacional. O
que eu sempre desencorajo são tais observações tais como “o Japão é
apenas um pequeno país”, “[os japoneses são] idólatras ignorantes”,
etc. Todas essas noções eu combato, e critico fortemente. Ensino-
lhes o respeito pelas suas próprias crenças, pelas crenças do povo
comum e pelo seu próprio país. Sou praticamente um traidor da
Inglaterra [na época Hearn tinha cidadania inglesa] (ahn?) e um
renegado. Mas na ordem eterna das coisas, eu sei que estou certo.

132
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Quando a guerra estava para se iniciar em 1894 Hearn (1906,


p. 175) enviou a um amigo nos EUA uma carta com o seguinte
apreensivo parágrafo:
Bem, agora dois perigos me ameaçam. Em primeiro lugar, a imensa
reação do Japão, — reafirmando sua individualidade contra toda
influência estrangeira, o que resultou na demissão da maioria
dos funcionários estrangeiros de alto-salário; em segundo lugar,
a guerra com a China. Os japoneses — essencialmente uma raça
guerreira, [...] provavelmente irão vencer as batalhas iniciais, mas
se a China ficar encurralada, amarga e seriamente, ela vai vencer
a guerra. (Provavelmente, suas chances serão arrancadas dela por
intervenção estrangeira.) Mas o que quer que seja no final desta
enorme complicação, o Japão vai esvaziar seu tesouro. As chances
de funcionários do governo [permanecerem em seus empregos]
estão diminuindo: meu contrato vai apenas até março, e as chances
[de eu continuar empregado] são 0.
Como podemos fora a apreensão por razões pessoais, Hearn
nesse momento tinha dúvidas de que o Japão venceria a guerra,
contando com certeza apenas com vitórias nas batalhas iniciais.
Essa não era uma postura incomum no período em que a guerra
se iniciou, sendo que em 1896, comentando a guerra a posteriori o
próprio Hearn (1918, p. 114) cita o exemplo da London Press, que
publicou a opinião de que dez mil chineses “poderiam facilmente
conquistar o Japão”.
Em 1896 Hearn (1918, p. 112-113) também relatou que as
causas da guerra ainda não estavam claras, sendo que os comunicados
oficiais japoneses abriam muito espaço para o exercício da
imaginação. Segundo o autor haveria cinco teorias principais sobre
as razões do Japão ter atacado a China: 1) O Japão estaria tentando
ter maior controle sobre a China, para evitar que inundasse o país
com imigrantes 2) A inteligência japonesa teria descoberto que a
China estava se preparando para invadir o Japão 3) O Japão teria
declarado guerra para desviar a atenção do público para assuntos
menos perigosos para o governo do que os que estavam em pauta4)
A guerra teria sido declarada para criar um reavivamento miliar
japonês e fortalecer com isso alguns indivíduos chave do governo
Meiji 5) O Japão queria apenas testar sua nova força militar.

133
Conflitos e Contradições na História

Contudo Hearn (1918, p. 113) acreditava que “é seguro dizer


que nenhuma teoria oferecida, apenas por si contém a verdade” e
exprimindo sua própria opinião; enquanto comentava as críticas
internacionais sobre o recém iniciado imperialismo japonês na Ásia,
relata o seguinte argumento:
O fato é que a vasta maré da civilização ocidental, envolvendo
o mundo, influenciou o Japão e o lançou contra a China, e o
resultado é que agora o Império chinês é uma lamentável ruína.
As profundas, irresistíveis, basilares forças que colocaram a guerra
em movimento vieram do Ocidente; e uma vez que esse fato
inquestionável seja reconhecido, todas as críticas ao Japão do ponto
de vista moral tornam-se absurdamente hipócritas. Outro fato
indubitável que vale a pena considerar é que somente fazendo o que
nenhum poder ocidental gostaria de tentar sozinho, o Japão obteve
o reconhecimento de seus direitos e de seu lugar entre as nações
(HEARN, 1918, p. 114-115).
Ainda segundo Hearn (1918, p. 115): “O espetáculo de poder
do Japão e a impotência da China iniciou no mundo ocidental a
descoberta de um perigo”, o Japão como um real concorrente na
corrida imperialista. E de fato Hearn (1918, p. 117-118) lembra de
uma questão; levantada pelo jornal St. James Gazette: Quem poderia
resistir aos números do exército chinês armado e comandado pelo
Japão moderno? Constatando com isso que o pleno domínio da
China poderia colocar o Japão no páreo pela hegemonia mundial
tanto quanto Inglaterra, Alemanha e Rússia.
Quando a guerra se iniciou Hearn teve a oportunidade de
observar o movimento e o cotidiano das tropas que partiam para
a Coreia, uma vez que Kumamoto era uma cidade guarnição, e um
ponto de reunião e partida das tropas. Esse cotidiano é relatado
em seu ensaio A Wish Fulfilled, presente no livro Out of the East
publicado em 1895.
Nesse ensaio, escrito no outono de 1894 (HEARN, 1895, p.
283) o tema principal de Hearn é o relato sobre um diálogo seu com
um ex-aluno da cidade de Matsue, que estava servindo nas tropas do
exército que seriam mandadas para os transportes em Shimonoseki
a partir de Kumamoto, e daí para a Coreia, e que enquanto estava

134
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

estacionado na cidade aproveitou a oportunidade para visitar seu


antigo professor. No entanto na introdução do texto Hearn dá um
valioso testemunho sobre o cenário que viu.
O primeiro fato ao qual Hearn (1895, p. 281) faz menção é
que apesar da agitação militar a cidade estava incrivelmente quieta,
sendo os militares “silenciosos e gentis como garotos japoneses em
horário escolar”, fazendo também o seguinte comentário:
O entusiasmo da nação estava concentrado e silencioso; mas, sob
aquela calma exterior, ardia toda a ferocidade dos antigos dias
feudais. O governo foi obrigado a recusar os serviços livremente
oferecidos de miríades de voluntários, principalmente espadachins.
Se tivesse sido feito um chamado para esses voluntários, estou certo
de que 100 mil homens teriam respondido dentro de uma semana.
Mas o espírito bélico se manifestou de outras maneiras, não menos
doloroso do que extraordinário. Muitos se mataram por terem sido
recusados da chance do serviço militar (HEARN, 1895, p. 283).
Hearn (1895, p. 281-282) também chama atenção para as
cerimônias religiosas ministradas para abençoar as tropas, sendo
essas cerimônias tanto xintoístas (no santuário de Fujisaki, onde
amuletos eram distribuídos aos soldados) quanto budistas, sendo os
ritos budistas realizados no templo Honmyoji da seita Nichiren, local
onde estão depositadas as cinzas de Kato Kyomasa (1521-1611), o
antigo senhor de Kumamoto, “conquistador da Coreia, inimigo dos
jesuítas, protetor do Budismo”. Segundo Hearn (1895, p. 282) “A
armadura, o elmo e a espada de Kyomasa, preservados no santuário
principal [do templo] por três séculos, não podem mais ser vistos.
Alguns declaram que foram enviados a Coreia, para estimular o
heroísmo do exército”.
Ainda segundo Hearn (1895, p. 282): “outros contam a
história de que passos ecoam no pátio do templo a noite, o trânsito
de uma poderosa sombra, erguida de seu sono nas cinzas para
liderar os exércitos do Filho do Céu [o Imperador] mais uma vez
a conquista”. Segundo o autor “Sem dúvidas [...] entre os soldados,
bravos e simples rapazes do interior, muitos acreditam [na presença
de Kyomasa], assim como os soldados atenienses acreditavam na
presença de Teseu em Maratona” (HEARN, 1895, p. 282).

135
Conflitos e Contradições na História

Hearn (1895, p. 284-285) ainda relata que:


O Imperador enviou presentes a suas tropas na Coréia, e palavras
de afeto paterno; e os cidadãos, seguindo o [seu] augusto exemplo,
estavam enviando para cada vapor suprimentos de vinho de arroz,
provisões, frutas, guloseimas, tabaco e presentes de todos os tipos.
Aqueles que não podiam pagar nada mais caro estavam enviando
sandálias de palha. A nação inteira estava subscrevendo o fundo de
guerra; e Kumamoto, apesar de nada rica, estava fazendo tudo o que
os pobres e ricos poderiam ajudá-la a fazer para provar sua lealdade.
Posteriormente, Hearn escreveu o ensaio After the War
componente do livro Kokoro publicado em 1896. Nesse texto o
autor comenta mais detalhes sobre o cotidiano durante o período
de guerra, relatando que os japonesas jamais tiveram dúvidas de sua
vitória, estando “Do início ao fim [...] certos de sua própria força, e da
impotência da China” (HEARN, 1910, p. 90). Hearn (1910, p. 91-95)
ainda observa demonstrações cotidianas de nacionalismo, relatando
que nas brincadeiras das crianças, a guerra moderna substituiu
as guerras dos samurais, sendo a guerra também inspiração para
pinturas, peças de teatro celebrando episódios heróicos, artesanato e
roupas. E segundo o autor até o momento imediatamente anterior a
assinatura da paz nacionalistas fanáticos ainda atentavam contra as
vidas de diplomatas chineses (HEARN, 1910, p. 95).
Para Hearn (1910, p. 96) a vitória sobre a China teve também
o efeito de atiçar os ânimos populares contra a Rússia (que logo após
a guerra interveio diplomaticamente em conjunto com França e
Alemanha para evitar que o Japão tomasse posse de Port Arthur),
o império vizinho cujos interesses estavam em rota de colisão com
os planos do governo Meiji (DURANT, 1954, p. 918). O autor relata
que a guerra com a Rússia foi evitada por razões econômicas, mas
o povo não perdoa os governantes por isso (HEARN, 1910, p. 98).
Para Lafcadio Hearn (1910, p. 89) a vitória japonesa sobre
a China representou a regeneração do Japão através da guerra, “A
ressurreição militar do Império” sendo o dia da vitória sobre a China
“o verdadeiro dia de nascimento do Novo Japão” (HEARN, 1910, p.
90), agora marcado pelo nacionalismo e por um futuro fecundo de
promessas.

136
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Considerações Finais
Comentando os resultados da Guerra Sino-Japonesa em um
ensaio do livro Out of the East, Lafcadio Hearn (1895, p. 234) afirma
que a autonomia do Japão “está praticamente restaurada, [e] seu
lugar entre as nações civilizadas parece estar assegurado” afirmando
que isso foi conseguido “pela primeira verdadeira exibição de seus
novos poderes científicos de agressão e de destruição”.
Essas observações de Hearn atestam os resultados positivos
obtidos pelo governo Meiji ao abandonar o projeto de modernização
ocidentalizante que marcou seu início e abraçar um projeto
nacionalista e imperialista. O nacionalismo (de fato a primeira
grande onda de nacionalismo do Japão Imperial) foi notável nas
observações cotidianas feitas pelo autor desde o período anterior à
guerra, até o início do conflito e sua posteridade. Essas observações
mostram o sucesso da samuraização dos valores nacionais levada a
cabo no final do século XIX.
Assim para Hearn o saldo desse novo projeto do governo
japonês foi o sucesso, assegurando pela força seu lugar entre as
nações civilizadas, e criando uma promissora perspectiva de futuro,
por isso o dia da vitória sobre a China foi “O verdadeiro dia de
nascimento do novo Japão”.

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Mothers, Transvestites, Gangsters and Other Japanese Cultural
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Conflitos e Contradições na História

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138
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

O surgimento da imprensa periódica no


Espírito Santo e as transformações na vida
política no século XIX
Fernanda Cláudia Pandolfi1

Introdução
Apesar do Correio da Victoria (1849-1872) ter sido
frequentemente mencionado na reconstituição e análise da
sociedade capixaba (Bastos, 2007; Ferreira, 2010; Campos, 2006),
ainda está por se fazer uma análise mais pormenorizada que enfatize
o impacto desse periódico como o primeiro jornal a introduzir novas
ideias e valores nos embates políticos que se travarão no período. O
objetivo dessa comunicação é analisara atuação e o impacto desse
jornal no cotidiano da política.Em termos mais amplos, a pesquisa
visa contribuir para a historiografia do oitocentos, enfatizando a
especificidade do Espírito Santo no conjunto das províncias que
constituíam o Brasil no século XIX, em momento importante da
constituição do Estado e da sociedade civil.
O tema proposto insere-se no campo da história política,
com ênfase nas articulações entre política, cultura e sociedade. Tais
relações ganharam destaque, principalmente, com a literatura que
utilizou o conceito de “espaço público” de Habermas (1984). O
espaço público, nessa literatura, é caracterizado como o surgimento
de um domínio entre o Estado e sociedade onde inicialmente
literários e jornalistas e, posteriormente, grupos diversos do povo,
ajudaram a moldar uma “opinião pública” que contrabalançava
o poder absolutista dos Estados e influenciava a configuração da
política. Partindo dos insights iniciais de Habermas, muitos autores
têm chamado atenção para as conexões entre política e cultura,
enfatizando as formas de manifestação do privado no espaço público
e, dessa forma, enriquecendo o conceito com questões referentes à

1 Pós-Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade


Federal do Espírito Santo. Bolsista FAPES/ CAPES.

139
Conflitos e Contradições na História

honra, gênero e etnicidade na analise da política (Piccato, 2010b)2.


Uma das contribuições seminais para a história da imprensa,
ainda não explorada por historiadores brasileiros é o trabalho de
Elizabeth Eisenstein (1979), que analisa de que modo o advento
da imprensa no Ocidente alterou o ambiente físico e intelectual de
homens e mulheres, mudando especialmente a maneira como eles
se relacionavam com o passado. Nesse processo, segundo a visão da
autora, a imprensa teria possibilitado a consolidação de uma noção
mais clara de época e lugar, permitindo que os próprios letrados
enxergassem o passado disposto diante de seus olhos através da
internalização das tabelas mentais de tempo e do reconhecimento
dos anacronismos. Nesta mesma perspectiva, Lynn Hunt (2009)
sublinhou o papel da imprensa na criação da empatia quanto à noção
dos direitos humanos, mostrando que novas sensibilidades não se
explicam somente pelo contexto social e cultural, mas também pelo
modo que as mentes individuais compreendem e remodelam esse
contexto.
O trabalho utilizará essas ideias para pensar especificamente
questões como as seguintes: de que forma a imprensa periódica
capixaba contribuiu para moldar a forma de os letrados se
relacionarem com o passado e com a política? Que impacto teve
a imprensa na disseminação de ideias e na configuração de um
espaço público na província do Espírito Santo? Em que medida ela
contribuiu para a formação de uma identidade local e nacional?

A imprensa no século XIX e o jornal Correio da Victoria


O estabelecimento e expansão da imprensa no Brasil na
primeira metade do século XIX estiveram diretamente relacionados
à formação e ampliação do espaço público da vida política.
Influenciados principalmente pelas análises de Habermas (1984) e/ou
Koselleck (2012), uma série de trabalhos vem trazendo contribuições
sobre o impacto do surgimento ou expansão da imprensa periódica
nos embates políticos na primeira metade do século XIX (Morel,
2 Para uma resenha crítica sobre essa literatura ver Piccato (2010a).

140
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

2005, Fonseca, 2006; Silva, 2006). Neste momento os periódicos,


que se auto-atribuíam a missão pedagógica de educar e informar os
leitores a respeito das ideias liberais e constitucionais, constituíam-se
no principal locus de articulação de grupos políticos e de projeção de
homens letrados na política. A considerável liberdade de imprensa
então vigente no país propiciava a manifestação de discussões
acirradas entre os periódicos que disseminava acusações, intrigas
e rumores que, de fato, influíram nos rumos da política (Pandolfi,
2014a; 2014b).
O Espírito Santo, porém, não vivenciou em sua plenitude
este momento da imprensa, tendo somente um único número do
jornal Estafeta publicado em 1840. Tal fato, possivelmente, ajude a
entender porque as relações políticas entre as elites locais e dessas
como governo central no Espírito Santo na primeira metade do
século XIX ocorreram em geral sem conflitos de maiores dimensões,
comparativamente à turbulência política de outras províncias. Isto
não significa que os conflitos não tenham ocorrido, mas que estes,
quando eclodiam, tendiam a ser resolvidos de forma relativamente
pacífica. Por exemplo, os conflitos entre as elites ocorridos no
período da Independência foram resolvidos a favor das hierarquias
estabelecidas desde os tempos coloniais (Goularte, 2014). Durante
toda a década de 1840, momento da formação do partido liberal
e conservador na Corte, especificamente, não se verifica qualquer
polarização política relevante entre as elites, havendo somente
menções a existência dos Caramurus e Peroás, grupos surgidos a
partir de divergências religiosas e que poderiam estar correlacionadas
a diferenças políticas (Siqueira, 2011).
Apenas no final dessa década (1849), começa a circular O
Correio da Victoria, que permanecerá em circulação até 1872, período
que abrange quase toda a fase de apogeu do Império, iniciada com a
consolidação do Estado Imperial a partir de 1850 e finalizada com a
lenta e progressiva perda de legitimidade da monarquia a partir de
1875 (Carvalho, 2012, p. 83). O aparecimento do Correio da Victoria
em 1849 introduziu, para todos os efeitos, a imprensa periódica no

141
Conflitos e Contradições na História

Espírito Santo, não significando isto que as elites políticas e os demais


leitores estivessem totalmente isolados das discussões anteriores que
podiam evidentemente ser acompanhadas em outros periódicos.
Considerado um jornal político, literário e noticioso com
circulação bissemanal, o Correio da Victoria teve como primeiro
proprietário e redator o secretário do governo Pedro Antônio de
Azeredo. Quando de seu surgimento, foi estabelecido um contrato
com o governo provincial no qual este periódico se comprometeu na
publicação dos atos oficiais por dez anos em troca de remuneração
previamente estabelecida (Bittencourt, 1992; Zanandrea; Frizzera,
2005).
Outros periódicos surgiram durante os vinte e quatro anos
de circulação do Correio da Victoria. O primeiro foi o jornal
Regeneração publicado de 1853 a 1856. Bissemanal, literário e
tido como imparcial, teve como proprietário e redator Manoel
Ferreira das Neves que era professor da cadeira de primeiras letras
na Capital. Entre julho e outubro de 1856 circulou O Capichaba,
caracterizado como político e noticioso. Em 1857 foram publicados
cinquenta números do O Semanário e em 1859 dezesseis do O
Aurora (Zanandrea; Frizzera, 2005). Com o aparecimento de outros
periódicos na década de 1860 configurou-se mais claramente as
cisões entre as elites locais. Dos periódicos surgidos na década de
1860 até 1873, localizamos em pesquisa preliminar A Liga, O Amigo
do Povo, O Monarchista, O Tempo e o Jornal da Victória.

Correio da Victoria: um novo espaço para a política?


O Correio da Victoria possuía um cunho declaradamente
oficial, cuja característica aparece claramente definida no primeiro
número. Em sua primeira coluna intitulada “Prospecto”, a imprensa
é definida como veículo de comunicação entre os povos cultos.
Também, aparece definida como meio de instrução popular e uma
das “mais palpitantes” necessidades de todas as classes. A missão
da imprensa segundo este periódico era “sagrada e sublime”, tendo
como objetivo moralizar e doutrinar a humanidade, guiando-se pelos

142
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

conhecimentos das artes e das letras para combater a superstição.


Sua missão, assim, aparece claramente como grande divulgador
e propulsor do progresso. O Correio da Victoria (17/01/1849) se
colocava como objetivo contribuir para o melhoramento social e
material da província do Espírito Santo, pois como o mesmo redator
justificava, a falta de um periódico levava os habitantes da capital a
recorrer aos jornais da Corte e de outros lugares para a se informar.
A falta de uma tipografia da província era vista naquele
momento como prejudicial aos interesses materiais da província.
Nesse sentido, acreditava-se que a instalação da imprensa iria tirar
a província de uma “espécie de abatimento”, uma vez que caberia
a imprensa divulgar a existência de abundantes recursos naturais
na província como, além dos rios navegáveis, tantos outros que
pudessem despertar o interesse e ambição dos povoadores. Com isto,
almejava-se elevar o Espírito Santo ao lugar de importância junto às
demais províncias do Brasil (Correio da Victoria, 17/01/1849).
Se o redator mencionava que o invento de Gutenberg
promoveria a prosperidade material e importância do Espírito
Santo no quadro das demais províncias do Brasil, também foi
enfático quanto aos males e prejuízos que a imprensa poderia trazer.
Todavia, acreditava que estes poderiam ser neutralizados. Para isso,
logo no primeiro número advertiu os leitores que o estabelecimento
da tipografia no Espírito Santo não seria uma arena de conflitos, de
“torpes recriminações” e “aleivosas diatribes”. Não caberia em sua
folha, segundo o mesmo, a “polêmica vergonha”, como as que se
referiam aos assuntos referentes à vida privada.
Afirmava, portanto, ser a finalidade do Correio da Victoria
(17/01/1849) mais nobre: promover o melhoramento material,
publicar os atos oficias e disseminar notícias de escritores eruditos.
Com a finalidade do jornal então esclarecida, o redator apresenta a
estrutura do jornal, o que oferece um guia importante para orientar
a pesquisa nos demais números. Assim, o periódico seria composto
por:
I) “Parte Oficial”: composta pelos atos do governo provincial.

143
Conflitos e Contradições na História

II) “Chronica Nacional e Estrangeira” – aborda notícias do


interior e exterior através de estratos tirados de outros periódicos.
III) “Parte Commercial”: relativa às transações mercantis.
IV) “Declarações” – contém os dias de partidas dos correios.
V) “Folhetins” – publicava contos românticos de autores
como, por exemplo, Victor Hugo, Alexandre Dumas, Eugéne Sue,
Balzac, cuja finalidade era “prendar a atenção dos leitores”.
VI) “Correio da Victória” – destinada aos “artigos de fundo”
e notícias da Corte.
VII) “Variedade” – formada pelos assuntos que não se
encaixasse nos outros tópicos.
Ficou estabelecido no contrato da tipografia com o governo
que este último deveria pagar por cada folha a quantia de 10$000
reis, bem como o prazo de dez anos de “privilégio exclusivo”. O
caráter oficial do Correio da Victoria é reiterado no artigo 9 do
contrato que proibia o empresário de aceitar correspondência que
contivesse polêmica individual, artigos que ofendessem qualquer
cidadão e anúncios com insultos diretos e indiretos. Para assegurar
que não fossem feitas críticas ao governo, o artigo 10 estabelecia
que o jornal, por ser oficial, não poderia dirigir censuras aos atos do
governo, tanto no âmbito geral quanto provincial.
Como se pode perceber, o jornal não almejava o debate de
opiniões divergentes e de crítica ao governo, mas a promoção do
progresso material. Nesse sentido, embora à primeira vista pareça
não ter se proposto exercer um papel no sentido de explicitar
divergências em público, os referenciais teóricos utilizados já
mencionados sugerem a hipótese deste jornal ter exercido um papel
mais importante na política da época.
Provavelmente a “Parte oficial” constituía a sessão que menos
atraía a atenção dos leitores. Era constituída de leis, decretos, projetos
de lei que versavam em geral sobre nomeações, gratificações e salários
dos servidores, criação de escolas, reparo de obras e aprovação de
orçamentos para vários organismos ou áreas administrativas. Para

144
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

se salvaguardarem de denúncias de que tais atos oficiais pudessem


ser alterados pela tipografia, estabeleceu-se formalmente que fossem
submetidas cópias rubricadas pelo secretário do governo, ficando o
empresário (no caso a tipografia) obrigado a entregar na secretaria do
governo cem exemplares do periódico a ser remetidos às autoridades
e aos órgãos da província (Correio da Victoria, 24/01/1849).
Na sessão oficial é possível visualizar as diversas atribuições
dos administradores das rendas, dos componentes da secretaria
do governo, assim como os projetos apresentados na Assembléia
Provincial e os membros que a compunham. Divulgavam-se também
salários, gratificações e algumas vezes os nomes de funcionários que
conviviam mais diretamente com a população como professores,
porteiros, missionários e os que tinham sob sua incumbência a
cobrança de impostos (Correio da Victoria, N.1 a N.50).
Aparentemente tais informações sugerem poucos elementos
para os objetivos dessa pesquisa por não tratarem efetivamente de
conflitos entre grupos políticos. No entanto, elas indicam que a
organização e administração da província estavam acessíveis a mais
pessoas por meio do Correio da Victoria, propiciando a acumulação
de uma experiência compartilhada e a visualização de contradições
na esfera pública. Tais dados poderiam ser posteriormente checados
e comparados, estabelecendo parâmetros para grupos e indivíduos
posicionarem-se, por meio de críticas e intervenções de forma mais
sistematizada nos assuntos públicos. A leitura,ainda em andamento,
dos demais números do Correio da Victoria, juntamente com a dos
demais jornais surgidos nas décadas de 1960-70, poderão fornecer
elementos para uma abordagem mais aprofundada sobre esses
aspectos.
Ao contrário da natureza árdua e técnica da sessão de
publicações oficiais, a de “Variedades” continha pequenas histórias
que provavelmente atraíam a atenção de um público mais amplo de
leitores como, por exemplo, comentários trágicos e algumas vezes
cômicos sobre relacionamentos pessoais3.
3 Ver “O Casamento Fatal” (Correio da Victoria, 17/01/1849, p.4) e “Os

145
Conflitos e Contradições na História

Em outras seções, era comum aparecerem temas como relatos


sobre a organização dos aldeamentos de indígenas, cuja principal
finalidade segundo o periódico era incutir o desejo da civilização
entre os índios errantes, com destaque especial para o Aldeamento
Imperial Afonsino, e escritos sobre o estabelecimento e organização
da colônia alemã. Ambos os temas ilustram o objetivo do jornal
de mostrar como a província se organizava rumo a modernização,
civilização e progresso material, o que, como lembrava o jornal,
contribuía para elevar o grau de importância do Espírito Santo
frente as demais províncias.
Outro tema frequente era os relatórios da Assembléia
Provincial que se esmeravam em destacar a tranquilidade em que
se encontrava a província do Espírito Santo no meio da convulsão
geral que abalava outras províncias. Afirmava-se que, com exceção
de um ou outro motim de tropas insubordinadas, essa província
era a “atalaia da tranquilidade” e que nela inexistiam dissenções
políticas. A província do Espírito Santo era saudada como “o mais
firme baluarte das instituições juradas”, cujo motivo apresentado
para isso era a afirmação da não existência de partidos políticos na
província (Correio da Victoria, 27/01/1849, p. 1).
Apesar de exaltarem essa tranquilidade pública no que se
refere às disputas entre grupos políticos, a segurança individual e
da propriedade era motivo de preocupação. Por exemplo, o jornal
via com preocupação os diversos ajuntamentos de negros fugidos
– os quilombos, denunciando que esses escravos estavam sobre a
proteção de “acoitadores” que os empregavam em sítios da região.
O acontecimento que mais causou tensão quanto a este
aspecto foi a insurreição do Queimado. Em vários números, o
Correio da Victoria acompanhou o motim, de seu início até a prisão
e o julgamento dos escravos envolvidos (ver, por exemplo, Correio
da Victoria, 11/04/1849, p. 3).
Um dos objetivos do trabalho foi identificar um vocabulário
político típico do Correio da Victória. Nesse sentido, identificamos
Herdeiros Logrados” (03/03/1849, p.3-4).

146
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

nas notícias internacionais uma tendência a posicionar-se a favor


das monarquias constitucionais em detrimento das repúblicas. Em
relatório do presidente da província Dr. Antonio Pereira Pinto
publicado no Correio, por exemplo, o respectivo autor criticou a
Revolução Francesa em sua fase referente ao ano 1793, comparando-a
com um “colosso com pés de barro” e com meteoros, por ter durado
somente enquanto o seu brilho fascinava as “inteligências mais
exaltadas”. Por isso, segundo o autor, a Revolução teria desaparecido,
assim como muitas de suas vítimas, sem que seus princípios se
enraizassem (Correio da Victoria, 31/01/1849). Em outro relato que
foi retirado do Diário do Rio, o jornal deixa claro sua tendência
monarquista, ao mencionar a fuga de Luiz Felipe e de toda a família
Orleans, assim como o rei da Prússia que deu uma Constituição
“muito liberal” aos seus povos. Assim, as notícias internacionais
relatadas convinham ao posicionamento do jornal, que apesar de
posicionar-se a favor do governo monárquico constitucional, não
deixava de lembrar como eles poderiam ser frágeis tanto no Brasil
quanto na Europa.
A principal contribuição do trabalho até o momento foi mostrar
que a circulação do Correio da Victoria, além de dar publicidade
aos decretos governamentais e divulgar os acontecimentos da
província e de demais regiões do Brasil, permitiu ampliar o escopo
das discussões políticas, ao disponibilizar a acumulação de uma
experiência compartilhada e a visualização de contradições na esfera
pública.

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imprensa, injúria e escravidão no Espírito Santo. Anais do XXIV
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Conflitos e Contradições na História

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André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

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Santo. Vitória: Imprensa Oficial do Espírito Santo, 2005.

149
Conflitos e Contradições na História

150
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Políticas públicas para a zona rural:


Serviço Social Rural e as leituras
conservadoras do papel do Estado (1951-
1952)
Irlan de Sousa Cotrim1

Introdução
Em 19 de junho de 1951 o então Presidente da República
Getúlio Vargas envia mensagem ao Congresso Nacional propondo
a criação do Serviço Social Rural. A alegação apresentada na época
pautava-se no crescente fluxo migratório da população trabalhadora
da zona rural para os grandes centros urbanos.
O Serviço Social Rural foi alvo de constantes debates dentro
e fora da Câmara dos Deputados. Vários argumentos foram dados.
Dentre eles destacamos os deputados federais Galeno Paranhos do
Partido Social Democrático (PSD), Novelli Júnior (PSD), Celso
Peçanha do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e Ruy Santos da
União Democrática Nacional (UDN), os três últimos, no dia 22
de junho de 1951, apenas três dias após o envio da mensagem por
Vargas, debateram o projeto em sessão plenária.
Dentro desta problemática, este trabalho tem por objetivo
analisar os discursos em torno da criação dessa política de contenção
do êxodo rural da época, bem como compreender as disputas de
poder que provocava a saída em massa dos camponeses e o quanto
interferiam nas interpretações dos parlamentares no que diz respeito
à abrangência do Serviço Social Rural.
Neste sentido entendemos que a discussão empreendida
e que levou anos para culminar em 1955 na aprovação da lei
definitiva do Serviço Social Rural, entre 1951 e 1952, teve uma forte
concepção autoritária e conservadora como discurso hegemônico,
o que permaneceu posteriormente nas discussões da política

1 Graduando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista


do PET Cultura.

151
Conflitos e Contradições na História

assistencialista no pós-governo de Vargas. Tal interpretação


é herança do pensamento elitista sobre o homem rural, como
indolente e preguiçoso, desprovido de saneamento básico e
educação apropriada ao trabalho na terra, legada de uma literatura
modernista.
Autoritária no sentido de que apesar do Serviço Social Rural
ter sido fruto também da pressão de sindicatos rurais, mesmo
regionalizados – principalmente durante a campanha de Vargas
em 1950 – quem mais se interessava pelo PL não foi consultado.
Conservadora no sentido estrutural da leitura da realidade que
mostrava os problemas referentes às péssimas condições de vida –
sanitária, educacional, salarial – atribuindo o Estado como o único
responsável por este esquecimento da população rural sendo esta
tida como ignorante e vítima das circunstâncias.
Assim sendo a hipótese defendida neste trabalho é que a
solução para o problema do êxodo rural seria de caráter conciliatório.
Os interesses dos latifundiários deviam ser contemplados pelo
Serviço Social Rural, no sentido de manter o trabalhador rural no
campo, melhorando as condições de trabalho, mas sem interferir na
forma pela qual o trabalho na gleba era estruturado. Entre outras
palavras, o Serviço Social Rural teria a finalidade de melhorar as
condições sanitárias e permitir uma educação campesina que girasse
em torno do trabalho na terra, bem como a ideia de que com essa
política o êxodo rural iria diminuir.
Primeiramente discutiremos as literaturas sobre o tema da
terra, bem como autores que versam sobre o segundo governo de
Vargas. Posteriormente abordaremos a crônica dos eventos nos
quais a fonte primária se encontra e por último desconstruiremos
o discurso dos deputados supracitados, bem como demonstraremos
como a nossa inferência foi originada.
Dessa forma, este trabalho se revela um esforço em entender
as políticas para a zona rural sob a ótica daqueles que não tiveram
voz na arena pública: os trabalhadores rurais e os pequenos
agricultores (autônomos). Isto, a partir dos discursos dos deputados,

152
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

da análise documental proposta por Jacques Le Goff (1990) – a


desdocumentalização do documento – e de um relatório impresso
em 1952 sobre a primeira Missão Rural no município de Itaperuna
(RJ). Esta documentação secundária foi redigida no intuito de
auxiliar o Governo Federal da época nas discussões sobre o Serviço
Social Rural.

O segundo governo Vargas e o meio rural: literatura sobre


o tema
A temática em torno do Serviço Social Rural2, por si só, não
possui muitos estudos acadêmicos. Porém, a relação do Governo
Vargas com setores ligados a zona rural são inúmeras. Tais leituras
apontam para o caráter conciliatório da política varguista, no
sentido de que para se manter no poder, Vargas fez alianças com
forças partidárias e opositoras.
Sobre este aspecto, Maria Celina D’Araújo traz uma grande
contribuição com a obra O Segundo Governo Vargas (1951-1954):
democracia, partidos e crise política (1992), apresentando um estudo
desde a eleição de Getúlio Vargas em 1950, até a crise política iniciada
em meados de 1953 que culminou no então suicídio do presidente
em agosto de 1954.
A autora demonstra em seu livro como Vargas no início de
seu segundo mandato, democraticamente eleito, praticou uma
política apartidária. D’Araújo divide o segundo governo Vargas
em duas fases: a primeira (1951-meados de 1953), marcada pela
política conciliatória implantada pelo presidente, principalmente
pela composição de seus ministérios, fechados para temas como
nacionalismo e trabalhismo. Isto na visão da autora teria sido o
reflexo de um conflito interno dentro dos setores da burguesia
industrial da época, cabendo ao presidente na ocasião, medir esforços
para apaziguar as desavenças internas. A segunda fase do segundo
governo Vargas seria marcada pela virada política empreendida pelo
presidente, considerada por alguns como uma guinada à esquerda,
2 Representado agora pela sigla SSR.

153
Conflitos e Contradições na História

entre 1953 até agosto de 1954.


Essa “virada” empreendida pelo Governo estaria evidenciada
por dois marcos: a reforma ministerial de junho-julho de 1953
e a instrução 70 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do
Crédito), datada de outubro desse mesmo ano, tida como um golpe
contra os grupos comerciais em prol da industrialização – o que
teria desgostado boa parte dos setores econômicos dominantes.
Interpretada como urna guinada para a esquerda, a nova
orientação teria despertado a reação direta da classe média e dos
grupos econômicos, em aliança com as Forças Armadas, contra
o Governo. O conflito intraburguês passa a um plano secundário
frente à ameaça do movimento de massas consentido e até mesmo
incentivado pelo Ministério do Trabalho (D’ARAÚJO, 1992, p. 21).
Assim sendo, a autora atribui a crise de agosto de 1954 ao
fracasso desta política conciliatória.
No tocante as organizações políticas da época, há que se fazer
uma ressalva no que diz respeito à relação partido e filiado. Apesar
dos partidos terem uma carta-programa, aprovada em convenções
nacionais, seus filiados poderiam se mostrar contrários a certas
proposições e por vezes serem contra um colega do mesmo partido.
Isso explica a divisão proposta por Renan Vinícius Magalhães
(2015) em O Segundo Governo Vargas e o Trabalhador Rural:
propostas políticas por uma legislação trabalhista no campo (1950-
1954), dissertação de mestrado, a qual o autor defende a tese de que
embora o Serviço Social Rural tenha sido uma política cuja finalidade
consistia na melhoria da vida do trabalhador rural, na realidade,
reafirmou o poder de exploração dos grandes proprietários.
Magalhães percebe pelo menos três grupos de deputados no
decorrer dos debates sobre o SSR. Distintos em termos de concepção
da aplicabilidade e as condições desse projeto de atender aos
trabalhadores rurais. Esses grupos são denominados por ele como
os opositores, os otimistas e os radicais. Opositores porque em seu
discurso não acreditavam na viabilidade do PL no Brasil. Segundo
o autor, diziam que o Brasil não possuía infraestrutura, como por
exemplo, a falta de médicos e a forma pela qual o Estado convenceria
os profissionais a atender àquela população que vivia na penúria,

154
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

como eles adjetivavam a vida das pessoas que moravam no campo.


Os otimistas acreditavam no projeto, porém não mexiam nele. A
própria questão agrária, de distribuição de terras (reforma agrária)
não era mencionada pelos parlamentares otimistas. Já os radicais
reconheciam a importância do PL para a classe trabalhadora rural,
porém acreditavam que apenas com uma ruptura estrutural (queda
dos latifúndios, do capitalismo, etc.) a vida dessas pessoas viria a
melhorar. Estes fizeram algumas ponderações no projeto. Vale
ressaltar que dentro de partidos considerados oposição ao governo
Vargas aderiram ou reiteraram sua discordância com o PL do SSR,
o que indica que o locus do deputado pesou mais que uma unidade
político-partidária (MAGALHÃES, 2015).
Outro fator importante a ser destacado é a biografia daqueles
deputados que se encaixariam dentro desta divisão ideológica
proposta por Magalhães. O lugar de fala desses deputados influenciou
o modo pelo qual cada um se posicionou. Um exemplo seria o
deputado udenista Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque3
(UDN-RJ), que se mostrava a favor do projeto, e segundo Magalhães,
foi um dos que mais se destacou entre os otimistas. Este parlamentar
nasceu em Alagoas e seus pais eram pequenos agricultores. Assim,
vale ressaltar que nenhum dos deputados cujos discursos serão
analisados a posterior tiveram aproximação com o meio rural de
forma acentuada, tampouco viveram na zona rural.
No tocante ao grupo o qual Galeno Paranhos (PSD), Novelli
Júnior (PSD) e Celso Peçanha (PTB), de acordo com a análise
3 “Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque nasceu em 1906, no estado
de Alagoas, era filho de pequenos proprietários rurais. Em 1926, mudou-se para
o Rio de Janeiro, onde trabalhou em empregos sem muito prestígio. Em 1927,
começou a trabalhar como administrador de uma fazenda, ocasião em que se
envolveu em diversos conflitos armados por questões de terras, chegando a ficar
preso em Petrópolis. Ainda enquanto administrador, Tenório destacou-se pela
forte repressão aos trabalhadores em greves, e foi aos poucos comprando porções
de terras desvalorizadas que, com o tempo, se valorizaram. Na década de 50 ele se
candidata e é eleito deputado federal, com grande prestígio, sobretudo das classes
populares. A ligação de Tenório com as classes populares, e com a população rural,
foi significativa; era considerado o PTB dentro da UDN. Tenório era de origem
rural, e seu prestígio e caminho para a política também se deu por vias do seu
contato com o campo” (MAGALHÃES, 2015, p. 71).

155
Conflitos e Contradições na História

feita por Magalhães (2015), seriam estes pertencentes ao grupo


dos otimistas, uma vez que em seus discursos esses deputados
proclamavam seus colegas para que juntos planejassem o projeto de
lei do SSR. A nosso ver, apenas Ruy Santos (UDN) se encaixaria no
grupo dos opositores, não apenas ao projeto, mas também a todo o
esforço empreendido pelo governo federal da época, no sentido de
desqualificação da oposição petebista.
Em Documento/monumento, último capítulo do livro História
e Memória, de Jacques Le Goff, este aborda como o trato documental
foi sendo alterado durante as épocas dentro da historiografia. Para
este trabalho optamos por utilizar a análise documental no que
tange a sua desdocumentalização, ou seja, reinserção do documento
– Diários da Câmara Federal – em sua época, aproximando-nos das
percepções de sua época original.
O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente
– determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um
documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao
historiador não fazer o papel de ingênuo (LE GOFF, 1990, p. 548).
Dando prosseguimento à literatura sobre a temática do SSR,
Leandro Souza Moura e Paulo Emílio Matos Martins em artigo
publicado nos anais do V Encontro de Estudos Organizacionais
da ANPAD (2008), O “Coronel” e o Espaço Organizacional: os
Coronelismos de Enxada e Eletrônico como formas de poder,
apresentam uma discussão acerca do termo coronel no contexto
urbano e rural, bem como o poder exercido por esta figura.
Concordamos com os autores quanto à influência política
dos coronéis. Porém, discordamos dos mesmos no que diz respeito
a uma manipulação ou uso da ignorância política ou erudita do
trabalhador rural. Partimos do pressuposto que trata-se de contratos
de trabalho de trocas mútuas, contratos de trabalho firmados entre
proprietário e colono, nos moldes de um colonato. Numa relação
dessas, pode-se inferir que as decisões políticas também se valiam
desse sistema de colonato e não como manipulação, mas sim por
trocas de favores.

156
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Assim sendo, essa forma de enxergar as relações coronelistas


no Brasil, simplificadas em uma manipulação dos opressores aos
oprimidos, reduz a problemática política que se pode obter, uma
vez que o SSR se revelou como uma forma de extensão de direitos
trabalhistas para o campo, acatada pelo Governo Federal da época,
discutido entre os parlamentares que tinham em suas retóricas
ideologias concernentes aos grupos aos quais estavam inseridos e
que podiam ou não ser aceitas.

As discussões sobre o Serviço Social Rural no cenário


político
Clifford Andrew Welch (2016) fez um estudo sobre a
reorganização da vida rural no Brasil durante o Estado Novo. Esta
bibliografia expõe que a problemática da terra estava em voga ainda
no primeiro governo Getúlio Vargas, além de mostrar as disputas e os
anseios de setores ligados a latifundiários e sindicatos rurais. O autor
derruba a tese básica de que no Estado Novo, no primeiro governo
de Vargas e mesmo no Governo Provisório (1932-1936), não tenha
havido uma preocupação com questões agrárias (WELCH, 2016).
Isso permeou todo o Estado Novo com convenções e eventos
fomentados por diversos setores da sociedade. Em 1º de maio de
1941, Vargas discursou no estádio do Vasco da Gama, dirigindo-se
aos trabalhadores rurais, algo que se repetiria muito durante a sua
campanha futura em 1950. Segundo Welch (2016), duas semanas
após este discurso, fazendeiros e empresários, além do ministro
do trabalho da época se reuniram em São Paulo no I Congresso
Brasileiro de Direitos Sociais.
Embora todos argumentassem contra a aplicação das leis de
trabalho urbano ao campo, eles não se opunham ao conceito de
incorporar a sociedade rural à estrutura corporativista do Estado
Novo. Concordando em que a organização “racional” do setor
era fundamental ao progresso econômico do Brasil, fizeram suas
contribuições de forma muito mais cooperativa que em tom de
confronto. De fato, os porta-vozes dos agricultores aproveitaram
as ambiguidades do discurso de Vargas para enfatizar os problemas
produtivos gerais e não os problemas específicos ou as condições de

157
Conflitos e Contradições na História

seus trabalhadores (WELCH, 2016, p. 91).


A autora ainda escreve sobre o caráter oligárquico que o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) que se sobressaía ao caráter federativo,
ou seja, rixas internas ou facções internas que discordavam mesmo
da carta-programa do partido. D’Araújo (1996) alega que o estatuto
do PTB sofria contínuas alterações, tomadas de decisão intra-
partidárias eram feitas sem o amparo legal, respeitando a realidade
na qual o partido estava vivendo na época.
De acordo com Magalhães (2015), questões rurais sempre
estiveram na pauta da campanha de Vargas e nas eleições de 1950
não foi diferente. Apesar da questão agrária não ter sido a principal
política defendida durante a campanha, em suas várias viagens
as regiões norte e nordeste e em cidades rurais do sudeste Vargas
fazia questão de prometer políticas para a extensão dos direitos
trabalhistas da zona urbana para a zona rural. Dentre as propostas,
podemos elencar a extensão da Consolidação das Leis de Trabalho
(CLT), instituição do salário mínimo, melhoria das condições de
saúde e educação voltada para o campo e reforma agrária. Porém,
o projeto aprovado em 1955, bem como a discussão defendida pelo
grupo dos otimistas, facultou pela assistência médico-sanitária à
reformas consideradas radicais demais.
Ainda segundo o autor, jornais da época como o Correio da
Manhã – documento analisado em sua dissertação de mestrado –
transformavam a semântica desses discursos de Getúlio, e o fazia
com o intuito de despertar a população.
Desse modo, a intenção do jornal se totaliza, indicando o perfil
de Vargas, e do PTB, em alinhamento à classe patronal, e o
trabalhador sendo o mero recurso para angariar votos. Contudo,
essa interpretação revela uma das faces do jornal em atribuir à
classe trabalhadora a posição de passividade, uma não consciência
de seus interesses e desejos, assim, os operários são apresentados
como meros manipulados pelo líder carismático (MAGALHÃES,
2015, p. 40).
Assim sendo o pensamento autoritário do jornal nos revela qual
era a posição política deste na época, de que a população – sobretudo
a mais carente e distante do saber erudito – eram manipulados pela

158
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

retórica de Vargas, bem como daqueles que estivessem acima da


massa popular. Na documentação secundária constatamos que esta
concepção influenciou nas propostas apresentadas pelos membros
da 1ª Missão Rural de Itaperuna (RJ), bem como esse discurso está
presente nas falas dos deputados analisados e por fim, como isso
permaneceu nas discussões posteriores a 1952, chegando até em
1955 com a aprovação do Serviço Social Rural.
Magalhães no último capítulo de sua dissertação faz um
levantamento de alguns dos projetos e anteprojetos apresentados
entre 1951 até 1954, posteriores ao projeto 84/1951 apresentado
por Galeno Paranhos (PSD) até o PL nº 2.613, de 23 de setembro
de 1955, que instituía o Serviço Social Rural. Houve projetos que
beneficiavam muito mais a classe trabalhadora rural, especialmente
o pequeno agricultor autônomo e os empregados. Porém, como as
outras tentativas de avanço esses projetos foram arquivados. Em 11
de outubro de 1962 o Serviço Social Rural foi extinto, tendo suas
atribuições absorvidas pela SUPRA (Superintendência da Política
Agrária).

O debate em torno do Projeto “Serviço Social Rural”


Em 10 de abril de 1951, Galeno Paranhos discursou sobre o
Projeto de Lei no 84/1951, que dispõe sobre a criação do Serviço
Social Rural. Alguns artigos versam sobre questões de financiamento
do serviço, bem como multa para os donos de terras punidos por
alguma infração ou descumprimento de algum artigo do PL e da
arrecadação das taxas referentes. Nosso objetivo neste trabalho
não é discutir o PL, mas sim analisar os discursos que se faziam da
realidade da vida rural e buscar compreender como tais discursos
foram formados, buscando entender o que falam, calam e deixa
implícito e as possíveis razões disto.
Galeno Paranhos aborda na justificativa a questão do êxodo
rural. Alega o esquecimento da população rural como à causa do
imaginário destes que na cidade urbanizada como uma nova chance
de vida e de trabalho com melhores condições e salários mais

159
Conflitos e Contradições na História

compensadores.
Sem habitação higiênica, sub-nutrido, mal vestido, sem instrução,
sem assistência médica, mal remunerado, enfim, vivendo esquecido
de todos, o que lhe resta a fazer é abandonar a gleba e procurar
a cidade, onde a falta de preparo técnico e de melhor adaptação,
contribuirá para agravar a crise urbana, perambulando pelas
favelas. Desta vida sem objetivos passa para a vadiagem, para a faina
dos expedientes e, finalmente, para o crime, gerando esse estado
de permanente alarma em que vivem as famílias ameaçadas na sua
tranquilidade pela ação ininterrupta dos malfeitores [...]. Por outro
lado, a produção agrícola vai decrescendo devido à falta de braços
para o trabalho (BRASIL, Diário do Congresso Nacional, 10. Abr.
1951).
O parlamentar ainda ressalta que nem mesmo os estrangeiros
que vêm trabalhar no campo resolveriam a problemática do êxodo
rural, sendo assim de extrema importância a aprovação do SSR,
um projeto que tem por objetivo melhorar a vida do homem no
campo, por meio do assistencialismo, visando à permanência desses
trabalhadores na zona rural.
Aqui temos o problema do êxodo rural e as possíveis
explicações para a ocorrência do fenômeno que Paranhos deu.
Destacamos a forma pela qual o deputado qualifica os trabalhadores
rurais como esquecidos e sem os serviços considerados básicos
para o homem, apontando esta carência como o motivo pelo qual
o camponês deixa a gleba para tentar a vida na cidade. A tentativa
dessa explicação apesar de evocar a vida difícil no campo, cala sobre
as relações de trabalho, bem como a forma pela qual o trabalho
no campo era estruturado4. Este discurso esconde as diversas
formas de trabalho no campo. E deixa implícita a ideia de que
esses trabalhadores são vítimas da omissão do Estado, que além de
esquecer esta gente, também perde a oportunidade de fazer investir
neste tipo de negócio.
Paranhos ainda cita o artigo 156 da Constituição Federal de
1946:
A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos

4 Mais adiante demonstraremos com o auxilio de uma fonte secundária uma


das formas de contrato de trabalho.

160
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

de colonização e de aproveitamento das terras pública. Para esse


fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das
zonas empobrecidas e os desempregados (BRASIL, 1946).
Assim sendo, Paranhos atribui a falta de assistência do Estado
em se fazer um esforço maior que o já feito, expresso neste artigo
da constituição. O deputado ainda fala sobre a educação que os
camponeses não tiveram acesso, atribuindo a isso o fato de irem
despreparados para a zona urbana engrossando as estatísticas da
violência. Aqui temos o discurso conservador no sentido de que
explica a violência a partir da falta de educação apropriada – o que
segundo a fala de Paranhos, leva o indivíduo ao ócio.
Em nosso entendimento este tipo de interpretação é legado
de um imaginário do homem do campo, sobretudo do pequeno
agricultor, como o caipira. Entre outras palavras, um imaginário
pautado na personagem do Jeca-Tatu, construído pelo escritor
– neto do Barão de Itararé – Monteiro Lobato. Criado a partir da
ótica elitista de Lobato que responsabilizava o caipira ao atraso nas
técnicas de trabalho na terra, o indolente e o desprovido de educação
apropriada e de hábitos pouco higiênicos (VASCONCELLOS, 2009).
Em 22 de junho de 1951, Novelli Júnior se posicionou sobre
o Serviço Social Rural, e teve apartes de Celso Peçanha e Ruy Santos
– além de uma pequena participação do então deputado Ranieri
Mazzili5. Debate sobre a importância da saúde, saneamento básico
e educação rural (profissionalizante para o trabalho no campo) para
a fixação do povo rural no trabalho campesino. A favor do SSR, faz
no fim de sua fala um apelo aos colegas deputados para que após as
ponderações e possíveis mudanças, o PL de Paranhos e de Vargas
seja aprovado e levado ao Senado Federal.
Ruy Santos
Essas missões rurais com a extensão do território nacional, com a
fraca densidade de população verificada aqui e ali, não passam de
poesia e de demagogia do Ministro da Educação.
Celso Peçanha
5 Acreditamos que sua participação neste debate não acrescentou algo novo
na discussão. Por isso, seu discurso, apenas uma breve fala, não foi relevante para
nossa análise e, portanto, optamos por suprimi-la.

