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Niterói
2007
2
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Ronaldo Vainfas (orientador)
UFF
___________________________________________________________________________
Maria Regina Celestino de Almeida
UFF
___________________________________________________________________________
Ronald Raminelli
UFF
___________________________________________________________________________
Cristina Pompa
USP
___________________________________________________________________________
João Azevedo Fernandes
UFPB
3
DEDICATÓRIA
A Deus, porque dele e por ele e para ele são todas as coisas.
AGRADECIMENTOS
Neste momento, como diz o poeta, parece que todas as palavras são velhas ou
inadequadas para agradecer às pessoas que fizeram parte desta trajetória; mas ainda assim, é
do fundo do coração que elas fluem para o papel.
Meu profundo agradecimento ao meu orientador, Ronaldo Vainfas, pelo desafio,
confiança e generosidade. E ainda por ceder-me fontes inéditas de sua própria pesquisa.
Agradeço às professoras Juliana Beatriz Almeida de Souza e Heloísa Gesteira,
membros da minha banca de qualificação, pelas sugestões e críticas de grande valia para a
conclusão deste trabalho.
Agradeço aos professores Guilherme Pereira das Neves e Maria Regina Celestino.
Suas aulas me ajudaram a pensar teoricamente meu objeto de pesquisa.
Agradeço ao CNPQ, que, concedendo-me uma bolsa de pesquisa, tornou possível a
realização deste trabalho.
Agradeço a tantos amigos que, de uma forma ou de outra, participaram do processo
de construção deste trabalho. De forma especial, a Antonio Paulo Benatte, pelas conversas
norteadoras, pelo estímulo, pela leitura.
Agradeço ao João Paulo Flores e Wagner Mengarda, que me socorreram nas lides do
computador. A Juceli Silva, Stela Barbosa Mengarda, Cacilda Maesima e Eliede Böhnke,
amigas preciosas e apoio constante. A Berenice Abreu e Silvana Jeha, fonte de apoio e ânimo
irrestritos. Amigas excepcionais, trazidas pelo curso, e que ficarão para sempre. A Silvana
agradeço, ainda, a acolhida generosa no Rio de Janeiro.
Às avós Maria e Maguy, pela ajuda com as meninas; da mesma forma, agradeço a
minha irmã Maró.
À minha amada e preciosa família. Sou grata ao Eduardo, meu esposo, por viver mais
este projeto comigo. E pela forma como o fez, com paciência, compreensão e encorajamento.
Pelo desvelo com que corrigiu o meu trabalho, inclusive as enlouquecedoras notas de rodapé.
A Ana Laura e Letícia, que se viram tantas vezes furtadas da presença da mãe, na esperança
de que um dia entendam este tempo da minha vida. A Juliana, pela ajuda no primeiro ano de
curso, quando precisei me ausentar tantas vezes, e a Fernanda, que nos últimos tempos me
substituiu na vida das pequenas. Agradeço, sobretudo, porque de tantas formas me senti
amada e admirada por vocês. Amo vocês.
5
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA.........................................................................................................................3
AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................4
SUMÁRIO..................................................................................................................................5
RESUMO ...................................................................................................................................6
ABSTRACT ...............................................................................................................................7
ABREVIATURAS E SIGLAS...................................................................................................8
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9
CAPÍTULO 1 ...............................................................................................................................
A EXPANSÃO DA WIC E A DIFUSÃO DA FIDES REFORMATA.....................................15
1.1 O projeto .............................................................................................................................20
1.2 Fazer discípulos de todas as nações....................................................................................30
1.3 Dos pequenos fundamentos a uma Igreja instituída ...........................................................37
1.4 Uma banca calvinista no Novo Mundo .............................................................................62
1.5 Vicente Joaquim Soler, o pai da missionação no Brasil holandês......................................66
1.6 Joducos a Stetten: entre as minas e as almas ......................................................................72
1.7 Sucessos e insucessos da missionação no Brasil holandês.................................................82
CAPÍTULO 2 ...............................................................................................................................
EDIFICANDO SOBRE FUNDAMENTO ALHEIO ............................................................88
2.1 A usurpação de um modelo ..............................................................................................100
2.2 A cruz reformada e Pai Tupã............................................................................................105
2.3 O Catecismo Brasiliano ...................................................................................................106
2.4 A América e as novas palavras.........................................................................................116
2.5 Palavras perigosas, palavras desviantes ...........................................................................120
2.6 O Catecismo Brasiliano entre os brasilianos ...................................................................125
CAPÍTULO 3 ...............................................................................................................................
SOLA SCRIPTURA: A (RE)EVANGELIZAÇÃO DOS BRASILIANOS NA LEI DE
CALVINO ..............................................................................................................................132
3.1 Ibiapaba, a “Genebra dos sertões”....................................................................................135
3.2 Catequese e alfabetização: duas faces da mesma moeda .................................................148
3.3 Índios alfabetizados: ler o quê? ........................................................................................165
3.4 Índios analfabetos: a mediação da voz leitora ..................................................................167
3.5 Da murta ao mármore: o poder cristalizador da leitura ....................................................170
CAPÍTULO 4 ...............................................................................................................................
CAMALEÕES, MÁRTIRES E PERSEVERANTES: UM ESTUDO DE CASOS...............183
4.1 Um cristão camaleônico: Padre Manuel de Moraes .........................................................184
4.2 Um mártir do calvinismo tupiniquim: Pedro Poti ............................................................198
4.3 Calvinistas perseverantes: Antônio Paraupaba e os índios da Serra de Ibiapaba.............208
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................217
FONTES E BIBLIOGRAFIA ................................................................................................221
6
RESUMO
ABSTRACT
This thesis presents a historical analysis of mainly its missions among the Indians,
which were, already catechized and organized in villages by catholic religious orders, mostly
by the jesuits. So, this thesis discusses the Calvinist assimilation of catholic beliefs – trough
the general language – established along the 16th century, as well as the problems found
during the process of re-catechizing the Indians; it also demonstrates that the Calvinist
missions demanded the elaboration of a corpus of religious writings – especially a catechism
– for the calvinistic evangelization of the “Brazilians”, that means, a project that included
teaching the native Americans to read and to write; at last, focusing the appropriation of the
general language and the construction of a repertory of devotional literature, this thesis
emphasizes the development of cultural conflicts – particularly in the field of religious
culture.
8
ABREVIATURAS E SIGLAS
INTRODUÇÃO
1 Bry, Theodor de. Coleção grandes viagens. apud: PÉCORA, Alcir. O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e
católicos ibéricos, Remate de Males. Campinas: Unicamp, n. 12, 1992, p.35.
2 LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.
3 Paris, Aux Amateurs de Livres, 1990, apud PÉCORA, op. cit., p.35.
4 PÉCORA, op. cit.
10
Brasil holandês, tal missionação resultou num grande esforço por parte da Igreja reformada
em alfabetizar o indígena, a fim de que este pudesse ser instruído nos fundamentos da fé
reformada diretamente a partir dos textos sagrados. Pois os reformados consideravam a leitura
de textos religiosos ferramenta imprescindível para inculcar a fé. A crença na eficácia da
leitura, aliada à máxima da reforma protestante do contato pessoal e familiar com o texto
bíblico, demandou, também, a elaboração de um corpus de material literário religioso voltado
para a catequese dos brasilianos. Redigido em língua geral, a elaboração desse material, e
especialmente do Catecismo Brasiliano, foi fonte de conflitos entre a Igreja local na colônia e
a Igreja-mãe na metrópole, exprimindo tensões latentes e manifestas no terreno cultural e
religioso.
O objetivo deste trabalho é analisar historicamente o projeto de missionação calvinista
entre os brasilianos, com ênfase nos problemas atinentes à comunicação, aos usos da língua, à
alfabetização, à leitura e à tradução de um idioma para outro, no bojo do processo de
conversão de uma alteridade à identidade religiosa reformada.
A pesquisa, portanto, trata, em maior medida, da missionação reformada entre os
indígenas já catequizadas no credo católico, nas capitanias do norte do Brasil entre os anos
1630-1654; mas, a missionação reformada não se limitou aos índios aldeados (os
Tupinambás, habitantes da costa): os predicantes e professores, na medida do possível,
fizeram incursões catequéticas entre alguns outros dos naturais da terra, os denominados
“tapuias”. Habitantes do sertão em oposição aos da costa, os “tapuias” — noção construída
pelos europeus —, constituíam uma denominação genérica de vários grupos étnicos (Tarairiú,
Ariú, Icío, Payaya, Paiacu, entre outros) que, a esta altura do século XVII, eram entendidos
como alteridade absoluta e total em oposição aos Tupinambás da costa, já aldeados e
cristianizados pelas ordens regulares da Igreja católica. Vale apontar que os neerlandeses
tiveram nos janduís, da etnia Tarairiú, aliados renhidos, que a certa altura parecem ter
aceitado de bom grado a missionação calvinista entre os seus.
Apesar da importância estratégica que desempenhava no projeto de conquista e
ocupação neerlandesa no Brasil seiscentista, essa missionação calvinista efetivada junto aos
naturais da terra — quer entre os aldeados, quer entre os aliados infernais (os tapuias) —, esse
tema tem sido, até hoje, pouco problematizado pela historiografia brasileira; e isso não
obstante a invasão flamenga constituir um tema clássico dessa mesma historiografia. De modo
geral, desde o século XIX os historiadores têm se ocupado da história política, militar,
econômica, social, administrativa, religiosa e diplomática do período nassoviano. No geral, a
temática é rica e variada: as guerras, batalhas e tratados entre neerlandeses e luso-brasileiros;
11
5 SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630-1654. Recife: FUNDARPE, 1986.
6 VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
7 GRUZINSKI, Serge. A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
8 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
9 POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
10 Ibidem. p. 25.
12
11 LE GOFF, J. Documento-monumento, In: História e memória. 3ª ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1994, p. 545.
13
simplesmente uma diferença de estilo. Todos eles trazem informações sobre a Igreja
Protestante no Brasil holandês, sua missão entre os índios e o cotidiano conflituoso entre
católicos e protestantes.
Este trabalho divide-se em quatro capítulos. No primeiro, intitulado “A expansão da
WIC e a difusão da fides reformata”, procuro demonstrar que a dimensão espiritual ou
religiosa não esteve ausente do projeto mais amplo da Companhia das Índias Ocidentais
quanto à colonização do Brasil. Busco reconstruir, na medida do possível, o cotidiano eclesial
dos predicantes envolvidos nesse projeto, de modo a demonstrar o zelo e denodo com que se
empenharam nas obras de implantação da Igreja Cristã reformada no Brasil holandês.
No segundo capítulo, intitulado “Edificando sobre fundamento alheio”, analiso a
apropriação, por parte dos missionários reformados, dos saberes e métodos elaborados pelos
missionários católicos, em especial os inacianos, para o desenvolvimento de seu projeto
catequético, a começar pela apropriação da língua geral. Analiso também, a partir da
confecção de um catecismo na língua geral, para fins de catequese do gentio, as tensões
geradas por questões culturais, neste caso, propriamente, pelas questões que envolviam a
comunicação, a linguagem e a tradução de um idioma para outro.
No terceiro capítulo, intitulado “Sola Scriptura: a (re) evangelização dos brasilianos
na lei de Calvino”, discuto o processo de alfabetização indígena levado a cabo pelos
missionários reformados e seus efeitos na doutrinação do gentio. Aqui, trabalho com a
hipótese de que o sucesso da catequese reformada repousou no bem sucedido projeto de
alfabetização do gentio, o que permitiu a transmissão dos ensinamentos calvinistas,
efetivamente, pela palavra escrita. Procuro demonstrar que a eficácia da ação missionária
reformada deve ser entendida, então, a partir dessa perspectiva: a da leitura intensiva de um
corpus de literatura religiosa destinada especificamente aos índios.
No quarto e último capítulo, “Camaleões, mártires e perseverantes: um estudo de
casos”, pretendo historicizar, a partir da análise de três trajetórias individuais, a problemática
conversão ao protestantismo por parte destes homens, índios e mestiços católicos. Através
dos fragmentos que nos restaram dessas vidas “exemplares”, várias questões podem ser
colocadas e desenvolvidas: as motivações que os impulsionaram em direção ao calvinismo;
as implicações, repercussões e desfechos de seu trânsito religioso no contexto mais
envolvente da dinâmica dos conflitos coloniais.
Resume-se a isto a ambição desta pesquisa: trazer a lume os índios calvinistas. Para
tanto, empenhei-me em desvelar, por um lado, todo o empenho de homens que devotaram
suas vidas à causa do evangelho; por outro, as ambições da Companhia das Índias Ocidentais,
14
norteadas pela dinâmica mais geral dos conflitos coloniais. Por fim, era preciso tentar
recuperar a imagem algo pálida dos índios calvinistas: quem eram eles? Eram crentes
sinceros ou sua conversão representava apenas uma segunda demão de “verniz” religioso por
sobre uma primeira mão aplicada pelos católicos? E qual o seu papel como mediadores
culturais?
Por fim, resta mais uma vez constatar que nossa história colonial só pode ser
compreendida nos quadros gerais da história moderna; e que não passamos incólumes pelos
embates teológicos travados na Europa pós-Reforma Protestante.
15
CAPÍTULO 1
Mas, da mesma forma como nas Províncias Unidas dos Países Baixos12, vigorava uma
política de tolerância religiosa em que a celebração da missa era permitida em capelas
privadas e a existência do clero — com exceção dos jesuítas — era permitida desde 1632 com
a anexação de Maastricht13, no Brasil holandês deu-se algo semelhante. O artigo 10º do
Regimento das praças conquistadas ou que fossem conquistadas, de outubro de 1629,
aprovado pela Companhia das Índias Ocidentais e promulgado pelos Estados Gerais das
Províncias Unidas dos Países Baixos — e, por conseguinte, a lei orgânica do Brasil holandês
— estatuía:
Vale lembrar que liberdade de consciência e liberdade de culto são práticas distintas,
tendo o governo neerlandês concedido aos luso-brasileiros primeiramente a liberdade de
consciência, logo depois da queda de Igaraçu, em 1632; e a liberdade de culto quando da
capitulação da Paraíba, em 1634, no documento supracitado conhecido como Pacto da
Paraíba.
12 Na união de Ultrecht, estabeleceu-se o laço confederativo entre as sete províncias do norte (Holanda, Zelândia, Ultrecht, Frísia, Overijsel,
Guéldria e Groningen: as Províncias Unidas dos Países Baixos.
13 MELLO, Evaldo Cabral de. Nassau: governador do Brasil holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 89.
14 REGIMENTO do Govêrno das Praças Conquistadas ou que forem Conquistadas nas Índias Ocidentais. In: RIAGP, nº 31, Recife, 1886,
p.292.
15 ibid.
17
16 Os Dezenove Senhores (os Heeren XIX) era a junta de dezenove diretores, que compunham a diretoria central da Companhia das Índias
Ocidentais. Desses dezenove diretores, dezoito eram escolhidos entre os diretores regionais, nas seguintes proporções: Amsterdã: oito;
Zelândia: quatro; O Mosa, a Região Setentrional, Frísia e Groninga: dois cada um. O décimo nono era nomeado pelos Estados Gerais,
como seu representante pessoal. A Câmara mais forte, portanto, era a de Amsterdã seguida pela da Zelândia. Amsterdã, então como a
detentora de maior poder na Companhia sediou por seis anos consecutivos as reuniões da Companhia, passando na seqüência para a
Middelburg, durante dois anos, retornando as reuniões a Amsterdã. Portanto, Amsterdã dominou a Companhia do início ao fim. Como
havia uma deliberação de que os assuntos eclesiásticos do Brasil holandês seriam tratados pelos presbitérios localizados onde houvesse
câmaras da Companhia, o Presbitério de Amsterdã tornou-se a Igreja-mãe da Igreja Reformada no Brasil, seguida pelo presbitério de
Walcheren.
17 SANTIAGO, Diogo Lopes. História da guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do mestre de campo João Fernandes Vieira herói,
primeiro aclamador da guerra. Recife: CEPE, 2004, p. 126-7.
18 ARA, OWIC 68, Nótula diária de 3/12/1639 (prisão dos frades), apud MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do
Brasil holandês: a administração da conquista. v. II, 2 ed. Recife: CEPE, 2004, p.412; A batalha naval de 1640, RIHGB, v.58, t.1, 1895,
p.6.
19 Nótulas diárias de 15/1/1638 e de 5/6/1641. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 17 maio 2006.
18
20 Nótulas diárias de 15/1/1638, de 22/11/1638; 18/1/1641; 5/6/1641. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso
em 22 abril 2006; A Religião Reformada no Brasil no século XVII (Atas dos sínodos e classes do Brasil, no século XVII, durante o
domínio holandês), RIHGB, tomo especial nº 1, 1912, passim.
21 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. 4ª
ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001, p. 250.
19
1.1 O projeto
Mas, para além desses atos isolados de comércio ou pirataria, sabe-se que
efetivamente os neerlandeses dominaram o comércio do açúcar do Brasil, o que ia desde a
compra do produto até a sua distribuição na Europa, passando pelo transporte e pelo processo
de refino. Esta atividade mercantil e manufatureira era regularizada pela coroa portuguesa, o
que significava a necessidade de obtenção de licença e o pagamento de taxas. Contudo, estas
exigências não constituíram obstáculos para estes comerciantes que, dominando quase que
25 PUNTONI, Pedro. A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul, 1621-1648. São
Paulo: Hucitec, 1999, p. 29.
26 NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Brasil em perspectiva. 10
ed. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1978, p. 54.
21
27 “Nenhuma nau, nem navio estrangeiro ou estrangeiras, de qualquer sorte, e qualidade que seja, possa ir e nem vá nos portos deste Reino,
nem de fora deles as conquistas do Brasil, Mina, Costa da Malagueta, Reino de Angola, Ilha de São Tomé, e Cabo verde e qualquer
outros lugares da Guiné sem licença minha passada por Alvará por mim assinado”, e tampouco “possam fretar navios estrangeiras” os
súditos da Coroa Espanhola. Alvará de 9 de fevereiro de 1591 proibindo o comércio com estrangeiros”. Documentos para a história do
açúcar. Rio de Janeiro, 1954, v. 1, p. 380.
28 RATELBAND, Klaas. Os holandeses no Brasil e na costa Africana: Angola, Kongo e São Tomé (1600-1650). Lisboa: Vega Editora,
2003, p. 41.
22
cogitado”.29 Por certo que a expansão já se desenrolava, como dissemos, mas a política
restritiva dos Habsburgos acelerou o processo de expansão ultramarina das Províncias Unidas
dos Países Baixos. Com efeito, a união das Coroas ibéricas em 1580 não apenas acelerou o
processo de expansão neerlandês como determinou seu objetivo fundamental, conforme
afirmou Charles Boxer: “O ataque maciço dos holandeses ao império colonial português foi
ostensivamente motivado pela união das coroas espanhola e portuguesa na pessoa de Felipe II
de Espanha, contra cujo governo, nos Países Baixos, os holandeses haviam se revoltado em
1568”.30
Cerca de dez companhias de cunho particular foram criadas e os caminhos para as
Índias, do Oriente, foram abertos, ou melhor, singrados. Porém, não obstante o sucesso destas
companhias, os problemas não tardaram a aparecer. Os mercadores neerlandeses logo viram-
se às voltas com o aumento exorbitante dos preços das especiarias, conseqüência do
monopólio praticado pelos comerciantes nativos. Medidas foram tomadas, por parte das
companhias, como a formação de cartéis, na esperança de que, desta forma, obteriam as
especiarias por melhores preços; contudo, poucos foram os resultados obtidos. Perceberam
então que, para atingirem o fim desejado, outros meios precisavam ser pensados e outras
táticas levadas a cabo. Apenas a prática do comércio, como até o momento haviam praticado,
não surtira o efeito desejado. Concluíram os comerciantes que eram necessários a conquista
de rotas comerciais e a detenção do monopólio dos produtos em demanda. Outras questões,
neste momento, também empurravam os neerlandeses para a criação de uma única e grande
Companhia. A idéia era que, ao unir pequenas companhias em uma única, seu poder bélico
também seria fortalecido, o que tornaria possível o enfrentamento com o rei de Espanha e
Portugal nos mares do oceano.
Razões mercantis, políticas, militares. A fim de alcançar tais objetivos, foi criada a
Companhia das Índias Orientais, em 1602, pela união de algumas das pequenas companhias
neerlandesas que vinham, isoladamente, comercializando com o oriente. A criação desta
Companhia ocorreu sob a intervenção de Johan van Oldenbarnevelt, com o nome formal de
Companhia Unida das Índias Orientais, representada pela sigla VOC. Na verdade, a criação
desta Companhia foi, em muito, resultado do trabalho deste estadista, advogado da Província
da Holanda nos Estados Gerais, o órgão supremo da jovem República. A VOC detinha o
monopólio de navegação, comércio e administração das Índias do Oriente; com um estatuto
semelhante ao das sociedades anônimas, seu capital beirava os 7 milhões de florins, divididos
29 J. P. Blok. De Handel op Spanje em bet der Groote Vaart, 1913, apud WATJEN, Hermann. O domínio colonial hollandez no Brasil: um
capítulo da historia colonial do século XVII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 67.
30 BOXER, Charles R. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.121.
23
em 2.200 ações e composto por partes individuais, sem a estipulação de valores das quotas.
Essa composição de capitais abria a possibilidade de participações mais modestas.
A direção desta Companhia foi confiada a dezessete membros, escolhidos entre os
maiores acionistas, os quais foram designados os “Dezessete Senhores” [os Heeren 17]. A
administração da Companhia Unida das Índias Orientais estava divida em cinco escritórios
comerciais, denominados Câmaras, distribuídos nas cidades de Amsterdã, Midelburgo,
Enkhuizen, Delf e Roterdã. Os direitos e funções de cada Câmara Comercial eram definidos
com base no capital que haviam disposto na formação inicial da empresa. Por ter Amsterdã a
maior participação de capital, abrigou a sede da Companhia. Esta Companhia [VOC] foi a
primeira a vender ações publicamente na bolsa de valores neerlandesa. A Companhia Unida
das Índias Orientais expandiu-se em Ceilão, Formosa e principalmente na Indonésia, onde o
governador-geral Jan Pietersz Coen fundou a cidade de Batávia em 1619.
Em 1609, Espanha e as Províncias Unidas dos Países Baixos acordaram uma trégua
para a guerra que já durava mais de 30 anos; guerra esta instaurada em 1568, no reinado de
Felipe II, que subira ao trono em 1555, em lugar de seu pai, o poderoso Carlos I (Carlos V no
Santo Império), e que ficou conhecida como a Revolta Holandesa ou a Guerra dos Oitenta
Anos, quando os neerlandeses, na esteira da revolta dos Países Baixos contra Felipe II,
buscaram sua independência frente à monarquia espanhola.
No entanto, como afirma Boxer, esta trégua assinada em 1609 não conseguiu deter a
agressividade e a expansão dos neerlandeses no mundo tropical.31 Pelo contrário: firmado na
ambígua redação da quarta cláusula do tratado de trégua (que restringia a trégua à Europa),
um grupo, liderado por Willem Usselincx, defendia a criação de uma Companhia voltada para
as colônias hispano-portuguesas da América. Oldenbarnevelt contrário à criação de tal
Companhia, usava da mesma cláusula para refutar o projeto de Usselincx. Como os assuntos
políticos da recente República das Províncias Unidas dos Países Baixos estavam em grande
medida concentrado nas mãos de Oldenbarnevelt — exercendo este, portanto, grande
influência nos Estados Gerais —, conseguiu embargar a execução do projeto de Usselincx.
Argumentava Oldenbarnevelt que, com o estabelecimento da trégua, os neerlandeses podiam
comerciar livremente nos portos de Espanha e Portugal, estando doravante disponíveis, de
forma pacífica, todos os produtos advindos das colônias hispano-portuguesas da América.
Esta forma de comerciar, segundo ele, era muito mais tranqüila e segura do que realizar
31 BOXER, Charles R. Os holandeses no Brasil 1624-1654. São Paulo: Companhia Nacional, 1961, p. 2.
24
32 O arminianismo tem sua teologia e seu nome derivados de Jacobus Arminius (1560-1609), holandês, teólogo e ministro da Igreja Cristã Reformada
neerlandesa. Arminius se opôs ao dogma da predestinação — ponto central do calvinismo ortodoxo — e desenvolveu sua própria doutrina. Arminius
afirmava uma eleição condicional, na qual a oferta divina da salvação poderia ser ou não afetada pela vontade livre do homem. Afirmação frontalmente
oposta a de seu colega Franciscus Gomarius — defensor do calvinismo radical — o qual pregava que os eleitos para a salvação já estavam escolhidos por
Deus antes da queda de Adão. Tal predestinação não deixava espaço para a misericórdia de Deus, nem para a vontade humana para alcançar a salvação. O
ponto crucial do arminianismo é a dignidade humana que requer uma total liberdade da vontade. Após a morte de Arminius, alguns de seus seguidores
assinaram em 1610 a Remonstrance, um documento teológico que submeterem aos Estados Gerais. O arminianismo foi debatido em 1618-1619 no Sínodo de
Dordercht, no qual todos os delegados eram adeptos de Gomarius. O arminianismo foi rejeitado e condenado pelo Sínodo. Os arminianos, considerados então
como opositores do governo, foram multados e até exilados. Contudo, em 1629, em Leiden foi publicado uma obra de Arminius: Opera Theologica. Por volta
de 1630, os arminianos conseguiram tolerância. E finalmente, em 1795, a irmandade arminiana ou remonstrante foi reconhecida oficialmente na Holanda.
Gomaristas ou contra-remonstrantes é a designação dos calvinistas ortodoxos em oposição aos calvinistas remonstrantes ou arminianos. Os gomaristas têm
seu nome derivado do nome de Gomarius. Por se oporem à remonstrância elaborada pelos arminianos, elaboraram uma contra-remonstrância, passando então
a serem cognominados contra-remonstrantes. Os gomaristas ou calvinistas ortodoxos [contra-remonstrantes] afirmam a predestinação incondicional ou dupla
predestinação. De acordo com o princípio da dupla predestinação, Deus destinou um grupo que aceitaria Cristo para a salvação e a vida eterna, e outro grupo
que permaneceria ignorante perante Deus e o Evangelho. Estes estão condenados e irão passar a eternidade no inferno. Deus tomou esta decisão antes da
criação do Universo. As razões porque Deus a tomou são-nos desconhecidas.
25
33 Johan van Oldenbarnevelt foi julgado por um tribunal composto por 24 juízes, condenado à morte e executado em 13 de maio de 1619.
Hugo Grotius, preso com ele, foi julgado e sentenciado à prisão perpétua, de onde conseguiu fugir para Paris com ajuda de sua esposa.
34 BOXER. Os holandeses no Brasil, op. cit., p. 8.
26
As províncias meridionais dos Países Baixos haviam sido retomadas em 1585 pelo
Duque de Parma, governador geral dos Países Baixos. Os exércitos do Duque, no espaço de
um ano, retomaram as cidades flamengas de Brugge, Gand, Bruxelas, Malines e Antuérpia,
impondo-lhes novamente o catolicismo romano. Portanto, estes belgas em auto-exílio nas
Províncias do norte eram, em sua grande maioria, calvinistas ativos que se retiraram das
Províncias do sul por conta de perseguições religiosas. Seja como for — se etapas de uma
mesma guerra, conforme a historiografia tradicional, ou duas guerras diferentes, conforme se
tem pensado mais recentemente38 —, o fato é que as Províncias Unidas dos Países Baixos do
Norte se viram mais uma vez em guerra com a Espanha.
Sem Oldenbarnevelt, e finda a Paz provisória, o projeto de fundação de uma
companhia de comércio orientada para o Ocidente — iniciativa, como dissemos,
essencialmente dos calvinistas ortodoxos, ou seja, dos gomaristas ou contra-remonstrantes —
voltou à ordem do dia. Retomou-se, então, o engavetado projeto de Usselincx que defendia,
desde fins do século XVI, a conquista militar e mercantil da América aos Espanhóis. Os
neerlandeses acreditavam ser esta a única forma de ferir os Espanhóis na base de seu poder,
ou daquilo que sustentava o seu poder: as riquezas coloniais extraídas da América. Afinal, nas
palavras do historiador Klaas Ratelband, “Os neerlandeses sabiam perfeitamente que era nas
Américas que batia o ‘coração’ das saudáveis finanças inimigas”.39 Portanto, a invasão
neerlandesa nas capitanias do norte do Brasil fazia parte do conflito hispano-neerlandês de
proporções globais, ou, nas palavras de Boxer, da primeira guerra mundial da história.40 A
criação de uma Companhia de comércio voltada para a parte ocidental das possessões
espanholas foi, nas palavras de Boxer, “ardorosamente discutida” e defendida pelo clero
calvinista.41 Certamente que a motivação religiosa e patriótica contra o rei da Espanha se
imiscuía com os interesses econômicos, ou mais propriamente com o controle do comércio
colonial.
Vale citar parte do meticuloso relatório apresentado pelo rico mercador Jean de
Walbeecck aos Estados Gerais em 1633, com o objetivo de subsidiar uma ocupação ampla na
parte norte do Brasil. Ainda que seja documento concebido pós-invasão, ilustra os interesses
da época. O relatório diz:
Desta forma, a 3 de junho de 1621, os Estados Gerais autorizaram, por carta patente, a
criação de uma companhia de comércio direcionada para o Ocidente, denominada Companhia
das Índias Ocidentais (WIC), com concessão por vinte e quatro anos do monopólio do tráfico
e navegação, assim como da conquista e comércio em todas as terras situadas do lado do
Atlântico entre a Terra Nova e o Cabo da Boa Esperança, e no oceano Pacífico, desde a costa
39 RATELBAND. op. cit., p. 61.
40 BOXER. O império marítimo português, op.cit., p. 120.
41 BOXER. Os holandeses no Brasil, op. cit., p. 9.
42 BRASIL. Documentos holandeses. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Saúde, 1945, p. 21.
28
ocidental da América até a extremidade oriental da Nova Guiné. Joannes de Laet, um dos
diretores da WIC, assim definiu a efetivação do projeto: “necessário se fazia cortar à Espanha
o nervo, por assim dizer, de suas rendas anuais, e com o tempo estancar as fontes, donde o
sangue e a vida se derramam naquele grande corpo; e foi para isso mesmo que criaram a
Companhia”.43
Organizada, então, a Companhia das Índias Ocidentais, sua direção foi confiada a uma
junta de dezenove diretores, os Dezenove Senhores (os Heeren XIX). Destes dezenove
administradores, dezoito eram escolhidos entre os diretores regionais, nas seguintes
proporções: Amsterdã: oito; Zelândia: quatro; Mosa, a Região Setentrional, Frísia e Groninga:
dois cada um. O décimo nono era nomeado pelos Estados Gerais, como seu representante
pessoal. A Câmara mais forte, portanto, era a de Amsterdã, seguida pela da Zelândia. A
cidade de Amsterdã, enquanto detentora de maior poder na Companhia, sediou durante seis
anos consecutivos as suas reuniões; na seqüência, a sede foi transferida para Middelburg (na
Zelândia) durante dois anos, findo os quais retornou a Amsterdã. Ou seja, Amsterdã — vale
dizer, a sua burguesia mercantil — manteve a preponderância na Companhia das Índias
Ocidentais do início ao fim do empreendimento comercial-militar-religioso.
A fundação da Companhia das Índias Ocidentais em 1621 foi, portanto, a
concretização de um projeto que rondava muitas cabeças das Províncias Unidas dos Países
Baixos há um bom tempo; mas é a Usselincx, calvinista ortodoxo de Antuérpia, que se deve a
iniciativa do movimento que levou a cabo a sua fundação. Examinemos mais de perto esse
personagem. Willem Usselincx, rico mercador de Antuérpia, estabeleceu-se em Amsterdã na
última década do século XVI, e já por este tempo defendia a criação de uma Companhia de
comércio voltada para o Ocidente: América e África. Usselincx argumentava que a riqueza do
rei da Espanha não tinha origem tão somente nos minérios preciosos — o ouro e a prata —
extraídos das Américas do sul e central: o monopólio do comércio era tão ou mais importante
que a exploração dos valiosos metais. O grande exemplo, usado em defesa dessa tese, era o
Brasil. Argumentava o mercador que essa colônia não fornecia metais preciosos, mas
produzia outras riquezas capazes de sustentar o reino — a este tempo, o reino da Espanha —,
com a sua produção de açúcar, algodão e outras culturas que poderiam ser exploradas, além
da extração do pau-brasil. Na verdade, não obstante a “retórica policultora” do argumento, o
alvo principal era mesmo o açúcar que, por essa época, havia se tornado a principal
43 Historia ou Annaes dos feitos da Companhia das Índias Occidentais desde o seu começo até o seu fim do anno de 1636 por Joannes de
Laet, ABNRJ, v. 30, 1908, p. 40.
29
mercadoria do comércio marítimo; comércio que desempenhou papel essencial nas políticas
coloniais das grandes potências no século XVII.
Com efeito, a despeito de ter sido Usselincx o grande idealizador da Companhia das
Índias Ocidentais, não foi convidado a nela tomar parte por ocasião de sua fundação. O
“prolífico panfletário”, como o chamou Boxer, ficou de fora da causa que com tanto empenho
havia defendido; entretanto, não obstante a ausência de Usselincx, permanece o fato,
conforme demonstrou o mesmo Boxer, de que muitos que interferiram na origem e no
desenvolvimento da Companhia eram calvinistas militantes ortodoxos vindos dos Países-
Baixos espanhóis: Le Maire, De Moucheron, Plancius, De Laet e Barléu, para citar apenas
alguns nomes. Contrariando a versão da historiografia tradicional — versão que, ainda hoje,
aqui e ali, persiste —, de que a fundação da Companhia das Índias Ocidentais foi obra de
capitalistas judeus, sobretudo sefarditas, Boxer afirma que foram os calvinistas emigrados da
Flandres espanhola (especialmente os de Antuérpia) para a Províncias Unidas do Norte os
verdadeiros baluartes do grande empreendimento. O historiador inglês está coberto de razão:
o projeto de criação da WIC foi de Willem Usselincx e contou com três importantes apoios
para sua efetivação: dos Estados Gerais, do clero calvinista e de poderosos mercadores que
ambicionavam, na esteira de seu próprio enriquecimento, enfraquecer o poderio do rei da
Espanha.
Decorridos dois anos de sua fundação, a Companhia considerou que era hora do
primeiro ataque às possessões espanholas. A Bahia de Todos os Santos, no Brasil, foi o alvo
escolhido. Sendo esta a sede geral da colônia portuguesa sob domínio espanhol, a WIC
acreditava que sua conquista facilitaria a investida; e lançou-se contra ela no ano de 1624.
Calcularam mal. Os luso-brasileiros podiam não se sentir confortáveis debaixo do jugo
espanhol, mas certamente não fariam aliança com os reformados do norte europeu: dominação
por dominação, antes a de uma potência católica. Liderados pelo Bispo Dom Marcos Teixeira,
a população da Bahia resistiu e, um ano depois da investida, os neerlandeses eram expulsos do
Brasil pela força expedicionária de Espanha e Portugal sob o comando de Dom Fradique de
Toledo.
Agindo em atividades de corso, a Companhia (WIC) prosseguiu em suas investidas
ultramarinas até que, em setembro de 1628, o inusitado ocorreu. Piet Hein capturou na Bahia
de Matanza, na ilha de Cuba, uma frota de prata que se dirigia para a Espanha. A façanha
significou uma entrada de doze milhões de florins para o caixa da Companhia (WIC).
Distribuídos os lucros entre os acionistas, o que sobejou era ainda uma grande fortuna: sete
30
milhões de florins.44 Ávidos de lucros, questionaram: qual seria a melhor forma de investir tal
capital? Uma nova investida na colônia do Brasil foi a opção escolhida. O novo ataque
recairia precisamente sobre Pernambuco, a capitania do açúcar, “com seus engenhos
espalhados pelas várzeas dos rios Capibaribe, Beberibe, Jaboatão e Una (...)”.45
O apetite pelo “doce” alheio — o açúcar, produzido em 120 engenhos de açúcar
“correntes e moentes”46 — fez aportar nas costas de Pernambuco, a 14 de fevereiro de 1630, a
maior esquadra já vista naqueles tempos. Sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon
Lonck, a esquadra contava com 65 embarcações e 7280 homens. Iniciava-se ali a turbulenta
história do Brasil holandês.
44 Sete milhões de florins equivaliam a 77 toneladas de ouro, isto é, cerca de 700 milhões de dólares atuais.
45 SILVA, Leonardo Dantas. Holandeses em Pernambuco 1630-1654. Recife: L. Dantas Silva, 2005. p. 63. Havia por este tempo na
capitania de Pernambuco 121 engenhos.
46 Relatório sobre o estado das capitanias conquistas no Brasil, apresentada pelo Senhor Adriaen van der Dussen ao Conselho dos XIX na
Câmara de Amsterdã, em 4 de abril de 1640. In: MELLO, José Antonio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês: a
economia açucareira. v.. I, 2 ed. Recife: CEPE, 2004, 176.
