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PACO
TE DE
AÇÚCAR
MAR
GARIDA
FON
SECA
SANTOS
e-manuscrito ®
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POR UM PACOTE DE AÇÚCAR | MARGARIDA FONSECA SANTOS
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POR UM PACOTE DE AÇÚCAR | MARGARIDA FONSECA SANTOS
1.
Olhou de novo para o relógio de parede, que lhe mastigava os dias. Faltavam
dez minutos para o fecho do notário, onde trabalhava desde a sua chegada à cidade.
pancada marcados na memória e no corpo magro. Porém, ver-se sozinho longe de tudo
não fora uma libertação. Trouxera consigo não mais do que uma autonomia frágil,
quase ingénua. A passagem dos anos somara marcas emocionais às antigas e fechara-o
em medos.
aberto. Madalena e Joaquim entraram num alarido que o assustou. Não por ser
desconhecido, mas sim por ser demasiado rotineiro. O coração acusou a aflição, bem
como o suor que lhe coroou a testa e humedeceu as mãos. Habituado a espiá-los,
encoberto pela massa dos óculos, rezou para que não lhe falassem. Conseguiu. Depois
um aliado.
disciplinada os seus minutos. Deixara os objectos alinhados numa ordem decidida logo
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Saiu. O vento atirava a chuva contra tudo e todos, numa fúria rancorosa.
António subiu a gola para se proteger, mas esta manteve-se torta, indiferente à função e
desdenhando mais uma vez do esforço. A paragem deserta avisou-o de que falhara o
de horário, tão rara por aquelas bandas. Por fim, resignou-se a esperar pelo seguinte,
conciliação deveras difícil. Quase sinistro, de tão inexpressivo, preso no tempo por um
eléctrico apareceu, entrou antes de todos sem hesitar. Ninguém protestou. Pôs a gola
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Abriu a porta de casa com a mesma dificuldade de outros dias, em luta com a
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distâncias precisas e a ausência de conforto. Uma casa desconsolada, mas disso António
não se queixava.
cozinha para a triste sala, o saco de plástico onde transportara a merenda. Pôs uma
cafeteira ao lume. Em menos de vinte minutos, jantaria pão da véspera com manteiga
com destreza de artista e desimpediria o tampo da mesa. Depois, sim, podia mergulhar
no seu sonho.
iguais dos limites da prateleira, garantindo assim a simetria que lhe dava segurança.
Abriu-o e puxou mais para si o candeeiro de latão. Só aquela luz conhecia o tesouro ali
escondido.
repousavam pacotes de açúcar vazios. Começou pela primeira página. Reviu toda a
colecção, que nesse instante continha 2.424 pacotes. O primeiro, recolhido havia já
vinte e dois anos, fora guardado no seu passeio de estreia pelas ruas da cidade. Só um
mês mais tarde conseguira encontrar a solução para proteger os pacotes. Desde esse
primeiro instante, aquela ocupação envolvia-o num objectivo capaz de o distrair dos
receios dos dias e de lhe ocupar os serões. Nascera assim um novo sentido para as ruas,
para os cafés, para as horas vazias de tarefas. Agarrara-se àquele pacote de açúcar, e à
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Chegou, por fim, à última página. Era a número 202, como podia ler-se no topo,
na etiqueta autocolante escrita à mão com letra de copista da Idade Média. Os dois
importante. Reconhecia-se ligado a uma lógica transcendente. Nem o facto de nunca ter
ocorrido qualquer episódio que confirmasse essa crença lhe toldava a esperança.
Não havia espaço para mais nenhum pacote. António levantou-se e abriu as três
por retirar duas da segunda e uma da terceira. Dessa forma, as três gavetas
lado do álbum e começou a desenhar os números das três novas páginas, em etiquetas
iguais às anteriores. Gastou nesse propósito dois minutos e trinta e dois segundos, mas
tosca abraçou-o, pois o novo pacote enquadrava-se numa série de versos de Fernando
Pessoa, de quem ouvira vagamente falar em tempos remotos. Deliciava-se com as séries
Na cozinha, ignorando a torneira que pingava por teimosia, fez uma incisão
cirúrgica com uma lâmina na parte de trás do pacote, junto ao rebordo. De seguida,
passou todo o açúcar para um frasco de vidro. Os restos, imperceptíveis àquela luz,
foram abandonados à sua sorte no lava-loiça, debaixo dos pingos. Uma formiga hesitou
na esquina da bancada. A noite prometia, como tantas outas, alimento suplementar, mas
talvez fosse mais prudente esperar pelo escuro. Invertendo a marcha, desapareceu por
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trás de um azulejo. António guardou então a lâmina com um cuidado extremo, paralela
relojoeiro, introduziu-o no primeiro rectângulo daquela que decidiu ser a nova página, a
203. Depois abriu as molas do álbum, acondicionou os novos elementos por ordem e
fechou-as. O barulho do metal produziu, naquele rosto esculpido, um sorriso que mais
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sussurros filtrados pela porta. António podia imaginar as várias pessoas à espera, em
fila, de frente para o balcão do notário. Atento, distinguia com uma facilidade extrema o
à sua volta o desprezo pelo ser humano. Não de forma generalizada, apenas se esse ser
fosse cliente do notário da Rua dos Sapateiros. O porte arrogante escolhido emitia
exigências subliminares a quem estivesse por perto. Os que lhe calhavam em sorte
sentiam sempre a imposição de fazer pedidos claros e rápidos. Era temida como uma
viúva negra, e António sabia disso. Joaquim, por seu turno, usava solas de borracha, a
chiarem a sua excitação não confessada por Madalena e a confirmarem uma submissão
cega ao que a via fazer e pensar. Compondo uma argamassa de ligação entre todos os
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espera. Os tacões anunciaram a invasão do arquivo muito antes de António ver a porta
abrir-se.
sua estratégia. Pegou em montes de processos para os pousar num outro sítio, enquanto
a espiava com cuidado. Foi repetindo estes gestos. Anotava na mente em que maços
mexera e onde os deixara. Tudo voltaria ao seu respectivo lugar assim que Madalena
dali saísse. Depois parou. Numa antecipação resignada de função, e esperando o que se
um cigarro, soprando o fumo para cima. Abriu a janela sem perguntar se podia, e o frio
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conversa com Madalena tinha para si, Joaquim comentou: ― Está tanta gente hoje...