161
Conflitos e Contradições na História

As missões rurais, culturais não foram idealizadas pelo atual


Ministro da Educação. Já as temos no Brasil. No Estado do Rio, no
município de Itaperuna, com grande êxito, as missões rurais têm
trabalho e estou informado que têm prestado excelentes serviços.
[...]. Eu ficaria muito satisfeito se o atual Ministro da Educação,
que vive pensando em evitar que o Brasil tenha bacharéis, cuidasse
dessas missões rurais [...].
Ruy Santos
[...] que uma missão passa e deixe o doente, isto não resolve, é pura
demagogia.
Celso Peçanha
Eu não disse que a missão rural vivia solucionar, resolver o
problema, mas que colaboraria no programa que vossa excelência
está desenvolvendo.
Novelli Júnior
A educação, todos nós sabemos, é por excelência o agente fixador
do homem no solo [...]. Mas, a educação especializada, educação
no campo, para o homem do campo levada até ele por professores
especializados, educação para o trabalho [...]evitando a criação de
mais uma dessas unidades de nome pomposo, com uma cauda
astronômica de funcionários, classificados e catalogados nas vinte e
cinco letras do alfabeto e que nada realizam em benefício da Nação
(BRASIL, Diário do Congresso Nacional, 22. Jun. 1951).
Esse excerto nos revela um discurso autoritário no sentido
de que coloca os trabalhadores rurais como vítimas do abandono
e do esquecimento do Estado. Aqui temos o papel do Estado como
agente de proteção da permanência do trabalhador rural no campo.
Esse discurso fala dos problemas mais perceptíveis que atingem a
gente rural. Deixa claro que o êxodo rural é fruto da omissão e do
esquecimento de políticas públicas estatais para com os camponeses.
Esse discurso cala sobre os contratos de trabalho feitos entre os
camponeses empregados com seus patrões, bem como cala a
desigual disputa entre os pequenos agricultores autônomos frente
à concorrência com os grandes latifundiários. Outro ponto crucial
que é silenciado, ou apenas dito pelos deputados radicais, como a
pauta da reforma agrária. Esse mesmo discurso deixa implícita a
ideia de que os trabalhadores seriam vítimas de sua ignorância e da
falta de assistência estatal, uma critica ao governo federal, ao mesmo

162
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

tempo deslegitima e rouba o protagonismo dos trabalhadores rurais


e de seus sindicatos de serem atores e participar das discussões na
arena pública.
Em 1952 foi publicado um relatório sobre a Missão Rural
realizada no município de Itaperuna (RJ). O intuito desta empreitada
foi justamente auxiliar a gênese do Serviço Social Rural. Este relato
foi feito pelo grupo que promoveu atividades com a população desta
cidade rural. Foram realizados trabalhos como extensão rural, clubes
agrícolas infantis, economia doméstica, oficinas de corte e costura e
cursos de enfermagem (BRASIL, 1952, p. 26-43).
Este relatório aborda a vida na região, o clima e os moradores.
Há ênfase ao tratar da mecanização da atividade agropecuária,
ligando esta ideia ao conceito de prosperidade. As condições
sanitárias são vistas como o resultado do esquecimento da região e a
ignorância dos moradores em não saberem os princípios básicos da
higiene. Neste sentido, os campesinos seriam vítimas de sua própria
ignorância. Leva em conta dois principais fatores: ignorância e
falta de recursos. Porém atribui a escassa verba dos trabalhadores à
ignorância no cultivo e no comércio.
Podem ser encontradas no município várias modalidades de
trabalho rural: colonato, parceria agrícola e salário diário. Daí as
seguintes denominações dos trabalhadores rurais: colono, meeiro,
terceiro, diarista, etc. Via de regra os contratos de trabalho são
verbais. Na maioria dos casos o que se observa é uma combinação
de dois ou mais dos sistemas citados. O regime de colonato é quase
sempre adotado no para a cultura cafeeira, e nele o proprietário
entrega ao trabalhador determinado número de cafeeiros para
tratar. Em geral o colono pode dispor de terras para o seu plantio
exclusivo. À parceria agrícola, em geral, para as culturas anuais. O
assalariado é o que recebe por dia de trabalho , livre ou cativo, isto
é, sem refeições ou com elas (BRASIL, 1952, p. 26-27).
Esse discurso fala do ponto de vista daqueles estranhos ao
meio rural. Se reduz a crítica da falta de acesso dos campesinos à
educação formal, à falta de recursos e a falta do Estado. Cala sobre o
poder dos grandes latifundiários, bem como as relações entre o meio
rural e o meio industrial, embora mencione os tipos de trabalho,
não há uma preocupação em se investigar estes tipos de contratos

163
Conflitos e Contradições na História

verbais. Deixa implícito que os trabalhadores rurais seriam vítimas


da sua própria ignorância. Este tipo de leitura conservadora e elitista
da realidade da zona rural ignora o ponto de vista dos trabalhadores
no sentido de tê-los como vítimas ou incapazes, reféns de sua
miserável vida e condições insalubres de trabalho. Associa-se a isso
a ideia de retrocesso gerada através da falta de mecanização do meio
rural.
Ao final, este trabalho dá algumas sugestões para os
governantes quanto à gênese do SSR. Algumas são dignas de nota.
Alegam que as atividades da 1ª missão rural brasileira provou que a
ação do SSR pode ser possível, uma vez que se adaptou a realidade
rural brasileira; a função sine qua non deste PL seria ir ao encontro
desta população; a prioridade do SSR atender as cidades rurais
conforme sua especificidade6.
Dessa forma, como podemos constatar a leitura conservadora
da realidade da vida rural e das condições de trabalho foi
predominante no PL do Serviço Social Rural. E apesar da pressão dos
sindicatos rurais e de setores considerados mais radicais dentro dos
partidos que compôs a bancada do Congresso Nacional da época,
o que foi aprovado em 1955 foi uma política mais conciliatória que
realmente uma ruptura com a exploração do trabalho nos campos.

Considerações finais
Como podemos observar, ao longo deste trabalho nosso
esforço em tentar compreender como os discursos em torno do
Serviço Social Rural foram concebidos nos revela que a pauta rural
6 Cada cidade seria dividida conforme seu grau de progresso: as cidades
decadentes são aquelas que no passado já foram desenvolvidas. O trabalho exercido
nelas seria o de recuperação. As primitivas seriam as que não tenham acompanhado
o desenvolvimento das suas vizinhas e, portanto estariam atrasadas. Seriam regiões
sub-desenvolvidas ou atrasadas. O trabalho seria de desenvolvimento econômico-
social. O terceiro grupo trata-se das regiões emergentes, em pleno desenvolvimento,
mas que pelas circunstâncias tenderam a um crescimento desordenado. Estas
seriam objeto de trabalho de orientação. “A escolha, para início do Serviço Social
Rural, poderia recair sobre um ou outro desses três tipos de zonas rurais ou sobre
mais de um, simultaneamente, conforme fosse revelado de maior interesse do
ponto de vista nacional” (BRASIL, 1952, p. 192).

164
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

sempre foi discutida dentro da política brasileira. A pressão de


agremiações rurais durante a campanha de Vargas em 1950, bem
como a própria ascensão de Getúlio Vargas em 1932 ao governo
federal – apenas 3 anos após o crash de 1929 que abalou muitas
fazendas cafeeiras, por exemplo – demonstram que o trabalho
na terra precisou e muito da assistência governamental, tanto do
lado dos latifundiários quanto dos setores industriais urbanos e
finalmente a condição do trabalhador rural e autônomo.
Os valores que estavam em voga na época como o trabalhismo,
a assistência e o contexto do crescente êxodo rural desde a década
de 1920 acarretaram na discussão de políticas públicas destinadas a
realidade do trabalho no campo. Porém, o que o SSR representou,
ao final das contas, foi uma política que visou conciliar interesses
e proteger outros, além de se revelar também como uma arena de
conflitos políticos.
Desse modo, o Serviço Social Rural pode ser entendido
como uma conciliação de interesses que mesmo tendo raízes
nos movimentos sindicalistas teve sua participação calada ou
pormenorizada por aqueles que detinham a hegemonia dentro da
arena pública, portanto, tinham vez e voz para atuarem dentro de
parâmetros muito bem estabelecidos.

Referências
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Hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova. São Paulo,
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28 set. 2016.
BRASIL. Discurso sobre a vida da gente da zona rural
e defende o PL do Serviço Social Rural. Diário do Congresso
Nacional. 22 de Junho de 1951.

165
Conflitos e Contradições na História

BRASIL. Justificação para o PL 84/1951. Diário do Congresso


Nacional. 10 de abril de 1951.
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Itaperuna. Série Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro: Serviço de
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Conflitos e Contradições na História

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André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Defensores da Ordem e Conciliadores da


Nação: a atuação da imprensa liberal
conservadora no processo de emancipação
política da América Portuguesa (1821)
Jorge Vinícius Monteiro Vianna1

A matriz da linguagem liberal conservadora: o iluminismo


português
Em Portugal, o Iluminismo teve campo fértil durante o reinado
de d. José I (1750-1777), por intermédio da política de orientação
racional e pragmática (com o objetivo de fortalecer o poder central
do Estado monárquico português) implementada por Sebastião
José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal. Em particular,
destacou-se a implementada reforma na Universidade de Coimbra,
em 1772, que refletiu um importante grau de consolidação das ideias
ilustradas em Portugal. Entretanto, um absolutismo propriamente
ilustrado consolidou-se no reinado de d. Maria I (1777-1792) e na
regência de d. João VI (1792-1816), com a importante participação
na administração estatal de diversos indivíduos (muitos naturais
da América portuguesa) educados na reformada Universidade
de Coimbra e na Academia Real de Ciências de Lisboa, criada em
1779, e que também constituiu um importante espaço de circulação,
divulgação e discussão das novas ideias ilustradas. Assim, no final
do século XVIII, o pensamento ilustrado foi difundido na América
portuguesa por meio dos altos funcionários, juristas, naturalistas e
professores régios a serviço da Coroa, além do gradual aumento da
circulação de livros no âmbito da pequena população letrada, apesar
da vigilância da censura. Esta circulação comprovou-se por meio das
devassas abertas por ocasião das inconfidências do final do período
colonial, que elucidaram a penetração do pensamento ilustrado
tanto nos influentes proprietários da colônia e membros do clero,
quanto em alguns escravos e libertos, que, mediante a interpretação
1 Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade
Federal do Espírirto Santo.

169
Conflitos e Contradições na História

do mundo em que viviam, davam sentidos às novas ideias do século


(NEVES, 2001, p, 296-299).
Todavia, ao falarmos de Iluminismo não podemos pensá-
lo dentro de uma homogeneidade ideológica. Segundo Francisco
Falcon, fica bem demonstrado a “falácia de supormos, com
relação ao próprio Iluminismo, uma unidade de princípios e uma
autoconsciência que não correspondem, de maneira alguma, à
pluralidade inerente às várias tomadas de consciência do movimento
ilustrado”. (FALCON, 1994, p. 16-17). Diante dessa pluralidade
do que genericamente denominou-se de Iluminismo, a Ilustração
ibérica constitui-se por meio de características específicas e, por
isso, o ambiente de ilustração português mesclou a força da religião
católica com as novas propostas de secularização e pragmatismo
que influenciaram diretamente na própria formação das elites
política e intelectual atuantes no cenário político de 1820 a 1823
(NEVES, 2003, p. 49). Por sua vez, o “iluminismo português foi
essencialmente Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito era,
não revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso como o
francês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista e
humanista” (CARVALHO, 1985, p. 81).
No mundo luso-brasileiro, destacou-se o importante papel
unificador da Universidade de Coimbra em formar uma elite
com homogeneidade ideológica e de treinamento capaz de atuar
decisivamente no cenário político da primeira metade do oitocentos,
no Brasil imperial. Coimbra foi capaz de evitar o maior contato de
seus estudantes com Iluminismo libertário francês, formando uma
elite letrada identificada com noções reformadoras, aos moldes das
Luzes portuguesas (CARVALHO, 2007, p. 65-92). Esses ilustrados
brasileiros, sobretudo depois da transferência da Corte para
América, identificaram-se com a formação de um grande império
luso-brasileiro, atuando com o objetivo de orientar a Coroa com
projetos reformistas. Mesmo indivíduos perseguidos, como Hipólito
da Costa, acusado e preso por atuar na maçonaria, não defendiam
princípios separatistas entre Brasil e Portugal (DIAS, 1968, p. 149).

170
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Logo, no final do século XVIII e início do oitocentos,


evidenciou-se o papel do ministro e secretário de Estado dos
Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, d. Rodrigo
de Souza Coutinho, afilhado de Pombal. Baseado em uma política
reformista, d. Rodrigo preocupou-se diretamente em evitar no
Império português as experiências vividas pela América do Norte,
com a independência dos Estados Unidos, bem como também o
radicalismo político ocorrido na Revolução Francesa. Ao mesmo
tempo, buscou fortalecer Portugal em relação às demais potências
européias, organizando em torno do próprio Estado português um
núcleo de intelectuais brasileiros (no qual podemos destacar José
Bonifácio, Hipólito da Costa, José J. de Azeredo Coutinho, José
da Silva Lisboa, entre outros) imbuídos de formarem um círculo
de discussões que valorizassem a necessidade de reformas nas
instituições políticas, econômicas e sociais no Império português.
Para d. Rodrigo, a América deveria ser tratada como a parte
sustentadora da monarquia portuguesa e, por isso, Portugal deveria
crescer juntamente com os seus domínios marítimos, especialmente
o Brasil, pois, sozinho, tornar-se-ia apenas uma província da
Espanha. Em suma, este projeto reformador objetivava a criação de
um forte império luso-brasileiro, não deixando de representar uma
oportunidade de estabelecer mudanças no quadro político, mas sem
desintegração social. Formou-se, desta forma, a chamada geração
de 1790, que, tendo na monarquia o sistema ideal, refutou qualquer
perspectiva separatista como uma forma de solucionar os problemas
do Império português (MAXWELL, 1999, p. 157-207).

Referenciais teóricos e metodológicos


Influenciados por esta perspectiva reformadora que ganhava
espaço desde o período pombalino, essa elite ilustrada aproveitou a
penetração das novas ideias e formou, na ótica das mitigadas luzes
portuguesas, um núcleo no qual se moldou uma nova cultura política
(NEVES, 2003, p. 32). Como nos esclarece Serge Berstein, uma
cultura política, além de ser um importante fator na explicação das

171
Conflitos e Contradições na História

motivações de um ato político de um indivíduo, é, simultaneamente,


um fenômeno coletivo compartilhado por diferentes grupos sociais.
Doravante,
Submetido à mesma conjuntura, vivendo numa sociedade com
normas idênticas, tendo conhecido as mesmas crises no decorrer
das quais fizeram idênticas escolhas, grupos inteiros de uma
geração partilham em comum a mesma cultura política que vai
depois determinar comportamentos solidários face aos novos
acontecimentos (BERSTEIN, 1998, p. 361).
Nessas premissas, o círculo de intelectuais brasileiros da
denominada geração de 1790, formado em torno de d. Rodrigo,
e em importante quantidade aqueles que se formaram na
Universidade de Coimbra reformada, constituíram durante o
processo de emancipação política da América portuguesa a elite
coimbrã. Uma elite que simpatizava com um liberalismo de cunho
conservador, execrando qualquer perspectiva revolucionária como
forma de criticar as práticas do Antigo Regime (NEVES, 2003, p.
86-87). Para esses homens, a crítica deveria ser feita através de um
paradigma cosmopolita reformador, visto que era imprescindível o
estreitamento dos laços entre Brasil e Portugal, principal forma de
manutenção dos vínculos que os prendiam à civilização europeia,
de onde vinham seus próprios valores cosmopolitas de renovação
e progresso. Entre seus principais representantes, destacaram-se
Francisco Vilela Barbosa, José Bonifácio de Andrada e Silva, José
Joaquim da Rocha, Francisco Sampaio, José da Silva Lisboa, entre
outros importantes nomes da elite política e intelectual que atuaram
decisivamente no processo que elevou a autonomia política brasileira
(DIAS, 1986, p. 162).
José da Silva Lisboa (1756-1835), nomeado visconde de
Cairu em 1826, foi um dos principais representantes desta elite
luso-brasileira, atuando intensivamente na esfera política como
panfletário e jornalista durante o processo de Independência do
Brasil. Estudioso de latim desde os oito anos de idade, o futuro
visconde tornou-se bacharel formado em direito canônico e
filosófico pela Universidade de Coimbra, em 1779. Lecionou grego
e filosofia racional e moral na Bahia (onde nasceu) até 1797, quando

172
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

foi nomeado deputado e secretário da Mesa de Inspeção da mesma


cidade. Durante o governo joanino, conseguiu importantes cargos,
como o de desembargador na criação do Desembargo do Paço, em
1808, e logo depois o de censor da mesma instituição, em 1815,
ficando responsável pelos exames das obras destinadas à impressão
no Rio de Janeiro. Enfim, Cairu foi um exemplo claro de um
intelectual e político formado no modelo da Ilustração portuguesa e
representante direto do pensamento coimbrão.
Menos comprometida com a questão da unidade do império
luso-brasileiro e mais receptiva ao pensamento iluminista francês,
devido à leitura de diversos livros proibidos que circulavam por trás
da censura, apresentou-se no jogo político da Independência, a elite
brasiliense, que, de forma geral, buscava ascender na esfera pública,
colocando em primeiro plano o ideal de soberania popular. Podem-
se destacar como principais nomes dessa elite, João Soares Lisboa,
José Clemente Pereira, Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha
Barbosa, Cipriano José Barata, Joaquim do Amor Divino Caneca,
entre outros. (NEVES, 2003, p. 86-87). Em nossa visão, esta elite
não representou um grupo ideologicamente homogêneo, contudo,
foram das folhas impressas desses indivíduos que se consolidaram
as principais argumentações críticas ao projeto político da elite
coimbrã.
Para a principal tarefa de leitura de nossas fontes primárias
(periódicos), este trabalho adota como sugestão metodológica às
formulações de J. G. A. Pocock e Quentin Skinner, autores que
se destacaram devido à incisiva atuação na renovação do estudo
da história das ideias políticas nas décadas de 1960 e 1970 na
Universidade de Cambridge. Na tarefa de identificar a importância
que as linguagens e o vocabulário político assumiram no processo
de Independência do Brasil, visa-se, portanto, reforçar a necessária
articulação entre texto e contexto, pois, nesse sentido, abre-se uma
importante possibilidade de se entender o que cada autor pretende ao
formular ou responder determinada questão, ou até mesmo, porque
contesta, repele, privilegia ou ignora certas perspectivas e visões

173
Conflitos e Contradições na História

sociopolíticas. Conforme o próprio Skinner, quando se retoma os


termos de um determinado vocabulário normativo apresentado
por um agente com o intuito de descrever seu comportamento
político, é possível identificar as “limitações aplicáveis a esse mesmo
comportamento”, visto que, “a fim de explicarmos por que tal agente
faz o que faz, será preciso referirmo-nos a seu vocabulário, já que este
com toda a evidência se delineia como um dos fatores a determinar
sua ação” (SKINNER, 1996, p. 12).
Primeiramente, é necessário enfatizar que quando se fala
em “linguagens” busca-se significar “idiomas, retóricas, maneira
de falar sobre política, jogos de linguagem distinguíveis, cada qual
podendo ter seu vocabulário, regras, precondições, implicações, tom
e estilo” (POCOCK, 2003, p. 65). Por isso, o historiador do discurso
político precisa investir sua análise tanto na aprendizagem destas
“linguagens” quanto nos “atos de enunciação” que serão emitidos
nessas “linguagens”. Necessita, portanto, “mover-se de langue para
parole, do aprender as linguagens para o determinar os atos de
enunciação que foram efetuados ‘dentro’ delas”. Sua ação seguinte
deve buscar os efeitos desses “atos” sobre o comportamento de
outros agentes que utilizaram ou estavam expostos ao uso destas
linguagens, bem como também os efeitos sobre as linguagens nas
quais os próprios atos foram efetuados. (POCOCK, 2003, p. 66).

A tradição como ponto cardial: a construção da linguagem


política liberal conservadora na imprensa da Corte do Rio de
Janeiro (1821)
As duas expressões do vocabulário político que definiram a
“dissolução final dos laços coloniais entre Brasil e Portugal foram
separação e independência”. Entretanto, tais noções só apareceram
no conjunto dos escritos no decorrer de 1822, pois, ainda no início
do mesmo ano, a recomendação da imprensa enfatizava a união
entre os dois reinos. Ao longo de 1822, a proposta de separação
política foi ganhando consistência entre as elites política e intelectual,
ao mesmo tempo em que as medidas das Cortes de Lisboa iam se

174
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

concretizando como despóticas e causadoras da desunião entre


Portugal e Brasil (NEVES, 2003, p. 220-222). Desta forma, no final de
1822 e no desenrolar de 1823, o vocábulo independência afirmou-se
na linguagem política dando margens a escritos nos quais o conceito
assumiu claramente o sentido de separação e ruptura (NEVES, 2003,
p. 222). Porém, ainda nos finais de 1821 e início de 1822, essa clareza
de sentido não se constituía.
Em outubro de 1820, chegavam ao Brasil as primeiras notícias
sobre o movimento constitucionalista ocorrido em Portugal, no
dia 24 de agosto do mesmo ano, na cidade do Porto. Seus atores
buscavam em nome da nação, do rei, da religião católica e de uma
Constituição reverter o quadro de instabilidade política e de caos
econômico encontrado em Portugal. Para tanto, precisavam garantir
dois pontos essenciais capazes de assegurar no país a consolidação
de um sistema político liberal. O primeiro era transformar as Cortes
consultivas (características do Antigo Regime) em deliberativas,
assegurando a preparação de uma Constituição que limitasse o poder
do rei ao poder Legislativo. O segundo direcionava-se em prol de
reformas nas relações econômicas no interior do Império português,
para mudar o quadro econômico deixado pela transferência da
Corte para América (NEVES, 2003, p. 229).
Em sua Corte no Rio de Janeiro, d. João VI, inicialmente,
preocupou-se em declarar a ilegalidade das Cortes convocadas
pelos revolucionários do Porto. Segundo Maria Beatriz Nizza da
Silva, d. João deparou-se com algumas possibilidades de reações ao
movimento. Primeiramente, poderia agir por meio de uma dissolução
das Cortes pela força. Outra possibilidade era simplesmente aceitá-
la, porém, optou por uma tentativa de controlá-las (SILVA, 1988, p.
07).
Diante desse quadro e juntamente com alguns burocratas,
ministros e conselheiros de Estado (principalmente Tomás Antônio
de Vilanova Portugal), d. João preferiu assumir uma postura de
compromisso, mas recorrendo à noção tradicional das antigas
Cortes. Desta forma, buscou esvaziar o caráter deliberativo proposto

175
Conflitos e Contradições na História

pelos constitucionalistas portugueses, objetivando legitimar as


convocadas Cortes apenas com seu tradicional caráter consultivo.
(BASILE, 2000, p. 194). Contudo, mesmo com a tentativa do
rei e de seus ministros de preservar as estruturas absolutistas de
governo e evitar no Brasil o contágio das ideias do movimento
constitucionalista, em 1º de janeiro de 1821, o Grão-Pará foi a
primeira província a aderir ao movimento vintista, sendo seguida,
em 10 de fevereiro, pelo governo baiano.
No Rio de Janeiro, nos primeiros dias de fevereiro de 1821,
ainda persistia o impasse sobre qual membro da família real deveria
ir para Lisboa. No dia 23 do mesmo mês, publicaram-se dois
decretos – um do dia 18 e outro do mesmo dia 232 – que acabaram
por gerar uma resposta, em 26 de fevereiro, dos militares da Divisão
portuguesa, dando início ao movimento constitucionalista no Rio
de Janeiro.
Na manhã do dia de 26 de fevereiro de 1821, reuniram-se na
Praça do Rocio importantes tropas dos corpos militares, como o
Batalhão de Infantaria nº 3, o Batalhão de Caçadores da Corte, o 1º
Regimento de Cavalaria do Exército, a Brigada Real da Marinha, o
Batalhão dos Henriques, entre outros. Exigiam do rei o juramento da
Constituição que estava sendo elaborada em Portugal, a revogação
dos decretos de 18 e 23 de fevereiro e a substituição de membros do
Ministério. Convocou-se, consequentemente, o Senado da Câmara
na grande sala do Real Teatro de São João, onde se pronunciou,
nas palavras do príncipe d. Pedro, a leitura em voz alta de um
decreto no qual o rei assegurava aos vassalos brasileiros à sanção da
Constituição que estava sendo elaborada em Portugal, aceitando-a
2 O decreto datado 18 de fevereiro de 1821 determinava o encaminhamento
de d. Pedro para Portugal, “munido de Autoridade e Instruções necessárias” para
executar as medidas que o rei julgava “convenientes”, ouvindo as “representações
e queixas dos povos” para se estabelecer a “tranquilidade geral” do reino português
e promover as “reformas e melhoramentos” na “Constituição Portuguesa”. Já
no decreto de 23 de fevereiro de 1821 há uma convocação dos procuradores das
câmaras das cidades e principais vilas do Brasil, para que se formasse uma Junta
de Cortes, para realizar exames das leis discutidas no Congresso de Lisboa,
propondo melhoramentos que fossem considerados “úteis ao Brasil”. Cf. Gazeta
Extraordinária do Rio de Janeiro, nº 3, 24/02/1821.

176
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

e aprovando-a para o reino do Brasil. Tal leitura foi recebida com


repetidas vivas ao rei, à religião, e à Constituição. Às 11 da manhã,
com a chegada de d. João à praça, reafirmou-se o juramento já feito
pelo filho nas palavras do próprio pai. O clima de festa continuou
à noite, no próprio Real Teatro de São João, com novas saudações
e vivas à família real, diante de uma grande iluminação do teatro e
edifícios públicos e particulares da cidade (Gazeta do Rio de Janeiro,
nº 17, 28/02/1821; Suplemento à Gazeta do Rio de Janeiro nº 17.
28/02/1821). Por fim, em uma negociação articulada pelo príncipe,
acabou-se por evitar uma adesão imediata à Constituição espanhola.
Ainda no rastro do mesmo movimento, em 7 de março, d.
João assinou dois importantes decretos que anunciavam o seu
regresso à Portugal, com a consequente permanência do príncipe d.
Pedro como regente, e a convocação das eleições para a nomeação
dos deputados brasileiros para as Cortes de Lisboa (BASILE, 2000,
p. 195).
O dia 26 de fevereiro no Rio de Janeiro acabou por marcar e
enfatizar o deslocamento do espaço político para cena pública, pois
a movimentação política não se realizou apenas no âmbito de uma
negociação palaciana, isto é, restrita ao espaço privado. O movimento,
além de representar uma participação ativa e representativa do
príncipe como domador da cena pública, reafirmando sua imagem
e importância política no turbulento contexto, enfatizou o papel
predominante que a rua passava a desempenhar na cultura política
da época (SOUZA, 1999, p. 99).
Seguindo as análises de Cecília Helena L. de Salles Oliveira, a
manifestação constitucionalista do dia 26 de fevereiro representou
uma articulação dos homens que formavam, segunda a autora, o
“grupo liberal” fluminense (como Joaquim Gonçalves Ledo, Januário
da Cunha Barbosa, Clemente Pereira, Manuel dos Santos Portugal,
entre outros) com vários oficiais da tropa de linha e milícias.
Representou também uma união desses homens contra os principais
representantes da nobreza emigrada, da alta burocracia portuguesa
(como os ministros Vila Nova Portugal e Silvestre Pinheiro), das

177
Conflitos e Contradições na História

famílias mais poderosas e dos grandes comerciantes do Rio de


Janeiro (como Carneiro de Campos, Fernandes Viana, Nogueira da
Gama e Carneiro Leão) que, entre os fins de 1820 e início de 1821,
lutavam pela permanência de d. João no Brasil (OLIVEIRA, 1999, p.
107-108).
O grupo de Gonçalves Ledo, principal porta-voz do
“Povo” e da “Tropa”, mantinha laços estreitos com os atacadistas
portugueses e fluminenses e proprietários de fazendas e engenhos
do Recôncavo da Guanabara e Campos de Goitacazes. Entretanto,
o dia 26 de fevereiro apresentou toda a capacidade de articulação
desse grupo com outros diferentes setores sociais, como pequenos
proprietários, funcionários públicos, tropas-de-linha e milicianos,
artesões, advogados, bacharéis, e uma importante leva de imigrantes
portugueses (que ainda buscavam se ajustar às relações de mercado).
(OLIVEIRA, 1900, p. 160-161). Logo, foram às necessidades de evitar
o fortalecimento da nobreza emigrada e dos grandes comerciantes
da província que uniram estes diversos setores sociais, visto que
tinham como objetivo comum frear qualquer tentativa daqueles que
estavam ao redor do governo joanino de perpetuarem o monopólio
da administração pública, da representatividade política e do
mercado (OLIVEIRA, 1999, p. 114-117).
Em fevereiro de 1821, consolidou-se na cena pública a
existência de interesses e projetos políticos diferentes e divergentes,
que abriam caminho para o estabelecimento de um jogo político
cotidiano que caracterizou todo o processo de Independência do
Brasil.
Devido ao sucesso inicial da articulação do grupo de Ledo, no
dia 26 de fevereiro, José da Silva Lisboa, alguns dias depois, lançou o
periódico Conciliador do Reino Unido, representando uma resposta
imediata ao grupo de Ledo, Clemente Pereira e Cunha Barbosa.
O ilustrado baiano que, desde os fins do século XVIII, ganhara
prestígio político ocupando importantes cargos na administração do
período joanino, articulava-se com o grupo dos nobres emigrados
e grandes comerciantes que vinham acumulando fortuna com a

178
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

presença da monarquia portuguesa no Rio de Janeiro, devido ao


domínio que exerciam em importante parte do mercado da província
(diante relações comerciais que ultrapassavam os próprios limites
provinciais) e no monopólio da ocupação de cargos estratégicos da
administração (OLIVEIRA, 1990, p. 158).
No efêmero periódico que teve a sua circulação restrita a sete
números durante os meses de março e abril de 1821, Silva Lisboa não
negava a importância dos acontecimentos do dia 26 de fevereiro, mas
deslocava a ação do “Povo” e da “Tropa” para a atuação do príncipe
d. Pedro e do rei d. João VI, elegendo-os como atores principais
dos acontecimentos, em uma tentativa de esvaziar a ação política
do grupo de Ledo. Dando parabéns aos moradores naturais do Rio
de Janeiro e a todos os outros integrantes do Reino Unido pelo
andamento dos acontecimentos (que ocorreram sem desordem e
tumulto), o redator caracterizou o dia 26 como um dia “esplendido,
em que o Sol, redobrando a carreira, pareceu raiar no horizonte, e
subir ao Zenith com superior brilho em um Céu puro”. Assim, o
rei pela “mediação” do príncipe real declarou, após ouvir o “seu fiel
Povo”, o “Proceder franco e generoso, a Resoluta e Forme Vontade”
de fazer o “Maior Bem”, ao mesmo “Povo”, sempre “amante” do seu
rei (Conciliador do Reino Unido, nº 1, 01/03/1821).
Por meio do Conciliador, Silva Lisboa da mesma maneira
que enfatizava a importância da medida de d. João em elevar o
Brasil à categoria de reino, valorizava a necessidade da existência
de “Virtudes Cívicas” entre os “Portugueses, natural, ou habitante
de qualquer parte do Reino Unido”. Tais “Virtudes” eram
necessárias para que se pudesse “verificar o destino da Grande
Obra da Constituição”, fruto direto da “Bondade de Sua Majestade
Fidelíssima”, que “magnificamente” a proclamou e a prometeu com
sua “Real Palavra”, por meio de um “solene Juramento”, no “sempre
Assinalado DIA 26 de Fevereiro do corrente ano” (Conciliador do
Reino Unido, nº 2, 12/03/1821).
Dia da Salvação e de Regeneração do Reino do Brasil! Dia de
espetáculo digno de Deus, e dos homens que arderam em espírito
e verdade! Dia, em que a Mão Invisível do Fundador e Regedor da

179
Conflitos e Contradições na História

Sociedade manifestou as suas riquezas de misericórdia, tocando o


coração do nosso Augusto Soberano, para em Seu Nome enviar o
Gênio da Harmonia, o Príncipe Real D.PEDRO, como o Anjo da
Concórdia, Trazendo tão BOA NOVA: havendo antes o Amável,
Inclito e Heróico Jovem, (glória dos olhos de todos os fiéis vassalos)
nas mais críticas circunstâncias da segurança pública, sido o
Intercessor, e Mediador entre o Trono e Povo, para a Sua Majestade
Outorgar a Graça de uma Liberal Constituição, conforme ao
Espírito do Século, Empenho de Portugal, Voto do Brasil, e de todos
os habitantes dos mais Estados e Domínios da Coroa! (Conciliador
do Reino Unido, nº 1, 01/03/1821).
Por intermédio de uma linguagem liberal tradicionalista,
José da Silva Lisboa objetivava apresentar o rei e o príncipe como
os principais atores do movimento constitucionalista do Rio de
Janeiro. A ação popular, por conseguinte, era apresentada como
secundária e subordinada à ação legítima dos representantes da
família de Bragança. Nessa perspectiva interpretativa, a legitimidade
do Império português advinha da tradição monárquica, elemento
crucial em um momento de incertezas políticas. Por isso, para o futuro
visconde de Cairu, a “Arte das Artes do Bom Governo” consistia em
“fazer o povo rico e prosperado, constituindo-o religioso, obediente,
tratável e polido; sendo todos os indivíduos docemente enlaçados
no dourado cinto da Subordinação às Autoridades Legítimas”. Em
suma, era a “subordinação às Autoridades Legítimas” e tradicionais
que garantiria ao reino do Brasil o progresso liberal e constitucional
sem a necessidade de radicalizações políticas na esfera pública
(Conciliador do Reino Unido, nº 1, 01/03/1821).
Todavia, durante a publicação do Conciliador, Silva Lisboa
não se restringiria em colocar o príncipe e o rei à frente dos
acontecimentos de 26 de fevereiro. Mesmo fazendo parte do grupo
dos três periódicos, de curta duração, que iniciaram suas circulações
no primeiro semestre de 1821 e que apresentavam um entusiasmo
em prol da família real e da defesa do rei3, o redator, nos três últimos
3 Os três jornais são: O Bem da Ordem, do cônego Francisco Viera Goulart, O
Amigo do Rei e da Nação, de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, além do próprio
Conciliador do Reino Unido, de José da Silva Lisboa. Segundo Isabel Lustosa, eram
jornais escritos e publicados por indivíduos que ocupavam cargos públicos ou
tinham ligações com pessoas que os ocupavam, além de pertencerem, seguindo

180
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

números do jornal, fez abertas críticas ao decreto de 2 de março,


promulgado pelo governo, que determinava uma relativa liberdade
de imprensa, dando fim à censura prévia.
O celebrado Orador de Atenas, Demóstenes, na sua imortal
Oração = Pela Coroa = indignado com o abuso da fala que faziam
os insidiosos Demagogos, para adularem [...] o povo em desonra
do Governo e dos Empregados Públicos, logo no Prólogo brandou
dizendo = Não se deve negar a pessoa alguma acesso ao povo: mas
o abusar desta liberdade para saciar ódios e invejas, não é reto, nem
civil (Conciliador do Reino Unido, nº 5, 07/04/1821).
Neste sentido, o futuro visconde de Cairu legitimava o
papel dos “Censores Oficiais”, cargo que ele próprio exercia4,
caracterizando-os como os “Guardas da Honra da Nação, e da
Tranquilidade Pública”, ou seja, os verdadeiros protetores da
sociedade contra as “Cartas difamatória” que atentavam à ordem e
que geravam as “injúrias por palavras” causadoras de “mortíferas
rixas” (Conciliador do Reino Unido, nº 5, 07/04/1821).
Por intermédio do Conciliador, Silva Lisboa não economizou
críticas à relativa liberdade de imprensa. Atacando um folheto
anônimo que denunciava estar em circulação, continuou defendendo
a necessidade da censura prévia. O autor do folheto anônimo
caracterizava a censura oficial como uma “prática absurda – operação
assassinadora – castração literária”, afirmando que “perguntar, se
a Imprensa deve ser livre, ou escrava, é o mesmo que perguntar
por outras palavras, se a Monarquia dever ser Constitucional, ou
absoluta”. Em seguida, o redator do Conciliador do Reino Unido
respondia:
O Autor e Editor de tão indecentes frases e declamações parece
ter-se posto fora da real cena da vida. Se a Declaração de uma
Monarquia Constitucional tivesse a potência miraculosa de
constituir imediatamente a todos os homens sábios, justos, e
discretos; e elevar a todos os países do Território Nacional a igual

uma citação de Antonio Candido, a um “ciclo literário de preito ao Rei” (LUSTOSA,


2000, p. 101-111).
4 No período, José da Silva Lisboa exercia o cargo de membro do conselho
de censura da Imprensa Régia, cargo que acumulou com o de Inspetor-geral dos
estabelecimentos literários, devido a sua nomeação para esta função durante o
movimento do dia 26 de fevereiro. (LUSTOSA, 2000, p. 101).

181
Conflitos e Contradições na História

grau de civilização, para ninguém fazer abuso da Imprensa; seriam


toleráveis, e até plausíveis, as afirmativas do mesmo Anônimo:
mas o fato está em contrário. A declaração da Constituição deixa
os povos como se acham, e só destina prepará-los para gradual
melhoramento, promovendo a Instrução Pública, o que sempre
é de efeito lento, e tardio. Entretanto, não deve o Estado ficar
sem a defesa natural, exposto aos arrancos do Prelo, pela súbita
insurreição do violento espírito de partidos [...] (Conciliador do
Reino Unido, nº 6, 14/04/1821).
As preocupações do censor ligavam-se ao possível aumento da
circulação de escritos pelas ruas que a falta da censura prévia poderia
causar. Em tempos de censura prévia, a possibilidade de impedir
e dificultar o grupo de Ledo de expor e defender seus princípios
políticos e, consequentemente, adquirir maior legitimidade e
aceitação nos espaços públicos, era extremamente maior.
Outras folhas impressas publicadas em 1821 deram
continuidade à exposição da linguagem política liberal conservadora
inaugurada por Cairu na Corte do Rio de Janeiro. O periódico
Amigo do Rei e da Nação chegou ao ponto de explicar o movimento
constitucionalista de 26 de fevereiro no Rio de Janeiro como
desdobramento natural dos garbosos triunfos da monarquia
portuguesa. A narrativa factual e progressista iniciava-se com os
benefícios adquiridos pelo Brasil que, a partir de 1500, passou a
fazer “parte da Lusa Monarquia”. Posteriormente, passava pela
recuperação da glória portuguesa legatária da ascensão da Casa
de Bragança e do fim das extorsões espanholas, em 1640, mas só
confirmada pela ação estratégica do Brasil em salvar Portugal da
“tormenta” que ameaçava a “Europa inteira”, em 1808. Por fim,
o Brasil acolhendo decisivamente “em seu seio” o “Imperante”
português, logo foi “levantado à Dignidade de Reino”, em 1815,
tendo, em seguida, seu nome “eternizado” devido o “portentoso
Dia 26 de Fevereiro de 1821”, data em que se marcou no Brasil a
“Época de sua maior Glória” (O Amigo do Rei e da Nação, 1821,
s/p) A utilização dessa linguagem objetivava tanto deslegitimar
qualquer interpretação que caracterizasse os movimentos liberais
e constitucionalistas que se espalhavam nas principais cidades da

182
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

América portuguesa como resultados da pressão e soberania popular


quanto construir a imagem reformadora e liberal do monarca
português, transformado, dessa maneira, no grande condutor e
salvador do Império português. Dessa forma, as páginas de outro
periódico, o Bem da Ordem, davam a d. João VI as rédeas do
processo político que enfraqueceria o Absolutismo em Portugal, ou
seja, os movimentos liberais e constitucionalistas eram apresentados
como dádiva régia, ação que deveria despertar nos portugueses dos
dois hemisférios maior admiração e respeito em relação ao “mais
Justo dos Monarcas” (O Bem da Ordem, n. 01, 1821, s/p).
Em suma, por meio da linguagem liberal conservadora, as
experiências do passado eram a bússola sagrada para que os caminhos
incertos dos necessários – mas perigosos – avanços liberais não
se transformassem em comoções políticas ameaçadoras da ordem
social. Nesse sentido, o periódico O Bem da Ordem exclamava aos
“Compatriotas” portugueses para que se mantivessem em atenção
em relação ao “espírito de novidade e impaciência” que ganhava força
e que imprudentemente buscava “reedificar um novo Sistema sobre
as ruínas do antigo”. Dessa forma, eram as experiências desordeiras
e sanguinárias que tinham acometido a Europa, principalmente a
França, provas suficientes de que as modificações no sistema político
do Império português deveriam respeitar tanto a tradição quanto o
espírito reformista, visto que o tempo era o único elemento capaz de
aperfeiçoar todas as obras da humanidade (O Bem da Ordem, n. 03,
1821, s/p).

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André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

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185
Conflitos e Contradições na História

186
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Disputas sobre a morte e o morrer no


imaginário oitocentista capixaba: os
relatórios de presidente de província
como fonte de pesquisa
Júlia Freire Perini1
É possível, com alguma frequência, acessarmos por meio dos
relatórios de presidente de província do Espírito Santo os apelos
para que a gestão da morte sofresse alterações na capital capixaba
na segunda metade do século XIX. Acreditamos, portanto, que
perscrutando as falas dos presidentes de província, poderemos
apreender como esses indivíduos representavam o morrer e
pensavam em estratégias para alterar os rituais funerários na
província capixaba.
Nesse sentido, pretendemos compreender as lutas por
representação que envolviam a morte no Espírito Santo, nos
focando, como foi dito acima nos grupos que disputavam a maneira
de conduzir os rituais funerários e os argumentos apresentados em
torno do tema em debate no que tange as questões sobre higiene,
memória e imaginário religioso.
O pedido presente no documento administrativo a seguir, por
exemplo, possuía uma mensagem explícita direcionada para vários
grupos da sociedade. O então presidente Filippe José Pereira Leal
rogou por um cemitério que, segundo seu entendimento, deveria
ser construído fora da cidade e dentro dos padrões de higiene
estabelecidos pela ciência da época. O autor do pedido direcionava
a sua fala para alguns grupos específicos dentro da comunidade
capixaba, dentre eles, profissionais que cuidavam da salubridade do
espaço público e da saúde dos moradores da província; religiosos;
ilustrados residentes no Espírito Santo e também políticos,
possivelmente para os que ocupavam as cadeiras da Assembleia
Legislativa local:
É ainda debaixo da mais dolorosa impressão, vendo o luto e a

1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade


Federal do Espírito Santo.

187
Conflitos e Contradições na História

tristeza derramados por toda esta cidade, sinal do sentimento das


perdas irreparáveis por que cada um passou, narrando-vos com
o coração apertado, os males, que ainda lastima esta capital, que
em nome da religião dos vivos, e salubridade pública, vos peço, e
proponho uma medida, que reputo das mais vitais, e urgentes para
esta capital, falo-vos da criação de um cemitério afastado do seu
centro.
Demonstrar a utilidade, e conveniência de medida tão
reconhecidamente salutar, e religiosa, seria ofender o bom senso,
e ilustração dos escolhidos da província, e fazer chegar ao vosso
conhecimento os males, e abusos, que resultam dos enterramentos
nas igrejas [...]
Esta medida, [o estabelecimento de um cemitério com seções
separadas para cada confraria] que reclama a religião, e a civilização,
há sido adotada em quase todas as províncias, que, em virtude de
leis confeccionadas por suas respectivas assembleias, tratam de
edificar seus cemitérios.
Legislai, senhores, neste sentido, e deixai que o governo, por
meios persuasivos, vença os preconceitos do povo, fazendo-lhe
conhecer os perigos que resultam das inumações nos templos
[...](Relatório com que Felippe José Pereira Leal, presidente da
Província do Espírito Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva
Assembleia Legislativa, no dia 23 de maio do corrente ano. Victoria:
Typographia Capitaniense de P. A. d’Azeredo, 1851. p. 15.)
O relatório, com seu tom de apelo, nos leva a pensar que
houve uma tentativa por parte do presidente da província, de
convencer e sensibilizar alguns setores da sociedade para que
pudessem ser implementadas mudanças nos rituais funerários com
o intuito de melhorar as condições de salubridade da população.
Algumas estratégias foram utilizadas pelos administradores
públicos na tentativa de convencer setores da sociedade resistentes
às modificações dos costumes funerários.
Na esteira da conquista do imaginário dos grupos obstantes
à proibição dos sepultamentos nos templos católicos, foi traçada
uma relação direta entre o cuidado com as necrópoles e o respeito
à memória dos seus entes queridos. Portanto, construía-se o
argumento de que alterar a localização dos enterramentos era
parte da boa conduta religiosa que devia tratar com reverência seus
mortos, lhes fornecendo um local digno, sem violações posteriores

188
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

e o cuidado com a higiene deste espaço. Este último item transitava


entre dois argumentos fortes em favor do deslocamento espacial
dos cemitérios, pois ele servia também para defender os preceitos
científicos da época que propagavam ideias como a importância da
escolha adequada dos locais para ocorrerem os sepultamentos.
Além disso, o documento em questão também revela que os
debates sobre a mudança da gestão da morte na virada da primeira
para a segunda metade da centúria oitocentista estavam voltados,
em um primeiro momento, para a proibição dos enterramentos
dentro das igrejas. As autoridades administrativas capixabas se
colocavam em seus documentos oficiais como interessados em
enfrentar obstáculos e resistências às transformações da maneira de
lidar com os rituais funerários.
Tomando como referência o trecho do relatório apresentando,
podemos notar que o presidente Filippe José Pereira Leal deixou
explícitas algumas posições em relação aos problemas causados pela
proximidade dos mortos no cotidiano dos moradores de Vitória.
Em 1851, ele afirmara que não era mais necessário explicar o porquê
do deslocamento geográfico dos cemitérios para fora dos templos e
para longe do centro urbano. Mediante tal apontamento, podemos
inferir que já havia um debate no meio político e em alguns nichos
da sociedade que aceitavam tal proposição como correta.
Nos círculos médicos, por sua vez, as correntes mais
proeminentes na tentativa de dar explicações sobre as formas
de transmissão das epidemias no século XIX brasileiro eram os
assim chamados “contagionismo”, bem como o “infeccionismo”.
De acordo com Sidney Chalhoub, os contagionistas entendiam
que existia um veneno específico que causava a moléstia, uma vez
produzida a substância, ela poderia se espalhar entre os demais
indivíduos, seja de maneira direta, por meio do contágio, seja de
forma indireta, com o contato com a respiração do ar que rodeava
o indivíduo achacado pelo mal ou objetos infestados pela patologia.
A outra concepção médica em voga nos anos de 1850 era a dos
infeccionistas. Para os seguidores dessa concepção, as infecções

189
Conflitos e Contradições na História

eram oriundas das substâncias pútridas emanadas da decomposição


de vegetais e animais que se espalhavam pelo ambiente. Eles
defendiam também que os miasmas infecciosos transmitiriam
as moléstias no local de sua propagação (por meio dos miasmas
pútridos). No entanto, as doenças também poderiam se proliferar
de pessoa para pessoa. O indivíduo são poderia adquirira moléstia
caso compartilhasse o ambiente com alguém que estivesse infectado
por alguma enfermidade.
Entendia-se, portanto, que a disseminação da mazela não
acontecia por meio do contato, mas sim pela contaminação do
ambiente. Em outras palavras, o doente alterava a salubridade do
local que, por sua vez, poderia transmitir o problema de saúde
(CHALHOUB, 1996, p. 64). Os infeccionistas acreditavam que o
ar pútrido, as águas paradas, os vapores nefastos eram responsáveis
pela transmissão de doenças para a população, por isso, os adeptos
dessa vertente advogavam pela eliminação dos focos de contágio das
moléstias, quais sejam: regular a presença de matadouros, drenar
pântanos, proibir os enterramentos nos templos, entre outras
providências.
Perante esses esclarecimentos a respeito dos preceitos da
medicina oitocentista, podemos estabelecer uma correlação entre as
falas de Filippe José Leal Pereira e as tentativas de convencimento
dos seus interlocutores (políticos legislativos, demais setores letrados
da população e comunidade religiosa) em relação a mudança de
hábitos necessárias para aplacar as epidemias reinantes em Vitória
nos anos de 1850 e 1851. Em função disso, o presidente da província
tentou sensibilizar parte da população letrada a encampar o discurso
higienizador na capital. Em alguns momentos de sua fala, Leal
Pereira demonstraria a intenção de buscar apoio para mudanças
estruturais e legislativas que à luz dos conhecimentos científicos da
época poderiam evitar o que para ele provocou choro, luto e tristeza
na província capixaba.
Grande parte desses transtornos poderia ser atribuída aos
surtos epidêmicos de febre amarela enfrentados pela província na

190
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

década de 1850. No mesmo decênio, a varíola também fez vítimas


fatais (TEIXEIRA, 2008, p. 368-369). No Espírito Santo, estimou-
se que cerca de 200 pessoas morreram em decorrência da febre
amarela2.A estimativa da população total da província capixaba no
ano de 18553 era de 49000 habitantes (DAEMON, 2010), ou seja,
0,4% das pessoas atingidas pelo flagelo foram vitimadas fatalmente.
O presidente da província à época considerou esse número bastante
modesto, mas mesmo assim, é plausível pensar que ele tenha
demonstrado preocupação em evitar um quadro sanitário como o
de outras partes do império brasileiro. Filippe Leal possivelmente
soube o que se passou na província vizinha, Rio de Janeiro, no que
se refere ao ataque da febre. Por lá, o ataque da doença teria sido
bem mais agressivo ao longo da década de 1850. De acordo com
José Pereira Rego, entre os cariocas, a febre chegou a acometer
90.658 pessoas4, causando 4.160 mortes, aproximadamente, o que
representava 1,5% dos habitantes acometidos pela patologia foram
a óbito. A população local era de 266 mil habitantes (Lobo, 1978, p.
225-6 apud Rodrigues, 1999).
Muito mais impactante do que as doenças já citadas, foi
a chegada da cólera ao Espírito Santo. De acordo com os estudos
de Sebastião Franco o número total de mortos chegou a 1700 no
ano de 1855. Considerando novamente a estimativa populacional
do período, podemos afirmar que essa moléstia atingiu fatalmente
em 3,5% o número de contagiados (FRANCO, 2014, p. 124). Vê-
se, portanto, que em termos de percentual de mortes, o Espírito
Santo sofreu um abalo ainda maior. Concordando com S. Franco,
é válido citar, entre os efeitos negativos do surto colérico, a redução
2 Relatório com que Felippe José Pereira Leal, presidente da Província do
Espírito Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva Assembleia Legislativa, no
dia de 25 de julho do corrente ano. Victoria: Typographia Capitaniense de P.A.
d’Azeredo, 1850.
3 Não encontrei nenhuma estimativa populacional do Espírito Santo para o
ano de 1850. A mais próxima encontrada foi a do ano de 1855. O primeiro censo de
dados demográficos foi realizado a partir do ano de 1872.
4 REGO, José Pereira. Esboço histórico das epidemias que têm grassado na
cidade do Rio de Janeiro desde 1830 a 1870. Rio de Janeiro,Typographia Nacional,
1872.

191
Conflitos e Contradições na História

do número de trabalhadores que, consequentemente, alterou a


dinâmica produtiva da província (FRANCO, 2014, p. 124).
Retomando a justificativa científica do período para
transformar os hábitos, temos ainda a eliminação dos focos de
contágio de doenças como uma meta a ser perseguida. Um desses
locais de origem dos contágios seria os templos religiosos, pois
abrigavam corpos de cadáveres de forma inadequada, inclusive os dos
vitimados pelas epidemias. As instalações escuras e mal ventiladas
das igrejas contribuíam para a retenção dos odores considerados
maléficos para a saúde humana, em razão disso, o hábito de sepultar
dentro dos templos passou a ser alvo do discurso médico e político,
assim que as epidemias começaram a atormentar a vivência citadina.
Relevante também é o fato de que os argumentos a favor da mudança
dos costumes tinham como uma afronta à religião o costume de
continuarem os sepultamentos dentro dos locais de culto. Tal
como foi mencionado no excerto do relatório acima:“Demonstrar a
utilidade, e conveniência de medida tão reconhecidamente salutar,
e religiosa, seria ofender o bom senso, e ilustração dos escolhidos da
província, e fazer chegar ao vosso conhecimento os males, e abusos,
que resultam dos enterramentos nas igrejas [...]”.5
Não é incomum encontrarmos entre os argumentos contrários
aos sepultamentos ad ecclesiam a ideia de que a casa de Deus
deveria ser um lugar livre dos odores e vapores advindos dos corpos
putrefatos. Esse foi um claro sinal de rompimento do sentimento
de familiaridade entre vivos e mortos. Tal posicionamento ficou
explícito também em um trecho da edição 5 do jornal Correio da
Victória do ano de 1849:
Em verdade, é uma profanação converter a casa de Deus, que só deve
rescender aroma das flores, e o cheiro dos incensos em depósitos
de miasmas tão nocivos à saúde daqueles, que no silencio dos
templos, de envolta com fervorosas orações, procuram o bálsamo
salutar, que a religião católica ministra aos que compreendem, e

5 Relatório com que Felippe José Pereira Leal, presidente da Província do


Espírito Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva Assembléia Legislativa, no
dia de 25 de julho do corrente ano. Victoria: Typographia Capitaniense de P. A.
d’Azeredo, 1850. p.16.