47 MÉCHOULAN. Henry. Dinheiro e Liberdade: Amsterdã no tempo de Spinoza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 110.
31
para efeitos de análise, convém não separar radicalmente a dimensão material ou temporal da
experiência da dimensão espiritual ou religiosa, pois estas “categorias” não aparecem de
modo estanque ou separado nas mentalidades de homens e mulheres da época. Como mostrou
Lucien Febvre num estudo clássico, a religião, para o homem desse período, não se
desvincula das demais dimensões da experiência humana em público e em privado; ou seja, o
temporal e o espiritual se confundiam inclusive dentro do Estado que, em sua “natureza,
espírito e constituição se encontra ainda impregnado de cristianismo”.48 Nesse sentido, o
projeto missionário da Igreja Cristã Reformada — qual seja, a “implantação da religião
verdadeira, para levar muitos milhares de pessoas à luz da verdade e à salvação eterna”49 —
evidentemente não foi uma ação externa ao projeto mais amplo da colonização neerlandesa no
Brasil; pelo contrário, como pretendemos mostrar detalhadamente ao longo deste estudo, a
missionação era, por assim dizer, a “alma” do projeto, ainda que em constante tensão com a
sua dimensão “material” (os interesses econômicos, políticos, administrativos e militares).
Trata-se, aqui, de analisar a face espiritual do projeto para o Brasil holandês, as diretrizes para
a evangelização, ou seja, a política de implantação da Igreja Cristã Reformada nas capitanias
do norte. Essa análise deve ser feita, como diz Febvre, à luz do “papel que a religião cristã
ainda desempenhava efetivamente na vida dos homens”, do berço ao túmulo. 50
Desta forma, se a cristianização católica no Brasil deve ser entendida “dentro do
conjunto dos movimentos expansionistas globais da época, não como fruto de um movimento
missionário independente”,51 assim também deve ser entendida a cristianização reformada no
século XVII no Brasil holandês. A assertiva de que a “expansão ocidental é na realidade
bifronte”, quer dizer, “supõe uma incorporação territorial, além da incorporação espiritual”,52
não deveria ser referida apenas à colonização hispano-portuguesa, mas também à neerlandesa,
conforme sugeriu o historiador da Igreja Schalkwijk, para quem a obra missionária esteve
estreitamente ligada aos projetos das duas Companhias — Índias Orientais e Ocidentais.53
Afinal, como já afirmamos, por este tempo a política, a economia e a religião eram realidades
indissociáveis na vida individual e coletiva. Indissociabilidade que, lembro mais uma vez,
deve ser abordada com o devido cuidado, para não se reduzir atitudes e valores espirituais a
expressões de transformações na economia ou na sociedade; ou vice-versa. Isso porque,
apesar de misturadas num todo complexo, essas estruturas não deixam de apresentar
48 FEBVRE, Lucien. O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais. In: História. (Org.) Carlos Guilherme Motta. São
Paulo: Ática, 1978, p. 48.
49 LIGTENBERG, C. Willem Usselincx. Utrecht: A Oosthoek, 1913, p. 69, apud: SCHALKWIJK, op. cit., p. 51.
50 FEBVRE, op. cit., p. 37.
51 HOORNAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil-colônia: 1550-1800. São Paulo: Brasiliense, 3 ed, 1994, p. 86.
52 NEVES, Baêta Luiz Felipe. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 28.
53 ibid., p. 50.
32
Entre as ações ilustres que este Estado das Províncias Unidas tem praticado
em nossos dias, com o fim de manter a verdadeira Religião, e defender a
54 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Canto Primeiro, 2. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 29.
55 BOXER, Os holandeses no Brasil, op.cit., p. 6.
56 Memória de Willem Ussenlicx, 13 de abril de 1620. O. Van Rees. Geschiedenis der Staathuishoudkunde. In Nederlan, vol. II, p. 429,
apud RATELBAND, op. cit., p. 264.
57 BOXER, O império marítimo português, op.cit., p.121.
33
nossa liberdade contra o rei de Espanha nos parecem mui dignos de nota os
feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais (...).58
58 Historia ou Annaes dos feitos da Companhia das Índias Ocidentais desde o seu começo até o seu fim do ano de 1636 por Joannes de Laet.
op. cit. v. 30, p. 37 Biblioteca Nacional sem fronteiras.
59 SCHALKWIJK, op. cit., p. 219.
60 EVENHUIS, R. B. Ook dat was Amsterdã, I e II. De Kerk der Hervorming in de Gouden Eeuw. Amsterdã: W.ten Have, 1965-1967. apud
SCHALKWIJK, op. cit, p. 219.
61 Kuiper, H. H. De Post-Acta of Nahandelingen van de Nationale Synode van Dordrecht in 1618-1619. Amsterdã, 1889, p. 267, apud
SCHALKWIJK, op.cit., p. 220.
62 Artigo 3 — Primeiro ponto principal de doutrina Divina, eleição e Reprovação. Cânones de Dordrecht, 1618-1619.
34
Além disso, é promessa do evangelho que todo aquele que crer no Cristo
crucificado não perecerá, mas terá a vida eterna. Esta promessa, juntamente
com o mandamento de arrepender-se e crer, deve ser anunciada e declarada
sem diferenciação ou discriminação a todas as nações e povos, a quem
Deus em seu bom propósito enviar o evangelho.63
Passado um ano das deliberações em Dordt, a Igreja Cristã Reformada das Províncias
Unidas dos Países Baixos instituiu uma comissão missionária que teria como responsabilidade
gerenciar a missionação no ultramar: os deputados ad res indicas ou transmarinos.64 Em
1620, a Igreja de Wacheren, na Província da Zelândia, nomeou seus primeiros deputados ad
res indicas65. Essa indicação pioneira — antes mesmo da iniciativa de Amsterdã, sede da
Companhia das Índias Orientais e Ocidentais — decorria certamente do zelo religioso que
caracterizava aquela igreja local; zelo refletido, por exemplo, no envio dos primeiros
predicantes-missionários à Indonésia no ano de 160966; zelo refletido também em 1623,
quando a mesma igreja chamava a atenção dos Dezenove Senhores para a necessidade da
presença de predicantes na frota destinada às Índias Ocidentais. 67
Um ano depois, 1621, foi a vez da Igreja de Amsterdã nomear seus primeiros
deputados ad res indicas. A partir de então, regra geral, cada consistório nomeava quatro
deputados, os quais permaneciam no cargo por dois anos. A preocupação com a missionação
nas terras ultramarinas pode ser constatada, também, pelo interesse de muitos homens da
igreja pela arte da navegação, por verem na expansão oceânica uma forma inaudita de
propagar o evangelho e difundir a fides reformata. Afirma Schalkwijk que, por esta época,
grande era o interesse dos predicantes em aprender a arte e a ciência de singrar os mares.
Pastores, diz ele, ensinavam de seus púlpitos a arte da navegação aos marinheiros. O
predicante Petrus Plancius, pai da missão neerlandesa, foi um destes mestres, ensinando aos
marinheiros de Amsterdã, durante a semana, a arte da navegação “como instrumento eficaz no
combate à Espanha e divulgação do cristianismo”.68 Corrobora esta afirmação a anotação na
folha de rosto dum exemplar do livro de Dierick Ruiters sobre a arte da navegação: contando
com apenas três exemplares em sua primeira edição, um deles pertenceu a Classe de
Walcheren, ou mais precisamente a seus deputados ad res indica. Dizia a anotação: “Eu
63 Artigo 5º — Segundo ponto principal de doutrina, a morte de Cristo e a redenção humana através dela. Cânones de Dordrecht., 1618-
1619.
64 Usa-se também ad res marítimas ou ad res exteras.
65 O Consistório de Walcheren nomeou seus primeiros deputados ad res indicas em 1620, conforme informação de Schalkwijk, op. cit.,
p.140.
66 ACW DE 14/12/1609. In: Boetzelaer: Oost-Indie 255. apud: SCHALKWIJK, op. cit., p. 140.
67 SCHALKWIJK, op. cit., p. 142.
68 ibid., p. 44.
35
pertenço à Classe de Walcheren para os deputados das Índias Ocidentais [ad res indica]...
1625”.69
Hugo Grotius, o famoso jurista e teólogo de Delft, deu-se ao trabalho de escrever um
manual de evangelização especialmente dirigido aos marinheiros e comerciantes das
Províncias Unidas, a fim de instruí-los no serviço de propagação da fé em suas viagens
ultramarinas. O manual intitulava-se Prova da verdadeira religião.70 Na mesma linha de
Grotius, Godefredus Udemans escreveu um outro manual de evangelização significativamente
intitulado O leme espiritual do navio mercante.71 O espírito, o navio, a mercadoria: eis, na
feliz fusão de um título, a síntese da “aparelhagem mental” dos homens da Companhia. O
grande “apóstolo das Companhias”, como era cognominado Udemans, era conhecido por
incentivar a obra missionária no ultramar; ou mais propriamente, por fazer ver aos navegantes
as possibilidades de evangelização que a navegação possibilitava. Em O Leme espiritual do
navio mercante, enfatizava o ofício divino do comerciante e do navegante mercador,
argumentando que a navegação neerlandesa podia servir tanto como instrumento na luta
contra a Espanha como na divulgação da Religião Cristã Reformada. Não por acaso tomei de
empréstimo o título desta obra para nomear o presente trabalho.
Quando da tomada de Salvador pelos neerlandeses em 1624, o teólogo Willem
Teellinck publicou um panfleto intitulado Gratidão de David; e em anexo fez publicar
também uma carta dedicada a todos os que desejavam a felicidade da Companhia das Índias
Ocidentais. Nestes textos, o teólogo enfatizava que, com a tomada de Salvador, a porta havia
se aberto para o trabalho missionário em maior escala.72
É certo que nem toda a Igreja compartilhou dessa efervescência missionária que
tomou conta de alguns teólogos, predicantes, enfim, do clero calvinista. E é certo também que
a Igreja Cristã Reformada necessitava de um projeto mais elaborado e consistente com vistas
à missionação no ultramar, a exemplo daqueles que algumas ordens religiosas da Igreja
Católica Romana possuíam, como a Companhia de Jesus, fundada em 1534. Mas, se a Igreja
Cristã Reformada de fato não contava com um elaborado projeto missionário neste primeiro
terço do século XVII isso não significou, de modo algum, que eles não se lançaram à tarefa de
69 ibid., p. 141.
70 GROTIUS, Hugo. Prova da verdadeira religião. S.1.: s.e .,1622.
71 Udemans Godefridus Cornelisz. O leme espiritual do navio mercante: Tratava da “fiel exposição de como um comerciante e um
navegador mercante se devem comportar nas suas ações, em paz e na guerra, diante de Deus e dos homens, no mar e na terra,
especialmente entre os gentios nas Índias Orientais e Ocidentais: Para a Glória de Deus, a edificação da sua igreja e a salvação da sua
alma: Inclusive para o bem-estar temporal da pátria e da sua família, Tiago 3:4” Dordrecht: F. Boels, 1640, 2ª. ed. (1ª. Ed. 1638; 3ª. ed.
1655), apud SCHALKWIJK, op. cit. p. 489.
72 TEELLINNCK Willen. Davids Danckbaerheydt “A mão de Deus em castigo e salvação, agora recentemente vista em três pragas nestes
países, como também a Gratidão de Davi pela benevolência de Deus, apresentada no Salmo 116: 12,13,14 versículos sobre os quais se
pregou recentemente em Salvador no Brasil, por causa da gratidão pela vitória que nos foi concedida sobre a Baía de Todos os Santos.”.
Middelburgh: H.v. d. Hellen, 1624, p. 75., apud SCHALKWIJK, p. 489.
36
forma apaixonada; ou, como diz Schalkwijk, a visão missionária pode não ter se concretizado
em toda a Igreja das Províncias Unidas dos Países Baixos, “mas o clima estava lá”.73 Se o
projeto era relativamente inconsistente, a motivação espiritual não o era.
Todo esse empenho missionário, ou esse “clima” fez-se presente nas possessões
neerlandesas no Brasil. Predicantes, proponentes, professores, consoladores foram enviados
ao Brasil holandês com a missão específica de evangelizar e dilatar as fronteiras da
“verdadeira fé cristã”. Nas palavras de frei Manuel Calado em seu O valeroso lucideno, uma
verdadeira torrente de literatura elaborada pelos reformados, voltada para os católicos a quem
desejavam converter à “heresia reformada”, foi despejada nas terras sob domínio.74
Os missionários logo empenharam-se em traduzir o Catecismo de Heidelberg, para
as línguas portuguesa e brasiliana. Além disso, para os índios, segundo informações de
cronistas coevos, partes da Bíblia foram traduzidas na “língua geral”; para os portugueses,
encomendaram das Províncias Unidas Bíblias em português.
De modo geral, o que mais impressiona na missionação reformada no Brasil
holandês foi o afinco, o empenho, a seriedade com que os predicantes buscaram desempenhar
o serviço: zelando pela doutrina, subscrita na pátria, pela pureza da Igreja Cristã Reformada
que pouco a pouco ia tomando forma na colônia. Os missionários trabalharam
incansavelmente na tarefa de instruir os já reformados que chegavam com a Companhia das
Índias Ocidentais; buscaram estratégias para arrancar os católicos “das superstições papistas”;
elaboraram material específico para a catequese indígena; e, não obstante reclamarem da
dificuldade de comunicação com os negros, devido aos seus muitos dialetos, há referências a
batismos de alguns deles.
A despeito da ausência de um projeto missionário consistente ou global ajustado às
especificidades da situação colonial na América; ou da criação de ordens ou sociedades, nos
moldes das ordens religiosas da Igreja Católica Romana que tinham como fim único o
missionar, os predicantes da Igreja Cristã Reformada comportaram-se como se o cerne da
constituição da Companhia das Índias Ocidentais fosse de fato a implantação da fé reformada
por entre as conquistas neerlandesas do Brasil. Ao longo de todo o período do Brasil
holandês, como veremos mais adiante, vamos encontrar estes homens trabalhando
incansavelmente na tarefa a qual dedicaram suas vidas: a salvação das almas, o que não era
menos verdadeiro também para muitos dos Dezenove Senhores que escreviam aos dirigentes
do Brasil Holandês, em 1631, afirmando que “nada lhes interessava de coração como a
religião”.75
Seja como for, há numerosas evidências de um projeto missionário elaborado pela
Igreja Cristã Reformada dos Países Baixos que contemplava diretamente os povos católicos
ibéricos e ameríndios de além-mar. Esse projeto, evidentemente, se entrelaçou de modo
complexo com as motivações políticas e mercantis dos acontecimentos que Evaldo Cabral de
Melo chamou a “guerra do açúcar”. É certo, como já disse, que não estou falando de ordens
religiosas similares a algumas ordens católicas, como a Companhia de Jesus, ou de projetos
missionários nos moldes das missões protestantes do final do século XVIII e XIX, momento
em que acontece a expansão missionária protestante, incluindo a criação de sociedades e
conselhos missionários.76 Mas essa comparação com empreendimentos missionários de maior
porte e organização não pode subestimar a importância de tentativas feitas nos séculos XVII e
XVIII,77 como no caso que aqui mais interessa, o da missionação ensaiada nas possessões
neerlandesas nas capitanias do norte nos anos 1630-1654, e que passarei a analisar mais de
perto.
75 Carta dos XIX aos diretores da Companhia no Recife, de 30/5/1631. In: ARA-OWIC 2 e na Coleção José Higino s. n. apud
SCHALKWIJK, op. cit., p.156.
76 Em 1792, Missão Batista de Londres; 1795, Sociedade das Missões de Londres; 1795, Sociedade Neerlandesa das Missões; 1810,
Conselho Americano das Missões; 1815, Sociedade das Missões da Basiléia; 1822, Sociedade das Missões Evangélicas de Paris; 1824,
Sociedade das Missões de Berlim, etc.
77 BAUBÉROT, Jean. O Protestantismo.In: DELUMEAU, Jean. (Dir.). As grandes religiões do mundo, Editora Presença., p.188.
38
no ultramar. Como resultado desta dedicatória, conta ele que recebeu dos Dezenove Senhores
o convite para incorporar a expedição de conquista de Pernambuco como capelão do
comandante (em terra) Theodoor Van Waerdenburgh.78 Para que o convite pudesse ser aceito,
Baers precisava da permissão dos governantes de sua província — Ultrech —, da Classe
Eclesiástica a qual pertencia e da igreja na qual era predicante. Por requerimento dos
Dezenove Senhores, Baers obteve a licença, pelo espaço de um ano, de “Suas Altas Potências
os Srs. da terra de Ultrecht, da Classe Eclesiástica, assim como da (...) igreja (...)”,79 partindo a
20 de outubro de 1629 do porto de Texel na frota do Coronel Theodoor van Waerdenburch.80
Na Páscoa de 1630, Baers celebrou o primeiro culto da Igreja Cristã Reformada em
Olinda, na Igreja matriz do Salvador do Mundo, que foi despojada de suas imagens e alfaias, a
fim de amoldar-se à cerimônia reformada; conta ele que “Pela Páscoa os Srs. Conselheiros
mandaram abrir a principal igreja paroquial de Olinda, orná-la e prepará-la, onde no dia da
Páscoa fiz a primeira prédica (...)”.81 A prática de lançar mão de templos da Igreja Católica
Romana, bem como despojá-los de todos os adereços e imagens sacras para o uso do culto
protestante era uma prática que remontava à metrópole e a seus primeiros dias de adesão a fé
reformada, conforme aponta Paul Zumthor: “As igrejas, em quase todo o país, eram antigos
edifícios católicos tomados pelos reformados (...)”.82 Em outras palavras, era uma espécie de
pilhagem resultante da guerra religiosa. Despojados dos adereços da fé católica, doravante os
templos reformados passavam a caracterizar-se pela singeleza minimalista e iconoclasta de
seu exterior, bem como de seu interior, cujas paredes eram caiadas de branco, sem nenhum
quadro ou imagem de escultura, contendo apenas um púlpito, uma estante de coro e bancos
para a membresia. O português Diogo Lopes Santiago, residente no Arraial Novo do Bom
Jesus quando do domínio neerlandês no Brasil, testemunhou a “limpeza” nos templos
católicos, narrada com pesar e escândalo em sua História da guerra de Pernambuco:
78 BAERS, João. Olinda Conquistada: narrativa do padre João Baers. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1978, p. 42.
79 ibid.
80 ibid., p. 49.
81 ibid., p.93.
82 ZUMTHOR, Paul. A vida Quotidiana na Holanda no tempo de Rembrandt. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”. s/d. p. 30.
83 SANTIAGO, op. cit., p.32.
39
Informação repetida, à farta, por frei Manuel Calado no seu O Valeroso lucideno, de
que os hereges invasores, tomados por insana iconoclastia, haviam profanado os “templos
sagrados, despedaçando as imagens de Cristo nosso Senhor, e da Virgem Maria, e dos Santos
(...)”.84
Com efeito, permaneceu Baers em Olinda “por espaço de dez semanas”, pregando na
igreja matriz do Salvador do Mundo, onde teve como ouvintes, segundo sua própria narrativa,
“muitos pretos e pretas, que a seu modo, atendiam quietos e devotos ao ofício divino e
escutavam humildemente, (...).” Depois do que, tendo “ajudado a introduzir ali a prédica da
palavra de Deus e o verdadeiro culto divino (...)”85, preparou-se para retornar à pátria. Como
dito, o predicante havia recebido licença para se ausentar de suas ocupações religiosas pelo
espaço de um ano. Como havia partido do porto de Texel a vinte de outubro de 1629, entre o
tempo de permanência no Brasil holandês e o tempo gasto em torna viagem, quando chegasse
de volta a metrópole sua licença já estaria se esgotando. Certamente este foi o motivo da
presença fugaz do predicante nas novas conquistas.
O fato de ter sido Baers o único predicante a registrar os primeiros passos da Igreja
Cristã Reformada em solo pernambucano não significa que ele estivesse sozinho ou tenha
sido o único religioso neste início de missionação. Sabe-se, com efeito, que Baers não foi o
único predicante a incorporar a expedição de conquista: ao menos mais um clérigo participou
da expedição na qualidade de capelão do almirante Hendricks Lonck, como podemos inferir
das informações de Baers. Conta ele que, chegado o momento em que Lonck se preparava
para deixar Pernambuco em regresso às Províncias Unidas, ele, Baers, o procurou a fim de
pleitear seu próprio retorno. De bom grado Lonck aceitou o pedido, pois o predicante de seu
navio ficaria instalado nas novas possessões.86
É possível que o predicante a acompanhar o almirante, e que ficou em terra, tenha sido
o pastor Willelmus Pistorius, pois numa correspondência do coronel Waerdenburch aos
Dezenove Senhores, datada de 1631, há referência a este predicante87, assim como em outras
correspondências deste mesmo ano; no entanto, outros nomes, como os de Lambertus
Latonius, Jacobus Martini e Cornelius Leoninus (pai), figuram na documentação de 1631.88
89 WATJEN, Hermann. O domínio colonial hollandez no Brasil: um capítulo da historia colonial do século XVII. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1938, p. 345.
90 NEME, Mário. Fórmulas políticas no Brasil holandês. São Paulo:EDUSP, s/d.
91 Regulamento do governo das praças conquistadas. op. cit., p. 292.
92 ibid.
93 BAERS, op. cit., p. 98.
41
como os que na seqüência iam chegando, lançaram-se imediatamente à importante tarefa para
a qual foram contratados pela Companhia das Índias Ocidentais, a saber, a “fundação da
Igreja de Cristo no Brasil”.97 Entre os anos 1630 e 1635, são escassas as informações sobre os
trabalhos e atividades da Igreja Cristã Reformada em terras nordestinas; o panorama muda
completamente a partir de 1636, quando a Igreja passa a se reunir duas vezes por ano para
tratar dos assuntos eclesiásticos nas chamadas reuniões da Classe98, a assembléia das igrejas
calvinistas da colônia. Essas reuniões deram origem a documentos ricos de informações sobre
os predicantes, suas relações com o Conselho Político do Recife, com a alta cúpula da
Companhia — os Dezenove Senhores —, com os Presbitérios das Igrejas nas Províncias
Unidas e ainda sobre as relações dos reformados com os católicos, judeus e índios, a partir de
diversos registros sobre o trabalho eclesial propriamente dito.
Ocorre que a primeira reunião da Classe no Recife, em 1636, coincide com o ano de
chegada do predicante Vicente Joaquim Soler, considerado por Schalkwijk o pai da
missionação reformada no Brasil. De modo que até 1636, os homens da Igreja reformada
marcharam em ritmo lento; a partir de então, Soler impôs seu próprio ritmo e estilo à
missionação, de modo que seguramente a atividade missionária pode ser dividida em dois
tempos: antes e depois de Soler.
O predicante Vicente Joaquim Soler era sob muitos aspectos um homem singular.
Observador crítico, sem papas na língua, como dele disse Gonsalves de Mello, Soler, uma vez
instalado em terras brasílicas, procedeu a um rigoroso exame do corpo eclesiástico ali
presente; procedimento que, certamente, devia-se ao caráter ético e religioso do homem Soler,
e não a alguma instrução recebida na metrópole; arguto observador, nada parece ter passado
despercebido ao crivo de seu juízo exigente, como registram inúmeras evidências. Com efeito,
Soler pertencia à ala puritana99 da Igreja Cristã Reformada e foi a partir deste referencial de
espiritualidade que analisou o comportamento do clero calvinista no Brasil holandês, bem
como avaliou o desenrolar dos trabalhos com os fiéis e com aqueles que precisavam ser
97 Expressão usada pelos predicantes, por ocasião da chegada de novos predicantes da metrópole no Brasil holandês.
98 Em 1636 foi organizado a Classe ou Presbitério reunindo todas a igrejas no território ocupado, agrupando todas as igrejas do Brasil
holandês com o nome oficial de Classe do Brasil da Igreja Cristã Reformada. Classe, na nomenclatura eclesiástica, é o termo técnico para
designar um grupo de igrejas da mesma região organizada numa convenção ou um presbitério. Classe: derivado do latim classis
(convocar). Presbitério: derivado do grego presbyteros (ancião).
99 O puritanismo neerlandês acreditava que a prática doutrinária devia ser moldada pela Bíblia, considerada por eles como a norma de fé e
comportamento. Os defensores do puritanismo usavam freqüentemente a palavra “pietas”, embora não no sentido de recolhimento ou
fuga do presente mundo, mas concebendo o puritanismo como uma vida de submissão a Deus onde procuravam aplicar os princípios
bíblicos, tanto vida individual quanto na coletiva. Na verdade, este pensamento já era claro nos escritos de Martinho Lutero e João
Calvino. Homens como William Amesius e William Perkins se tornaram grandes defensores desses pensamentos. Assim, influenciariam
vários ministros da igreja reformada neerlandesa, como, por exemplo, Willem Teellinck e Godefridus Udemans, ambos na província de
Zelândia, região de mais contato com a Inglaterra, onde a Universidade de Cambrigde, por volta de 1550, se tornara o berço do
puritanismo inglês. Um representante do puritanismo holandês foi André Rivet, o pastor da igreja valã em Haia, freqüentada pela corte
Orange-Nassau. Rivet era professor de teologia na Universidade de Leiden e com ele Vicente Joaquim Soler manteve sólida
correspondência.
43
alcançados para que o “Reino do Filho de Deus” avançasse nos trópicos. Obcecado pela causa
a que devotara sua vida — “meu único fim é que o Reino de Deus prospere” —, pôs-se a
escrever cartas para os Senhores da Câmara da Zelândia — “espero melhor da vossa Câmara
que de todas as outras, porque acho que vós sois mais religiosos”.100 Escrevia também a um
amigo, André Rivet, tutor do príncipe Guilherme; Rivet vivia na corte, onde desfrutava de
grande consideração entre os Orange.101 No mais das vezes, as muitas cartas de Soler
denunciavam a situação da Igreja e a conduta clerical, ambas catastróficas, na opinião do
reverendo. Documentos importantes, essas cartas, talvez mais do que nos pôr a par de
condutas desviantes ou inadequadas de predicantes, nos desvele a personalidade de um
homem: Soler.
No dia 8 de junho de 1636, escreveu do Recife sua primeira carta endereçada aos
diretores da Câmara da Zelândia. Sobre o clero reformado, era taxativo e sem meias palavras:
Os pastores são cachorros mudos pela maior parte; uns, em vez de cultivar
o Campo do Senhor, cheio de más ervas, cultivam as terras e os campos
que se adquiriram a expensas de vosso armazém; os outros negociam para
si e para outrem, e quase todos são gozadores veneráveis que procuram as
boas mesas. (...) Os que deveriam reprimir os vícios são os mais viciados.
De maneira que parece que têm vindo aqui para aumentar o Reino de
Satanás e destruir o do Filho de Deus. 102
Um mês depois, escrevia novamente: “Aproveito-me (...) outra vez para suplicar-vos
pela obrigação que tendes para com Deus (...) que remedieis tantas desordens, (...) na Igreja
(...)”.103 Um ano depois, em abril de 1637, escreveu nova carta aos Senhores da Zelândia,
afirmando que a Igreja estava à beira do precipício por conta do comportamento de alguns
colegas de ministério: “Temos estado no bordo do precipício. Atribuo a falta a meus colegas;
não só porque tem sido cachorros mudos e sem prática de disciplina, mas tanto mais porque
têm sido cúmplices das luxúrias e dos roubos”.104 Findava o ano, era dezembro de 1637
quando Soler escreveu outra vez aos Senhores da Câmara da Zelândia, desta vez nomeando os
predicantes “escandalosos” e as culpas que pesavam sobre eles: “Schagen — homem
dissoluto, audacioso, imperioso cúmplice dos Conselheiros Políticos —, Stetten — bêbedo,
úmidos dos Países Baixos; o fato é que os Países Baixos tornaram-se grandes produtores de
cerveja, atividade essencial para a economia neerlandesa: no ramo cervejeiro estavam
envolvidos desde modestos artesãos até empresários internacionais, o que tornava a batalha da
Igreja pela supressão da bebida em nome de princípios religiosos uma luta bastante inglória.
No entanto, seja o que for que tenha despertado os neerlandeses para a ingestão
desmedida pelas bebidas alcoólicas, os predicantes calvinistas, como seria de se esperar,
advertiam a pobres e ricos dos perigos da beberagem, alertando-os a que tomassem cuidado
antes que incorressem no pecado; todavia, já que a bebida, a esta altura, constituía
característica da cultura nacional, era-lhes difícil estabelecer o limite entre a moderação e o
excesso, entre “estar alto” e estar bêbado até mais não poder. Mas os apóstolos da vigilância
da Igreja Cristã Reformada não ficaram apenas nas advertências: buscaram junto aos
Conselhos municipais instituir decretos que coibissem os excessos individuais e coletivos da
bebedeira; dos púlpitos, admoestavam contra o demônio da ebriedade —“lacaio de Satanás”
— e, por fim, escreveram diversos livros sobre o tema.
Ao Brasil holandês chegaram vários exemplares do livro Ló Sóbrio, de autoria do
predicante Daniel Souterius, certamente com o mesmo objetivo pelo qual fora publicado na
metrópole: auxiliar os predicantes a lidar com os excessos etílicos de muitas ovelhas do
rebanho calvinista neerlandês , bem como de alguns de seus pastores. Com efeito, a julgar por
uma série de indícios, o predicante Joducus Stetten não foi o único predicante a sucumbir ao
vício nacional. Em 1634, um predicante em Erichem, Jan Swartenius, sofreu as mesmas penas
que, em 1637, Stetten sofreria: foi expulso do ministério pastoral por sua persistência no vício
da embriaguez.114
Acredito que a indisciplina etílica de Stetten possa ser explicada, em parte, pelo fato
de ter ele atuado como capelão militar, servindo “tanto a bordo de nossa frota como nas
expedições terrestres”.115 Ou seja, além de suas funções na igreja da Paraíba, Stetten servia
nos acampamentos militares como predicante da soldadesca, grupo que, segundo o historiador
João Azevedo, representou “a linha de frente no ‘choque etílico’ ocorrido no Brasil, entre uma
sociedade marcada pela relativa frugalidade etílica e outra na qual o álcool representava um
sinal distintivo da nacionalidade”.116 Ainda segundo este historiador, durante todo o período
do domínio neerlandês, os governantes manifestaram uma aguda preocupação com o
Igreja Cristã Reformada, o que não impediu Soler de lhe dirigir pesadas críticas. De acordo
com a correspondência do governo do Brasil holandês com os Dezenove Senhores, Daniel
Schagen teria sido o primeiro predicante a desenvolver o trabalho missionário entre os índios,
inclusive sendo elogiado por estes pela elaboração de um catecismo e por ter providenciado a
tradução de algumas orações para a língua brasiliana.126 Mas Soler parece ter comprado uma
briga particular com este predicante, numa animosidade que parece ter sido recíproca, já que
numa carta do consistório do Recife aos Deputados ad res indicas de Walcheren, informa-se
que Schagen tratou a Soler como a um subordinado.
A despeito da contribuição que Schagen porventura houvesse dado até aquele
momento à missionação calvinista, suas atitudes e comportamentos não agradavam a Soler, e
isso incluía as vestimentas do predicante, suas posses e amizades. Consta que Schagen era o
único predicante no Brasil holandês a não se trajar como os demais, que vestiam ao modo da
pátria, com bata preta com colarinho à semelhança do pessoal da justiça.127 Numa ata dos
deputados ad res indica do Presbitério de Walcheren, encontra-se a seguinte anotação: “Dom
Schagen não respeitava a simplicidade no vestir”.128 Também pesava sobre ele a acusação de
não visitar os irmãos antes da celebração da Ceia do Senhor,129 talvez por estar ocupado
demais com as lides que envolviam a posse de um engenho, como acusava Soler em carta de
8 de junho de 1636.130
O predicante comprara de Antonio de Souza de Moura o engenho São Tomé, bem
como o direito de uso, por vinte e cinco anos, de um dos seus partidos de cana de açúcar.
Chama a atenção que Antonio de Souza declarou estar satisfeito com a quantia recebida no
negócio.131 Ora, a julgar pelos baixos salários dos predicantes, não só na colônia como
também na metrópole, soa no mínimo estranha essa informação de que o predicante comprara
e pagara quantia que deixara Antonio “satisfeito”. Informa Evaldo Cabral de Mello que o
preço médio de um engenho de açúcar estava avaliado entre 30 e 40 mil florins, enquanto o
salário de um predicante era algo em torno de 100 florins. Talvez o conluio com os
126 Carta de Serooskercke à Câmara da Zelândia, Recife 25/7/1636, In: ARA-OWIC 51 e BPB 1636/25, apud SCHALKWIJK, op. cit., p.
265-66.
127 Os pastores protestantes, professores e juristas traziam — como símbolo de dignidade e de atitude moral — a toga ou tabart, variante
solene do roupão: preto, caindo até os pés, este vestuário formava nas costas uma ou mais pregas verticais; um colarinho quadrado
cobria os ombros; um boné preto completava a indumentária.
128 RAZ-ACW 73 de 19/8/1637, apud SCHALKWIJK, p.163.
129 Carta do consistório do Recife à Classe de Walcheren de 19/8/1637. In: RAZ-ACW 73:24ss, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 172.
130 Dezessete Cartas. op. cit. p. 11. Nótula diária 21 e 22/1/1636. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso
em: 12 abril 2006.
131 Nótula diária de 22/1/1636. http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 22 maio 2006.
48
Conselheiros Políticos, de que fora acusado por Soler,132 explique a negociata e as posses do
predicante. Afinal, acusava Soler que os campos e terras cultivados por alguns predicantes
haviam sido adquiridos às expensas da Companhia das Índias Ocidentais.133 Mas quem sabe o
predicante não fosse mais que um testa-de-ferro de algum Conselheiro Político, como também
insinuou o mesmo Soler ao escrever aos Senhores da Câmara da Zelândia, denunciando que
alguns negociavam para si e para outros.134 Ao tomar conhecimento do possível conluio do
predicante com alguns homens da administração, a Câmara da Zelândia deve ter cobrado
explicações do governo do Brasil holandês, porque, em 26 de agosto de 1637, o assunto foi
tratado por este, tendo comparecido Schagen e o dono do engenho São Tomé para dar
informações sobre a transação, bem como sobre o uso de negros pelo predicante, negros estes
pertencentes à Companhia. Registram as nótulas diárias:
136 p.718.
137 ibid.
138 ibid.
139 ibid., p. 711.
140 ibid., p. 732,763, 773.
50
embriaguez habitual. Ele já havia sofrido uma advertência da Classe, o que se constatava,
agora, é que a reprimenda não lograra efeito algum. Por esta razão, foi então dispensado dos
ofícios da Igreja, devendo retornar à metrópole no prazo de seis meses:
Outro que perfilava na lista dos predicantes faltosos era Samuel Folkerius, predicante
na Paraíba. Antecipando-se à disciplina que certamente sofreria, Folkerius pediu licença à
Classe para retornar à metrópole. Geralmente, diante de pedidos dessa natureza, a Classe se
empenhava ao máximo por dissuadir o solicitante, pois a seara era grande e a cada dia
aumentava mais a necessidade de predicantes para aquelas paragens. Mas, no caso do
predicante Folkerius, tão logo ele oficializou seu pedido, este foi deferido sob a alegação de
que “ele foi encontrado em falta tanto no que diz respeito à sua conduta, como principalmente
aos seus conhecimentos”, e “tanto mais porquanto se julgou ilegal a sua nomeação para o
cargo de predicante”.142 Sabe-se que Folkerius fora examinado e alçado ao cargo de
predicante pelo predicante Schagen que, lembremos, também estava sob investigação.
