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Discurso de legitimação da política na Antiguidade

ANTÓNIO AUGUSTO TAVARES

Universidade Nova de Lisboa

Discurso de legitimação é tema vasto que pode encontrar-se em todas as


épocas da história e nas mais variadas circunstâncias. Na Antiguidade, poderá
considerar-se como uma categoria hermenêutica que deve estar presente de
modo especial na interpretação e análise das fontes de história política. E tanto
pode legitimar algo que vai acontecer como um acontecimento passado.
Assumindo a forma da oratória convencional ou recorrendo ao sonho, à prática
da adivinhação ou da profecia, ou servindo-se do oráculo mais enigmático e de
múltiplos meios, o "discurso" de legitimação, permite compreender os ínvios
caminhos que a história por vezes seguiu, bem como anomalias que se
impuseram como normas. Numa palavra, explica o que logicamente seria
inexplicável.

Nesta despretensiosa e singela digressão, começamos por recordar exemplos


significativos na história dos povos e civilizações da Antiguidade Oriental, para
depois analisarmos a força que adquiriu na ideologia imperial em Roma.

Habitualmente faz-se coincidir o início da história com o aparecimento das


fontes escritas e aceita-se que tal ocorreu na Mesopotâmia. Foi também aí que
nasceu o primeiro império, pelo século XXIV a.C., tendo por fundador Sargão.
Homem de origem desconhecida, de infância obscura, emigrante das regiões
semíticas, passa de copeiro-mór na corte do rei de Kish a rei e fundador de
Acad, cidade e reino que se situaria onde actualmente se ergue a bela cidade
de Bagdad. Organiza um exército de 5400 guerreiros profissionais, consegue
unificar o sul da Mesopotâmia e estende os seus domínios territoriais de forma
até então nunca vista. Pela documentação da época, verifica-se que
ultrapassou de longe, nas suas conquistas, as fronteiras da Mesopotâmia:
avançou até ao Mediterrâneo, impondo o seu poder pelas terras das suas
margens orientais, como o Líbano e apoderou-se de reinos poderosos da
época, como eram Ebla, Mari, Yarmut, etc. Pela primeira vez, como comenta
Paul Garelli, um estado metia directamente em comunicação os países do
Oriente e do Ocidente"[1].

O facto devia ter impressionado vivamente os seus contemporâneos que se


deram conta de que o mundo era muito maior do que pensavam. Estavam
perante um mundo novo. Foi assim que transpuseram da realidade para a
lenda o herói de tais proezas. Como acontece na "idade dos heróis", própria
da origem dos povos, de que fala Chadwick, também aqui se deu o fenómeno
da heroicização. A explicação de tão altos feitos, a legitimação do herói
consistiu na predilecção que teve por ele a deusa Ishtar, deusa do amor e da
guerra. É em síntese o que nos informa a notável inscrição que permanece na
estela de Sargão, cujo texto longo, de índole fantasiosa e laudatória, termina
com estas palavras: "a deusa Ishtar tomou-se de amores por mim, e desta
forma é que eu exerci a realeza durante 56 anos"[2].

O núcleo forte da ideologia política de império nasceu ali: Sargão conquistara


praticamente todo o Médio Oriente por ser o eleito da deusa Ishtar. O mesmo
fenómeno de heroicização continuaria com os seus próximos descendentes,
especialmente com o neto Naram-Sin. Figuras reais passavam da história para
a lenda. Criava-se uma autêntica ideologia imperial que iria continuar por
diversas épocas. Com a predilecção da divindade, as conquistas e as guerras
seriam sempre legitimadas. Tal aconteceria por exemplo com Gudeia, príncipe
de Lagash e construtor de quinze santuários, e o mesmo viria a acontecer com
o rei legislador da Babilónia, Hamurábi, também ele famoso pelas suas guerras
de conquista. Tudo porque fora eleito pela da divindade, como nos conta a sua
estela onde se ficou escrito que era "o príncipe piedoso e temente a deus, o
pastor e conquistador dos quatro cantos da terra"[3].