192
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

invariavelmente creem nos seus mistérios (Correio da Victória,


1849, edição 5)
Nesse sentido, é possível falarmos de uma forte influência
dos conhecimentos médicos na forma de imaginar a morte entre
os membros da elite letrada local. Novas preocupações em relação
aos cuidados com os mortos surgiram desde pelo menos 1849 no
Espírito Santo. Isso é perceptível, dentre outros fatores, a partir
de uma mudança em relação à vigilância olfativa dessas pessoas.
O cheiro da morte, que há muito tempo era familiar para os que
frequentavam as igrejas, começou a incomodar e para além disso,
começou a ameaçar a saúde de quem entrava em contato com ele.
Esses elementos associados aos episódios dos óbitos provocados
pelas moléstias foram essenciais para a mudança na maneira de
pensar a morte. A combinação desses acontecimentos levou a pelo
menos três proposições na província capixaba àquele período: 1) o
fim dos sepultamentos nos templos, 2) o afastamento dos cemitérios
do centro da capital e, por fim, 3) a divisão da necrópole em setores
para que cada confraria tivesse seu espaço reservado dentro do
campo santo.
Mediante a esse contexto, vemos que com o avançar dos
anos, surgiriam discussões sobre qual deveria ser o local adequado
para receber o cemitério na capital. A Ilha do Príncipe, região
relativamente distante do centro da capital, foi, inicialmente,
escolhida pelas lideranças locais para abrigar a necrópole. De todo
modo:
É este o lugar próprio para declarar-vos, que o governo imperial
não pode ceder a Ilha do Príncipe em consequência de constituir ela
um próprio nacional, do qual só a Assembleia Geral pode dispor:
foi esta a resposta que obtive tendo-a solicitado na conformidade
da lei nº 16 de 30 de julho do ano passado.
Cumpre que delibereis alguma coisa a este respeito, porque
o estabelecimento de um cemitério fora desta cidade é uma
necessidade indeclinável.
Pessoas competentes, a quem tenho consultado sobre este objeto, me
dizem que o fronteiro à referida Ilha do Príncipe há um terreno tão
apropriado como ela para o cemitério; e a ser isto assim, me parece
mais vantajosa a ideia de ser ali estabelecido, porque, dispensando

193
Conflitos e Contradições na História

a ponte, haveria economia de tempo e dinheiro. (Relatório de


presidente de província Sebastião Machado Nunes abriu a sessão
ordinaria da respectiva Assembléa Legislativa no dia vinte e cinco
de maio, Victoria, Typ. Capitaniense de P.A. d’Azeredo, 1855, p.
14)
Como perceptível na fala do presidente de província, Sebastião
Machado Nunes, em 1855 houve resistência para a alocação dos
sepultamentos na região em questão. Mas, esse não foi o único
problema enfrentando por quem desejava modificar o local do
cemitério em Vitória. Além do obstáculo mencionado no fragmento
acima, temos que a província e seus cofres públicos alegavam não
contar com muitos recursos financeiros. Assim, Pedro Leão Veloso
exporia esse empecilho no seu relatório em 1860:
É necessidade urgentemente sentida para esta província a de
cemitérios decentes; a assembleia provincial no intuito de provê-
la, votou a lei n. 13 de 14 de julho do ano próximo passado, que
foi por mim sancionada, tinha entre mãos o trabalho do respectivo
regulamento, estou porém que essa lei pouco poderá melhorar a
situação em razão dos minguados recursos das municipalidades.
(Relatorio com que o exm. sr. commendador Pedro Leão Velloso, ex-
presidente da provincia do Espirito Santo, passou a administração
da mesma provincia ao exm. snr. commendador José Francisco de
Andrade e Almeida Monjardim, segundo vice-presidente, no dia
14 de abril de 1860; acompanhado do relatorio e appensos com
que o mesmo exm. sr. vice-presidente fez a abertura da Assembléa
Legislativa Provincial no dia 24 de maio do corrente anno; e do
officio com que passou a administração da provincia ao exm. sr. dr.
Antonio Alves de Sousa Carvalho. Victoria, Typ. Capitaniense de
P.A. d’Azeredo, 1860, p. 6)
Portanto, é perceptível que existiu uma dificuldade para
encontrar o local adequado, sendo os consensos em relação a
tal proposição menos frequentes do que os dissensos. Os cofres
públicos não despendiam de todos os recursos necessários para
a realização da obra e além disso, havia outro fator em questão: o
que os fiéis pensavam a respeito dessa modificação geográfica dos
enterramentos? O que eles estariam pensando a respeito do fato de
que eles poderiam não mais ter seus corpos inumados nas cercanias
de suas igrejas?
Sobre isso, podemos dizer que havia bastante tensão

194
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

envolvida, caso contrário não teríamos o tom de convencimento


e argumentativo em função de uma medida higiênica. Tampouco
teríamos a correlação entre forma de se vivenciar a morte e
preconceito em relação às mudanças na forma de inumar os corpos:
Legislai, senhores, neste sentido, e deixai que o governo, por meios
persuasivos, vença os preconceitos do povo, fazendo-lhe conhecer os
perigos que resultam das inumações nos templos [...] (Relatório com
que Felippe José Pereira Leal, presidente da Província do Espírito
Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva Assembleia Legislativa,
no dia 23 de maio do corrente ano. Victoria: Typographia
Capitaniense de P. A. d’Azeredo, 1851. p.17, grifo nosso.)
Acreditamos, portanto, que o morrer interferia diretamente
no viver. Isso se deve por diversas razões. A primeira delas decorria
do fato de que quanto mais próximo do altar e da casa de Deus
o indivíduo fosse enterrado, melhor poderia ser suas chances
de salvação e de triunfo no dia da ressurreição. A proximidade
física com o altar, que representava o núcleo principal da igreja,
influenciava a percepção espiritual acerca do além-vida. As igrejas,
segundo a interpretação de João José Reiseram a Casa de Deus, e
em meio as imagens de santos e anjos, esses locais davam abrigo aos
mortos até a o dia da tão esperada ressurreição do fim dos tempos
prometida aos cristãos católicos. A proximidade geográfica entre o
cadáver e todo o aparato religioso que compunha a decoração dos
templos representava o que Reis denominou ser um modelo da
contiguidade espiritual que os fiéis ansiavam quando chegassem
em outra dimensão espiritual, no caso o céu, entre as almas e as
divindades. Em outras palavras, a igreja era um caminho que dava
acesso ao paraíso prometido por Deus (REIS, 2012, p. 171).
Ainda de acordo com o autor de A morte é uma festa, outro
motivo pelo qual as pessoas no oitocentos desejavam ser enterradas
nos templos referia-se ao fato de que elas poderiam continuar a
fazer parte do mundo dos vivos e poderiam ser rememorados em
suas orações. Além disso, eles estariam, segundo Reis, no centro
de vários acontecimentos importantes daquelas sociedades. Nas
igrejas, celebravam-se momentos importantíssimos da vida cristã:
batismo, casamento e morte. A vida política também ocupava

195
Conflitos e Contradições na História

aquele espaço, pois nele se realizavam eleições, auditórios de júri e


discussões políticas (REIS, 2012, p. 171-172). Nesse sentido, soava
de forma bastante desconfortável a proposição da proibição dos
enterramentos. Uma década após o primeiro surto de cólera e após
as acaloradas discussões dos anos 1850, o meio termo encontrado
pela Câmara Municipal responsável pela construção do cemitério
público na cidade de Vitória seria a construção do campo santo
público no terreno do Convento São Francisco. Sobre isso, o
relatório de presidente de província de 1864 nos traz:
Conquanto se tenha consumido perto dos trinta contos de réis dos
cofres provinciais com o cemitério público desta cidade, ainda este
não está concluído, e ao contrário muito resta a fazer-se. Situado
na colina em que se acha o Convento São Francisco e contíguo a
este, parece-me apropriado o lugar, e suficiente o terreno para ele
destinado, entretanto o seu recinto não está todo convenientemente
defendido da invasão de animais. [...]
Contrista ver-se ofendida a memória dos mortos expostos seus
restos a serem pisados pelos brutos. (Relatorio apresentado á
Assembléa Legislativa Provincial do Espirito Santo no dia da
abertura da sessão ordinaria de 1864 pelo 1o vice-presidente, Dr.
Eduardo Pindahiba de Mattos. Victoria, Typ. Liberal do Jornal da
Victoria, 1864, p. 45).
No entanto, essa solução não agradou a todos, pois essa
localização permanecia no perímetro urbano, em uma região
central. Ademais, parte dos médicos da capital não concordavam
que o terreno do Convento São Francisco fosse adequado. Esse era
o caso de Manoel Goulart que passou, as décadas de 1870 e 1880
reclamando das condições sanitárias da capital e afirmando que as
necrópoles situadas no centro da cidade seriam “focos-fermente
de moléstias”. A posição de alguns cemitérios, dentre eles o de São
Francisco, também incomodava muito, pois os médicos sanitaristas
acreditavam que as necrópoles poderiam espalhar miasmas pútridos
pela cidade em dias de vento muito forte e infectar fontes de água
que abasteciam a população (PIVA, 2002, p. 122).

Conclusão

196
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Assim como em outras localidades do Brasil oitocentista (São


Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Florianópolis), o Espírito Santo foi
assolado por epidemias que contribuíram para modificar os costumes
fúnebres em meados do século XIX. No entanto, cada uma dessas
localidades possui seus caminhos e descaminhos que culminaram na
proibição dos sepultamentos, afastamento os cemitérios dos centros
das cidades e resultando na posterior laicização desses espaços.
Como vimos nas fontes apresentadas, o debate relacionado
ao fim das inumações nos templos se avolumaram com a chegada
das moléstias que acometeram a população capixaba. Entretanto,
mesmo com esse elemento novo, as divergências afloraram e
constituíram-se como obstáculos e resistências às transformações
dos hábitos fúnebres. Desse modo, a segunda metade do século
dezenove foi palco de disputas de vários grupos compostos por
alguns políticos e médicos que promoviam debates em favor das
mudanças já apontadas acima. Foi possível perceber, portanto,
que os políticos sofreram bastante influência dos conhecimentos
médicos que encampavam as alterações na forma de gerir o morrer.
É também perceptível nas fontes discutidas que os discursos
político e médico favoráveis às modificações dos costumes funerários
enfrentaram resistência por parte da população local. Assim, quem
seriam essas pessoas e quais seriam os motivos exatos de sua objeção
a este processo? Ademais, teriam elas se organizado de alguma
maneira com o objetivo de se opor às mudanças propostas pelo
poder público e pelo saber médico? As respostas a tais perguntas
estarão no cerne de nossas preocupações no capítulo seguinte.

Referências
CHALLOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na
Corte imperial. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996.
DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo:
sua descoberta, história cronológica, sinopse e estatística. 2. ed.
Vitória: Secretaria de Estado da Cultura, Arquivo Público Estadual

197
Conflitos e Contradições na História

do Espírito Santo, 2010.


FRANCO, Sebastião Pimentel. Pânico e terror: a presença
da cólera na Província do Espírito Santo (1855-1856). Almanack,
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OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Espírito Santo. 3.
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– Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
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PIVA, Izabel M. da P.; SIQUEIRA, Maria da Penha S. A Santa
Casa da Misericórdia de Vitória: ação da irmandade no atendimento
à pobreza em Vitória – ES (1850-1889). Revista Agora, Vitória, nº2,
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REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
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In: NOVAIS, Fernando A. (Org.). História da vida privada no
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RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na cidade dos
Vivos: tradições e transformações fúnebres na cidade do Rio de
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50). História, Ciância e Saude Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 6,
nº 1, p. 53-80, Junho, 1999.

198
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Tribunal do Júri: competência para


apreciação de crimes eleitorais no Brasil
(séc. XIX)
Lara Ferreira Lorenzoni1

Introdução
O Tribunal do Júri surge no Brasil no século XIX, conseguindo,
num determinado ápice, atingir uma competência de julgamento
em matéria criminal muito ampla, quase irrestrita. Isso abrange o
que hoje se tem pela expressão “crimes eleitorais” (terminologia
anacrônica para a época em questão, por isso sendo utilizada entre
aspas).
Nesse trabalho, tratar-se-á brevemente sobre a instituição
do Tribunal Popular no Brasil oitocentista, bem como o momento
histórico em que ela obteve maior relevância jurídica e abarcou
os crimes políticos, relacionados à estabilidade e independência
do Império e, por conseguinte, crimes advindos do processo
eleitoral vigente. Isso serviu de resistência liberal às forças imperais
centrífugas, causando grande incômodo às elites, que, até então,
detinham o monopólio do direito de dizer o direito.

Implementação do Júri no Brasil: aspectos gerais


O Júri brasileiro, inspirado na instituição inglesa jury,
foi implementado no Brasil no início do século XIX, mais
especificamente em 1822. De acordo com Thomas Flory (1986, p.
181), essa instituição remonta desde antes da Independência, pois
“El decreto de las Cortes del 12 de julio de 1821 creó el sistema de
jurado para juzgar los delitos de la prensa en Portugal [...]. Esta ley
se extendió a Brasil el 18 de junio de 1822”. Pelo decreto de 18 de
junho de 1822, criava-se um tribunal de juízes de fato, composto
por homens bons, honrados, inteligentes e patriotas, nomeados
1 Mestranda em Direito Processual do Programa de Pós Graduação em Direito
da Universidade Federal do Espírito Santo.

199
Conflitos e Contradições na História

pelo Corregedor do Crime da Corte e Casa, pelo Ouvidor do Crime


nas províncias que tivessem Relação, ou, nas demais, pelo Juiz da
comarca (NEQUETE, 1973). Embora previsto legalmente desde a
mencionada data, a primeira atuação prática do Júri somente realizar-
se-ia em 1825, para sentenciar um delito de injúrias expressas.
A instauração de um tribunal composto por cidadãos, homens
comuns do povo, com a competência de definir juridicamente o
destino de seus pares, é consequência direta do triunfo dos ideais
liberais. No Brasil, houve grande influência da chamada Revolução
do Porto, de 1820. A incorporação dos corolários desse movimento
transcorreu rapidamente entre os componentes das elites políticas
e intelectuais da América Latina. Houve pronta adesão do Pará e
da Bahia e, em seguida, do Rio de janeiro. O ano de 1821 coverteu-
se, dos dois lados do Atlântico, num marco de resistência liberal
e constitucionalista, esboçando-se uma nova cultura política. Até
porque, convém enfatizar, a maior parte da geração atuante nessa
época passara por uma Universidade de Coimbra reformada em
1772, segundo os moldes ilustrados portugueses, que serviu como
instrumento de homogeneização desses indivíduos em termos
de valores e padrões de comportamento. Nesse contexto de
constitucionalismo, liberdade burguesa e leis, afirma Bartolomé
Clavero (1997, p. 136) que “El jurado era la pieza que defínia la
posición de índole constitucional en este ámbito de la justicia que
interesaba cardinalmente a las libertades”. Na mesma linha, John
Hostettler (2004, p. 9): “[...] the jury is the anchor which holds a
government to its constitution”.
No entanto, as pretensões eram essencialmente reformadoras,
com poucos traços revolucionários. Dessa feita, havia uma inclinação
muito maior à ideia de um grande Império luso-brasileiro do que à
de um separatismo político, de maneira que “[...] buscavam o novo,
mas simultaneamente queriam manter o antigo, principalmente no
que tange às estruturas socioeconômicas” (NEVES, 2013, p. 77).
O debate de ideias liberais foi estimulado por publicações -
restritas, obviamente, às elites -, que se encarregaram de realizar

200
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

a divulgação da cultura política da Ilustração ao mundo luso-


brasileiro. Esses escritos, vindos de Lisboa, ou mesmo impressos no
Rio de Janeiro e na Bahia, constituíam-se, predominantemente, de
folhetos, panfletos políticos e periódicos, gerando um clima febril
por todas as partes, como no Maranhão, no Pará, em Pernambuco
e até mesmo em locais de menor expressão. Essa literatura passou a
ser discutida em novos espaços de sociabilidade, como os cafés, as
academias, as livrarias etc, fazendo com que as ideias esclarecidas
importadas da Europa influenciassem diretamente nas principais
posturas acerca do âmbito político (NEVES, 2013).
Tudo isso, é claro, dentro do contexto de um justiça de leis,
universalizante e tecnicizada, posto que uma justiça de juízes, restrita
aos poucos escolhidos pelo rei para ser a própria encarnação do
justo, jamais daria abertura a que meros mortais - leia-se, cidadãos
- pudessem ter acesso ao nobre e quase que celestial ato de decidir
judicialmente.

Independência
Com o retorno de D. João VI a Portugal, em 26/04/1821, fica
no comando do Brasil, agora na categoria de Reino Unido a Portugal,
o seu herdeiro e então príncipe regente, D. Pedro. Este, atendendo
ao requerimento do Conselho dos Procuradores das Províncias,
convoca uma “Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Brasil”, em 03/06/1822. A partir de então, testemunhou-se uma
sucessão de acontecimentos que culminariam na Independência do
Brasil, em setembro daquele ano (GONÇALVES; SILVA, 2012).
A ebulição de ideias liberais, é claro, foi um fator determinante
nesse processo. As novidades, porém, chocavam-se com as
antiguidades, ainda muito remanescentes. Apesar de estremecida
a tradição do absolutismo português, a Independência de 1822 foi
uma fase pacífica e muito mais reformista do que propriamente
revolucionária na História do Brasil.
Isso não significa, contudo, que todo o processo de

201
Conflitos e Contradições na História

concretização de um Brasil independente, posterior ao metafórico


grito do Ipiranga, tenha sido desprovido de conflitos. Aliás, o que
se sucedeu foi justamente o oposto: ao longo do século, houve
diversas revoltas de caráter centrífugo-separatista por todo o reino
do Brasil, o que pode parcialmente ser explicado pelo fato de que
o brado de independência deu-se de cima para baixo. Significa
dizer, por mais que pudesse haver clamor popular pela libertação
do jugo português, em nenhum momento, deixou de predominar,
na prática, uma conformação política orquestrada pelas elites, para
as elites e à maneira das elites. Tanto é assim que se mantiveram o
regime monárquico e, ainda, um membro da dinastia de Bragança
no mais alto escalão do poder (apenas alguns dos grandes paradoxos
pelos quais a História desse país é tão fortemente marcada). Se o
Brasil independente conseguiu manter-se unificado e coeso após o
“grito do Ipiranga”, isso se deu às custas de muito sangue dos seus
próprios nativos.
Com a interferência da Inglaterra, Portugal pôs como
exigência ao reconhecimento oficial da independência do Brasil o
pagamento de uma indenização no montante de dois milhões de
libras esterlinas. Além disso, cumpre destacar que “[...] A escolha
de uma solução monárquica em vez de republicana deveu-se à
convicção da elite de que só a figura de um rei poderia manter a
ordem social e a união das provîncias que formavam a antiga
colônica” (CARVALHO, 2015, p. 33).
Os brasileiros não tiveram, pois, a experiência de, após
a Independência, governarem-se a si mesmos, como república:
conservaram-se nas mãos de um príncipe português, o que não
agradava em nada aos nacionalistas. Um príncipe que não estava
sozinho, mas muito bem respaldado por uma judicatura antiga,
colonialista, elitista e ao sabor de seus próprios privilégios.
Nas décadas posteriores à Independência, a camada
profissional dos juízes constituiria-se num dos setores da unidade e
num dos pilares para a construção da organização política nacional.
O que distinguia a magistratura de todas as outras profissões era o

202
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

fato de que ela representava e desenvolvia formas de ação rígidas,


hierarquizadas e disciplinadas, que melhor revelavam o padrão
favorável a práticas burocráticas para o exercício do poder público
e para o fortalecimento do Estado. Nesse ângulo, dos seguimentos
principais à formação das instituições brasileiras na primeira metade
do século XIX, como Judiciário, Clero e Militares, a magistratura foi,
indiscutivelmente, a “espinha dorsal do governo” (CARVALHO,
apud WOLKMER, 2006, p. 92).
De todos os setores burocráticos herdados de Portugal, a
magistratura era a que dispunha de melhor estrutura e coesão
internas. “Tratava-se de uma camada privilegiada, ‘treinada
nas tradições do mercantilismo e absolutismo portugueses’”
(WOLKMER, 2006, p. 92). Nesse contexto, eram os magistrados,
pois, não só os funcionários por excelência do Estado nascente, mas
também o principal instrumento de articulação da unidade e da
consolidação nacionais.
Assim, é possível observar que, na prática, o poder judicial
estava identificado com o próprio poder político, embora,
institucionalmente, suas funções fossem distintas. O governo
central utilizava-se dos mecanismos de nomeação e remoção de
Juízes para administrar seus interesses, fazendo com que a Justiça
fosse partidária, ao passo em que o cargo era utilizado como moeda
de troca entre aliados. Dessa maneira, o Juiz tinha uma duplicidade
de conduta, na medida em que atuava tanto como aplicador da lei,
quanto como agente partidário, aliado ou adversário das facções
locais, o que gerava enorme descontentamento por parte dos
liberalistas, pois ia de encontro aos seus ideias mais básicos na
concepção de Direito e de Estado.
Note-se, outrossim, que o Brasil independente nascia sob
uma centralização monárquica forte e, não fosse o suficiente, sob
a liderança de um Imperador português. A reação dos setores
mais progressistas da sociedade brasileira era inexorável, pois
“[...] O banho liberal, irradiado dos acontecimentos portugueses e
brasileiros dos dois últimos anos, não permitia [...] a passiva adoção

203
Conflitos e Contradições na História

do sistema absolutista” (FAORO, 1984, p. 279). Em todo o Império,


os homens expressavam sentimentos como o de que “‘[...] El tiempo
de la subyugación colonial há llegado a su fin; ahora tenemos una
Constitución cyuo significado es... Libertad’” (FLORY, 1986, p. 75).
Por isso, na composição da administração judicial brasileira,
na década de 1820, a hostilidade entre o Parlamento – pleno de
convicções progressistas - e o Imperador deu origem a uma série de
reformas. Algumas instituições, como as dos juízes leigos, serviram
aos propósitos oposicionistas dos liberais, sob o argumento da
proteção dos cidadãos contra os caprichos de D. Pedro I, um monarca
considerado estrangeiro e autoritário (CAMPOS, 2009, p. 222).
Uma outra medida liberal foi a instauração do Supremo Tribunal de
Justiça, pela Lei de 18 de setembro de 1828, que constituir-se-ia de
dezessete juízes letrados, tirados das Relações por suas antiguidades,
com duas conferências por semana, além das extraordinárias, com
mais da metade do número de membros (COLLECÇÃO DAS LEIS
DO IMPERIO DO BRAZIL, 1878, p. 36-42).
Some-se a tudo isso a crise judicial que se instalou após a
Independência, mais precisamente, decorrente da falta de pessoal
especializado, pois a fuga de magistrados para o campo política
provocada escassez de juristas para a atuação prática, principalmente
nos anos vinte.
Dessarte, pode-se dizer, a primeira grande reforma liberal
foi, também, uma reforma no sistema judicial, devido, inclusive, à
carência de membros do poder judiciário, e que o Tribunal do Júri
foi, certamente, uma importante resposta liberal ao quadro geral de
inoperância, elitismo, colonialismo e centralização conservadora
que subsistia.

Constituição de 1824
Antes mesmo da Independência, D. Pedro, então príncipe
regente, a fim de conferir uma estrutura jurídico-administrativa ao
Reino Unido do Brasil (nessa época, pertencente ao Reino Unido

204
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

de Portugal e Algarves), convocou um Conselho de Procuradores


Gerais das Províncias. O objetivo era o de examinar os grandes
projetos de reformas administrativas e propor as medidas que lhes
parecessem mais urgentes ao Reino. É a partir desse conselho que
sai a proposta de convocação da Constituinte, oficializada por meio
do decreto de 3 de junho de 1822, posteriormente dissolvida pelo
próprio convocante, já Imperador do Brasil naquele momento, em
12 de novembro de 1823. Nas palavras de LOPES (2011, p. 256), “[...]
Assegurada a independência e a união das provínciais, foi preciso
dissolver a Constituinte (1823) para afastar os liberais radicais [...]”
(grifo nosso). E prossegue o autor, dizendo que: “A proclamação
do imperador2, do dia seguinte à dissolução, mostra o discurso da
ordem contra as tentativas dos radicais, liberais exaltados” (2011, p.
259, grifo do autor).
A abertura dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte
que iria redigir a primeira Constituição brasileira dar-se-ia somente
em 3 de maio de 1823. Depois da dissolução da primeira Constituinte,
sob a acusação de que esta não atendia ao juramento de defesa à
integridade do Império, D. Pedro I forma um Conselho de Estado
composto por dez homens de sua confiança e sob sua presidência,
com a incumbência de elaborar o Projeto de Constituição, e com o
suposto intuito de se produzir uma Constituição “duplicadamente
mais liberal do que a extinta Assembleia acabou de fazer”
(GONÇALVES; SILVA, 2012, p. 4). Este Projeto foi outorgado pelo
Imperador como a Constituição Política do Império.
A Constituição do Império teve vigência de 25/03/1824 a
15/11/1889, sendo a Carta Magna de maior longevidade da História
2 “‘As prisões agora feitas serão, pelos inimigos do Império, consideradas
despóticas. Não são. Vós vedes, que são medidas de polícia, próprias para evitar
a anarquia e poupar a vida desses desgraçados, para que possam gozar ainda
tranqüilamente [sic] delas, e nós do sossego. Suas famílias serão protegidas pelo
Governo. A salvação da pátria, que me está confiada, como Defensor Perpétuo do
Brasil, e que é a suprema lei, assim o exige. Tende confiança em mim, assim como
eu a tenho em vós, e vereis os nossos inimigos internos e externos suplicarem a
nossa indulgência. União e mais união brasileiros, quem aderiu à nossa sagrada
causa, quem jurou a Independência deste Império é brasileiro’” (LOPES, 2011, p.
260).

205
Conflitos e Contradições na História

do Brasil. Outra marca inerente a esta Lei Maior é a usurpação da


vontade constituinte dos governados, dado seu caráter unilateral,
de outorga, relegando o diálogo com a sociedade. Segundo
GONÇALVES & SILVA (2012, p. 3), “[...] o Imperador chamou
para si todo o poder constituinte, sendo esta a última usurpação da
Monarquia”.
A Constituição de 1824 estabelecia: um governo monárquico
unitário e hereditário; a existência de quatro poderes - o Legislativo,
o Executivo, o Judiciário e o Moderador (este acima de todos os
demais e exercido exclusivamente pelo Imperador) -; o Catolicismo
Apostólico Romano como religião oficial, com a Igreja submissa
ao Estado, podendo o Imperador conceder cargos eclesiásticos; a
definição de quem era considerado cidadão; eleições censitárias,
abertas e indiretas; que o Imperador não responderia pelos seus atos
judicialmente, ou seja, era juridicamente irresponsável. No mais,
destaque-se que foi uma das primeiras constituições do mundo
a incluir em seu texto um rol de direitos e garantias individuais
(GONÇALVES; SILVA, 2012).
A Lei Magna Imperial não adotou a forma clássica de repartição
dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário. Por meio de seu
artigo décimo, sob a inspiração de Benjamin Constant, instituiu-
se um quarto poder: o Poder Moderador. Na dicção do art. 98, o
Poder Moderador definia-se como a chave de toda a organização
política, destinado privativamente ao Imperador, com o objetivo de
lhe conceder prerrogativas para que velasse sobre a manutenção da
Independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos.
Também chamado de Poder Real, Poder Imperial, Poder Neutro, ou
Poder Conservador, teve sua atribuições enumeradas no art. 101 do
texto constitucional. Segundo Gonçalves & Silva (2012, p. 7), “[...]
Outorgou-se ao Imperador grande poder de ingerência política,
podendo inclusive decidir da ocupação do poder, fazer a alternância
entre os homens e partidos quando bem desejasse”.
De fato, no âmbito do Poder Executivo, o Imperador dispunha
de amplos poderes para nomear e demitir Ministros de Estado.

206
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Quanto ao Poder Legislativo, poderia livremente nomear Senadores,


convocar ou prorrogar a Assembleia Geral, dissolver a Câmara,
sancionar projetos, bem como aprovar ou suspender interinamente
as resoluções das assembleias provinciais. É por isso que Faoro
(1964, p. 293) depreende, ipsis verbis: “A coroa, armada com o
poder moderador, que lhe permite nomear e demitir livremente
os ministros, conserva o comando da política e da administração
[...]”. Já Gonçalves & Silva (2012, p. 7) observam que “A ingerência
no Poder Judiciário também era marcante. O Imperador poderia
suspender os Magistrados, perdoar e moderar as penas impostas aos
reús por sentença, como também conceder anistia”.
No entanto, a interferência sobre o Poder Judiciário tornou-
se mais limitada ao longo da década em relação aos outros, devido às
investidas descentralizantes dos liberais nessa área. Nesse sentido, o
Juizado de Paz e o Tribunal do Júri tiveram um papel determinante
na contenção da faceta absolutista-centralizadora do governo
imperial. Por isso, autores como Thomas Flory (apud WOLKMER,
2006) entendem que as modificações liberais realmente importantes
no primeiro império são a criação dos Juízes de Paz, em 1827, e o
estabelecimento do sistema participativo de Jurado, introduzido
pela Carta Imperial de 1824 e consagrado pelo Código de Processo
Criminal de 1832. A propósito, “[...] merece atenção [...] a instituição
do Tribunal do Júri, que representou as aspirações de autonomia
judicial e localismo, em maior grau do que as decisões do Juiz de Paz
[...]”(WOLKMER, 2006, p. 94-97).
A instituição do Júri Popular foi, por conseguinte, uma peça-
chave nesse projeto de construção de uma nação brasileira. Dessa
forma, com todo o aparato centralizador que a Carta Constitucional
trazia em seu bojo – apesar de carregar, também, frise-se,
características progressistas -, a Corte Cidadã foi um elemento
muito importante de resistência liberal à época em análise.
Observe-se que uma Justiça independente e contraposicionada
ao poder central era algo inédito em terras brasileiras. No período
colonial, o sistema judicial esteve a todo o tempo à serviço da

207
Conflitos e Contradições na História

metrópole: as estruturas jurídicas e administrativas estavam


imediatamente subordinadas aos níveis mais altos do governo,
nos quais Tribunal Superior e coroa sentavam-se um ao lado do
outro, sendo frequentemente impossível distingui-los. Quando um
monarca português desejava regulamentar algum aspecto crucial da
vida na colônia, raramente recorria às tropas militares, intendentes
reais, ou coletores de impostos: na maioria das ocasiões, enviava
juízes dotados de amplos poderes de administração, de modo que o
poder judicial burocrático chegou a estar implicitamente identificado
com a administração real. Os magistrados profissionais do domínio
colonial eram verdadeiros substitutos locais do monarca, e a força
de suas decisões provinha tanto da autoridade pessoal derivada dele,
quanto da lei (FLORY, 1986).
Dessa forma, diziam os liberais, era preciso que os juízes
fossem independentes do poder central e eleitos localmente, em vez
de serem nomeados pelo rei. A própria Constituição de 1824 fazia
alusão ao estabelecimento de um novo Juiz de conciliações local, e de
um sistema de Jurados. Uma melhora das condições judiciais seria,
decerto, um benefício bastante palpável, por isso, “[...] la cuestión
judicial provocó gran cantidad de retórica oficial sobre la reforma en
los años inmediatamente posteriores a la Independencia (FLORY,
1986, p. 71).
Outro fator determinante a tal ânsia por novidades foi o
fato de que, no Brasil, houve, logo após a Independência, um
reconhecimento formal da validade da legislação portuguesa como
base para funcionamento do Império, pois “[...] uma das apenas
seis leis aprovadas pela Assembleia de 1823, declarava ‘em vigor a
legislação pela qual se regia o Brasil até 25 de abril de 1821 [...]”
(GARRIGA; SLEMIAN, 2013, p. 203).
A primeira tarefa dos legisladores, portanto, era e de dotar
o país de um quadro legal e institucional próprio. Era preciso
constituir os quadros do Estado e reformar as instituições do Antigo
Regime, quais sejam: a Justiça, o Governo, a Fazenda e a Guerra.
Em todas essas alçadas, houve enfrentamento de ideias e alterações

208
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

importantes. Os exemplos mais destacáveis, na primeira metade do


século, foram os dois códigos promulgados: o Criminal (1830) e o
de Processo Criminal (1832). Conforme dito alhures, enquanto não
se alterava a legislação, a Assembleia Constituinte, pela Lei de 20 de
outubro de 1823, mandou aplicar no país as leis, regimentos, alvarás
e outras normas editadas pelos reis de Portugal até 1821. Entre elas,
naturalmente, estavam as Ordenações Filipinas de 1603. A Carta
Constitucional de 1824, vislumbrando essa próblemática, assim
dispunha em matéria de legislação: “[...] ‘organizar-se-á quanto
antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas sólidas bases da
Justiça, e Eqüidade’ (art. 179, XVIII)” (LOPES, 2011, p. 258).
O sopro liberal no sistema judicial brasileiro, apesar de toda a
mentalidade reformista, relativamente lenta e, em muito, moderada,
foi capaz de provocar rebuliços por demais interessantes e, ainda,
importantes na trama da História do Direito no Brasil, que merecem
maior atenção e sobre os quais passa-se a tratar de forma mais
detalhada.

Júri e “Crimes Eleitorais”


A instituição do Jurado antecedeu a Independência,
porquanto a lei criadora desse sistema em Portugal estendeu-se ao
Brasil já em 18 de junho de 1822. Em seu limiar, ao conselho de
jurados, cabia julgar unicamente os crimes de abuso de liberdade de
imprensa3, sendo que a primeira ocorrência deu-se somente numa

3 “Na época da convocação da Assembleia Geral Constituinte do Brasil, o


regente, preocupado também com a manutenção da ordem tradicional, referendou
um decreto, em 18 de junho de 1822, contra os abusos da imprensa em relação ao
Estado. O pretexto foi a crítica do Correio do Rio de Janeiro às eleições indiretas para
a Constituinte, que, continha ‘doutrinas criminosas’. Era preciso, por conseguinte,
evitar excessos ou, de acordo com o próprio texto da lei, cumpria evitar que, ‘ou pela
imprensa, ou verbalmente, ou de qualquer outra maneira, propaguem e publiquem
os inimigos da ordem e da tranquilidade e da união, doutrinas incendiárias e
subversivas’, que, ‘promovendo a anarquia e a licença, ataquem e destruam o
sistema que os povos’ deste Reino, ‘por sua própria vontade, escolheram, abraçaram
e requereram’. Por conseguinte, se o governo aceitava, ou parecia aceitar, alguns
dos princípios liberais, não perdera, porém, todos os ranços do Antigo Regime”
(NEVES, 2013, p. 93-94).

209
Conflitos e Contradições na História

sessão de junho de 1825, a fim de se sentenciar um delito de injúrias


expressas.4
Com a Independência, iniciou-se um amplo processo de
construção do sistema judicial brasileiro, em que o Tribunal Popular
teve grande destaque. Em 1823, uma das primeiras leis aprovadas
pela Assembleia Constituinte reiterou a competência dos membros
do Júri para julgar assuntos relacionados à liberdade de imprensa.
Quando a Assembleia foi dissolvida, essa lei foi posta em vigor por
decreto.
Decerto, numa estrutura demasiado concentrada, os liberais
ansiavam por reformas capazes de reduzir os poderes do Imperador,
desconfiados do interesse de Pedro na sucessão do trono português
e acreditando numa suposta intenção de reunir as duas coroas. As
suspeitas tornaram-se ainda mais graves com a morte de D. João,
em Portugal, em 1826. No plano jurídico, essa desconfiança contra o
poder central traduzia-se numa necessidade de incessante fiscalização
dos magistrados especializados, representantes por excelência da
coroa no processo judicial. No Código do Processo Penal de 1832,
inclusive, estava previsto um capítulo inteiro para a denúncia contra
crimes de responsabilidade dos empregados públicos, podendo-
se encaminhar tais pleitos tanto aos órgãos executivos (governo e
presidentes de província), como às autoridades judiciárias a quem
competia o fato.
Em meio a tal ordem de coisas, apostou-se em Juízes leigos
para exercer a justiça, como Juízes de Paz e Jurados, e na própria
formação da Guarda Nacional, conforme explicita Andréa Slemian
(2011).
De acordo com Flory (1986), a criação do sistema de Jurado
no Brasil assemelhou-se muito à do Juizado de Paz, que ampliou a
4 Sobre esse caso, Nequete (1973, p. 44) formula o seguinte: “Segundo ENÉAS
GALVÃO, foi em 1825 que se executou pela primeira vez a lei de 2 de outubro de
1823, no julgamento do crime de injúrias publicadas no Diário Fluminense de 25
de abril contra o Intendente Geral de Polícia da Corte, Francisco Alberto Ferreira
de Aragão. Outros, no entanto, apontam a João Soares Lisboa, redator do Correio
do Rio de Janeiro, como o primeiro a comparecer perante o Tribunal do Júri, que,
aliás, o teria absolvido”.

210
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

brecha entre a magistratura profissional e os liberais, representando


uma franca investida contra a elite judicial, e revestindo-se de um
caráter eminentemente político, sendo tanto uma reação ao viciado
sistema judiciário, como uma defesa liberal contra as aspirações
absolutistas e recolonizadoras portuguesas.
Com a Lei de 20 de setembro de 1830, sob o título “Sobre o
abuso da liberdade de imprensa”, lançaram-se bases mais concretas
para a organização do Júri no Brasil. Em seu título III, definiu-se
que em cada vila e cidade do país haveria um Conselho de Jurados,
cuja eleição ocorreria sob o comando dos Vereadores. Nas capitais,
escolher-se-iam sessenta homens e, nas demais cidades, trinta e
nove.
Podiam ser Jurados todos os cidadãos que pudessem ser
eleitores, sendo de reconhecido bom senso e probidade, excetuando-
se Senadores, Deputados, Conselheiros, Ministros de Estado, Bispos,
Magistrados, Oficiais de Justiça, Juízes Eclesiásticos, Vigários,
Presidentes, Secretários de Governo das províncias e Comandantes
das Armas e dos Corpos de 1ª Linha, consoante previa o art. 23
do Código de Processo Criminal, a fim de se preservar os Juízes
leigos da hierarquia governamental. O requisito da elegibilidade em
segundo grau somente excluía os brasileiros com menos de vinte e
cinco anos e aqueles que ganhavam menos que duzentos mil réis ao
ano, o que era uma renda relativamente baixa no Brasil desse tempo
(LOPES, 2011).
No título IV, o diploma supracitado definiu a organização
binária da Justiça Popular, estatuindo dois conselhos: o Júri de
Acusação e o Júri de Sentença. O primeiro conselho (Júri de Acusação
ou de Pronúncia) compunha-se de 23 membros sorteados ao azar por
um menino; o de Sentença contava com 12 membros. A sessão era
presidida pelo Juiz de Direito. o Conselho de Pronúncia escolheria
por escrutínio secreto e por maioria absoluta seu presidente e seu
secretário, consoante conteúdo do dispositivo 243 do Código de
Processo Criminal de 1832 (BRAZIL, acesso em 13 out. 2016).
O Júri de Acusação estabelecia preliminarmente a existência

211
Conflitos e Contradições na História

ou não de crime a ser judicialmente apreciado, analisando as provas


trazidas no bojo da acusação. Já o Conselho de Sentença declarava
a culpa ou não do acusado, cabendo ao Juiz de Direito ditar a
sentença, sendo esse virtualmente seu único papel direto em todo o
procedimento (FLORY, 1986, p. 186-187).
A introdução do Tribunal do Júri no ordenamento brasileiro
enfrentou a forte oposição daqueles que, tais quais os juízes
profissionais, tinham interesses na manutenção da unidade nacional,
advogando ser a descentralização instrumento incapaz de evitar o
caos e a desordem. Fato é que o Código de Processo Criminal de
1832 delegou vastas atribuições populares e independentes, em
detrimento dos Juízes de Direito nomeados. O art. 5º do referido
diploma legislativo regulou a existência de um Conselho de Jurados
em cada termo do Império. Além disso, os arts. 151 e 152 da
Constituição Imperial determinavam que:
‘Art. 151 – O Poder Judicial é independente e será composto de
juízes e jurados, os quais terão lugar assim no cível como no crime,
nos casos e pelo modo que os Códigos determinarem’.
‘Art. 152 – Os jurados pronunciam sobre o fato e os juízes aplicam
a lei’ (MARQUES, 1997, p. 38).
Por sua vez, a única ressalva que o Código de Processo
Criminal de 1832 fez à competência do Júri foi com relação aos
crimes praticados por empregados públicos, senão, veja-se:
Art. 155. A formação da culpa dos empregados publicos compete:
§ 1º Ao Supremo Tribunal de Justiça nos crimes de responsabilidade
dos seus membros, e dos das Relações, dos empregados do Corpo
Diplomatico, e dos Presidentes de Provincia.
§ 2º A’s Relações ou (nas Provincias, em que ellas não estiverem
collocadas) á autoridade judicial, que residir no lugar, nos crimes
de responsabilidade dos Commandantes militares, e dos Juizes de
Direito.
§ 3º Aos conselhos de investigação nos crimes de responsabilidade
dos empregados militares.
§ 4º A’s justiças ecclesiasticas nos crimes de responsabilidade dos
empregados ecclesiasticos para imposição sómente das penas
espirituaes decretadas pelos Canones recebidos (BRAZIL, acesso
em 31 out. 2016).

212
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Dessa forma, a jurisdição ordinária em matéria criminal de


qualquer outra autoridade que não fosse o Júri foi extinta, mantendo-
se apenas as do Senado, do Supremo Tribunal de Justiça, Relações,
Juízos Militares (para conhecer de crimes puramente militares),
e juízos eclesiásticos, no que se referia às matérias espirituais. Os
crimes ficaram sob a competência do Conselho de Jurados, e, aos
Juízes de Paz, restou julgar sobre “[...] as contravenções às posturas
municipais e os crimes a que não fosse imposta a pena de multa
até ‘cem mil-réis’, prisão, degredo, ou desterro até seis meses”
(MARQUES, 1997, p. 39). Campos (2009, p. 225) chega a afirmar
que “De acordo com o Código de Processo [de 1832], a instituição
do Júri passou a conhecer todos os crimes, cumprindo finalmente o
que a Constituição já havia prometido desde 1824 [...]” (grifo nosso).
Disso, pode-se depreender que a competência para o
julgamento dos “crimes eleitorais” encontrava-se prevista na segunda
parte do Código Criminal de 1830, referente aos “crimes públicos”,
sob o título “Dos crimes contra a existencia politica do Imperio”.
Esses abrangem os: “crimes contra a independencia, integridade, e
dignidade da nação” (capítulo I); “crimes contra a constituição do
imperio, e fórma do seu governo” (capítulo II); “crimes contra o
chefe do governo” (capítulo III) (BRAZIL, acesso em 13 out. 2016).
Os crimes eram classificados, na legislação processual,
como públicos, particulares e policiais. Públicos eram os delitos
que atentavam à boa ordem, à administração pública, à existência
política do Império, ao livre exercício dos Poderes Políticos, à
segurança interna do Império, à tranquilidade pública, ao Tesouro,
à Propriedade Pública e, finalmente, ao livre gozo e exercício político
dos Cidadãos. Os crimes particulares, por sua vez, tratavam-se de
atos contrários à liberdade individual, à propriedade e à pessoa.
Abrangiam os homicídios, os infanticídios, a calúnia, etc. Já os
crimes policiais eram
[...] as ofensas à religião, à moral e aos bons costumes, as sociedades
secretas, os ajuntamentos ilícitos, a vadiagem e a mendicância, a
utilização de armas de defesa, o fabrico e o emprego de instrumentos
para roubar, a apresentação sob nome suposto e títulos indevidos,

213
Conflitos e Contradições na História

bem como o exercício ilegal da imprensa (BETZEL; CAMPOS,


acesso em 15 out. 2016).
Logo, os crimes relacionados aos procedimentos eleitorais
estavam englobados pelo arsenal de competências apreciativas do
Júri.
Resta dizer que o Tribunal Popular foi recebido com
grande entusiasmo, até porque, como ilustra Parreira (2005, p.
64), “No Brasil, o liberalismo uniu-se ao sentimento nacionalista,
também contrário ao governo de um rei, que manteve a forma de
administração colonial após a independência”. Portanto, nota-se que
a implantação do Tribunal Cidadão em território nacional, numa
visão geral, foi uma tentativa política dos liberais, no plano jurídico,
de retirar das mãos do soberano o poder concentrado, instituindo-
se, por meio de normas legais, mecanismos de descentralização,
com o intuito de aumentar a autonomia das autoridades locais. Para
Thomas Flory (1986) o júri foi a culminação lógica do princípio da
participação popular aplicada ao judiciário, de modo que sintetizou
os ideais de autonomia judicial e localismo.

Conclusão
Foi em meio a uma conjuntura de conflitos entre forças
políticas divergentes e entre entendimentos variados de calorosos
debates que, em 1822, o Júri foi instituído no Brasil pelas Cortes
Portuguesas. Em 1832, o Código de Processo Criminal concedeu
ao sistema de Jurados atribuições amplíssimas, que incluíam
a apreciação de crimes atinentes às eleições, transformando o
instituto em instrumento de ataque à elite judicial togada, sendo-lhe
admitidos como membros até mesmo analfabetos, o que colocava
o Brasil como uma das nações de legislação mais liberal do mundo.
No Brasil, o Tribunal popular ameaçou diretamente o judiciário
profissional, desde muito enleado a jogos escusos de poder com
a coroa, colocando o cidadão como protagonista das batalhas
judicializadas.

214
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

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Conflitos e Contradições na História

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décadas do Império do Brasil: instituições, conflitos de jurisdições e
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216
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

As perspectivas de estudo sobre o Partido


Trabalhista Brasileiro capixaba (1945 –
1964) sob os dilemas de Angelo Panebianco
e contribuições de outros (as)estudiosos
(as) do trabalhismo
Lucian Rodrigues Cardoso1

Introdução
As leituras teóricas e interpretativas sobre os partidos como
organizações servem como base e ponto de partida para se estudar
o PTB e o trabalhismo no Espírito Santo. A partir destas, propõe-se
um trabalho revelador, porque parte para o debate sobre trabalhismo
presente na literatura que ora versa sobre o plano nacional, ora
em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.
Trata-se, portanto, sob o julgo de um passado específico, analisar os
conceitos e teses da literatura sobre os partidos em um caso particular,
entendendo as idiossincrasias do cenário político capixaba e sua
interação e inter-relação com a esfera nacional da política.

O PTB/ES sob os dilemas de Panebianco


Segundo a tese de Angelo Panebianco (2005) é fundamental,
para entender a evolução e história de um partido político, o estudo
do seu momento de formação, visto que sua dinâmica de intervenção
no ambiente externo é tributável ao modo como o partido resolveu
suas questões conflitivas, através do estabelecimento de suas regras
básicas de convivência e negociação.
Assim, seguindo o teórico, torna-se necessário estudar como os
partidos resolveram seus dilemas organizativos, típicos do momento
de fundação dessas organizações políticas, e construiu sua trajetória
para os momentos posteriores até a fase de institucionalização. O
primeiro dilema corresponde ao fato de que os partidos possuem
1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade
Federal do Espírito Santo.

217
Conflitos e Contradições na História

objetivos a cumprir conforme sua ideologia, entretanto, estes tendem


a ser relegados a segundo plano em favor de sua sobrevivência
ambiental, nem sempre condizente com o cumprimento dos objetivos
oficiais da organização. Então, torna-se fundamental perceber como
o PTB capixaba resolveu este dilema: em que medida um partido,
a priori nascido para promover o carisma de Getúlio Vargas tal
como defender seu legado sob as leis trabalhistas, ampliando-as
para o campo, se preocupou mais em sobreviver com ações mais
pragmáticas num ambiente pouco urbanizado em cuja dominação
política baseava-se em laços tradicionais e clientelísticos, ou foi fiel
a seus princípios programáticos. Ou seja, torna-se fundamental
investigar como o PTB do Espírito Santo resolveu a equação do
dilema objetivos x sobrevivência.
Sobreviver ou cumprir os objetivos depende em grande
medida do segundo dilema, qual seja a tensão entre a distribuição
de incentivos seletivos e coletivos. Enquanto estes cumprem a
função de assegurar a participação coletiva, tal como têm o caráter
de produzir identificação dos defensores com a organização
através de projetos que visam cumprir certos ideais, os incentivos
seletivos são distribuídos de forma desigual e apenas para alguns
membros. Os seletivos, portanto, se tratam de meios de garantir
a continuidade organizativa e o equilíbrio entre as hierarquias
internas, que disputam entre si o controle dos cargos na burocracia
partidária ou na administração pública. Entretanto, os dois tipos de
incentivos comportam um dilema visto serem contraditórios. Desta
maneira, a ideologia interna do partido sofre uma dupla pressão.
De um lado, porque, principal fonte dos incentivos coletivos, ela
garante a identidade da organização em face aos seus defensores, de
outro porque deve ocultar o caráter dos incentivos seletivos para os
defensores da organização e também para seus beneficiados. Ou seja,
a ideologia organizativa deve ser levada em consideração na adoção
de estratégias de divisão dos incentivos, constituindo-se um limite
para o poder dos líderes, visto ser temerário perder o apoio de atores
que não recebem incentivos seletivos. O peso de um ou de outro
pode variar de acordo com o partido e com sua história, porém,

218
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

o desequilíbrio entre um e outro incentivo pode levar ao colapso


da organização, que depende tanto da continuidade da máquina
partidária, garantida pelos seletivos, quanto do apoio eleitoral,
garantido pelos coletivos. Deste modo, cumpre identificar como o
PTB capixaba resolveu este dilema acima citado, visto, nacionalmente,
ter sido um partido criado a partir da burocracia do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio do Estado Novo, tal como a partir
de uma identificação muito forte com a figura de Getúlio Vargas.
Será necessário analisar como o partido em âmbito local lidou com
a necessidade de distribuir incentivos seletivos, sobretudo através
da burocracia do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e
suas instituições correlatas (IAPs; DRTs; Juntas de Conciliação e
Julgamento da Justiça do Trabalho etc.), em contextos, tanto em que
operavam essa estrutura (como na fundação da agremiação), como
em contextos em que não operavam - durante o Governo Dutra, por
exemplo. Assim, torna-se necessário assentar o desenvolvimento do
dilema de formação incentivos seletivos x coletivos na dependência
do sucesso político de Vargas para conseguir negociar cargos na
burocracia estatal (seletivos), assim como promover a distribuição
de incentivos coletivos visto tal ator ser a encarnação do projeto
político de ampliar e cumprir a legislação trabalhista.
O terceiro dilema consiste no conflito de estratégias com que
o partido se depara no momento de instituir respostas ao ambiente
externo em que atua, consistindo então na dicotomia adaptação x
dominação. No primeiro caso o partido absorve fatores do ambiente
para se adaptar à suas demandas, através de mudanças de suas
estratégias partidárias, com intuito de obter sucesso eleitoral. Já no
segundo caso a organização intervém no ambiente, visando moldá-
lo ao seu projeto político, tal como influenciando em associações ou
sindicatos etc. Os dois eixos do dilema podem ser implementados
ao mesmo tempo devido as diferentes arenas em quais um partido
político deve atuar, tornando-se mais fecundo pensar em ambientes,
em que estes são intercomunicante e independente ao mesmo
tempo e exigem respostas diferentes aos seus desafios. O que
pode diferenciar, pender-se para um lado ou outro da balança, é

219
Conflitos e Contradições na História

o ambiente ser mais hostil ou não a ideologia organizativa, assim


como a distribuição dos incentivos. Segundo Panebianco, quanto
mais incentivos coletivos são distribuídos, mais a organização
tende a dominar o ambiente; por outro lado, quanto mais são os
incentivos seletivos, menos forte torna-se a instituição, tendendo-
se a adaptação ao meio sob negociações fisiológicas. Entretanto,
cabe ao estudo proposto perceber esta dicotomia no caso do PTB
nacional, visto que, com o desenvolvimento partidário e hegemonia
do partido na máquina estatal sobretudo do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, o que se percebeu foi uma maior distribuição
de incentivos coletivos, ao mesmo tempo que, uma reformulação
do trabalhismo após a morte de Vargas em que promoveu-se o
reformismo nacionalista e mobilizador como projeto político, ou
seja, os incentivos seletivos não levaram o partido diretamente
a uma situação de mais adaptação que intervenção no sistema
político brasileiro. Em se tratando do PTB capixaba, torna-se
fecundo analisá-lo sob a perspectiva dialética ao cenário nacional
de maior urbanização no período de 195-64, visto o estado ter, até
posteriormente o período estudado, a maior parte de sua população
morando em zonas rurais e uma economia agrária-exportador. Ou
seja, é sintomático que o partido em sua seção local tenha optado
por estratégias diversas ao plano nacional, visto o ambiente capixaba
exigir respostas diferenciadas na resolução dos outros dilemas.
O quarto dilema formativo de um partido assenta-se na
resolução dos conflitos internos por liderança entre os grupos.
Assim, as decisões são tomadas, geralmente, por coalizões ou
acordos entre os grupos majoritários de uma agremiação, fazendo
surgir uma coalizão majoritária e uma ou outras minoritárias.
Entretanto, pelo fato das decisões dependerem de acordos entre os
grupos, um torna-se o árbitro do outro, resultando na tentativa de
cada grupo desenvolver mecanismos para aumentar sua liberdade
de ação frente aos outros. Dito isso, Panebianco ilustra este dilema
sob a oposição liberdade de ação x constrangimentos organizacionais,
em que, quanto mais uma coalizão dominante possui a primeira,
mais chances terão de interferir no ambiente externo, e quanto mais

220
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

constrangimentos há nas relações entre os grupos internos, menos


capacidade de agir seguramente frente ao ambiente externo será
possível pela coalizão dominante.
Posto nestes termos, Angelo Panebianco reconhece a
importância da ideologia organizativa e dos objetivos oficiais, não
sendo estes, como em outras literaturas, reféns de arbítrios dos
líderes ou usados como simples dissimulador das ações. Mudanças
nessas esferas dependem de profundas mudanças organizacionais,
e quando estas ocorrem chama-se o processo de sucessão dos fins,
fenômeno que ocorre com certa raridade. Na resolução dos dilemas
organizativos é mais comum, segundo o autor, observar-se outro
fenômeno chamado de articulação dos fins, em que há um tolerado
desvio entre os objetivos oficiais e a ação partidária.
No esforço por resolver os dilemas organizativos fundamentais
da formação de um partido, Panebianco apresenta um modelo
interpretativo acerca desse processo: a institucionalização. Neste, a
instituição cresce em número e solidifica sua estrutura garantindo
sua continuidade. Assim, durante a consecução dessa fase, segundo
o modelo relativizado pelo próprio autor conforme cada caso
aplicado, o partido passaria da ênfase em incentivos coletivos para
os seletivos; de uma ideologia manifesta (com objetivos explícitos
e coerentes) para um estado de latência ideológica (com objetivos
vagos, implícitos e contraditórios); para um estado de progressiva
redução da liberdade de ação dos líderes; estratégias desenvolvidas
mais para adaptação que enfrentamento ou modificação do ambiente
externo.
Conforme Panebiaco, o meio se estudar a ordem organizativa
de um partido é a investigação de sua estrutura de poder, ou seja,
a forma como o poder é distribuído, se reproduz e modifica as
relações dentro da organização. O poder, por sua vez, depende
do controle sobre as zonas de incerteza por parte dos grupos
partidários, derivando-se em acordos, lutas e negociações por parte
desses grupos, não, sendo, porém, o poder uma propriedade de um
líder, tampouco um processo recíproco entre as partes influentes.

221
Conflitos e Contradições na História

Na definição alternativa de poder do referido autor, trata-se de uma


relação de troca desigual entre um líder e seus seguidores, porém,
essa liderança só pode ser cumprida se levada em conta as exigências
e expectativas dos outros, que exigem algo em troca ao submeterem-
se. Nesta lógica, os líderes são os que mantêm o controle sobre a
maior parte das zonas de incerteza garantindo a estabilidade da
organização, tal como a manutenção da ordem interna a seu favor.
Ou seja, eles devem ter o controle da competência técnica, das
relações com o ambiente externo, da comunicação interna, das regras
formais, do financiamento e do recrutamento, que se configuram as
principais zonas de incerteza nas relações horizontais (que envolve
as lideranças) e verticais (entre líderes e membros).
Estas relações acima citadas são enquadradas por Panebianco
em alguns tipos de agentes: eleitorado cativo, que é o objetivo
da distribuição de incentivos coletivos; membros de base do
partido, geralmente não ativos e normalmente mais dependentes
de incentivos coletivos; núcleo ativista, composto por militantes
chamados de crentes (ativos, mas dependentes de incentivos
coletivos) e os carreiristas (dependentes de incentivos coletivos).
Neste último, os carreristas, assentam-se a “pedra no sapato” dos
líderes, visto serem aqueles que possuem contato estreito com os
crentes e, também, desse grupo emergirem novas lideranças e
resgates da ideologia na luta interna pela ascenção no partido. Nesse
sentido, cabe aos líderes cooptarem os carreiristas, através de sua
disposição em aceitar incentivos seletivos, ou expulsá-los. Desta
maneira, a análise dos carreiristas e sua dinãmica de luta com as
lideraças dentro do partido explicam em grande medida os jogos
verticais e horizontais de poder.
E estes jogos são protagonizados tanto por tendências (grupos
fracamente organizados), quanto por facções (grupos fortemente
organizados). Estas podem atravessar o partido verticalmente, assim
como se resumirem a espaços específicos; aquelas tendem a serem
construídas pelo topo, sem participação da base. Quando tendências
ou facções se unem, formam as coalizões, em que a majoritária irá

222
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

dominar o partido. Em um partido execssivamente faccioso, tal


coalizão não teria uma profunda homogeneidade, fazendo com
que as facções flutem de lado a lado no que concerne a luta pelo
equilíbrio de forças. Entretanto, essas flutuações das facções não
devem ser desconexas com a a ideologia partidária, nem tampouco
distante dos objetivos oficiais do partido, correndo-se o risco de
perda de credibilidade para o grupo.
Ao investigar a forma como os partidos enfrentam os
dilemas organizativos, tal como seus grupos agem perante as zonas
de incerteza e o ambiente de atuação, a análise pode municiar-se
de instrumentos para avaliar o nível de institucionalização de um
partido, sendo este uma variante de baixa à alta institucionalização.
Dito isso, o teórico classifica os partidos em partidos oposicionistas,
governistas e carismáticos. Os primeiros tendem a contar com um
processo de maior institucionalização que os governistas porque
dependentes de se encontrar mecanismos e recursos de manutenção
não oriundos do governo. Já os carismáticos, geralmente, não
conseguem avançar a uma maior institucionalização, com exceção
de raríssimos casos em que a há a dispersão do carisma do líder para
o partido.
Os pressupostos teóricos que Panebianco apresenta-se
fecundo para uma releitura parcial do caso do Partido Trabalhista
Brasileiro na esfera nacional, tal como municia uma investigação do
partido na esfera local, em sua dinâmica com o ambiente político
capixaba e brasileiro.