Para a Classe, foi um dia cansativo este. Faltava, ainda, investigar a vida dos
predicantes Daniel Schagen e Johannes Oosterdag. Os predicantes em questão trabalhavam
juntos no acampamento, sendo Oosterdag mais um predicante a ser alçado ao ministério
pastoral por Schagen. Procedidas as investigações, foram “alegadas muitas coisas contra os
dois”.143 Todavia, por não estarem presentes à reunião, a Classe decidiu não lhes imputar
nenhuma sentença até que ambos fossem ouvidos a respeito. E, nesse sentido, determinou-se,
então, que os deputados144 da Igreja, juntamente com o Conselho Eclesiástico do Recife145,
ouvissem o que ambos os faltosos tinham a dizer sobre as culpas que respectivamente lhes
pesavam.146
Mandeville, perceberam que caso a prostituição não fosse tolerada nas cidades portuárias
como Amsterdã e Roterdã, ferrolhos e portas não seriam suficientes para preservar a honra de
esposas e filhas, porque “alguns homens se tornariam violentos, e o estupro passaria a
constituir crime usual”.149 Assim, a prostituição neerlandesa parecia, acima de tudo, um mal
necessário constituído para atender os muitos homens que se encontravam distantes de seus
lares. Tolerância disfarçada de vigilância era, portanto, a postura da magistratura diante da
prostituição que grassava nas zonas portuárias das cidades. Moças provenientes de todas as
partes das Províncias Unidas dos Países Baixos, e em especial de vilarejos e pequenas cidades
da Província da Holanda, praticaram a prostituição em Amsterdã e demais cidades portuárias
das Províncias Unidas. E já que habitavam nas zonas portuárias, muitas foram as que
corajosamente embarcaram rumo às possessões neerlandesa no ultramar. A esse respeito,
escreveu Soler em julho de 1636 aos Senhores da Zelândia, lamentando que as prostitutas já
“pululavam no país”.150
Mas Sara Hendrincks, a destemida mulher que embarcara para o Brasil holandês
disfarçada em vestes masculinas, não era uma prostituta. Talvez assim o fizera para escapar
de seu marido, que deixara na pátria para se unir a outro homem no Novo Mundo. Sara era
uma adúltera, e aí residia todo o problema. Os predicantes Schagen e Oosterdagh realizaram
um casamento ilegal, como assim concluiu o Conselho Político do Brasil: “(...) Sara
Hendricks, que se casou aqui pela segunda vez e, portanto se encontra numa situação ilegal,
por que ela ainda tem um marido na pátria (...)”.151
Na verdade, caso algum homem se decidisse pelo casamento com uma prostituta, nada
havia de ilegal. Para a prostituição strito sensu, o tratamento dado era outro, afinal esta estava
no terreno do pecado, da perdição da alma e, portanto, a praticante de tal atividade precisava
ser levada ao arrependimento e a uma vida de piedade. Foi o que aconteceu com Elske
Groenwalle, prostituta que exercia suas atividades na Paraíba e que repetidamente foi
admoestada pela Igreja a que abandonasse tais praticas e vivesse vida piedosa. Elske foi
“visitada muitas vezes por dois predicantes mandados pelo Conselho Eclesiástico, que a
exortaram amigavelmente e com toda a brandura a reconhecer o erro e fazer penitência”.152
Ou seja, para as prostitutas, arrependimento e penitência; para as adúlteras ou para os casos
que desembocariam no adultério, “mandar de volta para a metrópole” ou proibi-las de entrar
no Brasil holandês. Ao menos foi o que diligentemente a Igreja Cristã Reformada buscou
diante do governo do Brasil holandês, tendo, em janeiro de 1638, deliberado por solicitar aos
Dezenove Senhores que,
Voltemos ao texto de Mateus 19:9. Como disse, não sei a interpretação que o
predicante Oosterdagh lhe conferiu, mas certamente o interpretou de modo a justificar o
casamento que celebrara. É difícil inferir porque as atas não registraram sequer uma pista
sobre a interpretação do predicante e, diante da posição da Igreja Cristã Reformada a respeito
da questão, torna-se a especulação praticamente impossível. O predicante pode ter
interpretado o texto de forma a favorecer Sara, apontando o marido que ficara na metrópole
como adúltero e afirmando ser ela livre para contrair o novo casamento. Mas, se assim o
fizera, sua interpretação estaria de acordo com os preceitos da Igreja Cristã Reformada, de
modo que não faria sentido a admoestação sofrida. Mas, ao que parece, sua interpretação não
estava de acordo com a interpretação dada ao texto pela doutrina reformada, o que, na
seqüência, inviabilizava o casamento por ele realizado. Repreendido pelo Conselho
Eclesiástico, Oosterdagh concordou que estava errado tanto no que dizia respeito a ter
realizado o casamento, quanto no sentido que dera ao texto de Mateus 19:9. Desculpou-se.
Prometeu agir com mais cuidado da próxima vez. Renunciou ao erro. Comprometeu-se a
explicar o sentido correto do texto de Mateus 19:9 tão logo retornasse ao acampamento, visto
ter ficado estabelecido que “ao chegar ao acampamento desse o verdadeiro sentido do Espírito
Santo ao vs. de Mateus”.154
Mas Oosterdagh não estava sozinho e não agira sozinho na oficialização do casamento
de Sara Hendrincks. A história do casamento tomava vulto, para escândalo de muitos. E o que
os predicantes temiam estava a acontecer: “(...) a Igreja de Deus é cada vez mais difamada por
causa do casamento de Sara Hendricks (...)”.155 Ao que parece, Oosterdagh parecia não ter
cumprido sua promessa de “dar o verdadeiro sentido” do texto de Mateus; ademais, o pedido
da Classe para que Sara fosse devolvida à pátria também não se efetivara, como deixa
perceber a ata da classe de janeiro de 1638, em que afirma que o conselho de predicantes
deliberou por
Desta vez, talvez irritado com tantas invectivas, Schagen, ao ser inquirido sobre o
casamento de Sara Hendrincks, respondeu que, juntamente com Oosterdag, o havia celebrado
porque “julgara ser melhor que estivesse casada do que vivesse na prostituição”.157 A resposta
foi considerada inconveniente pelos deputados, bem como por toda a Classe, o que
“contribuiu para que lhe dessem a demissão”.158 Quanto a Oosterdagh,
Passados cinco meses da admoestação, o predicante, que ora cuidava dos soldados no
acampamento do Rio São Francisco, resvalava outra vez para o terreno da ilegalidade. Mas
desta vez a situação parecia bem mais grave, o que levou o presidente da Classe, Fredericus
Kesselerus, a convocar, em 25 de março de 1639, uma reunião extraordinária para tratar dos
escândalos a que mais uma vez o predicante Oosterdagh expunha a Igreja.
O ano de 1639 corria tenso. A chegada da armada do conde da Torre à Bahia, em
janeiro daquele ano, colocou o Brasil holandês em alerta. De fato, entre junho e setembro, o
conde da Torre enviara por terra a Pernambuco e Paraíba um grande contingente de militares
Diante dos fatos e da confissão, a Classe concluiu que o predicante não tinha vocação
“particular e íntima para o oficio”, devendo, pois, ser demitido:
164 ibid.
165 Nótula diária de 26/3/1639. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 22 maio 2006.
166 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 729.
57
pela negativa, pois entendia “que isso se não pode dar sem grande escândalo, por causa da
fraqueza da Igreja aqui”.167 Era preciso, portanto, excluí-los não apenas do corpo eclesiástico,
mas também da nascente comunidade reformada, quer dizer, deportá-los. Afinal, se
permanecessem no Brasil holandês, seriam maus exemplos para a jovem Igreja calvinista,
pois, com “suas condutas escandalosas”, comprometeriam o sucesso do trabalho missionário.
Em suma, era preciso mandá-los de volta para a metrópole: “E visto encontrar-se aqui entre
nós um nesse caso a saber: Joducos Stetten, (...) resolveram solicitar de S. Ex. e do Supremo
Conselho a sua retirada daqui (...)”.168
Em dezembro de 1637, finalmente Soler podia escrever aos Senhores da Zelândia: “Os
ministros de agora cumprem devidamente com seu encargo e comportam-se como pastores do
rebanho que lhes tem sido confiado”.169 E no mesmo sentido ao amigo Rivet: “entre nós a
disciplina eclesiástica se exerce com vigor e sem consideração de ninguém; tão energicamente
que espero que o Reino do Filho de Deus avance (...)”.170 No mesmo ano, também Maurício
de Nassau e os Altos Conselheiros comunicavam aos Dezenove Senhores que a organização
da Igreja Cristã Reformada funcionava de forma admirável e que todos eles estavam
plenamente satisfeitos com os predicantes, proponentes e consoladores de enfermos em
atividade no Brasil holandês.171
Acredito que a falta de tolerância para com os predicantes faltosos demonstra o
extremo rigor dos dirigentes da Classe em prol de um optimum de desempenho da
missionação: uma moral ilibada era necessária aos agentes da predicação, ainda mais nos
trópicos. A necessidade de predicantes para levar a efeito a missionação era grande, como
vimos, mas ainda assim os líderes da Igreja dispensaram aqueles que, por conduta imprópria
e/ou precária capacitação teológica, poderiam pôr em risco o projeto. Soler escrevia em 1637:
“Devolvemos quatro deles [predicantes]: um já saiu, os outros seguirão em breve”. E
suplicava: mandai-nos pastores.172 Mas, a partir de então, e apesar da crescente demanda, não
mais aceitariam quaisquer pastores que, sem maiores critérios, a metrópole enviasse. Foi o
caso de Jan Michiels, indicado pela Classe de Walcheren, inicialmente reprovado pelo
Conselho Eclesiástico do Recife:
167 ibid.
168 ibid.
169 Dezessete cartas, op. cit., p. 46.
170 ibid., p. 52.
171 Carta de João Maurício de Nassau e do Alto Conselho aos Senhores XIX, em julho de 1637, apud WATJEN, op. cit., p. 350.
172 Dezessete cartas, op. cit., p. 39.
58
Em 1638, a Classe de Walcheren pediu outra vez que Michiels fosse aceito como
proponente174, e que aceitassem conjuntamente a Marcos de Foer. Quanto a Jan Michiels,
decidiram submetê-lo novamente a exame, visto a insistência com que a Classe de Walcheren
apresentava novos atestados “de sua vida religiosa e do seu progresso na instrução”.175 Os
deputados responsáveis pela sabatina de Jan Michiels “ficaram tão satisfeitos que o
promoveram a proponente, o que foi aprovado pelos irmãos”,176 quanto a Marcos de Foer,
consideraram que estava muito velho e fraco, decidindo por dispensá-lo, a despeito do pedido
da Classe de Walcheren.177 Significativamente, a sessão deste dia foi concluída com a redação
de uma carta aos Dezenove Senhores e às Câmaras de Amsterdã e Zelândia, solicitando que
enviassem mais dois predicantes.178 Todavia, já no último dia da Assembléia, ao considerarem
as localidades carentes de predicação, concluíram que os dois pastores que haviam pedido já
não seriam suficientes; então, deliberaram por pedir mais predicantes para a execução do
serviço divino:
Nessa ocasião fez-se uma indagação sobre os lugares no Brasil, onde haja
necessidade de predicantes. E foi julgado necessário prover em primeiro
lugar: mais um na Paraíba, mais um no Cabo de Santo Agostinho, um em
Boverson, um no grande forte Mauritius no Rio Francisco, um em Goiana,
um para o acampamento. A Classe resolve representar sobre isso ao
Colégio dos XIX e pedir que nos mande com urgência esse numero de
predicantes.179
nove predicantes: “Quanto ao número dos predicantes, que continua bem pequeno; mas, visto
ouvirmos que os XIX resolveram mandar de lá mais nove, deve-se lhes escrever para que se
dignem de cumprir a promessa”.180 Com efeito, na ata do Sínodo do Sul da Holanda há um
registro referente a esse pedido:
Ainda nesta mesma reunião foi lida uma carta da parte dos Dezenove Senhores, onde
elogiavam os predicantes pelo empenho até ali empregado no encaminhamento de predicantes
ao Brasil:
Nesse mesmo ano, Soler escreveu a seu amigo Rivet: “(...) a Igreja, pela graça do
Soberano está em bom estado”.183 De fato, os progressos realizados pela predicação eram
visíveis; tanto que, na reunião de outubro de 1641, cogitou-se a constituição de um Sínodo no
Brasil holandês: “Visto crescer o número dos predicantes no país [discutiu-se] se não seria
conveniente dividir a Classe184 em duas, formando-se com essas um Sínodo”. Todos os
presentes aprovaram a proposta e decidiram que “deve-se pedir para isso a aprovação de S.
Ex. e do Supremo Conselho, por intermédio de D. Presidente e D. Doorenslaer.”185 No
entanto, o fato do número de predicantes ter crescido ao ponto de poder-se formar um Sínodo,
não significava que os dirigentes da Igreja Cristã Reformada do Brasil holandês estivessem
satisfeitos com o contingente de pastores em atividade. Nesse sentido, durante essa mesma
reunião, questionaram “si não convinha mandar buscar mais predicantes, especialmente
atendendo-se ao aumento da colônia. Fica entendido que se deve requisitar mais 6 ou 7”.186
Fica claro que, a esta altura, a Igreja Cristã Reformada do Brasil holandês, mesmo
carente de homens para o serviço, já não aceitava quaisquer predicantes dispostos a unir-se a
ela na enorme tarefa de cuidar das almas e fazer expandir o Reino de Deus. A qualidade era
mais importante que a quantidade: uma ética da continência, uma moral da santidade e uma
razoável formação teológico-doutrinária eram atributos mais que nunca necessários para o
serviço. Nesse sentido, o zeloso Soler, em abril de 1637, logo após despachar mais alguns
relapsos predicantes de volta à metrópole, suplicava aos Senhores da Zelândia: “Em nome de
Deus, senhores, mandai-nos quatro pessoas tanto de doutrina, de boa vida, como amantes da
paz”.187 Um mês antes, Soler havia pedido à mesma Câmara dois predicantes, advertindo-os:
“Cuidai, em nome de Deus, que seja pessoa reconhecida por vós em probidade e doutrina
(...)”.188 Esse cuidado é recorrentemente lembrado. A mesma preocupação com o caráter, a
formação teológica e a experiência no pastorado dos predicantes adventícios está estampada
também nas atas da Igreja:
Visto haver-se achado que, além dos predicantes que estão aqui no país,
são precisos mais dois, ficou resolvido requerer ás Classes de Amsterdã e
Walcheren, assim como á Assembléia dos XIX, que se dignem prover a
Igreja daqui de mais dois varões ilustrados, piedosos e experimentados.189
E não apenas nos documentos estritamente religiosos, mas também nos documentos
da administração laica, verifica-se a preocupação com o preenchimento do quadro
eclesiástico com pessoal teologicamente bem instruído, piedoso e de idoneidade moral. No
Breve discurso sobre o estado das quatro capitanias no Brasil, de 14 de janeiro de 1638,
assinado pelo Conde João Maurício de Nassau e pelos Altos e Secretos Conselheiros M. Van
Ceullen e Adrien Vander Dussen, os Dezenove Senhores são informados que,
190 Breve discurso sobre o Estado das quatro capitanias conquistadas de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, situadas na parte
setentrional do Brasil. In: MELLO, op. cit.,v.I, p. 98.
191 Relatório apresentado por escrito aos Nobres e Poderosos Senhores Deputados do Conselho dos XIX, e entregue pelos Senhores H.
Hamel, Adriaen van Bullestrate e P. Jansen Bas sobre a situação e organização dos referidos países, tal com se encontravam ao tempo de
seu governo e de sua partida ali. In: MELLO, op. cit., v. II, p. 272.
192 ASZH 1636 a36. In:GAR-ANHG 85. GAA-ACA 4 DE 29/3/1638, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 160.
62
candidatos não se dispunham mais a deixar o regaço de suas famílias e o conforto de suas
cidades e partir para as tão longínquas e inóspitas terras do Novo Mundo. Outros eram
impedidos por doenças, como aconteceu com dom Pieter de Luyck, em 1632, e com dom
Reinhard Kebel, em 1643.193 E outros não puderem desenvolver seu ministério nas partes do
Novo Mundo pela recusa de suas esposas de partir para o desconhecido, como foi o caso de
Herman Noldius.194
193 RAZ-ACW 74:44-6 1632 e WIC, GAA-ACA 4:291 de 13/4/1643, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 160.
194 GAA-ACA 33:193 de 27/1/1648, apud, ibid.
195 Atas dos sínodos e classes do Brasil (..), op. cit., p. 756.
196 Os demais sacramentos da Igreja Católica são: batismo, crisma, eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem [sacerdócio].
197 SCHALKWIJK, op. cit., p. 179. Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit. p. 710, 712. Atas de 1636 a 1648 (...), p. 236, 254.
63
apresentar uma prédica a partir de um texto bíblico escolhido no ato pela banca examinadora;
na segunda parte, tinham que dissertar oralmente sobre questões colocadas individualmente
pelos membros da banca. Seria interessante saber quais eram essas perguntas; infelizmente,
em nenhuma das vezes em que se realizou este exame elas foram apontadas ou anotadas em
ata.
Não obstante, há um dado muito importante apontado em cada um dos exames: o texto
bíblico sobre o qual os candidatos deveriam discorrer. A partir destes textos é possível
especular sobre as questões teológicas a que eram submetidos os aspirantes ao exercício do
ministério. Mais do que isso, tais textos nos mostram o zelo pela doutrina reformada. As
passagens canônicas, escolhidas a dedo, sem exceção remetiam ao fundamento da Reforma
Protestante: a salvação por Jesus sem nenhuma intermediação, solo Dei. Assim é que Thomas
Kempius, o primeiro candidato a proponente no Brasil holandês, cujo procedimento de exame
foi registrado em ata da Assembléia da Classe de dezembro de 1636, recebeu como mote o
texto do Evangelho de João, capítulo 3, verso 16, para que sobre ele fizesse sua prédica à
Assembléia ali reunida.198 Trata-se de uma das passagens das mais conhecidas da Bíblia, a
qual Martinho Lutero classificara de evangelho em miniatura; afirma que “Porque Deus amou
ao mundo de tal maneira que deu o seu filho unigênito para que todo aquele que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna”.199 O candidato discorreu, então, sobre o texto que tratava da
questão da salvação pela fé no Filho unigênito de Deus, porquanto, devido a sua natureza
divina, era o único salvador dos homens. O texto deixa entendido dois dos três fundamentos
da Reforma Protestante: solo Dei, sola fide. Apenas Deus, Apenas a fé, porquanto a salvação
ou vida eterna dependia apenas em crer em Jesus, o filho de Deus. A prédica agradou ao
auditório, de modo que deram continuidade ao exame.200 Passada a primeira etapa do exame,
o candidato foi inquirido, em latim, pelo predicante Samuel Batiler.201 Também nesta fase do
exame Kempius saiu-se bem, para contentamento da banca que o aprovou para o cargo de
proponente para os reformados de língua inglesa fixados no Brasil holandês:
198 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 710.
199 João 3:16.
200 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 710.
201 ibid.
64
Desta vez, o texto escolhido para o exame de Kempius foi a Epístola aos Romanos,
capitulo 8, verso 1. A banca fazia uma ressalva: o candidato deveria pregar em português. A
exigência de que a prédica fosse em língua portuguesa evidentemente visava avaliar a
capacidade de Kempius expressar-se teologicamente neste vernáculo, visto que seu trabalho
missionário era todo realizado entre os brasilianos, ou seja, índios já aculturados e
catequizados pelos jesuítas. Temos aqui uma informação valiosa sobre a catequese indígena e
a língua na qual foi levada a efeito, questões que serão tratadas mais adiante.
Por ora, volto ao texto sobre o qual Kempius deveria predicar frente a uma nova banca
de examinadores. Na Epístola aos Romanos, capítulo 8, verso 1, São Paulo afirmava, aos
pagãos recém convertidos ao cristianismo, que “Agora, pois, já nenhuma condenação há para
os que estão em Cristo Jesus”.205 Como mais uma vez pode-se observar, esta afirmação de
São Paulo aponta para um dos fundamentos da Reforma Protestante — “apenas Deus”, isto é,
a incondicionalidade da salvação em Jesus ou a ausência de mediador possível entre Deus e o
ser humano, princípio defendido pelo reformador Martinho Lutero. O candidato Kempius
parecia estar bem afinado com os dogmas maiores da fé reformada, pois foi aprovado pela
banca sem maiores questionamentos.
Em 1644, foi a vez do proponente Dionysius a Biscareto submeter-se a exame a fim de
ascender ao cargo de predicante. Ao que parece, este proponente deve ter revelado
anteriormente alguma deficiência teológica, pois a Classe decidiu que somente analisaria seu
pedido de submissão a exame se ele, pré-candidato, demonstrasse que havia feito progressos
em seus conhecimentos nesse campo:
206 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 773.
207 ibid., p. 774.
208 Gálatas 5:4.
209 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 774.
66
das perguntas a que foram submetidos. Acredito poder afirmar que, antes de tudo, os
questionamentos dos examinadores giravam em torno dos três fundamentos da Reforma
Protestante: Apenas Deus, Apenas as Escrituras, Apenas a Fé (Solo Dei, Sola Scriptura, Sola
fide); pois é visível o zelo teológico manifestado em torno dos textos escolhidos, e que
apontavam via de regra para os três princípios da profissão de fé Reforma, a saber, a
inexistência de qualquer mediador entre Deus e o homem, a autoridade soberana das
Escrituras em matéria de fé e a justiça passiva ou justificação pela fé.
Desta forma, constata-se que os predicantes no Brasil holandês eram em sua maioria
homens preparados teologicamente, guardiões da doutrina reformada, do exemplo de vida e
da prática pastoral; homens que, orientados pela idéia de serviço e imbuídos de um profundo
sentimento de missão espiritual salvacionista, trabalharam incansavelmente, chegando a
implantar vinte e duas igrejas ao longo da costa, de Sergipe ao Ceará. Ao longo dos anos da
ocupação, essas igrejas foram servidas por um total de 54 predicantes e cerca de noventa
evangelistas, os chamados consoladores de enfermos.
Não se trata de fazer a apologia desses missionários, mas de avaliar com justiça o seu
trabalho. Com efeito, se alguns dos predicantes que aqui chegaram eram, na expressão de
Soler, “cachorros mudos”, muitos foram àqueles outros que gastaram suas vidas na tarefa de
missionar na seara do Brasil holandês. Houve aqueles que, persistindo nos maus caminhos,
foram despedidos e devolvidos à metrópole; mas houve também aqueles outros que, em face
da disciplina, corrigiram-se, como foram os casos de Polhemius e Stetten. E houve ainda
aqueles que, do começo ao fim do ministério no Brasil holandês, desempenharam suas
funções com zelo e determinação. Escolhi, dentre estes últimos, dois predicantes — Vicente
Joaquim Soler e Joducus a Stetten — para, através de uma pequena reconstituição de suas
personalidades individuais, dar vez e voz aos muitos genuínos pastores que desempenharam
suas funções no Brasil holandês e que foram relegados ao esquecimento — certamente, tanto
por pertencerem ao lado derrotado nas guerras do açúcar quanto por confessarem uma fé
inimiga ao catolicismo hegemônico entre nós.
210 GAA-ACA 25, assinatura 76, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 258.
211 Breve discurso sobre o Estado das quatro capitanias conquistadas (...).In: MELLO, op. cit., v.I, p. 98.
212 Relatório sobre o Estado das Capitanias conquistadas (...). In: MELLO, op. cit., v. I, p. 195.
68
um rapaz, cujo nome não é informado, viveu uma vida de dores e frustrações, conforme
narrou de próprio punho nas cartas endereçadas a seu amigo Rivet.
A filha Margarida desembarcou com ele e a esposa em Pernambuco no fim daquele
semestre de 1636, conforme relatou a seu amigo: “Deus me fez chegar a bom porto depois
duma viagem muito feliz; mas sem um mercador de Colônia, de mim desconhecido, que me
hospedou cinco semanas na sua casa, ainda estaria balanceando-me sobre o mar com minha
mulher e minha filha (...)”.216 Para o zeloso predicante, que vivia a cobrar do clero e dos fiéis
uma vida honesta e piedosa em Cristo, grande deve ter sido o embaraço diante dos boatos que
corriam sobre a filha. Ao menos pela boca de Frei Manuel Calado, freqüentador da casa de
Sua excelência, o Conde de Nassau, que comentava que Margarida vivia com este um caso de
amor.217 Deve ter sido com alívio que, em carta de 1638, o predicante noticiou a seu amigo as
núpcias de Margarida com um proprietário de engenho, cujo nome não é informado. Mas,
para a infelicidade dos pais, o casamento não pôs fim aos problemas com a filha Margarida. O
predicante desabafava ao amigo que Maria, sua esposa, de tanto desgosto já estava “seca e
torrada como um arenque defumado, e de reduzida saúde”, pois, para além do fato de não
gostar da vida na colônia, a aversão por ela sentida aumentava diante dos tristes
acontecimentos que maculavam a honra da família. Passados cinco anos do enlace da filha, o
casamento parecia não ter ainda se consumado, sob a alegação de frigidez do marido, de
acordo com a narrativa do predicante: “depois de ter vivido com ele cinco anos, sem ele nunca
se ter manifestado como tal, estando segundo toda aparência ‘ex frigidis’”.218 Diante da não
consumação do casamento, Soler viu-se obrigado a “separar a filha de seu marido” e recolhê-
la em casa, o que, como disse, causara enorme tristeza em sua esposa, a ponto dela cair
doente.219 “Tudo está perdido, salvo a honra!”, exclamava o pater familias.220
Mas as tristezas com a filha estavam longe de acabar. Passados três meses desde que
Soler noticiara ao amigo o fim do matrimônio de Margarida, seguiu-se outra carta, datada de
cinco de junho de 1643, em que noticiava o seu falecimento: “Tenho vos escrito bastante
amplamente pela última armada. Depois desse tempo nos tem visitado Deus, tomando-nos
nossa cara filha”.221 Margarida sucumbiu ao amor, ou a sua falta, se dermos crédito às
palavras de Frei Manuel Calado, que viveu no Recife ao tempo do governo nassoviano,
Na verdade, também ele, pai Soler, não se consolava, porque nas cartas subseqüentes
remetidas ao amigo o assunto freqüentemente vinha a tona: “Meu filho não é tal qual o desejo,
mas pelo favor do Todo Poderoso não tem nenhum vicio sensacional (...).”230 O predicante em
nenhum momento menciona o nome do filho, mas em junho de 1644 foi indicado para
escabino do Rio Grande do Norte um rapaz de nome João Soler. Bem podendo ser o filho de
Soler.
O Novo Mundo foi ingrato com Soler. Problemas com o casamento da filha; a perda
da mesma filha; problemas com a falta de aptidão do filho para o sacerdócio (e talvez para
qualquer outra coisa, conforme desabafava ao amigo: “minha irritação é de vê-lo
desocupado”); problemas com a esposa que, diante das desgraças familiares, implorava pelo
retorno à pátria:
encontrado afinal uma vocação ao entrar para o serviço militar na WIC.232 O predicante
perdia, assim, seus dois filhos para as circunstâncias do Novo Mundo.
Mas, não obstante tragédias e desonras, não perdeu Soler a paixão pela Igreja, que tão
zelosamente ajudara a estabelecer no Brasil. De volta as Províncias Unidas, trabalhou na
igreja Valã de Delf, na Província da Holanda, exercendo, ao que tudo indica, grande
influência nos assuntos concernentes à obra missionária no Brasil holandês. Afirmo isso
porque, a partir de 1646, é possível perceber, de acordo com o historiador da Igreja, Hemult
Andrae, o envolvimento da igreja de Delf com a igreja na colônia, seja enviando predicantes
qualificados, seja produzindo e imprimindo literatura adequada à instrução do clero, seja
ainda contribuindo financeiramente para o pagamento dos salários dos predicantes. Afirma o
historiador que
Tudo indica que mesmo na distante metrópole, Soler não abandonara a obra de sua
vida, razão pela qual fez jus ao título de “pai da missionação no Brasil holandês”.
232 ARA-OWIC 60, generale missive ao Conselho dos XIX, Recife 4/9/1945.In: MELLO, op. cit., v II, p. 298.
233 ANDREA, Hemult. (Diener) Zur Geschichte der Reformierten Kirche in Hollaendisch-Brasilien:Die Diener des Herren (“Para a história
da Igreja Cristã Reformada no Brasil holandês:os servos do senhor”). In: Almanaque do Sínodo Rio-grandense, 1961, p. 35-49.
73
234 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 732.
235 ibid.
236 ibid.
74
visto ele se oferecer a dar uma satisfação á igreja sobre os erros cometidos,
a assembléia aceitou a proposta e ordenou que a fizesse solenemente, tanto
ante esta assembléia, como ante a igreja de Itamaracá, onde cometera os
erros, a saber: que mostre aqui o seu arrependimento e pesar e o mesmo
deve ser comunicado na sua presença á igreja de Itamaracá. Depois foi
resolvido, tanto por causa da dita satisfação e bom atestado dos irmãos de
Itamaracá, como também de outros, readmitir D. a Stetten no serviço
divino; mas a sua nomeação só terá lugar depois de feita a comunicação á
paróquia de Itamaracá, o que se deve fazer logo. Depois que os Deputados
haja feito por mais algum tempo investigações sobre sua vida, e saindo
tudo segundo a esperança e o desejo, então dêem posse ao D. a Stetten com
a comunicação do predicante situado mais próximo.241
237 ibid.
238 ibid., p. 733.
239 ibid.
240 ibid.
241 ibid., p. 732.
75
242 Nótulas diárias de 26/03/1639. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
243 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 743.
244 Joose, L. J. Scoone dingen sijn swaee dingen. Motivos missionários reformados na Holanda na 1ª metade do século XVII. Leiden:
Groen, 1992, p. 453, apud 1º relatório pastoral reformado da América Latina: o “Jurnael”do Rev Joducos a Stetten. Fides Reformata
VIII, nº 2 2003, 129-142, p. 131.
245 Atas da Câmara da Companhia das Índias Ocidentais na Zelândia, 4 e 7/10/1632. In: ARA- OWIC, p. 126s. apud. 1º relatório pastoral
reformado(...), op.cit.
76
Para começar, por quais razões Stetten teria escrito este relatório, se esta não era a
prática usual na Igreja calvinista? Nenhum outro predicante deixou um relato de suas
atividades. O procedimento era outro. Nas reuniões eclesiásticas ou por ocasião da visita dos
deputados (os visitadores), o predicante, oralmente, prestava contas de seus trabalhos e
serviços. Mas Stetten, para felicidade nossa, resolveu deixar tudo por escrito. Na verdade, o
relatório, redigido certamente em 1637, fora construído em retrospectiva durante os longos
dias em que amargava a demissão da igreja; portanto o predicante, em processo de
arrependimento e objetivando reconquistar seu posto nas fileiras da Igreja, procurava mostrar
todo o seu esforço e zelo pelos assuntos eclesiásticos.
Sob o título Jornal das Igrejas da Paraíba, Stetten pôs-se a narrar os vários feitos que
realizou na igreja daquela capitania. Apesar do título que remete a uma instituição religiosa e,
portanto, a um conjunto de pessoas em interação social, Stetten escreveu de uma forma que
mais parecia enaltecer sua própria pessoa; ou seja, para além de querer relatar os
acontecimentos até então vivenciados pelas igrejas da Paraíba, o documento apresenta um
auto-elogio, como quando narra a conversão de uma jovem cristã-nova à fé reformada. Conta
que compareceu perante ele “uma jovem de 18 anos, filha legitima de Simon Lion”, chamada
Judit. Simon Lion era um cristão-novo que (re) convertera-se ao judaísmo por aqueles tempos,
juntamente com sua esposa Phillippina de Vonceca. Simon passara a chamar-se Abraham
Lion, e sua esposa, Sara. Mas a jovem Judit, “por zelo e incitação do Espírito Santo insistiu
muito fortemente em se unir à religião cristã [reformada]”.246
Relata Stetten que Judit foi por ele instruída durante oito semanas nos fundamentos da
Religião Cristã Reformada; no fim da catequese, a jovem foi “examinada no Conselho [da
igreja], respondendo tudo de uma forma que o Conselho teve motivo, não somente de muito
bom contentamento e de grande admiração, mas também de agradecer a Deus, o Senhor”.247
Foi então incorporada ao corpo de Cristo pelo batismo, passando doravante a chamar-se
Christina.248 Um grande feito! A conversão de uma cristã-nova à fé reformada.
O tom de elogio em boca própria — ou melhor, em pena própria — prossegue ao
contar que a primeira Ceia do Senhor celebrada na Paraíba aconteceu por ordem sua, em 25
de dezembro de 1635, a despeito da Igreja Cristã Reformada já estar ali implantada havia um
ano. Conta o pastor que a celebração já havia sido anunciada, por várias vezes, mas que não
tinha sido celebrada por “desculpas menores e inválidas”; mas ele próprio não era homem
dado a desculpas: “quando cheguei ali para cumprir a minha vocação naquele lugar,
comissionado pelo Conselho do Recife para colocar tudo em ordem, fiz, com a ajuda de Deus,
o máximo que pude (...)”.249
O predicante segue registrando variados detalhes do viver em colônia, contando, por
exemplo, dos batizados que realizou, sempre na mesma linha estrategicamente traçada de
auto-elogio ministerial. Tivera a honra de batizar um filhinho do predicante Samuel Bachiler:
Afirma também ter instruído nos fundamentos da religião e batizado muitos filhos de
negros. Somos informados que, quando por ocasião do exame dos fundamentos da religião a
barreira da língua se impunha, o reverendo lançava mão de um tradutor. Sobre o batismo de
crianças negras e o uso de tradutor, narrou uma cerimônia realizada em outubro de 1635.
os ingleses, com os parentes dos dois lados e amigos, pedindo que os dois
não somente sejam admitidos ao estado matrimonial, mas [também],
conforme a ordem [de Dordt], sejam confirmados”.252
No entanto, a despeito de todo o esforço e empenho para tudo pôr em ordem na Igreja
da Paraíba, concluiu pesaroso: “infelizmente, a Paraíba me fez sofrer muito”.253 O que teria
feito a Paraíba —, quer dizer, as pessoas que lá habitavam — que tanto o fizesse sofrer? O
que teria acontecido na igreja da Paraíba para que, conforme o veredicto de Soler, fosse o seu
pastor caracterizado como “desmiolado e incapaz”? E isso quando a auto-imagem que nos
passa é a de uma pessoa zelosa e sensata, como nos deixa entrever, contado por ele mesmo, o
episódio dos sinos? O relato da “guerra acústica” entre os sinos da colônia — como a
designou Evaldo Cabral de Mello referindo-se ao intenso e constante badalar — deixa-nos
entrever em Stetten uma personalidade cordata, em tudo oposto a seu companheiro de
ministério, o intransigente Soler. Escreveu Stetten que,
“(...) desde que o nosso sino [da igreja da Paraíba] é um pouco pequeno e
dificilmente pode ser ouvido em todo lugar, além do fato de que o badalar
dos sinos dos conventos impede que se saiba se o nosso [já] foi tocado e
qual o sinal que foi dado, foi decidido que o sineiro tocará desta forma: na
primeira batida um toque, na segunda dois, na terceira três.254
De todo modo, a despeito de nos mostrar, por meio deste singelo exemplo, o modo
sensato como resolveu o problema do badalar dos sinos; e não obstante ter judiciosamente
listado os batizados, a Santa Ceia, os casamentos e conversões que lhe cumprira realizar, tudo
conforme a constituição da Igreja Cristã Reformada, o fato é que, quando sucumbia ao prazer
da bebida, o “enérgico e ativo missionário” — como se lhe referiu o historiador José
Higino255 — parecia perder completamente todo senso e juízo das coisas.
Stetten, como disse, escreveu seu relatório em meio à tristeza que lhe causara o
afastamento compulsório da Igreja; de modo que sua narrativa mais parece uma contradita às
acusações que se lhe foram feitas do que um relato circunstanciado de acontecimentos
eclesiásticos. Escrevia para indiretamente se defender, como a dizer que, a despeito de seus
muitos erros — que reconhecera —, havia trabalhado com afinco e ortodoxia, realizando as
Outra vez foi falado sobre a descoberta das minas ricas na capitania de Rio
Grande, sobre a qual, o senhor Gyselingh fez uma pesquisa no local.
Conversaram sobre esse assunto com os Predicadores Stetten e van der
Poel, que parecem ter o maior conhecimento nesse, e eles concordaram em
fazer um resumo dos custos, que essa descoberta requererá, e depois
discutirão mais conosco sobre o assunto.259
Nas idas e vindas como capelão militar, Stetten deve ter se tornado conhecido dos
índios tapuias, bem como adquirido o respeito deles, pois, quando do massacre em Cunhaú,
em 1645, foi designado para ir ter com eles para os apaziguar e os convencer a ficar do lado
dos neerlandeses. Nesse sentido, Joan Nieuhof, alto funcionário da WIC que esteve no Brasil
entre 1640 e 1649, nos informa que:
O tempo passava. Stetten era tratado com dignidade na Bahia. Os frades igualmente,
no Recife. Presos, porém. Os frades decidiram partir para a negociação. Propuseram aos
Senhores do Conselho que os trocassem por Stetten. Os Conselheiros concordaram com a
troca, desde que fosse um por um. Ou seja, um frade por Stetten. Os frades argumentavam
que não podiam se separar, e que, portanto, a troca só se daria se fossem os dois por Stetten.
Os Conselheiros permaneceram irredutíveis. Pena. O predicante, salvador de almas,
explorador de minas, apaziguador dos tapuias, não valia a troca. Stetten foi embarcado para
Portugal em 1651, para nunca mais se ouvir falar em seu nome.267 Raquel a Stetten, a viúva,
pediu ajuda para si e para a família numa carta endereçada a D. Kesseler e datada de 9 de
maio de 1650,268 sendo-lhe concedida, pelo presbitério de Amsterdã, uma pensão até a sua
morte em 1665.269
267 Nótula diária de 2/3/1651, apud O 1º relatório pastoral (...), op.cit., p.131.
268 GAA-ACA 88, 4:212, GAA-ACA 33: 237S DE 5/7/1650, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 191.
269 ADRI de Amsterdã 24/2/1653. In: GAA-ACA 33:308. ASNH 1665 a6. In: GAA- ACA 103, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 216.