― Ontem, hoje, amanhã, já alguma vez esteve pouca gente? Assim dá menos
trabalho.
para a porta.
poupamos tempo.
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― Qual poupamos tempo! Fazemos de conta que somos uns super-heróis, muito
rápidos e eficientes. Despache-se, António. Você hoje parece uma lesma, credo.
imaginar o silêncio que se seguiria a tudo. Entregou os papéis a Joaquim, mas viu-o
pior.
tirou do bolso um pacote de açúcar. Num levantar de sobrolho, avisou Joaquim para que
não perdesse pitada. Rodou sobre os calcanhares, com uma expressão trocista e um
sorriso corrosivo.
enjaulado faminto. Joaquim não se inibiu de soltar uma gargalha, tentando depois
perceber se Madalena o secundaria. Ela assim fez, dando-lhe autorização para lançar
pacote com todo o cuidado e guardou-o no meio dos seus documentos com gestos
firmes. Fechou a janela e apanhou a beata do chão, deitando-a depois no lixo. A cabeça,
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Era o dia do seu aniversário, mas ninguém se lembrara disso, nem ele. Só ao
reparar no cabeçalho de um jornal diário, onde se avisavam perigos vários por causa do
Não esperava qualquer telefonema. Cortara relações com o pai violento e com a
repetidos, onde o cheiro do álcool e a dor sofrida lhe apareciam de forma acentuada e
António precisasse da ajuda de uma delas, seria posto de lado. Madalena confirmara
Sentia-se sem idade, sem passado nem futuro. Vivia um dia de cada vez,
a ponta da gola a meia-haste, desafiando-o com aquela diferença. Com o avançar dos
capaz de, nessa assimetria, lhe dar um aconchego concreto. Só uma dúvida sobrevoava
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a sua mente: agora que se preparara para a aceitar torta, iria a gola mudar? António
detestava mudanças.
cantos revirados, de couro fingido, voltassem ao seu formato original. Quase conseguiu.
Procurou o pacote oferecido por Madalena. Oferecido? Não, arremessado. Mas isso não
Não saiu na paragem de casa, mas sim na seguinte. Sendo quinta-feira, deveria
percorrer os dois cafés para lá da sua morada. Fez o trajecto até ao primeiro.
depositou uma moeda no balcão, esperou pela chávena e pelo pacote de açúcar. Pegou
mente se deveria guardá-lo, pois pareceu-lhe em melhor estado do que aquele que
residia na página 103, terceira linha, quarta saqueta. Decidiu guardá-lo. Saiu porta fora,
açúcar.
conseguindo que ficasse direita, mas no minuto seguinte entortou-a de novo, mantendo
o novo padrão. Repetiu o gesto várias vezes, enquanto media as emoções que o
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paciência controlada com afinco, pelo boneco verde do semáforo, embora muitos
do momento de atravessar.
apito para cegos. Meteu de seguida por uma outra ruela, menos movimentada, e avistou
repente, à ordem do boneco vermelho. Atrás de si alguém refilou. Não lhe deu ouvidos.
passadeira, cheio da água suja a manchar o alcatrão, numa imagem entrecortada pelos
míopes. Era mesmo um pacote de açúcar desconhecido. Esquecido dos sinais, dos
avisos e dos receios, lançou-se numa pressa desmedida. Alguns gritos aflitos tentaram
suas rotinas, avançara e agachava-se agora para apanhar o pacote. O tempo parara para
si, a mão quase a alcançar o alvo. O tempo de todos os outros corria numa premonição
que se cumpriria. O som dos travões e da pancada seca deram por finda a cena.
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tudo isto, António assistira, sem falar. Uma vaga ideia invadira-lhe então os
― Tenha calma, Sr. António, fique quieto ― implorou uma enfermeira, pondo o
rosto mesmo em frente ao seu. Desejava sossegá-lo, mas era uma tarefa impossível. ―
Nada disso lhe interessava. Tentando libertar-se dos tubos e dos braços que
teimavam em prendê-lo, António olhava com insistência para a mão. O médico reparou
nisso:
― Amigo, então? Não tinha nada na mão, só um pacote qualquer todo ensopado
e rasgado, sem préstimo. Deixe-nos agora fazer o nosso trabalho, pode ser? A sua perna
aviso. Gemeu, afogado pela confusão. Por fim, conseguiu dobrar o braço e mexer a mão
direita. Fechada num punho, guardava, esperava ele, um tesouro. Só ao abri-la entendeu
as palavras do médico. Furioso, lutou com todas as suas forças para sair dali.
― Faça correr já a anestesia, Marquília. Estando assim agitado, ainda vai piorar
um morto.
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As horas passaram, mas não para António. Quando voltou a si, dentro do
diferente agravava-lhe os medos. Encontrava-se num quarto com várias camas. A dor
na perna incomodava-o, mas não tanto como os pensamentos. O ânimo ainda não
regressara para dentro de si. Porém, o receio de olhar para a mão era superior à
necessidade de saber. Dos colegas de enfermaria, recebia apenas imagens difusas. Não
sabiam do seu verdadeiro sofrimento, com o coração desatinado por uma interrogação.