As contribuições dos (as) estudiosos (as) do trabalhismo


para uma análise do PTB/ES
Avançando a leituras de apoio acerca do tema trabalhismo
e PTB e suas contribuições a proposta de pesquisa, recorda-se que
O Partido Trabalhista Brasileiro representava um projeto de nação
promovido e levado a cabo pelo Estado brasileiro, pautado pela
configuração da classe trabalhadora como um ator político como
bem enfatizou Angela de Castro Gomes (1988). Apropriando-se

223
Conflitos e Contradições na História

dos símbolos, tradições e demandas históricas dos operários e seus


representantes, o PTB conseguiu ressignificar e apresentar como
algo novo o projeto de país pautado em ideias já correntes no seio da
classe trabalhadora brasileira.
Desta forma, havia a coexistência de ganhos materiais –
adquiridos através dos benefícios da legislação social - e ganhos
simbólicos, sendo o principal o reconhecimento dos trabalhadores
como um dos atores influentes na agenda e nas disputas políticas do
país, uma vez que era tributada a esta classe o direito a expressar-se,
defender suas ideias, reivindicar suas demandas, etc. Como discorre
Capelato (2001), introduziu-se uma nova cultura política em que o
Estado cumpriu o papel de intervir nas relações sociais ao mesmo
tempo em que atendia a reivindicações sociais, políticas e subjetivas
da sociedade.
Benevides (1989) contribui ao debate através do estudo
das disputas entre o PTB, o adhemarismo e o janismo pelo apoio
dos trabalhadores em São Paulo, sendo este fato um dos motivos
do enfraquecimento do PTB paulista, já que havia dificuldades
em se consolidar os diretórios municipais por causa da oscilação
e fragmentação das lealdades das lideranças, ora apoiando Jânio
Quadros, ora apoiando Ademar de Barros. No Espírito Santo, dentro
do trabalhismo, competiam as figuras do líder conservador Tenente
Rubim com o sindicalista Saturnino Mauro na formação do partido
- e com Rubens Rangel durante os anos posteriores. Rivalizava
também com os pessedistas Carlos Lindenberg e Jones dos Santos
Neves, além da competição com o PCB. Assim, à exemplo do que fez
Benevides, estudar as rivalidades, os diferentes debates, as disputas,
as alianças e as coligações políticas e a experiências administrativas
em que figuraram o PTB capixaba faz-se mister para compreender
a trajetória e os rumos políticos do trabalhismo no Espírito Santo.
A literatura acerca do tema, sobretudo após a abordagem
inaugural de Castro Gomes (1988), fazem, em geral, referência ao
projeto trabalhista como aquele que lutava pela defesa de um Estado
interventor e promotor da unidade e justiça social, com ênfase nas

224
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

questões da saúde pública, educação, arte popular, higiene mental


e segurança social do operário, bem como aquele que lançou a
classe trabalhadora como um importante ator político através da
vinculação que perpassa todo período democrático: PTB-sindicato-
Estado. Como fator legitimador desses pressupostos, residia o
nacionalismo, que, como observam Elina Pessanha e Regina Morel
(2001), servia de neutralização dos conflitos sociais, visto que não
era pautado pela defesa de uma classe em particular, mas, apesar
disso, era lido, defendido e apropriado de formas diferentes por cada
uma. Sob este ponto de vista, elucidar a maneira como era entendida
a ideologia nacionalista no discurso dos trabalhistas capixabas serve
também como base para se entender as posições no que tange ao
projeto trabalhista e suas diferentes frações.
Acerca de diferentes frações, no seio do Partido Trabalhista
havia variações e discordâncias nos entendimentos tanto do que
‘deveria ser’ o trabalhismo, como em ‘de que forma’ proceder para
torná-lo viável e uma realidade. Como ressalta Lucilia Delgado
(1989), havia, por parte dos doutrinários reformistas, propostas de
trabalhismo mais autônomo e autêntico, rivalizando com algumas
mais ‘flexíveis’ e fisiológicas, defensoras do mito getulista, qual seja
os getulistas-pragmáticos, assim como havia uma espécie de misto
entre as outras duas, os pragmáticos reformistas. As classificações de
Delgado nos ajudam como modelo a ser verificado na experiência da
atuação política dos petebistas em solo capixaba.
Além disso, Jorge Ferreira (2005) faz considerações acerca da
radicalização de figuras importantes do PTB entre os anos 1961-4,
em que se pregou uma participação mais direta dos trabalhadores
na vida institucional do país, propondo a modificação da atuação
controlada e elitizada dos atores políticos falando pelos trabalhadores.
À luz desta constatação, importa analisar se o PTB capixaba foi
simpático a esta nova ideia de mobilização ou se partilhava da defesa
de outra forma de participação dos trabalhadores.
Miguel Bodea (1992), por sua vez, ressalta que com exceção
do Rio Grande do Sul, o PTB, em seu início, não arregimentou

225
Conflitos e Contradições na História

intelectuais de esquerda, não possuindo também propostas socialistas


em suas bases. Desta maneira, o PTB gaúcho surge por esforço de
três vertentes, com origens e integração no partido distintas e em
etapas e formas diversas.
A primeira vertente dizia respeito a denominada corrente
sindicalista, que abarcava lideranças sindicais que se forjaram,
sobretudo, no Estado Novo. Núcleo inicial do partido, era
considerada a vertente fundadora da agremiação. Esta fração cindiu
com o PSD gaúcho logo nos primeiros anos da redemocratização,
o que marcou a trajetória política de ambos, dificultando futuras
composições ou alianças entre as duas siglas regionais.
A segunda vertente era a corrente doutrinária-pasqualinista.
Composta por intelectuais progressistas (bacharéis e profissionais
liberais), eram seguidores da doutrina do advogado Alberto
Pasqualini. Suas ideias comportavam temas sociais reformistas,
baseadas no trabalhismo britânico em maior grau e, em menor
grau, na socialdemocracia europeia. Antes de integrar o PTB, estes
elementos formaram a União Social Brasileira (USB), movimento
por meio do qual Pasqualini e seu grupo defendiam suas bandeiras
e pensamentos.
Desta maneira, o PTB gaúcho teria uma característica distinta
da agremiação trabalhista no contexto nacional, posto que fora a
única seção, segundo Bodea (1992), que absorveu um movimento de
esquerda - reformista, mas portador de um certo grau de elaboração
doutrinária. A USB ocupava, de fato, pelo menos uma parcela do
espaço político reservado à Esquerda Democrática nos outros estados.
Ou seja, era uma esquerda democrática que optou por integrar-se
no PTB e não na UDN, como ocorria em nível nacional. No caso
gaúcho, isto teria dupla consequência. Por um lado, o PTB adquiriu,
desde sua fundação, uma conotação de “partido de esquerda” e não
apenas “partido popular” ou simplesmente “legenda popular” como
tendia a ser nos estados com maior peso política e econômico do
país. Já, por outro, sobrava pouco espaço para o Partido Socialista
Brasileiro no Rio Grande do Sul.

226
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Já a terceira vertente que formou o PTB gaúcho diz respeito


à corrente pragmático-getulista, que adentrou o partido durante o
ano de 1946, após o pleito presidencial. Esta corrente era composta
essencialmente de políticos profissionais saídos do PSD por
orientação de Vargas. O objetivo imediato era fortalecer o partido
no pleito estadual de 1947. Jango, por exemplo, se filiara ao PSD
em 1945, mas também esteve entre os que se transferiram por
intermédio de Vargas.
Ao que parece, no Espírito Santo, como não se nota uma
entrada de um grupo socialista conciso no PTB, a exemplo da USB
no Rio Grande do Sul, sobrou espaço para atuação, inclusive sindical,
de um partido como o PSB na cidade de Cachoeiro de Itapemirim,
sul do estado, como pudemos perceber na pesquisa que constituiu
o livro sobre os 80 anos do Sindibancários/ES2. Desta forma, o PTB
capixaba nasceu e estava nas mãos de representantes das elites agrárias
e mercantis e não havia um grupo de pressão considerável tendendo
o partido para esquerda. Por isso, um político mais à esquerda e
voltado às demandas populares e sindicais, como o petebista Mario
Gurgel, ao que parece, sofreu diversos reveses intrapartidários
quando, por exemplo, assumiu a Prefeitura Municipal de Vitória.
No Rio Grande do Sul, o PTB nasceu primeiramente de esforço
dos sindicalistas, que comandaram por um bom tempo o partido,
tanto que, a princípio, eram contra entrada de profissionais liberais
e “políticos profissionais” na legenda. Cabe investigar em que
medida a agremiação trabalhista capixaba recebera influência de
correntes sindicalistas e vertentes socialistas ou mais progressistas
em sua formação, tal como, a forma como ocorreu a negociação dos
conflitos entre os interesses das mais diversas correntes formativas
da seção capixaba.
Já a terceira vertente que formou o PTB gaúcho diz respeito
à corrente pragmático-getulista, que adentrou o partido durante o

2 O livro foi fruto de pesquisas de grupo coordenadas pelo Prof. Dr. André
Ricardo Valle Vasco Pereira (UFES), sendo formado por Charles Torres Bertochi,
Júlia Ott Dutra, Lucian Rodrigues Cardoso e Rodrigo Lima. Apesar de concluído, o
trabalho final ainda não foi publicado pelo referido sindicato.

227
Conflitos e Contradições na História

ano de 1946, após o pleito presidencial. Esta corrente era composta


essencialmente de políticos profissionais saídos do PSD por
orientação de Vargas. O objetivo imediato era fortalecer o partido
no pleito estadual de 1947. Jango, por exemplo, se filiara ao PSD
em 1945, mas também esteve entre os que se transferiram por
intermédio de Vargas.
Por fim, Bodea (1992) observa-se o ano de 1954 como um marco
para o trabalhismo gaúcho, posto que demarca o encerramento de
um ciclo em que predominou as lideranças de Vargas e Pasqualini no
partido. Após a morte do primeiro e a derrota eleitoral do segundo,
os herdeiros do trabalhismo gaúcho, Brizola e Jango, assumem a
direção máxima do partido, em que as bandeiras anti-imperialista
e reformistas marcariam o novo período de 1954 a 1964. Brizola
assumiria a liderança regional e Jango seria o expoente maior do
trabalhismo brasileiro. Faz-se necessário e oportuno também o
estudo de como esta transição foi percebida e influenciou os rumos
do partido e do trabalhismo capixaba. Cabe, então, apreender como
estava organizado e as formas de atuar do PTB no cenário político
capixaba antes e depois deste ciclo de formação e consolidação
rumando à fase de ressignificação da doutrina em que confluíram,
no caso gaúcho, as três correntes formadoras da legenda trabalhista.
Avançando ainda as leituras, tratando do ínterim de 1952 e
1954 em que João Goulart adquiriu papel de destaque no cenário
político brasileiro e trabalhista, Márcio Sukman (2014) opta por
uma abordagem que destaca a consolidação de Jango como uma das
maiores lideranças do país. Através da noção de trajetória social, o
trabalho propõe desmistificar a imagem frágil de um ex-ministro,
ex-vice-presidente e ex-presidente do PTB que o liderou por mais
de dez anos, constituindo um período de grande crescimento
para a agremiação. Assim, O surgimento de Jango no cenário
e PTB nacionais seria o início de um movimento de renovação
do trabalhismo, pautada por prática política de mobilização dos
trabalhadores, articulada por meio da estrutura sindical oficial, em
torno da melhoria das suas condições de vida e do bem-estar para a

228
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

classe laboral.
Na hipótese de Sukman (2014), a relação de Jango com os
trabalhadores perpassa por três faces distintas: ministro do Trabalho;
presidente de um partido político; e amigo dos trabalhadores. Assim,
o ator se mostrou um aliado e tornou-se uma referência de liderança
popular. O período de ascensão de Goulart no cenário político
nacional é identificado com o processo concomitante de rotinização
do carisma depositado em Vargas. Neste, Vargas tratou de transferir
seu poder excepcional para uma agremiação política, qual seja o
PTB, tendo como herdeiro de seu legado à pessoa de Goulart.
Tal processo, segundo Sukman (2014), seria dividido em
dois momentos. O primeiro diz respeito a formação de uma
organização ainda incipiente, através do protagonismo de líderes
secundários na sociedade e movimento sindical. Em seguida, a
rotinização se efetivaria através da dispersão do carisma, ou seja,
tais lideranças secundárias ganhariam uma espécie de legitimidade,
tendo independência e autonomia junto ao eleitorado, mas que,
entretanto, se apresentaria como herdeiras políticas do então chefe.
Entretanto, o processo de herança do carisma de Vargas
não fora algo tranquilo e fácil, posto que contou com oposições e
resistências dentro do partido, passou - no caso de Goulart - por
uma derrota eleitoral para o senado por Rio Grande do Sul em 1954.
Porém, contou também com os louros de sua eleição para a vice-
presidência do país em 1955.
Destarte, o trabalho do autor torna-se referência para se
investigar como foi assimilada e recebida pela seção capixaba a
entrada de Jango e novos atores, tal como Brizola, no leme do
trabalhismo. Cumpre analisar se este processo de rotinização do
carisma do chefe adquiriu profundidades suficientes para afetar o
partido num cenário político periférico, com atores comprometidos
com as elites agrárias e mercantis. Além disso, tornar-se-á relevante
perceber como foi a assimilação desse novo discurso reformista,
nacionalista e mobilizante imbuídos nas novas bandeiras do
PTB nacional, porém em um estado com as forças produtivas do

229
Conflitos e Contradições na História

capitalismo ainda pouco desenvolvidas, tal como com uma classe


operária ainda em formação e ambiente marcadamente rural com
predomínio de relações clientelísticas.

Conclusão
Em suma, as leituras teóricas e interpretativas fornecem
subsídios para se estudar o projeto político e prática trabalhista no
Espírito Santo, com vistas a investigar e analisar as congruências e
especificidades do trabalhismo e ambiente sociopolítico capixaba
em relação ao plano nacional.
Numa época em que o tradicionalismo figurava na sociedade
predominantemente agrária do Espírito Santo cumpre elucidar em
que medida um estado com as forças produtivas do capitalismo
ainda pouco desenvolvidas oferecia condições para assimilação e
desenvolvimento de um programa mais progressista de um partido
trabalhista, em especial, o PTB, que ocorreu durante o processo de
institucionalização do partido.
O PTB capixaba enquanto agremiação representante do
trabalhismo, num cenário de disparidades regionais e retórica
de nacionalismo no país, reforçou os aspectos tradicionais e a
instabilidade de projetos no Espírito Santo. Aventa-se, assim, que,
mesmo num período em que, em contexto nacional, os reformistas
esquerdizantes já mostravam seu vigor para hegemonia partidária
a partir da década de 50, a ideologia influenciava muito pouco nas
dissensões e debates entre as lideranças do trabalhismo capixaba,
fazendo com que bandeiras e agenda desta corrente política fossem
relegadas a segundo plano em solo capixaba.
Pensando nisto, partiremos da premissa de um Partido
Trabalhista Brasileiro assentado nacionalmente em bases urbanas.
Porém, abordaremos este partido em um estado marcadamente
agrário, em que as cisões e disputas facciosas giravam em torno
de questões muito mais pragmáticas e de cunho tradicional, que
em termos ideológicos, algo tributário a uma democracia que

230
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

se pretendia moderna. É através da análise das fontes escritas e


da percepção de época dos atores e testemunhas da época que
buscaremos as respostas para os problemas ora levantados.

Referências
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e sindicato em São Paulo (1945-1964). São Paulo: Brasiliense, 1989.
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do Sul. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1992.
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americano em discussão.In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo
e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001, p. 167-203.
CARDOSO, Lucian Rodrigues. Entre a raia miúda e o black
tié: a administração de Mario Gurgel na Prefeitura de Vitória (1957
– 1958). 2013. Monografia (Graduação em História) – Universidade
Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.
CARDOSO, Lucian Rodrigues. Aos amigos, a política! A
administração de Mario Gurgel na Prefeitura de Vitória (1957-
1958) sob a visão do petebista Luiz Buaiz. In: X Encontro Regional
de História da ANPUH-ES, 2014, Vitória. Anais do X Encontro
Regional de História da ANPUH-ES, 2014.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao
reformismo (1945-1964). São Paulo: Marco Zero, 1989.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Trabalhismo,
nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil. In:
FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e
crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167-203.
FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB
e cultura política popular, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
GOMES, Angela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo.

231
Conflitos e Contradições na História

São Paulo: Vértice, 1988.


PANEBIANCO, Angelo. Modelos de partido: organização e
poder nos partidos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PESSANHA, Elina G. da Fonte; MOREL, Regina Lúcia.
Classe trabalhadora e populismo: reflexões a partir de duas
trajetórias sindicais no Rio de Janeiro. In: FERREIRA, Jorge (Org.).
O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001, p. 167-203.
SUKMAN, Márcio André. A trincheira dos trabalhadores:
João Goulart, PTB e o Ministério do Trabalho (1952-1954). Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2014.

232
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Cairu na condição de Censor Régio:


contribuições para o fortalecimento do
Poder Real
Marcela Portela Stinguel1

José da Silva Lisboa nasceu na Bahia em 17 de Julho de 1756.


Foi estudar na Universidade de Coimbra e em 1779 se formou em
Direito Canônico e Filosófico. Retornou à Bahia em 1780 onde
foi nomeado ouvidor da Comarca de Ilhéus e também em 1782
professor de Filosofia Racional. Em 1793 retorna e Coimbra e em
1797 é nomeado pelo Príncipe Regente Deputado Secretário da
Mesa de Inspeção da Agricultura e Comércio da Bahia tendo assim
que retornar ao Brasil.
Visconde de Cairu foi uma figura emblemática: era um
extremo conservador político e um admirador do liberalismo
econômico. O brasileiro se norteou em Adam Smith quando o
assunto era economia e Edmund Burke quando se tratava do campo
político. Os ensinamentos de Smith e seu liberalismo eram muito
bem quistos pelo visconde bem como o conservadorismo de Burke
uma vez que era contra as mudanças que iam de encontro à ordem
social.
Relevante colocar que certamente os dois teóricos citados
acima contribuíram de forma decisiva na formação cultural do
brasileiro, contudo, não foram os únicos. Cairu foi influenciado
também pelos grandes clássicos, sobretudo ingleses, ou aqueles
que embora não fossem nascidos na Inglaterra, atuavam em campo
britânico. Nomes como David Hume, Jeremy Bentham e Thomas
Malthus foram amplamente mencionados em suas obras. Para o
brasileiro, eles representavam a superioridade naquele tempo.
A pátria dos Bacons, Newtons e Lockes tem o magistério do
Universo e a primazia da indústria, depois das composições
econômicas dos senhores David Hume, Jacques Stewart e Adam
Smith que, por sentença de conhecedores, não só emparelham,

1 Pós Graduanda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

233
Conflitos e Contradições na História

mas tem incontestável superioridade a todos que trilharam a sua


tão despenhada carreira que, ou conduz as Nações ao templo da
memória, ou aos antros da selvageria (LISBOA, 1956, p. 97).
Quando a Família Real esteve na Bahia em janeiro de 1808,
Lisboa foi um defensor das aberturas dos portos às nações. Devido
a sua influência foi nomeado professor de Economia Política e
convidado a seguir com a realeza para o Rio de Janeiro.
A vinda da Corte para o Brasil fez com que houvesse mudança
em vários aspectos. A abertura dos portos às nações amigas, o fim
do monopólio português, a instalação de fábricas dado o isolamento
português devido às ocupações do exército napoleônico no país
ibérico e a imprensa implantada uma vez que era necessária a
impressão de atos governamentais e a divulgação de notícias de
interesse da Coroa.
O advento da imprensa no Brasil não se deu em um vazio
cultural, mas já havia por aqui relação de transmissão. De acordo
com Marcos Morel (MARTINS; DE LUCA, 2008), a circulação de
palavras não se restringia aos letrados, mas ultrapassava as fronteiras
sociais. E foi dentro desse contexto que houve efetivação “[...] de
um espaço público de crítica quando as opiniões públicas assim
publicizadas destacavam-se dos governos [...]” (MARTINS; DE
LUCA, 2008, p. 30).2
O objetivo inicial da Impressão Régia datada de 13 de Maio
de 1808 era imprimir a legislação e papéis diplomáticos uma vez que
a Coroa Portuguesa havia se transferido para o Brasil. Somente em
27 de Setembro de 1808 o Desembargo do Paço se tornou o órgão
responsável pela censura no Brasil e em 02 de Março de 1821 houve
suspensão daquela com influência pela Revolução do Porto.
O Desembargo do Paço foi responsável pela liberação de
obras e se apresentava como um tribunal régio, porém eram os
2 Na presente obra, Marco Morel se atenta para o fato de que a “[...] circulação de
palavras – faladas, manuscritas ou impressas – não se fechava em fronteiras sociais
e perpassava amplos setores da sociedade que se tornaria brasileira, não ficava
estanque a um círculo de letrados, embora estes, também tocados por contradições
e diferenças, detivessem o poder de produção e leitura direta da imprensa” (2008,
p. 25).

234
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

anseios do Rei que conduziam o órgão, pois “[...] todo o sistema de


censura se apoiava integralmente na sua vontade e nos seus deveres
para com os súditos baseados em princípios e poderes sustentados
pelo absolutismo” (CARNEIRO, 2002, p. 98).
O recorte deste artigo será na época em que José da Silva
Lisboa foi um dos responsáveis pela Imprensa Régia do país. Em
24 de Julho de 1808 foi criada uma junta para administração régia
onde foram denominados José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu,
José Bernardes de Castro e Mariano Fonseca. Dado o forte apreço de
Dom João VI para com Cairu, ele foi nomeado por decreto em 27 de
Setembro 1808 Censor Régio da Impressão Régia.
A nação brasileira nasce e cresce com a imprensa. Uma explica a
outra. Amadurecem juntas. Os primeiros periódicos iriam assistir a
transformação da Colônia em Império e participar intensamente do
processo. A imprensa é, a um só tempo, objeto e sujeito da história
brasileira. Tem certidão nascimento lavrada em 1808, mas também
é veículo para reconstrução do passado (MARTINS; DE LUCA,
2008, p. 8).
Nos tempos da Colônia a polícia fiscalizava de maneira
severa as livrarias sobretudo aqueles que continham referência aos
temidos ideais franceses presentes nos livros advindos da Europa.
Com a abertura dos portos em 1808, tais livros entraram com mais
facilidade no país e certamente foram tomadas providências para
coibir a entrada.
A imprensa áulica na época da censura era valorizada devido
ao fato de que nessa época o Absolutismo já se encontrava em sua fase
de desgaste. Assim, a referida imprensa tinha como intuito enaltecer
esta forma de governo bem como rechaçar as ideias que não eram a
seu favor. Tem-se como exemplo a Gazeta do Rio de Janeiro, a Idade
de Ouro do Brasil, Variedade ou Ensaios de Literatura e O Patriota.
Haviam ainda os jornais que circulavam fora do Brasil tidos como
exemplo também da imprensa áulica: Reflexões sobre o Correio
Brasiliense e O Investigador Português.
Os censores se tratavam de
Homens esclarecidos que defendem as ideias da Ilustração para
organização de uma nova sociedade, que, entretanto, não aceitam

235
Conflitos e Contradições na História

uma revolução nos moldes franceses. As reformas pautadas na


razão eram bem vistas para se evitar os perigos de uma convulsão
social que poderia abalar os alicerces tradicionais da sociedade
luso-brasileira, idealizada sobre a fé e a razão (NEVES, FERREIRA,
p. 115).
O que devia ser censurado era o que pudesse abalar a religião
e a moral. Eram elaboradas listagens com os livros bem como as
características das obras que deviam ser censuradas. Os critérios para
que houvesse a interdição se baseavam, sobretudo, eram religiosos,
morais e políticos.
Contudo, esse trabalho de censura ocorria de forma
desorganizada e morosa. Não haviam critérios estabelecidos para o
procedimento da censura.
A confecção das listas pela alfândega era, por vezes, confusas
e incompletas. Além disso, era a tarefa do censor extremamente
dificultosa, pois “[...] a falta de critérios claros, a dificuldade de acesso
ao Index de livros proibidos e as listas mal elaboradas desencadeavam
não apenas dúvidas, mas também desavenças e disputas entre os
homens de confiança do monarca” (CARNEIRO, 2002, p. 104).
José da Silva Lisboa era considerado um censor zeloso.
Mesmo que a obra observada por ele não apresentasse conteúdo
possivelmente perigoso, se o autor, por ventura, fosse admirador de
autores subversivos, tal obra seria proibida de circular em território
brasileiro. Exemplo disso foi História da Europa Moderna de
Bonaville. Este escritor admirava escritos de Voltaire e Rousseau e
mesmo a obra citada não apresentando teor contra a religião e o
bom andamento do Estado, foi censurada pelo futuro Visconde de
Cairu.
Os pedidos de impressão solicitados ao Desembargo do Paço,
apesar de não serem muitos, também eram analisados com rigor.
De fato, havia o medo de conter premissas dos ideais franceses e
quando haviam estas, eram solicitados aos escritores que mudassem
o conteúdo dos escritos para conseguir a solicitação para impressão.
Outra atuação de Cairu como censor régio se deu em 1818

236
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

quando se deparou com duas obras suspeitas: Histoire Philosophique


e Histoire du Brésil. A primeira obra era proibida, pois podia ser de
Raynal. E a segunda constava críticas à Coroa e à sua política.
Ainda em 1818, o mesmo censor barrou a obra Des Colonies
do autor De Pradt isto porque o livro era contra a escravidão, havia
projetos de Napoleão e não se mostrava favorável ao estabelecimento
da Coroa na América.
A religião era um dos norteadores da censura e essa tinha o
papel de defensora da fé. José da Silva Lisboa em 1819 se atentou para
uma obra de Thomas Chalner intitulada Revelação Cristã. Tamanha
foi sua preocupação que solicitou que o referido livro fosse enviado
para ele em mãos para que assim pudesse ser averiguado.
Visconde de Cairu se tratava de um homem erudito e
juntamente com Dom João VI almejava resoluções dos problemas
brasileiros fazendo uso de medidas pombalinas.
Na condição de um dos responsáveis pela Impressão Régia,
fez valer de seus poderes e publicou várias obras. Esses escritos
refletiam a linha na qual Cairu se apoiava: o Liberalismo econômico
e conservadorismo político.
Na ocasião, o Estado de fato abrangia todo o espaço político
e Cairu, como defensor árduo da Monarquia, refletia e exaltava essa
estrutura.
Cairu quando esteve à frente da Imprensa Régia publicou 14
livros sobre diversos assuntos.3
I) Observações sobre o comércio franco do Brasil (1808);
II) Reflexões sobre o comércio de seguros (1810);
III) Refutações das reclamações contra o comércio inglês,
extraídas de escritores eminentes (1810);
IV) Razões dos lavradores do Vice-Reinado de Buenos Aires

3 Os livros citados não foram as únicas publicações de José da Silva Lisboa na


época em que foi Censor Régio. Foi publicado pela Impressão Régia O Conciliador
do Reino Unido, jornal composto por sete números datado de 01/03/1821 a
25/04/1821.

237
Conflitos e Contradições na História

para a franqueza do comércio com os ingleses contra a representação


de alguns comerciantes e resolução do governo (1810);
V) Observações sobre a franqueza de indústria e estabelecimento
de fábricas no Brasil (1810);
VI) Observações sobre a posteridade do Estado pelos liberais
princípios da nova legislação do Brasil (1810);
VII) Memória econômica sobre a franqueza do comércio dos
vinhos do Porto (1812);
VIII) Ensaio sobre o estabelecimento de bancos para o progresso
da indústria e riqueza nacional (1812);
IX) Extrato das obras políticas e econômicas de Edmundo
Burke (1812);
X) Memória da vida pública de Lord Wellington (1815);
XI) “Apêndice” à Memória da vida pública de Lord Wellington
(1815);
XII) Sinopse da legislação principal do Sr. D. João VI pela
ordem dos ramos da economia do Estado (1818);
XIII) Memória dos benefícios políticos do governo del rei, nosso
senhor D. João VI (1818);
XIV) Estudos do bem comum e economia política (1820).
Serão analisados cinco livros acerca da linguagem política4
utilizada por Visconde de Cairu de forma a engradecer a figura real
e também a Monarquia: Observações sobre a franqueza de indústria
e estabelecimento de fábricas no Brasil, Observações sobre o comércio
franco do Brasil, Extrato das obras políticas e econômicas de Edmundo
Burke, Reflexões sobre o comércio de seguros e Razões dos lavradores
do Vice-Reinado de Buenos Aires para a franqueza do comércio com
os ingleses contra a representação de alguns comerciantes e resolução
4 Quentin Skinner (POCOCK, 2003) alega a importância de se resgatar as
intenções do autor quando da elaboração de seus textos. Para tanto, o historiador
deve se ater não somente em decodificar tais intenções, mas também se familiarizar
com o contexto linguístico da época. J. G. A. Pocock (2003) coloca que o historiador
deve analisar em qual situação o autor se encontrava bem como o que ele pretendia
tornar legítimo ou invalidar.

238
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

do governo.
I) Observações sobre a franqueza de indústria e estabelecimento
de fábricas no Brasil: os comerciantes portugueses e brasileiros
sabiam que com a abertura dos portos haveria uma diminuição dos
lucros. Assim, tentaram “[...] manter e obter privilégios que lhes
garantisse a posição de proeminência no Brasil” (FARIA JÚNIOR,
208, p. 290). Nessa obra, Silva Lisboa critica esses privilégios. E o
fim desses proporciona, de acordo com Cairu, o desenvolvimento
e riqueza da nação. O brasileiro escreveu esta obra Cairu quando
gozava de sua condição como estadista e interventor da política
econômica do Brasil. Na citada obra, o escritor enobrece o governo
na seguinte passagem:
Como é plausível e nobre o pensamento de se mostrar o Governo
sempre liberal e generoso em adiantar a indústria do povo, e
favorecer com especialidade aos que pretendem empreender tarefas
difíceis, e dispendiosas (LISBOA, 1999, p. 37).
II) Observações sobre o comércio franco do Brasil: nesta
obra Cairu desenvolve a ideia de que o governo francês resultado
da Revolução Francesa age de forma irracional frente a assuntos
econômicos tomando como base as reformas estatais. Observando
o Brasil e dada a concorrência com produtos estrangeiros (leia-
se ingleses), os comerciantes que antes da abertura já atuavam no
Brasil, deveriam abaixar seus preços para se manterem no mercado.
Procurava desmistificar a ideia de que a abertura traria prejuízos ao
mesmo tempo que reafirmava que os interesses do Estado deveriam
se sobrepor aos interesses individuais.
A figura do Rei foi amplamente elevada como pode-se notar
na seguinte passagem:
Por isso suplico a V.A.R. a graça de publicar, sob o Amparo de
seu Augusto Nome, as presentes Observações sobre a primeira, e
magnífica obra com que V.A.R. Foi servido honrar a minha Pátria
(que tem nome fausto, e alusivo a tão grande sucessos). Pondo aí o
sólido, e profundo alicerce, ou, para melhor dizer, a Pedra Angular
do Edifício da Civilização, e Novo Império, que declarou vir criar,
pois estou convencido, que a franqueza do Comércio, regulada
pela Moral, Retidão, e Bem Comum, é o princípio vivificante da
ordem social, e o mais natural, e seguro meio da prosperidade

239
Conflitos e Contradições na História

das Nações. Animei também a este empenho, porque V.A.R. tem


protegido benignamente os meus trabalhos, que tenho dado a luz
sobre os Princípios do Direito Mercantil, e Economia Política, onde
já expressei os meus sentimentos patrióticos, e ardentes desejos que
tenho da glória da V.A.R., e que aqui reproduzo, na esperança de os
ver completamente realizados na rápida, e brilhante carreira, com
que V.A.R. avança a imortalidade de seu nome (LISBOA, 1808, [?]).
III) Extrato das obras políticas e econômicas de Edmund
Burke: Cairu neste livro traduz cinco textos de Edmund Burke, o
pai do conservadorismo moderno. Ainda no prefácio deste livro de
autoria de José da Silva Lisboa, consta críticas à Revolução Francesa
onde havia o prevalecimento de “[...] paixões animais e destruição
da ordem estabelecida” (LISBOA, p. 4). O brasileiro considerava
Burke o principal antagonista da Seita Revolucionária.
No prefácio Cairu coloca que o inglês em seus escritos aborda
que somente a “[...] doce influência da verdadeira Religião, e o
progresso da cultura do espirito, podem diminuir erros e vicias dos
homens, e fazer durar e florescer os Impérios” (LISBOA, 1812, p. 6).
IV) Reflexões sobre o comércio de seguros: Logo nos primeiros
parágrafos há exaltação da figura do Rei.
Ajunte-se pois mais este esmalte é Joia verdadeiramente Soberana,
com que SUA ALTEZA REAL brindou o Brazil [sic], apenas
honrou este novo Mundo com SUA REAL PRESENÇA. (LISBOA,
1810, p. 5)
A obra discorre de forma a colocar o comércio de seguros
como recompensatório. Se atenta para os seguros navais de forma a
expor as utilidades das companhias de seguros para manutenção das
fortunas dos particulares.
V) Razões dos lavradores do Vice-Reinado de Buenos Aires para
a franqueza do comércio com os ingleses contra a representação de
alguns comerciantes e resolução do governo: Nesta obra, Cairu coloca
que a Argentina se encontrava numa situação em que a receita da
Fazenda se esgotara e a saída, portanto, era propiciar a entrada em
seu mercado de produtos ingleses e exportar os argentinos.
A exemplo de outras obras, também há exaltação real:
Tive porém mais forte motivo para este trabalho; e é, pelo paralelo

240
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

entre os Regulamentos diminutos e vacilantes das outras Nações,


e o Majestoso, e verdadeiramente Imperial Sistema Econômico
Político, que SUA ALTEZA REAL, O PRINCIPE REGENTE Nosso
Senhor, Se Dignou adoptar neste Estado, manifestar-se, a todas as
luzes, o incomparável benefício que gozamos [...]. (LISBOA, 1810,
[?]).
Os livros de José da Silva Lisboa listado acima, em sua
maioria, contavam com o selo “Com Licença de S.A.R.”, ou seja,
Com Licença de Sua Alteza Real. Dessa forma, deveria contar com
a aprovação do Governo para ser publicado. Tratavam de assuntos
de Economia Política e “[...] encontrava-se também a mão pesada
do Estado: os livros dessa disciplina eram editados como se ela fosse
parte integrante dos discursos do poder do Estado” (ROCHA, 1993
p.51).
Importante frisar que as obras de Cairu foram relegadas
por diversos historiadores por considerarem-na de pouco valor.
Alegavam que José da Silva Lisboa se preocupava de forma
prioritária na narrar somente os fatos heróicos da Realeza. Contudo,
deve-se recorrer à historiografia, pois, de acordo com Valdei Lopes
de Araújo
[...] não como quem busca a justificação para nossa própria
ciência, mas procurando reconstruir os contextos específicos
nos quais ela fazia sentido e atuava como força história. A partir
desse deslocamento, a história da historiografia tem deixado de
ser uma atividade complementar e justificativa para se tornar uma
importante ferramenta no conhecimento das realidades históricas
(NEVES, 2011, p. 77).
Estudar Visconde de Cairu, quer concorde ou não com
seu posicionamento político e econômico se faz importante, pois
permite compreender o seu discurso que ilustrava uma ampla
defesa do constitucionalismo através de um soberano monárquico e
a divisão dos poderes com deputados eleitos pelo povo.

Referências
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.

241
Conflitos e Contradições na História

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Minorias silenciadas:


História da censura no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,
FAPESP, 2002.
FARIA JÚNIOR, Carlos de. O pensamento econômico de
José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú. 2008. Tese (Doutorado
em História) – Programa de História Econômica, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2008.
LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco
do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1808.
LISBOA, José da Silva. Razões dos lavradores do Vice-
Reinado de Buenos Aires para a franqueza do comércio com
os ingleses contra a representação de alguns comerciantes e
resolução do governo. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1810.
LISBOA, José da Silva. Reflexões sobre o comércio de
seguros. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1810.
LISBOA, José da Silva. Extrato das obras políticas e
econômicas de Edmundo Burke. Rio de Janeiro: Imprensa Régia,
1812.
LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da
indústria, e estabelecimento de fábricas no Brasil. Brasília: Senado
Federal, 1999.
LISBOA, José da Silva. Princípios da Economia Política. Rio
de Janeiro: Pongetti, 1956.
MARTINS, Ana Luiza; DE LUCA, Tania Regina (Org.).
História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.
MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O discurso
autoritário de Cairu. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2000.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das et al. (Org.). Estudos
de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: FAPERJ: FGV, 2011.
NEVES, Lucia Maria Bastos P. das; FERREIRA, Tânia Maria
T. Bessone da C. O medo dos “abomináveis princípios franceses”:

242
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

a censura os livros nos inícios do século XIX no Brasil. Acervo


Nacional, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 113 – 119, jan. / jun. 1989.
Disponível em: < http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.
br/media/omedo.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2016.
POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo:
EDUSP, 2003.
QUINZO, Maria D’Alva Gil; WEFFORT, Francisco C. Os
clássicos da política: Burke, Kant, Hegel, Tocqueville, Stuart Mill,
Marx. 7. ed. São Paulo: Ática, 1998.
ROCHA, Antonio Penalves. A difusão da Economia Política
no Brasil entre fins do século XVIII e início do século XIX. Revista
de Economia Política, São Paulo, v. 13, n. 4 (52), p. 47 – 57, out. /
dez. 1993.
SILVA, Bruno Diniz. Linguagens políticas em José da
Silva Lisboa (1808-1830) Caderno de resumos & Anais do 2º.
Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica
do historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto:
Ed. UFOP, 2008. Disponível em: <http://www.seminariodehistoria.
ufop.br/seminariodehistoria2008/t/diniz.pdf>. Acesso em: 11 jun.
2016.
SMITH, Adam; MALTHUS, T. R.; RICARDO, David. A
economia clássica: textos. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1978.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

243
Conflitos e Contradições na História

244
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

A Vigilância da Polícia Política Sobre os


Professores da Rede Estadual de Ensino do
Espírito Santo no Ano de 1979
Márcio Gomes Damartini1

O presente artigo analisará a vigilância da Polícia Política


Capixaba sobre os trabalhadores em educação da rede estadual
de ensino do Espírito Santo a partir da análise da documentação
disponibilizada no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
(APEES).
Esse processo de vigilância iniciou-se em 1979, ano da entrada
de Eurico Rezende no Governo do Estado, situação que não significou
melhoria para o magistério capixaba. De acordo com (SOARES
2005, p. 183), se as esperanças dos professores eram reduzidas no
Governo anterior, reduziram-se mais ainda, principalmente porque
o novo chefe do Executivo, quando era líder do Governo no Senado,
possuía linha conservadora, posicionando-se contra a Constituinte
e a Anistia, ainda que tenha discordado do deputado estadual Edson
Machado quando este acusou a presidente da União dos Professores
do Espírito Santo (UPES) Myrthes Bevilacqua de ser subversiva.
A aproximação do Governo com o magistério foi tentada
através do Secretário de Educação, Stélio Dias, contudo alguns
episódios deixaram claro para os trabalhadores em educação que
a distância entre Eurico Rezende e o ex-governador Élcio Álvares
era somente no discurso. A “manutenção” do atraso no pagamento
dos professores contratados, os monitores – que para tentar receber
em dia fizeram inúmeros movimentos grevistas – é um exemplo da
semelhança. Outro ponto que os unia era o descumprimento da lei.
O ex-governador afirmara que as leis são muito bonitas no
papel, mas impossíveis de serem cumpridas. Já o governador em
exercício declarou que “acreditava na morosidade da Justiça”.

1 Professor da Rede de escolas públicas da Secretaria Estadual de Educação do


Espírito Santo.

245
Conflitos e Contradições na História

Para piorar ainda mais sua situação Eurico Rezende não atendeu a
principal reivindicação feita pelos professores: o reajuste salarial.
Segundo (SOARES, 2005, p. 183), a manutenção do tratamento
dado ao magistério pelo Poder Público fez a UPES trilhar o mesmo
caminho da Confederação dos Professores do Brasil (CPB), ou seja,
afastar-se dos governos militares devido ao não cumprimento das
promessas feitas aos docentes. A presidente da entidade nacional,
Telma Cançado, apontava que a greve, além dos resultados
financeiros e sociais, traria benefícios à sociedade. Portanto, as
paralisações dos professores seriam ”justas e necessárias”.
No caso do Espírito Santo, essa movimentação dos
trabalhadores em educação, e seu consequente afastamento do
Governo, acabaram levando o magistério a ficar em Assembleia Geral
Permanente em 1978, uma forma mais incisiva de cobrar os direitos
que já vinham sendo negados há vários anos. Essa movimentação,
somada à ameaça de greve, colocou o Poder Executivo numa
“saia-justa”, visto que a luta dos professores capixabas extrapolou
as fronteiras do Estado. Mantendo o nível da tensão, o magistério
continuou se reunindo em assembleias, contudo não mais a
permanente, mais as realizadas no Colégio do Carmo. Todo esse
processo de luta chamou a atenção das autoridades e o magistério
passou a ser vigiado pela Polícia Política Capixaba.

O ano de 1979 e o início da vigilância ao magistério capixaba


A maioria dos documentos arquivados pelos agentes da
Polícia Política durante o período que antecedeu a primeira grande
assembleia dos professores da rede estadual de ensino do Espírito
Santo, que aconteceu no dia 30 de abril de 1979, no Colégio do
Carmo, teve origem nos jornais de circulação diária. Em relação à
rotina de vigilância, o roteiro foi o traçado por (FAGUNDES, 2012,
P.17): recolhimento de recorte de jornais e panfletos, bem como a
realização e “socialização” dos relatórios das assembleias entre os
órgãos da repressão, inclusive fora do Estado. Os documentos eram
organizados em pastas, para facilitar a identificação.

246
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

O primeiro documento2 coletado pelos agentes é datado do


dia 21 de março: uma reportagem do jornal O Diário, com o título:
“UPES pede que SEDU recupere escola”. A matéria destaca que
um grupo de pais, liderados pela presidente da UPES, entregou
ao Secretário de Educação, Stélio Dias, um documento solicitando
a restauração do prédio escolar localizado em Porto de Santana,
Cariacica. Aproveitando o ensejo, Myrthes Bevilacqua destacou que
o magistério entregaria ao Secretário uma pauta de reivindicações
da categoria. Conforme destacado por (FAGUNDES, 2012, p. 16)
os documentos3 coletados pelos agentes durante aquele mês tiveram
como tema a luta dos professores pelos seus direitos, principalmente
a exigência de melhores salários. Os outros pedidos constavam
no documento que a UPES sempre entregava aos Governadores
no início dos seus mandatos bem como as outras autoridades: o
Memorial.
A reportagem4 do jornal A Tribuna, de 31 de março,
demonstra que o magistério realizou uma assembleia no dia anterior,
e o principal encaminhamento foi a entrega do Memorial aos
Secretários de Estado da Educação, da Fazenda, da Administração
e do Planejamento. Os presentes também deliberaram que haveria
um novo encontro dos docentes, no dia 30 de abril, para analisar
as soluções dadas pelo Governo. Como a movimentação dos
professores efetivos ainda não era intensa, não foi dada nenhuma
ordem de serviço para que os agentes fossem vigiar os participantes.
Contudo, os monitores já se movimentavam para ter não somente
os salários em dia, mas também outros direitos.

2 O Diário, 21/03/1979. p. 171. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.


Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
3 A Gazeta 23/3/1979 e a Tribuna, 31/03/1979. p. 172 e 173. Arquivo Público
do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações
dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de
1979/1980.
4 A Tribuna, 31/03/1979. p.174. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

247
Conflitos e Contradições na História

As matérias5 dos jornais A Tribuna e A Gazeta, do dia 6 de


abril, mostram que o processo que exigia a assinatura da carteira de
trabalho para um grupo de 48 professores contratados, com efeito
retroativo a época em que ingressaram no Estado, podia ser julgado
à revelia, caso não houvesse resposta acerca dos questionamentos
feitos pelos ingressantes num prazo máximo de 30 dias. Essa forma
de luta, jurídica, iria posteriormente juntar-se à luta política com
a deflagração do movimento grevista por parte desses docentes,
mesmo sem apoio explícito da UPES e sem contar com a anuência dos
efetivos. No decorrer do mês de abril, as reportagens6 destacaram as
reuniões realizadas pelo Secretário de Educação e de Administração
para responder aos pedidos feitos pelo magistério.
Concomitante a essas reuniões, os docentes capixabas através
da UPES entregaram ao secretário Stélio Dias, no dia 20 de abril,
um documento7 solicitando a extensão de carga horária para os
professores efetivos e contratados. Contudo, diante da divulgação,
através do jornal A Gazeta de 26 de abril8, de que o Governo do
Estado não estipulara o piso salarial para professores ativos e
inativos, fez a UPES admitir que greve poderia ocorrer na segunda
feira.9
A resposta do Governo às reivindicações do magistério foi
5 A Tribuna, A Gazeta, O Diário 06/04/1979. p.175 a 177. Arquivo Público
do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações
dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de
1979/1980.
6 A Gazeta 07/04/1979. 12/04/1979. Jornal da Serra 16/04 a 21/04/1979. A
Tribuna p.178 a 183. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção:
DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do
Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
7 Carta ao Secretário de Educação p.01 a 04. 20/04/1979. Arquivo Público do
Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações
dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de
1979/1980.
8 A Gazeta. 26/04/1979, p. 185. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
9 A Gazeta. 27/04/1979, p. 186. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

248
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

dada através de um longo documento10, com cerca de 30 páginas,


entregue ao magistério em 30 de abril e assinados pelos secretários
de Educação Stélio Dias, de Administração e Recursos Humanos,
Marcelo Antônio de Souza Basílio, de Planejamento Arlindo
Vilaschi Filho e da Fazenda, Orestes Secomradi Soneghet. Para essa
assembleia o governo não mandou somente os secretários, já que
uma considerável estrutura foi montada para vigiar os professores,
revelando assim o modus operandi da Polícia Política, que neste
caso não funcionou a contento.

A Assembleia do Dia 30 e seus Desdobramentos


Baseado nas pesquisas de (FAGUNDES, 2012, p. 17), podemos
vislumbrar a rotina dos agentes do Departamento de Ordem Política
e Social (DOPS) para vigiar os professores reunidos em assembleia.
Primeiramente, foi aberta uma pasta11 para abrigar o relatório e os
panfletos referentes ao dia 30 de abril. Na capa estava carimbado
termos como “confidencial”, ”ação rotineira“, conforme destacou o
autor. Outro ponto que chama atenção e faz parte do modus operandi
dos agentes é a linguagem com a qual se referem às pessoas vigiadas,
neste caso, o termo “elemento”.
De acordo com o descrito no relatório12, foi determinado
pelo secretário estadual de Segurança Pública, general José Parente
Frota, a vigilância da assembleia que, nesse caso, foi realizada por
uma equipe de agentes do DOPS chefiada pela comissária Maria da
Penha e uma equipe do SII (Serviço de Investigação e Informações),
10 Resposta do Governo ao Memorial. 27/04/1979. P. 05 a 35. Arquivo Público
do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações
dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de
1979/1980.
11 Pasta para arquivo do relatório da Assembleia de 30/04/1979 e 01/05/1979.
P.36. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES.
Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo,
ocorridas nos anos de 1979/1980.
12 Relatório da Assembleia de 30/04/1979 e 01/05/1979. P.38-40. Arquivo
Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/
Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas
nos anos de 1979/1980.

249
Conflitos e Contradições na História

chefiada pelo escrivão Valdir Xavier. Os agentes deveriam se infiltrar


entre os professores para detectar possíveis elementos estranhos à
classe. Conforme o relatório, houve a descoberta de pessoas que não
pertenciam ao magistério capixaba, com destaque para o ”elemento“
conhecido como professor Tadeu. O grande problema, segundo
(SOARES, 2005, p. 184), foi que o agente policial Jones Custódio de
Paula, que estava responsável por fotografar o evento, foi descoberto
pelos organizadores da assembleia.
Conforme nos aponta (HORTON; HUNT, 1980, p.146) no
processo de institucionalização, ou seja, no estabelecimento de
rotinas padrões e procedimentos para tornar uma ação previsível
e rotineira é essencial o elemento humano, pois as organizações
funcionam mais suavemente quando podiam atrair pessoal
competente. Algumas vezes se viam prejudicadas por elementos
que não se ajustavam aos papéis que lhe eram atribuídos. Esse
“desajuste”, que ocorreu nessa assembleia, comprometeu toda a
operação, pois um dos pontos essenciais para o êxito da operação, o
sigilo, foi comprometido.
Os organizadores das assembleias do magistério designavam
pessoas que pudessem identificar pessoas que não pertenciam à
categoria. Com a descoberta o professor Tadeu, conforme o relato
tentou tomar a máquina do agente. O deputado estadual Dilton
Lírio e o assessor jurídico da UPES, Joaquim Silva, tentaram fazer o
fotógrafo entregar o filme. Como a situação tendia a se agravar, um
dos chefes da operação, Valdir Xavier, teve que intervir para que o
fotógrafo não sofresse nenhum tipo de agressão.
De acordo com (SOARES, 2005, p. 183), como
encaminhamento da assembleia do dia 30, que contou com a
presença do secretário de Educação Stélio Dias, os três mil professores
decidiram ficar em Assembleia Geral Permanente, visto que o índice
de reajuste salarial de 40% foi considerado insatisfatório. Excetuando
os docentes efetivos, que buscavam um índice maior de reajuste e
constituíam a maior parte dos associados da UPES, havia cerca de
13.000 monitores que pressionavam tanto por questões salariais

250
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

como também pelo aumento do número de vagas no concurso de


ingresso, visto que a quantidade de 2080 cargos não contemplava
nem 20% dos professores contratados. Conforme o relatório datado
de 01 de maio pelos agentes, foi marcada uma reunião para dar
prosseguimento à assembleia, ação que também teve vigilância dos
agentes da repressão.
Como destaque no relato da atividade, os agentes identificaram
a presença do professor Tadeu, “elemento” causador do incidente
do dia anterior. Como ele estava sendo alvo de observação pelo
DOPS, foi solicitado pelo delegado Adão Rosa sua condução ao
cartório do órgão para averiguar e esclarecer sua participação na
assembleia, visto que não era pertencente ao magistério capixaba.
Segundo o mesmo relato, o “elemento” foi identificado como
Benedito Tadeu César, natural de São Paulo, morando em Vitória
há dois anos, professor de sociologia da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), tendo como grande motivação, de acordo
com os agentes, insuflar os docentes da rede estadual para realização
da greve, sendo que, após os esclarecimentos, foi liberado. Na pasta
que consta o relatório estão anexados panfletos13 apreendidos no dia
da manifestação. Finalizando a operação em 03 de maio de 1979,
o delegado do DOPS enviou ao Secretário de Segurança Pública
todo o material da operação.14 Dando continuidade às atividades da
Assembleia Geral Permanente, o magistério capixaba realizou um
evento no dia 5 de maio.
Segundo o relatório15 assinado pelo chefe da Assessoria
Técnica para Informações e Contra Informações (ATICI), José Pio
Lemos, a assembleia foi realizada no Colégio do Carmo, que ficou
13 Panfletos, p. 52 e 53. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
14 Ofício de encaminhamento ao Exmo. Sr. Secretário de Estado da Segurança
Pública. 03/05/1979. P.54. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/
Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
15 Relatório da Assembleia de 05/05/1979. P.58. Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

251
Conflitos e Contradições na História

com as dependências quase todas tomadas. O assunto principal do


encontro – a deflagração da greve, caso o Governo não concordasse
em estabelecer um teto mínimo de 6000 cruzeiros para o magistério
– não foi discutido. De acordo com o relatório, os professores que
usaram o microfone deixaram claro certo receio em participar
do movimento grevista, com medo de represálias que poderiam
acontecer. No final do relato foi destacado que se o Governo, até o
dia 10, não atendesse as reivindicações, seria deflagrada a greve. Na
pasta, na qual foi arquivado o relatório, constavam documentos16
da UPES conclamando os professores, que não foram à reunião,
para participarem da assembleia seguinte, prometida para dia 10 de
maio e tendo a votação sobre a greve como pauta principal. Devido
à convocação feita no último encontro, esta assembleia foi uma das
mais tensas realizadas pelo magistério, inclusive com a presença
de centenas de alunos fora do local do evento apoiando a luta dos
professores. A forma como se comportaram os órgãos da segurança
pública nessa ocasião acabou ocasionando um atrito entre eles.
Conforme relatório17, a assembleia, realizada no mesmo local
da anterior, iniciou-se às 14:30h e terminou às 17:45h. Devido à
eminência da greve, os ânimos estavam extremamente exaltados,
inclusive com divergências em relação à postura da presidente
Myrthes Bevilacqua Corradi, como ocorreu na fala do segundo
orador, o professor João Carlos Simonetti, que conclamou o
magistério para a greve. Segundo o relato, neste momento, devido
à exaltação dos ânimos, a presidente da UPES perdeu o controle
dos trabalhos. Contudo, o momento mais tenso ainda estava por
vir, principalmente devido à ação da Polícia Militar fora do local da
assembleia.
Segundo descrito no relato do agente, para combater a algazarra
16 Cartas aos professores. 59-63. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
17 Relatório da Assembleia de 10/05/1979. P.64-66. Arquivo Público do
Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações
dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de
1979/1980.