270 WATJEN, op cit., p. 364.
271 SCHALKWIJK, op. cit., p. 168-69.
272 ibid., p. 168.
83
273 Relatório apresentado por escrito (...), In: MELLO. op. cit., v. II, p. 269.
274 Dezessete Cartas, op. cit., p. 105.
275 SCHALKWIJK, op. cit., p. 167.
276 A Igreja Cristã Reformada no Brasil Holandês (...). op. cit., p.256, e GAA-ACA 39:137 e 4:348, apud SCHALKWIJK. op. cit., p. 168.
277 ibid., passim.
278 A Igreja Cristã Reformada no Brasil Holandês (...). op. cit., p.256.
84
A bem da verdade, nenhum dos predicantes expulsos de suas igrejas pela insurreição
manifestou desejo de partir; ou seja, de abandonar a obra da missionação naquilo que restava
das possessões neerlandesas no Brasil. Na ata da assembléia da Classe do Brasil de janeiro de
1646, encontramos os nomes dos predicantes que perderam suas igrejas no começo da
insurreição pernambucana: Joducus Stetten, predicante no Cabo Santo Agostinho; Dionísio
Biscareto, predicante entre os índios; Petrus Ongena, predicante de Santo Antonio do Cabo; e
por fim o predicante Polhemius, de Itamaracá.279
Na seqüência, tendo os neerlandeses recapturado o Forte Maurício, designaram a
Stetten para cuidar da igreja neste local, tendo este, pouco tempo depois, caído prisioneiro dos
portugueses, relatado acima. Não se trata, evidentemente, de um abandono do front
missionário, mas de um acontecimento corriqueiro no contexto de um conflito prolongado.
Por sua vez, os predicantes que perderam suas igrejas nos territórios reconquistados pelos
luso-brasileiros foram designados para servir em outras localidades. Destes, apenas Dionísio
Biscareto deixou o Brasil holandês antes do término da guerra, partindo em 1648 por se achar
bastante adoentado. Os predicantes Ongena e Polhemius ficaram até a rendição em 1654,
regressando a Província Unida dos Países Baixos com os demais neerlandeses após a rendição
neerlandesa. Na seqüência, o predicante Ongena foi enviado à Indonésia, onde serviu a Igreja
Cristã Reformada daquelas partes até sua morte.280 Thomas Kempius morreu na fortaleza
Schoonenburch, no Ceará, nos últimos dias de presença neerlandesa nas capitanias do
norte.281
Afirma Schalkwijk que a última fase de missionação indígena, de 1645 a 1654,
necessita de uma melhor pesquisa, pois, ao contrário do que comumente se afirma —que os
predicantes abandonaram a obra de missionação —, ela continuou mesmo durante os
momentos de guerra mais intensa. É claro que o ritmo do já fragilizado projeto ficou
comprometido e a quantidade de predicantes e professores diminuiu significativamente; mas
há que se considerar, por exemplo, o trabalho do predicante Thomas Kempius e de seu
auxiliar, o professor índio João Gonsalves, durante os derradeiros dias da presença
neerlandesa no Brasil. Esses missionários, inclusive, fizeram contato com os temíveis e
arredios tapuias Carajás.282
279 A Igreja Cristã Reformada no Brasil Holandês. Atas de 1636 a 1648.In: RIAP. v.LVIII, Recife, 1993, p. 236.
280 ASNH 155 a1, e ASNH 1658 a4, In: GAA-ACA 102, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 165.
281 GAA-ACA 6, de 1/5/1656, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 102.
282 Diário de Matias Beck. In: Três documentos do Ceará Colonial. Fortaleza: Departamento de Imprensa Oficial, 1967, passim. Nótulas
diárias de 25/11/1648; 17 e 21/3/1651; 31/8/1651 apud SCHALKWIJK, p. 302. Também Samuel Engelaer atuava como professor dos
brasilianos no ocaso da presença neerlandesa.
85
Assim, a partir do pequeno fundamento lançado por Baers, a Igreja Reformada, por
algum tempo — o “tempo dos flamengos” — floresceu em terras da América portuguesa.
Como vimos, grandes foram os esforços de predicantes, proponentes, mestres-escolas e
consoladores de enfermos para propagar a fé reformada no Brasil holandês. De todo modo, o
seu empenho esbarrou, sempre, na precariedade do quadro de predicantes e nas dificuldades
de toda ordem que o Novo Mundo lhes impunham.
Por mais que a Classe solicitasse à metrópole o envio de mais predicantes, e por mais
que esta se empenhasse em atender aos pedidos, o número de pastores enviados sempre ficou
aquém da demanda. Quanto às dificuldades por eles vivenciadas, foram elas de todo tipo. De
fato, muitas vezes, as dificuldades começavam já durante o translado, como foi o caso do
primeiro predicante em terras do Brasil holandês, Johan Baers, a quem me referi, no início
deste capitulo. Baers viveu o infortúnio de perder o filho que consigo trazia durante a
expedição de conquista: “Derivamos algumas semanas sob a linha equinocial, onde a maior
parte do tempo tivemos calmaria, ventos variáveis e borrascas, e também faleceu a 3 de
janeiro, o meu filho Petrus Baers, que comigo levara para meu amparo e consolo”.283 Em
outros casos, era o próprio predicante que falecia sem sequer avistar o Novo Mundo,
conforme informou Soler: “Mandaram-nos nesta armada um pastor que morreu no caminho,
segundo todos dizem cavador de turfa de primeira profissão. É para zombar-se, porque
precisamos aqui como em todas as partes do mundo de pessoas de ciência e de
consciência”.284 Outros, como Soler, tiveram uma viagem difícil, adoecendo a esposa e a filha,
conforme relatou em carta ao amigo Rivet:
Deus me fez chegar a bom porto depois duma viagem muito feliz; mas sem
um mercador de Colônia, de mim desconhecido, que me hospedou cinco
semanas na sua casa, ainda estaria balanceando-me sobre o mar com minha
mulher e minha filha, as quais estiveram muito doentes; ou melhor dito,
todos juntos tivéssemos servido de comida de peixes.285
287 Carta dos HRR aos XIX de 2/9/1634. In: ARA-OWIC 50 e BPB 1634/16; (“dominus Cornelius que foi expulso de Tamarica, como
relatamos antes, não apareceu por enquanto” – Não se sabe o sobrenome deste pastor; Talvez fosse Cornelius van der Poel. Não pode ser
dominus Cornelius Leoninus (pai) por ter voltado à Holanda em 1632. Nem o dom Conradus Cleve do Recife, falecido em 5/?/1633 )
carta dos XIX ao HRR de 8/7/1633. In. ARA-OWIC 6 e RUB 1633/1, apud SCHALKWIJK , op. cit., p. 100.
288 RIHGB, t. 92, 1926, p. 181ss.
289 Dezessete cartas. op. cit., p. 68. Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., passim. Nótulas diárias, passsim. Disponível em
http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 22 maio 2006.
290 PUNTONI, op. cit., p. 117.
87
CAPÍTULO 2
registrada na Nova Gazeta Alemã de 1514, relativa à viagem de um dos navios armados por
Dom Nuno Manuel, Cristóvão de Haro e outros, que, em torna viagem à Ilha da Madeira,
aportaram nas costas brasileiras. A partir das informações que o autor da Gazeta recolheu
sobre as gentes daquelas costas, inferiu-se que entre eles o Evangelho também havia sido
pregado, pois os naturais da terra, segundo o cronista, tinham recordações de São Tomé.
Informou o autor da Gazeta que os índios quiseram mostrar-lhes as pegadas que o santo havia
deixado pelo interior do país; e que, quando se referiam a ele, chamavam-lhe “Deus
pequeno”, acrescentando que sabiam existir um Deus maior. Registrou ainda o cronista que
naquela região era comum os pais nomearem os filhos com o nome do apóstolo. A partir
desse relato de viagem, a suposta passagem de São Tomé pela Bahia foi repetidas vezes
mencionada nas cartas que os padres da Companhia de Jesus endereçavam a Portugal — a
começar por Manuel da Nóbrega, que afirmava ter visto com seus próprios olhos as pegadas
que traziam bem distintas as marcas dos dedos do santo apóstolo.294
Segundo as tradições orais dos americanos, Sumé, por andar sempre descalço, deixara
impressas em várias rochas as marcas de suas fortes pisadas. Marcas estas que Simão de
Vasconcelos afirma ter visto em São Vicente; e também em Itapoã, fora da barra da Baía de
Todos os Santos; e na praia do Toqué Toqué, dentro da mesma barra; e em Itajuru, perto do
Cabo Frio; e por fim na altura da cidade da Paraíba, a sete graus da parte sul, para o sertão.295
Frei Jaboatão, dos Frades Menores, também registrou ter visto as pegadas do discípulo de
Jesus, ou mais precisamente a impressão do seu pé esquerdo, no Grajaú de Baixo, sete léguas
distante do Recife de Pernambuco.296
Na verdade, a similitude sonora da pronúncia dos nomes — Sumé/Tomé — tornou
incontornável a identificação. Identificação procurada e desejada pelos padres que, conforme
Buarque de Holanda, utilizaram “o mito de forma a atender a problemas de catequese e às
próprias exigências da fé ou às palavras dos teólogos mais reputados”.297 E assim a
credulidade foi alimentada pelo interesse. Em suma, ao se depararem com a história de Sumé,
corrente na mitologia dos índios, os jesuítas não titubearam em ver nela os indícios seguros da
pioneira evangelização da América pelo apóstolo Tomé, apropriando-se assim do mito e
dando-lhe um significado totalmente diverso do original. Apropriação compreensível para
294 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo:
Brasiliense, Publifolha, 2000, p.136.
295 ibid.
296 ibid., p.137.
297 ibid., p.155.
91
Que a presença das pegadas nas pedras se tivesse associado, entre eles [os
índios], e já antes do advento do homem branco, à passagem de algum
herói civilizador, é admissível quando se tenha em conta a circunstância de
semelhante associação de achar disseminada entre inúmeras populações
primitivas, em todos os lugares do mundo.298
Ainda sobre essa questão, na sua Dialética da colonização, Alfredo Bosi considera que os
missionários católicos fizeram
301 POMPA, Cristina. As muitas línguas da conversão: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil Colonial. In: Tempo. Rio de Janeiro, 7
Letras, 2001. v. 6, nº 11, p. 29.
302 POMPA, Religião como tradução, op. cit., p. 86.
303 MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores — estudos de história indígena e do indigenismo. Campinas: Universidade
de Campinas: Tese de Livre Docência, 2001, p. 38.
304 ibid., p. 59.
305 ibid., p. 17.
306 POMPA, Religião como tradução, op.cit., p. 86.
93
Bispo é Pai-guaçu, quer dizer, pajé maior. Nossa Senhora, Tupansy, mãe
de Tupã. O reino de Deus é Tupâretama, terra de Tupã. Igreja,
coerentemente é tupâoka, casa de Tupã. Alma é anga. (...). Demônio é
anhangá, espírito errante e perigoso. Para a figura bíblico-cristã do anjo (...)
karaibebê, profeta voador (...).310
Advirto por último, que por faltar nesta língua vocábulos que expliquem
com propriedade o significado de algumas palavras que se usam nas
Orações, Mistérios das Fés, e outras matérias pertencentes a ela, usamos
das mesmas vozes portuguesas ou latinas, com se introduziu nas outras
línguas de Europa; pois da hebréia e grega passaram aos latinos, dos latinos
passaram às outras nações da Europa com são Ave, Salve, Sacramentos,
Trindade, etc.314
Além dos neologismos, Mamiani por vezes optou pela apropriação de termos
provenientes da cosmologia Tupinambá — ao invés da cosmologia Kariri — para nomear o
Deus cristão, a alma, etc. (Por exemplo, nomeando o Deus cristão por Tupã também para os
Kariri, que desconheciam ou não empregavam essa palavra para designar sua respectiva
divindade maior). Além disso, não deixou de fazer pequenas adaptações de termos em
português para acomodá-los à pronuncia nativa: cruçá (cruz), padzú (pai ou padre), missá
(missa), etc. Certamente, não foi apenas entre os Kariri que os tradutores empregaram tais
procedimentos. Em muitos outros casos de cosmologias diferentes da cosmologia tupinambá,
optou-se por designar o Deus cristão pelo vocábulo Tupã. Evidentemente, muito acima das
preocupações com uma suposta “fidelidade ao original” estava o objetivo maior do projeto: a
catequese e a conversão da alma do gentio à fé católica.
Identificado, portanto, o mínimo de Deus na espiritualidade dos habitantes do Novo
Mundo, os missionários católicos procederam à elaboração de um projeto catequético, o que
demandou a construção de uma representação do sagrado cristão inteligível para os índios,
com o fito de torná-lo conhecido e compreendido entre “aqueles que não tiveram notícia
dele”, entre “os que nada tinham ouvido a seu respeito”, conforme as palavras da epístola de
Paulo aos romanos.315
Fazendo tabula rasa da(s) religiosidade(s) nativas, mas ao mesmo tempo apropriando-
se instrumental e pragmaticamente de alguns de seus elementos, o projeto elaborado e
empreendido pelos missionários das ordens católicas, de modo especial os jesuítas, objetivava
tornar o Deus dos cristãos conhecido e adorado pelos habitantes do Novo Mundo. Esse
projeto demandou complexos processos de tradução cultural, a elaboração de métodos e
técnicas pedagógicas, estratégias e disciplinas de aldeamentos, etc.. Os muitos e diversos
resultados advindos destas estratégias catequéticas foram analisados acuradamente por
314 MAMIANI, Luis Vicente. Catecismo da doutrina christã na língua brasílica da Naçam Kiriri. Ed. Fac-similar. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1942 (1698).
315 Romanos 15:20.
95
Ronaldo Vainfas316, Cristina Pompa317, John Manuel Monteiro318 e outros. Portanto, não
pretendo fazê-lo mais uma vez: basta retomar desses estudos os elementos necessários à
construção dos argumentos que ora levo a efeito.
Cristina Pompa, ao propor em seu belo trabalho Religião como tradução uma
“releitura da história da evangelização na Terra de Santa Cruz”,319 afirma que, não obstante
este processo ter se iniciado no século XVI com os primeiros contatos entre missionários e
Tupinambá do litoral, ele não se esgotou na virada do mesmo século, onde termina a maioria
das pesquisas que dão como certa a suposta extinção ou “assimilação” dos Tupinambá.320
Dessa forma, Pompa se propôs, a partir de uma análise comparativa com os Tupinambá do
litoral no século XVI, discutir o processo catequético dos “Tapuia” do sertão nordestino no
século XVII.
Entre uma época e outra, uma etnia e outra, um projeto e outro, há uma série de
continuidades e rupturas que uma historiografia mais tradicional não dava conta de abarcar.
Afirma a autora: “Esta história continua, sob outras formas, em outros lugares e com outros
índios (...)”.321 E eu acrescentaria, sem contradizê-la, que esta história continua, sob outras
formas, mas também nos mesmos lugares e com os mesmos índios. Explico. A dominação
neerlandesa no nordeste do Brasil de 1630 a 1654 trouxe consigo a presença espiritual e
política da Igreja Cristã Reformada. Ou a Seita Calvinista, como dela diziam os católicos. Tal
qual os religiosos católicos, mas empregando outros métodos, os missionários dessa Igreja,
como veremos ao longo deste trabalho, lançaram-se incansavelmente à catequese indígena.
Nada de extraordinário, não fosse o importante fato de tais índios já terem sido catequizados
por ordens religiosas católicas, especialmente pelos jesuítas. Na verdade, a missionação
jesuítica na região já contava com quase um século de trabalho constante e intensivo. A
missionação católica, realizada a partir de um projeto catequético singular e largamente
adaptado às características culturais dos ameríndios do litoral, iniciou-se, como vimos, com a
invenção instrumental de uma língua híbrida, colonial, que deu origem à língua geral mais
usada na costa do Brasil. Mas, como se sabe, esse esforço missionário não se limitou a isso.
As diferenças abissais que caracterizavam as duas culturas em confronto exigiram dos
missionários uma extraordinária adaptação ao meio físico e cultural na tarefa de evangelizar o
gentio. Dessa forma, ao perceberem que a evangelização somente pela pregação da palavra
não alcançaria os resultados desejados, os missionários passaram a criar e aplicar novas
estratégias. Uma delas foi a sobreposição, ou tradução cultural de papéis, entre missionário e
xamã. Vainfas, ao estudar a Santidade do Jaguaribe, mostrou o modo como se operou esta
sobreposição. Curiosamente, os padres se apropriaram da expressão santidade para fins de
catequese, quando eles próprios a haviam criado para descrever a religiosidade indígena do
século XVI, seja quanto à sua dimensão cerimonial, seja enquanto movimento de massa.
Afirma o autor que “instalou-se mesmo uma curiosa disputa entre jesuítas e caraíbas pelo uso
da expressão que os próprios inacianos haviam atribuído à cerimônia tupi”.322 Essa disputa,
ou “batalha pelo monopólio da santidade”, segundo Vainfas, foi exposta de forma muito clara
na carta dos meninos do Colégio de Jesus da Bahia ao padre Domenech, em 1552. A carta
conta de uma expedição inaciana a uma aldeia baiana, e do esforço de Padre Manuel da
Nóbrega para explicar aos índios quem era a “verdadeira santidade”. O padre explicou-lhes
que
E em outra a carta, desta vez, ao padre mestre dos jesuítas Simão Rodrigues escreveu que
“Se nós abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os quais não são
contra nossa fé católica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar
cantigas de Nosso Senhor em sua língua pelo tom e tanger seus
instrumentos de música que eles usam em suas festas quando matam
contrários e quando andam bêbados; e isto para os atrair a deixarem os
outros costumes essenciais (...); e assim o pregar-lhes a seu modo em certo
tom andando passeando e batendo nos peitos, como eles fazem quando
querem persuadir alguma coisa e dizê-la com muita eficácia; e assim
tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo.
Porque semelhança é causa de amor. E outros costumes semelhantes a
estes”.324
Tradução, como podemos constatar, não somente no plano da linguagem falada, mas
também no plano dos gestos: predicando aos índios, os padres não deixaram de recorrer,
como meio pedagógico, às tradicionais danças tribais e aos cantos típicos da cultura tupi.
Constatados o perigo e a pouca eficácia de tentar converter os índios no seu próprio
meio ambiente, o segundo passo desta estratégia foi a generalização dos aldeamentos: “descê-
los” e reduzi-los, portanto, logo passou a ser uma condição sine qua non do sucesso da
catequese. Pois, de início, os padres iam aos sertões doutrinar os índios; mas os riscos que
esse deslocamento impunha, somados aos parcos resultados da atuação missionários nessas
condições, cedo levaram os padres a transferir os índios catecúmenos para aldeias construídas
próximas aos núcleos urbanos do litoral.
A transferência dos índios para aldeias construídas especificamente para este propósito
foi, segundo Pompa, uma primeira reformulação do projeto catequético, justificada
teologicamente, segundo a autora, no Diálogo sobre a conversão do gentio (1556) e no
chamado Plano civilizador, isto é, na carta de Nóbrega ao padre Miguel de Torres (1558).325
Este plano de reforma das missões propunha, então, a criação das aldeias, uma especificidade
colonial, onde os índios seriam reunidos — mesmo os de diferentes grupos étnicos — e
mantidos sob a administração espiritual e temporal jesuítica, separado da população
européia.326 Nessas reduções, os índios concentrados foram objeto de uma intensa inculcação
evangelizadora que, segundo o julgamento severo de Darcy Ribeiro, não teve um propósito
explícito dos jesuítas de destruir os índios, “mas o resultado de sua política não podia ser mais
letal se tivesse sido programada para isso”.327 Assim, ao gentio do Novo Mundo que os
neerlandeses encontraram no século XVII já havia sido anunciado, pelas ordens religiosas da
Igreja Católica, o Deus dos cristãos.
Um complexo sistema de tradução intercultural havia sido elaborado, seja por
homologia de termos e conceitos religiosos — Deus como Pai Tupã —, seja por enxerto, na
falta de homólogos ou análogos, a exemplo do conceito de pecado. A tradução por
sobreposição também já fora completada no essencial. Ou seja, por décadas a fio, toda uma
pedagogia de conversão forçada já havia sido construída como parte de um projeto
catequético que vinha se efetivando.
Analisar, portanto, a missionação posta em prática pelas ordens religiosas da Igreja
Católica — a pedagogia jesuítica, o projeto catequético, o aldeamento enquanto estratégia —
política de alianças, como a que historicamente, seus antepassados haviam mantido com os
franceses. No entanto, poucas semanas depois, os índios potiguaras perceberam que a
presença ali de tal frota seria passageira e, então, buscaram embarcar com eles. Poucos
conseguiram o intento. Consta nas informações de Hessel Gerritsz que o grupo que forneceu
informações a Kilian de Resenlaer no ano de 1628 em Amsterdã era composto por Gaspar
Paraupaba — Pai de Antonio Paraupaba — André Francisco, Pedro Poti, António Gui-
rawassanai335, António Francisco e Luiz Gaspar.336 O grupo permaneceu cerca de cinco anos
nas Províncias Unidas, onde aprendeu a língua holandesa e foi instruído na Religião Cristã
Reformada, chegando alguns a freqüentar a Universidade de Leiden.
Os neerlandeses não estavam interessados apenas na conquista material do território,
mas também na conquista espiritual das almas. Assim, além das informações geográficas
buscadas pelos neerlandeses, o grupo forneceu-lhes dados a respeito da vida religiosa dos
índios ou brasilianos, como eram designados pelos neerlandeses. Contaram-lhes estes
informantes que os índios eram cristãos e sabiam orar337, e outras informações deste tipo, que
certamente foram muito úteis na elaboração do projeto missionário reformado.
Ademais, para além das informações obtidas junto a estes potiguaras “holandesados”,
a esta altura do século XVII algumas crônicas sobre a colônia portuguesa na América já eram
conhecidas em várias línguas européias. Marcada pelo gosto do “exótico”, essa literatura de
viagens e descobrimentos era rica em dados de toda ordem, inclusive — ou principalmente —
dados “etnográficos”. Certamente, o conhecimento dessas crônicas e relatos era do
conhecimento de muitos dos que aportaram na colônia quando da dominação neerlandesa.
Pierre Moreau, a propósito, deixou-nos indicações preciosas sobre a leitura destas obras:
Por exemplo, a obra de Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil339, entre 1578 e 1592
já conhecia doze edições em francês, latim, holandês e alemão.340 Cabe lembrar que esta obra,
rica de observações e descrições sobre costumes e caracteres indígenas, fora composta por um
companheiro de credo dos neerlandeses: seu autor era calvinista, o que aumenta em muito a
chance de ter sido lido e relido pelos predicantes reformados. Também a obra de Hans Staden,
Duas viagens ao Brasil341, desde o século XVI já contava com inúmeras edições em alemão,
latim, flamengo, holandês, francês e inglês.342
Segundo Barléu, fora observando o exemplo das outras potências mercantilistas que os
holandeses lançaram-se à empresa colonial; esse “exemplo” incluía o esforço missionário:
“Dos exemplos alheios tinha aprendido os holandeses a descobrir mundos novos com o
auxílio das naus e a levar a povos distantes e vivendo sob outros céus a religião (...)”.343
Portanto, é perfeitamente plausível inferir que muitos predicantes tenham também realizado
inúmeras leituras concernentes ao Novo Mundo e a seus habitantes, com os quais teriam que
lidar na tarefa da missionação. Particularmente, acredito poder afirmar que foi de posse de um
conjunto de informações, saberes e estratégias anteriormente elaborados pelos missionários da
Igreja Católica com vistas à catequização dos naturais da terra, que os missionários
reformados aportaram nas terras coloniais. Parcela importante destas informações, saberes e
estratégias foi decerto adquirida na metrópole, através da leitura de obras circulantes; outra
parcela, ainda na metrópole, após a conquista da terra, via informação oral; e finalmente, por
meio da vivência concreta do cotidiano colonial.
Com efeito, o padre jesuíta Manuel de Moraes — que se bandeara para o lado dos
neerlandeses no final de 1634, sendo no ano seguinte transladado para as Províncias Unidas
—, tornou-se um dos mais importantes informantes da Companhia das Índias Ocidentais e
evidentemente da Igreja Reformada, a cuja fé temporariamente se “converteu”. Ainda no
Brasil holandês, o ex-padre forneceu ao coronel polonês Artichewsky preciosas informações
sobre a localização dos aldeamentos, número de índios, nomes das chefias, etc.; já em
Amsterdã, colocou a direção da WIC a par do modelo de governo dos índios praticado pelos
jesuítas. Assunto este que o informante dominava muito bem, afinal ele próprio fora superior
de aldeia até ser capturado pelos neerlandeses em dezembro de 1634.344 Os percalços de
Manuel de Moraes serão tratados oportunamente mais adiante.
De modo que não há — ou ao menos a documentação do período não permite inferir
— uma preocupação metafísica com a alma indígena por parte dos religiosos da Igreja
341 STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974.
342 DICIONÁRIO do Brasil Colonial (1500-1808), op. cit., p.278-79.
343 BARLÉU, Gaspar. História dos fatos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP,
1974, p. 4.
344 Carta dos Herren XIX para o Conselho Político do Recife em 1 de agosto de 1635, Códice 1.01.01, inventarius 8, microfilme 46.
Agradeço a Ronaldo Vainfas por me ceder fonte inédita de sua pesquisa.
103
Reformada: não questionam a realidade ou não da existência dessa alma, dando-a como coisa
estabelecida e não problemática; do mesmo modo, não problematizam um “modelo” de índio
a converter, como se deu entre os religiosos católicos no século XVI. Como disse, estas
questões já tinham sido teoricamente resolvidas pelos teólogos católicos no transcurso de um
século de prática catequética.
De modo geral, os cronistas e religiosos reformados classificaram os brasilianos como
tendo pouco conhecimento de Deus, deficiência que atribuíam à catequese católica. Quanto
aos tapuias — “nação mais brutal”, conforme Moreau345, e a quem os “demônios
continuamente (...) acompanham nas matas e lugares solitários” —, o ajuizamento não diferiu
daquele perpetrado pelas ordens religiosas e pelos cronistas católicos que os construiu como
alteridade radical, com relação aos Tupinambá, no século XVII. Muito embora, segundo
Pompa, essa ferocidade atribuída aos “tapuia” pelos neerlandeses, não passava pelos mesmos
significados dos relatos portugueses. Para os neerlandeses a ferocidade “tapuia” era “símbolo
de irresistível força militar, embora perigosamente deslocada para um plano de naturalidade
selvagem (...).346 Niehof afirmava: “os tapuias são piores que todos os outros brasileiros e
ignoram tudo quanto se relaciona com deus e a Religião”.347 Elias Herckmans, na sua
Descrição geral da Paraíba, descreveu as várias nações que, segundo ele, compunham o
povo tapuia, descrito nos seguintes termos:
No entanto, três ou quatro décadas depois da expulsão dos neerlandeses, tem-se notícia
de uns tapuias “hereges”. No final dos anos oitenta do seiscentos foi preso no Rio Grande do
Norte um tapuia, tido como um dos líderes da revolta dos “bárbaros” e registrado na cadeia do
Recife como “João, o pregador”. Ora, sabemos que o termo “pregador” remete aos
Reformados, cuja pregação era o ponto central do culto. Seria João um pregador calvinista,
um missionário entre os Nhandui?350 Seria ele portador de uma mensagem elaborada a partir
de elementos tapuias e de reminiscências cristãs reformadas? Não sabemos e não nos cabe
especular sobre os vazios documentais. Cabe, entretanto, a partir de indícios mais sólidos,
problematizar as relações de contato, os embates culturais, as trocas e misturas que se deram
no encontro forçado do Velho com o Novo Mundo. No encontro da Cruz com Tupã. Ou,
como é o caso aqui, no encontro da Cruz reformada com Pai Tupã.
O encontro da cruz reformada com Pai Tupã constitui certamente um tema fascinante
e relativamente pouco estudado. Compreender e explicar a história de grupos indígenas, já
catequizados pelas ordens da Igreja Católica, a partir do seu entrelaçamento com uma cultura
européia cristã reformada: eis o desafio que se nos coloca. Desafio que, no momento e nesta
altura das pesquisas, suscita-nos mais perguntas que respostas peremptórias. A carência de
trabalhos que problematizem a presença da fé reformada em terras brasílicas351, somada à
limitação documental, torna assaz difícil tal empreendimento. A historiografia sobre o Brasil
holandês não tem dado ao tema atenção mais do que factual e quase sempre en passant. Nem
mesmo o trabalho de Franz Leonard Schalkwijk — que propôs discutir o problema em seu
Igreja e Estado no Brasil holandês352 — constitui exceção, não obstante ofereça informações
valiosas e importantíssimas; mas, lembrando Carlo Ginzburg, “o importante é levantar as
possibilidades.”353
Como disse acima, os neerlandeses, ao aportarem nas capitanias do norte do Brasil, já
sabiam que os indígenas [brasilianos] eram cristãos. E cristãos em sua maioria batizados. No
entanto, a despeito de saberem serem os índios cristianizados, e muitos deles admitidos à
comunidade cristã pela via sacramental do batismo, — a porta de entrada para a cristandade
350 O Conselho Ultramarino deliberou que “João o pregador” fosse remetido para Angola ou para outra parte onde houvesse uma praça de
soldado. AHU cód 256. 147 e cód. 265 f 76, de 18 e 19/12/1962. Disponível na Internet projeto Líber: www.liber.ufpe.br. Acesso em: 25
agosto 2006.
351 Cite-se, não obstante, o artigo de Alcir Pécora, O bom e o boçal (...). op. cit.
352 SCHALKWIJK, op. cit.
353 GINZBURG, Carlo. Entre provas e possibilidades, In: A micro história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.
106
Peter Burke, em seu trabalho Cultura popular na Idade Moderna,359 mostrou como os
reformadores protestantes e católicos tentaram reformar a cultura popular européia; esses
representantes das elites clericais empenharam-se em suprimir ou expurgar muitos itens da
cultura popular tradicional representada de modo geral como “bárbara”, imoral e licenciosa.
Não obstante essas tentativas elitistas de reformar a cultura popular remontarem à Idade
Média, foi a partir do século XVI que elas se acirraram, notadamente a partir das reformas
protestante e católica. Nesse sentido, afirma Burke que “a reforma da Igreja, tal como era
entendida na época, necessariamente supunha a reforma do que chamamos cultura
popular”.360
Muitos foram os recursos de que os reformadores lançaram mão para “purificar” a
cultura popular da Europa — ou, como escreve Burke, para extirpar dela “seu paganismo e
licenciosidade”.361 Não cabe aqui discutir todos esses instrumentos e mecanismos; quero focar
apenas um desses instrumentos, por ter se constituído ele em ferramenta também na catequese
do indígena do Novo Mundo. Trata-se do catecismo. Conforme a análise de Burke, “o
catecismo, um livrinho contendo informações elementares sobre a doutrina religiosa”, foi uma
ferramenta estratégica indispensável na reconfiguração da cultura popular protestante.362
Em tempos de reformas, era preciso fixar a “ciência da salvação” em fórmulas simples
que todos pudessem compreender. Os grandes reformadores protestantes, logo seguidos pelos
bispos católicos, escreveram catecismos.363 Na verdade, os catecismos já existiam antes da
Reforma; mas a principal novidade introduzida é que, a partir deste momento, as orações e os
principais elementos da doutrina passaram a ser elaborados sob a forma de perguntas e
respostas alternadas. Essa pequena mudança não apenas aumentava a eficácia pedagógica do
instrumento como facilitava a sabatina dos fiéis com o objetivo de averiguar graus de
observância em relação aos dogmas básicos dos respectivos credos. Do lado protestante, tais
manuais, os catecismos, foram, primeiramente, guias para os que ensinavam; isto é, foram
elaborados a princípio para ser o “livro do mestre”, na sua missão de instruir as massas
ignaras nas verdades básicas da fé; mas em pouco tempo o catecismo tornou-se o livro do
aluno. Exemplo disso foi o pequeno Catecismo de Lutero, elaborado com a finalidade de
auxiliar pastores incultos, mas que logo passou a fazer parte da vida religiosa dos leigos; daí
que passou-se a afirmar dele que se tornara a “Bíblia do comum”, visto constituir “um curto
resumo de todas as Sagradas Escrituras”364. Para os reformados, o catecismo tornou-se tão
importante como via de instrução religiosa laica que, em muitas partes da Europa, a
capacidade de responder de forma correta às suas perguntas constituía um pré-requisito para a
admissão à Ceia do Senhor, principal ritual das Igrejas protestantes.
365 Segundo Schalkwijk a palavra “espanhol” deve ser interpretada como “português” por ter sido essa situação recorrente em muitos
documentos do Brasil holandês.Isto é usavam a palavra “espanhol” para designar “português”. Possivelmente usou-se a palavra
“espanhola” no sentido amplo da língua ibérica, especialmente porque era tempo de União Ibérica. Na verdade a confecção desse
catecismo visava a evangelização dos portugueses, índios e africanos de modo que, acredito que na verdade se referiam a língua geral na
medida em que esta já adquirira a característica de uma língua colonial. Em vários momentos, na documentação, aparece a informação
de material escrito na língua espanhola ou a menção de predicantes, proponentes, mestre-escola aptos nessa ou portuguesa para a
missionação indígena. Em todos esses casos acredito que ter havido confusão na elaboração da informação. Porque de forma maior a
documentação permite perceber com nitidez que a missionação indígena levada a efeito pelos neerlandeses se deu na “língua geral” a
língua dos “brasilianos”.
366 A Religião Reformada no Brasil (...). op. cit., p. 714.
367 Antonio de Araújo, S.J., Catecismo na Língua Brasílica, no qual se contem a summa da Douctrina Cristã, Lisboa, Pedro Crasbecck,
1618. Em 1686 essa obra teve uma nova edição, sob um novo titulo: Catecismo Brasílico da Doutrina Cristã, com acréscimo do padre
Bartolomeu de Leão.
368 MAMIANI, op. cit.
369 NANTES, Bernardo de. O.F.M. Cap., Katecismo Indico da Língua Kariri, acrescentado de varias praticas doutrinaes & Moraes,
adaptadas ao gênio, & capacidade dos Índios do Brasil, Lisboa, Valentim da Costa Deslantes, 1709, s/p.
109
ocupação neerlandesa, além deste esforço de tradução intercultural, outras questões estavam
colocadas, a começar pelas diferenças e semelhanças entre os dois credos cristãos.
Analisemos, na situação colonial, o processo de produção do catecismo reformado. Na
reunião da Classe do dia três de março de 1637, os predicantes decidiram por elaborar um
catecismo destinado especialmente à instrução religiosa indígena. Designado para tal
empreendimento, o nosso já conhecido predicante Soler confidenciou aos membros da Classe
que já vinha trabalhando neste projeto havia algum tempo: “Sendo D. Joachimus Soler
encarregado dessa empresa, declarou já ter um esboço pronto desse pequeno livro”, registram
as atas.370
Elaborado o catecismo — ou o “pequeno livro”, como o chamou Soler —, foi enviado
à metrópole para a impressão. No dia cinco de janeiro de 1638, a Classe reunida no Recife foi
informada de que “D. Soler mandara para a metrópole um breve compêndio da religião cristã,
com algumas orações, cujos exemplares são aqui esperados”.371 Na espera do “pequeno livro”,
receberam apenas o silêncio como resposta. A metrópole não devolveu o catecismo impresso,
tampouco emitiu qualquer parecer a respeito. Nem aprovação, nem reprovação. O que
acontecera?
Considerando o zelo característico com que Soler desenvolvia seu trabalho
missionário na colônia; considerando as relações que mantinha com Sua Excelência, o Conde
Maurício de Nassau, bem como com a Câmara da Zelândia — a segunda em ordem de
importância da Companhia das Índias ocidentais —, esta atitude dos administradores
metropolitanos com relação ao seu Catecismo soa no mínimo desconcertante. Ou sintomático,
posto que o silêncio por vezes também é significativo.
O predicante Soler — que, como vimos, sentou praça na colônia entre maio e junho de
1636 — compôs seu catecismo no começo de 1637; em julho de 1636, numa das muitas
cartas ao amigo Rivet, narrou um fato que, a meu ver, tem relação com os problemas
lingüísticos e “semióticos” da tradução de conceitos e sentidos da doutrina cristã para as
línguas indígenas, conforme o estudo de John Monteiro.372 O relato de Soler pode, inclusive,
lançar alguma luz sobre o porquê do silêncio metropolitano a respeito de seu catecismo.