Por fim, moveu a cara na direcção do braço, que repousava estendido ao longo
do lençol. A mão, de novo fechada, devolveu-lhe uma esperança muito ténue. Mordeu
urro, vindo das entranhas, alarmou os outros. Marquília apareceu numa correria
― Então, Sr. António, está com muitas dores? Deixe-me aqui dosear-lhe o soro.
caminho: encontrar aquele importante exemplar para a sua colecção. Precisava dele,
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vários afazeres que lhe preenchiam a clausura. A rendição dos enfermeiros nunca era
feita à mesma hora, com variações que podiam chegar a dez minutos, algo inconcebível
músculos haviam conseguido proteger o osso, mas tinham sido rasgados pelo pára-
Apoiado num andarilho, como um velho, António decidira ao terceiro dia impor
exceptuando a hora da visita. Esse era o momento em que uma multidão enchia os
cruzada, dizendo que António era um exemplo para os outros doentes. Nunca lhe
respondia com palavras, apenas com um olhar aflito. Mantinha-se firme na sua luta,
parando apenas, de tempos a tempos, para recolocar os óculos de massa no seu posto.
A visita dos médicos, ainda mais imprevisível nas horas que organizavam as
manhãs da enfermaria, representava para António uma tábua de salvação. Precisava que
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lhe dessem autorização para regressar ao seu desconsolado lar. Num esforço titânico,
para a outra semana, se tudo correr bem. Se tivesse alguém para o ajudar, eu dava-lhe
alta. Assim, não pode ser. Se algum amigo ou familiar se responsabilizar por si e o vier
buscar, isso é outra conversa. Até lá, nada feito. Sai quando estiver capaz de o fazer
por mania. Sonhava a mesma cena: a passadeira, o pacote de açúcar, António a avançar,
a dobrar-se para o apanhar, o som dos pneus no alcatrão. António arremessava, então,
para o carro um olhar agressivo. Levantava a mão esquerda e, com a força da sua
mente, atirava-o para o lado. Ao abrir a mão direita, encontrava o pacote ileso, seco,
no respectivo lugar, com toda a calma, olhando depois para as gotas que pingavam da
torneira, a pedir-lhes que certificassem o gesto. Contudo, nesse instante ouvia de novo
os travões. Acordava no meio de tubos e luzes, a mão vazia, uma dor a rasgar-lhe a
perna. Só depois acordava de vez, alagado em suor, com a esperança também rasgada.
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Quando se viu a cruzar a porta do hospital, tudo mudou. Levava umas calças de
roupa com que entrara e a gabardina, ainda suja de lama, vestiam-lhe o resto. António
rejuvenesceu assim que o vento lhe bateu na cara. Endireitou a gola, para depois a
apanhou o primeiro que apareceu, pois não fazia ideia de qual o poderia levar até casa.
Ignorou os olhares com que o avaliaram durante todo o trajecto. Parecia fugido
de um manicómio, bem sabia. António não lhes deu qualquer importância. Ia focado na
Chegado ao velho prédio, tentou subir, com a cadência antiga, os degraus que o
separavam de casa. Não foi capaz. Precisou de pousar sempre os dois pés em cada
degrau antes de conseguir içar-se, com a perna sã, para o seguinte. Por fim, lutou com a
porta e a ferrugem, sentindo-se a salvo quando acendeu a luz, apesar de ser ainda de
dia.
Recusando-se a manter aquelas roupas, enfiou-as num saco para as deitar fora.
Guardaria apenas a gabardina, mas teria de a pôr a limpar a seco. Tomou um banho para
quente em solavancos e roncos. Nada disso o perturbou. Já pronto, com roupa lavada e
os dois sacos preparados, saiu. A escada ofereceu a mesma resistência. Desceu devagar,
precisando agora de arriscar primeiro a perna convalescente, para que não se queixasse
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ao ser estirada. Sorriu com essa constatação: subiria com uma, desceria com a outra,
O primeiro destino foi o contentor de lixo, onde abdicou dos vestígios daquele
separavam de conseguir o que queria. Ofereceu, como ameaça para alisar dificuldades,
que agora abandonava. Pagou uma quantia exagerada para que lhe devolvessem a
como se apenas aquela gabardina o pudesse proteger do Inverno. Comprou pão, leite,
queijo e fruta, e voltou ao seu prédio. Na escada, o ritmo lento impôs-se. Ao reentrar,
observou a casa com afinco. Enojou-se com o pó e o chão baço. Com a minúcia da
obsessão em que vivia, lavou, limpou e arejou o espaço. Restabelecida a ordem, fechou-
açúcar. Na sua mente, decidiu onde ficaria o eleito, o que lhe desorganizara a vida.
Seria guardado na página 203, terceira saqueta da primeira linha. António anotara
para substituir um mais antigo e em pior estado. Consultou a página 103, terceira linha,
quarta saqueta. Comprovou o que antes pensara, mas a sua carteira, embora tivesse
conservado o dinheiro que guardava naquele inexplicável dia, deixara de ter aquele
outro pacote.
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Examinou de novo a página 103, terceira linha, quarta saqueta. Não, a mais urgente não
escapara da sua mão ao perder os sentidos. Queria o novo pacote, o que ocuparia, na…
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mais antigos, talvez possuíssem o pacote de açúcar que procurava. Sabia que não era de
nenhuma nova série, pois se assim fosse tê-lo-ia reconhecido de imediato. Só poderia
ser um outro, mais para trás no tempo, ou então próprio de uma marca concreta.
e bolos que aparentavam ter a mesma idade das prateleiras. Era secundado, em pano de
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postos nas imagens, agora já de uma mãe com três gémeos. Ainda tentou um
Sem lhe responder, António apenas pegou no pacote de açúcar, revirando-o com
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mudou o tom da voz. ― Não sei se reparou, mas atrasou-se dez minutos.