252
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

de um grupo de alunos, a PM comandada por um cabo lançou gás


lacrimogêneo em direção aos estudantes, o que causou uma grande
correria. Percebendo o clima pesado, a presidente Myrthes pediu aos
professores que permanecessem no local, “pois havia polícia lá fora,
e já havia um aluno machucado no hospital devido à ação policial”.
Dando continuidade aos trabalhos, a presidente solicitou que todos
se colocassem de pé e cantassem o Hino Nacional. Na sequência, os
oradores continuaram a exigir a greve. Myrthes pediu que houvesse
uma salva de palmas para os alunos que apoiavam o movimento e,
em seguida, todos rezaram o Pai Nosso. A presidente destacou que
a estratégia utilizada foi para evitar que a situação saísse do controle
e houvesse gente machucada. “Tive que pensar numa saída, então
comecei a cantar e rezar. Estava na mesa e havia confusão em todo o
lugar. Graças a Deus evitei uma tragédia”.
O professor Júlio Carlos de Oliveira, de Itapemirim,
organizador e incentivador da participação dos professores do seu
município nos eventos promovidos pela UPES, pegando carona em
caminhão de carvão e “comendo o que dava”, estava presente nesta
assembleia. “O clima ficou muito pesado quando a polícia lançou o
gás lacrimogêneo. Só não houve uma tragédia devido à atuação das
pessoas que conduziam os trabalhos”. A solução para acalmar os
ânimos funcionou com os efetivos, mas não com os monitores.
De acordo com (SOARES, 2005, p. 184), os professores
contratados, mesmo sem o apoio da diretoria da UPES, mas
contando com a solidariedade dos alunos que estavam fora do local
do evento, declararam-se em greve. O “resultado” da assembleia
também não agradou aos agentes que fizeram o relatório devido à
ação truculenta por parte da PM. Na parte final do documento, com
o subtítulo “ação policial”, ficou explicitado esse descontentamento.
Segundo o relato, a ação dos policiais lançando grande
quantidade de gás lacrimogêneo em frente ao Colégio do Carmo na
direção dos estudantes causou um grande pânico, visto que o gás
chegou ao interior do auditório, gerando um princípio de tumulto e
grande crítica à ação do organismo policial por parte dos professores.

253
Conflitos e Contradições na História

O documento destaca ainda que essa medida serviu para desgastar


os órgãos de segurança pública, que deveriam se limitar a observar
e levantar os elementos mais exaltados sem qualquer intervenção
nos trabalhos, como havia determinado o secretário de Segurança
Pública.
Como os professores efetivos não paralisaram suas atividades,
a vigilância do DOPS voltou-se para os monitores, que então
passaram a pressionar o Governo não somente na justiça, mas
também através da greve.

A Vigilância aos Monitores


De acordo com a reportagem publicada no Jornal A Posição,
na edição que circulou de 12 a 19 de maio, o assessor jurídico da
UPES, Joaquim Silva, fez a defesa de um piso mínimo de CR$
6.000,00 (seis mil cruzeiros) para o magistério fazendo críticas
severas à ingerência política na educação. Contudo, a coragem que
sempre marcou o assessor da UPES não foi assumida pelos efetivos,
pois, mesmo sem conseguirem o reajuste que queriam, voltaram para
a sala de aula com medo do que poderia acontecer. Por conseguinte
quem pressionou de forma mais incisiva a União dos Professores
e demandou jurídica e politicamente contra o Governo foram os
monitores, o que acabou levando os órgãos de repressão a redobrar
a atenção sobre esses profissionais.
No documento intitulado Nota de Repúdio18, os contratados
faziam pesadas críticas ao Governo, acusando-o de não reconhecê-
los. Se auto-intitulavam “párias da educação”, não admitindo
mais serem joguetes de políticos interessados somente em votos,
solicitando ainda apoio dos professores efetivos. Como esse apoio
não veio, os monitores passaram a organizar sua luta e a pressionar
a UPES para que desse apoio ao movimento, como aconteceu
na assembleia do dia 11 de maio, ação destacada pelos agentes

18 Nota de Repúdio. p. 70. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.


Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

254
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

no relatório do dia 21 de maio, com o título: “Movimento” de


Professores e Monitores - UPES”19. Como foi exigida identificação,
os agentes não puderam ter acesso à assembleia, sendo que, de acordo
com o relato, a maioria das 1500 pessoas presentes eram professores
monitores que possuíam o apoio dos estudantes da rede estadual e
da UFES, pois boa parte deles eram ex- alunos da universidade.
Para cobertura da reunião do dia 12, que aconteceu no Edifício
Caparaó, dois agentes foram designados. De acordo com o Jornal A
Tribuna20, nesse encontro os monitores debateram se aceitariam a
proposta de aumento oferecida pelo Governo e o número de vagas
oferecidas no concurso de ingresso. Segundo o relatado pelo agente,
houve um grande tumulto por parte dos próprios monitores, o que
prejudicou os trabalhos. Um dos agentes foi assediado e teve que se
retirar do local para evitar problemas.
No entanto, de acordo com a matéria21 “Monitores terminam
greve estabelecendo exigências”, publicada no jornal A Gazeta,
de13 de maio, ocorreu o tumulto na reunião devido a presença do
líder da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) na Assembleia
Legislativa, deputado Lúcio Merçon, que tentava justificar a falha
do Governo em não colocar o aumento dos monitores no projeto
de lei enviado à Assembleia Legislativa, sendo ironizado pelos
presentes quando pegava o microfone tentando justificar a ação
do Poder Executivo . Para dar término ao movimento paredista, os
presentes votaram a favor da proposta de retorno às aulas, aceitando
os 46% oferecido pelo Governo, contudo exigindo que não fossem
punidos e reivindicando ainda o aumento de mais 54%, dando um
prazo para que as autoridades atendessem as exigências e, caso isso

19 Relatório 21/05/1979. P.75-77. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.


Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
20 A Tribuna. 12/05/1979 P.196-197. Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
21 A Tribuna. 12/05/1979 P.196-197. Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980

255
Conflitos e Contradições na História

não ocorresse, voltariam a paralisar suas atividades. Contudo, nesta


mesma matéria, reportagem com o subtítulo “UPES critica ameaças
da SEDU” aponta que a relação entre os monitores e o Governo do
Estado estava longe de ter um final feliz.
Na reportagem, a presidente da UPES, Myrthes Bevilacqua
afirma que está dando todo apoio à greve dos monitores, mesmo
que seja considerada ilegal, destacando que não concordou de
maneira alguma com as ameaças feitas pelo Secretário de Educação,
Stélio Dias, de mandar embora os monitores que não voltassem
para sala de aula, contratando outros profissionais para substituí-
los. Essa tentativa de aproximação da UPES não surtiu muito
efeito, principalmente porque o pequeno grupo de monitores que
radicalizou contra o Governo tecia críticas intensas à presidente
da entidade, acusando-a de pelega, centralizadora e de atuar como
porta-voz do Governador. A partir desse grupo foi organizada a
Comissão Aberta dos Professores de Oposição (CAPO), que iria
questionar a entidade de forma bastante intensa até o fim do mandato
da atual direção, em 1981. Essa radicalização acabou demonstrando
a fragilidade do movimento dos monitores.
De acordo com a reportagem22 publicada no jornal A
Gazeta, de 31 de maio, somente 26 professores estavam presentes
na assembleia e decidiram pela greve mesmo sendo uma ínfima
parcela dos 9000 contratados. No início do mês de junho a greve
foi deflagrada, contudo foi rapidamente sufocada pelo Governo.
Mesmo com a derrota, esse grupo continuou defendendo ações
radicais para a conquista dos direitos.
As ideias da CAPO eram oriundas dos grupos de esquerda
que, desistindo da luta armada, encontraram nos professores de
alguns estados o espaço para a reorganização da luta contra os
militares questionando o regime com as greves que aconteceram no
final da década de 1970 e início da década de 1980, confrontando-se
assim a concepção conciliatória defendida pela direção da CPB. Para
22 A Gazeta. 31/05/1979 P.201. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

256
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

trazer mais educadores para o movimento, houve a organização do


I Encontro Nacional dos Professores, que contou com a presença de
duas delegações representando os professores capixabas.
A participação dos docentes capixabas nos encontros
nacionais realizados pela CPB sempre foram bem marcantes, tendo
a professora capixaba Lucília Lamego exercido o cargo máximo
na instituição, e a presidente da UPES Myrthes chegando a vice-
presidência da Confederação dos Servidores Públicos do Brasil. A
diferença desse encontro para os outros que a União dos Professores
participou, foram os organizadores. Nos anteriores, a estruturação
ficava por conta da Confederação de Professores, sendo que este foi
organizado pelos opositores ao trabalho desenvolvido pela entidade
nacional. Segundo (JÚNIOR, 2011, p. 57), o objetivo dos encontros
– que aconteceram em julho de 1979, em São Paulo, e em 1980, em
Belo Horizonte – era a criação de uma estrutura sindical nacional
para unificar o movimento dos professores em todo o Brasil.
Um ponto que chamou atenção nesse encontro foi a
representação do magistério capixaba, pois, além da delegação
organizada pela UPES, havia outro grupo composto por seis
professores monitores, mais ligado às ideias defendidas pelos
organizadores. Assim, a União dos Professores foi convidada para
esse encontro devido à organização que os professores já possuíam
no Espírito Santo, mesmo que houvesse maior ligação com a CPB.
Segundo (JÚNIOR, 2011, p. 58), o Primeiro Encontro
Nacional de Professores contou com a presença de trabalhadores
em educação, oposições e entidades de 13 Estados. Nesse encontro
foram debatidos os pontos em comum que unificavam as lutas nos
Estados como: as reivindicações básicas, a postura governamental,
as dificuldades impostas, os saldos organizativos conquistados,
o avanço na consciência política da categoria e as formas de luta
utilizada. O autor destaca que a luta dos professores, neste momento
existente no Brasil, estava pautada por diferentes concepções. De
um lado havia a tese de fortalecimento da CPB numa perspectiva
democratizante, evitando o confrontamento com os militares. Essa

257
Conflitos e Contradições na História

linha política da qual a UPES fazia parte era apoiada pelos comunistas
ligados ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), PC do B (Partido
Comunista do Brasil) e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de
outubro). Do outro lado atuava o grupo chamado “esquerdistas”,
que acreditavam na luta de forma mais incisiva, não aceitando
diálogo com os governos militares.
A partir desse primeiro encontro foram reiniciados os
contatos entre os diversos estados, resultando em reuniões
realizadas durante o ano de 1980. Contudo, até chegarmos a julho
desse ano a divergência de concepção na construção do movimento
dos professores mostrou-se bastante presente no Espírito Santo, e
mereceu a vigilância do DOPS.

O Confrontamento da Esquerda Sob os Olhos da Direita


O confrontamento das duas concepções de organização de luta
acirrou-se ainda mais no segundo semestre de 1979. Aparentemente,
o grupo de monitores que questionava de forma mais incisiva a
direção da UPES era bastante reduzido, contudo contava com apoio
de lideranças capixabas e de veículos de comunicação como o Jornal
Opinião. Esse embate ideológico foi acompanhado de perto pelos
agentes do DOPS. O lançamento oficial do grupo oposicionista à
direção da UPES, a CAPO, foi realizado através do informativo23 Pó
de Giz.
No documento é relatado que a direção da União dos
Professores era porta-voz do Governo. Destaca ainda que os
monitores se rebelaram para lutar pelos seus direitos. Questiona
a forma conciliatória com que a direção negocia com o Poder
Executivo, deixando claro que se articula com setores oposicionistas
a essa política, frisando ainda que usa o jornal A Posição para
divulgar o que foi decidido no Encontro Nacional dos Professores e
não encaminhado pela direção da UPES.

23 Informativo Pó de Giz. P.105. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.


Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

258
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

No informe24 intitulado “Corrupção”, o grupo tece pesadas


críticas ao governador Eurico Rezende, acusando-o de vários
gastos que acabavam por contribuir para esmagar o magistério. Em
outro documento25 a comissão denuncia que o acordo de aumento
salarial proposto pelo Poder Executivo tinha como único objetivo
desmobilizar categoria, e o pior, contando com anuência da UPES.
Segundo os integrantes da CAPO, o Governo só atendeu algumas
reivindicações de parte do magistério através de pressão, destacando,
que os direitos dos monitores, por exemplo, foram conseguidos
através da Justiça do Trabalho, e não através mobilização dos
docentes.
Aprofundando suas críticas através do documento26
“Precisamos de uma Assembleia Geral”, os monitores destacam que
os interesses da categoria não são os mesmos da direção da entidade.
Os membros da CAPO lembram ainda que, quando relataram as
condições do magistério capixaba no encontro de professores
realizado no mês de julho em São Paulo, a presidente da UPES,
Myrthes Bevilacqua, prometeu que convocaria uma assembleia geral
tão logo chegasse à Vitória, contudo, como não houve a convocação,
os monitores demonstraram seu posicionamento no jornal A
Posição, de setembro de 1979.
Na matéria, a comissão mostra o seu descontentamento com
o Governo do Estado para a sociedade capixaba, e, principalmente,
com os rumos tomados pelo movimento de professores, deixando
claro que a greve era um dos poucos instrumentos de pressão que a
categoria possuía, contudo utilizada somente pelos monitores. Se a
situação dos contratados era ruim, os efetivos, cansados de esperar
24 Informe Corrupção. P.106. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
25 As manobras do governo e a nossa reorganização. P.107. Arquivo Público
do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações
dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de
1979/1980.
26 Precisamos de uma assembleia geral. P.108. Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

259
Conflitos e Contradições na História

solução dentro do Estado e não mobilizados para a greve, mais uma


vez apelaram para o Governo Federal.
No dia primeiro de outubro, em uma audiência pública, foi
entregue ao Ministro da Educação, Eduardo Portella, o documento
elaborado de tempo em tempo pela UPES e encaminhado às
autoridades: o Memorial27. Dentre as reivindicações havia o reajuste
real de acordo com a inflação, pois a gratificação de 40% concedida
pelo Governo do Estado podia ser retirada a qualquer momento.
Também solicitaram a paridade da remuneração com outros cargos
no mesmo nível de formação, questionando a ausência de reajuste
aos aposentados e a demissão de professores celetistas e a sua
readmissão sem nenhum vínculo.
No dia seguinte ao envio do memorial ao Ministro da
Educação, o Deputado Federal pelo MDB, Max Freitas Mauro, fez
um discurso28 na Câmara dos Deputados relatando a audiência,
ocasião em que destacou que o convite para participar da conversa
partiu da presidente da UPES. Em sua fala, o Deputado questionou
o Governador afirmando que a situação da educação capixaba era
bastante precária, principalmente para os professores monitores.
Aproveitando o ensejo, o Deputado convidou o Ministro para
visitar o Estado, ressaltando que o Governo Federal deveria
garantir o imediato cumprimento da Lei nº 5692 /71, que fixa as
Diretrizes e Bases do Ensino Primário e do Segundo Grau. Esse
discurso e a movimentação tanto dos professores efetivos quanto
dos contratados, revela que o governo Eurico Rezende era bastante
parecido com o seu antecessor, Élcio Álvares.
No caso dos monitores, como ambos não tiveram condição ou
não priorizaram o pagamento em dia, a situação chegou ao Governo
Federal. Outro episódio que revela a semelhança de dois adversários
27 Memorial. 01/10/1979 P.132-137. Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
28 Discurso do deputado Max Mauro (MDB/ES). 02/10/1979, p. 121-125.
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê
13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo,
ocorridas nos anos de 1979/1980.

260
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

políticos filiados ao mesmo partido é sobre o cumprimento da


legislação. O ex-governador Élcio Álvares, no caso da colocação
em prática do Estatuto do Magistério, que constava na 5692/71,
ironizou que as leis são muito bonitas na folha de papel, mas na
prática se tornam inviáveis. Em relação ao atual Governador, um
episódio demonstrou que, para não colocar a legislação em prática, o
mandatário acreditava na lentidão da Justiça, como frisou o assessor
jurídico da UPES, Joaquim Silva.
Silva, tentando obter uma solução para a greve dos médicos,
situação em que o Governo do Estado insistia em não cumprir a
lei, combinou com repórter do jornal A Tribuna, onde trabalhara,
para fazer uma pergunta ao governador Eurico Rezende sobre o
descumprimento da lei. A surpreendente resposta revelava como os
poderes constituídos faziam uma série de conchavos entre si: “Eu
acredito na morosidade da Justiça”. Contudo essa morosidade não
era aceita pelos professores contratados.
Como forma de tensionamento e tentativa de ter o salário em
dia, um dos poucos direitos garantidos, monitores de várias escolas
da Grande Vitória entraram em greve, conforme reportagem29 do
jornal A Gazeta, de 09 de outubro, afirmando que só voltariam às
atividades quando o Estado pagasse pelo menos o mês de agosto. A
matéria, mostrando a movimentação dos professores contratados,
foi encaminhada ao Delegado do DOPS através de ofício30, sendo
que este solicitou ao chefe da Seção de Operações Especiais um
levantamento com informações sobre a greve. A resposta para
a solicitação foi dada no dia 24 de outubro31, informando que
o movimento foi organizado por membros da classe visando
29 A Gazeta. 09/10/1979, p. 111. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
30 Ofício de encaminhamento ao Sr. Delegado do DOPS/ES. 09/10/1979, p.
112. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES.
Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo,
ocorridas nos anos de 1979/1980.
31 Informações sobre a greve. 24/10/1979, p. 113. Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

261
Conflitos e Contradições na História

melhoria salarial e regularização da situação funcional, contudo já


tinha terminado. Os monitores capixabas, cansados das promessas
sem cumprimento no Estado, resolveram apelar ao Ministro da
Educação, Eduardo Portella, e ao presidente da República, João
Batista de Oliveira Figueiredo, através do documento32 Manifesto ao
Presidente.
No documento, fica bem claro que o atraso salarial dos
professores contratados já vem a longo tempo, e que o atual Governo
prometeu uma solução, contudo continuou tratando o magistério da
mesma forma desrespeitosa com que o fizeram os outros governantes.
O manifesto também deixa claro que a comunidade capixaba perdia
mais uma vez, e poderia ser penalizada devido à paralisação dos
professores. Quem também solicitou ajuda ao Governo Federal para
resolver a situação dos monitores foi a UPES.
A entidade enviou uma carta33 ao presidente da República
João Batista de Oliveira Figueiredo questionando a política adotada
pelo Governo Estadual, que alegava não ter dinheiro para pagar o
magistério em atraso, mas gastava com propaganda em diversos
meios de comunicação. A entidade pede ainda que seja feita uma
emenda à Constituição, para que os monitores, muitos deles com
mais de 20 anos nesta situação, possam ter os mesmos direitos dos
efetivos. Devido a toda essa situação os professores capixabas tinham
pouco a comemorar na sua data.
No dia 15 de outubro – Dia do Professor – aconteceu uma
assembleia da rede estadual. Para a vigilância desse movimento foi
emitida no dia 12 de outubro uma ordem de serviço34 designando

32 Manifesto ao Presidente. 13/10/1979, p. 144. Arquivo Público do Estado do


Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
33 Carta ao Presidente da República João Figueiredo. 13/10/1979, p. 126-131.
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê
13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo,
ocorridas nos anos de 1979/1980.
34 Ordem de serviço. 15/10/1979, p. 145. Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

262
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

três agentes policiais, para que se dirigissem ao local do encontro,


depois acompanhassem a caminhada até a Catedral Metropolitana, e
posteriormente apresentassem o relatório final. No relato35 feito pelos
agentes, foi destacado que a reunião aconteceu, contudo a passeata
que estava programada não foi realizada. Essa desmobilização dos
professores efetivos acabava atrapalhando a luta dos monitores, pois
estes não conseguiam ter apoio para pressionar o Governo, mesmo
que se movimentassem com as paralisações36 em vários locais do
Estado, tanto na Grande Vitória como no interior.
De acordo com a reportagem37 do Jornal A Gazeta, de 18 de
outubro, parte dos monitores voltaram às atividades após receber
o salário do mês de agosto, enquanto outros continuaram parados,
pressionando o Governo para conseguir outros direitos38. Em todas
as reportagens fica bastante claro que esses professores contam
com o apoio dos pais e alunos para resolver, de uma vez por todas,
a questão do atraso dos salários, ressaltando ainda que poderiam
paralisar suas atividades no final do mês, caso não recebessem o
mês de setembro. Desse modo, a desmobilização dos efetivos, além
de atrapalhar a luta dos monitores, custou um preço caro para si
mesmo.
Segundo a reportagem39 de A Gazeta do dia seis de novembro,
com o título “UPES registra falhas em novo Estatuto do Magistério
Estadual”, além da correção dos erros no documento, dois pontos
35 Relatório. 18/10/1979, p. 147. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
36 A Gazeta. 17/10/1979, p. 205-206. Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
37 A Gazeta. 17/10/1979, p. 205-206. Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
38 A Gazeta. 19 e 20/10/1979, p. 209-210. Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores
Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.
39 A Gazeta.06/11/1979.P.212. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

263
Conflitos e Contradições na História

deveriam ser tomados como prioridade: equiparação salarial dos


professores e especialistas com os demais servidores públicos da
mesma graduação e pagamento do salário do professor de acordo
com o maior título, independente de sua função no magistério.
Reforçando a luta pela implantação integral do Estatuto a UPES,
segundo o jornal O Diário – edição de oito de novembro – mostrará
ao ministro da Educação, Eduardo Portella, as ilegalidades do novo
documento.
O ano de 1979 marcou o início da vigilância sobre os
professores capixabas. Em 1980, em que pese a ausência de uma ação
mais incisiva por parte do magistério e a consequente vigilância pelo
DOPS, notabilizou-se pelos encontros nacionais dos professores,
organizados pelos dois grupos que disputavam a hegemonia na luta
dos docentes no Brasil, sendo que em 1981, mais especificamente
no mês de junho, o magistério capixaba realizou a primeira greve de
sua história.

Referências
FAGUNDES, Pedro Ernesto. Memórias silenciadas: catálogo
seletivo dos panfletos, cartazes e publicações confiscadas pela
Delegacia de Ordem Política e Social do Estado do Espírito Santo.
DOPS/ES (1930-1985). Vitória: GM Editora / APEES, 2012.
HORTON, Paul B.; HUNT, Chester L. Sociologia. São Paulo:
McGraw-Hill do Brasil, 1980.
JÚNIOR, Amarílio. F. de professores e as organizações de
esquerda durante a ditadura militar transdisciplinar. In: ROSSO, S.
D. (Ed.). Associativismo e sindicalismo em educação - Organização
e lutas. Brasília: Paralelo 15, 2011.
SOARES, Renato Viana. Retrato Escrito: a reconstrução
da imagem das(os) professoras(es) através da mídia impressa
(1945/1995) . Vitória: ITB, 2005.

Fundos Documentais

264
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção:


DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e
Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

Jornais e Periódicos
A Posição. Vitória. 12 a 19 de maio/1979
A Posição. Vitória. set./ 1979.
O Diário. Vitória.8 de Nov./1979

Entrevistas
Joaquim Silva
Júlio Carlos de Oliveira

265
Conflitos e Contradições na História

266
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

A construção da nação no pensamento de


Edgard Roquette-Pinto
Mariana Calazans Wanick1

Introdução
O interesse em discutir nação e identidade nacional nas duas
primeiras décadas do século XX no Brasil é justificado pela força que
a questão tinha à época. Como destaca Tânia Regina de Luca em seu
livro A revista do Brasil: Um diagnóstico para a (N)ação, os intelectuais
brasileiros de início do século XX refletiram obstinadamente o Brasil
a fim de abarcar sua especificidade. Sublinhavam os problemas,
propunham soluções e defendiam diferentes sonhos e projetos de
futuro. Esse, para a autora, é um movimento comum de momentos
de crise, transformação ou ruptura, e se torna quase uma compulsão.
A busca dos elementos fundadores e de originalidade da nação, a
construção de uma identidade capaz de diferenciá-la no confronto
com o outro e o esforço para compreender sua atuação no contexto
mundial parecem ganhar um novo sentido em momentos de “crise”.
Lilia Moritz Schwarcz (1993) sublinha que o período de transição
do século XIX para o XX foi de bastante ebulição social, política e
intelectual e a Guerra do Paraguai acelera as contradições do sistema.
A desmontagem do sistema escravista, preocupação com a questão
da mão de obra, o fim do Império, a convivência entre os antigos e
novos centros econômicos do país.
As autoras põem em relevância a geração de intelectuais da
década de 1870, caracterizada pela diversidade no que se refere à
origem social e à área de atuação em relação às gerações anteriores.
Esses intelectuais denunciam o imobilismo do Império, a escravidão,
o atraso econômico do país. Mas, apesar da esperança frente os
eventos de fins do século, Abolição e República, predominou nos
primeiros anos do século XX um sentimento de desilusão em relação
à recém-proclamada República, como ressaltam Pécaut (1990),
1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade
Federal do Espírito Santo.

267
Conflitos e Contradições na História

Hochman & Lima (1996) e Oliveira (1990).


Esse novo regime não apenas não correspondia aos sonhos
desses intelectuais, como também os afastou das funções públicas. A
vida republicana passou a ser “dominada” pelas oligarquias cafeeiras
e seus interesses. Pécaut (1990) e Oliveira (1990) destacam que a
Primeira Guerra exerce papel importante para a recolocação do
problema da brasilidade na ordem do dia. Ao retornar como tema
central, ainda de acordo com Oliveira, o nacionalismo adquire uma
função militante, diferente do nacionalismo ufanista e romântico
de fins do século XIX. Este novo nacionalismo recoloca a questão
da identidade nacional no sentido de buscar o rompimento com a
herança europeia.
Diversos autores discutem os primeiros anos da república
brasileira e destacam a importância crucial desses anos para o debate
sobre a formação da nação brasileira: Pécaut (1990); Oliveira (1990);
Hochman & Lima (1996); Souza (2011), Carvalho (2005). Gomes
(2010) em seu artigo História, ciência e historiadores na Primeira
República, sintetiza bem algumas questões comuns colocadas por
todos esses autores. Para a autora, as ideias e questionamentos do
período que corresponde aos primeiros anos da república necessitam
de uma nova interpretação, diferente da tradicionalmente consagrada
imagem de “República Velha”. A autora nos lembra que periodizar
é um ato de poder e a naturalização da expressão “República Velha”
não é ingênua, mas teria sido um projeto dos ideólogos autoritários
das décadas de 20 e 40 e dos intelectuais do Estado Novo. Por isso, há
a necessidade de uma retomada desse período a partir de uma nova
perspectiva, como um dos momentos mais frutíferos e ricos para
os debates de ideias políticas e culturais no país. A grande questão
que se colocava à época era a de como superar o grande problema
do atraso brasileiro. Porque, ao contrário do que comumente se
pensa, a República Oligárquica é um período de intensa busca por
modernidade e de disputas por diferentes projetos de modernização.
Outra colocação central da autora para a nossa pesquisa, é de que,
apesar da disputa pelos projetos, havia na época um consenso em

268
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

torno da importância da ciência como instrumento fundamental


para qualquer tipo de progresso. No Brasil, portanto, a modernização
e superação do atraso passavam pela importância de desenvolver a
ciência.
Após essa breve justificativa sobre a relevância e a
centralidade que as questões sobre a nação e a identidade nacional
tinham no Brasil durante as primeiras décadas do século XX, é
basilar fazermos algumas considerações teóricas acerca da nação,
da nacionalidade e da identidade nacional. A partir de Benedict
Anderson é possível definir nação como: “uma comunidade política
imaginada- e imaginada como sendo intrinsecamente limitada
e, ao mesmo tempo, soberana” (2008, p. 32). Imaginada, pois há
um sentimento de comunhão e proximidade entre os membros,
mesmo sem que a maioria se conheça. Limitada porque todas as
comunidades possuem fronteiras, independentemente de serem
mais ou menos elásticas. Para Anderson, a nação é soberana porque
o conceito nasceu na época do Iluminismo e da Revolução Francesa,
é uma particularidade de seu período histórico. A nacionalidade
e o nacionalismo são produtos culturais específicos, é necessário
considerar suas origens históricas e a maneira como seus significados
se transformaram ao longo do tempo. Segundo Benedict Anderson,
o que possibilitou imaginar as novas comunidades que formaram a
nação foi a interação entre: o capitalismo como sistema de produção;
a imprensa, como uma tecnologia das comunicações e a fatalidade
linguística humana. As nações se formaram, portanto, a partir da
combinação de determinadas transformações que ocorreram na
sociedade quando já se tornava latente o enfraquecimento dos laços
religiosos e progressivo o questionamento dos poderes dinásticos,
em que os indivíduos eram vistos como súditos.
Para o autor, o nacionalismo não deve ser compreendido
como uma ideologia, ao lado do socialismo ou do liberalismo, mas
como um sistema cultural, análogo a outros que o precederam, como
a comunidade religiosa e reino dinástico. Anderson se questiona
sobre as razões de a nacionalidade e o nacionalismo terem uma

269
Conflitos e Contradições na História

legitimidade emocional tão profunda, por que as pessoas são capazes


de morrer pela nação? O autor reitera o caráter histórico e inventado
dessas comunidades, foram criadas em um determinado momento
da história e por certos grupos das classes mais altas, como uma
resposta ao surgimento de um nacionalismo mais popular ligado
às línguas vernáculas. Mas, onde está a magia do nacionalismo?
Por que tantos discutiram sobre ele, mataram e morreram em seu
nome? Anderson delineia uma resposta logo na introdução de seu
livro: as nações são imaginadas como comunidade, independente
das desigualdades e das relações de exploração que existam em seu
interior, são sempre concebidas como uma profunda camaradagem
horizontal.
Em seu capítulo Patriotismo e Racismo, o autor explora e
desenvolve um pouco mais esse ponto, como explicar o apego das
pessoas aos frutos de sua imaginação? A chave para esta explicação
está no caráter natural dos laços da nacionalidade, não é possível
escolhê-los e, por isso, são vistos como laços desinteressados. É
semelhante à interpretação mais tradicional acerca da família, que
a vê como domínio do amor desinteressado e da solidariedade. Não
faria sentido morrer ou sacrificar-se pelo Partido dos Trabalhadores
ou, até mesmo, pela Anistia Internacional, porque é possível escolher
filiar-se ou não a esses organismos. Morrer pela pátria só adquire
significado e supõe uma grandeza moral através das ideias de pureza
e desinteresse, que são dadas por meio da fatalidade.
Antes de passarmos à discussão acerca da nação e da
identidade nacional no Brasil de início do século XX, consideramos
válido destacar alguns pontos sobre a identidade, o pertencimento.
Nesse caso, mais especificamente, a identidade nacional. A partir do
exemplo de Woodward no livro Identidade e Diferença é possível
afirmar que a identidade é relacional, é dependente de uma identidade
que ela não é, mas que fornece condições para que ela exista. A
identidade brasileira, portanto, se formará na relação com outras
identidades, por ser brasileira será diferente da portuguesa, inglesa
ou argentina. A identidade será marcada pela diferença, “se você é

270
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

sérvio não pode ser croata” (2000: 9). A construção da identidade é


tanto simbólica quanto social, busca a vinculação da identidade a
determinados símbolos, como: hino, bandeira, educação primária,
heróis e também têm implicações na realidade social, a luta para
afirmar as identidades têm causas e consequências materiais. E,
justamente, são as discussões de intelectuais de fins do século XIX
e princípios do XX a respeito da identidade nacional brasileira que
esse artigo buscará apontar, mesmo que reconhecidamente de modo
superficial. A partir desses apontamentos mais gerais partiremos
para nosso objetivo mais específico, e possível de alcançarmos,
circunscrever Roquette-Pinto neste debate e apontar sua concepção
de identidade nacional e suas propostas para a transformação do
país em uma nação.
A partir dessa breve consideração teórica acerca das
identidades, é momento de nos questionarmos como os brasileiros
compreendiam o ser brasileiro nos primeiros anos do século XX.
Quais eram as implicações materiais de ser brasileiro? A que
símbolos esta identidade estava relacionada? O Brasil era uma nação
nessa época? Era uma comunidade imaginada, limitada e soberana?

Nação brasileira, desde quando?


No artigo Brasil: Nações Imaginadas, José Murilo de Carvalho
discute de maneira bastante ampla e geral as diversas imagens da
nação brasileira da colônia à república de acordo com as visões
da elite ou de setores dominantes. Sabemos das limitações deste
texto, trata de um recorte temporal muito amplo e não se atenta às
especificidades de cada período. Mas, nosso objetivo é justamente
utilizá-lo como um ponto de partida, uma visão ampla acerca
da questão a fim de que, mais a frente possamos aprofundar as
discussões acerca da nacionalidade nas primeiras décadas do século
XX por meio da figura de Edgard Roquette-Pinto.
Carvalho (2005) destaca que durante o período colonial
o Brasil não era visto como uma unidade, exceto pela língua e
a religião. Capistrano de Abreu e Saint-Hilaire denominaram o

271
Conflitos e Contradições na História

período colonial brasileiro como um arquipélago de capitanias.


O que esses diferentes homens tinham em comum era a aversão
pelo elemento português, mas não havia entre eles um sentimento
positivo que os ligasse. A Conjuração Mineira (1789) e a Revolução
Pernambucana (1817) não demonstram um apego à ideia de Brasil.
O patriotismo incitado pelos movimentos era limitado às províncias
em que ocorreram, era um patriotismo mineiro ou pernambucano.
Mesmo após a independência e a formação de um Estado Nacional
centralizador e monárquico em 1850, o autor percebe vários indícios
de ausência de identidade nacional. O sentimento de identidade ainda
era baseado em fatores negativos, apenas em oposição ao elemento
português. Apesar do funcionamento das instituições burocráticas
e políticas: rei, congresso eleito, partidos políticos e judiciário
nacionalmente organizado, a face interna não correspondia a essa
imagem, a nação ainda era uma ficção. A nação como ficção à qual
José Murilo se refere não é sinônimo da comunidade imaginada de
Benedict Anderson. È possível, inclusive, afirmar que ela é fictícia,
falsa, porque não é imaginada, as pessoas não se sentem ligadas
às outras que não conhecem. O que as une são apenas elementos
negativos, vínculos frouxos, como por exemplo, antipatia e aversão
aos portugueses.
Ainda de acordo com José Murilo (1998), não houve uma
preocupação sistemática da elite imperial em educar a população
dentro de um viés de valorização da pátria e do elemento nacional.
Mesmo o simples uso de símbolos cívicos como a valorização do
hino nacional e da bandeira não foram realizados. A educação
primária também não foi utilizada como instrumento de inserção
da ideia de pertencimento a uma comunidade imaginada, nação,
às crianças. O ensino primário era, desde o ato adicional de 1834,
atribuição das províncias e municípios. O governo central não se
preocupava em definir currículos e nem em exigir qualquer tipo de
educação cívica. Também não havia uma preocupação específica
com os museus até por volta de 1870. O Museu Nacional, no Rio
de Janeiro, só se estruturou a partir dos moldes dos grandes centros
europeus a partir de meados dos anos 1870 com Ladislau Netto e

272
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

depois deu prosseguimento com Batista de Lacerda, que dirigiu a


instituição de 1895 a 1915. A década de 1890 é conhecida como a
era brasileira dos museus e corresponde ao período de apogeu das
instituições internacionais (SCHWARCZ, 1993). A preocupação
da elite em definir a identidade nacional se limitava a socializar
e convencer setores da própria elite por meio da tutela do ensino
superior e de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro que tinha, grosso modo, a função de escrever a história
do país.
No que se refere à educação básica, é válido ressaltar que, de
acordo com a Constituição de 1891, competia à União responder
pelo ensino secundário e pelo superior e às unidades federativas
a responsabilidade pelo ensino primário e normal, à educação
popular mais específica (CUNHA, 2010). Cunha (2010) reitera que
não há uma ação mais efetiva e direcionada do Governo Federal
no que diz respeito à educação primária, já que ficava a cargo dos
municípios, que agiam de maneira pouco coesa e planejada. Para
este autor, ganha força na década de 20 um movimento contrário
à descentralização característica dessa República das oligarquias.
Havia uma parcela significativa da intelectualidade que havia
perdido a fé na Constituição republicana de 1891 e pleiteava uma
transformação que produzisse um poder central competente a fim
de coordenar a sociedade.
O território e a diversidade brasileiras eram consenso, mas,
mesmo na primeira metade do século XIX, antes da difusão das
teorias racistas, a população já era uma questão mais delicada. Era
preciso enfrentar a questão da população negra e mestiça, onde
situá-la na nação?
Com o fim da monarquia aprofundam-se as questões sobre
o que era o país e é possível sublinhar diversas correntes que
buscam interpretá-lo. Ainda segundo José Murilo (2005), havia
um grupo que buscava reforçar a identidade americana e o ódio às
raízes portuguesas, tinha como expoentes: Raul Pompéia e Manoel
Bomfim. Já Eduardo Prado e Afonso Celso eram monarquistas

273
Conflitos e Contradições na História

e defendiam um nacionalismo ufanista, baseado na natureza e


até mesmo na exaltação de certos elementos da população. Esses
autores citados, que se situam na transição do século XIX para o
XX, não consideravam a raça como um empecilho à formação da
nação brasileira. Outras correntes desse mesmo período reforçam a
inferioridade da raça negra e a degeneração do elemento mestiço e,
desta maneira, chegam a negar a possibilidade de desenvolvimento
da nação brasileira e de seu progresso. Muitos enxergam a
importação de mão de obra europeia como a única solução para
o problema racial no Brasil. Dentre os que veem a questão racial
como um problema fundamental e um dos maiores empecilhos ao
desenvolvimento da nação estão: Silvio Romero, Euclides da Cunha,
Oliveira Vianna e Nina Rodrigues.
Como sublinha Schwarcz (1993) havia nessa época uma
dicotomia entre “homens de sciencia” e “homens de letras”,
que pode ser exemplificada pela polêmica entre Silvio Romero e
Machado de Assis. Romero acusava Machado de não se envolver
com as questões de seu tempo. Esses “homens de sciencia”, como
Romero, geralmente vinculados a centros de pesquisa ou ensino,
tenderam a adotar modelos evolucionistas e social-darwinistas,
já bastante desacreditados na Europa. O estudo das raças passou
a ser o objeto central destes intelectuais de um novo tipo. Esses
brasileiros baseavam-se nas considerações de Gobineau, Renan, Le
Bon e Taine, já consideradas ultrapassadas na Europa. Gobineau,
provavelmente o mais famoso deles, reiterava que a civilização
era um estágio acessível a poucas raças e que os mestiços eram
decadentes e degenerados.
Ainda de acordo com Schwarcz (1993) é interessante ressaltar
que os modelos deterministas raciais foram muito populares no
Brasil, mas seu uso foi inusitado e original, não foi uma simples
cópia de modelos europeus ultrapassados. A originalidade consistiu
justamente na combinação da crença no evolucionismo com os
determinismos, geográfico e racial. Determinismo geográfico pode
ser definido como a crença em que as condições físicas do meio

274
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

ditavam o potencial de civilização de determinado grupo, já o


determinismo racial via toda mestiçagem como erro e degeneração
e enaltecia os tipos raciais puros.
Ainda para esta autora, o Brasil dos anos 1890 era saudado
pelos cientistas estrangeiros como fenômeno desconhecido, curioso.
Especialmente pela questão da mestiçagem, que também era vista
pela elite intelectual local como tema polêmico. A autora sublinha
que o problema racial é o meio pelo qual é possível apreender as
desigualdades observadas e, até mesmo, certa singularidade nacional.
Apesar de interessante e particular, a constatação de que o Brasil era
um país mestiço gerava novos dilemas para os cientistas brasileiros.
O que fazer? Como agir diante de uma nação mestiça? Será que é
possível seu desenvolvimento rumo à civilização ou está fadada ao
fracasso e à degeneração?
Será que a definição de nação de Benedict Anderson pode
ser aplicada ao Brasil das primeiras décadas do século XX? Será que
havia uma comunidade imaginada, limitada e soberana no Brasil de
princípios do século? Para Carvalho (1998), houve desde a colônia
uma série de posições e imagens criadas pelas elites que disputavam
entre si espaço como principal projeto de nação. Em relação ao
povo, este autor agrupa as diferentes imagens do Brasil a partir da:
1) ausência do povo; 2) visão negativa do povo; 3) visão paternalista
do povo. Para este autor, o povo não estava incluído em nenhum dos
projetos de nação. E, portanto, podemos inferir que para Carvalho
(1998) não é possível definir o Brasil como uma comunidade
imaginada no sentido de Anderson, a maior parte da população não
se vê contemplada nessa discussão. Às vezes sequer tem contato com
os elementos da nação e, dessa maneira, não tem uma identificação,
um vínculo com pessoas que não conhece.
Neste momento é válido passarmos à segunda parte deste
artigo, tratarmos mais especificamente do debate que surgia nos
primeiros anos do século XX sobre o que definiria a nação brasileira
e quais seriam seus maiores problemas. Será que para Edgard
Roquette-Pinto e os homens com quem discutia e dialogava o

275
Conflitos e Contradições na História

Brasil poderia ser considerado uma nação segundo a definição de


Anderson? Mas, antes, cabe introduzirmos, mesmo que brevemente,
nosso personagem.

Afinal, quem foi Edgard Roquette-Pinto?


Roquette-Pinto nasceu no Rio de Janeiro em 1884 e faleceu
na mesma cidade em 1954. Foi médico, antropólogo, grande
entusiasta do rádio, educador, cientista. Enfim, atuou em uma
infinidade de áreas e instituições: trabalhou no Museu Nacional
(1906-1935) e, de 1926-1935 foi diretor desta instituição. Atuou
como diretor do Instituto do Cinema Educativo (1936-1947); foi
um dos fundadores da Academia Brasileira de Ciências; participou
da Academia Brasileira de Letras; da Comissão Rondon em 1912;
do Congresso Internacional das Raças em Londres (1911) e da Liga
Pró-saneamento do Brasil, que coordenou a campanha pela criação
do Ministério da Saúde. Foi também o pioneiro da radiodifusão
no Brasil e grande entusiasta da utilização do rádio enquanto
instrumento educativo das populações que viviam nas regiões mais
remotas e distantes (DE SÁ; LIMA, 2008). Além disso, podemos
destacar sua atuação como diretor da Revista Nacional de Educação
(1932-1934) publicação organizada pelo Museu Nacional durante
sua atuação como diretor da Instituição. Suas principais obras são:
Rondonia, Ensaios Brasilianos e Ensaios de Antropologia Brasiliana.

A identidade Nacional para a geração de Edgard Roquette-


Pinto
Carvalho (2005) nos dá uma ideia geral da discussão que
se passava no início da república, o cientificismo juntamente com
o determinismo geográfico e racial impediam ou pelo menos
dificultavam a crença de que o Brasil, tropical e mestiço, fosse um
competidor sério na corrida da civilização. A partir desse panorama
geral é possível esboçar as diferentes visões e proposições sobre o
Brasil. Para alguns, a degeneração era inevitável, para outros ela

276
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

poderia ser evitada pela imigração de elementos brancos e, ainda


para outro grupo, o problema do atraso brasileiro não estava na
miscigenação racial em si, mas nas condições de vida a que os
mestiços brasileiros estavam submetidos e na falta de organização
do território. O objetivo, tirar o Brasil do atraso, não mudou. A
transformação se deu nos mecanismos utilizados para alcançar
este fim. Alguns defenderam a imigração, predominantemente de
elementos brancos; outros aderiram a campanhas civilizatórias,
como a de Canudos ou o Movimento Sanitarista. Houve ainda os
que se filiaram ao movimento modernista e outros que se vincularam
aos movimentos de reforma educacional baseados em ideias norte-
americanas: Escola Nova. Também devemos sublinhar aqueles que
se vincularam a mais de um movimento desses. O que todos tinham
em comum era a crença na necessidade de tirar o país do atraso
em que ele se encontrava e, de fato, formar uma nação brasileira.
Roquette-Pinto se posicionava contrariamente à forte influência
das teorias de determinismo racial, ele sustentou que o problema
brasileiro era uma questão de higiene, não de raça.
Primeiramente, cabe perguntar, como os contemporâneos de
nosso autor lidavam com essa questão da nação no Brasil. Será que
consideravam o Brasil como uma nação? Para Gilberto Hochman
e Nísia Trindade Lima (1996) o debate sobre identidade nacional
ocupou um espaço privilegiado no Brasil da Primeira República,
era corrente afirmar que o país não constituía uma nação. Era, no
máximo, uma reunião de províncias pouco integradas que haviam
sido transformadas em estados e agrupadas pela constituição
republicana de 1891. Essa constatação se tornou cada vez mais
comum com as diversas expedições científicas feitas com o objetivo
de “desbravar” o interior. Como exemplos podemos citar: as
viagens científicas realizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz, como a
de Belisário Penna e de Arthur Bernardes (1912), e, até mesmo, a
Comissão Rondon, expedição da qual Roquette-Pinto participou
também no ano de 1912.
A partir da viagem ao interior, Belisário Penna e Arthur

277
Conflitos e Contradições na História

Bernardes afirmam em seu relatório de viagem que perceberam o


abandono, o tradicionalismo e a ausência de qualquer sentimento
de identidade nacional nesses sertanejos. “Raro o indivíduo que sabe
o que é o Brasil. Piauí é uma terra, Ceará outra terra. Pernambuco
outra [...] A única bandeira que conhecem é a do divino” (PENNA;
NEIVA apud HOCHMAN; LIMA, 1996:30). Esses homens do
interior se vêem abandonados e sem assistência alguma, não têm:
escolas, estradas, polícia, cuidados médicos ou higiênicos. Esses
homens do sertão, sertanejos, só têm contato com o Estado no
momento da cobrança de impostos, nesses aspectos coercitivos.
Uma das principais tendências desse período é aquela com a
qual Roquette-Pinto comunga: compreende a doença como problema
crucial para a construção da nacionalidade. Esse movimento agrega
importantes setores da elite intelectual, que depois formarão a Liga
Pró- Saneamento (1918), e assinala a necessidade de integrar o
homem do interior ao país. A visão desses intelectuais sobre o sertão
não é idealizada como a dos nacionalistas românticos e ufanistas.
O sertanejo era, ao mesmo tempo, forte e rude. Era rude por sua
carência de civilização. Ainda de acordo com esses autores, a ruptura
com essa visão do campo enquanto um local idílico e exuberante
ocorre com a obra Os Sertões de Euclides da Cunha (1902), que foi
uma das referências basilares para o pensamento de Roquette-Pinto.
Dessa maneira, embora Roquette considerasse Os Sertões como o
grande livro do Brasil, considerava equivocada a condenação da
miscigenação feita por Euclides. Roquette-Pinto se posicionava
contra a ideia central dessa grande obra, de que as “raças fracas”
seriam fatalmente esmagadas pelas “raças fortes”. A grande ilusão de
Euclides foi considerar inferior gente que era só atrasada e ignorante.
A relação ambígua de Roquette-Pinto com a obra de Euclides
sintetiza bem sua visão acerca da questão racial do Brasil, o
problema estava no atraso em que viviam as populações sertanejas
e não na inferioridade intrínseca ao caráter racial. É fundamental
reiterar que a tendência que elege a saúde e o saneamento como
principais problemas do Brasil não é hegemônica. Ela convive com

278
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

outras interpretações, inclusive, aquelas que ainda defendiam a tese


do branqueamento ainda eram presentes e ganhavam terreno entre
intelectuais da época (STEPAN, 2005).

Propostas e ação
Como afirmamos anteriormente, Roquette-Pinto acreditava
que o problema do atraso brasileiro não estava na questão racial em
si, o problema não era a deficiência ou falta de capacidade intrínseca
aos mestiços brasileiros. A inferioridade não estava na raça, mas na
falta de uma proposta de integração desses homens ao Brasil. Eles
sequer sabiam o que era o Brasil ou reconheciam os símbolos do país,
viviam na miséria e, segundo o diagnóstico da época, à mercê das
doenças. O grande símbolo desse movimento é o personagem “Jeca
Tatu” de Monteiro Lobato. A história desse personagem representa
de maneira exemplar a influência do movimento sanitarista no meio
intelectual da época. Inicialmente, “Jeca Tatu era pobre, ignorante,
sujo e mestiço (STEPAN, 2005, p. 167)”. Mas, por volta de 1918,
ano da fundação da Liga Pró-Saneamento, Monteiro Lobato muda
sua opinião sobre “Jeca Tatu”. Ele não é preguiçoso e indolente por
pertencer a “um tipo degenerado” ou a “uma raça degenerada”. O
problema de seu personagem, que representava o homem do sertão
brasileiro, era a falta de alimentação; as doenças, especialmente a
ancilostomose; e a falta de saneamento (STEPAN, 2005). O Jeca
Tatu, que representa o sertanejo, não é inerentemente inferior ou
ruim, mas está improdutivo e indolente devido às condições em que
vive. E, desta maneira a responsabilidade por esse comportamento
dos “Jecas” do Brasil é da República Oligárquica, que não soube
integrar esses homens ao país.
A crença de que o atraso brasileiro não era fruto de uma
inferioridade racial intrínseca norteia toda sua obra, tanto em
seus primeiros anos de carreira, marcados por sua produção
antropológica, quanto em sua maturidade, mais caracteristicamente
marcada por sua atuação enquanto divulgador da ciência. È com o
intuito de educar essas populações alijadas da civilização e, por isso,

279
Conflitos e Contradições na História

vista por um grupo como inferiores, que Roquette-Pinto toma uma


série de medidas e empreende várias ações de divulgação científica e
educação. È possível destacar sua atuação no sentido de oportunizar
o acesso ao Museu Nacional para as escolas, especialmente as
escolas públicas. E, para isso, buscou adaptar o Museu para receber
esse público específico, buscando transformá-lo em um museu
pedagógico e educativo.
Inserido nesse propósito de divulgação da ciência, durante
sua atuação como diretor do museu, é de suma relevância destacar
a criação da Revista Nacional de Educação em 1932. Sobre a revista,
Regina Horta Duarte escreve o artigo: Em todos os lares, o conforto
moral da ciência e da arte: a Revista Nacional de Educação e a
divulgação científica no Brasil (1932-34). Neste texto a autora coloca
que a Revista foi publicada de 1932 a 1934 pelo Museu Nacional do
Rio de Janeiro, ela veiculava conteúdos de arte, ciência e história
para um público mais amplo. Em todos os números havia a seguinte
epígrafe de Roquette-Pinto: “em todos os lares do Brasil, o conforto
moral da ciência e das artes.” Ainda sobre a forma da revista, é válido
destacar que sua capa era bastante simples, mas o interior da revista
tinha muitas imagens.
Moreira; Massarani e Aranha destacam em seu artigo,
Roquette-Pinto e a divulgação científica, que Roquette-Pinto foi
o criador e principal motor da primeira rádio brasileira, Rádio
Sociedade do Brasil, fundada em 20 de Abril de 1923 nos salões da
Academia Brasileira de Ciências. Segundo os estatutos da rádio, ela
foi fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e
de educação popular. O Rádio era compreendido como a escola dos
analfabetos, daqueles que não tiveram acesso à escola.
O debate da questão racial, fio condutor do pensamento de
Roquette-Pinto, também se fez presente na revista e na rádio: a
solução para os problemas nacionais não é transformar os mestiços
em brancos, mas educar a todos. Como destaca Duarte (2004),
a publicação da Revista Nacional de Educação é a coroação de
um sonho de mais de vinte anos do antropólogo. É perceptível,

280
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

portanto, a influência significativa de sua teoria antropológica na


ação. A proposta de divulgação científica encampada pela revista,
pelo rádio e sua atuação no Museu Nacional não se descolam de sua
bagagem teórica, é uma tentativa de por em prática seu pensamento
teórico. Como se a ciência estivesse cumprindo sua missão social a
partir desses aparatos de divulgação, crença amplamente divulgada
naquele período.

Conclusão
De acordo com a concepção de Anderson sobre nação, como
uma comunidade imaginada na qual um grupo de indivíduos se sente
ligado entre si por um mesmo vínculo. Consideramos que Roquette-
Pinto e seus pares não viam o Brasil como uma nação formada, mas
como uma nação em construção. O Brasil precisava ser construído
e, por isso, Roquette-Pinto defendia tão arduamente suas visões,
propostas e ações sobre o Brasil. Além do mais, Roquette-Pinto foi
notável por refutar as visões que negavam a possibilidade de o Brasil
formar uma nação dada à sua configuração racial peculiar e mestiça.
Ele acreditava na viabilidade de formação de uma nação brasileira a
partir da integração dos elementos excluídos da nação por meio da
educação e de uma reforma dos costumes a partir da ciência e dos
princípios da higiene.

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283
Conflitos e Contradições na História

284
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Os portuários nas páginas do jornal Folha


Capixaba (1954 – 1961)
Penha Karoline Pulcherio de Araújo1

Introdução
Esta pesquisa, como parte do Programa Institucional de
Iniciação Científica, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa
e Inovação do Espírito Santo (FAPES), nasceu após conversa com
meu professor e orientador, André Ricardo Valle Vasco Pereira,
que me acolheu em seu grupo de pesquisa “Formação da Classe
Trabalhadora Capixaba” (http://lehpi.ufes.br/grupos-de-estudos),
que faz parte do Laboratório de Estudos de História Política e das
Ideias da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES).
Utilizei como fonte primária, o periódico do Espírito Santo
Folha Capixaba - digitalizado e disponibilizado para a comunidade,
por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, sediada no
Rio de Janeiro. Jornal este no qual integrantes do Partido Comunista
do Brasil (PCB) tratavam de assuntos essencialmente trabalhistas,
teciam discursos contra o imperialismo norte-americano e traziam
um apanhado global das realizações dos partidos comunistas
nacional e internacionais, especialmente os da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). Desta forma, com fito de fazer
um levantamento e análise de como a categoria dos portuários
mobilizou-se, entre os anos de 1954 a 1961, em termos de lutas
por melhoria nas condições de trabalho, de representação política,
visibilidade em geral, esta pesquisa nasceu. O marco temporal se
deveu ao fato de que o arquivo do jornal cobre apenas este período,
apesar dele ter sido publicado desde 1945, na base média de uma
edição por semana.
Na década de 1950, o país estava em plena transição de
um modelo agrário-exportador-coronelista e, sob a égide de um
Estado interventor, para o Capitalismo, o que se deu mediante

1 Graduanda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

285
Conflitos e Contradições na História

um processo de modernização conservadora (MOORE JR., 1975).