Narrou ao amigo um episódio que lhe causara grande estranheza:
Levando em conta que Soler era morador do Recife e começava a esboçar um contato
mais sistemático com os índios daquela região; e sabendo que, a esta altura, tais índios já
conviviam havia décadas com os missionários inacianos e de outras ordens religiosas, sendo
por eles evangelizados, não causa estranheza o fato de terem respondido a Soler que
desconheciam a Deus? Uma hipótese plausível seria a de que, visto a catequese indígena por
parte dos missionários católicos não alcançar cem por cento de aproveitamento, estes índios
abordados por Soler de fato não soubessem quem era Deus — ou melhor, não formassem do
Deus cristão um conceito que satisfizesse a ortodoxia do rigoroso calvinista. Penso que essa
interpretação não encontra fundamento sólido. Tais índios poderiam não se ter convertido
genuinamente à fé dos missionários católicos; mas, considerando os quase cem anos de
catequese, ao menos o nome do Deus dos cristãos haveriam de conhecer, e reconhecer quando
pronunciado. Uma outra possibilidade seria a habilidade dos índios, respondendo desta forma
por simples estratégia para atingir seus interesses de momento, sobre os quais não somos
informados. E, por fim, o próprio predicante poderia estar a exagerar sobre a vida religiosa
dos indígenas, ou sobre as lacunas e inconstâncias dela, de modo a conquistar a empatia de
seu correspondente epistolar, além de valorizar o seu próprio trabalho de conquistador de
almas para a salvação em Cristo.
Mas, há ainda uma outra hipótese: Soler poderia ter usado, na sua interlocução com os
índios, um outro vocábulo que não Pai Tupã para designar a divindade cristã; ou talvez tenha
se lhes reportado em espanhol, a língua materna do predicante, ou na portuguesa, que também
conhecia; ou ainda na língua holandesa, na francesa ou em latim, todas dominadas pelo
poliglota Soler. Nunca saberemos. Seja como for, o fato é que, a julgar pelo relato que nos
chegou, os índios não entenderam o que Soler estava a dizer. A carta em que narra esse
acontecimento é datada de 13 de julho de 1636, ou seja, foi escrita pouquíssimo tempo depois
de seu escrevente ter desembarcado no Brasil holandês, o que leva a crer que ele ainda não
editada por ordem e em nome da Convenção Eclesial Presbiterial no Brasil, com formulários
para batismo e santa ceia acrescentados”.376 Posteriormente, ele ficaria conhecido como o
Catecismo Trilíngue ou Brasiliano, e doravante o mencionarei simplesmente como Catecismo
Brasiliano.
O predicante David van Doorenslaer não foi escolhido por acaso. Afirmavam seus
companheiros de ministério que tanto seu zelo religioso quanto seu conhecimento da língua
portuguesa e da brasílica eram notórios. Obviamente, o conhecimento das línguas faladas na
terra pesou decisivamente na escolha, talvez mais do que a piedade e a fidelidade ortodoxa.
Alguns dias antes de conceber o plano de elaboração do catecismo, os predicantes Soler e
Kesselerus, enquanto deputados da Classe, comunicaram ao governo e à Sua Excelência, o
conde João Maurício de Nassau, que o predicante Doorenslaer era “experiente na língua
portuguesa, mas também consegue se comunicar com os brasileiros na língua brasileira”,377
quer dizer, na língua geral falada pelos brasilianos. Em seu relatório, aos Dezenove Senhores,
de 1640 Adriaen van der Dussen prestou semelhante informação: “David van Doorenslaer
(...) está entre os brasilianos na Aldeia Maurícia e faz grandes diligências para pregar em
português e na língua brasiliana e já conseguiu muito progresso nisto (...)”.378
Em abril de 1640, após dezoito meses de trabalho coletivo, o Catecismo Brasiliano foi
finalmente concluído e enviado à metrópole para a impressão trilíngüe: “Quanto ao catecismo
organizado e revisto por alguns irmãos, ficou resolvido mandá-lo para a Metrópole, a fim de
ser impresso em três línguas, a saber: holandesa, portuguesa e tupi”.379 Em novembro daquele
mesmo ano, na reunião da Classe, foi informado aos presentes que, “Quanto ao catecismo em
três línguas, os deputados da Classe declaram que o mandaram aos senhores XIX, a fim de ser
impresso”.380 Um ano mais havia se passado. Já era outubro de 1641, e do Catecismo
Brasiliano nenhuma notícia, conforme informação dos deputados da Classe reunida no
Recife: “Ainda não veio o Catecismo mandado daqui para a Metrópole, a fim de ser publicado
em três línguas”.381
Enquanto aguardavam ansiosos por tão importante instrumento de catequização, na
metrópole vinha à tona uma outra faceta da questão. O manuscrito do segundo catecismo,
uma vez chegado à Câmara de Amsterdã, foi dali remetido ao importante Presbitério da
376 ibid.
377 Nótula diárias de 10/10/1638. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 15 julho 2006.
378 Relatório sobre o Estado das capitanias Conquistadas no Brasil (...), In: MELLO. op. cit , v I p. 195.
379 A Religião Reformada no Brasil (...). op. cit., p. 749.
380 ibid., p. 754.
381 ibid., p. 764.
113
mesma cidade,382 órgão a que caberia examinar, revisar e dar o parecer quanto ao seu
conteúdo doutrinal. Revisado o manuscrito do Catecismo Brasiliano, uma comissão
presbiterial apresentou seu parecer ao Presbitério: concluíram não haver, propriamente, nada
de errado com o teor do catecismo; quanto à doutrina, estava corretamente exposta, nada
havendo nela de “insalubre” ou “doentio”.383
Entretanto, as coisas não eram tão simples assim, pelo que os revisores se derem por
insatisfeitos com o material. Ressaltaram que algumas questões poderiam ter sido tratadas de
outro modo — como, por exemplo, os autores terem seguido mais de perto a estrutura do
Catecismo de Heidelberg, com suas divisões básicas sobre a perdição, a salvação e a gratidão;
criticaram também a forma como os autores haviam elaborado as perguntas, achando-as muito
longas, enquanto as respostas eram muito curtas; e, por fim, consideraram que as fórmulas
sobre o batismo e a ceia do Senhor eram diferentes das aprovadas pelo Sínodo de Dordt,
inclusive as orações cerimoniais.
Assim, não obstante concluírem nada haver de errado com o conteúdo teológico-
doutrinário do material, no parecer final quanto à sua impressão os examinadores
sentenciaram: “dangereus”.384 Ou seja, seria perigoso para a ortodoxia reformada pôr em
circulação o Catecismo Brasiliano. Em outras palavras, o alto clero metropolitano temia que,
a partir da circulação colonial desta versão afinal adaptada do Catecismo de Heidelberg e
traduzida para a língua brasiliana, os neoconversos — de culturas tão diferentes e sem raízes
na tradição reformada —, descambassem hereticamente para a elaboração de “novas
fórmulas” religiosas que não as de Dordt. Diante desse perigo, o Presbitério de Amsterdã
ordenou que o manuscrito, sem autorização para impressão, fosse devolvido à Companhia das
Índias Ocidentais, e que se escrevesse à Igreja no Brasil holandês tornando-a ciente da
decisão.
O que o Presbitério em Amsterdã chamou de “novas fórmulas”, certamente nada mais
era que o resultado da tradução dos conceitos da fé reformada — e especialmente das
fórmulas litúrgicas do batismo e da ceia —, para a língua brasiliana, ou seja, para a língua
geral. Os temores dos presbíteros eram justificados? É difícil, por ora, responder a essa
questão. Seja como for, após o parecer negativo da Igreja, instaurou-se um conflito pelo fato
dos Dezenove Senhores, desta vez, não se dobrarem ao veredicto do Presbitério de Amsterdã,
como fizeram no caso do catecismo de Soler. Os Dezenove Senhores ordenaram a impressão
382 O Presbitério de Amsterdã era o responsável pela Igreja reformada no Brasil holandês.
383 GAA-ACA 39:9, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 326.
384 GAA-ACA 4:222, de 8/4/1641. In: ibid., p. 319.
114
385 O Catecismo Brasiliano foi impresso numa gráfica na cidade de Enkhuizen, onde havia uma Câmara da Companhia das Índias
Ocidentais. O pai de Doorenslaer, Jacó Doorenslaer, era predicante nesta cidade e foi quem corrigiu as primeiras provas do Catecismo e
certamente estava a frente deste projeto, porque o Presbitério de Amsterdã, ao tomar conhecimento de que a impressão estava em
andamento, notificou a Companhia que avisasse ao predicante que não se apressasse com a impressão. Escreveram, também, ao
predicante Jacó a fim de dissuadi-lo do projeto, o que não surtiu efeito: o predicante continuou com seu plano de publicação. GAA-ACA
4:230 (e 39:85) de 1/7/1641, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 320.
386 Por volta de julho de 1641, várias sínodos provinciais se reuniram, como parte de suas atividades clericais, quando então tomaram
ciência da história do Catecismo Brasiliano. Todos se posicionaram ao lado do Presbitério de Amsterdã, entrando na luta contra a
publicação do Catecismo. O Sínodo da Holanda meridional irritada com a atitude da Companhia de mandar imprimir o Catecismo, não
aprovado pela Igreja, escreveu cartas a Companhia das Índias Ocidentais e até para o Governo da Holanda. O Sínodo da Holanda
setentrional solicitou cópias do Catecismo para que fosse examinado, também, por todos os deputados que compunham o Sínodo.
ASNH 1641 a57, in GAA-ACA 101, apud SCHALKWIJK, op. cit., 320.
387 Carta de David Van Doorenslaer de 22/09/1642, In: GAA-ACA 33:90-92, apud SCHALKWIJK, op. cit., p. 322.
388 ibid.
115
389 Carta de 15/6/1642, em resposta à carta da comissão missionária do Presbitério de Amsterdã. GAA-ACA 33:90, apud SCHALKWIJK,
op. cit., p. 323.
390 ibid., p. 324.
391 ibid.
392 NIEUHOF, op. cit., p. 100.
393 Relatório apresentado por escrito (...). In: MELLO, op. cit., v. II, , p. 270.
116
porém, uma vez mais insistiu em que ele deveria ter sido mais cuidadoso no modo de
“expressar-se”.394
Vale apontar que, por esse tempo, na longínqua Indonésia, os missionários da Igreja
Cristã Reformada vivenciaram a mesma experiência dos missionários do Brasil holandês. Em
1650, o predicante Meteren, de Malaca, auxiliado por um português, traduziu para a língua de
Camões o Catecismo de Heidelberg, e também viu seu projeto ser vetado para impressão
pelas instâncias superiores da Igreja calvinista.395 No entanto, em 1656, uma nova tradução do
mesmo catecismo, desta vez levada a cabo por João Ferreira de Almeida, teve a impressão
autorizada.396 Temos o registro de que também em Formosa — Taiwan —, no mar chinês, foi
permitida a impressão de um catecismo elaborado pelo predicante Robertus Junius.397 Este
Catecismo foi escrito numa das línguas dos naturais da ilha de Formosa. A ocupação
neerlandesa da ilha durou de 1624-1661. O catecismo foi preparado nos anos 40 e publicado
pouco depois de 1650.398
A questão permanece: qual a razão da recusa clerical em imprimir o Catecismo
Brasiliano?
os conceitos da religião cristã — observação, aliás, que os inacianos já haviam feito à farta. O
viajante neerlandês escreveu sobre a dificuldade de aprendizado da língua dos brasilianos;
sobre a inexistência de um alfabeto próprio e ainda sobre o esforço dos religiosos
neerlandeses em aprender e dominar a língua falada pelos brasilianos. Numa passagem para
nós muito significativa, Schmalkalden registrou aspectos religiosos e lingüísticos em estreita
relação, inclusive no que tange a tradução do Catecismo Brasiliano. Segue o relato:
Os brasileiros (...). No tocante à sua religião, não conhecem Deus nem Sua
palavra, não tendo em sua língua nenhuma palavra, com a qual possam
expressar corretamente o nome de Deus. Os cristãos brasileiros chamam a
Deus de Tupana, proveniente da palavra Tupã, que pode significar tanto
um estampido ou uma ressonância da Suma Magnificência e, do mesmo
modo, os raios de Tupaberaba, que pode significar o luzir ou resplandecer
da Suma Magnificência. (...). Finalmente, no que se refere à sua língua,
esta não tem nada em comum com qualquer outra. Ninguém que se
dedique a ela, aprende a mesma facilmente, a não ser que algum dos
mestre-escolas ou leitores tencionassem prestar serviço em uma aldeia
onde morassem cristãos brasileiros. Não têm nenhuma escrita ou alfabeto
próprio em sua língua para copiar ou anotar alguma coisa (e) quanto aos
algarismos, não podem passar de cinco. (...). Todavia, para que esse povo
possa chegar a conhecer alguma coisa sobre Deus, primeiramente os
portugueses e, após estes os holandeses, aplicaram-se com muito zelo a
conhecer a língua (nativa), e à tradução — por seus religiosos — do
Pequeno Catecismo para o brasileiro (...).402
402 A viagem de Caspar Schmalkalden de Amsterdã para Pernambuco no Brasil. Editora Index: Rio de Janeiro, 1998, v. I, p. 30.
403 ibid., op. cit., p. 31.
119
Schmalkalden: “aqui seguem-se algumas palavras brasileiras, na forma como foram apontadas
por um brasileiro e por um mestre-escola”:404
Os jesuítas são dignos de louvor por terem organizado uma ortografia que
exprima todas as palavras e dicções de sua língua, muito próxima da
404 ibid.
405 MONTEIRO, Tupi, Tapuia e Historiadores, op. cit., p. 39.
120
Quanto à segunda causa do conflito apontada por Schalkwijk, diz respeito ao acordo
de comunhão eclesiástica estabelecida no Sínodo reunido em Dordt (ou Dordrecht) em 1618-
1619. Neste Sínodo foram estabelecidas, como base de união da Igreja Cristã Reformada, a
Confissão Neerlandesa, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dordt, as assim
chamadas “três fórmulas da união”, quer dizer, as três confissões adotadas pelo Sínodo
nacional das Igrejas Cristãs Reformadas.
Ora, numa das cartas do Presbitério de Amsterdã à Classe do Brasil encontra-se a
seguinte restrição com relação ao Catecismo Brasiliano: “é muito perigoso se desviar das
fórmulas gerais e comuns”.410 Também durante o Sínodo de Groningen, em 1643, os
deputados reunidos resolveram se empenhar para que “as Igrejas no Brasil, sendo uma com as
Igrejas-mãe nas Províncias Unidas dos Países Baixos, também pudessem preservar as mesmas
fórmulas de confissão, catecismos e liturgia, e que o catecismo provisório fosse retirado”.411
Portanto, apesar da Igreja Cristã Reformada no Brasil holandês ter reafirmado a sua estrita
fidelidade às três fórmulas da união, isto não foi suficiente para desfazer os temores da sede
da Igreja na metrópole. O fantasma dos cismas parecia falar mais alto às consciências, o que
reforçava o zelo ortodoxo. Para Schalkwijk, a Igreja temia o desvirtuamento das três fórmulas
da união adotadas pela Igreja Reformada; o que, diga-se de passagem, já vinha preocupando
as Províncias Unidas desde a publicação do catecismo dos arminianos, com idéias contrárias
às três fórmulas da união.
E, por fim, para Schalkwijk, a terceira e mais importante causa do conflito repousava
no ineditismo da missão em si: a experiência inaudita da empresa missionária reformada em
partes do Novo Mundo, o conhecimento precário de uma alteridade cultural irredutível, tudo
isso repercutia na falta de tato de uns e de outros nas questões relativas à efetivação dos
trabalhos.
Como afirmei, não pretendo aprofundar o estudo do jogo de poder entre Igreja e
Estado nas Províncias Unidas calvinistas, tensões que se fazem presentes no problema do
Catecismo Brasiliano. O Catecismo, com efeito, pode ter sido a fonte desencadeadora de
tensões veladas entre Estado e Igreja nas Províncias Unidas; mas acredito que todo o
empenho da Igreja em evitar que o Catecismo viesse a lume respondia a questões pertinentes
a uma outra esfera de litígios que não o político.
É certo que o conflito Estado/Igreja foi instaurado depois que a Companhia das Índias
Ocidentais, contrariando deliberações dos poderes eclesiásticos superiores, mandou imprimir
410 Carta da Classe de Amsterdã à Classe do Brasil 10/11/1641, In GAA-ACA 39:98 ss., apud SCHALKWIJK, p. 326.
411 Atas dos deputados do Sínodo de Groningen 20/4/1642, apud SCHALKWIJK, p. 327.
123
“faltas” apontadas pelos examinadores do manuscrito, nada mais seriam que exemplos
concretos destes desníveis ou mesmo desvios que os tradutores se viam forçados a realizar, o
mais das vezes conscientes dos riscos das “fraturas” entre significantes e significados
David van Doorenslaer, em sua já referida carta, aludiu, como vimos, à necessidade de
proceder a “esses desvios” dada a ausência de palavras adequadas em língua brasiliana para
tratar das questões da redenção. O que se pode perceber de sua explicação é que ele
aparentemente usou termos muito sintéticos e resumidos para tratar da questão da redenção, o
que não agradou aos examinadores. Argumentou ele que, “na própria Escritura todo o
trabalho de redenção se expressa muitas vezes somente na palavra ‘sofrimento de Cristo’”, e
que por isso “maravilhava-se de que a Holanda tanto se assustasse”.416 O “susto” dos
examinadores dizia respeito às palavras que laconicamente Doorenslaer usara para falar da
redenção expiatória de Cristo na cruz, lembrando que a redenção e a imputação da justiça
divina ao homem eram pontos centrais da teologia reformada, em confronto com a salvação
pelas obras tradicionalmente defendida pela teologia oficial da Igreja Católica Romana. Daí
que o medo de cismas e heresias, que está na origem da censura ao Catecismo Brasiliano — e
talvez também na origem da reprovação do primeiro catecismo, o de Soler — tenha, neste
caso, um leve teor antipapista ou anticatólico.
De qualquer modo, David van Doorenslaer — tal qual Anchieta —
416 Carta de 15/6/1642, In: GAA-ACA 33:90, apud SCHALKWIJK, op. cit., p.323.
417 BOSI, op.cit., p.31.
418 ibid.
125
A carta do pastor David van Doorenslaer — documento que constitui, até o presente
momento das pesquisas, uma das poucas pistas para analisarmos a transposição da mensagem
cristã reformada para o interior dos códigos Tupi, ou mais precisamente, para o interior da
língua geral —, esta carta foi escrita porque a Companhia das Índias Ocidentais,
desconsiderando o parecer do Presbitério de Amsterdã, mandou imprimir o Catecismo
Brasiliano. Nesse ano, 1641, era ano de reunião de vários Sínodos provinciais. Dessa forma,
os vários líderes religiosos e dirigentes de igrejas tomaram conhecimento da ordem de
impressão do já polêmico catecismo, inflamando-se contra a decisão da Companhia de fazer
publicar um documento de teor teológico-doutrinário já examinado, censurado e reprovado
pela Igreja. Nas atas do Sínodo Sul-Holandês de 1641 consta que:
Foi julgado que aquela Cia. [das Índias Ocidentais]; se não tinha
competência para tal iniciativa, muito menos para mandar imprimir em
algumas línguas sem o exame e aprovação dos respectivos Sínodos dos
Paises Baixos, devendo ser avisada que em assuntos relativos á instrução e
ordem tem ela de ir de uniformidade, parecer e conselho com a igreja da
Metrópole. Pediu-se aos Senhores XIX e depois aos Diretores da Câmara
de Amsterdã que entregassem o exemplar a este Sínodo, a fim de ser
examinado e mandassem suspender a impressão do mesmo. E visto não
haver chegado resposta alguma satisfatória, oficiou-se sobre isso aos Altos
e Poder. Srs., os quais mandaram imprimir em Enckhuysen, para fazerem
suspender a impressão até nova ordem e resolveram comunicar á
Assembléia dos XIX tudo que se passou aqui sobre o assunto. Fica isso
entregue á direção e cuidados dos Deputados ordinários.420
religiosa.426 Todavia, convém notar duas referências sobre “catecismo” na ata da Classe da
Igreja Reformada no Brasil, de julho de 1644. A primeira diz que:
resolve a Assembléia que por toda a parte deve se fazer uma predica sobre
o catecismo e deve-se também incumbir os Deputados, si fôr preciso, de
chamar por carta ao fiel cumprimento dos deveres aos predicantes,
conselhos eclesiásticos e aos membros ordinários.427
mas não apenas. Esse costume se reproduziu na colônia. Nieuhof, ao escrever sobre o estado
da Igreja Cristã Reformada no Brasil holandês, destacou que:
O nosso culto religioso, tanto no que respeita à doutrina como à prática, era
estritamente regulado pelas prescrições do Sínodo Nacional de Dordrecht,
dispensando-se especial atenção à instrução das crianças, às quais todos os
domingos à tarde se explicava o catecismo tanto no Recife como na Cidade
Maurícia.430
Frei Manuel Calado, ao escrever “meninos”, não explicita se os tais eram filhos dos
portugueses, ou crianças índias. Entretanto, baseada em documentação do período — que
afirma que a missionação reformada entre os portugueses nunca foi possível, salvo exceções
via casamento —, acredito que os tais “meninos” que se achavam de cartilhas em punho eram
crianças filhos e filhas dos brasilianos. Da mesma forma, quando os predicantes colocaram
em discussão a questão dos mestres-escolas ensinarem as crianças as perguntas e respostas do
catecismo, acredito que estavam se referindo as crianças brasilianas, a quem tinham sido
designados muitos professores encarregados de sua alfabetização e instrução religiosa, e que
ainda não estavam familiarizados com o novo material. Caso contrário, não caberia levantar a
questão na Assembléia.
Importa lembrar, ainda, que os predicantes na colônia não foram proibidos de usar o
Catecismo Brasiliano. A Companhia apenas os advertiu sobre como bem usá-lo, isto é, que o
fizessem de acordo com os “extratos anexos sob letra L”.435
Esses meninos brasilianos eram já homens feitos quando o Padre Antônio Vieira,
depois da expulsão dos neerlandeses, chegou em missão de “reconhecimento” à Serra de
Ibiapaba, em 1660. Deles escreveu o jesuíta:
437 DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 127.
438 Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, op. cit., In:VIEIRA, Escritos instrumentais (...), op.cit., p. 133 e 180-81.
439 O catecismo foi publicado na cidade de Enkhuizen, Holanda, em 1641, porém nunca foi encontrado um único exemplar. Ele já foi
procurado nos arquivos sinodais na Holanda, num dos arquivos reais da Holanda, no catálogo central da Biblioteca Real de Haia, nos
arquivos de Siegen e Kleve na Alemanha, na Biblioteca do Vaticano, no Bristish Museum em Londres, no antigo Missionary Research
Library em Nova York.
131
Assim, constatamos, mais uma vez, que a história dos índios pós-colombianos só pode
ser entendida a partir do entrelaçamento com a história européia; e que é importante
identificarmos os processos, as negociações e os instrumentos através dos quais se
processaram as transformações por que passaram os grupos indígenas em contato com as
sociedades ocidentais do Velho Mundo.
E, por fim, como tudo o que se transmite muda — “(...) porque os receptores, de
maneira consciente ou inconsciente, interpretam e adaptam as idéias, costumes, imagens e
tudo o que lhes é oferecido”441 —, restaria uma última pergunta, que formulo parafraseando
Alfredo Bosi: atenderia o Deus dos brasilianos reformados pelo mesmo nome do Deus dos
inacianos? Os capítulos seguintes buscam lançar alguma luz sobre os problemas concernentes
à recepção indígena da fé reformada.
440 SILVA, Juan da. O. F. M., Advertências importantes acerca del Buen govierno y administracion de las Indias. In: BOXER, Charles R.
Os holandeses no Brasil 1624-1654. São Paulo: Companhia Nacional, 1961, p. 191.
441 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 249.
132
CAPÍTULO 3
SOLA SCRIPTURA: A (RE)EVANGELIZAÇÃO DOS BRASILIANOS NA LEI DE
CALVINO
europeus, ela não aborda diretamente as alianças e conflitos entre as partes; certamente, ao
longo do trabalho, esta discussão é pontuada aqui e acolá, visto que se trata, afinal, de um
período da história colonial marcado de forma indelével por inúmeras alianças e conflitos
interétnicos. Basta lembrar que foi nesse período que viveu Felipe Camarão, elevado por
Varnhagen à categoria de “herói nacional” por ter lutado ao lado dos portugueses no conflito
luso-holandês. Pedro Poti e Antônio Paraupaba, da mesma nação indígena que Camarão,
certamente teriam sido alçados também a esse mesmo panteão, não fosse o lado oposto que
escolheram na guerra: perfilados ao lado dos neerlandeses, foram significativamente
desprezados pela historiografia tradicional e reduzidos, à condição de traidores.
Mas também não é sobre heróis e traidores que versa esta história. O conflito luso-
holandês travado na América hispano-portuguesa no século XVII, como já disse, obrigou os
índios da nação Potiguar a se postarem de um ou de outro lado. Até aqui, nenhuma novidade,
não fosse a questão religiosa — que cindia a cristandade ocidental desde a segunda década do
século XVI — reproduzir-se, de forma institucionalizada, em meio aos embates e combates
em terras coloniais.443 Vale lembrar, mais uma vez, que todos estes índios aldeados já tinham
sido catequizados pelas ordens religiosas da Igreja Católica: como incansavelmente repetia
Frei Manuel Calado, eles já haviam mamado aos peitos da Santa Madre Igreja. E agora
bebiam das fontes da heresia reformada.444 A escolha de um dos lados — português ou
neerlandês — pressupunha a escolha de uma ou de outra profissão de fé, pois não se lutava
apenas em nome do Estado ou do Rei, mas também — ou principalmente —, em nome de
Deus. De modo que, durante o conflito, a nação Potiguar viu-se cindida, também, por
questões de fé ou de credo: ao lado dos portugueses, postavam-se como crentes e soldados da
Santa Madre Igreja Católica; ao lado dos neerlandeses, perfilavam-se como crentes e soldados
da Igreja Cristã Reformada.
Cabe ressaltar que, mesmo em relação aos tapuias, de quem a historiografia costuma
afirmar que não se dobraram à Igreja Reformada, há fortes indícios em contrário. É verdade
que no ano de 1638, um líder tapuia — integrante da delegação que descera até o Recife para
negociar com os neerlandeses — impediu o importante pastor Soler de orar por eles. A
postura deste líder parece ter informado o olhar de muitos pesquisadores quanto à recepção do
calvinismo por parte dos tapuias; como o de Gonsalves de Mello, por exemplo, ao afirmar que
os tapuias nunca “mostraram paciência para ouvir de um ministro protestante as suas
443 A Religião Reformada já havia se feito presente na América Portuguesa no século XVI com os huguenotes, na invasão da Baía da
Guanabara. Mas foi uma passagem curta e de forma não institucionalizada. Portanto, considero o período neerlandês como o primeiro
grande momento da Igreja Reformada no Brasil.
444 CALADO, op. cit., v. I e II, passim.
134
pregações”;445 ou ainda o de Boxer, que escreveu: “Esses canibais jamais consentiram que os
holandeses os educassem ou civilizassem (...)”.446 Todavia, há fortes indícios de que, com o
passar do tempo, também os tapuias se abriram ao ensino da Igreja Cristã Reformada. Consta
numa nótula diária, datada de 1645, que Nhanduí, chefe tapuia, mandava avisar que aceitaria
um professor para morar com eles, a fim de aprender a língua da tribo e, assim, transmitir a
seu povo os ensinamentos do cristianismo reformado; poucas semanas depois, enviou crianças
para as escolas reformadas no Rio Grande.447
Para além (ou aquém) de todas as questões concernentes às relações de aliança e
conflito com os europeus, o problema que se coloca é o das características culturais do
cristianismo protestante indígena no século XVII, nas capitanias do norte do Brasil; ou, mais
precisamente, o problema da recepção, por parte de índios aldeados, de um novo modelo de
cristianismo — o reformado, em sua variante calvinista, tal como praticado nas Províncias
Unidas dos Países Baixos havia mais de um século. Abordo esta questão por acreditar que, a
partir da análise documental, é possível afirmar que o cristianismo reformado indígena
ultrapassou os limites “artificiais” de alianças esporádicas e circunstanciais, cristalizando-se
como crença reformada verossímil, quer dizer, enquanto uma espiritualidade vivida de modo
profundo e não superficialmente.
Há que se questionar, a essa altura, a generalizada e incongruente teoria do “verniz”. O
antropológo Robin Wright, no prefácio de Transformando os deuses, obra por ele organizada,
afirma sobre o resultado dos trabalhos ali apresentados:
449 ibid., p. 7.
450 ibid.
136
pois, com a expulsão dos neerlandeses, os índios calvinistas, conforme o relato de Matias
Beck “se haviam escapado e retirado de Pernambuco, [e] vieram por terra, em número
superior a 4000 almas, de Itamaracá, Parahiba e Rio Grande (...)”,451 e haviam-se exilado na
Serra de Ibiapaba, terra dos Tabajara, não obstante o termo de capitulação incluir uma
cláusula de anistia aos índios que haviam tomado o partido neerlandês. Para dar conta de tão
delicada missão, foi designado o Padre Antônio Vieira, que deveria marchar sertão adentro até
a Serra de Ibiapaba, tornado refúgio de tais índios calvinistas, afim de convencê-los a retornar
às aldeias do litoral e às tetas da Santa Madre Igreja. As observações relatadas por Vieira a
partir dessa missão diplomática constituem documentos históricos importantes sobre os índios
reformados.
A obra missionária de Vieira no Estado do Maranhão e Grão-Pará tivera início em
1652, quando, mais uma vez, destacara-se em seu trabalho, sendo por isso considerado grande
missionário e “efetivo fundador da missão no Estado do Maranhão”. O ilustre padre —
paladino da causa indígena tal como defendida pelos jesuítas — tornara-se Superior das
Missões do Estado do Maranhão de 1655 a 1661, quando dali foi expulso devido às pressões
dos senhores locais, defensores da escravidão indígena. Com efeito, vale notar que, quando
Vieira iniciou sua missão no Estado do Maranhão, já estava politicamente enfraquecido. Sua
influência na Corte portuguesa já entrara em declínio. Tempos antes, ele fora o dileto amigo
do rei D. João IV, sobre quem exercera a máxima influência na esfera política, mas não se
limitando a ela. De fato, a ascendência do padre sobre o ânimo do rei era a mais completa
possível: foi ele pregador da Câmara do rei e mestre do príncipe herdeiro, D. Teodósio.
Contudo, a despeito de já não gozar de influência junto à Corte lisboeta, Vieira empreendeu
uma viagem a Portugal para tratar especialmente de questões referentes aos índios do Estado
do Maranhão, contra a escravidão a eles perpetrada pelos senhores locais. Chegou à Corte em
1654, onde, apesar do ocaso do prestígio próprio, conseguiu uma audiência com o rei. João
IV, já muito doente, recebeu o dileto amigo de outrora, que expôs a situação dos índios
daquelas partes do Brasil. Conseguiu a simpatia do rei, que aprovou a organização de uma
junta especial de missões. Tal junta deveria tomar as medidas relativas aos índios do estado
do Maranhão, apontadas por Vieira.
Mas voltemos à tardia missão diplomática do padre junto aos potiguaras calvinistas
auto-exilados. Essa missão de Vieira gerou algumas viagens até a Serra e resultou, como
disse, num documento extraordinário sobre os índios reformados: a Relação da Missão a
451 Carta de Matias Beck, escrita em Barbadas em 8 de outubro de 1654. MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit., p. 445.
137
Esta era a vida bárbara dos Tobajaras de Ibiapaba, estas as feras que se
criavam e se escondiam naquelas serras, as quais foram ainda mais feras,
depois que se vieram ajuntar com elas outras estranhas e de mais refinado
veneno [os ensinamentos calvinistas], que foram os fugitivos de
Pernambuco.455
Mas, agora, a condição espiritual dos tabajaras se alterara sobremaneira; isso porque,
ao se juntarem a eles os índios pernambucanos, estes não somente ensinavam-lhes as
doutrinas calvinistas como lhes convenceram a viver de acordo com os ensinamentos
reformados: “desta maneira, dentro em poucos dias foram uns e outros semelhantes na crença
e nos costumes (...) eram verdadeiramente aquelas aldeias uma composição infernal, ou
mistura abominável de todas as seitas (...)”.458 Porque aquilo que os pernambucanos
adotados, em oposição a Igreja Católica e a tudo o que envolvia a sua doutrina de salvação
pelas obras, passando pela confissão auricular e pela adoração das imagens.
Senão vejamos. Conta-nos Vieira que, no tocante à veneração das imagens e outras
coisas tidas como santas pelos católicos, os índios se comportavam exatamente como os
calvinistas e luteranos: “na veneração dos templos, das imagens, das cruzes, dos sacerdotes e
dos sacramentos, estão muitos deles tão calvinistas e luteranos, como se nasceram em
Inglaterra ou Alemanha”.462 Sola fide, portanto.
Também entre eles é possível perceber a dicotomia Igreja falsa versus Igreja
verdadeira (e, certamente, a falsa era a Igreja Católica). Lamentava o padre que “estes [os
pernambucanos] chamam à Igreja [católica], igreja de Moanga, que quer dizer, igreja falsa
(...)”.463 E, obviamente, se esta era a falsa Igreja, falsa também era toda a sua doutrina: “(...) e
à doutrina, [chamam] morandubas dos abarés, que quer dizer patranhas dos padres (...)”.464
Tanto criam assim, afirma Vieira, que os índios da Serra que passaram a freqüentar a missa e
a ouvirem os ensinamentos dos padres sofriam o deboche e o escárnio por parte dos índios
reformados: “(...) e faziam tais escárnios e zombarias dos que acudiam à Igreja a ouvir a
doutrina, que muitos a deixaram por esta causa”.465 Ainda segundo Vieira, um índio chegou a
confessar que nada o entristecia mais do que ser cristão [católico], e ter recebido o batismo.466
Ademais, não se confessavam aos Sacerdotes: “O sacramento da confissão é o de que mais
fugiam, e mais abominavam (...)”.467 E era claro para eles o porquê abominar tal sacramento
da Igreja Católica: eles haviam aprendido, e, segundo Vieira, ainda havia por este tempo,
quem entre eles ensinavam que “confissão se havia de fazer só a Deus, e não aos homens”.468
Solo Dei.
O ritual católico também era motivo de deboche: “Foram testemunhas certos
Portugueses, que vieram à Serra, que a tempo que o padre levantou a hóstia, um por zombaria
dos que batiam nos peitos se pôs a bater na parede da Igreja.”469 Não aceitavam a Extrema
Unção. “alguns dos quais acabaram com os sacramentos daquela hora, [da morte] e com
grandes esperanças de sua salvação; e outros, para temor dos mais, com evidentes sinais de
sua perdição e condenação eterna”.470
Temos notícia de que outros agrupamentos indígenas parecem ter adotado a cultura
religiosa protestante para além de um leve verniz de superfície. Por volta de 1655, o padre
Antônio Ribeiro foi chamado ao Ceará com a missão de apaziguar “certa rebelião dos
índios”,471 onde, segundo ele, os encontrou, “(...) na mesma confusão e miséria em que
estavam os de Ibiapaba, e se pode cuidar, ainda maior, pela maior vizinhança e comunicação
que haviam tido dos holandeses (...)”.472 Posto isto, acredito poder afirmar que a catequese
reformada foi eficiente em estabelecer a distinção entre as duas Igrejas e fazer com que os
índios, por sua vez, entendessem e aceitassem a Igreja Cristã Reformada como a verdadeira
Igreja, rechaçando assim a doutrina da Igreja Católica Romana a ponto de se referirem aos
ensinamentos doutrinários dos padres como estórias mentirosas, ou “patranhas dos abarés”.473
Mas há que se reconhecer que a catequese inaciana não foi de todo um fracasso. Vieira
diz que muitos abjuraram dos erros, receberam o batismo e oficializaram suas uniões no
legítimo matrimônio: “muitos também receberam em legitimo matrimônio as mulheres com
quem viviam em pecado; outros tocados da heresia abjuraram o erro ou ignorância, e se
reconciliaram com a Igreja”.474 Contudo, a despeito desta atitude de reconciliação por parte de
alguns, no geral “o corpo estava doente”, como constatava o padre. E o pior deste mal é que
era contagioso: “Assim que, ainda que o corpo geralmente estava tão enfermo, e tão
contagioso, a muitos dos membros aproveitavam os remédios, e a muitos os preservativos”.475
A partir de então, duas Igrejas passaram a coexistir em Ibiapaba. Com o passar do
tempo, e diante das dificuldades de desenvolver o trabalho catequético entre os índios da
Serra, os padres Antônio Ribeiro e Pedro Pedrosa, integrantes da missão, receberam ordens de
deixar o local e retornarem ao Maranhão, e que levassem consigo os índios que os quisessem
seguir. Tal resolução foi recebida pelos índios Principais com indignação, por não quererem
abandonar suas terras. A situação parece ter se tornado sobremodo tensa, a ponto dos índios
Principais tramarem contra a vida dos ditos padres.