― Se você começa a atrasar-se, então o mundo deve estar por um fio… Não
conheço ninguém mais certinho. Mas eu entendo, repare, eu entendo. É o primeiro dia
depois do hospital, deve sentir-se ainda meio atarantado. Amanhã, espero-o às nove em
ponto.
fundo. Precisava agora de se ligar àquele espaço. Levou algum tempo a recuperar a
Uma náusea estragou-lhe a manhã, pois não havia qualquer ordem nas pilhas que
aguardavam entrada no arquivo. Pô-las de cabeça para baixo. Assim podia certificar-se
A boca de António abriu-se, mas nada disse. Esticada na sua direcção, uma
folha aguardava que dela tratasse. Numa rapidez alvoroçada, pois queria regressar às
suas arrumações, António procurou o original nos pesados livros de registo, fotocopiou-
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ainda mais esquisito do que antes, parece-me. ― Ao ver aparecer Joaquim, avisou-o. ―
Só conseguia ter coragem para fazer troça de António quando vinha acompanhado pela
― Deixe, António, eu faço isto. Tem aí muito trabalho para se entreter. Não
― Podiam estragar tudo ― disse António, quase a gritar. ― Sou eu que arquivo
Um aceno teria de servir como resposta, mas Joaquim não o poderia ver.
António já desaparecera por detrás de uma estante, levando consigo documentos para
criminoso.
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Não representara uma decisão fácil, mas, isso sim, muito consciente. No passado, seria
deixasse desarrumados? Num último instante, fizera o que o brio profissional lhe ditava,
lembrara disso antes? Por momentos, atribuiu as culpas à anestesia. Ouvira os seus
sem aviso, anestesiando as memórias dos operados. Isso assustara muito António. Na
mente, como uma assombração, ainda recordava a imagem da sala rodopiando sobre si.
Sabia que tal experiência só poderia ter sido nefasta para o seu cérebro.
A chuva decidira dar tréguas à cidade por um longo período. Apenas o vento se
aventurasse sem agasalhos pelas ruas. Trazendo apenas um cachecol suplementar azul,
Não foi fácil encontrar-se com o sítio onde fora atropelado. O corpo reagiu
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passeio, qual suicida na borda do precipício, indiferente aos resmungos de outros que,
pretendendo atravessar, se haviam colocado atrás de si. Só quando se acalmou foi capaz
alargar as suas buscas. Olhando em redor, esquematizou os passos a dar, num raio de
dois quarteirões. Não! Quatro, faria a busca num raio de quatro quarteirões. Sentiu um
moedas necessárias para oito cafés, trocadas nos cofres do notário. Passaria a ser a sua
atenção, teria de imediato concluído que aquele era um homem transtornado. Teria
acertado no diagnóstico, visto António estar de tal forma focado no seu objectivo que se
fumegar no balcão. Em todos ficaria uma moeda para pagar a despesa, e um espanto
No final da semana, frustrado e zangado com o que se ia sucedendo dia após dia,
recolhera apenas uma evidência: a estratégia não estava a resultar. Isso havia-o deixado
fraco e cambaleante. Aquela sexta-feira fora agressiva desde o início, atirando-lhe com
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― Eu? Sim.
― Não tomou o seu café, há pouco. Quer que lhe tire outro?
encomendado uma tal junção, mas nada naquele homem se poderia considerar normal:
nem a gabardina, nem o cachecol azul sobre o tecido castanho, nem o corte de cabelo
preso no passado, nem os óculos de massa gastos, nem os cafés por beber… nem a
muito, que desta vez ele ainda não pôs o dinheiro na mesa e tenho medo que se escape
sem pagar.
10.
O barulho das máquinas de escrever, dos selos brancos e dos carimbos haviam
começado a irritar António, coisa que, até à data, nunca acontecera. Aquilo que fora
durante tantos anos o seu refúgio, entretendo-o com o trabalho enquanto o dia passava,
parecia-lhe agora um empecilho nas suas horas. Regressara ao notário havia mais de
cinco semanas, mas em nenhum momento se sentira como em tempos idos, capaz de
adivinhar passos e humores, cumprindo o seu dever com esmero. Também não mais
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voltara a chegar às nove e a sair às sete, competindo nesse desaforo com Madalena e
Joaquim. O chefe ameaçara-o várias vezes com uma queixa para os superiores
hierárquicos, mas António renascera das cinzas com um trunfo: faria o mesmo aos
Madalena secundou-o, provocando um eco de tacões assertivos por todo o arquivo. Não
função em António. Este, resignado, avançou pelas estantes. Não hesitando nem por um
instante, agarrou no livro onde se encontrava o registo original. Caminhava agora para a
açúcar perdido. Imóvel, António achou aquilo mais do que uma coincidência. Era, isso
cotovelada a Joaquim e apontou para António com o queixo. Joaquim reparou, então, na
enquanto lhe atirava com uma baforada de fumo para o rosto, falou alto:
― Então?!
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colega, e tentou agarrar nos seus papéis, que permaneciam nas mãos de António.
Joaquim deixou-se ficar para trás, abanou as mãos em frente dos olhos de
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António não conseguia deixar de espiar malas de senhora nos eléctricos e paragens,
carteirista em busca de uns tostões. Até àquela tarde, nada mudara. As pesquisas davam
sempre lugar a falsas esperanças, seguidas de decepções. Sempre. Até àquela tarde.
Chocalhado pelo eléctrico, que gemia rua acima por estar apinhado de turistas
ruidosos, António encostara a cabeça no vidro, exausto. As noites nunca mais haviam
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seu direito a andar naquele velho transporte. Uma mulher acabara de refastelar a idade
avançada e o corpo roliço mesmo ao seu lado. Procurava o bilhete numa gigantesca
mala desarrumada.
simpático.
aquele pedido era tão supérfluo quanto perigoso, pois os outros ficariam furiosos se
cansado para o seu conteúdo. Tomou consciência de que nem sentira Amélia ocupar o
lugar do miúdo sardento que antes o acompanhava. Alvoroçado por esta constatação, e
ânimo. Por fim, Amélia encontrou o bilhete. Enquanto o mostrava ao revisor, permitiu
que António olhasse para o interior da mala com toda a liberdade. Dando um suspiro
descontrolado, António viu-o. Exibindo apenas um terço do desenho, ali estava o pacote
de idade com um leque velho, maldizendo aquele desconforto. Ainda para mais, o
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eléctrico transbordava de idiomas diferentes, tendo sido salpicado com cheiros exóticos.