No caso específico do Espírito Santo, destaco o trabalho de André
Pereira (2011). Dado este contexto, me interessei em observar como
a categoria – sobretudo focando subtemas como Greve, Sindicato,
Condições de trabalho e Eleições – se mobilizou, se “adaptou”,
frente a essas transformações.
Cerca de uma década antes do recorte temporal feito, nos
anos de 1940, agora tratando da conjuntura local, o Espírito Santo
passava por profundas transformações em sua economia que, por
consequência, reverberavam no quadro social. “Era o momento
da transição entre o modelo agrário-exportador para o modelo
industrial-exportador.” (MACHADO, 2014, p. 6).
A industrialização fora fortemente marcada pela chegada ao
Espírito Santo da Companhia Vale do Rio Doce, mineradora estatal,
criada em 1942, pelo então presidente Getúlio Vargas, em plena
ditadura do Estado Novo. Este acontecimento se enquadra no que é
chamado de “2ª Revolução Industrial”:
A 1ª Revolução Industrial implicou em urbanização e aumento
relativo dos níveis educacionais dos trabalhadores, já a 2ª gerou
urbanização caótica com os reflexos conhecidos em termos de
favelização, de caos do sistema de transportes, de ineficiência
no fornecimento de serviços públicos básicos (educação, saúde,
segurança) para a população em geral. Com o modelo industrial-
exportador, a modernização assim produzida gerou uma
urbanização caótica, de falência de serviços públicos e de escalada
frenética da violência (PEREIRA, 2011, p. 204).
No caso do Espírito Santo, não houve uma preocupação
por parte do poder público em preparar o estado, sua região
metropolitana, para a instalação de empresas de grande porte, visto
que foram se expandindo, ampliando suas atividades em detrimento
de uma preocupação com relação às consequências que estas traziam
para a sociedade e população pobre em geral.
O presente trabalho abrange marítimos e portuários em
geral, abraçando, além das categorias já conhecidas, cuja divisão
já estava estabelecida nos anos 1950 em arrumadores, estivadores
e conferentes, também a dos doqueiros e catraieiros. Busca-se

286
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

abranger todos esses agentes que, desde o início da colonização,


atuaram (e atuam) ativamente no quadro econômico do estado do
Espírito Santo. A princípio realizada por índios, posteriormente
por escravos, depois por libertos e, nos anos de 1950 e 1960, por
trabalhadores de baixa instrução, inclusive analfabetos, o sistema
portuário do Espírito Santo, até as primeiras décadas deste século,
caracterizava-se por um conjunto disperso de trapiches sob o
controle dos capitalistas do setor – os proprietários das agências de
consignação e das casas exportadoras (ANDRÉ, 1998). Com o passar
das décadas, os trapiches evoluíram para a formação de complexos,
públicos e privados, que foram situando e integrando o Espírito
Santo dentro do contexto econômico nacional e estrangeiro.
No período considerado:
O Estado intervém de forma direta e indireta nas relações de
mercado para criar as condições essenciais ao “desenvolvimento e
modernização” da economia. Sob esta configuração, Getúlio Vargas
implementou uma série de mecanismos protecionistas visando
obter o consenso junto à classe trabalhadora que reivindicava
melhores condições de vida e de trabalho. (ANDRÉ, 1998, p. 58).
Talvez por esse motivo, seja comum encontrar nas páginas do
jornal referências a reuniões onde se homenageava e se reverenciava
a figura de Getúlio Vargas entre os marítimos. O próprio periódico
raramente tece ataques ao presidente. Isto se deve também ao fato
do PCB se aproximar de Vargas numa tentativa de fortalecer sua
oposição contra o maior partido de direita à época, a UDN.
Com o esforço para a industrialização, a tradicional
sociedade capixaba iniciou um processo de urbanização e começou
a desenvolver núcleos operários mais expressivos, formado
principalmente por trabalhadores ferroviários e metalúrgicos, além
dos tradicionais portuários (MACHADO, 2014).
Constituídos e considerados enquanto “classe trabalhadora”,
este é um conceito que precisa ser demarcado. E é aí que entram
as contribuições dos teóricos Edward Palmer Thompson e Adam
Przeworski. Thompson, em sua obra A formação da classe operária
inglesa, defende que a classe operária “faz-se”; ela própria se engendra,

287
Conflitos e Contradições na História

se retroalimenta. Este conceito, assistimos, é perfeitamente factível


vislumbrar no tocante à organização dos trabalhadores portuários no
Espírito Santo, ainda que, para se entender determinado contexto,
outros estados e a mobilização dos trabalhadores destes, também
seja exposta. Ele afirma que a classe é uma espécie oriunda da
observação, vivência, experiências dos homens ao longo do tempo,
identificando similaridades entre si.
Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série
de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto
na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que
é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma estrutura,
nem mesmo como uma categoria, mas como algo que ocorre
efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações
humanas. Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de
relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que
escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e
dissecar sua estrutura. (THOMPSON, 1987, p. 9).
Por experiência, Thompson alega no prefácio da mesma obra,
que os trabalhadores relacionando-se uns com os outros, assimilam
a diferenciação entre sua posição de explorados e a dos exploradores
detentores da força de trabalho. Nestes termos, da parte dos
trabalhadores, há uma troca de experiências cuja gênese parte deste
contraste. Esta experiência termina por criar uma expressão que ele
define como “consciência de classe”:
A consciência de classe é a forma como essas experiências são
tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas
de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece
como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de
classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais
semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos
predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma
forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da
mesma forma. (THOMPSON, 1987, p. 10).
Sendo assim, uma classe não pode existir descolada da
experiência de situações determinadas, nas quais a luta de classes
é prioritária no processo de formação de uma determinada
classe. Junto a isso, o processo histórico é imprescindível para o
entendimento da formação da classe trabalhadora.

288
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Já o cientista político polonês Adam Przeworski, em seu


capítulo “A organização do proletariado em classe: o processo
de formação de classes”, presente no livro Capitalismo e Social-
democracia, depreende que as condições socioeconômicas, político
ideológicas, são quem estruturam a organização, a formação da
classe.
Ele rejeita a visão que considera o processo de formação da classe
como uma transição necessária e mecânica da “classe-em-si” para
a “classe-para-si”, no qual as relações econômicas são classificadas
como objetivas e todas as outras como pertencentes à esfera das
ações subjetivas. Przeworski aponta o que, a seu ver, são questões
na formulação da “classe em si” definida ao nível de “base”,
simultaneamente objetiva e econômica, e “classe para si” como
o grupo na acepção sociológica do termo, a classe caracterizada
pela organização e pela consciência de solidariedade. Dadas essas
categorias, o problema teórico e prático passa a ser formulado
em termos da transformação das relações de classe “objetivas”,
econômicas, em “subjetivas”, políticas e ideológicas. Para o autor,
esse tipo de formulação gera duas respostas: determinismo e
voluntarismo. Na primeira, as relações objetivas necessariamente
se transformam em relações subjetivas, ou seja, as posições nas
relações de produção tornam-se “refletidas” nos interesses e ações
políticas expressos. Na resposta voluntarista, as condições objetivas
não conduzem espontaneamente “por si mesmas” à organização
política das classes, que se formam politicamente como resultado
de uma intervenção organizada de um agente externo, nesse caso, o
partido (comunista). (MACHADO, 2014, p. 9).
O papel do PCB, então, foi o de atuar neste plano, de comando,
de direção. Sendo uma entidade perseguida pelas autoridades, seu
jornal servia como porta-voz do projeto que elaborou e de diálogo
com a classe trabalhadora. Para estudar a relação entre ele e o grupo
social em questão, como anteriormente mencionado, quatro pontos
foram destacados: as greves, os sindicatos, as eleições, e as condições
de trabalho dos trabalhadores marítimos.
O Folha Capixaba, ainda que não carregasse nas tintas em se
dizer ou de fato ser um jornal comunista, contava com porta-vozes
do partido e espelhava suas diretrizes. Em uma edição do jornal de
1958, o administrador do Porto de Vitória, Ataulfo Virgílio Lobo,
procurou o Secretário de Viação e Obras Públicas, manifestando que

289
Conflitos e Contradições na História

assumiria o cargo mediante o cumprimento de algumas garantias, já


que vinha para o meio de um povo em que todos eram comunistas,
demonstrando a relevância do espaço obtido pelo partido neste
campo de atuação. O partido, aliás, naquele momento, com início
nos anos de 1940 trazia o seguinte panorama, tendo como pano de
fundo a greve da Companhia Vale do Rio Doce:
Em 1948 (ocasião em que acontece uma greve na Companhia
Vale do Rio Doce), passava por um processo de radicalização e de
forte oposição ao governo Dutra. Principalmente após a cassação
do registro do partido no dia 7 de maio de 1947 e do mandato
dos parlamentares comunistas, efetivado em janeiro de 1948
(MACHADO, 2014, p. 7).
Uma vez traçados os conceitos de classe, o papel do
Partido Comunista no seio das entidades de classe, e dos próprios
trabalhadores, além do contexto político-econômico que atravessava
o Brasil e o Espírito Santo, destaco a presença, na capital Vitória,
entre os anos de 1957 e 1958, durante o mandato do prefeito Mario
Gurgel, que atuou também posteriormente como deputado estadual,
tendo presidido a Assembleia Legislativa, o cenário é exposto nas
palavras de Lucian Cardoso:
Mostra-se um esforço inicial de promover políticas
socioeconomicamente trabalhistas. Essa ação mais programática
perderia lugar para um governo redirecionado a máquina
administrativa, diante as dificuldades financeiras concomitantes
a falta de apoio dos setores mais favorecidos economicamente,
devido à forte oposição alimentada pelo jornal A Gazeta, o qual
tecia críticas de perfil notadamente conservador a administração de
Gurgel (CARDOSO, 2013, p. 88-89).
Esta observação foi feita devido ao fato de que Mario Gurgel
foi uma liderança frequentemente citada no periódico e de expressiva
presença e participação nos eventos dos sindicatos e associações
dos trabalhadores portuários. Seus discursos costumavam serem
integralmente transcritos no jornal. Isto é de grande importância
para a pesquisa, na medida em que Gurgel foi, como demonstra
Lucian Cardoso, uma das principais vozes da linha reformista no
trabalhismo capixaba. O PTB, no estado, conforme demonstra Marta
Zorzal e Silva (1995), foi um partido dominado por chefes de perfil

290
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

coronelista. Isto deixava pouco espaço para Gurgel. O espaço dado


a ele na publicação do PCB demonstra certa capacidade de diálogo
com o trabalhismo reformista, o que contrasta com a descoberta de
outro membro do grupo de estudos, Celio Gusmão, que também
realizou sua pesquisa de Iniciação Científica no mesmo momento
que esta. Ao abordar o processo de estatização da Estrada de Ferro
Leopoldina, ele percebeu o conflito de projetos entre trabalhistas
e comunistas, ao abordar jornais do Rio de Janeiro. Já no caso da
categoria dos portuários e marítimos, esta proximidade foi maior,
o que pode ter a ver com o isolamento que Gurgel viveu no PTB,
demonstrado por Lucian Cardoso, e as limitações do “populismo”
apontadas por Marta Zorzal no Espírito Santo.
A fim de trazer os resultados do trabalho de levantamento,
entro, no item Resultados e Discussões adiante, nos temas objetivados.
Importante narrar que, ainda que obediente à linearidade, tais
questões não serão apresentadas em tópicos.

Análise das fontes


Foi feita ma análise pormenorizada de discurso sobre todo o
conteúdo concernente aos portuários que possam constar no período
supracitado, e também sobre artigos e livros que têm ajudado a traçar
um panorama abrangente sobre o período e a categoria estudada.
Trabalho, sobretudo, com os conceitos de formação de classe de
Edward Palmer Thompson, que defende ser a classe trabalhadora
“feita por si mesma”, criada historicamente, mais especificamente
um “fenômeno histórico”, desprezando o conceito de “consciência
de classe”, e de Adam Przeworski que defende a Teoria da Escolha
Racional, segundo o qual os trabalhadores, coletivamente, fazem um
balanço da relação custo x benefício na luta por seus interesses. Esta
pesquisa segue uma linha que já vem sendo desenvolvida pelo grupo
de estudos sobre a formação da classe trabalhadora, que faz parte do
Laboratório de Estudos de História Política e das Ideias - LEHPI/
UFES, que se dedicou, anteriormente, ao caso da Companhia Vale
do Rio Doce (CVRD), com vários capítulos publicados em livro

291
Conflitos e Contradições na História

coletivo (GIL; JESUS; PEREIRA, 2014). Trata-se de estudar a forma


pela qual o projeto do PCB foi organizado e buscou obter apoio
junto aos portuários capixabas. Para tanto, o jornal Folha Capixaba
se mostra uma fonte fundamental.
No mês de junho de 1954, no estado do Rio de Janeiro,
milhares de operários navais, exigiram a demissão do Almirante
Lemos Barros, e de seu sobrinho, Conto Lemos. Fora decretada
também uma greve de advertência contra as perseguições sofridas
pelos operários (muito provavelmente em relação às ações de
ambos), e a anulação de suspensões. A greve seria capaz de mobilizar
aproximadamente 18 mil marítimos. As reivindicações também
se ergueram com vistas a impedir a venda de empresas marítimas
brasileiras ao capital estrangeiro, sendo citados com regularidade
os trustes norte-americanos, o que revela o discurso do PCB na
narrativa.
Em setembro do mesmo ano, os doqueiros capixabas
mostraram solidariedade à greve deflagrada por dos operários
marítimos paulistas. O fator “unidade”, frequentemente explorado
pelas autoridades sindicais, de classe, é notável tanto dentro,
como fora do Espírito Santo. As notícias concernentes à classe
circulavam entre os estados – e até mesmo entre outros países.
A adesão à greve é defendida pela categoria no estado. Segundo
Filadelfo Rocha, esta greve seria contra o golpe, pelo aumento de
salários e o congelamento dos preços. A “luta contra os trustes
americanos” também é uma constante no discurso dos marítimos.
Em 4 de junho de 1955, uma reportagem discorre sobre assembleia
no Sindicato dos estivadores de Vitória em defesa da Marinha
Mercante Nacional contra os trustes americanos, contando com
grande assistência e com a presença do vereador Agenor Amaro
dos Santos. Os doqueiros, em várias ocasiões, relatam suas duras
condições de vida. Morando em barracos, em encostas de morros,
mangues, com numerosas famílias, passando necessidades básicas,
inclusive fome. A escassez de trabalho também é denunciada, cuja
causa, apontam os marítimos em geral, se deve ao fato do Brasil não

292
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

traficar com os países do bloco soviético. Trabalhadores do Rio de


Janeiro, no mês seguinte, também se solidarizam com a greve dos
marítimos do Rio Grande do Sul, informando que, se eles fossem à
greve, nenhum navio singraria a Lagoa de Patos. É importante notar
que a referência aos trustes e a defesa do comércio com os países
socialistas é apresentada na fonte como fala dos trabalhadores, mas
reflete, de fato, o projeto do PCB para a categoria. Ou seja, se alguém
de fato usou estas terminologias, tratou-se de militante comunista.
No plano internacional, foi enaltecido o feito dos doqueiros
ingleses que, após 26 dias de greve, conseguiram encerrá-la
vitoriosamente. Os ingleses lutavam em favor da suspensão da
proibição das horas suplementares de trabalho. Em consequência da
greve, ficaram retidos 340 navios no porto.
Em Recife, Pernambuco, em janeiro de 1955, os estivadores
realizaram uma greve por conta de um grave acidente – depreende-
se neste caso, as condições de trabalho que os trabalhadores muitas
vezes enfrentavam – que vitimou 24 estivadores que descarregavam
tambores de éter do navio “Naven Munice”. O governo foi
responsabilizado por permitir o desembarque de material inflamável
em local inapropriado. Esta denúncia partiu do deputado Paulo
Cavalcanti, filiado ao PSD – ainda que esse tenha feito história
no PCB, partido proibido à época, na Assembleia Legislativa. Ao
mesmo tempo, Cavalcanti apresentara um Projeto de Lei com vistas
a fornecer auxílio às famílias dos trabalhadores.
O governo, seja na esfera federal ou estadual, era
constantemente acusado de negligência e protecionismo com
relação a empresas estrangeiras que “investiam” contra os interesses
nacionais, patrióticos, e tudo faziam a fim de liquidar empresas
estatais do seguimento. Nesse sentido, havia advertências para que
os portuários não cedessem à acordos de caráter local, pois isto em
muito enfraqueceria o fator unidade dos trabalhadores e entidades.
As greves, paralisações concernentes ao poderio das empresas
estrangeiras, aconteciam em diferentes pontos do País. Havia de fato
um esforço para a coesão nacional e o PCB defendia esta perspectiva,

293
Conflitos e Contradições na História

de maneira coerente com o esforço para articular lutas locais com


formas cada vez mais amplas de ações políticas.
Ainda no ano de 1955, os doqueiros santistas entraram em
greve por aumento salarial. Esta é uma das reivindicações mais
visíveis no periódico. Os doqueiros rechaçaram a proposta de 25%,
mantendo-se firmes nos 30% ambicionados. A interferência do
governo federal era sentida, e foi duramente criticada pela classe,
quando este destitui a diretoria do Sindicato dos Doqueiros de
Santos. Nesse caso, porém, dias depois (a greve foi deflagrada no
dia 6 de julho), no dia 9, a categoria aceitou o aumento de 25%,
temporariamente, afirmando continuarem a pleitear os 5% restantes,
mais o abono de Natal, somado à restituição da diretoria da entidade
representativa, o que conseguiram ainda no dia 9. Além disso,
uma greve referente a aumento salarial também ocorreu no Rio
de Janeiro, em 1956. Nela, os marítimos de empresas particulares
conquistaram o aumento pleiteado após 3 dias de paralisação. Estes
informes e acompanhamentos ajudam a construir a imagem de uma
categoria nacional, a se articular, mais uma vez de acordo com o
projeto do partido para a categoria.
Em Vitória, no ano de 1959, os portuários ameaçam entrar
em greve por conta de medidas imputadas ao Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) – que se encontrava no governo por meio do vice-
presidente João Goulart. As acusações remetiam à possibilidade do
partido nomear para o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos
Marítimos (IAPM), Antônio Alves Duarte, retirando Pedro Lima
do Rosário, do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Ainda em 1959, no dia 25 de dezembro, entraram em greve,
em todo o País, os oficiais de Náutica da Marinha Mercante, mais
os ferroviários da Leopoldina, ferrovia que abrangiam os estados do
Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Distrito Federal. A
greve fora aprovada depois dos náuticos não obterem sucesso nas
suas reivindicações junto à Comissão da Marinha Mercante, que
abarcava o aumento salarial, o reajustamento de cargos e funções,
melhorias de pensões em casos de aposentadoria etc.

294
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Perpassando por outra categoria, temos os catraieiros,


responsáveis pelas catraias, pequenas embarcações que faziam
o transporte, no estado, de passageiros entre o porto de Paul,
na cidade de Vila Velha, e a cidade de Vitória e que neste recorte
temporal possuía grande demanda – chegando a conduzir milhares
de passageiros por dia – também recorreram à greve a fim de se
protegerem de medidas tomadas pela Capitania dos Portos. No ano
de 1958, foi estipulada uma diminuição no limite de passageiros
a serem transportados por viagem, ao passo que as lanchas,
pertencentes a empresa americana “Central Brasileira”, proprietária
do serviço de lanchas na baía de Vitória e que eram descritas pelos
catraieiros como estando sucateadas, sem manutenção e trafegando
sem qualquer imposição de limite de passageiros. Os catraieiros
entraram em greve por duas horas e montaram uma comissão
com fito de exigir a revogação da decisão diretamente na Capitania
dos Portos. Antes estipulada a diminuição de 4 passageiros por
embarcação/viagem, os catraieiros conseguiram fazer com que esta
caísse para 2 passageiros.
Em 26 de setembro de 1960, os portuários de Vitória
cogitaram ir à greve caso suas demandas não fossem atendidas.
Dessa vez, exigências mais abrangentes: Enquadramento salarial,
licença-prêmio, abono familiar e, principalmente, abono salarial.
Para isto, nomearam uma Comissão composta pelo Delegado do
Trabalho – quase certamente o Delegado do Trabalho Marítimo,
dois representantes do Conselho Sindical – que era a entidade que
congregava dos trabalhadores urbanos do Espírito Santo, e toda a
diretoria da entidade a fim de, em contato direto e frequente com os
representantes do Porto de Vitória, viabilizem suas reivindicações.
A greve tinha dia e horário para começar: 0 hora do dia 28,
mas foi adiada em virtude de uma proposta apresentada por Carlos
Lindemberg Filho, representante do Governo do Estado. A greve já
havia sido aprovada pelos doqueiros e estivadores em seus respectivos
sindicatos, entretanto, em reunião na noite do dia 27, foi considerada
a proposta governista de nomear uma Comissão composta por dois

295
Conflitos e Contradições na História

representantes da Associação dos Portuários, dois representantes


da Administração do Porto de Vitória, um do Governo do Estado,
e, por fim, um do Conselho Sindical, a fim de estudarem, em um
prazo de 15 dias, a proposta de enquadramento. No mês seguinte,
houve vitória parcial dos portuários capixabas: eles conseguiram
o pagamento de adicional de periculosidade e de insalubridade, o
enquadramento funcional, o pagamento de 100% nas horas extras
de trabalho quando feita para terceiros, e que qualquer quantidade
de horas feita fora do horário normal, mesmo que fosse inferior a
6h, correspondesse a uma jornada integral. Todo este episódio é de
grande relevância na trajetória da categoria e no sucesso da ação do
PCB como liderança da formação de classe. O Conselho Sindical
foi uma organização que buscou a unificação dos trabalhadores no
estado e na qual houve a participação de comunistas e outros setores.
A aprovação desta forma ampliada de luta na cobertura do jornal
reforça o tipo de direcionamento sugerido para a formação de classe.
Ainda no ano de 1960, na edição que vai do dia 21 a 27 de
outubro, o jornal trata de uma paralisação nacional, de 24h, que
mobilizara cerca de 150 mil estivadores, e que terminara vitoriosa
com o aumento de 35% sobre taxas e salários; o estabelecimento de
uma taxa de 5% sobre cargas e descargas destinadas ao Sindicato
dos Estivadores, que constituiriam o fundo de férias para concessão
do repouso anual remunerado de seus associados, E a extensão da
portaria 207.357/56 do Ministério do Trabalho a todos os portos
nacionais. Esta portaria estabelecia que somente os trabalhadores
matriculados na Capitania dos Portos, até 28 de fevereiro de 1940,
pudessem exercer a estiva livre (que era a estiva realizada pela
própria tripulação das embarcações), e a publicação, em 15 dias,
no Diário Oficial, determinando o retorno das Caixas de Acidentes
do Porto de Santos e da Guanabara aos Sindicatos dos Estivadores
das respectivas cidades. A categoria manteve a promessa de greve,
enquanto o enquadramento de classe não fosse publicado no Diário
Oficial até a zero hora do dia 26 de outubro. A paralisação, por fim
foi sustada em razão da publicação no Diário Oficial.

296
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Sobre as condições de trabalho dos portuários, na fonte


primária não é destacada grande discussão a respeito. Há uma
denúncia feita ao jornal no ano de 1954, pelos operários do Cais
do Porto, contra as seções de carpintaria e serraria. Havia uma
recomendação para que os funcionários chegassem com 10
minutos de antecedência – sendo o horário de entrada às 7h. Os 10
minutos deveriam ser rigorosamente observados. Caso contrário, os
funcionários perderiam o dia, sendo impedidos de exercerem suas
funções.
Havia duras críticas a respeito do tratamento dispensado
aos trabalhadores do Porto que, independente de possuírem
especialização profissional, recebiam salários ínfimos. Salários estes
que, não raramente, sofriam atrasos, como no caso em que tiveram
que esperar, por razão do falecimento do Secretário da Fazenda, a
nomeação do próximo a ocupar o cargo. Nesse caso, os funcionários
também pediram que o jornal publicasse o fato de que alguns
“protegidos” da administração do porto continuassem trabalhando,
fazendo horas extras normalmente. As horas extras - fica entendido
- não eram permitidas a todos os trabalhadores.
Os marítimos, com os recorrentes atrasos de pagamento,
que chegavam há dois meses, queixavam-se indelevelmente de
“passarem fome”, e “não ter como pagar passagem para chegarem
ao trabalho”, tendo de ir trabalhar a pé.
No caso dos doqueiros, muitos destes conciliavam seus
trabalhos nas docas com as atividades de pesca. A capitania dos
Portos quis pôr fim a prática: As docas, ou a pescaria, a pescaria ou
as docas. Houve grande descontentamento por parte dos doqueiros,
visto que a pesca seria uma espécie de “auxílio financeiro” para que
não faltasse comida em suas casas. Os baixos salários e a carestia
de vida à época são uma constante praticamente em todas as
reportagens.
Em 1956 houve um episódio de “demissão incentivada”.
Trabalhadores estavam com salários atrasados, sem previsão de
pagamento, mas ao passo que pediam demissão, em 20 dias eram

297
Conflitos e Contradições na História

indenizados. Em julho de 1956, houve uma demissão em massa.


Aproximadamente 300 operários foram demitidos e “devidamente
indenizados”. O porto alegava se tratar de consequências da situação
econômica que o País atravessava.
O desrespeito às leis trabalhistas eram, na perspectiva dos
portuários, uma constante. Os vigias do Porto, 20 no total, com
direito a folgas remuneradas, trabalhavam aos feriados e não
recebiam extraordinário. Também não tinham horário definido
para almoço ou janta.
A ausência de trabalho, que por muitas vezes era justificada
pelo fato do Brasil não negociar, comercializar com os países do eixo
soviético, “por influência do Departamento de Estado Americano”,
comprometia as condições de vida, trabalho dos portuários. Em abril
de 1957, foi narrado que, durante o mês de março, o Porto ficara
semanas sem receber navio, tendo os trabalhadores tido serviço no
máximo 7 dias em todo o mês. Como consequência, “as cozinhas
dos operários” chegaram a ficar sem a “farinha e manjuba (peixe)”,
alimentos básicos para estes trabalhadores.
Os catraieiros, em especial, eram os grandes críticos e
acusadores de “esquemas” da Capitania dos Portos que visavam
proteger a Central Brasileira, truste norte-americano responsável
por operar o serviço de lanchas de passageiros na Baía de Vitória.
Em notícia do dia 25/5/1957, foi relatado que a Capitania cedera a
possibilidade de aumento das passagens à empresa americana, ao
passo que negara o aumento às catraias. Outra medida protecionista
seria o impedimento que pesavam sobre os catraieiros de não
instalarem motores de popa em suas embarcações – aos que
poderiam fazê-lo tendo condições financeiras. Tal proibição, afirma
o periódico, estaria acordada no contrato entre a Central e o Estado.
O jornal afirma que: “Foi aí que o povo, reconhecendo a dificuldade
dos catraieiros, por livre e espontânea vontade, passaram a pagar,
no lugar de 0,50 centavos, 1,00.” Houve resistência por parte da
Capitania, mas o aumento seguiu em vigor. Os trabalhadores da
Central Brasileira também se manifestaram, ao frisar que, apesar de

298
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

todo o lucro obtido pela companhia, estes não recebem mais que um
salário mínimo. A diferença residia no fato de, por serem marítimos,
fazerem jus a direitos como salário-família, abonos pagos pelo
governo federal etc.
Mais tarde, foi sugerido pelas autoridades que os catraieiros
subissem a passagem para Cr$ 2,00, o que foi rechaçado. Enxergou-
se aí uma tentativa de fazer migrar os passageiros para as lanchas,
que estavam com menor valor de passagem. Em 1959, os catraieiros
buscaram legalizar este valor, lutando pelo aumento da passagem
junto à Comissão de Marinha Mercante. A precariedade do Cais
dos botes em Vitória, necessitando de urgentes reparos, também foi
salientada. No mesmo ano, os catraieiros denunciaram perseguição
da Capitania dos Portos junto à Central Brasileira, dispostos,
segundo eles, a “liquidarem a catraia”, meio de transporte utilizado
por grande parte da população. Com tal medida, cerca de 150
catraieiros, à época, perderiam seu meio de sustento. Os catraieiros
se viam em completa desvantagem com relação às lanchas. Com
piores condições de trabalho, sendo autônomos, viviam em
condições insalubres, em “habitações miseráveis e anti-higiênicas”,
com numerosas famílias, ainda que atendessem uma demanda de
passageiros muito superior ao da Central Brasileira. Os catraieiros
foram inclinados a conviver com os grandes projetos industriais,
promovidos ao longo do tempo pelas empresas interessadas,
juntamente ao governo estadual (MORAES, 2015).
No caso das catraias é importante verificar que, até a década
de 1960, estas, juntamente com as lanchas da Companhia Central
Brasileira de Força Elétrica (CCBFE), eram basicamente o meio de
transporte utilizado pela população entre a Capital e região de Paul
e arredores, em Vila Velha, para atravessar a baía de Vitória. Sua
decadência se deveu à expansão do sistema rodoviário. Os ônibus,
juntamente com as pontes erguidas ligando as ilhas, terminam por
suplantar sua utilização, até praticamente seu desaparecimento.
Em 7 de setembro de 1957, foi levantada a questão dos
trabalhadores do Portos não saberem se estavam enquadrados como

299
Conflitos e Contradições na História

funcionários do Estado ou como diaristas. Eles não tinham direito à


estabilidade. Assim, era reclamada uma definição. Eles reivindicam
o atendimento pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos
Marítimos (IAPM), visto que não tinham acesso a médicos
especialistas, restando a esses pagarem por consultas particulares.
As assembleias eram costumeiras e havia eleições
regularmente. Não foi detectada uma diferenciação entre as
categorias, sendo constatado, no levantamento, que as mesmas
eram anuais, normalmente nos próprios armazéns do Porto –
ainda existentes -e contavam com a instituição da diretoria dos
sindicatos e associações, como a Associação dos Portuários de
Vitória, Associação dos Trabalhadores do Cais do Porto, Associação
Beneficente dos Catraieiros, o Sindicato dos Doqueiros, o Sindicato
dos Estivadores, etc.
O jornal fazia o trabalho de divulgar as chapas, a realização
das eleições, sendo utilizado como meio de convocatória, e também
divulgava o resultado dos pleitos. Elegiam-se os presidentes
e vice-presidentes, o 1º e 2º secretários, o 1º e o 2º tesoureiros, o
procurador, o Conselho Fiscal e seus suplentes. O periódico sempre
enfatizara e parabenizara a grande participação dos portuários
nestes eventos. Mesmo trabalhadores analfabetos “faziam questão”
de se candidatarem e votarem nas disputas eleitorais dos sindicatos
e associações dos portuários em geral.
No ano de 1954, quando da presença da reportagem de
Folha Capixaba na orla marítima em conversa com doqueiros e
estivadores, estes também não deixaram de se manifestar a respeito
das eleições no País. Na sede do sindicato, defenderam a necessidade
da realização de eleições livres como única forma de, elegendo o
povo seus próprios representantes, acabar com um governo cercado
por “fome e miséria” e com a manutenção dos trustes estrangeiros
no poder. É marcante o uso de termos como “imperialismo”
nos discursos atribuídos aos trabalhadores. Fazia-se menção
corriqueiramente também ao fato dos “Estados Unidos quererem
transformar o Brasil em sua colônia e assim escravizar seu povo”.

300
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Ainda sobre as eleições nacionais, em 1955, Juarez Tavora,


candidato à Presidência da República pelo Partido Democrata
Cristão (PDC), apoiado pela União Democrática Nacional (UDN),
esteve em Vitória durante sua campanha eleitoral. Em visita ao
Sindicato dos Doqueiros, foi sabatinado por estes. Os doqueiros
levaram ao candidato questões concernentes à classe trabalhadora
e aos interesses nacionais – do micro ao macro. As discussões se
encerraram quando Juarez Tavora, ao ser questionado sobre a
liberdade, autonomia dos sindicatos, garantiu que, caso eleito, não
permitiria que o Ministério do Trabalho interviesse no sindicato ou
nas eleições sindicais.
Os sindicatos representavam múltiplos papéis dentro das
esferas das categorias marítimas. Locais de mediação, assembleias
– concernentes a eleições, administração, orçamento, festas,
denúncias (contra colegas, em caso de furtos, e contra as próprias
diretorias, em caso de corrupção, perseguição e protecionismo a
alguns trabalhadores), são de suma importância e presentes no
histórico de lutas desses operários nesse momento. Raramente se
vê no jornal qualquer notícia envolvendo os operários onde seus
respectivos sindicatos não sejam citados – raramente como “algozes”
e majoritariamente como local de apoio, luta, reivindicação. A
instituição de novas diretorias costumava contar com a presença de
políticos locais, como Mario Gurgel, e o vereador Francisco Sales,
tendo saudado a nova diretoria do Sindicato dos Estivadores, em
1954.
Os trabalhadores não sindicalizados eram frequentemente
estimulados a procurarem o sindicato de sua classe a fim de fazerem
jus a todos os benefícios que a lei lhes conferia, como aposentadoria,
benefício quando estivessem doentes, auxílio as suas famílias. A
adesão era importante para fins de engrossar as fileiras da classe em
busca da unidade nos momentos da luta por melhores condições de
trabalho, de vida, conquista e consolidação de direitos.
A confiança dos trabalhadores nos sindicatos ultrapassava
qualquer outra em qualquer outro ente. Em 1956, mediante descontos

301
Conflitos e Contradições na História

de até 20% em seus salários, os doqueiros conseguiram levantar


verba suficiente para a construção do edifício-sede de seu sindicato.
Obra esta enaltecida seja pela rapidez com que se realizara, seja por
sua moderna arquitetura. No prédio, os doqueiros esperavam contar
com assistência médica, dentária e auxílio financeiro nos momentos
de necessidade. Necessidade esta que fomentou a instalação de uma
cantina, em acordo com a Comissão de Abastecimento e Preços do
Estado do Espírito Santo (COAP), em 1956, para venda de itens
de primeira necessidade – víveres alimentícios, no Sindicato dos
estivadores e, posteriormente, no Sindicato dos Arrumadores.
Em 1961, 60 representantes dos sindicatos dos estivadores de
todo o Brasil, se reuniram do dia 15 a 19 de novembro, na Guanabara.
Liderados pela sua Federação Nacional, tinha por objetivo solucionar
o problema da extinção da estiva livre, que já havia sido determinada
por lei, e da administração das Caixas de Acidentes de Santos e da
Guanabara pelos sindicatos dos estivadores dos respectivos portos,
e outras reivindicações.

Conclusão
Estudar a formação da classe trabalhadora capixaba, em um
contexto, dentro de uma sociedade historicamente conservadora, não
deixa de ser um desafio. A própria pesquisa só foi possível por contar
com um periódico que, a duras penas, sobrevivia graças à publicidade
– como todos os outros; entretanto, no caso de Folha Capixaba, a
presença dos chamados reclames, chega a ocupar praticamente
metade das edições. Este periódico consistia em um instrumento
da esquerda, essencialmente tratando de assuntos concernentes às
reivindicações trabalhistas, atuando como ferramenta de denúncias
de abusos, não cumprimento de acordos entre Estado x trabalhador,
patrão x trabalhador etc, além de conclamar as classes à união, à
“unidade”.
Graças ao que foi preservado deste jornal, conseguimos traçar
um panorama de como os trabalhadores portuários se portavam
em meio as mais diversas intempéries e conquistas. É possível

302
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

vislumbrar a importância e atuação dos sindicatos, os momentos em


que as greves mostravam-se como única saída, as duras condições
de trabalho e sobrevivência, e a militância, a mobilização em torno
das eleições.
Volto a repetir que o trabalho traz algo de novo e importante
no sentido de se configurar como mais uma fonte de estudo aos
estudantes, pesquisadores cujo anseio seja estudar o tema, e como o
mesmo pode contribuir para conhecermos ainda mais a tão pouco
explorada – ou escrita – história de nosso estado.
Por se tratar de uma publicação com mais de 60 anos, somado
aos efeitos do tempo, temos também os efeitos da própria tecnologia
utilizada que acaba por, ainda que ajudando a preservar, danificar o
documento. Isto, tendo também graduação como arquivista, afirmo
com propriedade. Desse modo, nem sempre as letras, palavras, ou
mesmo páginas estão legíveis, ainda que não se possa negar o quanto
isto é rico, importante, expressivo no seio da pesquisa histórica.
A grande dificuldade talvez tenha sido costurar conceitos,
fazer um estudo detalhado sobre um recorte temporal relativamente
comprido.
Importante salientar que este é apenas o início de um
trabalho que culminará com meu trabalho de conclusão de curso
de Licenciatura/Bacharelado em História. Há sempre o que estudar,
há sempre o que descobrir, há sempre com o que contribuir. E no
tocante aos portuários deste estado e seus séculos de história, com
tudo o que foi vivido, transformado, modificado em seu trabalho e,
consequentemente, na economia do Espírito Santo, definitivamente
ainda há muito que ser feito.

Referências
ANDRÉ, Marlene M. A organização do trabalho portuário:
o cotidiano de vida e trabalho dos portuários avulsos. Espírito Santo:
EDUFES, 1998.
CARDOSO, Lucian R. Entre a raia miúda e o blacktie: a

303
Conflitos e Contradições na História

administração de Mario Gurgel na Prefeitura de Vitória (1957-


1958). 2013. 91 f. Monografia de Final de Curso (Graduação em
História) - Departamento de História, Centro de Ciências Humanas
e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.
Orientador: Prof. Dr. André Ricardo Valle Vasco Pereira.
FOLHA CAPIXABA, jornal. 1954-1961.
GIL, Antonio C. A.; Jesus, Graziela M.; Pereira, André R. V.
V. (Orgs.). Estudos de história política e das ideias, v.1. Vitória
(ES): LEHPI/UFES, 2014
MACHADO, Vinicius O. O vereador de Prestes: a atuação
de Antonio Ribeiro Granja na Câmara de Cariacica – ES (1947-
1951). 2014. 86 f. Monografia de Final de Curso (Graduação em
História) - Departamento de História, Centro de Ciências Humanas
e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.
Orientador: Prof. Dr. André Ricardo Valle Vasco Pereira.
MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e
da democracia. Lisboa, Cosmos; Santos: Martins Fontes Ed., 1975.
MORAES, Arthur F. A modernização ingrata. A decadência
do grupo de catraieiros de Paul no contexto da Industrialização da
Grande Vitória. 51 f. Monografia de Final de Curso (Graduação em
História) – Departamento de História, Centro de Ciências Humanas
e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.
Orientador: Prof. Dr. André Ricardo Valle Vasco Pereira.
PEREIRA, André R. V. V. Mais do mesmo: o reforço da
integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista
internacional. Sinais (UFES), v. 1, p. 203-232, 2011.
PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-democracia.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SILVA, Marta Z. Espírito Santo: Estado, interesses e poder.
Vitória: FCAA/SPDC, 1995.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa.
Trad. Denise Bottmann, 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

304
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

A afirmação da Ordem Imperial: Sabinos no


banco dos réus
Renan Rodrigues de Almeida1

Introdução
A presente comunicação, tendo como área de pesquisa a
História do Direito no Brasil Império, empreende investigação
acerca do processo judicial de treze oficiais envolvidos na Sabinada,
reconhecidos pelas autoridades legais como os principais militares
atuantes na rebelião.
O processo, iniciado no Conselho Militar, foi posteriormente
submetido à Junta Militar de Justiça da Bahia, cuja sentença fora
recorrida ao Supremo Tribunal de Justiça, revista, e encaminhada
para o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro. Neste longo percurso,
os embates decorrentes suscitarão uma série de questões no que
tange tanto ao sistema jurídico do Império quanto à própria natureza
da revolta.
Desta forma, a investigação buscou elucidar o panorama geral
da revolução dos sabinos, determinar o funcionamento básico dos
tribunais responsáveis pelo processo e problematizar a aplicação
das leis no caso concreto dos réus. Para tanto, além de apoiar-se
em bibliografia especializada no objeto de estudo, sendo o livro
“A Sabinada” de Paulo César de Souza a mais recorrida, a pesquisa
focou nas fontes em jornais de época, com maior ênfase no “Correio
Official” (RJ).

A Rebelião
A Sabinada foi uma dentre várias rebeliões ocorridas durante
o período regencial do Império brasileiro, mais precisamente, o
evento ocorreu entre 7 de novembro de 1837 e 16 de março de 1838,
tendo como epicentro a cidade de Salvador.

1 Graduando em HIstória pela Universidade Federal do Espírito Santo.

305
Conflitos e Contradições na História

Em sua obra, Viana Filho2 (apud Souza 2009, p. 17) apresenta


a revolta enquanto legado das inquietações reinantes na província
desde a Inconfidência dos Alfaiates, ocorrida em 1798. Do ponto
de vista ideológico, a Sabinada adotou como arcabouço ideológico
os ideais de autonomia da Revolução Francesa, difundidos em
sociedades políticas, lojas maçônicas e periódicos.
De fato, mesmo após a Independência, em 1822, a Bahia
nunca fora plenamente pacificada, o que sobremaneira reflete as
condições de penúria vivenciadas pela população baiana, desde o
século anterior, com o enfraquecimento da economia açucareira e
o decorrente deslocamento do eixo econômico para o Centro-Sul.
Mesmo sua adesão à ordem imperial só foi conquistada após intenso
combate entre tropas portuguesas fiéis ao Estado luso e o “Exército
Pacificador” de D. Pedro I. Deste momento em diante, a província
foi palco de uma série de revoltas, dentre elas, as agressões contra
portugueses manifestadas em episódios como os “Mata-marotos”,
recorrentes em todo o período regencial; as sublevações militares; a
Revolta federalista em 1832; e a Revolta dos Malês em 1835 (LOPES,
2008).
Em meio a este clima de instabilidade sociopolítica e
efervescência ideológica, ganhou projeção a voz do médico, professor
e publicista Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, editor do
jornal “Novo Diário da Bahia”. Em suas páginas, o proeminente
baiano, cujo sobrenome se tornou designativo da revolta, afirmava
que
[...] se os homens constituindo-se em sociedades procuram
estabelecer entre eles o melhor princípio de política, que os dirija;
devem abraçar sem dúvida, aquele, que lhes consente uma esfera mais
ampla para o exercício da Liberdade individual. E se esta faculdade
moral dos homens para ser menos anômala com o princípio social,
deve identificar-se com as Instituições Republicanas, fica evidente,
que o gênero humano somente obterá felicidade, com a aceitação
do Governo Democrático (SABINO apud SOUZA, 2009, p. 206).

2 VIANNA FILHO, Luiz. A sabinada – a república baiana de 1837. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1938. Esta obra não se encontra disponível na Biblioteca
Central. Apenas na biblioteca do Senado Federal.

306
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Segundo Souza (2009, p. 31-32), o separatismo do Rio Grande


do Sul deu um ânimo a mais às ideias republicanas de Sabino. A
fuga de Bento Gonçalves de sua prisão no Forte do Mar, no dia 10
de setembro de 1837, alarmou as autoridades baianas. Para muitos
contemporâneos, a façanha foi facilitada pelos irmãos maçons
baianos do líder farroupilha. Seu papel efetivo para a organização e
desencadeamento da rebelião dos sabinos, é, no entanto, discutível.
Rumores de uma revolução foram amenizados pelo
comandante das Armas, Luiz da França e o presidente da província,
Francisco de Souza Paraíso. Sua inação custou caro: no dia 6 de
novembro, um grupo de oficiais de primeira linha, em ação conjunta
com os civis Francisco Sabino, João Carneiro da Silva Rego e Manoel
Gomes Pereira, tomou o controle do Forte de São Pedro, quartel do
Corpo de Artilharia (SOUZA, 2009).
Na manhã do dia seguinte, os insurgentes marcharam até
o centro da cidade, defrontando-se com as forças do governo. No
entanto, não demorou muito para que a maior parte da resistência
debandasse para o lado dos rebeldes. Assim, no dia 7 de novembro
de 1837, em Assembleia na Câmara Municipal, aclamaram uma
ata que, dentre outras medidas, desligava oficialmente a Bahia do
Império Brasileiro, adotando o modelo de governo republicano
(LOPES, 2008).
O clima de euforia e cortejos decorrentes, no entanto, logo
dariam lugar à incerteza em relação ao novo regime estabelecido.
Douglas Guimarães Leite (2006) aponta que não tardou muito
para que a cidade vivenciasse o êxodo da maior parte de sua elite,
incluindo o próprio presidente deposto, Souza Paraíso. De modo
contraditório, já no dia 11 de novembro, um grupo de signatários da
ata da independência submete à Câmara uma representação escrita
solicitando a inclusão de uma emenda que declarava o desligamento
da antiga província apenas até a maioridade de D. Pedro II. Nas
palavras de Souza (2009, p. 42), a medida tornava a Sabinada uma
“revolução suicida”.
Lopes (2008) salienta que a resposta legalista não tardou,

307
Conflitos e Contradições na História

em contraste à apatia dos rebeldes. Numa ação que se assemelhava


àquela adotada em 1823, os grandes senhores de terra do Recôncavo,
com auxílio da Corte, organizaram verdadeiro exército contra
o governo rebelde, promovendo, ainda, o bloqueio marítimo à
Salvador, estrangulando-a com violência e fome. A autora explica
ainda que, não obstante,
O governo revolucionário tentou administrar a situação, mas
chegou ao limite, permitindo a fuga de mulheres, crianças e
idosos da cidade sitiada. Outra prova de desespero se encontra
no recrutamento de soldados entre escravos e presos condenados
(LOPES, 2008, p. 15).
Em apenas quatro meses, extinguia-se a experiência
republicana da Bahia, mais precisamente no dia 16 de março de 1838,
deixando um saldo de cerca de 1258 mortos e 2989 prisioneiros do
lado dos sabinos, e 594 mortos do lado legalista (SOUZA, 2009).
O calvário dos vencidos estava apenas começando.

O contexto do julgamento
A repressão decorrente da vitória legalista pode ser sintetizada
pela Lei de 30 de abril de1838, constante na edição de número 129
do “Diário do Rio de Janeiro” (1838, p. 1):
Thomaz Xavier Garcia d’Almeida, presidente da província da
Bahia. Faço saber à todos os seos habitantes, que a assembléia
geral legislativa provincial decreton [sic], e eu sanccionei a lei
seguinte:Art. 1º Ficão suspensas, por espaço de dois mezes, as
garantias dos §§ 6, 7 e 8 do artigo 179 da constituição, para o
fim de serem removidos d’esta para qualquer outra província, os
indivíduos suspeitos à segurança publica; bem como para que a
respectiva autoridade possa, dia, ou noite, entrar na casa, que lhe
fôr suspeita, sem lhe obstarem as formalidades das leis, e mesmo
prender, sem culpa formada, os comprehendidos na revolução de
7 de novembro de 1837, podendo formar-lhes a culpa, quando
possível seja [...].
Suspendia-se, desta forma, alguns dos direitos individuais
básicos garantidos pela Constituição de 1824. Nessas condições,
iniciava-se o processo dos treze principais líderes militares da
Sabinada, dentre tantos outros militares e civis que aguardavam

308
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

julgamento. Souza (2009, p. 118) aponta, no entanto, que muitos


destes outros nunca se sentariam na cadeira de um tribunal: haviam
sido sumariamente expulsos da província, enviados para lutar com
os farroupilhas ou simplesmente apodreceram nos porões de galés.

Os réus
Conforme já salientado, as fontes falam de 13 militares
considerados os “cabeças” da Revolução, os quais partilharam o
mesmo processo. O jornal fluminense “Correio Official” (1840, pp.
49-50), em sua edição de número 13, aponta nomes e as respectivas
patentes de 12 destes réus. Infelizmente, não foi possível descobrir a
identidade, muito menos a patente do 13º réu. Assim, doravante, o
mesmo será referido como “Oficial desconhecido”. São eles:
I) Tenente Coronel Ignacio Joaquim Pitombo, elevado pelos
rebeldes ao posto de Coronel, e comandante de um dos pontos por
eles fortificados;
II) Tenente Coronel Manoel Marques Cardoso, Ajudante General
dos rebeldes;
III) Major de artilharia Sérgio José Velloso, General em chefe dos
rebeldes;
IV) Major de artilharia Inocêncio Eustáquio Ferreira de Araujo,
General de divisão dos rebeldes;
V) Major reformado José Joaquim Leite, Coronel comandante de
divisão dos rebeldes;
VI) Tenente Manoel José de Azeredo Coutinho, Tenente Coronel
comandante da terceira brigada dos rebeldes;
VII) Capitão Manoel de S. Boaventura Ferraz, Coronel e diretor do
arsenal de guerra dos rebeldes;
VIII) Tenente de Caçadores Pedro Barbosa Leal, Major e
comandante da polícia dos rebeldes;
IX) Tenente Alexandre Ferreira do Carmo Sucupira, Major
comandante de um dos batalhões dos rebeldes;
X) Alferes João da Paixão, Capitão e comandante de um corpo dos
rebeldes;
XI) Alferes Ajudante Rodrigo Xavier de Figueiredo Ardignhac,
Major e secretário do comando das armas dos rebeldes;
XII) Alferes Manoel Florêncio do Nascimento, Tenente e secretário

309
Conflitos e Contradições na História

da segunda brigada dos rebeldes;


XIII) Oficial desconhecido.
As patentes designadas antes dos nomes dos réus são as oficiais,
entregues ainda sob o governo “legal”. As patentes posteriores
aos nomes referem-se às promoções oferecidas pelo governo
republicano àqueles que participaram ativamente na tomada do
poder no 7 de novembro, subindo automaticamente duas patentes
na nova hierarquia militar (SOUZA, 2009, p. 40).
Dentre os réus, é sabido que Pitombo, Velloso, Araújo, Leite
e Sucupira haviam lutado contra o governo imperial nas rebeliões
federalistas já mencionadas neste trabalho.3

Do Conselho de Guerra à Junta de Justiça da Bahia


O processo dos réus inicia-se em junho de 1838 com a
convocação de um Conselho de Guerra, órgão criado em 1763.
Segundo Adriana Barreto Souza e Angela Moreira Domingues da
Silva (2016, p. 365-366),
[...] as bases legislativas desses conselhos permaneceram quase
inalteradas até a República. Não eram instituições permanentes.
Atendiam a demandas específicas de cada Regimento e
organizavam-se em torno destes. Cada Conselho de Guerra devia
ser integrado por um presidente [...] e cinco oficiais militares,
denominados vogais.
As autoras salientam ainda, e este ponto é importante para
o caso dos sabinos, que as patentes tanto do presidente quanto
dos vogais não poderiam ser inferiores à do réu, respeitando-se o
princípio hierárquico militar (SOUZA; SILVA, 2016).
Ora, assumindo que a rebelião representou uma quebra da
hierarquia estabelecida, entende-se o peso que este fato teria para a
decisão de oficiais de patente superior.
O Conselho foi presidido pelo coronel Antonio Corrêa Seara,
veterano da repressão contra a Confederação do Equador (DORIA,
3 Souza Carneiro. A Sabinada, p. 76; Souza, A Sabinada, p. 165; Tavares, A
Independência, pp. 46-9; Defesa do acusado sargento mor Inocêncio Eustáquio
Ferreira de Araújo, 23. 06.1838, PAEBa, V, pp. 91-8, esp. 92.

310
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

n. 33, 1942) e comandante de uma das brigadas responsáveis por


esmagar a Sabinada (CORREIO OFFICIAL, n. 78, 1838). Os réus
foram acusados de
[...] desobediencia a todas as autoridades legaes da Provincia, aos
seus superiores, sendo esta extensiva até a pessoa de Sua Magestade
Imperial, por ocasião da revolta de 6 de novembro… sendo elles
dos principaes criminosos por terem servido no partido rebelde,
usando das insignias, e concorrendo para [...] extravio, e furto das
armas e munições (CORREIO OFFICIAL, n. 103, 1839).
Todos os réus foram condenados à morte.Pitombo, Ferraz,
Ardignhac, Leal e Nascimento foram recomendados à Imperial
Clemência (CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840).
À posteriori, o processo foi submetido à Junta militar de
Justiça da Bahia. A sentença foi modificada para os seguintes termos:
manteve-se a pena capital para Velloso, Sucupira, Araujo e Leite.
Coutinho, Ferraz e Paixão foram condenados à prisão perpétua, e os
demais, a 20 anos de prisão, exceto o Oficial desconhecido, absolvido
(SOUZA, 2009, p. 122).
Embora mais “branda” que a primeira sentença, a decisão da
Junta militar da Bahia ainda representava uma derrota para os 12
condenados. A solução aparente era mudar o campo de batalha…

Do Supremo Tribunal de Justiça


Condenados por duas vezes pela Justiça militar, os réus
recorreram então àquela que era, ao menos em tese, a instância
máxima de justiça no Império: o Supremo Tribunal de Justiça.
José Reinaldo de Lima Lopes (2010, p.93, grifo nosso), em
seu livro O Oráculo de Delfos, discute que a função do Supremo
durante o Império era a de examinar as sentenças encaminhadas na
forma de recurso de “revista”. Os casos eram revisados com base
em alegações de nulidade manifesta (descumprimento de regras
que garantissem o contraditório ou a ordem do juízo) ou injustiça
notória (descumprimento ou aplicação equivocada da lei material).
No dia 31 de Outubro de 1839, as páginas do jornal fluminense

311
Conflitos e Contradições na História

Correio Official (n. 103, 1839) apresentavam a decisão tomada pelo


órgão, datada de 16 de agosto do mesmo ano, concedendo
[...] a pedida revista pela manifesta nullidade em que laborão o
processo e todas as sentenças nelle proferidas. Por quanto sendo
nullo todo o processo organisado, e todo o julgamento proferido
por Juiz incompetente, e gozando somente os reos militares do
privilegio do foro nos crimes - puramente militares - devendo
em todos os mais ser processados e julgados perante as forças
ordinarias, evidentissima vem a ser a incompetencia com que no
foro militar forão os recorrentes processados e julgados [...].
Consoante entendimento dos juízes, portanto, as sentenças
decretadas tanto pelo Conselho quanto pela Junta expressavam
nulidade manifesta por duas razões essenciais. A primeira, apontava
para a incompetência do juízo militar em conhecer dos crimes
cometidos pelos réus, os quais são reconhecidos como perpetrados
pelo Supremo, “Não podendo porém caber a menor hesitação
sobre não serem realmente estes crimes puramente militares [...]”
(Ibidem). A segunda consistia na incompetência do foro em julgar
alguns dos réus pelo simples fato de os mesmos não serem militares.
Podemos perceber o quão controversas são estas duas
questões levantadas pelo Supremo. Ambas serão melhor exploradas
no próximo tópico.
Reconhecida a nulidade do processo, que resultou na
admissão de revista, os juízes o remeteram aos cuidados do Tribunal
da Relação do Rio de Janeiro para revisão e julgamento (Ibidem), isso
porque “Uma vez concedida a revista [...] o Supremo não tomava ele
mesmo nova decisão, mas remetia o processo a uma das Relações
do Império. Esta não estava obrigada a seguir o entendimento do
Supremo e cada uma delas [...] decidia como bem entendesse”
(LOPES, 2010, p. 93-94).
De qualquer forma, a decisão acendia uma centelha de
esperança para os réus. Se o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro
reafirmasse que os crimes cometidos pelos réus não eram de natureza
militar, mas sim política, mesmo na pior das hipóteses, nenhum deles
seria executado, haja vista que a pena capital para crimes políticos
fora abolida pela Constituição de 1824 (BRASIL, 1824).