A ideologia política procurou sempre, nas civilizações orientais, a sua


legitimação na religião. E tal acontece especialmente no império neo-assírio. O
rei proclama habitualmente como título fundamental para a sua legitimidade a
ligação com um deus ou vários deuses: é o deus que o escolhe e algumas
vezes o predestina para a realeza desde o ventre materno, predestinação que
é proclamada com ênfase particular se ele usurpa o trono, visto não ser o
herdeiro legítimo. Entre os vários exemplos, veja-se o caso de Assaradão, que
usa a titulatura tradicional, "rei dos quatro cantos da terra" a quem Assur,
Shamash... Ishtar de Nínive e a Ishtar de Arbela nomearam rei da Assíria
desde quando era jovem. O mesmo aconteceria com o seu filho e sucessor,
chegando a insinuar a sua predestinação para a realeza desde o ventre
materno. Assim escreve o seu cronista: "Eu sou Assurbanípal... que Assur e
Sin designaram (literalmente pronunciaram o nome) desde os dias longínquos
para a realeza e que eles formaram no ventre da mãe para a guarda do país de
Assur"[4].

Por causa desta teoria da escolha divina, o rei assírio era sempre legítimo.
Proclamada a sua legitimidade em termos religiosos desde a coroação,
também as suas guerras por mais iníquas e cruéis que fossem (e quanto se
poderia dizer da crueldade da guerras dos Assírios!) eram legítimas, digamos
"justas" ou mesmo "santas". Como observa a propósito Liverani, uma guerra é
sempre justa quando é provocada por nós e é injusta quando provocada pelo
inimigo[5]. É dentro destas teorias de legitimação dos reis da Assíria que se
poderão entender os juramentos de fidelidade absoluta que prestavam ao rei
os seus próximos servidores e aqueles que assumiam responsabilidades pela
manutenção da ordem em qualquer província do império. Estes, por sua vez,
deviam obrigar as populações sob a sua jurisdição a prestar idênticos
juramentos. O serviço ao rei era uma sequência do serviço à divindade.
Estamos na prática dentro de uma "teologia" da obediência.

No Egipto, onde o rei era divinizado, pois ele era o filho do deus, o discurso da
legitimação real, ao assumir a forma de sonho, de profecia ou de oráculo
desempenhou, por vezes, uma função determinante na história. Recorde-se
que num papiro da XVIII dinastia, ficou registada uma antiga tradição segundo
a qual os três primeiros reis da V dinastia haviam nascido de mãe mortal que
tivera relações com o próprio deus. Não nos admiremos por isso que se tenha
recorrido a uma representação artística de índole narrativa para legitimar o
acesso ao faraonato por Hatshepsut. O caso é tanto mais estranho quanto é
verdade que o acesso ao trono no Egipto por uma mulher era teórica e
praticamente impossível. Hatshepsut usurpou o poder (nem valerá a pena
pormenorizarmos as circunstâncias em que tal aconteceu), porque teve do seu
lado o oráculo do grande deus do Império Novo Amon-Rê a legitimar a sua
ambição. Para tal nada melhor que representar o próprio deus a gerá-la
fisicamente, tendo relações com a própria mãe. Ficaram patentes aos olhares
de todos as representações em relevo dessa teogamia no templo funerário de
Deir Bahari. Em baixos relevos, de elevada técnica e de grande beleza, mostra-
se de forma engenhosa e realista a união do deus Amon, que tomou a forma
física de Tutmósis I, com a rainha sua esposa. A rainha por sua vez encontra-
se a repousar no seu palácio e acorda com o perfume do deus que se
aproxima e lhe sorri. Ela exulta perante a sua beleza e, como informa o texto:
"o seu amor penetra os seus membros". Nem faltou, após o nascimento, uma
cena de exaltação da criança na assembleia dos deuses. É Amon que lhes
apresenta, a menina recém-nascida, seguindo-se a aclamação de todos: "ela é
a tua filha, nascida do teu corpo, que tu concebeste e criaste"[6].

Sem a divinização do faraó, nada é explicável na história do Egipto, mas


aceitando tal concepção, que, de certo, ultrapassa os nossos espíritos críticos,
tudo ali se compreende e encontra o seu lugar, até mesmo este "discurso"
engenhoso da arte sobre o nascimento de Hatshepsut para legitimar o seu
acesso ao trono.

