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A foto da capa – A rua General João Manoel corta a Duque de Caxias no centro de Porto Alegre e dá num beco sem

saída. Dali brota uma esca-


daria que leva os pedestres à rua Fernando Machado. Na galeria dos degraus vivem andarilhos, mendigos, moradores das hospedarias e figuras
como as que saem dos livros de Machado de Assis. A poucos metros de distância está o Palácio Piratini, centro das decisões estratégicas do Rio
Grande do Sul. Estão os transeuntes da viela às margens do poder ou é ele que vive margeado pelas vidas que parece esquecer que existem?

Foto: PEDRO ARGENTI


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Dos tempos do Quem são os nossos
Colégio Júlio de Castilhos marginais
A primeira lembrança que tenho de Lauro Hagemann é do meu tempo Um jornal começa a ser lido pela capa. A frase óbvia
de estudante do colégio Julinho. Fazia política estudantil – militávamos – serve para explicar a nossa dificuldade ao pensar em uma
pela base do PCB (Partido Comunista Brasileiro), alguns anos mais tarde imagem para dizer ao leitor o que esperar dessa edição
conhecido por Partidão. Sem saber que o deputado Lauro, do MDB, já era sobre marginalidade sem cair em um clichê: um
um integrante do Partido, fomos até ele, em comissão, para solicitarmos rosto, um olhar excluído.
que se pronunciasse contra as atitudes repressivas de fechamento do
Grêmio Estudantil. Esta lembrança mais remota é definitiva. O mesmo receio da capa se repetiu durante
todo o processo de construção dessa
Em vários outros momentos estivemos juntos: nas atividades do publicação. Como mostrar o que é
movimento sindical, em especial no Sindicato dos Jornalistas. E, por marginal contando uma história
último, de forma mais próxima, quando de seus mandatos de vereador, na que ainda não tenha sido contada.
Câmara Municipal de Porto Alegre, representando de forma legal o velho O marginal longe do esquema moradores de rua /
PCB. Lauro Hagemann sempre esteve de um lado. abandonados / famintos.

Quando esta turma do 3x4 decidiu por um jornal sobre os marginais, sobre Viver à margem pode ser qualquer coisa que desafie a ordem
pessoas que estão ou estiveram à margem, fiquei entusiasmado. Afinal, vigente, o comum. É levar o cinema para quem assiste filmes em
não canso de assinalar que jornalismo é subversão. E que, antes de saber TV. É praticar uma religião minoritária em nosso país. É viver no
escrever, é preciso aprender a escutar. Ao mesmo tempo fiquei preocupado enfrentamento da sociedade, sem deixar de pertencer a ela.
com o desafio. A entrevista com o Lauro é da maior significação. Uma
pessoa que passou boa parte de sua vida caminhando no fio da navalha Para falar de marginalidade é preciso também, falar daquilo que
entre a legalidade e a ilegalidade. Militante do PC e locutor da Rádio já foi marginal e não é mais. É preciso falar de comportamento, e
Guaíba, além de líder sindical. Uma parte desta história está contada nessa também do que nunca esteve à margem: a política.
edição do 3x4.
A marginalidade está em nosso olhar sobre a sociedade. Esse jornal
É preciso assinalar ainda a preocupação que sempre tenho de possibilitar reflete uma turma heterogênea, mas que, pretensamente encontrou
que os alunos – através da história de pessoas com bem mais idade – um recorte para o que é marginal por estar à margem. E, muitas
consigam ampliar suas respectivas enciclopédias. Vou arriscar dizer que vezes, ao derrubar e recuperar pautas, nos pusemos em situações
não se faz jornalismo sem a construção permanente de uma memória. marginais. A marginalidade também pode ser uma forma de
posicionamento ante as outras pessoas.
O trabalho com esta turma foi prazeroso, solto. Tudo indica que realizaremos
no próximo semestre uma boa revista Sextante. Poderia ressaltar outros Esse 3x4 é feito dos olhares desta turma sobre aquilo que pode, ou
aspectos desse convívio, mas preferi destacar a importância da entrevista não, estar à margem. Depende de que lugar cada um posiciona o
realizada. seu olhar.

Prof. Wladymir Ungaretti (wladymirungaretti@hotmail.com ) Comissão Editorial

Expediente
Três por Quatro é uma publicação da
disciplina de Redação Jornalística IV,
produzida pelos alunos de Jornalismo da
Faculdade de Biblioteconomia e Comuni-
cação da UFRGS.
Comissão Editorial
Camila Mozzini, Maria Lina Colnaghi,
Paulo Azevedo, Pedro Argenti e Tássia
Kastner
Projeto Gráfico e diagramação:
Pedro Argenti e Tássia Kastner
Revisão
Camila Mozzini, Maria Lina Colnaghi,
Pedro Argenti e Tássia Kastner
Orientação
Wladymir
Ungaretti