António, por seu turno, mantinha os olhos na abertura da mala, sabendo o lugar exacto
circundantes. Todos, menos António, que logo previu uma oportunidade. De mala de
novo aberta, a mulher procurou um lenço de assoar, o que demorou tanto tempo como
para encontrar o bilhete. Assoou-se com força, provocando mais uns trejeitos nos
eléctrico quando Amélia o fez, e a caça começou. Seguiu-a a vários passos de distância.
Contemplou como arrastava o peso dos anos pelo passeio e viu-a entrar no número 46
esperou por uma luz que se acendesse a qualquer instante. Preocupado, pedia aos céus
que o apartamento de Amélia não fosse na parte de trás, pois assim nunca mais saberia
andar, a correr as cortinas para não ficar sujeita às bisbilhotices dos vizinhos. Feliz,
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que de nada lhe serviria usar Madalena e Joaquim como bodes expiatórios. Estes
saíra do hospital, vários pacotes de açúcar diferentes, o lugar para aquele exemplar
específico nunca fora ocupado. A terceira bolsa, da primeira linha da página 203, onde
ia no dia do acidente, ficara vazia, pois só um pacote poderia ocupá-la: o certo. Todas
acariciava-o, como quem pede desculpa por não ter ainda conseguido levar a bom porto
a sua demanda.
Depois de uma existência marcada por tarefas com tempo marcado e medido, gestos
pensamentos caóticos e ânsias. Havia dias em que nem sacudia a sua gabardina do
modo aprendido e repetido desde os seus 16 anos, data em que recebera a sua primeira
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dando cabo do magro orçamento de funcionário público do fundo da carreira. Mas nem
o seu físico seco ganhara volume com este novo hábito, pois a empreitada era de tal
distância calculada com afinco, seguia-lhe os passos, descobrindo também uma lógica
interna nas semanas de Amélia. Os fins de tarde eram sempre passados em longas
conversas com a porteira do prédio, o que facilitava muito a vida de António. Podia
controlá-la ficando dentro do café em frente, do outro lado da rua. As manhãs eram bem
diferentes.
moderna, com uma jovem muito parecida consigo, talvez filha. Às terças, ia ao mercado
Deixava por lá uma boa dose de lágrimas e flores, mas isso nunca comoveu António.
desnorteava António, pois, durante as quatro semanas que já passara a espiá-la, nunca
repetira uma actividade. Fora às compras na Baixa na primeira, estivera a ver barcos no
rio na segunda e, na terceira sexta, fora a uma casa velha, no extremo oposto da cidade.
Ia carregada de embalagens de comida. De quinta para sexta, António dormia ainda pior
do que nas outras noites, por saber que o dia seguinte era uma incógnita.
Naquela sexta, Amélia refastelara-se a ler um livro amarelecido pelo tempo, que
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a sua timidez permitiria noutros tempos. A mão, nervosa mas firme, já se estendera para
giro correra na sua direcção, e António viu-se forçado a empreender uma fuga
sem se aperceber de que fora o alvo do ladrão, apenas levantara os olhos do livro
durante sete segundos e meio, regressando depois ao sítio onde o dedo gordo repousava,
escondido num vão de escada. Uma esquina abaixo, o polícia arfava de excesso de peso
13.
Sendo uma boa porteira, Dona Felisberta conhecia a vida dos inquilinos do seu
prédio, mas não só. Num raio de seis números para cada lado, fossem pares ou ímpares,
não havia um morador que lhe passasse despercebido. Além desta base confortável de
netos, visitas regulares e até amantes. Como um vespertino, divulgava notícias a quem
as quisesse ouvir. Com alguma subtileza, insistia em contá-las aos que pareciam não se
interessar pela vida dos outros. Deitava sempre uns retoques particulares quando lhes
passava um recado não solicitado, para perceberem o quanto sabia de cada um deles.
― Assim ficas ao corrente do que sei de ti! Não julgues que me enganas.
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Nunca aquele homem se encontrara com pessoas costumeiras no seu raio de acção.
Descobrira-lhe uma fixação pelo número da porta de que era responsável, o que a
deixara bastante inquieta. Seria ladrão? Se o era, deveria ser muito incompetente, pois
estudantes sem vintém e casas desabitadas. Contudo, isso não a demovera de querer
Cátia do cabeleireiro com Carlitos do talho. Depois de andarem muitos anos num
arrulho sem parança, chegara a hora de assumir a relação. Parecia-lhes uma solução
muito boa. Cátia cortava e penteava como ninguém, além de ser barateira. Carlitos, que
o bairro vira crescer, tomara o lugar do pai, falecido dez anos antes. Conseguia sempre
carne mais em conta do que qualquer outro estabelecimento. Às vezes saía um bocadito
rija, era verdade, mas não havia quem não lhe desculpasse esse pormenor. Ficariam ali,
assegurando assim as vantagens para os moradores e libertando uma morada. Isso iria
alegrar as vidas de todos, sobretudo a de Felisberta, que poderia conhecer novas caras e
arguta e quase tão observadora como a porteira, avançavam sempre muito nestas trocas
Felisberta apurou o olhar, ficando com a certeza de que ali vinha o tal homem, o grande
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mistério. Começou, sem grande sucesso, uma frase de alerta, mas Amélia não parava de
Numa pressa disparatada, entrara na pastelaria e pedira algo para comer. Felisberta
sossegou, começando a imaginar uma outra razão para aquela rotina. Cláudia Marisa, a
moradora do 2.º esquerdo, começara a arranjar-se mais nas últimas semanas. Andaria o
Cláudia Marisa era tão feia que, naqueles treze anos ali passados, nunca Felisberta lhe
debaixo de um exame sem tréguas. Acabara de perceber o perigo que corria com aquela
porteira. Precisava de ser mais cuidadoso. Afastando o prato vazio, deu a sua jornada
e Felisberta. Um sorriso malandro passou a habitar os rostos de ambas, ao vê-la dar uma
corridinha pelo passeio, deixando um rasto de perfume barato na escada. António, num
passo mais lento, saiu da pastelaria ao mesmo tempo, olhando para o prédio de
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14.