312
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro


A história deste tribunal, de acordo com Rogério de Oliveira
Souza (2001, p. 140), remonta às transformações ocorridas durante
o século XVIII, com o deslocamento do eixo econômico colonial do
Nordeste para o Centro-sul. Desta forma, sua criação no ano de 1751
atendia principalmente às pressões da sociedade aurífera das Gerais,
queixosos das dificuldades em se acionar a justiça através da Relação
da Bahia, dada sua distância. Pelo lado da Coroa, encaixava-se em
sua política de controle e administração das atividades mineradoras
da colônia.
Quanto às atribuições do Tribunal, Arno Wehling (1996?, p.
103, grifo nosso) destaca que
[...] envolviam três situações do ponto de vista jurídico processual.
Era uma instância recursal e enquanto tal recebia dois tipos de
recursos, as apelações e os agravos. Recebia ações novas nas áreas
cível, criminal e do patrimônio estatal, em certos casos. Possuía,
também, competência avocatória em situações de juízo criminal.
O tribunal não era, portanto, a despeito de seu carácter [sic] geral
revisor, exclusivamente recursal.
Recebendo o processo dos 12 oficiais sabinos, através de
recurso de revista expedido pelo Supremo Tribunal de Justiça, este
tribunal emitiu seu acórdão no dia 4 de janeiro de 1840. A sessão foi
presidida pelos juízes Gustavo Adolfo D’Aguilar Pantoja (Relator);
Lisboa e Chichorro (Revisores); Cavalcanti, Siqueira e Verneck
(Sorteados) (CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840). Lembrando que a
revista teve como fundamento a alegação de “manifesta nulidade”,
constituída de duas razões essenciais (incompetência do Juízo
militar em conhecer dos crimes dos réus e incompetência do mesmo
em julgar aqueles que não eram militares), a primeira foi resolvida
da seguinte forma:
Accordão em Relação, &c. Que julgão competente o foro militar
para tomar conhecimento das culpas dos recorrentes [...]; porque
determinando o Codigo Criminal, artigo 308, § 2º, que os crimes
puramente militares sejão punidos na fórma das leis respectivas,
e o Codigo do Processo Criminal no artigo 8º, que os juizes
militares continuão a conhecer dos crimes puramente militares,
com a qual disposição concordão o artigo 155, § 3º do mesmo

313
Conflitos e Contradições na História

Codigo, que estabelece a competencia do foro militar nos crimes


de responsabilidade dos empregados militares, e o Art. 171, § 1º,
nos crimes do emprego militar (CORREIO OFFICIAL, n. 19, 1840).
Desta decisão, opuseram-se os senhores Pantoja e
Chichorro(CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840).
A controvérsia em relação ao foro refletia a própria fluidez
com que os contemporâneos encaravam a Sabinada. A este respeito,
Lopes (2008) salienta que tanto nos instantes que antecederam
a revolta quanto nos primeiros dias de consolidação do governo
republicano, jornais e documentos oficiais de fontes legalistas
apontavam seu caráter eminentemente político, a exemplo da
Cabanagem e Farroupilha, e de liderança civil.
No entanto, com a progressiva organização da reação imperial,
o elemento da responsabilização militar começava a ganhar espaço
nos discursos legalistas, dentre eles, o do antigo presidente provincial
Souza Paraíso. A sublevação das tropas seria, no entanto, fruto da
“sedução” exercida por elementos civis subversivos (LOPES, 2008).
Não obstante, à posteriori, o discurso que se consolidou,
vigendo até mesmo após o fim da revolta, foi o de um movimento
essencialmente militar, como elucidado pelo tenente coronel
Alexandre Gomes de Argollo Ferrão, nome proeminente da contra-
ofensiva legalista: “é certo que a militares desvairados, e conduzidos
pela mais fatal cegueira, se devem os males que nos flagelaram”
(LOPES apud PAEBa, 2008, p. 71).
O mesmo discurso pode ser identificado na definição utilizada
pelo Conselho de Guerra, responsável por julgar os nossos 13 réus, a
respeito da Sabinada: “motim, ou sedição militar, do qual resultou a
desastrosa e funestíssima rebelião da Capital da Bahia, [crimes que]
não se podem deixar de considerar como militares” (LOPES apud
PAEBa, 2008, p. 71).
Por mais tentador que seja explorar o impacto social desses
discursos, bem como suas implicações políticas, nos votos dos
desembargadores, tal empreendimento excederia a proposta deste
artigo.

314
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Voltando ao acórdão, a segunda questão levantada pelo


Supremo, a respeito da incompetência do foro militar em julgar
alguns dos réus pelo fato dos mesmos não gozarem deste foro
privilegiado, era fundamentada no fato de que Pitombo, Sucupira,
Paixão e Nascimento não eram membros do Exército de 1ª linha,
mas sim da extinta 2ª linha, composta pelos milicianos (CORREIO
OFFICIAL, n. 20, 1840).
Embora o parecer do Supremo, publicado na edição de
número 103 do Correio da Manhã, em 1839, não especifique em qual
fonte jurídica foi fundamentado, é sabido que a Lei de 18 de Agosto
de 1831, de criação da Guarda Nacional (BRASIL, 1831) versava em
seu artigo 140 que “Ficam extinctos todos os corpos de Milicias, e
Guardas Municipaes, e de Ordenanças, logo que em cada um dos
municipios de que forem esses corpos, se tenham organizado as
Guardas Nacionaes”. No entanto, o acórdão da Relação do Rio de
Janeiro deixou claro que
[...] os officiaes dos antigos corpos de milicias que não vencem soldo
não perderão as suas patentes em virtude da Lei [...], antes esta no
Art. 141 manda positivamente conservar-lhes as honras annexas
aos seus postos, nas quaes se não póde deixar de comprehender
o foro militar de que aquellesofficiaesgozavão como militares,
segundo o § 49 do respectivo regulamento; hetambem evidente que
com razão forão submetidos ao juizo militar alguns dos recorrentes
officiaes das extinctasmilicias, apezar de não vencerem soldos e
de não haverem pertencido em tempo algum a primeira linha do
exercito (CORREIO OFFICIAL, n. 19, 1840).
Desta decisão, foram vencidos os votos dos senhores Pantoja
e Lisboa(CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840).
Derrubados os dois argumentos utilizados pelo Supremo para
respaldar a nulidade manifesta do processo, passou-se ao veredicto:
os recorrentes Sérgio Velloso, Innocencio Eustáquio Ferreira de
Araújo, José Joaquim Leite e Alexandre Ferreira do Carmo Sucupira
foram considerados os cabeças do motim da noite de 6 para 7 de
Novembro de 1837, opondo-se com armas nas mãos às ordens
dos seus superiores, concernentes ao serviço. Por sua vez, Ignácio
Joaquim Pitombo, Manoel José de Azeredo Coutinho e João da

315
Conflitos e Contradições na História

Paixão, conquanto não tenham liderado o motim, dele tomaram


parte, tendo também pegado em armas contra seus superiores.
Enquadravam-se todos eles, na decisão dos desembargadores da
Relação do Rio de Janeiro, nas seguintes disposições de Guerra
(CORREIO OFFICIAL, n. 20, 1840):
Artigo 1: Aquele que recusar, por palavras ou discursos, obedecer ás
ordens de seus superiores, concernentes ao serviço, será condenado
a trabalhar nas fortificações; porém, se se opuser servindo-se de
qualquer arma ou ameaça, será arcabuzado.
Artigo 15: Todo aquele que for cabeça de motim ou de traição, ou
tiver parte, ou concorrer para estes delitos ou souber que urdem, e
não delatar a tempo os agressores, será infalivelmente enforcado.
Quanto aos demais recorrentes, Manoel Marques Cardoso,
Manoel de S. Boaventura Ferraz, Pedro Barbosa Leal, Rodrigo
Xavier de Figueiredo Ardignac e Manoel Florêncio do Nascimento,
embora não se provasse que foram cabeças do motim, ou que tenham
pegado em armas contra seus superiores, o Tribunal da Relação
também decidiu que tiveram parte e concorreram para o delito.
Fixaram como sentença as penas do Art. 15 supracitado (CORREIO
OFFICIAL, 1840, p. 4).
O colegiado do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro condenou
a todos os doze sabinos à morte, apesar dos votos contrários dos
senhores Pantoja e Lisboa, os quais pleiteavam a aplicação da mesma
pena imposta pela Junta militar de justiça da Bahia. Para os réus,
estavam esgotados os recursos judiciários, restando-os somente
invocar a clemência do Poder Moderador (CORREIO OFFICIAL,
1840, p. 2).
A aplicação da lei condenara os sabinos. Ironicamente, seu
descumprimento os salvaria: Com o golpe da maioridade, em 23 de
julho de 1840, uma das primeiras medidas do novo Imperador foi
anistiar os presos políticos das revoltas regenciais, incluindo aqueles
envolvidos na Sabinada. Um desfecho no mínimo inesperado para
aqueles que estavam tão certos de seus martírios.

Conclusão

316
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Compreende-se, à partir das discussões propostas, que o


nascente sistema jurídico brasileiro aos poucos criava uma teia de
instituições responsável por garantir o funcionamento da lei, na qual
seriam julgados os 13 sabinos estudados, membros de uma revolta
que se destacou muito mais por suas ideias do que por seus feitos.
Fica claro, porém, que a jurisprudência dos tribunais não
estava isenta à influência dos interesses políticos da sociedade
imperial, principalmente no turbulento contexto da Regência, e que
a sobreposição de suas instâncias por diversas vezes acabava por
prejudicar os réus.
As limitações do sistema refletiam as próprias contradições
inerentes ao processo de construção de nosso Estado-nacional, no
qual a necessidade de ordem por diversas vezes acabava por ignorar
a lei escrita, ou ao mesmo interpretá-la em seu proveito.

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319
Conflitos e Contradições na História

320
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Perfil intelectual de Manoel Bomfim


Ruth Cavalcante1

O objetivo deste trabalho é destacar os principais elementos


que compuseram o repertório intelectual do brasileiro Manoel
Bomfim (1868-1932)2. Bomfim foi um intelectual relativamente
constante ao longo da vida. Na sua maturidade não chegou a entrar
em nenhuma grande contradição em relação aos seus escritos da
juventude. De acordo com Rebeca Gontijo (2003), toda a produção
de Bomfim foi marcada por aspectos do Cientificismo e do Civismo.
Ele valorizava o saber científico para a compreensão da realidade
social, pois acreditava que as ciências ensinavam o caminho do
progresso à humanidade. Contudo, ele alegava que o conhecimento
científico estava sendo manipulado pelos “filósofos do massacre”
a fim de explorar os povos “menos desenvolvidos”. Ele também
edificava a importância do patriotismo, considerando o civismo um
elemento primordial para o fortalecimento da nação brasileira.
Manoel Bomfim se aproximou muito da Psicologia em
obras como O Brasil na História, em que, de acordo com Gontijo,
o homem era representado como um ser moral, cuja subjetividade
lhe permitia escapar das influências externas (do meio) e internas
(da hereditariedade psíquica e/ou biológica). Nesta perspectiva,
ele refletia sobre a subjetividade dos sentimentos humanos para
destacar a importância da paixão, e, a grande paixão de Bomfim
tinha nome: se chamava Brasil, e seus escritos nitidamente tentavam
conduzir o público leitor a também desenvolver este mesmo
sentimento, incentivando-o a amar as terras e as gentes da nação.
De acordo com André Filgueira (2012), Bomfim elaborou a tese de
que o amor à terra e o amor à pátria constituíram o ânimo nacional
do povo brasileiro. Foi em nome deste amor que portugueses e
1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade
Federal do Espírito Santo.
2 Este trabalho faz parte da dissertação de mestrado intitulada: A questão racial
pensada entre o “método científico” e a paixão: um estudo comparado entre José
Ingenieros e Manoel Bomfim – Argentina e Brasil (1900-1920).

321
Conflitos e Contradições na História

nativos se uniram e resistiram bravamente contra a invasão francesa


e a holandesa. Isto significa dizer que, para Bomfim, a resistência só
foi possível porque existia no Brasil uma precoce coesão social entre
portugueses e nativos que, unidos, lutaram não pela posse de uma
colônia, mas pela sua pátria. Neste sentido, não foram os portugueses
nem os nativos a fazer frente à invasão, mas sim o vigoroso e
soberano povo brasileiro que, ante a incapacidade da mãe-pátria,
lutou para salvar sua tradição. O povo era constituído por nativos,
mestiços e portugueses que, juntos, forjaram o espírito de uma nova
pátria, e sua tradição nacional veio à tona na resistência contra as
invasões estrangeiras. Para Bomfim, a ação popular foi guiada pelo
sentimento de patriotismo para defender não a tradição portuguesa,
mas uma tradição original que se forjou no próprio Brasil: a tradição
brasileira.
Também, numa época em que a legitimidade da produção
científica era associada a um saber necessariamente neutro
e pautado em métodos racionais, Bomfim rompeu com a
neutralidade dominante do discurso cientificista, opondo a suposta
impassibilidade, imparcialidade e frieza do caráter científico à
relevância da paixão e sua força propulsora nas ações humanas,
alegando que paixão nem sempre é cegueira, e nem impede o rigor
da lógica. Isto significa dizer que, em suas obras, Bomfim não se
envergonhava em dizer o que pensava e em expor suas opiniões;
ele escrevia com paixão para fazer reflexões sobre as ciências e não
escondia seus interesses pessoais sob a máscara do verniz cientificista.
Pode-se dizer que, assim como seus contemporâneos, Bomfim tinha
“fé” nas ciências, mas se recusava a usar em suas produções os
critérios que legitimavam a produção científica, não sendo neutro
nem demasiadamente objetivo.
Outro aspecto marcante nas obras de Bomfim foi a sua crítica
ao Positivismo. Entretanto, não se pode negar que ele aderiu a
certas concepções positivistas, uma vez que também compreendia
as sociedades como organismos regidos por “leis fatais” – sejam
elas sociais ou biológicas. Estas ideias organicistas, frequentemente

322
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

utilizadas por ele, faziam parte do arcabouço teórico dos positivistas.


Todavia, ele se apresentou ao público leitor como um crítico desta
corrente doutrinária. Desde a época da faculdade Bomfim fazia
severas críticas à ideologia de Comte, que se esquematizaram,
sobretudo, na obra O Brasil nação. O sergipano via com pessimismo a
influência desta doutrina sobre o movimento republicano e, para ele,
o Positivismo propunha apenas uma “modernização conservadora”
do país, pois se voltava muito para o desenvolvimento industrial
e a necessidade de formação técnica em detrimento das questões
sociais. Segundo o intelectual, o Positivismo era uma doutrina
conservadora e tão somente comprometida com a manutenção da
ordem capitalista, em que o trabalho dos indivíduos das “classes
inferiores”, era tiranizado e espoliado, ou seja, o Positivismo era
interpretado por Bomfim como uma ideologia que só beneficiava as
classes dirigentes. Aguiar relata que o que mais irritava Bomfim em
relação ao Positivismo era o:
Dogma positivista contra a obrigatoriedade do ensino elementar. A
pretexto de defender os direitos do cidadão, os seguidores de Comte
consideraram a ideia da obrigatoriedade uma ingerência despótica
do poder civil num domínio que não lhe competia atuar, ferindo
assim, “as atribuições mais sagradas das mães e dos pais” Manoel
Bomfim foi extremamente cáustico ao censurar os positivistas por
esta suposta defesa dos direitos do cidadão. E não era para menos:
afinal, numa sociedade atrasada, inculta e tacanha, onde a maioria
da população era compactamente analfabeta e as pessoas instruídas
cabiam num bonde, a obrigatoriedade do ensino elementar era,
segundo o autor da proposta, Ramiz Galvão, um mecanismo – no
fundo, um quebra galho – contra o descaso (fruto da ignorância
na maioria dos casos) dos familiares em relação a educação das
crianças. Os positivistas não percebiam, ou não queriam perceber,
notou Manoel Bomfim, que a obrigatoriedade do ensino não
atentava contra a cidadania: atentava, sim, contra “os direitos
que tem os pais de condenar os filhos à inferioridade patente do
analfabetismo” (AGUIAR, 2000, p. 145).
Por sua vez, Kátia Baggio (1998) pondera que Bomfim foi
um antiimperialista. Assim, ele criticou o fato do Brasil ter entrado
em guerra contra o Paraguai, afirmando que o interesse do Império
brasileiro estava em obter a livre navegação nos Rios Paraná e

323
Conflitos e Contradições na História

Paraguai para ter acesso mais fácil a todo centro-oeste do território


brasileiro. Para o sergipano, foi uma grande torpeza do Brasil
Imperial invadir e destruir o Paraguai para impor a sua hegemonia
na região.
As análises de Bomfim, formuladas no final dos anos 20, sobre a
participação da monarquia brasileira nas guerras do Prata, foram
contrárias à tendência dominante da época, que condenava
os hispano-americanos e glorificava os militares brasileiros.
Especialmente no caso da Guerra do Paraguai, Bomfim antecipou
uma visão muito crítica que, décadas mais tarde passou a vigorar
(BAGGIO, 1998, p. 120).
Também, seus escritos demonstraram que ele acreditava que
os Estados Unidos tinham objetivos expansionistas no continente
americano, principalmente na América Central e nas Antilhas. Para
ele, a maneira de impedir que a América do Sul fosse dominada
pelos “países mais fortes” era deixar de ser uma região de economia
essencialmente agrícola. Ou seja, para o brasileiro o desenvolvimento
industrial era a melhor forma de superar a dependência externa e fazer
frente aos interesses imperialistas dos norte-americanos e europeus
na América Latina. Neste sentido, ele defendeu a solidariedade e
união entre os países sul-americanos com a finalidade de combater
o domínio e a dependência deles em relação às poderosas nações
capitalistas.
Por sua vez, Maria Nunes (1997) afirma que Bomfim conhecia
as concepções dos teóricos marxistas, como Marx, Engels e Lenin
e chegou a interpretar a realidade brasileira utilizando alguns
conceitos socialistas, como o conceito de “luta de classes”; mas, como
Wilson Martins (1996) demonstra, Bomfim via com desconfiança o
fato dos socialistas revolucionários da década de 1920 serem guiados
por ideologias totalitárias, demandando por um “governo forte” e
culpando a “democracia burguesa” pelos males que assolavam os
seus países. Nesta perspectiva, ele rejeitou a “solução comunista”
para os males do Brasil e, por esta razão, criticou o movimento
tenentista e seu líder Carlos Prestes, pois era totalmente contra a
intervenção do exército na política, desejando assim, uma nação
plenamente democrática.

324
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Como destaca Aguiar (2013), ao final da sua vida o pensamento


de Bomfim havia se radicalizado. Se em América Latina: males
de origem propunha a solução “ilustrada” da instrução popular
massiva como “cura” dos problemas nacionais e como o caminho
do progresso, em O Brasil Nação, obra produzida mais de vinte
anos depois, propôs uma solução revolucionária para os problemas
sociais. Sua experiência pessoal no campo educacional e na política
o fez chegar à conclusão que os políticos dirigentes não iriam fazer
nenhuma concessão em nome dos dominados. Assim, ele passou
a defender uma solução revolucionária que contasse com o apoio
popular nos moldes da Revolução Mexicana, em nome de uma
distribuição igualitária de terras, do acesso universal à educação
popular, o direito à greve etc.
Em O Brasil Nação, defendeu que o único meio de acabar
com a exploração era através da revolução popular. Baggio
demonstra que ele foi influenciado por ideias socialistas, citando
Marx, Engels e Blanqui. Contudo, a sua aposta na revolução não
significava a adoção de um modelo soviético no Brasil, uma vez que
o proletariado nacional não se definia como “classe”, ao passo que
o povo era visto como inculto e sem consciência dos seus direitos.
Apesar disto, para o sergipano, a revolução não poderia esperar e
necessariamente deveria haver o afastamento definitivo dos antigos
dirigentes dominadores. Para Bomfim, o exemplo mexicano era
muito mais familiar do que o russo, e assim ele propunha que os
brasileiros seguissem o modelo mexicano de mudança social, pois
ele:
Reconhece e elogia várias iniciativas resultantes do processo
revolucionário mexicano: a derrota do poder da velha oligarquia
representada pela ditadura de Porfírio Díaz; a difusão maciça
do ensino público, principalmente a partir da gestão de José
Vasconcelos como ministro da educação; o estímulo ao
fortalecimento da identidade nacional, com a valorização da cultura
popular e de suas raízes pré-hispânicas; a legislação trabalhista e
social; a reforma agrária. Não há dúvida que Bomfim acompanhava
atentamente o processo político no México a partir da Revolução de
1910 e, principalmente, as profundas transformações pelas quais o
país vinha passando (BAGGIO, 1998, p. 125).

325
Conflitos e Contradições na História

Enfim, os principais elementos presentes nos escritos de


Bomfim podem ser elencados como: valorização das ciências e crítica
à manipulação do conhecimento científico com a finalidade de
explorar os povos “menos desenvolvidos”; valorização da educação
e do patriotismo brasileiro; crítica ao imperialismo assim como às
ideias totalitárias dos socialistas; e valorização do povo, considerado
como o único elemento capaz de provocar mudanças substanciosas
na vida das sociedades latino-americanas, uma vez que, para ele, os
Estados estavam mais preocupados com a manutenção do status quo
do que com melhorar as condições de vida destas populações.

Referências
AGUIAR, Ronaldo. Manoel Bomfim, intérprete do Brasil. In:
BOMFIM, Manoel: O Brasil na História: deturpações das tradições.
Degradação política. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013. p. 15-26.
AGUIAR, Ronaldo. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra
de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
BAGGIO, Kátia. A “outra” América: a América Latina na
visão dos intelectuais brasileiros das primeiras décadas republicanas.
1998. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo,
São Paulo, 1998.
BOMFIM, Manoel. O Brasil Nação: realidade da soberania
brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
FILGUEIRA, André. A utopia nacionalista em Manoel
Bomfim. Revista Em Tempo de Histórias – Publicação do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Brasília,
n. 20, p. 153-163, 2012.
GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim, “pensador da História”
na Primeira República. Revista Brasileira de História – On-line
version, São Paulo, v. 23, n.45, 2003. Disponível em: <http://www.
scielo.br/scielo.php?pid=S010201882003000100006&script=sci_
arttext&tlng=es>. Acesso em: 23 jun. 2014.
MARTINS, Wilson. Profeta da quinta revolução. In: BOMFIM,

326
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Manoel. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. 2. ed. Rio


de Janeiro, Topbooks, 1996. p. 13-21.
NUNES, Maria. Manoel Bomfim: pioneiro de uma ideologia
nacional. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização
da formação brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 13-
25.

327
Conflitos e Contradições na História

328
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Notas sobre o processo de expropriação


das terras indígenas das vilas de Nova
Almeida e Santa Cruz (1850-1889)
Tatiana Gonçalves de Oliveira1

Introdução
Esta apresentação faz parte do desenvolvimento de minha
pesquisa de doutorado, que pretende compreender o longo
processo de expropriação das terras indígenas e integração da mão
de obra nativa na província do Espírito Santo. O recorte espacial
se delimitará na análise das vilas de Santa Cruz e Nova Almeida,
antigos aldeamentos jesuíticos daquela província. A escolha de
iniciar a pesquisa no ano de 1850 é importante pois acreditamos
ter sido a partir da segunda metade do século XIX que os conflitos
agrários, envolvendo as terras indígenas, se intensificaram naquela
região, desenrolando-se até o final do regime monárquico. Não
que as disputas pelas terras indígenas tenham se encerrado naquele
contexto, pelo contrário, elas tomaram formas variadas até os dias
atuais. No entanto, nos interessa neste momento entender esse
processo à guisa da lei de Terras de 1850 e seus desdobramentos na
experiência espírito-santense ao longo do oitocentos.
Nova Almeida, hoje distrito do Município da Serra, foi
uma antiga missão jesuítica, denominada Reis Magos, que após a
expulsão dos padres se elevou à categoria de vila, em 1759-1760. A
freguesia de Aldeia Velha era um povoado pertencente ao município
de Nova Almeida, que deste se desmembrou em 1848, tornando-
se vila com a denominação de Santa Cruz. Aos descendentes dos
Tupiniquim e Terminó aldeados na antiga missão jesuítica “foi
concedida uma vasta sesmaria e assegurados os privilégios do Alvará
de 8/5/1758. Por essa lei estendiam-se a todos os índios do Brasil
os mesmos direitos primeiramente concedidos aos índios do Grão-
Pará e Maranhão”. (MOREIRA, 2002, p. 152). A sesmaria conferida
1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro.

329
Conflitos e Contradições na História

aos índios de Nova Almeida foi dada quando estes ainda estavam
sob a tutela dos jesuítas, tendo sido demarcada no livro de Tombo
da vila após a expulsão dos missionários.
Em seu artigo intitulado “Nem selvagens nem cidadãos: os
índios da vila de Nova Almeida e a usurpação de suas terras durante
o século XIX”, Vânia M. Losada Moreira (2002) analisa o processo
de expropriação das terras indígenas daquela vila a partir de duas
questões que, segundo ela, marcaram a história da comunidade
indígena da vila de Nova Almeida, a saber, o processo de perda
territorial e a condição “controversa” dos índios considerados
“civilizados”.
A Câmara municipal de Nova Almeida e os índios entrariam
em conflito pela posse da sesmaria doada. Os representantes do
poder político local utilizariam de vários estratagemas para justificar
a contínua usurpação daquelas terras. Vânia Moreira nos dá um
bom exemplo dessa situação, quando nos relata o caso envolvendo
os índios Manoel Francisco de Almeida e Inácio Pereira Samora,
que no ano de 1846 entraram com representação ao presidente da
província, acusando a perda de suas terras para a Câmara de Nova
Almeida. Em resposta às acusações, a Câmara alegaria serem os
índios apenas “usufrutuários” da sesmaria por eles ocupada e que
não exerciam sobre elas nenhum direito de domínio (MOREIRA,
2002).
No entanto, Moreira questiona essa afirmação, pois a
sesmaria concedida aos índios lhes dava título de posse sobre a
mesma baseando-se no direito originário. No entanto, esse direito
seria negado e o avanço sobre as terras indígenas continuariam
e com ele as estratégias da Câmara para deslegitimar a posse dos
índios. “Na opinião dos membros da câmara, até mesmo a simples
ausência temporária da terra tornava o índio desprovido do direito
de continuar na condição de ‘usufrutuário’”. (MOREIRA, 2002, p.
155). O que era muito oportuno para aquela vila, uma vez que de
lá eram recrutados muitos índios para o trabalho dentro e fora da
província.

330
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Em outro artigo Moreira analisou essa questão do recrutamento


da mão de obra indígena. A partir das correspondências trocadas
entre a presidência da província do Espírito Santo e as autoridades
locais da vila de Nova Almeida, entre 1822 e 1853, a autora nos
mostra como naquela província o uso do trabalho indígena era a base
de muitos serviços prestados, e um importante dado para entender
a história social daquela região (ALMEIDA, 2010). Pelo cruzamento
de dados destas correspondências, Moreira apontou que “o assunto
mais tratado na documentação foi sobre o trabalho indígena
(58,8%), seguido bem de longe pelas questões relativas às suas terras
(23,5%)”. (2010, p. 24). No entanto, a autora demonstra que o tema
“trabalho” foi perdendo prioridade nas correspondências, até não
ser mais citado no decorrer de 1840. A partir desse momento, a
questão das terras indígenas seria o foco principal da documentação
estudada pela autora. No entanto, para a Moreira o que entra em
colapso a partir de 1840 é o “sistema de governo criado ainda no
período colonial e cujo principal objetivo era organizar os índios
para trabalharem para o Estado e os particulares”. (MOREIRA, 2010,
p. 28). No entanto, persiste a prática desses índios serem recrutados
para serviços públicos ou para trabalharem para particulares.
Nesse contexto, a vila de Santa Cruz “passa a acolher muitos
índios que perdiam ou vendiam suas terras próximas à vila de Nova
Almeida, e iam para lá formar novos sítios”. (ALMEIDA; MOREIRA,
2012, p. 18). Uma breve análise da relação de todos os habitantes da
antiga freguesia de Aldeia Velha feita pelo vigário Manoel Antonio
dos Santos Ribeiro em 1843, a pedido da presidência da província,
revela a incidência de índios provenientes de Nova Almeida.
Este documento também é revelador da composição étnica
daquela vila. Em 1843, Aldeia Velha possuía 2.200 habitantes,
dentre estes 1.489 foram classificados como índios, 215 Brancos, 118
“Pretos”, além de outras denominações que revelam o processo de
mestiçagem, como 09 “Cabras” (mestiço de mulato com “preto”),
29 “Caribocas” (mestiço de “preto” com índio), 17 “Mamelucos”
(mestiço de branco com índio), 24 “Mestiços” e 119 “Pardos”.

331
Conflitos e Contradições na História

As relações entre etnicidade e conflitos agrários marcariam a


política imperial, especialmente a partir de 1850 com a promulgação
da Lei de Terras. Em estudo comparativo sobre o processo de
desamortização das terras indígenas no Brasil e México durante
a segunda metade do século XIX, Moreira coloca em debate a
relação desse processo concomitantemente a outro, deslegitimação
das comunidades étnicas, “a quem foi imposto a necessidade de
integração nacional aos moldes assimilacionistas então vigentes”.
(2012, p. 69). Esse processo de esbulho das terras indígenas seria,
segundo Vânia Moreira, acelerado com a Lei de Terras de 1850
e seus regulamentos. Assim, esta lei teria um efeito nocivo nos
patrimônios territoriais indígenas, uma vez que seu “objetivo era o
de acabar com o domínio e uso comum sobre várias terras que eles
possuíam na forma de sesmarias, missões, aldeamentos, compras e
doações”. (MOREIRA, 2012, p. 69).
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha enfatiza que
a partir de Lei de Terras as classificações étnicas ganhariam um
sentido particularmente importante dentro da política imperial,
pois “os índios tidos com plenamente ressocializados passaram a ser
definidos, a partir da lei de Terras, como ‘índios de nome’, ‘índios
misturados’ à população geral, ou ainda ‘mestiços’, ‘remanescentes’,
ou ‘descentes’ de índios” (CUNHA, 1992, p. 146).
Ainda sobre essas classificações, Maria Regina Celestino
(2008) dirá que, o processo de mestiçagem que marcou as relações
interétnicas das diversas sociedades indígenas no Brasil colonial e
imperial não deve ser lido em oposição à identidade indígena, uma
vez que essas classificações poderiam ser acionadas por esses sujeitos
diante da necessidade de utilização de seus direitos, associados à
categoria “índio”.
Para esses “índios de nome” ou já integrados à lógica social
local, o conjunto normativo advindo com a Lei de Terras e seus
regulamentos “impôs-lhes a condição de ‘brasileiros’, mandando
desamortizar as terras coletivas existentes em vilas e aldeamentos
e reparti-las aos ‘remanescentes’ e ‘descendentes’, caso ainda

332
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

existissem”. (MOREIRA, 2012, p. 77). Além disso, Também


recomendava “a regularização do direito de posse e propriedade de
antigos foreiros e invasores (posseiros) das terras de índios”. (Idem).
Esse contexto se tornou favorável para posseiros, que através
da legalização territorial podiam sair dessa condição “para o patamar
de uma classe social, cujo traço distintivo passou a ser a grande
propriedade rural”. (MOREIRA, 2002, p. 159). Nesse cenário, a
condição das antigas sesmarias indígenas era problemática, podendo
ser classificadas como terras “devolutas” dependendo, entre outros
fatores, de uma condição étnica como legitimadora do direito sobre
as mesmas.
O exemplo das disputas envolvendo as terras indígenas
nas vilas de Nova Almeida e Santa Cruz foi emblemático das
controvérsias que a lei de Terras deixava, uma vez que, não definia em
seus artigos o que se entendia como “índio”. Os adjetivos associados
ao que se compreendia como “índio puro”, ou seja, “selvagens”,
“preguiçosos”, “nus”, “nômades”, não parecia o mais correto,
segundo o vigário da vila de Santa Cruz, para definir os índios de
sua paróquia. O vigário Manoel Antonio dos Santos Ribeiro, que no
ano de 1854 deveria receber o registro das terras possuídas naquela
vila, indagaria ao presidente da província se os índios de Santa Cruz
deveriam ser classificados de acordo com o que pregava o artigo 94
da regulamentação da lei de Terras, e enquadrados como “menores”,
necessitando de tutores (MOREIRA, 2002).
A resposta dada pelo presidente da província do Espírito Santo,
depois que este passou a dúvida do vigário ao Secretário de Estado
de Negócios do Império, foi de que “os índios residentes naquela
freguesia não são os de que se trata o artigo 94 do Regulamento,
visto como gozam da plena administração de suas posses, ou bem”.
(VASCONCELLOS, 1885, p. 80). Nesse sentido, aos índios de Santa
Cruz e também de Nova Almeida seria atribuído o estatuto social
e jurídico de “civilizados”, não podendo ser tutelados ou terem
suas posses administradas por outrem. Assim, segundo Moreira
(2002), estes índios, não sendo nem “selvagens”, nem cidadãos,

333
Conflitos e Contradições na História

reivindicariam a manutenção de suas terras baseando-se, antes de


tudo, no direito originário.
Uma breve análise do Registro Paroquial de Terras de
Santa Cruz, feito pelo vigário entre 1854 e 1858, revela que num
total de 256 registros recebidos, 144 eram de índios. Estes dados
demonstram que no Espírito Santo, como em outras regiões do
Império, a capacidade dos índios manterem suas terras variou muito
diante das circunstâncias locais, e no caso da vila de Santa Cruz, por
exemplo, “os índios conseguiram registrar suas terras de vivenda
e cultivo junto ao vigário, inclusive em forma de terras coletivas”.
(ALMEIDA; MOREIRA, 2012, p. 22). No entanto, como salienta
Moreira (2002), o processo de expropriação continuou junto com a
luta por suas terras. Após a Lei de Terras ainda prevaleceu a prática
de formação de posses, mesmo que a dita lei reconhecesse apena o
título de compra como justificativa de propriedade. Assim, a posse
criminosa em terras indígenas seria uma constante na história de
formação de latifúndios nesse país. E no contexto analisado, tal
prática ainda servia para legitimar a expropriação dos índios, que
“desapareciam”, “dispersos e confundidos na massa da população
‘civilizada’” (CUNHA, 1992, p. 145).
Pela análise prévia de alguns documentos, podemos inferir
que, em Santa Cruz e Nova Almeida, o processo de desamortização e
aforamentos das terras indígenas seria acompanhado da apropriação
da mão de obra indígena, que se tornaria a base daquela economia.
A relação nominal feita pelo vigário de Santa Cruz em 1843 já
trazia algumas informações sobre a organização social do trabalho
naquela freguesia. Entre a população indígena, a maioria exercia
atividades na lavoura. Entre outras funções desempenhadas por
homens e mulheres nativos daquela vila, a alfaiataria, carpintaria,
costura, lavoura e olaria eram praticadas pelas mulheres indígenas.
Entre os prevaleciam as atividades ligadas à carpintaria e pesca. Cabe
ressaltar que dentre estes havia dois negociantes e dois oficiais de
justiça. Sendo os dois primeiros agregados de um negociante branco.
Já no grupo “miscigenado” temos alguns dados interessantes, por

334
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

exemplo, das 13 mulheres “caribocas”, 9 eram oficiais de justiça. O


que numa sociedade oitocentista é sinal de distinção, ainda mais
quando naquele contexto, ser mulher e não branca significava, quase
sempre, estar à margem social.
A presença de negros em Nova Almeida e Santa Cruz era
muito insignificante se comparada com o restante da composição
social dessas vilas. Retomando os dados do documento acima
descrito, temos uma relação de 118 “Pretos” em Santa Cruz, para
uma população arrolada em 2.020 habitantes. A mão de obra escrava
era pouco utilizada nesta região, o que fortalece uma das hipóteses
desse trabalho, de que o trabalho indígena é que teria movimentado
a economia daquelas vilas. Uma perspectiva semelhante, só que para
a colônia, foi trabalhada por John Monteiro em seu livro fundante,
Os negros da Terra; índios e bandeirantes nas origens de São Paulo,
onde o historiador/antropólogo inovou ao trazer os índios para a
formação do mundo do trabalho na capitania de São Paulo. O autor
aponta que, nas expedições dos bandeirantes para os sertões, para
além de cumprirem seu papel de “desbravadores”, os paulistas
traziam os índios para trabalharem como seus escravos no cultivo de
trigo que abasteceria as vilas e outras regiões da América portuguesa.
E nesse sentido, os paulistas se diferenciaram no “circuito comercial
do Atlântico e, desenvolvendo formas distintivas de organização
empresarial, tomaram em suas próprias mãos a tarefa de construir
uma força de trabalho” (MONTEIRO, 1994, p. 57).
Diferentemente dos índios analisados por Monteiro, os de
vila Almeida e Santa Cruz se inseririam no mundo do trabalho como
homens livres, sendo agregados nas fazendas, trabalhadores urbanos
ou lavradores em suas próprias terras, as que ainda sobravam para
eles cultivarem. Em sua visita ao município de Nova Almeida em
1860, o imperador D. Pedro II teceu algumas considerações sobre
a economia local, onde a maioria da população parecia viver “da
pesca, da lavoura de cereais, do corte de madeiras e dos artesanatos
de louças de barro e fiação do algodão. Fabricavam um tecido tão
grosseiro que, quando não era utilizado para sacos, só os negros e os

335
Conflitos e Contradições na História

índios o aproveitavam no ajaezarem as suas roupas”. (D. PEDRO II


apud ROCHA, 2008, p. 157-158).
Em sua monografia, apresentada ao departamento de Geografia
da Universidade Federal do Espírito Santo, Jaime Bernardo Neto
analisou as pequenas propriedades rurais e a estrutura fundiária no
Espírito Santo, desde meados do século XIX até as primeiras décadas
do século XX. Segundo Neto, as pequenas propriedades rurais, que
predominavam na primeira metade do século XIX, foram dando
lugar à concentração de grandes propriedades, oriundas, entre
outros fatores, do processo de desapropriação das terras indígenas.
Mas, ainda assim, segundo Neto, prevaleceria em algumas regiões
a organização socioeconômica em torno da pequena propriedade,
voltada para o mercado interno.
[...] havia duas regiões distintas uma ao norte, polarizada em
São Mateus, com significativa integração na economia colonial,
na qual atuava como exportadora de gêneros de subsistência,
sobretudo farinha de mandioca, produzidos em geral nos moldes
do plantation; e outra composta pelos demais povoados entre Santa
Cruz e Itapemirim, onde predominava a produção de gêneros de
subsistência aparentemente mais variada, para abastecimento do
mercado interno da província, que não só supria as necessidades
locais como era produto de exportação. (NETO, 2009, p. 46).
Em seu Dicionário Histórico, Geográfico e Estatístico da
Província do Espírito Santo de 1878, Augusto César Marques, que
teve a obra encomendada pelo governo da província em 1875, traz
alguns dados sobre a diversidade agrícola na província, apontando
entre os produtos de exportação, o algodão, o pescado, e também
menciona produtos artesanais, como redes (MARQUES, 1878).
Além disso, ele aponta para uma exportação considerável de
madeiras, partindo, por exemplo, do porto de Santa Cruz para o Rio
de Janeiro. Sobre o comércio de madeiras, o Bispo do Rio de Janeiro,
D. Pedro Maria de Lacerda, relatava em seu livro de visitas pastorais,
no ano de 1880, quando estava em Santa Cruz, que “junto ao mar
grandes toradas de jacarandá, o forte do comércio desta Vila. Usam
dividir a árvore em 2 ou 3 toradas, e depois serram ao comprido, e
estas caçoeiras (assim chamam) vão para a Corte do Rio de Janeiro”.

336
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

(LACERDA, 1880-1886, p. 161). Além do comércio de madeiras, o


Bispo relatava a atividade pesqueira como sendo importante para
Santa Cruz e Nova Almeida. Dizia ele que, quando os pescadores
de Nova Almeida não podiam sair com suas canoas em tempo de
chuvas, eles compravam dos pescadores de Santa Cruz.
Coitada desta gente, quando chuvas e ventos não deixar sair as
canoas? Carne não há em Almeida, e como me disse Pe. Casella
e outros, às vezes 1 ou 2 vezes por ano é que se mata um boi! É
preciso ir comprar carne e também pão em S. Cruz! Se pois não
houver peixe, este povo sofre deveras! E agora que a gente era muita
na Vila, e ainda que por esta ocasião houvesse mais alguma carne,
contudo sem peixe o povo deveria sofrer. Nestas ocasiões quando
chegam as canoas com peixe descem da Vila e acodem todos à
praia: quando lá cheguei por passeio ainda havia gente. Enquanto
eu ali estava assentado, vieram três Índios pescadores moradores
nas Frecheiras, que é a parte setentrional da barra e me lançaram
aos pés cada um seu peixe mais ou menos grande dizendo que eram
um presente. (LACERDA, 1880-1886, p. 103).
Pelo que por ora analisamos, com leituras prévias das fontes
e ancorados num debate historiográfico recente, podemos visualizar
um pouco do cenário dinâmico das vilas de Nova Almeida e Santa
Cruz na segunda metade do oitocentos. E nesse sentido, é possível
inferir algumas considerações acerca do modo como os indígenas
destas vilas participaram de sua organização social, mesmo que
inseridos num processo contínuo de expropriações de suas terras.
As relações interétnicas entre índios, negros, imigrantes e
brancos naquela região, longe de significar o “desaparecimento” dos
primeiros, confundidos na “massa de civilizados”, resultaram num
processo de adaptação desses sujeitos, que assumiriam a identidade
de “caboclo” ou de “índio” como formas variadas de viver aquela
nova situação. Como bem definiu Maria Regina Celestino de
Almeida para a situação dos índios e mestiços no Rio de Janeiro, essas
metamorfoses indígenas significaram, antes de tudo, a possibilidade
destes acionarem uma dupla identidade de ‘índios mestiços’, que
poderiam manipular em função dos seus interesses e conforme as
circunstâncias (ALMEIDA, 2008).

337
Conflitos e Contradições na História

Por uma história dos povos ditos “sem história”


[...] sabe-se que os povos ditos sem história são simplesmente,
povos cuja história se ignora, e que os “primitivos” tem um passado,
como todo mundo. (VEYNE, 1998, p. 27).
Em sua reflexão sobre a escrita historiográfica, Paul Veyne
nos lembra que o trabalho do historiador é fazer escolhas, é recortar
e delimitar sua escrita. Nesse processo, o que é importante ser
lembrado e por outro lado, esquecido, faz parte da operação de
escrita da narrativa histórica, não é algo natural. Nesse sentido,
este trabalho apoia-se no interesse crescente que historiadores,
antropólogos, cientistas sociais, arqueólogos e outros pesquisadores
tem demonstrado nas últimas décadas em [re] escrever a história
dos índios no Brasil. Desconstruir estereótipos que por muito tempo
marcaram a análise dos processos históricos de colonização, como a
visão do “índio” no singular, que poderia assumir diferentes facetas
no discurso indigenista, “selvagem”, “preguiçoso”, “assimilável”,
é um trabalho difícil para quem pretende entrar nessa vereda. No
entanto, é urgente continuar essas revisões que tem dado visibilidade
à presença indígena na formação do Brasil, e é nesse espaço de
reflexão que esta tese se encaixa.
Da Antropologia Histórica e da Sociologia surgiram vários
estudos que passaram a utilizar a noção de “adaptação” e “resistência”
para compreender as diversas formas de “ser índio”, e que não
passavam, necessariamente, pelo confronto direto, mas por outros
meios de vivenciar as relações interétnicas. No Brasil, pesquisadores
como Marta Amoroso, Cristina Pompa, John Manuel Monteiro,
Paula Montero, Izabel Missagia de Mattos, Maria Leônia Chaves de
Resende, Maria Regina Celestino de Almeida, Núbia Braga Ribeiro,
Vânia Maria Losada Moreira, João Pacheco de Oliveira, entre outros,
avançaram ao colocar novas questões a essa temática, dando ênfase
as apropriações e as ressignificações das identidades indígenas nos
espaços de normatização.
Entre esses estudos, as regiões mais privilegiadas pelos
pesquisadores foram o Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e
muitas regiões do nordeste brasileiro. Além desses recortes espaciais,

338
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

há também muitas pesquisas na região sul do país. No entanto,


o Espírito Santo ainda se encontra na periferia desses recortes,
tendo na historiadora Vânia Moreira a principal pesquisadora da
história dos povos indígenas daquela região. Nesse sentido, esse
projeto visa contribuir com a historiografia referente aos povos
indígenas do Espírito Santo, e cotejar um estudo tão importante,
que é dar visibilidade para esses sujeitos que atuaram ativamente na
organização da vida social e política daquela província.
A região estudada foi e é ainda marcada por conflitos agrários,
especialmente, nas terras indígenas dos Tupiniquin, descendentes
dos antigos moradores de Santa Cruz e Nova Almeida. Esses
conflitos foram estudados na dissertação de Klítia Loureiro, onde a
autora analisou processo de modernização autoritária da agricultura
no Espírito Santo com a instalação da empresa Aracruz Celulose
S/A, na década de 1970. Segundo Loureiro, a chegada da “empresa
Aracruz Celulose S/A (1972) em território indígena desencadeou
um conflito pela terra, que envolveu as comunidades Tupiniquim
e Guarani Mbya. Por sua vez, esse embate engendrou uma luta
pelo reconhecimento da identidade étnica dos remanescentes
Tupiniquim” (LOUREIRO, 2006, p. 115).
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) só reconheceria
a identidade Tupiniquim em 1975, mas o litígio pelas terras
continuaria, sendo que a homologação das duas terras indígenas
(TI) só ocorreria entre 2004 e 2010, conforme dados da FUNAI.
A TI Caieiras Velhas II foi homologada em 2004, com 57 hectares,
e a TI Tupiniquim, homologada em 2010, com 14.282 hectares de
extensão (FUNAI, 2015).
No imaginário social capixaba ainda prevalece a ideia, tão
disseminada nos discursos colonizadores, de que os povos indígenas
são empecilho para o desenvolvimento. Assim, além da miséria em
que muitas dessas aldeias vivenciam cotidianamente, dos abusos
sobre seus territórios e pessoas, há o preconceito associado à
imagem de que esses povos precisam, necessariamente, se “integrar”
à sociedade. Um bom exemplo desse discurso assimilacionista foi

339
Conflitos e Contradições na História

publicado no jornal A Gazeta de Vitória em 2005, pelo colunista


Gutman Uchôa de Mendonça.
Na verdade não temos mais índios, trouxeram até uns “guaranis”
do Rio Grande do Sul, que formam 15% do universo de 2.000,
que dizem existir tupiniquins, que habitam a região [...]. Sou pelo
aculturamento definitivo dessa gente, que nos envergonham, que
nos humilham diante das nações civilizadas, que ficam reticentes
em investir no desenvolvimento nacional. (GUTMAN, Uchôa
de Mendonça. Invasão e abusos. A GAZETA, Vitória, p. 3, 8 out.
2005.).
A concepção de “índio puro” em oposição à “civilizados” não
é nova, sabemos que tais classificações orientaram os discursos e
práticas colonizadoras no Brasil desde a chegada dos portugueses.
Cabe a nós, no entanto, desconstruí-los e mostrar sua função
dentro dos projetos coloniais, que de modos diferenciados, lidaram
com o “outro”, com os primeiros habitantes dessas terras, como
inferiores culturalmente e, portanto, necessitando ser “integrados”
e “civilizados”.
A pesquisa que propomos problematizará esses discursos
historicamente construídos sobre as populações indígenas no
Espírito Santo. Dar visibilidade a esses grupos dentro da formação
histórica daquela região é também contribuir no presente, contra
todo tipo de preconceitos e tentativas de apagamento desses
sujeitos na atualidade. Nesse sentido, Vânia Moreira já apontava a
importância de estudar o Espírito Santo oitocentista, “não no sentido
mais frequentemente estudado e aceito pela historiografia, isto é,
como uma província que abrigava muitas tribos de índios puris e
botocudos em suas matas e sertões” (MOREIRA, 2010: 35). Mas,
ressalta a autora, é preciso compreender que a província também foi
uma região muito indígena “porque os índios atuavam no cotidiano
de sua vida social e política, contribuindo para moldar e desenvolver
a vida local, juntamente com os brancos, os pardos, os pretos e os
escravos” (Idem).
Nesse sentido, propomos contribuir para repensar a
atuação dos povos indígenas na organização e desenvolvimento do
Espírito Santo. A contemporaneidade dessas sociedades indígenas

340
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

passa também pelo reconhecimento de seu papel na história, e


consequentemente, sua história no presente.

Considerações finais
Retomemos as considerações do historiador francês Paul
Veyne, que em sua reflexão sobre a escrita historiográfica, nos faz
lembrar, contra qualquer reducionismo cultural, ou ambição de
uma história total, que o trabalho do historiador é fazer escolhas, é
recortar e delimitar sua escrita. Nesse processo, o que é importante
ser lembrado e por outro lado, esquecido, faz parte da operação de
escrita da narrativa histórica, logo, não é algo natural. As escolhas
que organizam os fatos e que os dá inteligibilidade estão ligadas
diretamente as nossas preocupações no presente.
Dito de outro modo, como escrever uma história das
sociedades indígenas a partir de documentos deixados por homens
que tinham interesses em perpetuar imagens estereotipadas,
preconceituosas desses sujeitos? Pensando nessa tarefa, o
historiador John Monteiro procurou refletir sobre as dificuldades
que os historiadores apontavam para não estudar a história dos
índios. Para ele, o principal obstáculo não estava nas fontes, uma
vez que pela desconstrução do discurso, pela comparação de fontes,
pelo crivo do trabalho historiográfico, juntamente com o auxílio
de outras disciplinas, como a Antropologia, é possível analisar
esses documentos com o rigor necessário para se pensar os índios
na história. Mas o problema era o recorte escolhido, o objeto, as
escolhas que por muito tempo, pelo menos até a década de 80,
não se interessavam em pensar os índios para além da “teoria do
extermínio”, o que condenou estes a uma eterna derrota, tanto no
passado, como no presente (MONTEIRO, 2001).
Hoje podemos afirmar que tem se consolidado uma
historiografia preocupada em inserir os povos indígenas na história
e romper com o velho paradigma da “extinção”. É importante que
mais trabalhos vasculhem esse passado fragmentado e dinâmico
da atuação dos povos indígenas na formação do Brasil. Para isso, é

341
Conflitos e Contradições na História

importante pensar nas experiências regionais, nas formas diversas


e possíveis em que as relações interétnicas entre índios, negros e
brancos se fizeram. Um olhar profundo sobre essas relações nas
vilas de Nova Almeida e Santa Cruz poderá nos ajudar a visualizar
melhor a complexidade desse processo.

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Losada . Índios, Moradores e Câmaras Municipais: etnicidade e
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342
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

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343
Conflitos e Contradições na História

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344
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Por ser pobre e cativo: demandas aos


governadores da capitania do Espírito
Santo para arbitrar relações senhoriais
Thiara Bernardo Dutra1

Introdução
Ao levantar o problema em torno da interferência do Estado
nas relações escravistas recorreu-se ao estudo das autoridades
governamentais da capitania do Espírito Santo entre 1781 a 1821. A
partir da análise das correspondências administrativas trocadas entre
os diversos níveis de poder na capitania verificou-se os principais
assuntos da agenda política local e imperial. Dentre os assuntos,
identificou-se aqueles que se tratavam da escravidão, no qual se teve
acesso às demandas que chegavam aos governadores da capitania.
Na presente comunicação apresentamos, três casos encontrados na
documentação que se referem basicamente a demandas envolvendo
escravos, em que as autoridades da capitania eram reconhecidas
como árbitros desses conflitos. Em face do número reduzido,
buscou-se na historiografia as interpretações mais pertinentes para a
compreensão dos casos analisados.
Através da documentação analisada observou-se que a
resolução dos embates referentes à escravidão, limitava-se às
autoridades locais e governamentais da capitania, diante do
baixo percentual de correspondências trocadas com o Conselho
Ultramarino sobre o tema. Além disso, as correspondências
referentes às demandas foram todas confeccionadas no âmbito
interno da capitania, pelos agentes da governança ou elementos
da sociedade capixaba. Esses registros encontram-se no livro de
Correspondências recebidas pelo Governo da Capitania, que parece
ter funcionado como importante canal de comunicação entre a
população, as autoridades locais e o governo.