Os acontecimentos da Serra de Ibiapaba eram, sem dúvida, importantes para a Coroa e
a Igreja. De Sua Majestade e do Padre Geral vieram cartas ao governador D. Pedro de Mello,
suspendendo a ordem de retirada dos padres e dos índios para o Maranhão. As autoridades
superiores ainda ordenavam ao governador que “o seu primeiro cuidado fosse procurar que na
Serra de Ibiapaba estivessem alguns religiosos da Companhia de Jesus para terem á sua conta
471 VIEIRA, Antônio. Cartas do Brasil. organização e introdução João Adolfo Hansen, São Paulo:Hedra, 2003, p. 187
472 Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, op. cit., p.156.
473 ibid., p. 167.
474 ibid., p. 171.
475 ibid.
141
e obediência aqueles Índios (...).”476 Vieira, agora como Superior da Missão, enviou, portanto,
novas ordens aos padres e, com estas, cartas aos Principais dos índios. Nestas cartas, Vieira
afirma ser seu intento satisfazer aos desejos deles de permanecerem em suas terras; mas, para
que isso se tornasse possível, impunha uma condição: que eles se reunissem em uma só
Igreja:
Com as novas ordens que se mandarão aos padres, foram também cartas
aos Principais do novo Superior da Missão, em que lhe diziam, que o seu
intento e gosto era dá-lo em tudo o que fosse justo, e que suposto o amor
que tinham às suas terras, que nelas ficariam com eles os padres para os
doutrinar, com tanto que a esse fim se unissem todos, e se ajuntassem em
uma só Igreja.477
muito maior graça de Deus para os índios os aceitarem, e pôr em execução (...)”.481 A fim de
alcançarem esta mercê, tomaram por padroeiro desta missão a São Francisco Xavier, a quem
se fez uma novena, e muitos outros exercícios espirituais. Esperava-se que, assim como Deus
havia, através deste santo, realizado tantos milagres de conversão na Europa, África e Ásia,
ouvisse a intercessão dele em favor desta parte corrompida da América.482
Iluminados, portanto, ao término destes exercícios espirituais, tomaram as medidas
cabíveis para que a evangelização na Serra tivesse êxito, ou, ao menos, transcorresse com
normalidade. A primeira e estratégica providência, logo executada, foi a retirada dos índios
pernambucanos da Serra, conforme relato de Vieira: “a primeira que se resolveu, e executou
logo, foi que todos os índios de Pernambuco saíssem e fossem para o Maranhão”.483 Ora, por
que se fazia necessária a retirada dos índios potiguaras da Serra? Não precisavam, também
eles, serem reformados, quer dizer, trazidos de volta aos peitos da santa Madre Igreja?
Certamente. Mas, juntos, pernambucanos e tabajaras, eram fortes e em grande número. Era
preciso, portanto, dividi-los para desestabilizá-los e, assim, enfraquecê-los. Também era
preciso frear o processo de catequese reformada de índios tabajaras por índios potiguaras: “e
os da serra, sem o exemplo e doutrina dos pernambucanos, que eram os seus maiores
dogmatistas, ficarão mais desimpedidos e capazes de receber a verdadeira doutrina e de os
padres lhes introduziram a forma de vida cristã”.484
Numa bela imagem de contraste cunhada pelo próprio Vieira, os índios exilados, ao
que parece, eram calvinistas não como a murta, mas como o mármore485; e, ao se instalarem
na Serra, foram transformando em pedra também aqueles que, já “endurecidos com a
contrária [a religião Cristã Reformada], se lhes não imprimia [os ensinamentos católicos]”.486
Assim se refere Vieira aos tabajaras da Serra, doutrinados pelos índios pernambucanos; ou
seja, o padre observa que a religião reformada havia tornado inflexíveis — “endurecidos” —
na crença calvinista aqueles índios, a ponto de já não ser possível incutir-lhes os sãos
ensinamentos da doutrina e dos dogmas católicos. Daí Vieira desejar tais “catequistas” o mais
longe possível da Serra. Quanto aos pernambucanos, o seu deslocamento para o Maranhão os
colocaria diretamente sob a tutela das autoridades portuguesas; e, então, caso não se
sujeitassem às autoridades religiosas e não cumprissem suas obrigações, conforme haviam
481 ibid.
482 ibid.
483 ibid., p. 189.
484 ibid.
485 CASTRO, Eduardo Viveiros de. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, São Paulo,
v.35, 1992, p. 35.
486 Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, op. cit., p. 189.
143
prometido, poderiam ser obrigados pela força. Enfim, o que se esperava dessas medidas era,
conforme Vieira, “grande quietação e proveito espiritual de uns e outros (...)”.487
Surge uma interessante questão: o que teria levado estes índios a tamanha firmeza
doutrinária? O que os tornara tão convictos de uma crença, a ponto de, mesmo em face do
abandono por parte de seus mestres espirituais, permanecerem firmes, constantes e ainda
levarem avante o proselitismo e o ensino catequético da doutrina calvinista?
Levanto duas hipóteses complementares. Primeira: a real conversão destes índios ao
protestantismo. Afinal, não se questiona que um sem número de católicos tenham efetiva e
sinceramente se convertido ao protestantismo na Europa; por que, então, deveríamos
questionar a conversão verdadeira de índios ao protestantismo? Por que, diferentemente de
tantas outras etnias que realizaram trânsitos religiosos assumidos, os ameríndios ficariam
“presos” às suas antigas religiões, ou então “camuflados” debaixo de um disfarçado verniz
religioso, ou quando muito mesclariam suas crenças “originais” com o cristianismo, seja este
reformado ou católico? Evidentemente, não estou negando — o que seria um despropósito —
a ocorrência de mesclas religiosas e culturais nascidas destes encontros; mas há que se
considerar, com base em evidências documentais, a existência de índios verdadeiramente
convertidos ao protestantismo, quer dizer, com espiritualidade vivida, clareza doutrinária e
firmeza teológica suficiente para inquietar os missionários inacianos, e especialmente um
homem com a sagacidade de Antônio Vieira.
A segunda hipótese explicativa da constância da “alma selvagem” no credo calvinista
tem origem na fonte dessa catequese, quer dizer, na transmissão dos ensinamentos
reformados, efetivamente, pela palavra escrita, e mais especificamente pela Palavra de Deus:
a Bíblia Sagrada. A eficácia e a eficiência, portanto, da ação missionária reformada devem ser
entendidas, a meu ver, a partir dessa perspectiva: a da leitura da Bíblia, ou de porções dela,
bem como de outras literaturas religiosas, pelos e para os índios. Afirmo a maior relevância
destas práticas, porque presumo que dela derive a primeira hipótese: a da conversão sincera.
Na perspectiva neerlandesa, a alfabetização e o letramento dos índios era uma
condição sine qua non de uma sólida evangelização. Pedro Souto Maior concordava ser este o
motivo da fidelidade de Pedro Poti e Antônio Paraupaba ao governo neerlandês e à Religião
Cristã Reformada: “Vede o resultado da inteligente propaganda dos holandeses pelas escolas
e pela religião”.488
487 ibid.
488 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op.cit. p. 432.
144
É certo que muitos índios católicos também aprenderam a ler e a escrever. Exemplo
clássico é Felipe Camarão. Mas há que se considerar as especificidades pedagógicas da
catequese inaciana em contraposição à catequese reformada. Ou seja, aquilo que o historiador
Vicente Rafael chama de a “dimensão oral da conversão”,489 característica da catequese
inaciana na América portuguesa, em que a voz tinha a primazia sobre a escrita na transmissão
do evangelho.490 A tradução da doutrina para a língua geral não tinha como objetivo a
disponibilização de literatura na língua vernácula para a leitura dos conversos. John Monteiro
afirma que, no Brasil colonial, a escrita não visava a instrução dos índios, mas sim
disponibilizar para os “leitores missionários as fórmulas e os diálogos a serem postos em ação
no encontro entre abarés, ou padres, e índios”.491 O já referido catecismo de Mamiani, editado
em 1698, fora elaborado com o claro e declarado propósito de ajudar os “missionários novos
serem ouvidos e entendidos dos índios, que é o fim principal que se pretende, pois por falta
dele não se declaram aos índios muitos mistérios e muitas coisas necessárias a um Cristão”.492
Somente em 1709 é que, segundo Monteiro, um catecismo parece ter sido elaborado visando a
leitura pelos próprios índios.493 Trata-se do Katecismo Índico da Língua Kariri, de Bernardo
de Nantes: ao prefaciá-lo, o seu autor diz que os índios, “já filhos da Igreja, estão sem dúvida
a estas horas pedindo se lhes parta o pão da Doutrina Cristã em sua língua”.494
A prática da evangelização inaciana na América portuguesa repousou sobretudo na
oralidade e na encenação. De acordo com os relatos dos jesuítas, no trabalho catequético com
os índios das missões, a palavra falada em voz alta predominava sobre a leitura da palavra
escrita, muito embora os índios se mostrassem fascinados com o ato de ler e escrever. Na
verdade, os jesuítas, entre eles Cardim, desde o século XVI prestavam atenção às formas
retóricas adotadas pelos “índios Principais” e, em muitos casos, empregaram este estilo na
pregação do Evangelho.
Ao contrário da pedagogia jesuítica — bem como da missionação levada a efeito por
outras ordens regulares católicas em diferentes regiões do Brasil colonial —, a especificidade
da catequese calvinista repousava na outra extremidade dessa prática: o predomínio da
489 RAFAEL, Vicente. Contracting Colonialism: Translation and Christian Conversion in Tagalog Society under Spanish Rule, Ithaca,
Cornell University Press, 1988, p. 39-42.
490 Diferentemente das missões orientais católicas, em que a tradução da doutrina em línguas nativas permitia a sua leitura pelos conversos,
no Brasil a escrita não cumpria esta mesma função, antes colocando à disposição dos leitores missionários as fórmulas e os diálogos a
serem postos em ação no encontro entre abarés, ou padres, e índios. É importante ressaltar, ainda, que as traduções usadas pelas missões
orientais que estendia a leitura aos fiéis eram em geral de textos doutrinários, e não da Bíblia.
491 MONTEIRO, Tupis, Tapuias e Historiadores, op.cit., p. 41.
492 MAMIANI, op. cit.
493 MONTEIRO, Traduzindo tradições, op. cit., p. 12.
494 NANTES, op. cit.
145
palavra escrita (e impressa) sobre a falada. Não se trata propriamente de uma oposição
irredutível, mas de uma diferença de ênfase.
Cabe apontar, porém, que tal método — o da evangelização pela leitura em detrimento
da evangelização pelo ouvir a Palavra —, praticado pelos reformados nas possessões do Novo
Mundo, em nada diferia dos aplicados em terras majoritariamente católicas do Velho Mundo.
Não obstante, é importante ressaltar, de acordo com Jean-François Gilmont e Dominique
Julia,495 que o modelo posto pela historiografia clássica — opondo o protestantismo como
uma religião do escrito, baseada na leitura pessoal do texto bíblico, ao catolicismo como uma
religião da palavra e do ouvido, e, portanto, da mediação clerical — esse modelo
historiográfico atualmente já não é aceitável. A oposição, neste atual momento de pesquisas,
polarizou-se, na verdade, entre catolicismo romano e luteranismo, por um lado, e os
protestantismos reformados — calvinista e pietista — por outro, pelo menos até o final do
século XVII. O jogo das práticas e das mediações são mais complexas e mutantes em ambos
os campos: nem todo catolicismo privilegiaria a difusão oral das doutrinas e crenças; nem
todo protestantismo enfatizaria a leitura generalizada da Bíblia.
No norte da Europa e por toda a Alemanha luterana, a Bíblia era um livro da paróquia,
dos pastores, dos candidatos ao ministério. A sua leitura não deveria ser livremente permitida
àqueles que, porventura, pudessem realizar leituras heterodoxas e perigosas. Portanto, era
essencial para o luteranismo — tanto quanto para o catolicismo romano —, que a palavra
clerical mediasse a exegese, auxiliada por todos os livros que tinham como função indicar a
correta interpretação da Escritura. Tratava-se, sobretudo, de um cuidado hermenêutico-
político: não obstante Lutero, nos primeiros tempos da Reforma, ter manifestado o desejo de
que todo cristão estudasse a Bíblia por si mesmo, a Guerra dos Camponeses e o surgimento de
uma variedade de interpretações heterodoxas da Escritura mudaram o tom de seu discurso: ele
queixou-se certa vez “de que os camponeses alemães faziam uma interpretação errada de seus
ensinamentos quando afirmavam que a servidão deveria ser abolida porque Cristo morreu por
todos os homens”.496
Em terras calvinistas e puritanas, a prática da leitura tomou rumos completamente
opostos. A despeito do mesmo temor sentido pelo reformador Calvino, de que a interpretação
da Bíblia ficasse a critério de cada um, venceu a máxima da reforma protestante que
enfatizava o contato pessoal e familiar com o texto bíblico:
495 CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger. Introdução, In: CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger, (org.), História da Leitura
no Mundo Ocidental. São Paulo: Ática: 2002, v. I, p. 34.
496 BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Ed. UNESP, 2002, p. 137.
146
500 GILMONT, Jean-François. Reformas Protestantes e leitura. In: CAVALLO e CHARTIER. (Org.), op. cit., v. II, p. 62.
501 ibid.
502 Em 1637 foi feita uma nova tradução da Bíblia para o holandês, baseada no hebraico e grego, e que serviu inclusive para unificar a
língua holandesa, moldando a unidade de pensamentos. Essa nova tradução foi, portanto, usada nas missões holandesas no Brasil.
503 Nótula diária de 23/11/1640. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
504 CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger (Org.), Práticas da leitura, São Paulo: Estação Liberdade, 2 ed., 2001. p.
87.
148
À primeira vista pode parecer mera especulação o discorrer sobre índios leitores na
América hispano-portuguesa em tempos de dominação neerlandesa. De fato, não temos,
infelizmente, relatos autobiográficos sobre experiências de índios com o mundo da leitura, a
exemplo de um Jamerey-Duval.506 O que temos são as cartas de Pedro Poti e Antônio
Paraupaba507, documentos que não tocam, é verdade, nesse assunto. Mas acredito que, a partir
destes escritos e de outros relatos a respeito desses mesmos índios, é possível discutir a
prática da leitura pelos índios reformados; afinal, a forma como se comportam como
convertidos à Religião Cristã Reformada não nos autorizaria a pensá-los enquanto leitores
intensivos?508
A aparente possibilidade que qualquer pessoa tem de ascender ao mundo da leitura,
desde que lhe sejam proporcionados os meios adequados, faz com que o ato de ler passe
509 HÉBRARD, Jean. O autodidatismo exemplar. Como Valentin Jamerey-Duval aprendeu a ler? In: CHARTIER (Org.), op. cit., p. 35.
510 A Religião Reformada no Brasil ( ...), op. cit., p. 714.
511 O presbitério de Amsterdã era o responsável pela Igreja no Brasil holandês.
512 ARA-OWIC 51 e BPB 1636/3, apud SCHALKWIJK, op.cit., p. 273.
513 A Religião Reformada no Brasil (...), op. cit., p.714.
150
514 Segundo Frans Leonard, por conta da União Ibérica, os holandeses se confundiam e chamavam a língua portuguesa de espanhola.
Portanto, deve-se considerar, aqui, que esse catecismo foi elaborado na língua portuguesa. Mas acredito que devemos entender essa
língua “espanhola” ou “portuguesa” como a língua geral, ou, como diz John Monteiro, o “dialeto colonial”.
515 A Religião Reformada no Brasil (...), op. cit., p.715.
516 ibid.
517 Dezessete cartas, op. cit., p. 40.
518 A Religião Reformada no Brasil (...), op. cit., p. 722.
519 ibid.
151
autoridades do governo metropolitano. Restava, então, tentar por em execução o que restara
do plano inicial:
Da mesma forma, o Conselheiro Adriaen van der Dussen, em seu relatório de 1640 aos
dirigentes da Companhia, também relata os primeiros anos da missionação indígena pelo
predicante Doorenslaer:
Para instruir essa gente simples e ignorante, era desejo que se apresentasse
alguém que aceitasse estudar a língua usada por eles: a isto decidiu-se
finalmente o predicante David Doorenslaer, para aplicar-se inteiramente ao
estudo e tomar a seu cargo o ensino dos brasilianos, tendo sido designado
para predicante deles. Fixou residência nas Aldeias Jaocque e Pindaúna,
situadas próximas uma a outra, aldeias que agora se chamam Maurícia, na
Capitania da Paraíba, a qual é a mais importante de toda esta região.
Dedica-se ele com toda a diligência a aprender a língua dos brasilianos, no
estudo da qual já conseguiu muito progresso, realizando boa obra educativa
e dirigindo-os. Vai de tempos em tempos de aldeia em aldeia, visitando-as
e ensinando as crianças, batizando e casando.527
525 Nótula diária de 9/1/1638. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
526 Breve discurso sobre o estado das quatro capitanias (...), In: MELLO, op. cit., v.I, p. 107.
527 Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil (...), In: ibid., v.I, p. 184.
153
meio de suas aldeias, ensinou a infância, arrancou-os ao paganismo com o santo batismo da
Igreja Reformada e casou-os segundo o nosso rito”.528
Entretanto, cabe ressaltar que, muito antes do início efetivo e sistemático da
missionação calvinista entre os brasilianos, esta já vinha acontecendo, de modo “espontâneo”.
Numa carta de junho de 1636 aos diretores da Câmara Zelandesa, o predicante Soler informou
ter sido construída uma galeria no fundo do templo no Recife, onde ministrava, a fim de que
os índios pudessem ouvir a predicação.529 Joducos Stetten, predicante em Itamaracá no ano de
1636, informou aos Dezenove Senhores ter encaminhado vários índios para o batismo.530
Exemplo dessa evangelização ainda não “institucionalizada” é também o relato do mesmo
Stetten à Câmara de Zelândia, de agosto de 1635, informando que sua esposa apresentara
diversos brasilianos para o batismo.531
Mas voltemos àquela que considero a diretriz mestra na estratégia deliberada pela
Classe reunida no Recife em março de 1637 e reafirmada em janeiro de 1638: a alfabetização
indígena. Tal alfabetização tinha um propósito claramente definido: “a fim de ensinarem as
crianças e os adultos a ler e escrever e instruí-los nos elementos da religião cristã”.532 A
instrução religiosa, portanto, passava pela leitura. Lembremos ainda que, se parte do projeto
da missionação calvinista envolvia a elaboração de um catecismo, obviamente era preciso
capacitar os índios para a sua leitura, ou seja, alfabetizá-los; na verdade, a proposta
pedagógica dos calvinistas, como testemunham os documentos, objetivava mais que a
alfabetização (o saber ler), mas o letramento, quer dizer, o saber ler e escrever.533
Evidentemente, se o projeto, a médio ou longo prazo, previa a transformação de índios em
professores e predicantes, era fundamental ensinar-lhes não apenas rudimentos de leitura, mas
níveis mais elevados de domínio tanto dos códigos de leitura quanto de escrita.
Para pôr em andamento o projeto de alfabetização foi escolhido Dionisius Biscareto,
espanhol de nação e “homem muito bom”, segundo palavras de Soler.534 Trata-se, portanto, do
primeiro professor numa aldeia. Em 1641, temos notícia de que Dionisius era professor na
aldeia Carasse. Os Predicantes Kesselerius e Ketelius informaram ao governo que, com
relação ao trabalho de catequese indígena, “também foi decidido durante a reunião da Classe e
aprovado pelos Nobres Senhores que Dionísio de Biscarreta, professor da escola na Aldeia
Carasse, receberá um rancho de Tenente por causa de sua numerosa família (...)”.535 Essa
aldeia pertencia à Câmara de Goiana e está grafada Carace no Fastos Pernambucanos, de
Pedro Souto Maior.536 Por esse tempo, o trabalho de alfabetização desse professor já entrava,
portanto, no seu terceiro ano. Chamo a atenção também para a seguinte informação da citação
acima: “numerosa família”. O professor não estava só na aldeia onde ensinava, mas com sua
prole, que significa dizer a esposa e muitos filhos. Aliás, a convivência dos filhos dos
professores e predicantes com os filhos dos indígenas, nas aldeias, é um outro dado que deve
ser explorado na tentativa de (re)pensar a catequese e a alfabetização dos índios pelos
reformados: diferentemente dos padres celibatários, a mistura e convivência de proles
calvinistas e autóctones sem dúvida reforçavam liames societais mais “consoantes” à vida
comunitária tribal. Infelizmente, raros são os registros quanto a esse cotidiano.
Em primeiro de novembro de 1638, foi admitido o segundo professor para a tarefa de
alfabetização indígena, o proponente Thomas Kempius.537 Kempius, como vimos
anteriormente, já atuara no Brasil holandês como proponente para a Igreja de língua inglesa
em Serinhaém. Ausentara-se para a metrópole por problemas de saúde e retornou, quase um
ano depois, disposto a continuar seu trabalho de proponente. Visto não haver demanda de um
proponente de língua inglesa neste momento, a Classe reunida no Recife em 29 de outubro de
1638 decidiu examiná-lo para o preenchimento de um outro cargo de extrema necessidade, o
de professor de aldeia. Com efeito, “examinando-o, a fim de ver se tinha algum conhecimento
da língua portuguesa e achando-o assaz apto para dar instrução aos índios, a classe resolveu
empregá-lo nesse mister”.538 Apresentada a decisão aos dirigentes do Brasil holandês, Sua
Excelência e o Supremo Conselho aceitaram de pronto, concordando ser Kempius o candidato
ideal para juntar-se ao predicante David van Doorenslaer na tarefa de alfabetizar os
brasilianos numa das aldeias sob responsabilidade deste último:
535 Nótula diária de 5/6/1641. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
536 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit., p. 420.
537 Na documentação encontramos o nome desse proponente grafado de várias formas: Kemp, Kempius, Kempins, Hempius. Adotei a
grafia Kempius.
538 A Religião Reformada no Brasil (...), op. cit., p. 734.
539 Nótula diária de 1/11/1638. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
155
540 Nótula diária de 29/11/1640. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
541 A Religião Reformada no Brasil (...), op. cit., p. 756.
542 Nótula diária de 18/5/1639. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
156
Também numa carta a seu amigo Rivet, em Haia, ao discorrer sobre os professores e a
instrução indígena, informa que, quanto aos que vivem “perto da casa de campo de Sua
Excelência ficaram sempre na sua aldeia, e por isso também pude continuar entre eles os
Santos Exercícios todos os domingos”.544 Desta forma, acredito que alguns dos brasilianos
que foram indicados para professores nas aldeias eram fruto do trabalho incansável desse
predicante.
O predicante Edwards, que assumiu a responsabilidade sobre as aldeias de Goiana, em
1640, notificou a Classe, pela mesma ocasião de Soler, que, na aldeia onde estava morando,
também havia um índio apto ao ensino dos brasilianos.545 Neste caso, é provável que este
índio-professor fosse fruto do trabalho de Doorenslaer e dos professores Biscareto e Kempius,
pois esta aldeia até então estava sob a responsabilidade destes.
O trabalho de Soler, juntamente com seus professores, continuava a frutificar, pois, em
18 de janeiro de 1641, eles compareceram, novamente, à uma reunião do Governo para
pleitear a contratação de mais dois índios, capacitados para a educação de outros índios:
543 Nótula diária de 22/3/1641. ibid. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 18 maio 2006.
544 Dezessete cartas, op. cit., p.76.
545 A Religião Reformada no Brasil (...), op. cit., p. 756.
157
546 Nótula diária de 18/1/1641. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
547 Atas dos Sínodos e Classes do Brasil (...), op. cit., p. 778.
548 Conselho dos XIX a João Maurício de Nassau e Alto Conselho, 10/7/1641. In: WIC, O.C. Nr. 8. apud WATJEN, op. cit., p.359
549 Diário de Matias Beck, op. cit., p. 228.
158
guerra.550 Matias Beck, ao tratar com o Principal Amanijú Pitanga, informou-lhe que havia
trazido “um ministro para, na sua língua, dar-lhes a conhecer o nosso modo de vida, ações,
trato e proceder, instruí-los, a eles e a seus filhos, na santa palavra de Deus e na doutrina
cristã, (...)”.551 De modo que Kempius, provavelmente secundado por João Gonçalves, seguiu
com eles para a aldeia a fim de
Por seu turno, os professores-índios Álvaro Jacó e Bento da Costa começaram seu
trabalho de ensino em 1651, já bem adiantada portanto a guerra de Restauração, vencida
pelos luso-brasileiros nos dois decisivos confrontos de Guararapes. Ainda que indiretamente,
esses indícios esparsos em documentos de diferentes momentos da presença neerlandesa me
permitem afirmar a presença de mestres-escolas na Serra de Ibiapaba; isso porque, três anos
depois de finda a guerra, possivelmente estes professores, com muitos de seus alunos,
integraram o grupo de fugitivos que rumaram sertão adentro e serra acima. O que esclarece,
em parte, a firmeza doutrinária, os livros, e a leitura que tanto incomodou — para não dizer
preocupou — o arguto Padre Antônio Vieira.
Em suas narrativas, os cronistas neerlandeses também registraram impressões sobre a
catequese e a alfabetização nas aldeias. Todos eles foram unânimes quanto ao sentido e a
importância dessa obra para a conversão dos brasilianos: tratava-se de alfabetizar a fim de
inculcar-lhes a fé reformada. Gaspar Barléu — que não esteve no Brasil, mas que escreve sua
crônica sobre o período nassoviano embasado em documentação de época553 e em
testemunhos de pessoas que estiveram no Brasil holandês —, Barléu discorreu sobre a
importância da alfabetização para uma efetiva compreensão dos preceitos da fé reformada por
parte dos indígenas; nesse sentido, registrou a existência de muitas escolas nas aldeias, com o
fito de preparar a seara. E observou:
Pierre Moreau — cronista que viveu no Brasil holandês durante dois anos (1646-
1648), portanto já deflagrada a guerra de Restauração —, Moreau, dentre tantas coisas que
observou e registrou para a posteridade, narrou o desenrolar da missionação calvinista. Em
geral bem informado, este homem com ânsia pelo novo, por conhecer o “mundo de ver”,555
viu e faz ver em seus escritos a ebulição dos missionários reformados entre os brasilianos:
Como temos visto, a alfabetização dos “aborígenes” não era um fim, mas um meio. O
“letramento” era encarado pelos reformados calvinistas como uma forma eficaz de extirpar os
maus costumes indígenas e imprimir em suas consciências, de forma indelével, a pura fé
reformada por sobre as idolatrias e paganálias tanto das religiões indígenas quanto da católica.
Lembremos que a extirpação de maus costumes ou heresias através da educação não era uma
prática voltada apenas para a colônia e seus habitantes naturais; era uma política pedagógica
já implantada na Metrópole, neste momento, pelas próprias comunidades e a Igreja. Tanto
aqui quanto além-mar, era preciso educar para bem catequizar.
563 FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia: história da guerra brasílica. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001, p. 231.
564 ibid.
565 Nótula diária de 2/6/1638. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
566 Breve discurso sobre o estado das quatro capitanias (...), op. cit., In: MELLO, op. cit., v.I, p. 107.
162
aldeias onde estes missionavam. Dois predicantes dos brasilianos, Doorenslaer e Edwards,
representaram esse mesmo desejo à sua Excelência e aos Nobres Conselheiros na reunião de
27 de novembro.567 A resposta parece ter sido positiva, visto que o Governo apenas ressalvou
que “os predicantes das aldeias que gostariam de ter brasileiros de outros lugares em suas
aldeias deverão se dirigir a sua Excelência e não aos Capitães das aldeias”.568 E ainda, em
abril de 1645, os índios reclamavam a necessidade de maior número de predicantes e
professores em suas aldeias. Na célebre Assembléia dos brasilianos em Itapecerica, quando
os índios capitães das aldeias reunidos com os representantes holandeses Hamel e Bullestrate
apresentaram suas reivindicações, dentre as várias propostas integrantes deste documento,
uma tratava da missionação e alfabetização indígenas: “Rogamos humildemente a Vas. Exas.
se dignarem de nos prover dos necessários pastores (ministros protestantes) e mestres de
escola, como nos foi prometido pelos Nobres Membros da Assembléia dos XIX na dita
provisão (...)”.569
No entanto, da mesma forma como a Igreja no Brasil holandês, apesar da constante
necessidade de pastores, não admitiu em seu corpo eclesiástico a presença de predicantes
inaptos, assim também ocorreu com relação aos professores. Neste caso, além da exigência de
terem instrução religiosa adequada, exigia-se evidentemente que dominassem a língua dos
brasilianos. Foi o caso do candidato Jan Tak, que, em 1638, apresentou-se como candidato a
professor para as aldeias dos índios. Não obstante a crescente demanda de professores para
que a Igreja continuasse a expandir seu projeto catequético, o candidato Tak foi rejeitado por
despreparo. Não era prática dos predicantes o dobrar-se a demandas ou necessidades, por mais
prementes que estas fossem. De modo que, ao ser “examinado a fim de se ver si era apto a
servir de preletor nas Aldeias dos índios (...) se soube que ele ainda não tinha a necessária
instrução para esse fim, e também recebendo-se aviso de que chegava aqui sem instrução
religiosa, é recusado (...)”.570 Em contrapartida, muitos daqueles que começaram como
mestres de escola nas aldeias foram elevados a proponentes e predicantes dos indígenas. O
que me leva a afirmar, mais uma vez, a seriedade, a disciplina, o zelo com que se desenrolou a
missionação calvinista entre os indígenas no Brasil holandês. Por vezes ocorre-me pensar que
o sucesso da conversão da “alma selvagem” deveria funcionar como um espelho do sucesso
da ocupação como um todo.
567 Nótula diária de 27/11/1640. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 19 maio 2006.
568 Nótula diária de 18/1/1641. ibid.
569 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit., p. 419.
570 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 725.
163
alfabetização indígena não era parte de um projeto civilizador por ele mesmo, mas uma
ferramenta importante na implantação do calvinismo no Novo Mundo, da mesma forma que o
era em terras reformadas da Europa. A alfabetização, no contexto desse momento histórico,
deve ser entendida, portanto, como um instrumento funcional — porque deve ajustar-se à
mensagem religiosa —, e não como um meio de acesso ao saber e à cultura, coisa que só irá
acontecer mais tarde, ao longo dos séculos XIX e XX. Não era, portanto, o ato em si de ler o
que estava em jogo na catequese calvinista, mas sim o que ler e o modo de ler. Trata-se, antes
de tudo, de uma leitura devocional, piedosa, religiosa.
573 CAVALLO e CHARTIER. Introdução. In: CAVALLO e CHARTIER (Org.), op. cit., v. I, p. 34.
574 CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique,
Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ARTMED, 2001. p. 77.
575 BURKE, Cultura popular na Idade Moderna, op.cit., p. 273.
165
alfabetização indígena; daí também o porquê de investirem tanto na própria capacitação dos
naturais da terra para o ministério do ensino: a médio e longo prazo, eles deveriam atuar como
agentes multiplicadores no processo de alfabetização-evangelização.
Cabe observar que, nas possessões africanas, a tentativa de expandir a fé reformada
seguiu de perto o modelo brasiliano de alfabetização e disponibilização de literatura religiosa.
Do mesmo modo que em outros territórios da WIC, as possessões africanas também gozaram
de liberdade religiosa; mas, a exemplo do que ocorrera no Brasil, foi recomendado pelos
diretores da WIC que a religião reformada “fosse difundida, aprendida e assegurada nestas
terras”, e que se “ensinassem as populações a escrever”.576 Para tanto, recomendava-se que
fosse enviado para Luanda um mestre-escola destinado a ensinar as crianças africanas a
escrever “(...) e, entre outras coisas prepará-las também para a religião”.577 Em Luanda, entre
os povos do Sonho e do Kongo, consta que foram distribuídos centenas de panfletos, livrinhos
e catecismos em língua portuguesa.578 Também em Malaca e Formosa, na Ásia, como já
apontado, foram elaborados catecismos para a evangelização dos naturais. Em geral, nas
possessões coloniais das Províncias Unidas calvinista, o modelo ideal do cristão era o de um
cristão letrado, capaz de beber diretamente das fontes da Palavra de Deus.
A leitura, como diz Chartier, tem a sua própria historicidade. Não se lê da mesma
forma em todos os tempos e em todas as culturas. O modelo dominante de leitura deste tempo
histórico de que trato é o da “leitura intensiva”. Essa forma de leitura prescinde de uma
grande quantidade ou variedade de textos para a sua prática; ao contrário, a leitura intensiva
submete o leitor a um corpus limitado e fechado de livros,
576 Rapport de la comission forme par les XIX pour étudier le pour et le contre de la séparation de Loanda d’avec le Brésil, 6 février 1642,
In: Louis Jadi. L’a Ancien Congo et l’Angola 1639-1655 […], tomo I, doc. 76, p. 200. apud RATELBAND. op. cit., 204-05
577 RATELBAND, op. cit., p. 205.
578 Toda esta literatura foi destruída numa grande fogueira, na praça da capital pelos religiosos católicos.
579 CAVALLO e CHARTIER, op. cit., In: CAVALLO e CHARTIER (Org.), op.cit., v. I, p. 28.
166
Para o calvinismo dos tempos da Reforma, esse corpus era constituído basicamente pela
Bíblia, “o livro fundamental da leitura coletiva, familiar e pessoal”,580 complementada pelos
livros de devoção, principalmente o breviário e o catecismo.581
Ao considerarmos todo o esforço dos predicantes em se prover professores para a
instrução dos índios, acredito ser lícito concluir que havia um corpus de textos cristãos à
disposição destes para a prática da leitura. E, de fato, a documentação da época aponta para a
existência de uma literatura religiosa, traduzida com a finalidade específica de doutrinação
dos índios. É o caso do já mencionado Catecismo Brasiliano, envolto em tantos mistérios e
conflitos; mas, além desse Catecismo impresso, possivelmente os predicantes e mestres-
escolas elaboraram um pequeno corpus de textos — talvez, manuscritos — de ensinamentos,
de devoção e de liturgia, a fim de conduzir a “alma selvagem” a uma determinada experiência
do sagrado cristão.
Exploremos alguns indícios documentais sobre os usos desses textos. Moreau
discorreu sobre uma tradução da Bíblia para a língua geral, o que teria causado enorme alegria
entre os brasilianos. Esta façanha, segundo o cronista, havia sido realizada por um jovem
predicante inglês (possivelmente Johannes Edwards, de quem tratarei mais adiante). Afirma
Moreau que esse predicante
didática religiosa elementar com a aprendizagem da leitura (...)”.584 Nesse sentido, temos
diversos registros, em vários tipos de documentos, da existência de um corpus de literatura
religiosa que compreende porções da Bíblia, dos Salmos, o Catecismo, todos traduzidos para a
língua geral. Mas devemos considerar com reticências informações como a de Moreau, que
afirma ter-se traduzido integralmente a Bíblia para a língua dos índios: descontando o exagero
do cronista, é mais plausível inferir que se trata de porções ou extratos selecionados das
Sagradas Escrituras, traduzidos e manuscritos para uso catequético; da mesma forma, a
quantia de 2.951 “livrinhos de perguntas”, apontados anteriormente como possíveis
exemplares do Catecismo Brasiliano, parece tratar-se, de fato, de material religioso diverso
elaborado para uso individual e coletivo na alfabetização dos brasilianos.
Portanto, é indubitável a crença que a Igreja Cristã Reformada depositava no poder da
leitura para um real entendimento da “história santa” e, conseqüentemente, para a conversão
sincera de homens e mulheres; daí executar com denodo a tarefa de iluminar o entendimento
dos índios via alfabetização: no limite, a conversão genuína e a decorrente certeza da salvação
pela fé decorreriam da capacidade de ler, compreender e aplicar a Palavra de Deus na
condução da vida individual. Por isso mesmo, como vimos, o esforço missionário incluiu, por
menor que fosse, a elaboração de um corpus literário religioso. Não nos esqueçamos dos
índios exilados em Ibiapaba, que lá chegaram portando seus preciosos livros devocionais,
possivelmente pequenos trechos bíblicos, porções dos Salmos e o Catecismo Brasiliano.
Krzysztof Pomian, saber “reconhecer essas manchas [de tinta sobre papel] como signos de
uma escrita, relacioná-las com os sons de uma determinada língua e compreender as
associações desses sons: relacioná-los por sua vez com o que significam, com o que designam
e com o que exprimem”.585
Não obstante, o fato de uma pessoa não dominar os códigos da leitura não significava
(como não significa) ser excluída do mundo da leitura: uma prática corrente desse momento
histórico era a leitura em voz alta, afim de que os excluídos da prática da leitura não o fossem
da fruição dela. De modo que a oposição letrados versus iletrados não pode mascarar, como
diz Chartier, outras relações possíveis com o texto escrito: aquele, por exemplo, em que o
texto é “decifrado em comum, lido pelos que sabem aos que sabem menos ou nada, às vezes
manuseados e elaborados coletivamente”.586 Com freqüência, como já apontado, a leitura
devocional, religiosa ou sagrada, mormente no espaço-tempo de que tratamos, deve ser
incluída nesse modo cultural de leitura.