Mas na história do Egipto, que é menos linear do que por vezes se supõe,
houve necessidade, noutras ocasiões, de se recorrer ao discurso de
legitimação. Ficou famosa por exemplo uma conspiração no harém, nos finais
do reinado de Ramsés III, fomentada por uma das mulheres desse faraó com a
nítida intenção de fazer do seu filho o herdeiro do trono, como bem explica
Pascal Vernus no seu livro Affaires et Scandales sous les Ramsès, num
capítulo que intitula "La conspiration du harem sous Ramsès III"[7]. Neste e
noutros casos do género impunha-se a aceitação por parte do povo só
conseguida pela legitimação que tinha de vir da escolha da divindade.
Também entre os Hebreus, alguma vez se recorreu a idêntico estratagema
para legitimar o acesso ao trono, sendo um claro exemplo a escolha de
Salomão, que não sendo o primogénito, sucedeu ao rei David, devido à
estratégia da mãe, Betsabeia, que escolheu para o propor ao povo e justificar a
sua realeza, um homem de Deus, o profeta Natan, ou seja mais uma vez o
apego ao factor religioso para legitimar a política[8].

Na história dos Persas, tem especial interesse a conquista da Babilónia pelo rei
Ciro. Para nos situarmos, vejamos desde já o que escreveu um escriba da sua
corte no conhecido cilindro de Ciro: "Marduk (o deus da Babilónia), o grande
senhor, protector dos seus adoradores, observou com prazer as boas obras de
Ciro e o seu coração recto. Por isso fê-lo marchar contra a sua cidade de
Babilónia. Fez com que empreendesse o caminho de Babilónia, indo a seu lado
como um amigo. As suas tropas dispersas - cujo número, como a água de um
rio, não pode indicar-se, entraram sem usar as armas. Sem haver batalha, ele
fez entrar Ciro na sua cidade de Babilónia, evitando à cidade toda a
calamidade"[9].

Vejamos bem: pode supor-se que a Babilónia estivesse preparada para não
oferecer resistência, por temer a derrota. Poderá mesmo admitir-se que
desejava o conquistador, tal como mais tarde haveria de abrir as portas a outro
conquistador, Alexandre Magno. Mas não há dúvida de que o êxito da
conquista de Ciro é atribuído aqui ao deus Marduk, que foi ao seu lado como
um amigo, para lhe entregar sem combate a famosa cidade de Babilónia.

Curiosamente justifica-se a ajuda do deus ao rei persa porque ele era bom. E a
mesma inscrição dá-nos a conhecer um pouco antes que o imperador se
esforçou sempre por tratar segundo a justiça os cabeças negras (ou seja os
homens) a quem fez conquistar.

A linguagem de legitimação desta conquista contém ainda a clara afirmação da


eleição divina de Ciro para a realeza, ao informar: "foi Marduk quem pronunciou
o seu nome para que ele fosse rei e declarou o seu nome para que fosse o
governante de todo o mundo". A este propósito é justo recordarmos que a
própria Bíblia se faria eco dos louvores a Ciro, pelo facto de ter permitido o
regresso dos exilados a Jerusalém. E mais tarde, cerca de um século e meio
após a sua morte, o general e historiador ateniense, Xenofonte, iria exaltá-lo na
famosa obra que é a Ciropedia.

Após a legitimação da conquista, encontramos repetidamente o discurso de


louvor a este soberano, que inaugurava na prática uma nova época no governo
dos povos no seu vasto império, marcado pelo exercício do respeito, da justiça
e da tolerância. Mas suponho que o melhor discurso de louvor às suas
conquistas e à sua política de magnanimidade não é o que registam as
palavras que lemos nas antigas fontes, mas é a arquitectura que perdura nos
palácios reais de Susa e de Persépolis, e que os turistas de hoje normalmente
não sabem entender. Impressionam-se, é certo, com a grandeza, beleza e
exuberância da decoração, mas não compreendem as múltiplas proveniências
dos seus elementos decorativos e estilísticos. Tudo ali é expressão da
grandeza de um império onde não havia rigidez, nem política monolítica.
Quando os sátrapas e os nobres visitavam qualquer palácio real, podiam ver ali
com natural espanto e alegria elementos das suas próprias terras. Não era uma
mescla híbrida e casual a daqueles palácios, era uma composição intencional,
para que todos se sentissem na própria casa.

