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Por causa desta teoria da escolha divina, o rei assírio era sempre legítimo.
Proclamada a sua legitimidade em termos religiosos desde a coroação,
também as suas guerras por mais iníquas e cruéis que fossem (e quanto se
poderia dizer da crueldade da guerras dos Assírios!) eram legítimas, digamos
"justas" ou mesmo "santas". Como observa a propósito Liverani, uma guerra é
sempre justa quando é provocada por nós e é injusta quando provocada pelo
inimigo[5]. É dentro destas teorias de legitimação dos reis da Assíria que se
poderão entender os juramentos de fidelidade absoluta que prestavam ao rei
os seus próximos servidores e aqueles que assumiam responsabilidades pela
manutenção da ordem em qualquer província do império. Estes, por sua vez,
deviam obrigar as populações sob a sua jurisdição a prestar idênticos
juramentos. O serviço ao rei era uma sequência do serviço à divindade.
Estamos na prática dentro de uma "teologia" da obediência.
No Egipto, onde o rei era divinizado, pois ele era o filho do deus, o discurso da
legitimação real, ao assumir a forma de sonho, de profecia ou de oráculo
desempenhou, por vezes, uma função determinante na história. Recorde-se
que num papiro da XVIII dinastia, ficou registada uma antiga tradição segundo
a qual os três primeiros reis da V dinastia haviam nascido de mãe mortal que
tivera relações com o próprio deus. Não nos admiremos por isso que se tenha
recorrido a uma representação artística de índole narrativa para legitimar o
acesso ao faraonato por Hatshepsut. O caso é tanto mais estranho quanto é
verdade que o acesso ao trono no Egipto por uma mulher era teórica e
praticamente impossível. Hatshepsut usurpou o poder (nem valerá a pena
pormenorizarmos as circunstâncias em que tal aconteceu), porque teve do seu
lado o oráculo do grande deus do Império Novo Amon-Rê a legitimar a sua
ambição. Para tal nada melhor que representar o próprio deus a gerá-la
fisicamente, tendo relações com a própria mãe. Ficaram patentes aos olhares
de todos as representações em relevo dessa teogamia no templo funerário de
Deir Bahari. Em baixos relevos, de elevada técnica e de grande beleza, mostra-
se de forma engenhosa e realista a união do deus Amon, que tomou a forma
física de Tutmósis I, com a rainha sua esposa. A rainha por sua vez encontra-
se a repousar no seu palácio e acorda com o perfume do deus que se
aproxima e lhe sorri. Ela exulta perante a sua beleza e, como informa o texto:
"o seu amor penetra os seus membros". Nem faltou, após o nascimento, uma
cena de exaltação da criança na assembleia dos deuses. É Amon que lhes
apresenta, a menina recém-nascida, seguindo-se a aclamação de todos: "ela é
a tua filha, nascida do teu corpo, que tu concebeste e criaste"[6].
Mas na história do Egipto, que é menos linear do que por vezes se supõe,
houve necessidade, noutras ocasiões, de se recorrer ao discurso de
legitimação. Ficou famosa por exemplo uma conspiração no harém, nos finais
do reinado de Ramsés III, fomentada por uma das mulheres desse faraó com a
nítida intenção de fazer do seu filho o herdeiro do trono, como bem explica
Pascal Vernus no seu livro Affaires et Scandales sous les Ramsès, num
capítulo que intitula "La conspiration du harem sous Ramsès III"[7]. Neste e
noutros casos do género impunha-se a aceitação por parte do povo só
conseguida pela legitimação que tinha de vir da escolha da divindade.
Também entre os Hebreus, alguma vez se recorreu a idêntico estratagema
para legitimar o acesso ao trono, sendo um claro exemplo a escolha de
Salomão, que não sendo o primogénito, sucedeu ao rei David, devido à
estratégia da mãe, Betsabeia, que escolheu para o propor ao povo e justificar a
sua realeza, um homem de Deus, o profeta Natan, ou seja mais uma vez o
apego ao factor religioso para legitimar a política[8].
Na história dos Persas, tem especial interesse a conquista da Babilónia pelo rei
Ciro. Para nos situarmos, vejamos desde já o que escreveu um escriba da sua
corte no conhecido cilindro de Ciro: "Marduk (o deus da Babilónia), o grande
senhor, protector dos seus adoradores, observou com prazer as boas obras de
Ciro e o seu coração recto. Por isso fê-lo marchar contra a sua cidade de
Babilónia. Fez com que empreendesse o caminho de Babilónia, indo a seu lado
como um amigo. As suas tropas dispersas - cujo número, como a água de um
rio, não pode indicar-se, entraram sem usar as armas. Sem haver batalha, ele
fez entrar Ciro na sua cidade de Babilónia, evitando à cidade toda a
calamidade"[9].