Madalena acabava de entrar na sala, mas isso já António previra ao ouvir os seus
qualquer coisa. Não alcançou grande sossego, pois Madalena veio colocar-se mesmo a
seu lado, de braços cruzados. Depois de esperar uns segundos, atirou-lhe uma pergunta:
Como António não respondia, apenas se chegara mais para o lado, sempre a
― Não ouviu? Sabe, por acaso, que horas são? Isso é gaja, ou quê?
― O Sr. Freitas quer falar consigo, António ― mentiu Joaquim. ― Espero que
a desculpa de hoje seja melhor do que a de ontem. O nosso chefe está irritadíssimo.
sala. Fechou a porta com cuidado, talvez para esticar o tempo até à reprimenda.
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ideia de que ele controla tudo, que podia saber que o chefe ainda não chegou e que não
saía daqui… Está meio louco, mas não é burro. Não ia arriscar-se a pôr o Freitas em
fúria.
― Já percebi, não precisas de repetir! Fica lá com o dinheiro, não caio noutra. O
António, com um esgar de nojo, Joaquim mantinha a porta entreaberta e espreitava para
fora. Nem de propósito. O chefe aparecera entretanto e estava, mais uma vez, a ralhar
fila. De olhos postos no chão, António não argumentou, aguentando com embaraço a
gritaria.
impressionou os outros dois. Revirou-o nas mãos, com a cara torcida de raiva. Num
― É mesmo louco…
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15.
tornara-se muito difícil de seguir, o que desesperava António. Desde apressar plantas e
flores, sem se decidir a comprar nenhuma, conversar com uma amiga de longa data
numa esquina, a entrar numa loja de roupa em promoção, comportara-se de uma forma
tão errante que António começara a irritar-se. Passivo por natureza, ou talvez por
silencioso. Primeiro, rompera com a maior parte das rotinas estudadas, aperfeiçoadas e
mantidas, sem mazelas, no passado. Depois, começara a ser capaz de sentir-se irritado,
Quando a viu entrar numa pastelaria onde nunca havia estado, António
secundou-a. Sentou-se numa mesa por trás de Amélia, mas em ângulo recto, perto o
António acenou para o criado, mas este nem o viu. Empurrou os óculos de
massa com força e ficou com uma expressão angustiada, concentrando as atenções em
Amélia. Duas vantagens caíam a favor de António: o facto de a sua presa estar
constipada e os calores que a assaltavam sem aviso. Não levaria muito tempo a ir buscar
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lhe os movimentos sem se distrair. Um lenço de assoar foi retirado, enquanto a mala
― O senhor deseja…?
nem dera conta de que o empregado viera depositar o pedido de Amélia na mesa.
Amélia virou a cabeça para trás, como se se sentisse observada, e não gostou do que
António era uma visão aterradora. Não o identificou como o pretendente da quarentona.
Apenas não gostou de o encontrar centrado nela. Desconfiada, virou-se para a frente e
― Esqueceu-se do açúcar.
prendera.
procurava. Seguindo-lhe os passos, António sentiu uma vertigem. Nunca ali entrara,
Amélia possuía um igual, podia resolver tudo naquele momento. Mas a esperança durou
pouco. Atirado para cima da mesa e recolhido pelas mãos ansiosas de António, o pacote
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abandonou o pacote ao lado do café, no qual ainda não tocara. Era igual ao da página
deixando uma moeda para pagar a despesa. Amélia viu-o, ia ele já na rua. Suspirou e
depositou de novo a mala na cadeira ao lado. O criado ficara a olhar para ele, enquanto
segurança. Foi comendo a torrada devagar, bebericando o chá, mas algo se inquietara
dentro de si. Uma pergunta fazia uma ressonância esquisita: «De onde conheço eu este
homem?»
16.
desorganizasse, para permitir a todos uma espreitadela sobre aquele espectáculo, que
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disforme que depositava em si a curiosidade. Envergonhado pelo grito, e por ter de lhe
― Bem…
― Bem não, mal! Falta! Eu tinha-lhe dito que tinha de fazer isto.
enquanto olhava para as pessoas que assistiam à cena. Muitos se questionavam: onde
― Eu posso…
― Podia, diga antes assim! Podia! Agora é demasiado tarde. Explique aqui a
sem nada dizer. Por sua vez, António também não conseguia articular nenhuma
justificação. Madalena ia ficando cada vez mais impaciente. Pegou no processo e, com
um gesto brusco, espetou-lho no tronco. Sentou-se. Não olhou mais para ele.
― Tem cinco minutos! O senhor espera cinco minutos por si, antes de falar com
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Consultou as estantes, confundido por não as entender. Era a primeira vez que tal lhe
acontecia. Precisou de muito mais do que cinco minutos para fazer o que lhe fora
Joaquim pegassem no processo. Sem tirar os olhos do que fazia, Madalena apenas lhe
ordenou:
aquela travessia crucificada da repartição, António avançou até à porta do chefe. Bateu
ao de leve, mas a ordem de comando que recebeu de dentro ditou logo uma sentença: o
17.
Para António, ter a vida desassossegada era um mal necessário desde o acidente,
pela porta da frente, deixando o balcão emudecido de espanto. Nada nos seus passos
escondera a determinação com que o fizera. Ia ansioso e focado num objectivo, embora
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colecção pela décima quarta vez consecutiva. Parava sempre ao chegar à terceira
de continuar para uma nova página, a número 204, sem aquele pacote de açúcar.
decrescente dos seus dias enquanto empregado da repartição. Era urgente voltar à rotina
antiga, eficiente e submissa. Dali até ao fim da semana, teria de conseguir um resultado
concreto!
vez todos lá dentro, lhe haviam aplicado por vingança nas costelas. Descera na paragem
de Amélia e quase correra para perto do prédio. Encostado à parede, esperara com uma
inquietação insuportável.