1 Mestre em História.

345
Conflitos e Contradições na História

As demandas
Em certa contenda entre vizinhos sobre a questão dos
limites de suas propriedades, em Campo de Minas, distrito da
vila de Victoria, no ano de 1800, encontramos alguns escravos
solidários às ações criminosas de seu senhor. A falta de demarcação
judicialmente definida dos limites territoriais das propriedades,
nomeados de “indivisos”, parece ter motivado conflitos entre os
habitantes da capitania, ao longo do período colonial.2 Os escravos
aparecem na acusação como capangas de seu senhor, o padre João
Gomes de Aguiar, responsabilizados por coagir os suplicantes e
causar prejuízos à vizinhança por matarem algum gado. A denúncia
fora feita por morador daquele lugar e para averiguar a situação fora
designado o coronel da Companhia de Caçadores, José Furtado. O
oficial observou ser procedente estar “alguns vizinhos queixosos” de
um escravo que pertencia ao pároco. Mas, ao perguntá-los se sabiam
se era o padre quem “mandava fazer o dito malefício” não souberam
responder (APEES, 004, doc. 01).
Diante da incompletude da documentação, não se sabe o
desfecho da contenda. No entanto, as palavras utilizadas pelo coronel
são representativas da sua compreensão acerca da contestação. Ao
utilizar-se do vocábulo “queixoso”, o coronel esclarecia a gravidade
da situação, haja vista que estes vizinhos se encontravam ofendidos e,
por isso, lançaram mão da querela ao governador a fim de resolverem
a demanda. Ao passo que o emprego do termo “malefício” era
indicativo do “dano que se faz a alguém” e aplicado em referência
a crimes, sendo passíveis de punição e até prisão (SILVA, 1789, p.
251). Não se pode afirmar que as ações criminosas do religioso e seus
cativos tenham sido punidas. Mas, na sentença expressa, o oficial
não parecia condescendente com os procedimentos denunciados.
Ao estudar a região de Campos de Goitacazes, entre 1750 e
1808, Silvia Lara detectou a ocorrência de conflitos fundiários que
contaram com a participação de escravos. Os cativos constituíam

2 A desorganização fundiária fora denunciada pelos governadores Silva Pontes


(1800-1804) e Francisco Alberto Rubim (1812-1819).

346
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

instrumentos importantes não só para a manutenção, como também


para a defesa das propriedades, “podiam transformar-se, segundo as
necessidades senhoriais, numa espécie de milícia particular” (1988,
p. 200), encarregada, inclusive, da execução de atentados àqueles
que se colocavam contrários ao interesse de seu amo. No entanto,
Silvia Lara adverte para o fato de que alguns senhores reconheciam a
responsabilidade dos escravos sobre seus atos, abrindo espaço para
a existência de limites ao poder senhorial. Visto que “permitia ao
escravo ‘julgar’ o acerto ou não da ordem recebida e decidir se devia
ou não a executar” (1988, p. 203). Não obstante ao reconhecimento
dos “direitos”, parece ter sido a escolha dos escravos orientada
pela manutenção da sua sobrevivência, dessa forma, reiterava-se o
próprio domínio senhorial.
Como poderia o escravo ter sua condição jurídica de
propriedade e, ao mesmo tempo, ser responsabilizado por suas
ações, ou ainda, ter alguns direitos reconhecidos pelos seus donos?
Apesar da aparente incompatibilidade, o escravo “era reconhecido
como uma propriedade com faculdades humanas” (CAMPOS,
2003, p. 37). A admissão da humanidade escrava deve-se ao fato de
que a legislação portuguesa se ancorou no Direito romano a fim de
conceder as bases legais para a escravidão em seus domínios. Essa
apropriação feita em Portugal explica o fato de que, em suas colônias,
as relações senhoriais tenham tomado contornos específicos.3
Além dos castigos físicos, constrangimentos e coerção, o
reconhecimento de certos direitos aos escravos parece ter figurado
como um mecanismo sutil de dominação por parte dos senhores
(VOLPATO, 1996, p. 218), ao mesmo tempo em que possibilitou a
ampliação dos espaços de liberdade aos escravos. A oportunidade
de se casar e constituir família, o acesso a um pedaço de terra e a
comercialização do excedente da produção, a mobilidade e, em
última instância a aquisição da liberdade por meio das manumissões
foram mecanismos utilizados que ajustaram as relações cotidianas
entre senhores e escravos em toda a América portuguesa.
3 Para uma comparação com outras áreas escravistas fora dos domínios de
Portugal ver: CAMPOS, 2003; MARQUESE, 2004.

347
Conflitos e Contradições na História

Esses mecanismos possibilitaram a existência de formas de


organização no interior das relações cotidianas fora dos padrões
imaginados para a escravidão. Exemplo disso foi o caso narrado
pelo índio José de Barcellos, morador no sítio da Passagem, na
vila da Victória, nos dois requerimentos por ele protocolados
na Secretária de Governo. De acordo com o índio, ele fizera um
acordo com Francisco dos Banhos, para se casar com uma escrava
e lhe assistir ao que fosse necessário. Todavia, passados 15 anos,
Francisco dos Banhos não lhe ressarciu os custos com alimentação,
parto e curativo que teve com sua esposa e os seis filhos que geraram.
Além da dívida, Francisco estava a vender seus filhos para outros
proprietários de escravos ao contrário do que fora acordado. Ao
ficar no “desembolso de que tem gasto” José de Barcellos recorreu ao
patrocínio do ilustríssimo senhor governador, para que o suplicado
“lhe satisfaça o que lhe deve, ou aliás lhe deixe seus filhos, como
tratou” (APEES, 004, doc. 212).
A ação do governador foi despachar o ofício para que o juiz
ordinário da vila examinasse o alegado e deferisse ao suplicante o
que lhe fora de direito. No entanto, dois dias depois, o suplicante
retornara à Secretária e fizera uma segunda queixa. Em sua súplica
relatava que Francisco dos Banhos, diante da autoridade judicial,
teria negado o compromisso firmado com ele, por estar bem
aconselhado pelo seu sogro, João Correia e por João Ignácio Roiz,
um dos compradores de seus filhos. Alega também que o auto
confeccionado pelo juiz consta ter o suplicante desistido da ação. O
fato, porém, foi que o dito João Ignácio o ludibriou, “prometendo
dar quatro dobras” valor referente à compra. Mesmo não sendo
de seu interesse desistir, parece ter aceitado. Mas, recebera apenas
“bordoadas” por ter procurado o auxílio do governador, sendo
vítima de conspiração do sogro do suplicado. Ao relatar o ocorrido,
José de Barcellos justifica o motivo pelo qual recorreu mais uma vez
à mercê do dirigente da capitania, alegando não ter condições de
sustentar uma demanda judicial por ser homem pobre, ainda mais
contra aquelas pessoas que “com seu dinheiro” fazem “o que bem
lhe parecer” (APEES, 004, doc. 151).

348
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Infelizmente, não se teve acesso ao desfecho dessa situação.


No entanto, esses documentos suscitam algumas indagações. Antes,
porém, é necessário salientar que a dita Maria quando casara e após
a maternidade vivia na condição de cativa, entretanto, já em 1812
parecia gozar de sua liberdade.4 A primeira questão refere-se ao
direito de o escravo se casar, nesse aspecto, o caso ganha maior relevo
por se tratar de casamento misto, entre índio5 e escrava, indivíduos
que ocupavam diferentes lugares dentro da estratificação social. Em
1707, com a promulgação das Constituições Primeiras do Bispado
da Bahia, concedeu-se ao escravo o direito de se casar, podendo
unir-se a seus pares ou a pessoas de outras categorias sociais, sem o
impedimento de seus senhores que “nem por este respeito os podem
tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o
outro, por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento o não
possa seguir” (CONSTITUIÇÕES, 1853, p. 303). A Igreja Católica,
com essa medida, incluiu a escravaria ao sacramento do matrimônio.
Prática, a propósito, existente no Espírito Santo. Em relação aos
casamentos mistos, a historiografia aponta que o matrimônio, entre
escravos e indígenas, fora uma realidade na sociedade colonial.
Teria sido o casamento forjado pelo senhor ou uma escolha
dos noivos? Não se tem informação de como se deu o enlace entre
José de Barcellos e a cativa Maria. No entanto, quanto aos interesses
envolvidos em torno do matrimônio, pode-se conjecturar que os
três poderiam ser beneficiados. No tocante à escrava Maria, a relação
conjugal com um indivíduo livre possibilitava a permeabilidade
entre os mundos da escravidão e liberdade, o que se confirma pela
condição de liberta em que vivia em 1812, quinze anos após a sua
união. O que teria possibilitado sua liberdade, também não se sabe,
possivelmente fora comprada por seu esposo, ou barganhada entre
4 Conforme o princípio vigente no Direito romano, “partussequiturventrem”,
os filhos dos escravos herdavam a condição da mãe (CAMPOS, 2003, p. 47), ou
seja, no momento em que os filhos de Barcellos nasceram sua esposa ainda vivia na
condição de escrava, mesmo após a alforria, eles continuaram cativos.
5 A partir da segunda metade do século XVIII, os indígenas foram inseridos na
sociedade colonial como indivíduos livres, a civilização dos índios esteve na pauta
dos ministros Sebastião de Carvalho e Mello e d. Rodrigo de Souza Coutinho.

349
Conflitos e Contradições na História

ele e seu senhor, em troca de prestações de serviços, ou ainda, fruto


do trabalho do casal no sítio que lhes pertencia. Por sua vez, o índio
José de Barcellos poderia ver em Francisco dos Banhos um possível
apadrinhamento, visto que, por ser proprietário de terras e homens,
gozava de certo status e distinção dentro dessa sociedade. Por fim,
a Francisco dos Banhos, o enlace contribuiria para a reprodução do
seu plantel, ao mesmo tempo em que dividiria com outrem os custos
da manutenção de seus cativos.
Francisco dos Banhos não aparentava ter grande propriedade,
aliás, na virada do século XVIII para o XIX, houve o predomínio
de pequenas e médias escravarias nesta capitania. Não obstante a
sua riqueza, parece que ele soube utilizar o capital simbólico para
constituir uma rede de solidariedade com os principais da terra.
Haja vista que um dos compradores dos cativos fora Francisco Pinto
Homem, um potentado local. Não é difícil imaginar que Francisco
dos Banhos tenha se aproveitado do status que detinha perante a
sociedade a fim de defender seu interesse, qual seja, a propriedade
escrava. Teria ele criado uma rede que o ligava a membros da elite
política e econômica locais nesse intento? Ou teria sido artimanha
do índio que se sentiu no direito de ter a tutela de seus filhos? A
documentação fornece apenas indícios do que ocorrera, ainda
assim, através dos sinais deixados é possível vislumbrar a complexa
realidade social que se configurou a partir da “expansão do Antigo
Regime em perspectiva atlântica” (MATTOS, 2001, p. 155).
A complexidade das relações cotidianas na capitania
intensifica-se ao se deparar com documento em que o próprio
escravo entrou com recurso na Secretária de governo. Foi o caso
do escravo Paulo, da fazenda de Nossa Senhora do Carmo, que
em 19 de setembro de 1814 entrou com pedido contra Joaquim de
Sant’Anna a fim de receber o que lhe era devido. No requerimento
o cativo afirmou ter vendido “um quartel de mandioca a Manoel da
Silva Soares, por preço de meia dobra” e por pagamento recebera
uma “vaca prenha”. O “trato” firmado era que a vaca ficaria “no
mesmo cercado” do comprador. Logo que esta procriou o escravo

350
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

fora avisado para ir ver a sua vaca e a “cria fêmea” que havia parido
(APEES, 004, doc. 287).
Com a morte de Manoel, no entanto, a situação tomou
contornos diferentes. Este declarara “a seus herdeiros que não só era
aquela vaca e cria do suplicante como também a conservassem no
cercado”, e assim “o fizeram, e passando esta a parir segunda cria logo
o testamenteiro e herdeiro que é Joaquim de Santa Anna fez aviso na
mesma forma que o seu pai” ao suplicante. Mas, desta vez, lhe fora
pedido que levasse os seus animais para outro lugar. A providência
tomada por Paulo fora pedir a seu senhor a permissão para alocar
seu gado na fazenda em que vivia. Com a concessão da licença, fora
até a propriedade de Joaquim de Sant’Anna, mas, chegando ao local
o testamenteiro e herdeiro tentara burlar o acordo e não quisera dar
“o que lhe pertencia, mas antes o desenganou que nada tinha, e que
lá não tornasse nestes termos” (APEES, 004, doc. 287).
Diante disso, o suplicante, por ser pobre e cativo, recorreu à
respeitável presença do governador para que lhe fosse entregue a sua
vaca e cria. Alegando ter como prova o próprio testamento deixado
pelo pai do suplicado. A ação do governador fora despachar uma
ordem ao Comandante do distrito miliciano para que sem perda de
tempo examinasse o alegado, entregando ao suplicante o que ele diz
ser seu. Após a averiguação, Ignácio Francisco Meirelles informou ao
governador Francisco Alberto Rubim, em 2 de novembro de 1814, a
veracidade do exposto pelo escravo e a resolução da altercação entre
as partes mediante o pagamento de nove mil réis, valor referente ao
gado(APEES, 004, doc. 288).
A concessão de um pedaço de terra aos escravos e a
oportunidade de comercializarem o excedente da sua produção
exemplifica um dos direitos consentidos aos cativos. Esse costume
parece ter sido arraigado na capitania, haja vista o reconhecimento
dessas relações por parte do governador, Francisco Alberto Rubim,
representante do poder central em terras capixabas. Conhecida
como “brecha camponesa”, essa relação fora identificada por
Ciro Flamarion Cardoso (1987), que empregou a expressão para

351
Conflitos e Contradições na História

denominar as atividades agrícolas à margem da plantation. Em


um sentido restrito, o termo designou também, a economia de
subsistência feita pelos escravos por meio da doação de pequenos
lotes de terra pelos senhores. Nessa linha, Stuart Schwartz, observou
a “brecha” como direito concedido pelo senhor. Aos escravos, no
contexto baiano analisado pelo brasilianista, era permitido período
de folga, geralmente aos domingos, o qual os cativos utilizavam em
benefício próprio. O acerto apresentava-se como mecanismo de
dominação, uma vez que “o escravo que é proprietário não foge nem
provoca desordem ampla” (SCHWARTZ, 2001, p. 100).
Flávio dos Santos Gomes informa que, via de regra,
nas fazendas beneditinas da província do Rio de Janeiro, os
cativos “tinham o costume de possuir pequenas roças e até
mesmo gado” (1996, p. 280). Além disso, observava que lhes era
permitido comercializar os excedentes produzidos, o que se fazia,
provavelmente, com taberneiros, outros cativos, quilombolas ou
até com os próprios monges. A realidade vivenciada pelos escravos
beneditinos aproxima-se daquela experimentada pelo escravo
Paulo. Teriam, os carmelitas visão semelhante aos beneditinos no
tocante à escravidão? Ao que tudo indica parece ter os religiosos
dispensados a seus escravos tratamento benéfico. Vale ressaltar que
o comportamento do escravo Paulo encontra eco em outras partes
da América portuguesa. Ao negociarem seus produtos, os escravos
aproximavam o universo da escravidão e da liberdade, realizando
contatos, tanto com seus pares, quanto com homens livres, sejam
pobres ou proprietários. Ao procurarem “desenvolver, na medida
do possível, sua economia própria” os escravos agiam de maneira a
conquistar e alargar “seus espaços de autonomia” (GOMES, 1996, p.
281-283).
Algumas vezes, porém, esses espaços construídos pelos
cativos eram limitados pela ação dos oficiais militares, por exemplo,
incumbidos de manter o controle da ordem social. Como no caso
que fora exposto pelo Comandante Luís José da Costa. Ao fiscalizar a
venda de farinha na barra da vila do Espírito Santo, em 1 de novembro

352
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

de 1813, comunicou a prisão do escravo Cipriano, pertencente ao


Coronel Bernardino Falcão de Gouveia Vieira Machado, que estava
envolvido na “dita venda”. Este fora remetido preso à presença do
regente da capitania pelo cabo de esquadra Joaquim José de Jesus
(APEES, 004, doc. 112). No entanto, não se sabe se o escravo estivera
vendendo a farinha por conta própria ou a mando de seu senhor.

Considerações finais
O contato com a documentação permitiu observar que as
relações cotidianas entre senhores e escravos foram marcadas “pela
tolerância de algumas práticas dos cativos” (FERREIRA, 2011, p. 36).
Verificou-se também, que as demandas aos governadores, além de
variadas, partiram de escravos que sentiam lesados em seus acordos,
da população livre, de elementos que configuravam a camada dos
homens pobres da capitania do Espírito Santo. Não se encontrou
na documentação, nenhum homem abastado requisitando o
auxílio das autoridades governamentais. Essa constatação um
tanto singular coloca em questão o fato de que, geralmente, o
poder político caminhava de mãos dadas com o poder econômico.
Ademais, reforça a natureza mais privada das relações escravistas
que se apresentam bastantes seguras para os dirigentes, que apenas
arbitraram as demandas, quando solicitados, na maioria das vezes,
por aqueles que não tinham condições de sustentar uma demanda
judicial.
Em vista do caráter mais privado da escravidão brasileira, o
recurso às autoridades por homens livres pobres, índios ou cativos
chama atenção para a proximidade dessas pessoas para com as
instituições coloniais. O que, segundo António Manuel Hespanha,
seria a “politicidade” da vida cotidiana (HESPANHA, 2012, p.
125). A proximidade entre a política e o cotidiano era decorrente
do próprio caráter microscópico das unidades políticas coloniais. O
acesso da população menos abastada, livre ou escrava, aos agentes
do poder central na capitania aparece mais expressiva quando se

353
Conflitos e Contradições na História

observa a documentação que trata de forros e libertos.6 Para além do


entrelaçamento entre o público e o privado, a aproximação entre essa
população e os governadores, parece encontrar explicação também
na forma como se constituiu a própria monarquia corporativa
portuguesa.
Caracterizada pela partilha entre o poder real e os poderes
locais, por certa limitação do direito legislativo da Coroa pela doutrina
jurídica e o uso de práticas jurídicas locais assentadas no costume e,
especialmente, no tocante à questão, pela cessão dos deveres políticos
perante os deveres morais ou afetivos, a saber, a gratidão, a graça,
a lealdade, a piedade (HESPANHA, 2001). Ainda que a sociedade
lusa e seus domínios ultramarinos se apresentassem hierarquizados
em categorias sociais, todos os indivíduos que compunham o corpo
social eram vassalos do Rei. A assertiva encontra fundamento na
documentação por hora analisada. A exemplo do posicionamento
do juiz ordinário da vila da Victoria, Francisco Xavier Nobre,
em referência a uns escravos sublevados que estavam detidos, ele
afirmou que “apesar de serem escravos, também são vassalos de S
A R” e, por isso, “merecem toda a proteção” (APEES, 004, doc. 38).
Apesar de modesto, o arbítrio dos dirigentes da capitania se
deu não só na resolução de alguns conflitos cotidianos pertinentes
às relações senhoriais, como também no controle da mobilidade
escrava e no combate e repressão quando da ocorrência de fugas,
sublevação e formação de quilombos, que não cabem aqui discorrer.

Referências
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO.
Série Accioly. Correspondências recebidas pelo governo do Reino.
Cartas manuscritas avulsas, livro 004 (1787-1814).

6 Entre os anos de 1800 a 1814 foram encontrados 10 requerimentos de


indivíduos da população de cor, especialmente, pardos, à Secretaria do governo
da capitania solicitando ao governador que arbitrasse em favor da resolução de
conflito cotidianos. Esse número perfaz 8% do universo total de 124 documentos
referente à escravidão. In: APEES, Correspondências recebidas pelo Governo da
Capitania (1787-1814), livro 004.

354
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

CAMPOS, Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: Direito


e escravidão no Espírito Santo do século XIX. Tese (Doutorado em
História) apresentada no Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou camponês? O
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feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor
D. Sebastião Monteiro da Vide: propostas e aceitas em o Synodo
Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de
1707. São Paulo: Typographia 2 de dezembro de Antônio Louzada
Antunes, 1853. p.303. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/
bdsf/item/id/222291> Acessado em: 29 set. 2015.
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escravidão e liberdade sob a pena do Estado imperial brasileiro
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no século XIX. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos.
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dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
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capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros
do Império português: o Antigo Regime em perspectiva Atlântica.

355
Conflitos e Contradições na História

In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda;


GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
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SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua
portuguesa – recompilado dos vocabulários impressos ate agora, e
nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado.
Lisboa: TypographiaLacerdina, 1789.
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru:
EDUSC, 2001.
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Quilombos em Mato Grosso:
resistência negra em área de fronteira. In: REIS, João José e GOMES,
Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, cap. 9.

356
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Raízes brasileiras de Thomas Mann


Wander Luiz Demartini Nunes1

A trajetória do artista
Thomas Mann foi o segundo filho em uma família de cinco
irmãos. Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas foi outro
conhecido escritor alemão, com quem por vezes manteve uma
relação amistosa, e por outras conflituosa como durante o período
da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), quando Heinrich
adotou um posicionamento crítico quanto à postura alemã, ao passo
que Thomas foi um ferrenho defensor da causa germânica, como é
possível observar em seus escritos do período como Pensamentos na
Guerra e Considerações de um Apolítico. No primeiro texto, Thomas
afirma, por exemplo, que os alemães lutavam pelo próprio direito
de existirem enquanto alemães, e exaltava a guerra afirmando que:
Toda a beleza e virtude da Alemanha – nós o pudemos ver agora –
na paz se poderia por vezes esquecer o quanto ela é bela. Há quem
tema que a luta solene em que ela combate pelo seu grande direito à
vida a pudesse fazer regredir em sua moralidade, em sua cultura? Ela
sairá dela mais livre e melhor do que era. Mas não vemos também
que a guerra torna maus e miseráveis os outros, os que portam
as insígnias de povos civilizados? Onde está agora a dignidade da
Inglaterra? Ela mente tanto que nós nos envergonhamos por ela.
E a França? Sua generosidade não afunda numa embriaguez de
raiva e histeria vergonhosa? Enquanto para o senso do soldado a
guerra aparece como uma esfera de moralidade e honradez, quase
como uma operação científica – quanta indecorosidade, quanta
devassidão a civil França não considera protegida pelo seu “c’est la
guerre” que deita tudo por terra? (MANN, 2010, p. 153- 154).
Posteriormente, com o fim da Primeira Guerra Mundial, o
pensamento político dos dois irmãos se aproximou novamente.
Ambos foram críticos do movimento nacional-socialista e obrigados
depois a se exilarem na década de trinta e durante a Segunda Guerra
Mundial.

1 Mestre em História pelo Programa de Pós graduação em História da


Universidade federal do Espírito Santo.

357
Conflitos e Contradições na História

Lübeck: o Berço de Thomas Mann


Lübeck, uma cidade hanseática no norte da Alemanha, foi a
cidade natal de Thomas Mann. A cidade que vivera seu auge entre
a baixa Idade Média e a Idade Moderna entrou em declínio com
as Guerras Napoleônicas, e com a construção de ferrovias voltadas
para outras rotas mais importantes para a política prussiana, a qual a
antiga cidade livre de Lübeck tornava-se cada vez mais dependente,
ao longo do século XIX.
A família de Thomas possuía destaque na cidade. Seu avô,
Johann Siegmund Mann, fora cônsul, e seu pai, Thomas Johann
Heinrich Mann tornara-se cônsul na Holanda um mês após a morte
do próprio pai. A firma J. S. Mann era um grande negócio de cereais
em Lübeck, e o pai de Thomas expandiu consideravelmente os
negócios da família, tendo aplicado dinheiro, inclusive, em empresas
de navegação. Anos mais tarde, Thomas inspirou-se em sua família
para a criação de seu primeiro grande sucesso: Os Buddenbook
(1901). A obra gerou muita polêmica na cidade do escritor, visto
que muitos sentiram-se ofendidos com a forma caricata com a qual
Thomas retratou a sociedade burguesa de Lübeck. Durante muito
tempo fora considerado um filho ingrato, e dessa forma o autor não
foi saudado em seu próprio berço. Circulavam espécies de “chaves”
para os personagens dos livros.
Encontrei a cidade muito agitada com o livro, que para alguns
parecia apenas a vingança traiçoeira de um descendente, para
outros, a expressão da imprudência desrespeitosa. Mas a todos
parecia um preparado asqueroso com o qual um filho malcriado
desgraçara sua cidade natal. Por uns tempos eu não sabia o que
dizer. Tentei falar das qualidades literárias e artísticas da obra, mas
eu era olhado como se tivesse perdido o juízo. Um professor do
Katharineum que fora mestre de Thomas Mann gritou-me com
desgosto: “Então o senhor acha que ele é um escritor ‘importante’?
Eu lhe dei aulas de alemão. Era incapaz de escrever uma composição
descente!” (ANTHES apud HAMILTON, 1985, p. 120).
Quando jovem, o escritor era visto como indolente e

358
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

desinteressado, não tecia nenhuma admiração pela escola. Anos


depois, tornava-se, concordassem os cidadãos de Lübeck ou não, o
maior escritor da cidade. Para um melhor entendimento da relação
de Mann com sua terra natal, faz-se necessário um regresso aos
primeiros anos do artista.

Os Primeiros Anos
Como já fora comentado, a família de Thomas Mann era de
grande importância e influência em Lübeck. Além da direção da firma
J. S. Mann, seu pai, senador da cidade, assumiu em 1885 a presidência
dos comitês de comércio, navegação e impostos do Senado. Seu
sucesso cada vez maior com a firma e política tomavam seu tempo
e acabavam por afastá-lo da rotina de seus filhos. Os dois filhos
mais velhos não teriam nenhum interesse em dar prosseguimento
aos negócios da família, e tanto Thomas, quanto Heinrich dariam
sinais bastante cedo ao pai de que o caminho percorrido por ambos
seria bem distante da trajetória traçada por ele, ao passo que o
senador não dava crédito ao talento literário dos dois. “Seu poder e
autoridade na pequena cidade hanseática aumentaram e o futuro de
Lübeck começou a ficar em suas mãos. Infortunadamente, o futuro
de seus filhos não” (HAMILTON, 1985, p. 37).
Enquanto criança, Thomas tinha seus primeiros contatos com
a música por influência de sua mãe, que lia para ele contos e tocava
sempre o piano. A casa dos Mann também era o centro de uma vida
social, com a realização de bailes e festas. Desse modo, a tendência
artística de Thomas Mann originava-se em seu lado materno. Seu
irmão, Heinrich, ao demonstrar ao pai que não o sucederia na firma
da família, fazia com que a responsabilidade recaísse sobre Thomas,
que também não aspirava tal herança. Tudo isso ocorria, para a
tristeza do senador, em um momento quando a firma completava
o seu primeiro centenário. Thomas Johann Heinrich Mann e Julia
da Silva Bruhns tiveram também duas filhas, Julia Elisabeth e
Carla Augusta, além de um filho temporão, Carl Viktor Mann, o
qual poderia ter sido uma opção para os planos do senador, com a

359
Conflitos e Contradições na História

rejeição de Thomas e Heinrich, mas o tempo que restava ao patriarca


da família Mann era bastante curto para que pudesse ter aplicado
seu filho mais novo aos negócios.
Na tentativa de modificar as aspirações de seu filho mais velho,
o senador enviara Heinrich a Dresden para que trabalhasse como
aprendiz de livreiro, enquanto Thomas aprendia violino em casa e
criava seus conflitos na escola. O jovem não possuía qualquer apreço
pelo ambiente escolar e nem seus professores por ele. Thomas via na
escola uma instituição completamente opressiva e sem sentido. Para
ele a escola não possuía a função de criar homens livres, mas sim
servos, a escola seria um local para o treinamento da obediência, e o
tipo de literatura que encontrava em si mesmo era algo que se opunha
a tudo isso. “A escola era, na verdade, uma regra do medo” (MANN
apud KURZKE, 2002, p. 21). Comportava-se extremamente mal e
caçoava dos professores, fazendo imitações de seus mestres entre
os colegas. “Eu desprezava a escola, desprezava-a como um meio.
Criticava a maneira como era liderada, e logo no início encontrei-
me em uma oposição literária ao seu espírito” (2002, p. 22). O jovem
Thomas Mann teve interesse por poucas disciplinas, porém, temas
relacionados à literatura exerciam atração sobre ele. Buscava tornar-
se uma autodidata em literatura alemã, mergulhando nas obras de
Schiller e Heine.
Mesmo sem nenhum resquício de intenção de suceder seu pai
nos negócios da família, Thomas sentia algum remorso enquanto
acompanhava as saudações em Lübeck ao senador. A firma
completava cem anos, o que foi motivo para diversas celebrações
na cidade. Mas, pouco depois, seu pai adoeceu e foi obrigado a
submeter-se a uma cirurgia. Durante o procedimento descobriu-
se que possuía um câncer na bexiga, mas sua morte, em outubro
de 1891 deu-se em circunstâncias não muito claras. O próprio
Thomas Mann teria afirmado que o pai morrera de septicemia. O
senador não perdeu no fim da vida sua precaução de negociador, e
antes mesmo da cirurgia a qual seria submetido, havia redigido um
novo testamento. Sua falta de perspectiva na sucessão de um dos

360
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

filhos nos negócios da família fez com que ordenasse, em caso de


sua morte, a liquidação da empresa. No testamento também foram
estabelecidas as diretrizes a serem seguidas pelos tutores de seus
filhos, que deveriam ainda tentar evitar suas inclinações literárias, as
quais não despertavam esperança no senador, e apareciam também
conselhos para a sua viúva.
Tanto quanto possível, eles devem se opor às inclinações de
meu filho mais velho para a assim chamada atividade literária,
atividade [para a qual] acho que ele não apresenta os requisitos:
estudo adequado e conhecimento amplo (...). Meu segundo filho
é predisposto a ideias mais dóceis, tem um bom temperamento e
certamente encontrará uma boa profissão. Posso esperar que ele
garanta o sustento da mãe. Julia, minha filha mais velha, precisa
de rígida supervisão. Seu temperamento agitado precisa ser
constantemente controlado. Acredito que será mais fácil lidar
com Carla e, ao lado de Thomas, ela trará um componente de
tranquilidade. Nosso pequeno “Vikko” – Deus o proteja. Crianças
temporãs muitas vezes são intelectualmente favorecidas – e ele tem
olhos tão bondosos. Possa minha esposa demonstrar firmeza com
todos e mantê-los sempre sob controle. Para os momentos em que
vacilar, recomendo a leitura de Rei Lear (SENADOR MANN apud
PRATER, 2000, p. 33).
Dois anos após a morte do marido, Julia mudou-se para
Munique, onde encontraria um ambiente mais liberal do que o
de Lübeck. Em Munique Julia participava de bailes de carnaval e
chegava a ser mais cortejada do que suas próprias filhas mais novas,
como teria ocorrido inclusive com o futuro marido de sua filha
mais velha. “O círculo dos frequentadores da casa da ‘Senhora do
Secretário de Estado Mann’ teria desagradado os conhecidos de
Lübeck e escandalizado seu finado marido” (MISKOLCI, 2003: 27).
Enquanto isso, Thomas permanecia em Lübeck para terminar
seus estudos no Katherineum. Foi nesse período que Mann
conseguiu pela primeira vez uma publicação de seus escritos na
imprensa. Quanto à escola, os professores pareciam aceitar o caráter
difícil de Thomas e não procurava realizar qualquer interferência, e o
resultado de seu boletim final foi o suficiente para Thomas, relatando
um empenho e atenção satisfatórios. Sobre a escola Mann comenta
que: “Ela me deixava entregue ao meu destino, que ainda me parecia

361
Conflitos e Contradições na História

obscuro, mas cuja a incerteza não conseguiu me abater, já que eu me


sentia esperto e saudável” (MANN apud PRATER, 2000, p. 36). Em
seguida, Thomas se juntou à família em Munique.
O tutor de Thomas Mann encontrou para ele um trabalho em
um escritório de seguros contra incêndio. Era uma atividade sem
remuneração, com o intuito de afastá-lo de seus sonhos literários.
Porém, durante seu expediente o que Thomas realizava era na
verdade anotações para textos e romances, com os quais esperava
que sua mãe percebesse sua vocação e o deixasse livre da vida
comercial, e foi com a ajuda do advogado de sua mãe que obteve
sucesso. Mas antes, Thomas deveria ampliar seus estudos e chegou a
matricular-se em um curso como visitante para se tornar jornalista.
Nesse momento, importantes leituras sobre artes, história e filosofia
foram feitas, além disse, teve também desperto um surpreendente
interesse pela economia.
Nesse período Thomas publicou sua primeira novela, Gefallen,
a qual lhe rendeu elogios do poeta Richard Dehmel. Fez também
suas primeiras viagens à Itália, juntamente com Heinrich, para onde
retornou no ano seguinte para permanecer por aproximadamente
um ano e meio. Foi nessas primeiras visitas à Itália que Thomas
conheceu Palestrina, a cidade onde em seu romance, Doutor Fausto,
o protagonista Adrian Leverkühn selou um pacto com o demônio.
Em Roma, Thomas escreveu seu conto O Pequeno Senhor Friedmann
e enviou ao editor Samuel Fischer na Alemanha, o qual pediu-lhe
então mais contos para que fossem publicados.
Em sua juventude, a figura de Heinrich afigurava-se como
um referencial para Thomas. O caminho que ainda esperava seguir,
já era de certa forma percorrido pelo irmão. Thomas escrevera a
Grautoff, seu amigo e confidente daquela época sobre a impressão
que tinha de si e de seus dois irmãos:
Heinrich já é um poeta, mas também um “escritor”, com um talento
intelectual poderoso, versado em sua crítica, filosofia, política... Eu
sou apenas um artista, apenas um poeta, apenas uma caricatura
cheia de vontades, intelectualmente fraco e socialmente inútil. Seria
surpreendente se o terceiro filho, por fim, resolvesse seguir a mais

362
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

vaga das artes, a música? Isso pode ser chamado de degeneração,


mas está diabolicamente claro para mim (MANN apud PRATER,
2000: 41).
Raízes Brasileiras
Pelo lado materno, Thomas Mann descendia de uma
brasileira. Sua mãe, Julia da Silva Bruhns, nascera em 1851, na
floresta próxima a Paraty. Johann Ludwig Hermann Bruhns,
conhecido no Brasil como João Luiz Germano, pai de Julia, fora
um alemão rico que chegou ao país no começo do século XIX, antes
do início das imigrações em massa para o país. Nigel Hamilton
afirma que D. Pedro II teria convocado o avô de Thomas para uma
audiência, tendo ficado surpreso com as ideias do alemão, que se
tornou delegado imperial para o interior, “transformou o Piracicaba
em rio navegável e alcançou considerável renome como homem de
poucas palavras” (HAMILTON, 1985, p. 29). Johann Bruhns casou-
se com Maria Senhorinha da Silva, filha de um próspero fazendeiro,
o que demonstra seu sucesso econômico, pois, se fosse o contrário,
dificilmente o pai da brasileira teria permitido tal união.
Cinco crianças foram fruto do casamento entre Johann
Bruhns e Maria Senhorinha, dentre elas, Julia, a quarta filha do casal.
A família havia se fixado na Fazenda Boa Vista em Paraty, onde
a mãe de Julia morreu em 1856, no parto de seu sexto filho, que
também não resistiu. O pai de Julia decidiu retornar à Alemanha
algum tempo depois, em 1858, quando um surto de febre amarela
chegou à região.
A educação protestante em Lübeck era de grande valor para
a família, de modo que Julia perdeu gradativamente sua origem
católica e em 1866 completou-se sua conversão definitiva ao
luteranismo, quando ocorreu a cerimonia de sua confirmação. O pai
regressou ao Brasil, onde se casou novamente, e Julia permaneceu
em Lübeck, onde seus laços com sua terra de origem tornavam-
se cada vez mais tênues. O português foi sendo esquecido, mas
as memórias da primeira infância permaneceriam com a mãe de
Thomas Mann. A origem brasileira de Julia, na visão de Thomas

363
Conflitos e Contradições na História

Mann, o qual considerava-se bem mais próximo de sua mãe do que


de seu pai, tornava-a propensa a uma certa musicalidade.

Minha herança paterna e materna divide-se exatamente segundo o


modelo goethiano: o do pai a “estatura”, ao menos uma dose disso,
e “o jeito sisudo de ser”; da mãezinha”, tudo que G.[Goethe] resume
simbolicamente nas palavras “alegria, candura” e a “vontade de
histórias tecer”, o que nela assumia formas bem diferentes, é claro.
Sua natureza pré-artistica e sensível expressava-se na musicalidade,
em seu piano tocado com bom gosto e com aptidão proporcionada
por uma formação burguesa consistente, e em sua refinada arte de
cantar, à qual devo meu bom conhecimento da canção alemã. Ela
foi levada a Lübeck ainda em tenra idade e enquanto durou lá sua
lida com as obrigações da casa comportou-se como uma boa filha
da cidade e de seus extratos sociais mais elevados; uma corrente
interior de propensão ao “Sul”, à arte e à boemia, no entanto, jamais
deixou de estar presente (MANN apud KUSCHEL, 2013, p. 34).
Sérgio Buarque de Holanda, em uma entrevista com Thomas
Mann, supõe exatamente algo parecido, atribuindo não apenas
um aspecto físico, influenciado pelos traços herdados de sua mãe
brasileira, mas também suas qualidades de escritor. O próprio Mann
confirmou a suposição de Sérgio Buarque ao afirmar que:
Sim, creio que a essa origem latina brasileira devo certa clareza de
estilo e, para dizer como os críticos, um “temperamento pouco
germânico”. Li apaixonadamente os clássicos alemães, os escritores
franceses e russos e, especialmente, os ingleses, mas estou certo de
que a influência mais decisiva sobre minha obra resulta do sangue
brasileiro que herdei de minha mãe. Penso que nunca será demais
acentuar essa influência quando se critique a minha obra ou a de
meu irmão Heinrich (MANN apud HOLANDA, 2005, p. 255).
Sérgio Buarque de Holanda afirma ainda que só foi recebido
por Mann, em meio a tantos compromissos, já que naquela ocasião
acabara de receber o Prêmio Nobel de Literatura, pelo fato de
o escritor alemão não desejar perder a chance de falar com um
brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda também ressalta o grande
interesse de Mann pelo Brasil. “Não se cansava de indagar sobre as
coisas brasileiras, sobre a nossa vida social, a nossa literatura” (1996,
p. 255).
Anos mais tarde, outro escritor brasileiro que também teve

364
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

contato com Thomas Mann foi Erico Verissimo. Em uma viagem aos
Estados Unidos, fruto de uma política de boa vizinha entre os dois
países quando aumentava a pressão para que o Brasil se juntasse aos
Aliados na guerra, os dois teriam se encontrado. Verissimo relatou:
“Tomei cerveja, burguesmente, em Denver, com Thomas Mann”
(VERÍSSIMO apud KUSCHEL, 2013, p. 125). O brasileiro não levou
boas impressões de Katia, esposa de Thomas, ao que parece, pelo
fato de frau Mann ter expresso uma certa desconfiança relacionada
aos direitos autorais das obras de Thomas Mann no Brasil. Inspirado
em sua viagem aos Estados Unidos, Erico criou uma obra chamada
Gato Preto em Campo de Neve (1941) o qual possui um capítulo
intitulado “Thomas Mann”.
A consciência de sua origem brasileira parecia acentuar-se
cada vez mais em Thomas, principalmente em seus tempos de exílio.
Esse era, provavelmente, mais um ponto que permitia a Mann opor-
se cada vez mais às ideias nazistas de pureza racial que tomavam
conta da Alemanha. O escritor, que anteriormente em seu período
pré-republicano, se não escondia sua veia brasileira, pelo menos não
falava tão abertamente assim no assunto.
Enquanto Adorno observava que os olhos de Mann eram
“negros e brasileiros” (ADORNO apud KUSCHEL, 2013, p. 72), por
suas raízes sul-americanas, Thomas também fora considerado de
origem judaica, já que sua mãe descendia de portugueses, o que para
um certo Adolf Bartels o tornava a “‘mistura de sangue árabe, judeu,
indiano e negro.’ De qualquer modo, os portugueses seriam ‘o pior de
todos os povos europeus, do ponto de vista racial’, segundo Bartels
em um artigo para o jornal antissemita berlinense Staatsbürger-
Zeitung” (KURZKE apud KUSCHEL, 2013, p. 74).Thomas Mann
buscava amenizar tais origens. Consta em seus diários:
Se eu fosse judeu, eu esperaria ter consciência suficiente para não
me envergonhar de minha ascendência; como não sou judeu – e isso
em nenhuma gota sequer de meu sangue -, não posso desejar que
alguém me tome por judeu. Eu descendo de uma família hanseática
nobre; meu pai fazia parte do Senado da cidade de Lübeck. (MANN
apud KUSCHEL, 2013, p. 74).

365
Conflitos e Contradições na História

Tais ligações da mãe brasileira de ascendência portuguesa


com uma origem judaica ocorriam por uma associação ao fato de
que boa parte da população branca do Brasil, no período colonial,
ser composta por cristãos-novos, o que transparece inclusive
na obra literária de Thomas, quando descreve em A Montanha
Mágica o seminário frequentado por Naphta, o qual era também
de origem judaica, e diz que “existiam ali jovens provenientes de
terras longínquas, sul-americanos de raça lusa, cujo aspecto era
mais ‘judeu’ do que o de Leo, e dessa forma o conceito deixou de
subir à tona” (MANN apud KUSCHEL, 2013: 78). Tempos depois,
quando tal associação incomodava pouco a Mann, a questão ainda
emergia. Em 1932 Goebbels afirmava que Thomas era “um escritor
vira-lata, com sangue índio, negro e mouro” (GOEBBELS apud
PRATER, 2000, p. 253). No ano seguinte começou o seu exílio, e o
afastamento da Alemanha poderia tê-lo aproximado do Brasil, visto
que outras figuras de destaque perseguidas pelo nazismo exilaram-
se no país, como foi o caso de Stefan Zweig e Karl Lustig-Prean,
um membro do Movimento dos Alemães livres do Brasil,2 o qual
manteve correspondência com Thomas Mann durante vários anos,
tendo chegado inclusive a pedir sua intervenção junto às autoridades
americanas para que pudesse assumir o cargo de administrador do
Teatro Municipal em Augsburgo, na Alemanha ocupada após o fim
da Segunda guerra Mundial, ao que Mann respondeu ser impossível
naquele momento, onde já não possuía o mesmo prestígio dos
tempos de Franklin Delano Roosevelt. Os rumos da política nos
Estados Unidos com o início da Guerra Fria o tornaram alvo do
2 Diversos movimentos de caráter anti-hitlerista surgiam entre os alemães
emigrados. Na Argentina foi composto um movimento chamado “A Outra
Alemanha”, unindo socialistas e social-democratas. No México surgiu o
movimento conhecido como “Alemanha Livre”, de inspiração comunista. As rixas,
existentes desde antes do exílio, entre socialistas, social-democratas e comunistas
impediam que tais movimentos se aproximassem. No Brasil, Karl Lustig-Prean,
que já havia se envolvido em movimentos de resistência de língua alemã, mesmo
com todas as dificuldades existentes devido ao regime de Vargas, tornou-se um dos
presidentes de honra, ao lado de Heinrich Mann, do movimento latino-americano
dos Alemães Livres. Porém, não consta que Lustig-Prean, um antigo representante
do setor católico progressista na Áustria, tenha se tornado de fato um comunista
(KUSCHEL, 2013: 110 – 114).

366
André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

Comitê de Atividades Antiamericanas, e em 1952 Thomas Mann


partia para um novo exílio na Suíça.
Mann agradeceu a Lustig-Prean pelas informações sobre o
Brasil, país de sua mãe. Teria sido justamente do Brasil a primeira
imagem de uma terra estrangeira formulada pelo escritor, através
de Julia, que sempre relatava aos filhos as memórias de sua primeira
infância. Como exilado, como alguém que perdera sua “terra pátria”,
Mann afirmava que deveria buscar realizar uma visita à sua “terra
mátria”.3 Porém, o escritor nunca chegou a conhecer a terra de sua
mãe.
O Movimento dos Alemães Livres é mais velho do que sua existência
oficial. No entanto, eu também gostaria de dar as congratulações
e agradecer a seus dirigentes e membros do movimento por sua
atividade, que contribui para manter no mundo a fé na existência
de uma Alemanha melhor, pelo dia em que, um ano antes, a mais
alta autoridade do país concedeu-lhe seu reconhecimento. O
agradecimento se dirige também ao país imenso e acolhedor que
lhes oferece proteção e liberdade de atuação, ao qual me sinto ligado
por laços sanguíneos. Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua
beleza, pois minha mãe veio de lá, era uma filha de terra brasileira;
o que ela me contou sobre esta terra e sua gente foram as primeiras
coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Também sempre estive
consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias
e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa
corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que
eu ainda não tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra pátria
[mein Vaterland] deveria constituir uma razão a mais para que eu
conhecesse minha terra mátria [mein Mutterland]. Ainda chegará
essa hora, espero. (MANN apud KUSCHEL, 2013, p. 258)
As origens brasileiras de Thomas Mann não passavam
despercebidas a outros intelectuais do Brasil. Lustig-Prean relatou a

3 “A expressão não é uma invenção de Mann. Em Alemão, ela também significa


simplesmente ‘metrópole’. É usada, portanto, para descrever a relação de países
com suas colônias. Diz-se, por exemplo, que as colônias americanas ter-se-iam
desagregado de sua Mutterland Grã-Bretanha. Ou então denomina-se Mutterland
um país conde algo surge ou se consolida, torna-se o ‘berço’ de algo. A Inglaterra,
por exemplo, é conhecida nesse sentido como a Mutterland do parlamentarismo,
e a Grécia da democracia. Com sua analogia, Thomas Mann tinha em vista o cerne
político de sua argumentação. O Brasil como sua terra mátria, seu Mutterland,
representava para ele naquele momento o oposto do que lhe impingia sua pátria,
seu Vaterland”. In KUSCHEL, 2013, p. 118.

367
Conflitos e Contradições na História

Thomas que Gilberto Freyre falava à Academia Brasileira de Letras


da necessidade de convidá-lo para uma visita ao Brasil, para que
pudessem honrar o escritor alemão, fazendo com que fosse revelado
ao mundo que este era também “meio-sangue brasileiro”. Segundo
Freyre, se Rio Branco estivesse no Itamaraty, o nome de Thomas
Mann jamais teria deixado de ser associado ao Brasil, e, no entanto,
o escritor já passara dos setenta anos sem que nunca houvesse
pisado em terras brasileiras. Para Freyre, Mann deveria ser honrado
na terra natal de sua mãe, tal como o fora em outros reinos e países,
por chefes de Estado e cardeais. Freyre deixava transparecer em seu
artigo publicado no jornal Diário de Notícias, de 26 de outubro de
1947, intitulado “Thomas Mann, filho de brasileira”, que o governo
brasileiro perdia ótima oportunidade. Segue um trecho do artigo:
A Academia Brasileira de Letras há de permitir que eu lhe dirija a
palavra, do subúrbio de província onde resido, não para pedir-lhe
uma graça ou sequer um obsequio e sim para recomendar às suas
homenagens um grande escritor moderno nascido na Alemanha,
mas descendente de brasileiro; e que, entretanto, parece não ter
merecido ainda do governo do nosso país um simples convite para
aqui realizar conferencias; nem da Academia de Letras, a solene
demonstração de que o Brasil se sente um pouco dono da figura
tão gloriosa da literatura moderna; um pouco responsável pelo
seu enriquecimento, pela sua formação, pela sensibilidade quase
de mulher que em Thomas Mann se junta a um dos talentos mais
varonis que o mundo intelectual já viu. (FREYRE apud PAULINO;
SOETHE, 2009)
Ao dar ciência a Thomas Mann da intenção de Freyre, Lusting-
Prean também relatou para o escritor alemão de quem se tratava
o intelectual brasileiro, comentando sua presença como professor
visitante em universidades americanas. Afirmou que sua obra Casa
Grande & Senzala possuía a mesma relevância para a América
Latina que Os Buddenbrook possuía para a literatura alemã. Lusting-
Prean apresentou o autor brasileiro a Thomas como Dr. Gilberto
Freyre, “um dos maiores escritores do Brasil e seguramente o mais
importante sociólogo da América Latina” (LUSTIG-PREAN apud
KUSCHEL, 2013, p. 265).
Ao longo de sua trajetória, Thomas Mann recebera diversas

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André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

homenagens, diversos títulos de doutor honoris causa, e diversos


prêmios, dentre eles, como já foi dito, o Prêmio Nobel de Literatura
em 1929. Em resposta a Lustig-Prean, Mann agradeceu mais uma vez
pelas notícias do Brasil, que segundo o próprio o teriam comovido
e divertido:
Sua simpática carta por sorte chegou a mim no dia 31 de outubro.
Agradeço-lhe pelas notícias interessantes. O apelo do Professor Dr.
Freyre divertiu-me e comoveu-me. Quase não consigo imaginar
de que maneira a Academia Brasileira pudesse atender à sua
conclamação. Ela deveria nomear-me membro-correspondente?
Claro que seria uma honra e uma alegria para mim. É assim que se
dá, no meu caso, em relação à Academia Romana dei Licei (MANN
apud KUSCHEL, 2013, p. 267).
Richard Miskolci realizou um estudo acerca do impacto da
consciência de uma origem ligada também ao estrangeiro, no caso,
ao Brasil, na obra de Thomas Mann, resultando em uma ideia de
Mischiling4 em plena sociedade alemã daquele momento. Em sua
obra Thomas Mann, o Artista Mestiço, Miskolci demonstra como
era a visão que se tinha do Brasil na Alemanha, diante da ótica da
eugenia e da teoria dos miasmas, fortes correntes que vigoravam no
momento que a mãe de Thomas chegou à Europa (inclusive a tia-avó
de Julia esperava que ela e seus irmãos fossem negros) faziam com
que o Brasil, com seu clima tropical, fosse visto como local de origem
de diversas doenças que acometiam os países civilizados, juntamente
com outras parcelas do hemisfério sul. Miskolci aponta que o Brasil
não era considerado um país que fosse parte das regiões civilizadas
do globo, além de estar ligado à lógica agrário-exportadora e com

4 Miskolci observa que o termo Mischling tem um sentido mais complexo do


que uma simples tradução por “mestiço”. Para o autor “A categoria racial com a
pior reputação provavelmente era a do Mischling, o qual era considerado único
no sentido de que ele não era parte de nenhum grupo étnico. Para Mann, ser um
mestiço era um problema porque esta era a causa de seu sentimento de alienação
de sua sociedade. O que o incomodava não era sua aparência física, ou não apenas
ela, mas principalmente a associação corrente entre origem “exótica” e ideias
suspeitas, a qual ligava estreitamente corpo e mente. O que não fosse fisicamente
detectado poderia ainda assim ter efeitos em sua forma de pensar, especificamente
em sua visão crítica diante da sociedade burguesa (...) O Mischling ou anormal,
não um indivíduo simplesmente doente, mas um irremediavelmente degenerado”
(MISKOLCI, 2003, p. 110–111).

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Conflitos e Contradições na História

sua formação econômica embasada também na mão de obra escrava


(MISKOLCI, 2003, p. 111).
Desse modo, suas raízes brasileiras também dialogaram com
os antagonismos da vida de Thomas Mann, que apesar de suas
atrações homossexuais, por exemplo, buscava o casamento para
reprimir tais anseios e para adequar-se à ordem burguesa, e também
eram mais um fator na visão de si mesmo como um degenerado,
visto que, principalmente o Thomas Mann pré-republicano, era um
homem de seu tempo e de seu meio. Porém, isso alcançava um caráter
positivo, visto que, para Thomas, o artista era um degenerado, e o
que Miskolci buscou demonstrar em sua obra foi justamente isso: a
consciência e a influência das raízes brasileiras em seus personagens
e em suas obras.
A auto compreensão de Mann como um artista burguês, como
um mediador entre duas esferas (ou extremos) da vida social,
fez com que suas obras oscilassem entre oposições como pai e
mãe, alemão e Mischling, burguês e artista, heterossexualidade e
homossexualidade, saúde e doença, razão e loucura. Não a simples
oposição, antes a tensão entre o ideal social e sua individualidade
é a responsável pela perigosa condição do artista em sua obra.
(MISKOLCI, 2013, p. 123).
Desse modo, a consciência de suas raízes também teria
contribuído para uma mudança, quando após a Primeira Guerra,
o autor de Pensamentos na Guerra e Considerações de um Apolítico
abandonou sua linha nacionalista para se opor aos nacionalistas que
pregavam a pureza racial.

Referências
GAY. Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia
da Costa Braga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
HAMILTON, Nigel. Os irmãos Mann: as vidas de Heinrich e
Thomas Mann. Tradução de Raimundo Araújo. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1985.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Thomas Mann e o Brasil. In:
O Espírito e a Letra: Estudos de Crítica Literária I (1920 – 1947).

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André Ricardo V. V. Pereira [et. al.]

São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


KURZKE, Hermann. Thomas Mann: life as a work of art.
Princeton: Princeton University Press, 2002.
KUSCHEL, Karl-Josef. Terra Mátria: A família de Thomas
Mann e o Brasil. Karl Josef-Kuschel, Frido Mann, Paulo Astor
Soethe; Tradução de Sibele Paulino. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
MANN, Thomas. A montanha mágica. Tradução Herbert
Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
MANN, Thomas. Consideraciones de um apolítico.
Salamanca: Capitán Swing Libros, 2011.
MANN, Thomas. Doutor Fausto. Tradução de Hebert Caro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
MANN, Thomas. Os Buddenbrook: decadência de uma
família. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
MANN, Thomas. Ouvintes alemães! Discursos contra
Hitler. Tradução de Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
MANN, Thomas. Pensamentos na Guerra. Tradução de
Mário Frungillo. Revista UFG/ julho de 2010/ Ano XII n°8.
MISKOLCI, Richard. Thomas Mann, o artista mestiço. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2003.
PRATER, Donald A. Thomas Mann: uma biografia. Tradução
de Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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