Estas ideias que a arquitectura revela fazem-nos pensar que estamos num
mundo novo onde o universalismo era uma realidade: nada de estranho nestes
palácios. Algo de globalização está a passar-se ou porventura de política de
commonwealth, como alguém diria. Estava a surgir um mundo novo, com
homens que saíam do mundo antigo[10].

O DISCURSO DE LEGITIMAÇÃO NA IDEOLOGIA IMPERIAL DE ROMA

Na Antiguidade, a força do discurso de legitimação sente-se de forma particular


na ideologia imperial de Roma. Efectivamente não foram apenas as legiões
romanas a criarem o império, mas antes do poderio militar, existiu uma ideia de
superioridade, arreigada no povo que impelia Roma para as suas conquistas.
De mãos dadas e de forma mais ou menos consciente, historiadores, oradores
e poetas contribuíram tanto como os soldados para criar o império. Não será
oportuno e seria mesmo fastidioso analisarmos de forma sistemática textos
seleccionados de diversos géneros literários, onde o discurso de legitimação
aparece constantemente repetido, em múltiplas circunstâncias e de formas
diversas, ao serviço da política imperial. Parece-me preferível apontar o que se
passou em momentos-chave de algumas guerras de conquista.

Poderemos começar pelas guerras contra Cartago, quando no século III a.C.
prosperavam os comerciantes e cambistas na cidade do Tibre. Foi nesse meio
que surgiu e se desenvolveu a ideia da guerra contra Cartago, grande potência
rival de Roma.

De facto essa antiga colónia fenícia tinha estabelecido um verdadeiro império


mercantil e colonial pelas ilhas do Mediterrâneo, tendo fundado colónias ou
feitorias designadamente na Sicília, na Córsega e nas Baleares. Se por um
lado havia o apetite de conquista, por outro havia consciência do risco. O
próprio senado não via com bons olhos uma guerra cheia de perigos, como na
prática os Romanos haveriam de constatar. Se a primeira guerra, levada a
efeito por influência da poderosa família de Ápio Cláudio, se revestiu de
dificuldades, a segunda em que se distinguiu Cipião o africano, como nos relata
Políbio, teve graves consequências para ambas as partes. Assim sendo, a
terceira era muito arriscada e não desejada pelo senado. Todos sabiam que a
cidade de Cartago, qual "fénix renascida", após a derrota voltava novamente a
erguer-se com renovadas forças.

Só poderia justificar-se tal empreendimento bélico levasse a uma derrota


definitiva É esse o sentido da oratória no senado, onde se distinguiria Marco
Pórcio Catão. Contra a opinião generalizada, repetia nos seus discursos
argumentos que legitimavam a guerra. Sendo este senador "um homem de
bem, perito na arte de falar"(como ele próprio definia o orador), conseguiu
inflamar os ouvintes que acabaram por aderir ao seu discurso que terminava
sistematicamente com esta conclusão: ceterum censeo Carthaginem esse
delendam, "finalmente penso que Cartago tem de ser destruída". Efectivamente
seria destruída para não mais se levantar. E post factum, havemos de
reconhecer que o senador tinha razão em justificar a guerra, pois a conquista
do Mediterrâneo Ocidental abriu caminho a Roma para entrar na Península
Ibérica e para dominar todo o Ocidente. Estávamos em 218 a.C.
Mas as ambições de Roma, que, de cidade estava a transformar-se em
império, não se limitavam ao Ocidente. Desejava que todo o Mediterrâneo se
tornasse o seu mar interno. Ambicionava conquistar a Grécia e o Oriente,
empreendimento por demais arrojado por muitas razões e especialmente por
exigir guerras por mar e por terra. Impunha-se também agora que a oratória
política preparasse e entusiasmasse os cidadãos romanos no forum, enquanto
os oficiais do exército teriam de preparar os soldados na caserna. Pois bem,
desta vez o discurso de legitimação e de justificação da guerra viria de Cícero,
o mais famoso orador romano, sendo o comando das operações bélicas
confiado a Pompeu.