Vejamos bem: pode supor-se que a Babilónia estivesse preparada para não
oferecer resistência, por temer a derrota. Poderá mesmo admitir-se que
desejava o conquistador, tal como mais tarde haveria de abrir as portas a outro
conquistador, Alexandre Magno. Mas não há dúvida de que o êxito da
conquista de Ciro é atribuído aqui ao deus Marduk, que foi ao seu lado como
um amigo, para lhe entregar sem combate a famosa cidade de Babilónia.
Curiosamente justifica-se a ajuda do deus ao rei persa porque ele era bom. E a
mesma inscrição dá-nos a conhecer um pouco antes que o imperador se
esforçou sempre por tratar segundo a justiça os cabeças negras (ou seja os
homens) a quem fez conquistar.
Estas ideias que a arquitectura revela fazem-nos pensar que estamos num
mundo novo onde o universalismo era uma realidade: nada de estranho nestes
palácios. Algo de globalização está a passar-se ou porventura de política de
commonwealth, como alguém diria. Estava a surgir um mundo novo, com
homens que saíam do mundo antigo[10].
Poderemos começar pelas guerras contra Cartago, quando no século III a.C.
prosperavam os comerciantes e cambistas na cidade do Tibre. Foi nesse meio
que surgiu e se desenvolveu a ideia da guerra contra Cartago, grande potência
rival de Roma.
Quando terminou a guerra, o poderio de Roma era bem maior do que antes,
pois a sua soberania estendia-se desde o Bósforo até à Arménia e daí à
Palestina. Levaria dali um gigantesco espólio de guerra para os seus soldados
e para o tesouro público e uma glória que nada poderia obscurecer. Ao chegar
a Roma, receberia as honras do triunfo com um esplendor como nunca tinha
sido visto: não era só a multidão anónima dos vencidos que o seguiam, eram
também reis e príncipes atrás do seu carro de majestade, enquanto largos
panos pintados proclamavam as façanhas do seu heroísmo.
O maior de todos os historiadores foi Tito Lívio, que nos deixou a obra
monumental Ab Urbe Condita, constituída por 142 volumes de que se
conservam 35. É através da sua história que melhor podemos avaliar da
consciência viva que o povo romano tinha de si mesmo, da sua origem e do
seu destino. É um historiador de tese, preocupado em exibir, a partir dos
exemplos do passado, o amor à pátria. Por isso, exalta tudo o que contribuía
para a grandeza de Roma. A linha de força da sua obra é exaltar a pátria, o
que o leva a dar especial relevo aos discursos dos seus personagens, não
fosse ele próprio um orador de formação, perito em explorar todos os recursos
da oratória.
A história, com Tito Lívio, torna-se pois uma poderosa arma política. Com tal
objectivo, ele põe o acento nas acções exemplares, nas virtudes dos
antepassados e nas suas palavras dignas de memória. O seu conceito de
história é tal que o leva a aceitar as lendas das origens de Roma. É evidente
que não poderá garantir que as tenha recolhido em documentação autêntica e
fidedigna, mas também não tem coragem de as desmentir. No seu entender, a
glória de Roma era suficientemente grande para se lhe poder atribuir origem
divina. Se todos aceitavam a autoridade de Roma, por que não haviam de
aceitar também que, no seu nascimento, tenha intervindo Marte, o deus da
guerra? Com tais sentimentos, à maneira do general que repousa após as
honras do triunfo, também ele podia exclamar: "estou feliz por ter contribuído
para recordar os altos feitos do primeiro povo do mundo"[12].
Na mesma esteira podemos colocar o poeta Ovídeo, que nos seus Faustos,
em 6 livros, parte da narrativa da criação do mundo, percorre vários caminhos
e dá crédito às lendas, mormente às que dizem respeito ao ciclo de Tróia, para
evocar a fundação de Roma. Observando o mundo, reconhece em Roma uma
forma superior de civilização. Para ele, Augusto, o imperador, é na terra o guia
e pai, tal como Júpiter é guia e pai no céu.
Sendo esta a linguagem de Ovídeo, não admira que o próprio imperador tenha
mandado exarar, numa grande e notável inscrição, o seu auto-elogio, no
grandioso monumento que é a Ara Pacis, em Roma. Em duas colunas de
bronze fez gravar o relato das suas façanhas, que ele próprio redigiu. Nesse
grande monumento epigráfico, o imperador fala dos seus cargos e honrarias,
descreve as suas façanhas políticas e guerreiras e apresenta-se com toda a
sua glória. Pretendia desse modo narrar a história que ele próprio fizera, por
ser um acto do maior alcance político, provando como era verdadeira a
afirmação de Ovídeo de que Augusto era na terra guia e pai.