A leitura em voz alta foi intensamente praticada pelos reformados, a ponto de a sua
Igreja criar a figura oficial do leitor ou consolador de enfermos. O consolador tinha como
tarefa principal prestar assistência aos enfermos através da leitura da Bíblia; no entanto, essa
função — que parece ter sido criada, primordialmente, para o desempenho em hospitais —
não se limitou a esse espaço: o consolador de enfermos exerceu sua atividade leitora em
navios, fortalezas, acampamentos; ademais, em momentos específicos, atuaram como leitores
da Bíblia ou de outros livros de devoção em lugares públicos. Temos notícia de que ao Brasil
holandês vieram muitos leitores (cerca de noventa) com essa finalidade. É plausível supor que
a sua atuação, para além da assistência aos próprios neerlandeses, tenha também como
público a população indígena. Na verdade, ao menos Dirk Jansen Pool e Marcus Foer foram
leitores entre os brasilianos.587 Entre estes, nas aldeias, a leitura pública e em voz alta
possivelmente foi realizada também por predicantes e mestres de escolas, por esposas e filhos
destes, bem como pelos próprios índios alfabetizados. O índio João Gonçalves, mestre-escola,
também estava trabalhando como leitor dos brasilianos em 1647.588
Portanto, deve-se considerar a coexistência de diversos tipos de leitores praticando
diversas modalidades de leitura: a leitura solitária, individualizada e silenciosa; a leitura
familiar, doméstica e em voz alta; a leitura grupal em voz alta, na escola; a leitura coletiva,
585 POMIAN, K. História cultural, história dos semióforos. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Dir.). Para uma história
cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 72.
586 CHARTIER, op. cit., In: CHARTIER (Org), op. cit., p. 95.
587. Atas de 1636 a 1648 (...), op. cit. p. 237.
588 ibid., p. 267.
169
pública, em redor da fogueira, etc. Assim, ainda que tenha persistido, entre os brasilianos, um
alto grau de indivíduos analfabetos, iletrados e precariamente alfabetizados, isso certamente
não representou um obstáculo instransponível à recepção coletiva dos textos religiosos
disponíveis: nas aldeias, a voz leitora de predicantes, professores e índios permitia que os
textos fossem “lidos” e “relidos” por um público numeroso e relativamente amplo de
auditores. Em outras palavras, o corpus de textos religiosos elaborados para a catequese
indígena gozou de uma circulação virtualmente extensiva a toda a “comunidade de
brasilianos” doutrinados pelos neerlandeses. A esse respeito, cito mais uma vez Chartier, para
quem a prática da leitura oralizada cria “um vasto público de ‘leitores’ populares que inclui
tanto os mal alfabetizados como os analfabetos e que, pela mediação da voz leitora, adquire
familiaridade com as obras (...)”.589
Na vastidão do mundo da leitura, um outro viés a ser considerado é o da leitura
individual, experienciada também pelos brasilianos. Realizada pelos que dominam o ato de
ler, a leitura individual pode “exercer um efeito de propagação que ultrapasse o leitor”.590
Esse efeito dar-se-á a partir do momento em que o leitor, convencido pelo texto lido, “se torne
propagador das idéias que aí descobre”.591 Muitos dos índios professores, bem como outros
índios que ascenderam ao mundo da leitura sem serem investidos da função de mestre, podem
ter-se tornado propagadores das idéias reformadas: ao praticar o ato da leitura, o texto passou
a ter sentido, dessa forma adquirindo eficácia e concretude.592 Um exemplo de leitura eficaz
entre os brasilianos relata-nos o padre Vieira. Numa carta ao Senado da Câmara do Pará, de
21 de junho de 1661, Vieira recomendou aos edis cuidado nas negociações com os índios da
Serra de Ibiapaba, dada a sua capacidade de leitura e interpretação de textos legais:
589 CHARTIER. Leituras e leitores “populares” da renascença ao período clássico. In: CAVALLO e CHARTIER (Org.), op. cit., v. 2, p.
124
590 GILMONT, Jean-François. Reformas Protestantes e leituras. In: CAVALLO e CHARTIER (Org.), op. cit., v. 2, p. 65
591 ibid., p. 65
592 Paul Ricoeur, fundado num método hermenêutico e fenomenológico, considera que, contra as formulações estruturalistas e semióticas
mais rígidas, que admitem a significação apenas no funcionamento automático e impessoal da linguagem, devemos considerar a leitura
como um ato pelo qual o texto ganha sentido e adquire eficácia.
170
Em seu belo texto O mármore e a murta, Viveiros de Castro diz que “a murta tem
razões que o mármore desconhece”.594 Trata-se de uma referência à “inconstância da alma
selvagem”, descrita por Padre Vieira no Sermão do Espírito Santo595. Segundo a análise de
Viveiros de Castro, nesse texto Vieira explora um tema presente em toda a literatura jesuítica
desde a chegada da Companhia de Jesus em 1549: a dificuldade da conversão indígena; ou,
mais exatamente, a incapacidade da “alma selvagem” de cristalizar — ou “marmorizar” —
em si mesma os princípios cristãos. Converter, convertiam-se; aceitar, aceitavam a mensagem
cristã trazida pelos europeus; mas não se deixavam moldar por ela: tal qual uma estátua
vegetal esculpida sobre a murta, logo perdiam a forma, pois os ramos cresciam por todos
lados, desfigurando-a.
Não pretendo problematizar aqui as causas ou motivos da “inconstância da alma
selvagem” — assunto, como disse, já brilhantemente discutido por Viveiros de Castro.
Interessa-me, tão somente, analisar mais de perto uma prática que, para o clero protestante,
constituía ferramenta fundamental no trabalho de conversão e cristalização da fé cristã dos
índios. Diferente da postura dos missionários católicos — que acreditavam que, para inculcar
a fé no gentio era preciso primeiro dar-lhes lei e rei —, os missionários reformados
acreditavam, como temos visto, que era preciso dar-lhes educação (alfabetizá-los). No final de
1638, o predicante Doorenslaer, inquirido pelo Governo do Brasil holandês a respeito de seu
trabalho missionário com os índios de sua aldeia, respondeu que:
tendo em conta o tempo e as pessoas os frutos não são maus, o povo vem
rezar e cantar os salmos diariamente e ouvir a palavra de Deus, escutam os
sermões do pregador com obediência, mas não tem a maturidade de
participar da ceia [de Jesus]. Nesta ocasião foi decidido, se requerendo a
sua Excelência e o Alto Conselho, para dar maior educação aos brasileiros
(...).596
596 Nótula diária de 22/11/1638. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
597 PÉCORA, Sermões, op.cit.
598 BURKE, Cultura Popular na Idade Moderna, op.cit., p.274.
172
Essa nova relação com o saber, levada a efeito pelas duas Igrejas resultantes da divisão
— a Católica e a Reformada —, diz respeito, primeiramente e de forma particular, a formação
de seus respectivos corpos clericais. Com efeito, este saber, que ainda segundo Certeau passa
a ser, para a comunidade religiosa, um meio de se definir, era para a Igreja reformada,
também uma ferramenta eficaz de reformação da cristandade, de modo que deveria ser
estendida a todos os seus fiéis. Inclusive — ou principalmente? — aos neoconversos do Novo
Mundo. Quanto a isso, os documentos são claros e abundantes: apenas recordemos o motivo
evocado pelos predicantes para a alocação de professores nas aldeias: “ensinarem as crianças
e os adultos a ler e escrever e instruí-los nos elementos da religião cristã”.600
Até onde sei, os predicantes não viram nos índios estátuas de murta, ou ao menos
nunca se referiram a eles em termos análogos, muito embora, por vezes, também se
mostrassem desanimados com a missão catequética. Em contrapartida, uma imagem que
freqüentemente lhes ocorria era a imagem bíblica da plantação: a Seara do Senhor e seus
brancos campos. Nas palavras dos missionários, a “Igreja de Deus neste país floresce de dia
em dia entre os índios”;601 “os frutos não são maus”; “seu serviço até agora não foi
infrutífero”,602 etc. Em geral, este era o sentido atribuído à catequese indígena sempre que os
missionários e professores eram chamados a prestar contas de sua missionação. Fosse para a
Igreja ou para o Governo; na correspondência aos Senhores XIX, às Igreja na Pátria ou aos
amigos particulares, o tom no mais das vezes era otimista, como o de agricultores
esperançosos de uma dadivosa colheita no futuro. Dessa forma, pensando na figura de um
campo que lentamente desabrocha suas flores uma após outra, pouco a pouco os predicantes e
professores noticiavam os progressos de seus catecúmenos. Em suma, às metáforas barrocas
da tesoura e do cinzel, os predicantes calvinistas preferiam as imagens mais chãs (e mais
bíblicas) da agricultura.
599 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 133.
600 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 723.
601 Dezessete cartas, op.cit., p. 52.
602 Atas dos sínodos e classes do Brasil. (...), op. cit., p. 754.
173
catequese junto a estes. Portanto, vinha requerer ao Governo que dispensasse os índios de sua
aldeia de tais compromissos, para que se aplicassem integralmente ao aprendizado da Religião
Cristã Reformada:
606 Nótula diária de 10/10/1639. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 19 maio 2006.
607 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico sul séculos XVI e XVII, São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 125.
175
gostaria de fundar uma aldeia em Rio Grande, que ali muitas vezes foram
destruídas ou abandonadas. Ele notou que as pessoas da aldeia Consava ou
uma outra pequena aldeia situada em Ceará tem muita vontade de se mudar
para o Rio Grande, onde eles antigamente já moravam, e ao lado disto
muitos voluntários brasileiros gostariam de vir para cá, o que seria
favorável para a Companhia, porque numa situação de urgência ou de
guerra não mais precisaremos procurá-los em Ceará mais eles estarão mais
perto na Capitania de Rio Grande.608
Johan Listry, comandante dos brasilianos, também noticia o ajuntamento dos índios
para a guerra. Na reunião do Governo, ele informou que
fez todo possível para realizar a missão da qual ele tinha sido encarregado
no dia 6 deste mês, para mandar para aqui os 200 brasileiros armados com
arco e flecha. Ele foi às aldeias principais dos brasileiros para lhes notificar
sobre isto, e junto com os Capitães deliberarem sobre a melhor solução
para que no momento mais adequado ela possa ser executada da melhor
maneira possível.609
À vista disto, parece realmente inusitado que, de pronto, o Governo tenha atendido ao
predicante Doorenslaer, permitindo que os índios da aldeia sob sua responsabilidade fossem
desobrigados da guerra e do trabalho nos engenhos. Além da permissão a governança
manifestou a expectativa de que, com o tempo, estes índios aprendessem de tal forma a
religião cristã que servissem de modelo exemplar para a vizinhança:
608 Nótula diária de 4/3/1641. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
609 Nótula diária de 9/10/1640, ibid.
610 Nótula diária de 10/10/1639, ibid.
176
de Doorenslaer, plano este totalmente afinado com as ordens dos Dezenove Senhores no
sentido de reforçar a missionação calvinista nas capitanias conquistadas, objetivando o “bom
governo dos índios”.
Quanto ao projeto de catequese intensiva de Doorenslaer, tudo indica que vinha dando
bons frutos, pois, passados seis meses, ele informou estar satisfeito com o progresso espiritual
alcançado por muitos dos índios; dizia ele, como vimos, que muitos cresceram tanto na fé em
virtude do ensino diário, que se encontravam prontos para participar do sacramento da Ceia, e
que tal somente não acontecera ainda por causa da situação conturbada na região. Em fins de
novembro de 1640, decorrido portanto um ano desde a liberação do Governo para que os
índios da aldeia Maurícia ficassem desobrigados de irem à guerra e ao trabalho nos engenhos,
Doorenslaer informou à Igreja reunida em Assembléia que realizara a primeira Ceia. “D. a
Doorenslaer, referindo ao progresso dos Índios na religião, declara ter chegado a tal ponto que
ele administrou a Páscoa a alguns deles.”611 Fato significativo, visto que, antes disso, ao ser
inquirido sobre a situação dos índios, sempre informava que estes não estavam prontos para
participar da Ceia do Senhor; mas é notório que, decorrido um ano de catequese intensiva,
alguns índios se encontraram aptos para participar do mais importante sacramento do ritual
reformado.
Impressionados, talvez, com as notícias de Doorenslaer sobre o progresso espiritual
dos índios de sua aldeia, os predicantes decidiram novamente consultar sua Excelência e o
Supremo Conselho a respeito de outros índios que continuavam obrigados a irem a guerra,
com prejuízo de sua formação espiritual:
Visto que os brasileiros estão sendo mandados para guerra e isto de vez em
quando está causando uma certa insatisfação, por causa dos prejuízos, que
611 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 756.
612 ibid., p. 758.
177
613 Nótula diária de 18/1/1641. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
614 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 767.
615 Nótula diária de 15/6/1643. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
616 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 767.
617 Os predicantes que trabalharam neste projeto foram Kempius, van der Poel, Haselbeeck e Velthuisen. Este regulamento foi promulgado
em 1646 em todas as aldeias sob o domínio neerlandês.
178
jesuítas seus primeiros doutrinadores, como o uso de contas e crucifixos para fins
supersticiosos.618
David Doorenslaer e Johannes Edwards — os primeiros e certamente os mais
importantes missionários entre os índios — deixaram o Brasil holandês em 1643.619 Soler
partiu em 1644.620 E outros ficaram até o embate final e a expulsão neerlandesa, em 1654.
Trata-se, no geral, de homens instruídos, ativos, crentes sinceros e disciplinados. De espírito
exigente, os missionários reformados trabalharam de forma incansável na cristianização e
salvação das almas dos gentios. Mas, em muitos pontos, vemo-nos às voltas com a escassez
de documentos. Dessa forma, não sabemos qual teria sido a impressão de cada predicante
após o regresso ao Velho Mundo. Teriam visto a esperança da catequese indígena se
concretizar? Retornaram satisfeitos com os frutos —ou as sementes — deixados na seara do
Novo Mundo? Tiveram êxito no combate ao joio, ou deixaram crescê-lo junto com o trigo,
conforme a recomendação bíblica?
Quanto a esses pontos, ironicamente, a maioria das notícias está registrada nas fontes
produzidas por seus inimigos, os católicos portugueses. Como numa carta que Gaspar Dias
Ferreira escreveu ao rei de Portugal em 1645, na qual informa que as almas dos índios
estavam se perdendo “por causa da predica e da diligencia que põem os ministros hereges no
empenho de condená-los”.621 São os católicos, portanto, que noticiam “a perdição” — ou a
dureza, a rigidez, a constância — da alma indígena cristã reformada. As exceções dignas de
nota residem na carta do índio calvinista Pedro Poti ao seu primo católico Felipe Camarão,
bem como nas duas remonstrâncias de Antônio Paraupaba, também calvinista convicto, aos
Estados Gerais. Esses documentos serão analisados no último capítulo deste trabalho, onde
traço breves biografias destes índios.
No entanto, acredito que o documento mais loquaz e precioso sobre a constância da
alma selvagem no calvinismo, seja a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, com o qual
iniciei este capítulo. Mas aqui e acolá, nas narrativas de cronistas, nas memórias de capitães,
nas correspondências, pontuam, embora lacônicas, importantes indícios sobre os índios
reformados e sua postura intransigente diante da Igreja Católica. O próprio Vieira trata do
assunto em outros textos de sua lavra. Numa carta que escreveu ao provincial dos jesuítas,
datada de junho de 1658, menciona as dificuldades que enfrentavam os padres da Companhia
618 MEUWESE, Marcus P. “For the peace and well-being of the country”: intercultural mediators and the Dutch-Indian relations in the New
Netherland and Dutch Brazil – 1600-1664. Dissertation submitted to the Graduate School of Notre Dame University. Notre Dame, 2003.
p. 260-1.
619 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 780.
620 ibid.
621 RIAP, v.32:79, 1887.
179
(...) os batizados se vão a coabitar, com os hereges e pagãos (...) mas eles
[os janduis] não permaneceram nas missões que em tais casos, lhes não,
deve valer a imunidade Da Igreja por serem uns hereges, e públicos tiranos
que com pretexto de paz vem a fazer danos de propósito (...).628
Para finalizar, evoco mais uma vez o personagem “João o pregador”, índio nhanduí
preso no Rio Grande em 1692 por envolvimento na revolta dos bárbaros.629 Infelizmente,
dispomos de poucos registros sobre a trajetória desse índio-predicante. Mas, como vimos, o
termo “pregador” remete diretamente à cultura religiosa reformada, na qual a pregação era (e
é) o ponto central do culto, como disse Peter Burke: “a cultura protestante era a cultura do
sermão”.630 Então, podemos inferir que esse índio João provavelmente era um pregador
calvinista, um missionário entre os Nhanduí, ainda que remanescente, posto que passados já
trinta e tantos anos da expulsão da Igreja Cristã Reformada. De resto, público para ouvi-lo
ainda havia, pois consta no documento de sua prisão que João era muito estimado pelos
bárbaros, entre os quais “tinha grande séqüito”.631
Como podemos perceber com nitidez — e ao contrário do que afirma a “teoria do
verniz” — até aqui nada houve de frágil ou de superficial na atuação missionária calvinista
em tempos de Brasil holandês; tampouco parece ter sido frágil e superficial a adesão de
muitos índios ao cristianismo calvinista. Boxer, num breve comentário à Relação da Missão
da Serra de Ibiapaba, de Vieira, afirmou: “mesmo que se atribua algum exagero à pena
exuberante de Vieira, é óbvio que os resultados da propaganda e educação religiosa levadas
avante pelos neerlandeses entre 1630 e 1645 foram muito maiores do que imaginavam os
ministros de Recife”.632
Ao analisar “o sentido das missões entre os Wayana e Aparai do Paru”,633 povo Karib
do norte do Pará, a antropóloga Paula Morgado verificou o poder da escrita na evangelização
desse povo pelos missionários protestantes da SIL.634 No processo de manejo das linguagens
oral e escrita, afirma ela, é que o poder dos missionários ganha solidez. Segundo a
antropóloga, o fato de estar o conjunto dos ensinamentos “sagrados” — o Novo Testamento
— expresso em língua aparaí, garantia simultaneamente que esta palavra não fosse distorcida
e que, ao contrário, fosse facilmente absorvida pelos índios. E, ainda, é perceptível como a
palavra escrita passa a ser facilmente assimilada pelo índio, porque ele faz do “outro” (a
ideologia cristã) o seu “igual” por meio da tradução vernacular; ou seja, como qualquer
neófito, ele é capaz de transpor o diferente para o universo conhecido. A palavra escrita —
acrescenta a antropóloga — “permite que o discurso seja submetido a sucessivas verificações
629 AHU cód 256 . 147 e cód. 265 f 76, de 18 e 19/12/1962. Disponível na Internet projeto Líber: www.liber.ufpe.br. Acesso em 22 maio 2006.
630 BURKE, op. cit., p. 248.
631 AHU cód 256 . 147 e cód. 265 f 76, de 18 e 19/12/1962. ibid.
632 BOXER, Os holandeses no Brasil, op. cit., p. 192.
633 MORGADO, Paula. O sentido das missões entre os Wayana e Aparai do Paru, In: WRIGHT (Org), op. cit., p. 219- 247.
634 SIL: Summer Institut Linguage ou ILV: Instituto Lingüístico de Verão, Brasília.
181
Mas é certo que, muito antes dos índios Tupinambá do Maranhão, as alianças políticas
e a fidelidade indígena sempre flutuaram ao sabor das conjunturas. Por que, então, a aliança
que os brasilianos tinham com os neerlandeses não tomou a mesma direção? Medo de serem
trucidados pelos portugueses? É a alegação de Paraupaba em sua exposição. Então, porque
esse medo parece não ter estado presente em outras ocasiões quando, conforme Diniz, as
alianças flutuavam ao sabor das conjunturas?
índios convertidos ao calvinismo) nos permitirá, não dar respostas conclusivas, mas — o que
afinal é mais importante — formular mais claramente algumas questões. É do que tratarei a
seguir, no quarto e último capítulo.
183
CAPÍTULO 4
Num de seus estudos, Evaldo Cabral de Mello afirma que a “consolidação do Brasil
holandês teria espatifado a América portuguesa”,637 o que comprometeria a (futura) unidade
nacional. Do mesmo modo que o autor de O negócio do Brasil constrói a sua análise no plano
da contrafatualidade — argumentando ser o contrafactual “inerente a todo raciocínio
historiográfico”638 —, gostaria de conjecturar sobre o que poderia ter ocorrido caso a
América portuguesa realmente “se espatifasse” e os “hereges calvinistas” se enraizassem
como vizinhos fronteiriços de luso-católicos e de índios e negros catolicizados.
Evidentemente, para além da unidade nacional despedaçada, as tensões e conflitos religiosos
vivenciados numa Europa cindida se transportariam, mutatis mutandis, para o Novo Mundo,
colocando assim em perigo também a unidade religiosa e a própria predominância da Igreja
Católica Romana nestas partes.
Não podemos nos esquecer que, durante 24 anos, a Igreja Católica Romana amargou a
presença de seus inimigos de fé no coração do território hispano-português conquistado. O
clero e os fiéis católicos presenciaram, entre o escândalo e a resistência, a tomada de seus
templos, a destruição de suas imagens sacras e a tentativa de usurpação do rebanho da santa
madre Igreja — de modo especial, como vimos, o autóctone incorporado ao seio do
catolicismo havia quase um século. Com um olho na Europa dividida e outro na rica porção
colonial que lhes fora violentamente arrebatada pelos seguidores de Calvino, o temor dos
637 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641-1669). 3. ed.. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2003, p.14.
638 ibid., p. 15.
184
católicos quanto à perda de terreno tinha a sua razão de ser; pois, não obstante o fato de não
ter efetivamente vingado, a experiência calvinista em parte das “capitanias do norte” foi uma
ameaça real ao credo católico. Tão sentida foi essa ameaça que, ao fim da guerra e depois da
expulsão definitiva dos neerlandeses, a Igreja Romana concedeu a João Fernandes Vieira o
título de “restaurador da fé católica”.639
Numa seara colonial dividida, os devotos católicos e especialmente o seu clero
pareciam temer, sobretudo, as conversões em massa de ameríndios e mestiços. A julgar por
algumas trajetórias individuais, mais uma vez esse temor não era injustificado: a adesão ao
calvinismo por parte de lideranças indígenas como Pedro Poti e Antônio Paraupaba, ou do
jesuíta mameluco Manuel de Morais — os casos de conversão de que nos restaram indícios
documentais — pairava como um espectro a comprometer o futuro do império colonial
português, depois da restauração, e, por conseguinte, a hegemonia católica no Brasil.
A partir da análise de três trajetórias individuais e por meio da composição de breves
biografias, pretendo, neste capítulo, historicizar a problemática conversão ao protestantismo
por parte destes homens, índios e mestiços católicos. Através dos fragmentos que nos
restaram dessas vidas “exemplares”, várias questões podem ser colocadas e desenvolvidas: as
motivações que os impulsionaram em direção ao calvinismo; as implicações, repercussões e
desfechos de seu trânsito religioso no contexto mais envolvente da dinâmica dos conflitos
coloniais — vez que, em todos esses casos, a conversão esteve associada, direta ou
indiretamente, à dinâmica mais geral daqueles conflitos.
639 O Papa Leão XII conferiu a João Fernandes Vieira o título de restaurador do catolicismo na América. In: RIHGB, t. 32, 33, 1918-19, p.
150.
185
um lado, a figura de São Pedro mártir e, do outro, uma cruz entre um ramo de oliveira e uma
espada, onde se lia a divisa misericordia et justitia. No cortejo, a posição dos penitentes
correspondia à ordem de gravidade das culpas estampadas no sambenito que trajavam.640
Com uma vela na mão direita, pés descalços, na cabeça a carocha, marchava cada penitente
entre dois guardas; depois dos penitentes seguiam-se os “relaxados” ou condenados à morte,
acompanhados pelos familiares do Santo Ofício, bem como pelos confessores jesuítas, tendo
a frente um crucifixo; depois destes, seguia-se a procissão das estátuas dos ausentes ou dos
defuntos, a serem queimadas em substituição simbólica, por assim dizer, de condenados
fugitivos ou mortos na prisão. Nesta parte “iconográfica” do cortejo encontramos nosso
primeiro personagem: lá estava a “estátua” de Manuel de Moraes, julgado e condenado à
revelia por “crime de heresia e apostasia”. Os autos do processo sentenciam que o padre
mameluco
Não obstante o processo que contra ele corria no Tribunal do Santo Ofício ter sido
apregoado por três vezes pelo porteiro — “que deu fé não aparecia, pelo que os ditos
senhores o houveram por lançado, e que (...) se neles não aparecesse o dito réu Manuel de
Moraes viesse o promotor com seu libelo criminal por parte da justiça contra o dito réu
(...)”642 —, não obstante os sucessivos pregões, o dito réu não compareceu para se defender
perante seus acusadores. Morador por este tempo na cidade de Leiden, na Província da
Holanda, Manuel de Moraes, muito compreensivelmente, não tinha a intenção de se
apresentar ao famigerado tribunal de fé. Ao menos por ora, pois o tempo dos pregões não
seria suficiente para que o ex-padre mameluco, dotado de uma perspicácia admirável,
preparasse um álibi à altura dos também perspicazes inquisidores. Antes desse confronto,
Manuel de Moraes precisaria reconstruir sua arranhada e desacreditada imagem de católico;
e, tal qual um hábil artesão, pôs-se a tecer, um a um, os fios da trama argumentativa que lhe
serviria de defesa.
640 SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Editoral Estampa, 6ª ed., 1994, p.105-06
641 Processo de Manuel de Moraes. RIHGB, nº 70, 1908, p. 49
642 ibid., p. 42.
186
643 A sentença do processo de Manuel de Moraes foi dada em 26 de julho de 1640, sendo que a sentença escrita saiu em 11 de agosto de
1640, e em 6 de abril de 1642 foi executada. Processo de Manuel de Moraes, op.cit. p. 49.
644 ibid., p. 42
645 SARAIVA, op. cit., p.101.
187
Manuel de Moraes, como vimos, não compareceu para “dar razão de sua inocência ou
confessar suas culpas”, pelo que foi condenado à revelia. Mas desta vez não pôde escapar:
denunciado novamente pelos crimes de heresia e apostasia, preso e enviado ao Tribunal em
1645, não lhe restou alternativa senão a de enfrentar o Tribunal.
Outra vez pesava contra o ex-jesuíta Manuel de Moraes a acusação de apostasia da fé
católica e conversão ao calvinismo, bem como a de prática de heresias contra a santa Madre
Igreja. Por boca de muitos depoentes, foi contado ao inquisidor que Manuel de Moraes, ainda
no Pernambuco dos anos 1630, dava mostras de ter abandonado a fé católica, adotando outros
usos, costumes e comportamentos: abandonara o traje da Companhia [de Jesus], andando no
Recife vestido de secular, com trancelim e chapéu;646 comendo carne nos dias defesos; e, uma
vez nas Províncias Unidas, casando-se, por duas vezes, com mulheres que professavam a
religião de Calvino, sendo os ditos casamentos celebrados por predicantes da dita seita647; e
que, ainda morador nas Províncias Unidas, freqüentava o culto reformado e escrevera um
livro contra a fé católica.648
A saga de Manuel de Moraes, que terminou por levá-lo ao Tribunal da Inquisição,
teve seus começos na distante colônia do Brasil, nos anos trinta do seiscentos, e estava
intimamente ligada à dinâmica dos conflitos coloniais. Retomo alguns elementos desses
conflitos que nos ajudarão a melhor situar as desventuras do “padre calvinista”.
Na sua descrição dos preparativos para responder ao eminente ataque dos flamengos
às costas pernambucanas em 1630, o autor das Memórias diárias da guerra do Brasil649
informa que, dentre outras providências tomadas, Matias de Albuquerque, governador da
resistência, “avisou aos religiosos da Companhia de Jesus, que assistiam nas aldeias
doutrinando os índios, que os fizessem prevenir de seus arcos e flechas, para que se achassem
armados quando fosse necessário”.650 Atendendo aos apelos do governador, índios de várias
aldeias da capitania de Pernambuco, liderados pelo jesuíta Manuel de Moraes, se
apresentaram por volta do dia 22 de fevereiro. Mas o padre mameluco, segundo narram as
crônicas, não se contentou em apenas apresentar os índios para a batalha, oferecendo-se ele
mesmo em pessoa para a peleja. De modo que, liderando os índios aldeados, o religioso
assumia um posto militar:
chegou à região da Paraíba e, pelo visto, já sem o companheiro de guerra Antônio Felipe
Camarão:
Também no começo do ano de 1634, quando Duarte Coelho faz referência, em seu diário, aos
índios comandados por Camarão, já não cita a Manuel de Moraes. Mas afirma que, por este
tempo, o rei Felipe IV, “pelo bom procedimento desenvolvido por Antônio Felipe Camarão o
fez el-rei capitão-mor de todos os índios, não só de sua nação, que era Potiguar, mas também
das outras residentes em várias aldeias”.659 Seja qual tenha sido o motivo pelo qual o militar
índio e o padre mameluco já não lutarem juntos, o fato é que ambos continuaram empenhados
na guerra de resistência. No caso do padre, ao menos por mais um tempo. Segundo Boxer,
Manuel de Moraes esteve envolvido na guerra de resistência por mais ou menos quatro anos,
durante os quais “instigara os fiéis contra os invasores hereges, distinguindo-se ele próprio
em muitas guerrilhas e escaramuças”.660
Nos primeiros dias de dezembro de 1634, os flamengos cercaram o forte de Cabedelo,
na Paraíba. Em socorro aos sitiados, Martim Soares Moreno — que se encontrava no quartel
de Cunhaú, no Rio Grande — enviou à frente o capitão Leonardo de Albuquerque com a sua
companhia, seguindo logo depois ele próprio com a companhia do capitão João da Silva e
Azevedo, alguns moradores do Cunhaú, e mais os índios das aldeias do Rio Grande. Esses
índios eram liderados pelo belicoso padre Manuel de Moraes:
É curioso que Duarte Coelho segue a narrativa dizendo que Valcaçar avisara ao padre
que, caso ele e seus índios reagissem ao inimigo, os tapuias, aliados dos neerlandeses, não
deixariam nenhum deles, índios e portugueses, com vida.665 Pelo que, chegando o coronel
polonês Artichewski com oitocentos homens ao engenho, o “padre Manuel de Moraes com
um lenço em um pau foi render-se ao inimigo”.666
Rendeu-se ao inimigo. Até esse ato extremo, Manuel de Moraes constituía,
certamente, um orgulho para a Companhia de Jesus. Menino mameluco nascido por volta de
1595 na vila de São Paulo, da capitania de São Vicente, Manuel, por imposição de um pai
que demonstrava grande fervor religioso667, ou então por desejo próprio, inclinou-se à
religião. Em seu depoimento contido nos autos de seu segundo processo demonstra que
sempre tivera uma vida devota e piedosa, no seio da Igreja:
Cedo partiu para a capitania da Bahia, onde, no Colégio dos Jesuítas, dedicou-se aos estudos.
Tornou-se religioso da Companhia de Jesus, onde prestou os votos ordinários.669
Após a sua passagem para o lado inimigo, os jesuítas tentaram conspurcar-lhe a
imagem pessoal. Simão Álvares, provincial da Companhia de Jesus em Portugal, numa
petição endereçada ao Tribunal do Santo Ofício, informava que Manuel de Moraes “fora
despedido por suas faltas antes que se passasse aos Holandeses, e muito antes que professasse
outra lei”; e que nunca na Companhia de Jesus “fez votos solenes, senão os votos símplices”
no final de seus dois anos de noviciato.670 Mas o fato é que, em 1630, ele era superior de uma
aldeia de índios, na liderança dos quais adquiriu fama inclusive guerreira; de modo que, na
altura de 1641, quando Manuel estava sendo processado in absentia pela Inquisição, os
jesuítas buscavam diminuir o revés que tal acontecimento provocara à sua ordem regular.
Com efeito, o provincial pedia ao Tribunal que não mais nomeasse, nos editais, a Manuel de
Moraes como religioso da Companhia de Jesus, visto que isso, “pode resultar em grande
descrédito da Companhia [de Jesus] e seus religiosos como sempre o é quando semelhantes
coisas se divulgam (...)”.671
Apesar dessa jesuítica tentativa de abafamento, não era possível esconder um certo
constrangimento e escândalo. Muitos denunciantes afirmaram que Manuel de Moraes era um
notório e notável religioso da Companhia de Jesus, dizendo ao inquisidor terem-no visto
“vestido com os hábitos de sacerdote daquela religião, e trazia coroa aberta”;672 ou então que
“ouviu dizer por algumas vezes missa e fazer o oficio de sacerdote encomendando um
defunto por quem disse três missas”.673 O próprio acusado declarara ao inquisidor, por
ocasião de seu segundo julgamento, que era religioso, que prestara os votos da Companhia de
Jesus e que tão somente não prestara o quarto voto.674 Os jesuítas, desde a fundação da ordem
no início da Contra-Reforma, eram por definição uma ordem de clérigos regulares que, além
dos três votos tradicionais — obediência, castidade e pobreza —, prestavam ainda um quarto
voto, a saber, de fidelidade ao Papa.
A genealogia e principalmente a identidade étnica do traidor e apóstata parece ter sido
problematizada. A julgar pela descrição física, repetida exaustivamente ao Tribunal pelos
depoentes, o padre Manuel de Moraes tinha parte de “mameluco e na cor o mostrava”.675 Ao
ser inquirido a respeito de sua ascendência, disse ser filho de Ana de Moraes, natural da Vila
de São Paulo, e de Francisco Velho, natural do reino. Dos avós paternos, nada sabia. Da
ascendência materna, informou que a mãe era filha de Balthazar de Moraes e de Brittes Roiz,
aquele natural do reino, esta natural também da vila de São Paulo. Segundo Vainfas, as
informações prestadas por Manuel não correspondiam à realidade. Na verdade, a ascendência
portuguesa do jesuíta vinha de sua linhagem materna, sendo sua mãe filha de portugueses; o
pai, sim, era mameluco, possivelmente filho de uma índia com um português dos primeiros
tempos da colonização em São Vicente.676
No recrutamento de “soldados de Cristo” entre os rebentos desses cruzamentos
étnicos talvez residisse o orgulho, talvez a perspicácia, dos padres jesuítas. Manuel de Moraes
poderia representar o início de uma nova “safra” de religiosos do novo mundo: os
mamelucos, filhos dos portugueses com os naturais da terra. Desde a tenra idade, os jesuítas
investiram muito na formação de Manuel de Moraes, e especialmente o provincial Domingos
Coelho, que havia apostado muito em sua disciplina.677 Afinal, a formação de um religioso
mameluco para atuar nas terras coloniais, certamente seria de grande valia. Para além de ser o
Com efeito, a utilidade dos mamelucos era estratégica, seja na guerra terreal, seja na
espiritual. Manuel contou ao inquisidor que servira na guerra de Pernambuco, “com licença e
ordem de seus superiores da Companhia [de Jesus]”, que o enviara ao front por ter ele
“grande noticia do gentio, e este obedecer facilmente a suas ordens (...)”.681 Duarte Coelho
também registrou a obediência dos índios a Manuel de Moraes: “Os índios de Antônio Felipe
Camarão fizeram o mesmo, com o padre Manuel de Moraes a quem todos obedeciam”.682
678 RIBAS, Maria A. A. Barreto. O Pão do outro: alimentação e alteridade noBrasil Colonial. (1500-1627). Niterói. Universidade Federal
Fluminense: Dissertação de Mestrado, 2002, p. 82.
679 Processo de Manuel de Moraes, op. cit., passim.
680 VAINFAS, op. cit., p. 142.
681 Processo de Manuel de Moraes, op. cit., p. 56.
682 COELHO, op. cit., p. 64.
194
os índios estavam mudando de partido e isso era preocupante, visto a importância bélica que
ocupavam no desenrolar do conflito. Neste sentido, frei Manuel Calado contou ao tribunal
que
O próprio Manuel de Moraes era tão consciente da importância de ter os índios como
aliados na guerra e de seu poder de influência sobre eles que, perspicazmente, valeu-se disso
para justificar ao inquisidor o tempo que passara nas Províncias Unidas. Disse ele ao
inquisidor Bechior Dias Preto que, ao ser preso e enviado para as Províncias Unidas,
688 Manuel de Moraes era grande conhecedor da língua dos indígenas tendo elaborado um Dicionário da Língua Tupi e a obra História da
América, cujos originais receberam mais tarde elogios do filólogo Hugo de Groot. No registro da Câmara de Amsterdã encontra-se uma
nótula que diz haver ele pedido à Companhia pelo seu Dicionário Brasílico e História do Brasil, para fazer frente às despesas do seu
casamento, a soma de 1500 florins de uma vez e 800 florins anuais de pensão. A Câmara mandou dar-lhe 300 florins e declarou que não
achava estranho o seu pedido e o apresentaria à assembléia para resolver.