Analisemos um pouco mais de perto a situação. A "Lei Gabínia" concedera à


plebe o direito de eleger os seus generais. Só dessa forma seria possível a
Pompeu aceder ao poder em 67 a. C. Mas não se pense que foi fácil esta
vitória para Pompeu. A influência decisiva ficou a dever-se ao apaixonado
discurso de Cícero, que entusiasmou a multidão ao apresentar aquele homem
como "divino". Ele ultrapassava todos os outros pelos seus conhecimentos
militares, pela sua temperança e pela sua lealdade. Era um homem "caído do
céu"[11]. A este discurso de Cícero ninguém poderia ficar indiferente. E valha a
verdade que não foram defraudadas as expectativas que ele incutiu no povo
romano. Pompeu iria subjugar a zona dos Balcãs, haveria de submeter a
Arménia e avançar até ao Cáucaso. Depois de depor os Selêucidas, converteu
a Síria em província romana; chamado daí à Palestina pelos irmãos macabeus
Aristóbulo e Hircano, que entre si disputavam o poder, resolveu a disputa
colocando a Judeia sob o protectorado romano. Em 64 tomou Jerusalém e foi
concluir a sua marcha junto dos muros de Jericó.

Quando terminou a guerra, o poderio de Roma era bem maior do que antes,
pois a sua soberania estendia-se desde o Bósforo até à Arménia e daí à
Palestina. Levaria dali um gigantesco espólio de guerra para os seus soldados
e para o tesouro público e uma glória que nada poderia obscurecer. Ao chegar
a Roma, receberia as honras do triunfo com um esplendor como nunca tinha
sido visto: não era só a multidão anónima dos vencidos que o seguiam, eram
também reis e príncipes atrás do seu carro de majestade, enquanto largos
panos pintados proclamavam as façanhas do seu heroísmo.

Mas as conquistas haviam de prosseguir porque as ambições de Roma só


tinham por limite as fronteiras do mundo de então. Faltava-lhe conquistar
regiões importantes da Europa, como por exemplo a Gália, tarefa que seria
desempenhada por Júlio César apoiado pelos dois colegas do triunvirato,
Pompeu e Crasso. Curiosamente Júlio César fez a história como político e
como general, escrevendo-a mais tarde para a posteridade. A sua obra por
excelência é o De Bello Galico. Foi aí que ele eternizou as suas façanhas e fê-
lo com tal simplicidade que nos dá a impressão de um quadro objectivo, sem
deixar de ser uma historiografia pragmática, que concorre para a exaltação do
poder de Roma. Ele atinge em cheio a alma dos seus leitores. Servindo
alimento sadio, alimenta e fortalece a mística do império: Roma era superior;
tinha por destino dominar o mundo. Este é o discurso dos historiadores da
época, que tinham por missão influenciar o público, persuadir, porventura
legitimar. Nalguns casos preocupavam-se mais com a forma da exposição do
que com a verdade dos factos. Estavam empenhados na mística colectiva de
império.

O maior de todos os historiadores foi Tito Lívio, que nos deixou a obra
monumental Ab Urbe Condita, constituída por 142 volumes de que se
conservam 35. É através da sua história que melhor podemos avaliar da
consciência viva que o povo romano tinha de si mesmo, da sua origem e do
seu destino. É um historiador de tese, preocupado em exibir, a partir dos
exemplos do passado, o amor à pátria. Por isso, exalta tudo o que contribuía
para a grandeza de Roma. A linha de força da sua obra é exaltar a pátria, o
que o leva a dar especial relevo aos discursos dos seus personagens, não
fosse ele próprio um orador de formação, perito em explorar todos os recursos
da oratória.