Assim que Amélia saiu de casa, uma sombra somou-se à sua. António seguia-a a
uma distância nunca antes ousada. Sentindo-se de novo observada, Amélia olhou para
trás, num relance curto e imitando uma distracção. Reconheceu-o de imediato: era o
homem da pastelaria, o que tentara mexer-lhe na mala! O coração afligiu-se muito mais
raciocínio.
Assim que alcançou a drogaria do Sr. José, entrou. Viu António passar e
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Amélia obedeceu, não sem antes espreitar a rua, onde já não encontrou António.
Descansou perto de dez minutos, exactamente o tempo que António previra que ela ali
Quando Amélia retomou o percurso, várias vezes espiou a sua retaguarda, mas o
duvidou. Talvez não fosse o mesmo que a tentara roubar na pastelaria. Pensando bem,
já se cruzara com ele muitas vezes, atribuindo logo a essa coincidência o parecer-lhe
encoberto por outros. Quase conseguiu arrancar-lhe a mala numa esquina. Estando
Amélia mais descansada, nada notou. Mais uma oportunidade se gastava, sem sucesso.
18.
Febril, obcecado pela sua cruzada, António chegara à rua ainda antes de Amélia
acordar.
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das ocasiões Amélia o viu. Em nenhuma ocasião António conseguiu enfiar a mão
dentro da mala.
Num dos momentos, pôs-se mesmo colado a Amélia, que não se apercebeu de
laranjas distraíam-na do resto do mundo. Também não o sentiu por perto antes de
― Se vi! No outro dia, até me assustei, pensei que andava a perseguir-me. Tem
― Se fosse só o ar. Ainda não percebi onde mora, só o vejo no passeio, todos os
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vira, e já eram muitos. Somou-lhes os argumentos dados por Dona Felisberta, que
vizinha. Tudo se enquadrava num plano de terror. Aparecia sempre a horas relacionadas
com as saídas ou entradas de Amélia, assegurou Felisberta. Isso chegou para que as
cerimónia na preocupação.
um caminho diferente aos seus passos. Se, num outro dia, aquele poderia ser sinal de
funestas de forma clara. Amélia apressou-se a entrar. Não queria permanecer ali fora, à
mercê daquele homem sinistro. Mesmo tendo Dona Felisberta insistido para que
conversassem mais um pouco, Amélia não se sentiu segura. Precisava da paz do seu lar,
António avançou até à esquina. «De hoje não passa», pensou, com um tal
entusiasmo que podia até sentir nas mãos o pacote de açúcar em falta.
19.
As horas haviam passado pela rua, mas não por António. Escondido por detrás
de uma cabine telefónica, mantinha-se atento. Dona Felisberta regressara a casa, depois
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planos. O prédio exibia luzes em quase todas as janelas, e isso dizia-lhe que os
inquilinos estavam em casa. Mas António sabia, num lugar remoto da sua mente, que a
noite, tudo seria colocado no seu lugar: o pacote na saqueta, os horários do emprego e
E era quinta-feira, o que fazia um sentido especial. Era às quintas que o pai se
apaixonava pelas garrafas, antecipando por um dia o fim da semana. Começava uma
quintas, António precisava de se pôr entre a mãe e o pai, levando, por ela, pancada de
cinto. E sempre às quintas ele pensava como a mãe se esqueceria de repetir o gesto nos
dias seguintes, quando, às sextas e aos sábados, o pai investia sobretudo contra o filho,
irritado como se António fosse culpado de alguma coisa. Era, sim, era culpado de ser
filho de ambos. Não adiantava que o pai lhe pedisse desculpa ao domingo, nem à
segunda. António sabia que tudo se repetiria sem desvios. As quintas funcionavam para
si, por tudo isso, como o início de um sofrimento que lhe provava como era capaz de
aguentar, como ficava mais forte a cada cicatriz. Ou seja, para António, nenhuma
desconjuntada do rapaz do 2.º direito aparecer ao fundo da rua. Vinha carregado com
pastas de dimensões pouco comuns. Talvez fosse estudante de artes, mas isso não
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rapaz entrasse. Num bailado perverso, cruzou-se com ele, continuou, mas depressa
voltou para trás, a tempo de entalar o calcanhar entre a pesada porta de ferro e o
batente.
O rapaz, esquecido já dele, subiu as escadas com desenvoltura. Não olhou mais
para a porta. Era impossível que não se fechasse, por ser tão pesada. Passado um minuto
Nesse momento, António penetrou no prédio e amparou a porta para que não batesse.
a deixá-lo invadir o seu mundo. Sabia que Amélia o encarava agora como uma clara
ameaça. Contudo, essa dificuldade durou apenas alguns minutos. António começou a
sentir um gato a enrolar-se nas suas pernas, queixando-se com um miado mimado.
Detestava animais, sobretudo gatos, que não se inibiam de um contacto físico melado.
miados. António ouvia-lhe as unhas a raspar na porta e sorriu para a evidência. Amélia
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― Vês? Vês, Maurício? Eu disse-te que não devias fugir para a escada. ―
Várias voltas de chave e uma corrente desalojada do seu posto cederam às mãos de
A porta aberta para António! O gato era o centro das atenções, a escuridão
tapando-lhe de imediato a boca e entrando sem hesitação, Amélia nem queria acreditar
na sua ingenuidade. Viu-o fechar a porta com uma cautela que não augurava nada de
bom. No último segundo, o gato escapuliu-se de novo para fora, quase entalando a
cauda. Achara por bem permanecer na escada. António estava agora a um passo do
pacote.
20.
por um cachecol azul com um cheiro difícil de aguentar, Amélia assistia a tudo sem
entender.