Tal como a história (recordemos Tito Lívio), a poesia serviu-se das lendas da
fundação de Roma como fundamento do discurso persuasivo para influenciar o
público, persuadir, massificar, como agora diríamos. A ideologia imperial que
atinge o seu auge no principado de Augusto, antes de ter ao seu serviço as
armas contou efectivamente com os historiadores, com os poetas e os
oradores, que transmitiam apaixonadamente a mística imperial. Não foi só Tito
Lívio ou Virgílio, Horácio ou Cícero. Foram todos, cada um a seu modo, a
formarem o cidadão. De Cícero pode César dizer: "Descobriste todos os
tesouros da oratória e foste o primeiro a servir-te desse tesouros; alcançaste a
glória mais formosa e um triunfo bem melhor que o dos generais; porque é
mais importante alargar os limites do espírito do que estender as fronteiras do
império"[13].
Como quer que seja, alargar as fronteiras era efectivamente o grande objectivo.
Segundo o conceito dos mentores políticos e ideólogos o acto de conquistar
novas terras era uma extensão das bênçãos da civilização para com os países
atrasados. A expansão era portanto uma libertação, tal o sentido porventura
eufemista, mas profundo, do discurso que uns e outros, usavam para legitimar
o imperialismo romano.
Notemos que Cícero proclamava nos seus discursos que os Romanos tinham
conseguido reunir todas as raças e povos por causa da sua piedade, pelo culto
aos deuses e pela religião. Neste monumento, pode admirar-se a pax augusta
e a deusa Roma como garante dessa paz. O divino Augusto simboliza o
renascimento romano sob o signo da paz, qual "filho de deus que renova a
idade do Lácio", como escrevia Virgílio no canto VI da Eneida.
Eis pois como este notável monumento, admirado como uma vigorosa
expressão da arte estatal da época, está ao serviço da política imperial. Ali,
mesmo os iletrados podiam ver que o senado fizera bem ao conceder ao
imperador César Augusto o título que ele merecia e mais apreciava. A arte
legitimava desta forma o Pater Patriae, Pai da Pátria.
Outro monumento da arte imperial que não deverá ser esquecido neste
contexto é o da coluna do forum de Trajano. Recordemos também em que
circunstâncias surgiu. Depois do triunfo de Trajano sobre a Dácia (Roménia),
em 107, o imperador quis assumir o título de Dácio e foi então que o seu
arquitecto Apolodoro de Damasco se encarregou de planear essa obra
grandiosa. Da grandeza do forum podemos avaliar quando sabemos que a sua
área é tão grande como a de todos os outros em conjunto, mas falemos antes
da coluna recoberta por uma banda de relevos dispostos em espiral com mais
de 200 metros de comprimento. Contém 2500 figuras que descrevem
precisamente as campanhas militares de Trajano contra os Dácios. Por
curiosidade refira-se que ali aparecem representados, entre outros, soldados
oriundos da Lusitânia, o que não é de estranhar, visto que Trajano, sendo
oriundo de Sevilha, lhes conhecia a valentia. Toda a composição tem por
centro a figura do imperador, que aparece repetidas vezes a sacrificar, a falar
às tropas, a usar de clemência para com os vencidos, etc.
Conta-se que o Papa Gregório Magno, durante uma procissão pelo forum de
Trajano, ficou tão impressionado com tanta grandeza e beleza que fez uma
oração pelo seu construtor, que fora um pagão, suplicando a Deus que o
libertasse dos suplícios eternos. Tão excelsa maravilha merecia de Deus a
misericórdia para um pagão. A coluna recoberta de cenas militares e encimada
pela estátua desse grande imperador, tem um impacto que dificilmente
podemos imaginar[14].É como um filme de exaltação dos seus feitos e das
suas guerras. Ele é o semper invictus, o providentissimus princeps.
Notas
[2] Seguimos o texto francês proposto por R. LABAT, Les Religions du Proche-
Orient asiatique, Paris, Fayard/Denoël, 1970, p.308.
[8] A. A. TAVARES, "A mulher nas lutas pela sucessão do poder real no Médio
Oriente Antigo", in Poder e sociedade, Vol. I, 1990, Universidade Aberta, p.17-
18.
[13] E. NACK, W. WAGNER, Roma, Barcelona, Ed. Labor S.A., 1960, p.303.