A história, com Tito Lívio, torna-se pois uma poderosa arma política. Com tal
objectivo, ele põe o acento nas acções exemplares, nas virtudes dos
antepassados e nas suas palavras dignas de memória. O seu conceito de
história é tal que o leva a aceitar as lendas das origens de Roma. É evidente
que não poderá garantir que as tenha recolhido em documentação autêntica e
fidedigna, mas também não tem coragem de as desmentir. No seu entender, a
glória de Roma era suficientemente grande para se lhe poder atribuir origem
divina. Se todos aceitavam a autoridade de Roma, por que não haviam de
aceitar também que, no seu nascimento, tenha intervindo Marte, o deus da
guerra? Com tais sentimentos, à maneira do general que repousa após as
honras do triunfo, também ele podia exclamar: "estou feliz por ter contribuído
para recordar os altos feitos do primeiro povo do mundo"[12].

Na mesma esteira podemos colocar o poeta Ovídeo, que nos seus Faustos,
em 6 livros, parte da narrativa da criação do mundo, percorre vários caminhos
e dá crédito às lendas, mormente às que dizem respeito ao ciclo de Tróia, para
evocar a fundação de Roma. Observando o mundo, reconhece em Roma uma
forma superior de civilização. Para ele, Augusto, o imperador, é na terra o guia
e pai, tal como Júpiter é guia e pai no céu.

Sendo esta a linguagem de Ovídeo, não admira que o próprio imperador tenha
mandado exarar, numa grande e notável inscrição, o seu auto-elogio, no
grandioso monumento que é a Ara Pacis, em Roma. Em duas colunas de
bronze fez gravar o relato das suas façanhas, que ele próprio redigiu. Nesse
grande monumento epigráfico, o imperador fala dos seus cargos e honrarias,
descreve as suas façanhas políticas e guerreiras e apresenta-se com toda a
sua glória. Pretendia desse modo narrar a história que ele próprio fizera, por
ser um acto do maior alcance político, provando como era verdadeira a
afirmação de Ovídeo de que Augusto era na terra guia e pai.

A POESIA NA MÍSTICA DO IMPÉRIO

Ao lado dos historiadores e dos oradores, os poetas contribuíram para


implantar a mística do império. E ninguém como o poeta podia influenciar,
justificar, legitimar feitos militares e persuadir. É que o poeta era um
predestinado, alguém que recebia a inspiração da divindade. Além disso, os
versos memorizavam-se e alcançavam um valor perene, como aliás defendia
um dos maiores vultos da poesia romana, Horácio, ao proclamar que os
poemas eram mais duradoiros do que o bronze. Escrevia assim no tempo de
Augusto, fazendo-se eco da mística imperial.
Os poetas tinham uma função pública a desempenhar: deviam cantar com
entusiasmo e admiração o passado, a fim de prepararem o futuro. Horácio
exalta as origens de Roma com o fim de propor uma mensagem de fé no
destino do povo romano, já que os romanos são senhores de uma civilização
superior e têm por vocação e destino o domínio do mundo.

Entretanto Virgílio iria superar Horácio na força de persuasão. A sua poesia é


de facto a que melhor encarna o espírito da mística política nacional. Atento
aos projectos da política do império, escreve uma obra de notável valor poético
e portadora de uma forte mensagem, as Geórgicas, a que nem sempre se
presta a devida atenção, por não se atender ao alcance da sua proposta, que
era determinada pelas circunstâncias. Vejamos: soube que Augusto tinha a
intenção de licenciar os seus soldados, desejando que em seguida se
dedicassem à agricultura, a fim de assegurarem o sustento das cidades e
contribuírem para paz do império. Para legitimar este projecto, que nem todos
compreendiam e aceitavam, escreve a referida obra, onde exalta a beleza do
campo e da agricultura. O poema não era inocente; estava longe de ser uma
pombinha sem fel. Tinha por intenção legitimar a política do imperador.
Digamos que foi um êxito. Augusto de tal modo apreciou esta obra que, ao
regressar das suas actividades, deu ao poeta a honrosa ordem de lhe ler o
notável poema em voz alta.

No entanto o grande poema épico de valor nacional seria composto a seguir.