Envergando uma gabardina velha e fora de moda, procurava por toda a casa qualquer
coisa. Ouviu-o abrir a gaveta onde guardava as jóias de família e desprezá-las. Viu-o
retirar a tampa da caixa de louça onde escondia a reforma, atirá-la para o chão para a
desfazer em cacos e desaproveitar o dinheiro. Por fim, observou como ficou feliz, como
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com uma cautela quase carinhosa. Por fim, despejou o conteúdo na carpete. Tudo se
espalhou: o leque, moedas soltas, lenços de assoar usados e por usar, um pente com
dois dentes partidos, uma agenda de telefones estragada, comprimidos de duas cores,
Mantendo-se de joelhos, António afastava as coisas umas das outras, com gestos
a carteira para o fim, pois sabia que ali se encontrava o seu tesouro.
para as moedas foi passada a pente fino. Depois a das notas. Por último, uma outra de
Amélia deixara de gemer. Já nem se debatia. Nada nos gestos de António lhe
parecia lógico. Não fosse o cheiro sebento que a sufocava, poder-se-ia dizer que
para Amélia, chegou mesmo a produzir em si uma certa pena. Aquele homem estava,
Com as mãos a tremer, António puxou pelo pacote devagar. Não podia rasgá-lo,
tinha de ser meticuloso. Contudo, algo na sua mente se assustou quando começou a
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Também sabia de cor o atrito que fazia dentro de uma divisória. O pacote deslizava
como se não estivesse grávido de açúcar, e isso não fazia qualquer sentido.
Quando por fim o retirou por completo do esconderijo, António teve duas
certezas. A primeira, que era aquele o pacote que procurava; a segunda, que não era
aquele o pacote que procurava. E tudo isto porque, embora de desenho igual, tamanho
idêntico e peso parecido, aquilo não era um pacote de açúcar, mas sim um toalhete
perfumado.
uma vez, a mãe não o tivesse protegido. Doeu-lhe o corpo como se, mais uma vez, o pai
o tivesse fustigado com o cinto. Amélia olhava para ele em profundo silêncio,
tresloucados de frustração. Sentindo dentro de si uma ira que tantas vezes amachucara
felizes, de familiares desaparecidos, destruindo tudo o que antes repousara nas estantes
e mesas.
António via nela a culpa, a culpa que já não pertencia a António. Sim, Amélia era
culpada, culpada por tê-lo enganado! Amélia era tão culpada como a mãe, que nunca o
amara de verdade. Num movimento tão brusco como potente, atirou a poltrona para trás
e virou-lhe costas. Abriu a porta cambaleando e saiu. Apenas se cruzou com o gato.
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Na sala, no centro daquele furacão, jazia uma poltrona de pernas viradas e uma
vida acabada. O gato, evitando os estilhaços, cheirou a dona e manteve-se com ela até
alguém aparecer, ou, talvez, até a alma se despegar daquele susto e rumar a uma
21.
lancinante da vizinha de baixo, Cláudia Marisa, que, alertada pelo estardalhaço de tudo
depressa. Num caminhar desfeito, escutou mais gritos atrás de si e apenas não parou.
Dona Felisberta, a única que o poderia reconhecer, desfalecera ao dar com a amiga de
olhos postos no infinito, num espanto insuportável. Mas disso, António não podia saber.
misturando-se sem cerimónia. Mas o que o mantinha em transe, fora do mundo, era
aquela página 203, com a terceira saqueta vazia na primeira linha, pronta a albergar
aquilo que fora o pacote de açúcar mais importante de toda uma existência.
sentido. A ordem, antes controlada e segura, mostrava-se agora desconexa. Tinha para
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dias feitos de rotinas. Para a frente, apenas um futuro sem lógica, descomposto por
Como poderia António regressar a casa? Como poderia olhar para a estante e ver
a colecção equidistante dos lados, pronta a ser admirada? Como poderia regressar ao
Avançou sem rumo durante horas que lhe pareceram anos, repetidos numa
confirmação do fracasso, do engano e da revolta. Cruzou ruas sem obedecer aos sinais.
Ignorou a chuva, que se adensou para o vergar. Reafirmou-se um ser dispensável, tal
como o pai lhe repetira durante anos. Pela primeira vez, soube que ele tinha razão.
22.
antecipação de uma vitória. A manhã de sexta, não a confirmara. Nada sucedia como
quando era jovem. Os pés acusavam o somatório de quilómetros percorridos nos dias e
pediam-lhe alimento, também sem sucesso, pois nunca se lembraria de comer. A cabeça
possível. Quem com ele se cruzava encostava-se à parede, com um receio inexplicável.
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no sítio exacto onde vira, pela primeira vez, o pacote de açúcar. Imobilizou-se, num
misto de fé e nojo, a atenção suspensa pela chuva e pelos carros que pisavam,
indiferentes aos peões, as poças de água escura das bermas. Deixou que o olhar
sentia tão merecida, deixou que a progressão de listas brancas e pretas se desenhasse.
E foi então que, a meio da passadeira, no meio da água suja e do alcatrão, numa
ao nariz, fixou melhor os olhos míopes. Era mesmo o pacote de açúcar procurado com o
perfumado.
Esquecido dos sinais e dos hábitos que acabara de perder, dos avisos e dos
receios atirados para fora de si pela frustração, lançou-se numa urgência desmedida.
Alguns gritos aflitos tentaram impedir a tragédia, mas António abandonara o passeio e a
segurança, esquecera-se das rotinas, avançara sem hesitar e agachava-se agora para
apanhar o pacote. O tempo parara para si, a mão quase a alcançar o alvo. O tempo de
O som dos travões deu por expirada a vida de António. O corpo já não rumaria
já não procuraria mais o pacote. As emoções não mais o iriam afligir. Debaixo da chuva
forte, António deixou de ser aquele homem quase sinistro, de tão magro e inexpressivo,
preso no tempo por um corte de cabelo fora de moda. Era, agora, apenas um morto com
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FICHA TÉCNICA
JULHO DE 2017
58
e-manuscrito
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