689 SILVA, op. cit., p.89.
690 Carta dos Herren XIX para o Conselho Político do Recife em 1 de agosto de 1635, op. cit.
691 ibid.
197
692 ibid.
693 Instruções dadas a Servaes Carpentier por parte do Conselho Político, o qual vai em missão do mesmo Conselho ao Conselho dos XIX a
expor a situação do Brasil. Recife, 20 de fevereiro de 1636. apud MELLO, Tempo dos flamengos, op. cit., p. 223
694 ibid.
695 MELLO, Tempo dos flamengos, op. cit., p. 222.
198
em outras [ocasiões] fiz o mesmo de modo que a mim se deve grande parte do que se há
ganhado”.696 Não nos cabe aqui assumir o triste papel de inquisidores da história e fazer o
julgamento desse Manuel; resta-nos, sim, a difícil tarefa de compreender a vida de um desses
homens de fronteira, homem camaleônico, português entre portugueses, mameluco entre
mamelucos, e vice-versa; um mestiço que também transitou entre duas religiosidades inimigas
com a naturalidade de um camaleão nas folhagens, adaptando-se cromaticamente às situações
que mais lhe pareciam vantajosas no momento. Certamente, suas peripécias foram motivadas,
em parte, por interesses pessoais; mas também, como espero ter demonstrado, por uma série
de conflitos maiores, e que transcendem a vida dos indivíduos: os conflitos coloniais.
Ia tarde o dia quando o predicante Johannes Edwards recebeu uma visita inesperada.
Um emissário, da parte dos Dezenove Senhores, batia à sua porta com uma encomenda nada
convencional. Naquela terça-feira, 2 de julho de 1646, o predicante trabalhava no sermão a ser
pregado no dia seguinte. Por esse tempo, Edwards era pastor em Oosterland, na Província da
Zelândia. Entre os anos 1640 e 1643, tinha sido missionário no distante Brasil holandês, entre
os índios das aldeias de Itapesserica e Goiana, depois do que regressara às Províncias
Unidas.697 Consta que este predicante era profundo conhecedor da “língua geral”, tendo-lhe
sido atribuída uma possível tradução da Bíblia, ou de fragmentos dela, para a língua dos
brasilianos.698 O domínio da “língua geral” talvez se devesse ao fato de Edwards ter crescido
entre os brasilianos, conforme nos informa Moreau.699 Segundo este mesmo cronista, havia
um predicante inglês no Brasil holandês, que trabalhava entre os brasilianos, o qual era
merecedor dos “maiores elogios, por ter conseguido os melhores resultados”. Resultado tão
positivo vinha do fato de ter sido o predicante criado entre eles desde os seis até os quatorze
ou quinze anos de idade, quando foi enviado a Leiden para estudar teologia; depois do que,
retornou ao Brasil holandês como predicante.700 Para Schalkwijk, este jovem poderia ser
Edwards, ou então Kempius, por serem estes os únicos predicantes da nação inglesa ou de
ascendência inglesa a trabalhar no Brasil holandês.701 Mas a idade de Kempius não confere
702 Atas dos sínodos e classes do Brasil (...), op. cit., p. 748.
703 Carta de Paulo de Linge aos Dezenove Senhores de 28/2/1646. In: ARA – OWIC 61 e BPB 1646 – 5, apud SCHALKWIJK, p.302.
704 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit. p.403.
200
Brasileiros vindos da aldeia de São Miguel nos deram uma carta em mãos,
escrita aos inimigos pelo superior dos brasileiros, Camarão, onde ele e
todos os outros de sua nação estão convocados a se esconderem nos matos
até sua chegada. Assim foi decidido de se trazer para a aldeia Maurícia os
brasileiros da aldeia São Miguel, e para fazer com que nós não percamos os
brasileiros de Goiânia, Paraíba e Rio Grande, assim se escreveu ao Coronel
Doncker, que ele junto com o Predicante Dooreslaer, buscasse todos os
brasileiros de seus vilarejos que se encontrem nestas Capitanias, e que
fique com eles em Goiânia, para que eles não vão embora e para poder usá-
los diretamente caso seja necessário.(...). Assim foi decidido de mandá-los
para a ilha de Itamaracá onde lhes será indicado um lugar propicio, onde já
se tinha resolvido de deixar as mulheres e crianças em nosso poder para
assim se assegurar a fieldade de toda nação brasileira e podê-los controlá-
los sob força e contar com sua obediência, principalmente por que se tem
escutado que Camarão solicita a dissertação [sic deserção] dos
brasileiros.705
Também desta feita, a preocupação dos diretores da Companhia não era desprovida de
razões. Todas as cartas, informou-lhes Edwards, “tratam do mesmo assunto, isto é, que os
índios se devem passar para os Portugueses.”706 Mas Edwards, opinando sobre a ineficácia da
tentativa luso-brasileira, acalmava os Dezenove Senhores: “Quanto à constância dos índios
para com a Companhia [das Indias Ocidentais], é questão sobre que não entretenho a mínima
dúvida. Por mais que os portugueses os chamem, eles não se bandeiam.”707 E completava:
“tive ocasião de observar, quando estive morando com eles, que nutriam sempre o receio de
ser apanhados pelo inimigo, pois acreditavam na ameaça que este fazia de os escravizar.”708
Em sua tentativa de dissipar os temores dos dirigentes da Companhia das Índias
Ocidentais, o predicante contou-lhes que havia recebido, por aqueles dias, uma
correspondência do predicante Biscareto, que servia entre os brasilianos. Conforme Edwards,
nessa carta, o predicante Biscareto contava que
705 Nótula diária. 3/12/1637. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
706 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit. p. 402.
707 ibid.
708 ibid.
709 ibid., p. 402,03.
201
Com efeito, Edwards concluiu a tradução das cartas em quatro dias, devolvendo-as ao
remetente em 6 de julho de 1646. No relatório que fez acompanhar as traduções, informou que
traduziu “literalmente quatro, por meio do cabedal de vocábulos que possuo naquela língua;
das duas restantes, das quais não consegui ler muitas palavras, apanhei, entretanto, o
sentido.”710 Do lote de seis cartas, três eram dirigidas ao Regedor e comandante dos índios da
Paraíba, o também índio Pedro Poti. Poti fora capitão da aldeia Migeriba, na Paraíba, quando,
em 1645, foi elevado a Regedor, ou seja, capitão-mor ou governador dos índios da Paraíba.
Segundo Souto Maior, este cargo dava-lhe as honras de general, pois as forças sob o seu
comando equivaliam a um regimento, chamado terço pelos portugueses.711
Em abril de 1645, em Itapecerica, capitania de Itamaracá, ocorreu a assembléia geral
dos índios, com a participação de cento e quarenta e quatro representantes indígenas, muitos
dos quais capitães de aldeias. Conforme solicitação dos indígenas, nesta assembléia foram
organizadas três câmaras e eleitos três regedores para a administração das mesmas câmaras.
De modo que as aldeias ficaram agrupadas, em câmaras, de acordo com sua região e assim
administradas: Pedro Poti, regedor dos índios da Paraíba; Antônio Paraupaba, regedor dos
índios do Rio Grande e Domingos Fernandes Carapeba, regedor dos índios de Goiana e seu
distrito.712 Como foi comunicado aos Dezenove Senhores pelo Alto e Secreto Conselho713 em
relatório de 1646:
Das três cartas restantes, uma foi dirigida ao regedor e comandante dos índios do Rio
Grande, Antônio Paraupaba; outra não refere destinatário, e por fim uma é destinada a cinco
capitães de aldeias. Dos capitães que pude identificar, dois pertenciam a aldeias sob a
O Senhor Deus seja convosco e que gozeis boa saúde. Oh! senhor capitão
Itaque, eu me regosijaria muito em saber de vossa saúde, eu ficarei
tranquilo para não vos dar motivo algum de tristeza, por isso mando-vos a
todos minha palavra. Oh! capitão Itaque, capitão Balthazar Araberano,
capitão Gaspar Cararu, capitão Pedro Valadino, capitão Jedaia (...).715
Capitão Itaque ou Itahae servia na aldeia Mopembu, na capitania do Rio Grande, onde era
regedor Antônio Paraupaba; Pedro Valerino, ou Valadino, servia na aldeia Migeriba, onde
Poti fora capitão; Gaspar Cararu era capitão na aldeia Miagiriba; ambas as aldeias (Migeriba e
Miagiriba) situavam-se na capitania da Paraíba, onde Pedro Poti era o regedor. De acordo
com o Alto e Secreto Conselho, em relatório prestado aos Dezenove Senhores, as cartas
recebidas pelos regedores seus aliados foram entregues a seus respectivos diretores sem
sequer terem sido abertas. Informaram eles que
autores afirmam. De que se tem notícia, esse intercâmbio foi ralo e contingencial: em outubro
de 1645, da parte de Antônio Felipe Camarão e de Diogo Pinheiro Camarão, foram enviadas,
aos índios aliados dos neerlardeses, seis cartas; e, em março de 1646, apenas uma. Da parte
contrária, houve apenas uma carta, a de Pedro Poti a seu primo Filipe Camarão, de modo que
não me parece correto caracterizar essa troca desigual de cartas como uma verdadeira
correspondência.
Em 31 de outubro de 1645, Pedro Poti escreveu uma longa missiva em resposta às
questões colocadas pelo primo Camarão; nela, não deixava sombra de dúvidas a respeito de
sua posição pessoal no conflito. Na verdade, Poti — num gesto que não deixava de ser uma
resposta — tirara a vida do emissário da primeira carta que lhe fora remetida pelo primo; pelo
que Felipe Camarão, numa segunda tentativa, lhe escreveu: “eu, vosso próximo parente, vos
dirijo novamente algumas palavras, ainda que corra o risco de que assassineis o portador.
Porquê mandastes matar o outro?”717
Surge uma questão: por que a Pedro Poti foram enviadas três das seis cartas de
Camarão se, assim como aquele, Antônio Paraupaba e Domingos Fernandes Carapeba eram
também regedores e comandantes de índios aldeados? Uma resposta poderia ser: porque eles
eram primos. De fato, talvez Felipe Camarão acreditasse que, apelando para o parentesco, Poti
se dobrasse a seu convite de bandear para o lado dos luso-brasileiros (afinal, não obstante o
fato de estarem em lados opostos do conflito e professarem credos diferentes, não deixavam
de ser Potiguaras e parentes próximos); ou então a liderança de Poti junto aos índios, bem
como a inflexibilidade que caracterizava sua postura no conflito, levou Camarão a se
desdobrar na tentativa de persuadí-lo.
Poti, desde o momento em que retornou ao Brasil como aliado da WIC, não consta ter
demonstrado nenhum dilema quanto ao lado que defenderia no conflito luso-holandês.
Diferentemente do primo Felipe Camarão, que, ao menos uma vez, titubeou em suas
convicções. É verdade que durou pouco a incerteza deste último comandante, conforme
constatou o governo do Brasil holandês: “estamos a par do fato que Camarão se integrou
novamente aos inimigos em Bahia”.718 Mas, quanto a Poti, não houve tais incertezas; ao
contrário, já em 1631, recém chegado de Amsterdã — possivelmente retornara ao Brasil em
1630, na esquadra de Lonck —, deu início à costura de alianças entre índios e holandeses, a
começar por Janduí; conforme Souto Maior, em 1631 escreveu “uma carta em holandês ao
governo do Recife, recomendando-lhe os emissários de Jandovi e fazendo considerações
sobre a possibilidade de aliança das várias tribos de índios.”719
A irredutibililade de Poti caiu por terra na segunda batalha dos Guararapes, em 1649,
quando pagou com a vida a fidelidade irrestrita que devotara aos neerlandeses desde o dia em
que partira da Baía da Traição, rumo a Amsterdã. Cumprira-se, afinal, o que escrevera a
Felipe Camarão: “Ficai sabendo que serei um soldado fiel aos meus chefes até morrer”.720
Quando, em 1625, deixou seu povo na Baía da Traição, na Paraíba, e rumou para
Amsterdã na frota do almirante Hendricks, Poti dava os primeiros sinais do lado que em
muito conscientemente preferiria estar na dinâmica dos conflitos coloniais. Partiu com cinco
companheiros — assim como ele, filhos da nação Potiguar —, e por cerca de cinco anos viveu
em Amsterdã, onde aprendeu a língua holandesa, a ler e a escrever, e onde foi doutrinado na
fé calvinista, conforme suas próprias palavras endereçadas ao primo: “estive e me eduquei em
seu país”.721 Acredito que, ao deixar atrás de si aquelas partes do Brasil para singrar os mares
rumo a um mundo desconhecido, o jovem Pedro tinha uma certeza: não queria viver sobre o
jugo luso-católico que, enquanto índio aldeado, conhecia de perto. Não queria continuar como
escravo naquele que acreditava ser seu mundo e que, mais tarde, aprendeu a chamar de
“pátria”.722
Nas cartas trocadas entre Poti e Felipe Camarão desvelam-se, como, diz Cristina
Pompa, “as alianças e os conflitos que compõem as estratégias indígenas de sobrevivência e
defesa de seus interesses políticos e territoriais”.723 Tais cartas constituem, também, uma clara
demonstração de que os regentes potiguaras utilizaram suas habilidades de mestiços culturais
nas negociações entre seu povo e os representantes dos poderes europeus.724 Com efeito, Poti
procurava demonstrar ao primo que os benefícios recebidos (e a receber) por aliarem-se aos
neerlandeses eram (e seriam) melhores do que se manter “sob uma nação que nunca tratou de
outra cousa senão de nos escravizar”.725 Assim, às propostas insistentemente feitas pelo
primo, para que trocasse de partido, Poti respondeu:
É tolice o imaginardes que nos iludis tão facilmente com essas palavras vãs
(...). Não acrediteis que sejamos cegos e que não possamos reconhecer as
vantagens que gozamos com os Holandeses. Jamais se ouviu dizer que
tenham escravizado algum indio ou o mantido como tal, ou que hajam em
qualquer tempo assassinado ou maltractado algum dos nossos. Eles nos
chamam e vivem conosco como irmãos; portanto, com eles queremos viver
e morrer.726
A convicção de Poti, de que estar do lado dos neerlandeses era (e seria) melhor para a
nação Potiguar transborda por todo o texto da carta: “Estou bem aqui e nada me falta;
vivemos mais livremente do que qualquer de vós (..)” que por todo o “país se encontram (...)
escravizados pelos perversos portugueses, e muitos ainda o estariam, si eu não os houvesse
libertado.”727 Relembrava tragédias: “e a carnificina dos da nossa raça, executada por eles na
Baía da Traição, ainda estão bem frescos na nossa memória”.728 Invertia a proposta: “vinde
vos unir a nós, e garanto-vos que os holandeses vos farão os mesmos benefícios que nos
fazem.”729 E insistia para que o primo e os seus liderados trocassem de bandeira:
726 ibid.
727 ibid., p. 408.
728 ibid.
729 ibid.
730 ibid., p. 410.
731 ibid., p. 403.
732 ibid., p. 404.
206
Religião Cristã e a pratico diariamente”.733 E concluía garantido ao primo que, se ele também
tivesse sido ensinado na fé reformada, também de corpo e alma tomaria o partido dos
holandeses.734
Observa-se, aqui, a apreensão e o uso de conceitos cristãos por parte dos índios. Sobre
esses mesmos documentos, Pompa afirma que as cartas “são um testemunho precioso da
inserção dos índios no mundo colonial, em condições de igualdade política”;735 a meu ver,
elas testemunham também a apreensão de sentido e a instrumentação, por partes destes índios
aculturados, de conceitos cristãos em suas mútuas tentativas de persuasão.
Tenho afirmado, até aqui, que a escolha de Poti tinha um fundamento estratégico, em
vista daquilo que acreditava ser o melhor (ou o menos pior) para ele e seu povo; ora, diante da
afirmação de Poti, de que, se o seu primo Camarão conhecesse a fé reformada, “não serviríeis
com os pérfidos e perjuros portugueses”, surge uma questão: até que ponto as escolhas de Poti
foram pautadas pela fé que escolhera e, ao que parece, sinceramente abraçara? Afinal, qual o
significado de tornar-se calvinista para Poti? O calvinismo era melhor para os potiguaras não
enquanto crença, mas enquanto estratégia? E, então, nada teria a ver com a fidelidade à Igreja
reformada, com a cristalização de uma doutrina que teriam entendido e aceito como a
“verdadeira”? Seja como for, concordo com o historiador Ronald Raminelli quando afirma
que os “registros não deixam dúvidas do emprego de valores cristãos e políticos, próprios do
Antigo Regime, por parte de Poti e Camarão. Lealdade e fé constituem temas centrais em suas
estratégias para fortalecer as alianças com os colonizadores”.736
Naquela que foi caracterizada por Dantas Filho como um dos maiores fracassos da
história dos exércitos flamengos — a segunda batalha dos Guararapes, em 1649 —, Pedro
Poti se apresentou em campo no comando de “duzentos índios destros na milícia”, ocasião em
que foi feito prisioneiro e levado para o Cabo de Santo Agostinho, onde permaneceu
encarcerado por seis meses.737 Durante este tempo, segundo relato de Antônio Paraupaba, os
portugueses e luso-brasileiros muitas vezes instigaram Poti a abjurar a fé reformada, e a
“lançar-se no seio da Igreja Romana”; buscavam também persuadí-lo, por meio de promessas
de cargos e outras vantagens, a que se aliasse aos luso-brasileiros na guerra.738
Conscientemente, Poti morria fiel ao “alto juramento feito a Deus e aos Estados
Gerais; fiel tanto a um, como ao outro.”742 Talvez espelhando-se no exemplo dos mártires,
morreu em nome da fé reformada; mas também em nome de uma estratégia, visto que, nas
circunstâncias de sua vida, ambas se tornavam faces de uma mesma moeda. E não apenas em
sua vida, mas também, de modo geral, para os naturais do Novo Mundo, quando se
apropriaram dos valores do ocidente cristão a partir do momento em que foram “civilizados”
739 ibid.
740 ibid.
741 ibid., p. 432.
742 ibid., p. 431.
208
e cristianizados. Com efeito, se, para o homem europeu deste tempo, as dimensões políticas e
religiosas não se desvinculavam — pelo contrário, o reino espiritual e o reino temporal se
confundiam ao nível do cotidiano e das mentalidades —, o mesmo aconteceu com os
indígenas “civilizados” e catequizados por eles. Conforme diz Pompa:
743 POMPA. Para uma antropologia histórica das missões, In: MONTEIRO. Paula. (Org.) Deus na aldeia: missionários, índios e mediação
cultural. São Paulo: Globo, 2006, p. 132.
744 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit., p. 412-13.
745 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 8.
209
anos 1625 e 1630, como vimos. Possivelmente, compunha o grupo de potiguaras que partiu
da Baía da Traição na frota de Boudewijn Hendricks em 1625.
A educação de Paraupaba, assim como a dos outros cinco membros que compunham o
grupo, foi inteiramente financiada pela WIC. Na metrópole, sob a tutela de preceptores
calvinistas, aprenderam a ler e a escrever em holandês: “Encontramos-lhes [os índios] varias
vezes nas Províncias Unidas instruídos em nossa língua, sabendo como escrever”, registrou
Laet746; evidentemente, desde o início foram instruídos nos princípios e dogmas da Religião
Cristã Reformada, formação esta que, segundo o historiador Lodewijk Hulsman, foi realizada
por predicantes.747
Apesar de ter sido estrategicamente preparado na metrópole com vistas à colaboração
na conquista do Brasil, as informações sobre o que efetivamente aconteceu com esse grupo ao
longo do período neerlandês são bastante escassas. Sobre Antônio, não obstante, alguns dados
são suficientes para traçar um panorama geral de sua trajetória. Sabe-se que o guerreiro
potiguar, transformado já em “fiel súdito dos Estados Gerais”, encabeçou muitas batalhas a
fim de derrotar os “perjuros portugueses” — como se pode constatar, por exemplo, no
massacre de Uruaçu, no Rio Grande em outubro de 1645, quando os depoimentos da época o
apontam como líder militar de uma tropa de ameríndios. Pedro Poti fazia referências ao
massacre de Uruaçu na carta endereçada a Felipe Camarão, caracterizando-o como uma
desforra às atrocidades cometidas pelas tropas deste último em Serinhaém:
Vingança que, como lembra a historiadora Regina Célia Gonçalves, era “a liturgia da
guerra de vingança, elemento fundamental de sua cultura, [liturgia que] não foi esquecida.
Sempre que possível, ela foi acionada contra os portugueses, seus inimigos mortais”.749
746 LAET, J. de. L’Histoire du Nouveau Monde ou description dês Indes Occidentales. Leyden, 1640, apud Mello, Tempo dos flamengos,
op. cit. p. 208.
747HULSMAN Lodewijk. Guerras e alianças na história dos índios: Perspectivas interdisciplinares. Disponível em
www.ifch.unicamp.br/ihb visitado em 30/5/2007.
748 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit., p. 408.
749 GONÇALVES, Regina Célia. Os Potiguara na Guerra dos Brancos (1630-1654). Disponível em: www.ifch.unicamp.br/ihb visitado em
02/5/2007.
210
A desforra ou o massacre de Uruaçu foi narrada por Lopo Curado Garro, que
descreveu o cerco, as negociações e, por fim, o ataque perpetrado aos portugueses por
brasilianos e tapuias liderados por Antônio Paraupaba:
750 Breve, verdadeira, e autentica relação das ultimas tiranias, e crueldades, que os pérfidos holandeses usaram com os moradores do Rio
Grande (...). Lopo Curado Garro, In: CALADO, op. cit., v. II, 1987, p. 127.
751 Relatório apresentado por escrito (...), In: MELLO, op. cit., v. II, p. 212-3.
752 HULSMAN, op. cit.
211
nação”.753 Todavia, a convivência com uma outra cultura e o aprendizado de uma nova língua
parece ter redundado, de certa forma, em prejuízo para os dirigentes da WIC que lamentavam,
pouco tempo depois, “que os [índios] que tivemos aqui [na Holanda], por falta de uso
esqueceram a sua própria língua, usando a nossa como própria”;754 assim, parecia já não
servirem aos propósitos para os quais foram (re)educados: “interpretes dos selvagens e outros
serviços que lhes possa pedir conforme a sua capacidade”.755 Seja como for, o fato é que, já a
partir de 1631, há referências a esse grupo prestando serviço a WIC, tendo Paraupaba partido
em missão em 1633, como intérprete da expedição encabeçada por Artichofski e Stachouwer,
quando estes buscaram estabecer relações com os janduí, que habitavam terras do Rio Grande
e da Paraíba.756 Nas suas memórias de guerra, Duarte Coelho referiu-se a essas expedições
dos potiguaras educados na metrópole: “(...) levou alguns a Holanda, a fim de ensinar-lhes sua
língua, para depois se servir deles. Traziam agora seis, os quais mandaram ao Ceará, para, por
meio da persuasão, angariarem os muitos que ali há (...)”.757
Do lado dos brasilianos, a educação recebida em terras estrangeiras: o aprendizado da
língua holandesa, a conversão à fé reformada e a apropriação de suas práticas culturais — na
imersão cultural que significou o tempo de estadia nas Províncias Unidas —
instrumentalizou-os, fortuitamente, para a nova situação colonial, de que doravante faziam
parte. A trajetória de Paraupaba, neste sentido, foi exemplar.
Em trabalho recente sobre mediadores culturais nas possessões neerlandesas no Novo
Mundo, o historiador Marcus Meuwesse demonstrou que os indígenas educados na Europa
podiam se transformar em figuras de influência no mundo colonial, e que, nesse sentido, Poti
e Paraupaba constituem exemplos singulares de indivíduos que se transformaram em
negociadores importantes, cujo status proeminente foi demonstrado, de modo especial, pelas
repetidas viagens às Províncias Unidas. As vidas desses dois potiguaras revelam, portanto,
que alguns mediadores indígenas no mundo Atlântico alcançaram uma identidade
cosmopolita. A dependência mútua que caracterizou as relações entre flamengos e potiguaras
foi, de acordo com Meuwesse, o que tornou possível tanto a Poti quanto a Paraupaba
expandirem suas respectivas influências políticas como mediadores interculturais.758
753 Cartas do Conselho dos XIX ao Cons. Político de Pernambuco, datadas de Mildelburg, 30/5/1631 In: BSN, e de Amsterdã, 30/10/1631,
apud MELLO, Tempo dos Flamengos, op. cit., p. 209.
754 Carta do Conselho dos XIX ao Conselho Eclesiástico, datada de 9/11/1635. apud MELLO, Templo dos Flamengos, op. cit. 236.
755 Cartas do Conselho dos XIX ao Cons. Político de Pernambuco, datadas de Mildelburg, 30/5/1631 In: BSN, e de Amsterdã, 30/10/1631,
apud MELLO, Tempo dos Flamengos, op. cit., p. 209.
756 MAIOR, Fastos Pernambucanos, op. cit., p. 427 e LAET, op. cit., In: ANBNRJ, v. XLI-II, p. 34.
757 COELHO, op. cit., p. 117.
758 MEUWESE, op. cit. p. 161.
212
Com efeito, como alguém que aprendera e apreendera as formas de ser de uma outra
sociedade, Paraupaba tornou-se, de certa forma, um embaixador dos brasilianos junto à
direção da WIC e junto aos Estados Gerais, com os quais podia negociar sem intérpretes. Em
espécies de “viagens diplomáticas”, por três vezes dirigiu-se às Províncias Unidas a fim de
pleitear direitos ou ajuda aos brasilianos, a que se referia como os “fiéis súditos deste Estado
e da Igreja Cristã reformada”.759 Num claro exemplo daquilo que Marcos Galindo Lima
caracterizou de “noção viva, da dinâmica humana que permite aos seres sociais se adequarem
de forma inteligente, frente a situações novas”.760 A primeira viagem “diplomática” de
Paraupaba ocorreu em 1644, quando partiu na frota que conduzia o conde de Nassau de volta
à metrópole. Viajou com mais quatro brasilianos, cuja identidade não nos é revelada pelos
documentos. O objetivo desta viagem era requerer direitos a que os brasilianos, como súditos
dos Estados Gerais, teriam. Tendo chegado à metrópole neerlandesa em agosto de 1644, foi
recebido em audiência pelos diretores da WIC, em novembro.
No início de 1645, Antônio já estava de volta à colônia, quando, no limiar da
insurreição pernambucana, aconteceu a Assembléia indígena na aldeia de Itapecerica,
capitania de Itamaracá, resultado, certamente, das articulações ou negociações do mesmo
Paraupaba junto à direção da WIC.761 A liderança indígena reunida nessa assembléia
apresentou proposta, por escrito, aos Senhores do Alto e Secreto Conselho, representado pelos
presentes Conselheiros Hamel e Bullestrate. Os Conselheiros relataram que “compareceram à
sessão do Conselho um grande número de índios de todas as aldeias desta conquista e
entregaram umas propostas escritas, solicitando a nossa sanção para as mesmas”.762 Com
efeito, os índios, muito provavelmente liderados por Paraupaba, deixaram patente aos
Conselheiros que as reivindicações ali apresentadas já contavam com o aval dos Dezenove
Senhores: “Antes de tudo, exibimos a provisão763 que nos foi enviada pela Assembléia dos
XIX, na Holanda, datada de Amsterdam em de 24 novembro de 1644, referente à liberdade
concedida a nós assim como aos demais habitantes do Brazil.”764
Nesta Assembléia, portanto, os ameríndios reivindicaram a execução da lei que previa
liberdade a todos os brasilianos, inclusive aquele “que por acaso ainda esteja mantido como
escravo”; reivindicaram a união de algumas aldeias; reivindicavam ainda “para melhor
comodidade da nossa nação e do Governo (...) a fundação de três câmaras (Paraíba, Rio
Grande e Itamaracá)”.765 Nomearam, também, os brasilianos a quem desejavam que
governassem as Câmaras e as aldeias: “escolhemos essas pessoas de entre as mais honradas,
competentes e inteligentes de todas as aldeias, esperando que Vas. Exas. se dignem confirmar
a nossa eleição”;766 e, por fim, evocando mais uma vez a provisão dos Dezenove Senhores,
pediram que fossem supridos da quantidade necessária de predicantes e professores para suas
aldeias.767 A clareza, por parte dos brasilianos, de que estão num processo de negociações se
torna evidente na declaração que fazem ao concluírem suas reivindicações: “(...) e quanto a
nós garantimos não deixar de cumprir os nossos deveres”.768 Aliança negociada.
Com efeito, tal “viagem diplomática”, que redundara na Assembléia de Itapecerica,
teria significado um desafio aberto às autoridades do Recife e aos Dezenove Senhores; o que
sugere, diz Meuwesse, o quanto Paraupaba se sentia autoconfiante no papel de negociador
culturalmente mestiço — ou seja, na familiaridade que demonstrava em tratar com o intricado
império colonial neerlandês. Tendo empreendido viagens às Províncias Unidas, teria uma
certa fluência na língua holandesa e uma compreensão afiada dos meandros da complicada
estrutura governamental da WIC. O fato de ter tido contato pessoal com os Dezenove
Senhores, nas Províncias Unidas, pode ter feito Paraupaba acreditar que poderia negociar
diretamente com eles, sem a intermediação do Conselho Supremo no Recife (sobre os quais
também tinha o entendimento de serem sujeitos àqueles). Não obstante seu plano de eleger
um rei para os brasilianos não ter logrado êxito, a tentativa de negociação não deixa lugar a
dúvidas: os líderes indígenas exploraram ativamente seu acesso ao centro metropolitano de
poder colonial europeu para seu próprio benefício, bem como do seu povo.769 Do mesmo
modo, o fato dos índios escolheram a Paraupaba e a Poti como regedores770 demonstra que a
habilidade deles como negociadores culturalmente mestiços — em virtude do domínio da
língua holandesa e do conhecimento direto dos governantes da WIC (no Brasil e nas
Províncias) — tornou-os úteis, prestigiados e influentes aos olhos de seu próprio povo.
Nomeando a Poti e a Paraupaba para estas posições importantes, os brasilianos
demonstravam desejar regedores que pudessem interagir diretamente — quer dizer, sem
intermediadores tutelares — com o governo colonial neerlandês.771
Dois meses depois da assembléia, tinha início a insurreição pernambucana. Findava
o domínio neerlandês, nas capitanias do norte, em fevereiro de 1654. Sabemos que Paraupaba
sobreviveu. Mas, tanto ele quanto os brasilianos aliados dos neerlandeses, não obstante terem
sido incluídos no perdão geral quando da capitulação de Taborda, em 26 de fevereiro de 1654,
optaram por se retirarem do litoral, temendo que os luso-brasileiros não cumprissem as
promessas relativas a eles. Marcharam sertão adentro, para a distante Serra de Ibiapaba, a
oeste do Ceará, onde se juntaram aos índios Tabajaras.
Paraupaba, no entanto, fiel à sua inclinação diplomática e munido de suas
habilidades de mestiço cultural, embarcou rumo às Províncias Unidas, possivelmente em
algum navio que pirateava pelas águas cearenses. Ia em busca de auxílio e socorro para os de
sua nação, refugiados na Serra de Ibiapaba. Em terras neerlandesas, em 1654, redigiu uma
remonstrância, em holandês, onde pedia ajuda para os potiguaras refugiados, ou seja, para os
“súditos bons e firmes do Estado e Religião Reformada de Cristo”.772 O “embaixador”
dirigiu-se, desta vez, aos Estados Gerais, como um enviado de sua nação:
Sendo por isso o suplicante enviado a V Vás. Exas. por aquela Nação que
se refugiou com mulheres e crianças para Cambressive no Sertão além do
Ceará afim de escapar aos ferozes massacres dos portuguezes; para
asseverar a VV. EExas. em nome daquelas infelizes almas, não somente a
constância da sua fidelidade, como também que procuraram a sua
subsistência pelo espaço de dois anos, e mesmo mais, nos sertões, no meio
de animais ferozes conservando-se á disposição deste Estado e fieis á
Religião Reformada que aprenderam e praticam; contanto que VV. EExas.
se dignem garantir-lhes egualmente que no fim do dito prazo poderão
esperar auxilio e socorro de VV. EExas.773
haveriam de fazer com a sua nação “depois que ela procurou a proteção das armas deste
Estado e adotou o verdadeiro culto divino”. E sentenciava: certamente se não os socorrerem,
os portugueses hão de extirpar a fé reformada neles implantada.774 Continua Paraupaba, já
num tom de quase desafio ou desespero,
aquele povo não pode acreditar que VV. EExas. O recompensem dessa
forma por seus fiéis serviços prestados, (...) nem que permitam que aqueles
que foram uma vez trazidos ao conhecimento da verdadeira religião se
retirem dela e seja cortado o caminho que lhes apontaram para o Reino de
Jesus Cristo (...).775
774 ibid.
775 ibid.
776 ibid., p. 429, 30.
777 ibid., p. 429.
778 ibid., p. 429, 30.
216
remonstrância. Com efeito, na sua primeira remonstrância, Paraupaba informou que havia
deixado mulher e filhos para trás, trazendo consigo apenas dois filhos ainda crianças para o
consolarem em sua tristeza. No entanto, em julho de 1656, sua esposa Paulina se apresentou
como viúva pedindo assistência aos Estados Gerais. Portanto, ou Paraupaba empreendeu uma
viagem à Serra em busca de sua família, ou esta viajou às Províncias Unidas para se encontrar
com ele.
Por volta de 1654, o guerreiro potiguar havia recebido um posto como militar numa
cidade no sul das Províncias Unidas. Numa terceira “viagem diplomática”, apresentou aos
Estados Gerais, novamente em Haia, mais uma remonstrância, em que participava a prisão e
morte de Pedro Poti, evocando mais uma vez os fiéis serviços prestados às Províncias Unidas
e a fidelidade à fé reformada. Os documentos deixados por Paraupaba são ilustrativos da
apropriação que se deu por parte dos índios do poder temporal e espiritual da cristandade
ocidental, bem como dos conflitos vividos por essa cristandade cindida pela reforma
protestante e pela reação católica. De modo que, valendo-se dessa cisão, usaram também a fé
como instrumento de negociação.
Entre abril e julho de 1656, o guerreiro potiguar Antônio Paraupaba deixava as lides
desse mundo.779 Morria, em solo neerlandês, súdito dos Estados Gerais e fiel à fé reformada.
779 A remonstrância foi apresentada em abril de 1656 e sua esposa apresentou o pedido de assistência, por estar viúva em julho do mesmo
ano.
217
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste estudo sobre a missionação calvinista no Brasil holandês, espero ter
demonstrado que o componente religioso — marcante do homem desse tempo e espaço —
esteve intrinsecamente ligado aos interesses econômicos e à disputa de poder pela Companhia
das Índias Ocidentais em sua investida às capitanias do norte do Brasil; e que, para efeitos de
análise, é preciso levar em conta a necessidade de missionar que dominava os homens deste
tempo em ambas cristandades, a católica e a reformada. No Brasil, a missionação calvinista
efetivamente contemplou, dentre todos os grupos — luso-brasileiros, judeus, negros — que
estavam sob o domínio neerlandês, os indígenas.
Missionação que foi levada a efeito, em grande medida, pela apropriação dos saberes
católicos, ou seja, os predicantes procederam muito mais à cópia do modelo inaciano de
catequese indígena do que a criação de um modelo próprio ou singular de missionação. A
exceção fica por conta apenas da especificidade — sem dívida fundamental — que marcava a
missionação calvinista: a questão da alfabetização e do letramento dos índios enquanto
condição sine qua non de uma sólida evangelização reformada. A missionação que foi levada
a efeito, portanto, na “língua geral” e demandou a elaboração de um corpus de literatura
religiosa destinada especificamente ao uso dos brasilianos. Daí, a colocação de um dado novo
na missionação reformada, em oposição à missionação católica: a importância da palavra
escrita e da leitura. Palavra escrita na língua vernácula, que fascinou o índio e que uma vez
218
781 Nótula diária de 15/7/1639. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/monummentahigynia. Acesso em: 20 maio 2006.
220
Pantaleão Correia foi embarcado em um navio rumo às Províncias Unidas, “com toda a cortesia”,
mas não sabia que com ele embarcava a sentença de sua morte ou desterro :
Sobre este papista intransigente, Soler confidenciou ao amigo Rivet: “tinha merecido
mil mortes”, pelo perigo que representava junto aos de sua nação, por exercer sobre eles
grande influência, de modo que não restou a Sua excelência e ao Alto Conselho outra
alternativa que não “este gênero de morte, no intuito de quitar o conhecimento dele aos
índios.”784 De modo que, para os aliados fundamentais da conquista, parece não ter havido
espaço para tolerância e liberdade de religião.
782 Generale Missive, 5/8/1639. In: MELLO, José Antônio Gonsalves de. João Fernandes Vieira: Mestre-de-Campo do Terço da Infantaria
de Pernambuco. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000.p. 96-7.
783 ibid.
784 Dezessete cartas, op. cit., p. 84
221
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