Foi a Eneida, onde canta o destino de Roma e a grandeza do imperador
Augusto. Atribui a Eneias, filho da deusa Vénus e de Anquises, a grande
missão de fundar Roma, cidade destinada a dominar outros povos. Roma era
diferente e superior, como escrevia: "que outros povos, como os Gregos,
animem o mármore e o bronze, convertendo-o em figuras e estudem o
percurso das estrelas. Mas tu, romano, lembra-te, deves dominar os povos".

Tal como a história (recordemos Tito Lívio), a poesia serviu-se das lendas da
fundação de Roma como fundamento do discurso persuasivo para influenciar o
público, persuadir, massificar, como agora diríamos. A ideologia imperial que
atinge o seu auge no principado de Augusto, antes de ter ao seu serviço as
armas contou efectivamente com os historiadores, com os poetas e os
oradores, que transmitiam apaixonadamente a mística imperial. Não foi só Tito
Lívio ou Virgílio, Horácio ou Cícero. Foram todos, cada um a seu modo, a
formarem o cidadão. De Cícero pode César dizer: "Descobriste todos os
tesouros da oratória e foste o primeiro a servir-te desse tesouros; alcançaste a
glória mais formosa e um triunfo bem melhor que o dos generais; porque é
mais importante alargar os limites do espírito do que estender as fronteiras do
império"[13].

Como quer que seja, alargar as fronteiras era efectivamente o grande objectivo.
Segundo o conceito dos mentores políticos e ideólogos o acto de conquistar
novas terras era uma extensão das bênçãos da civilização para com os países
atrasados. A expansão era portanto uma libertação, tal o sentido porventura
eufemista, mas profundo, do discurso que uns e outros, usavam para legitimar
o imperialismo romano.

A LEGITIMAÇÃO PELA ARTE

Também a arte, tal como a história, a oratória e a poesia havia de legitimar e


exaltar a política imperial de Roma. Diga-se, a propósito e por curiosidade, que
a arte em Roma só alcançou a sua autonomia no início do império, pois até
então tinha fortes marcas da Grécia. Com Augusto, o império reforçou a
unidade e os monumentos multiplicaram-se pelas diversas províncias. Iniciava-
se então um grande período de paz.

A partir do ano 2 a. C., o Senado confere a Augusto o direito a intitular-se Pai


da Pátria e difunde-se o conceito de Pax Augusta ou Pax Romana. Poetas
como Horácio e Virgílio exaltaram, nos seus poemas, esse tempo de paz que
Augusto inaugurava. Pois bem, é dentro deste contexto histórico que se deve
entender o monumento de Ara Pacis, a que já antes fizemos alusão, um dos
principais da época, destinado a exercer grande influência no povo. Todo o
monumento, com o altar e cenas representadas nas paredes, legitima, sem
dúvida, o título de Pai da Pátria que o senado conferiu ao imperador. É possível
distinguir numa composição a elite do império, começando pela família de
Augusto, os membros da aristocracia, os sacerdotes e vários servos que
acompanham o cortejo. Num dos frisos, observa-se a procissão ao chegar ao
termo, salientando-se a figura principal, Augusto, o príncipe que preside à
cerimónia. Aí se representa a sua pietas ao apresentar a oferta à Pax sobre um
altar.

Notemos que Cícero proclamava nos seus discursos que os Romanos tinham
conseguido reunir todas as raças e povos por causa da sua piedade, pelo culto
aos deuses e pela religião. Neste monumento, pode admirar-se a pax augusta
e a deusa Roma como garante dessa paz. O divino Augusto simboliza o
renascimento romano sob o signo da paz, qual "filho de deus que renova a
idade do Lácio", como escrevia Virgílio no canto VI da Eneida.

Eis pois como este notável monumento, admirado como uma vigorosa
expressão da arte estatal da época, está ao serviço da política imperial. Ali,
mesmo os iletrados podiam ver que o senado fizera bem ao conceder ao
imperador César Augusto o título que ele merecia e mais apreciava. A arte
legitimava desta forma o Pater Patriae, Pai da Pátria.

Outro monumento da arte imperial que não deverá ser esquecido neste
contexto é o da coluna do forum de Trajano. Recordemos também em que
circunstâncias surgiu. Depois do triunfo de Trajano sobre a Dácia (Roménia),
em 107, o imperador quis assumir o título de Dácio e foi então que o seu
arquitecto Apolodoro de Damasco se encarregou de planear essa obra
grandiosa. Da grandeza do forum podemos avaliar quando sabemos que a sua
área é tão grande como a de todos os outros em conjunto, mas falemos antes
da coluna recoberta por uma banda de relevos dispostos em espiral com mais
de 200 metros de comprimento. Contém 2500 figuras que descrevem
precisamente as campanhas militares de Trajano contra os Dácios. Por
curiosidade refira-se que ali aparecem representados, entre outros, soldados
oriundos da Lusitânia, o que não é de estranhar, visto que Trajano, sendo
oriundo de Sevilha, lhes conhecia a valentia. Toda a composição tem por
centro a figura do imperador, que aparece repetidas vezes a sacrificar, a falar
às tropas, a usar de clemência para com os vencidos, etc.

Com Trajano, o império romano atingia o auge do seu esplendor na


organização interna e na extensão territorial. Se este imperador não nos deixou
uma obra como o De Bello Galico de Júlio César ou como a Res Gestae de
Augusto, teve Tácito a escrever-lhe os Anais, uma obra que o apresenta como
o melhor dos imperadores. Ele é o Óptimo. Depois dele, nada mais se podia
desejar a um imperador romano do que isto: "que sejas mais feliz que Augusto
e melhor que Trajano". Mas os seus feitos e a sua glória também ficariam
gravados nesta gigantesca coluna, a legitimar os seus títulos e a entusiasmar
toda a Antiguidade, tal a força do discurso da arte.

Conta-se que o Papa Gregório Magno, durante uma procissão pelo forum de
Trajano, ficou tão impressionado com tanta grandeza e beleza que fez uma
oração pelo seu construtor, que fora um pagão, suplicando a Deus que o
libertasse dos suplícios eternos. Tão excelsa maravilha merecia de Deus a
misericórdia para um pagão. A coluna recoberta de cenas militares e encimada
pela estátua desse grande imperador, tem um impacto que dificilmente
podemos imaginar[14].É como um filme de exaltação dos seus feitos e das
suas guerras. Ele é o semper invictus, o providentissimus princeps.

Notas

[1] P. GARELLI, Le Proche Orient Asiatique des Origines aux Peuples de la


Mer, PUF, 1969, p.86.

[2] Seguimos o texto francês proposto por R. LABAT, Les Religions du Proche-
Orient asiatique, Paris, Fayard/Denoël, 1970, p.308.

[3] O Código de Hammurabi (tradução do original cuneiforme) de E. BOUZON,


Petrópolis, Ed. Vozes, 1976, p.20.

[4] Versão do texto cuneiforme apresentado por P.GARELLI in "L´État et la


légitimité royale sous l´Empire Assyrian, Mesopotamia, 7, Copenhaga, 1979,
p.325.

[5] M. LIVERANI, "The ideology of the assyrian empire", Mesopotamia, 7,


p.301.

[6] Cl. LALOUETTE, La Littérature egyptienne, Paris, PUF, 1981, p.26

[7] P. VERNUS, Affaires et Scandales sous les Ramsès, Paris, Pygmalion,


1993; cap. V, p.141-158.

[8] A. A. TAVARES, "A mulher nas lutas pela sucessão do poder real no Médio
Oriente Antigo", in Poder e sociedade, Vol. I, 1990, Universidade Aberta, p.17-
18.

[9] J. B. PRITCHARD, Ancient Near Eastern Texts (ANET), Princeton, 1969,


315.316.

[10] J. B. PRITCHARD, Ancient Near Eastern Texts (ANET), Princeton, 1969,


315.316.

[11] A. A. TAVARES, Op. cit. p.95.

[12] Citação em A. A. TAVARES, ibidem, 104.

[13] E. NACK, W. WAGNER, Roma, Barcelona, Ed. Labor S.A., 1960, p.303.

[14] A. A. TAVARES, "Ideologia imperial na Arte", in Op. Cit., p.111-113.l

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