Redação
Ana Lúcia Mohr, Camila Mozzini, Caroline Borges, Douglas Carvalho, Felipe Schroeder, Filipe Peixoto,
Gabriela Haas, Gilmar Splitt, Guilherme Villa Verde, Jacqueline Pasini, Juliana Wecki, Lucas Rizzatti,
Maria Lina Colnaghi, Nathália Ely, Paulo Azevedo, Pedro Argenti, Régis Machado, Tássia Kastner

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Gilmar Splitt

Deuses na decadência gsplitt@gmail.com

guma coisa. Explico que


Cinemas marginais resistem à modernidade O espetáculo dura vinte minutos. sou estudante de jor-
com shows de sexo ao vivo Cinco do strip feminino – que perdi nalismo e pretendo falar
por ter chegado atrasado – e quinze com o casal que faz o show.
Rua Voluntários da Pátria, 615. A latura esculpida em ferros de aca- de sexo. Ao final desse tempo, ouvi- “Luan? Ele não gosta de dar
poucos metros do viaduto da Con- demia, traz um lenço tipo pirata dos atentos registram um sinal sutil, entrevista”.
ceição, no coração da cidade, num amarrado na cabeça e calça botas como se fosse uma batida de palmas,
vão entre a galeria Santa Catarina e pretas de cano longo. Ela é magra, e o show termina. Luan ensaia um Luan surge na porta. É mais
uma garagem de carros, se espreme cabelos pretos, compridos, levemen- agradecimento desajeitado com o baixo do que parece à frente da
o Cine Apolo, um dos últimos cine- te ondulados e usa apenas um par de corpo, enquanto sua parceira pega as audiência, jeito de poucos amigos.
mas de rua de Porto Alegre. sapatos abertos. peças de roupa despidas ao lado do O rosto sofrido e com alguns vincos
sofá, e ambos descem a escadinha la- demonstra uma idade que prova-
O jogo dos corpos é quase em câma- velmente já vai além dos trinta

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Apolo, deus da luz e do sol na mito- teral que leva a um camarim impro-
logia greco-romana, ilumina o palco ra lenta, morno, sem graça, não se visado nos fundos. Na seqüência, as anos. Enquanto pega rápi-
do modesto salão aos protagonistas ouve um ruído, qualquer exaltação lâmpadas do tablado são desligadas e do o cachê na bilheteria,
do espetáculo erótico ao vivo. Ali, de me identifico e per-

GILMAR SPLITT
segunda a sexta, às seis e meia da tar- gunto se pode-
de, um casal de atores exibe os cor- mos conversar.
pos nus e os malabarismos aos olha- Luan apon-
res indiscretos daqueles que pagam ta para um
para ver as peripécias dos esforçados dos senhores de cabelos
parceiros do sexo. O Apolo e o Atlas, grisalhos, que suponho ser o
que fica na Júlio de Castilhos, a duas dono do cinema, e respon-
quadras de distância, são as únicas de “é com ele ali”. Olho para
salas de cinemas da Capital que ofe- trás, ao mesmo tempo em que
recem esse tipo de show no intervalo Luan desaparece dentro da sala
dos filmes pornográficos. No Atlas, escura. Nem ele nem sua com-
as apresentações são às terças, quin- panheira retornam até que eu vá
tas e sábados no meio da tarde. embora. Os homens grisalhos saem
para tomar um café. Os motoquei-
Sexta-feira, 03 de outubro. Saída do ros, que eu ainda não sei quem são,
trabalho, hora do rush, pressa, baru- se preparam para ir embora.
lho, movimentação de centenas de
carros, ônibus e milhares de pessoas Dirijo-me até Lúcia, que fica sentada
que voltam do trabalho para suas ca- na pequena salinha da bilheteria e

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sas na região metropolitana. É ali, no pergunto se Luan é assim, sem-
meio dessa efervescência, passados pre arredio. Ela responde
alguns minutos do horário marcado, que é um cara desconfia-
que troco R$ 7,00 na bilheteria do do e não dá conversa.
Apolo por uma ficha metálica que O casal de moto-
libera a roleta e permite acessar o es- queiros cami-
paço escuro. nha até a moto,
estacionada num vão curto na
Primeira constatação: o show é pon- entrada do prédio. Lúcia sugere que
“Para nós sempre foi uma coisa profissional, só pelo dinheiro realmente”
tual. Percebo que o casal de atores já eu os entreviste. Pergunto por
está se exibindo no estreito espaço que vá além do ato mecânico em si. a tela, então, se ilumina com os crédi- que deveria. Ela afirma que eles
encostado na tela de pano lá na fren- Real, porém previsível, enfadonho. tos de Renata de 4 pra você, um DVD também fazem shows de sexo ao
te. Fico parado uns minutos até que Nada que justifique a atenção de al- para exibição exclusivamente domés- vivo. Surpreso, pergunto a Lúcia o
meus olhos se acostumem com a guém por mais de alguns segundos. tica, conforme aviso na tela. nome deles. Márcio e Valéria. Como
escuridão da entrada e eu consiga vi- Mesmo assim, a platéia não tira os eles já tinham ouvido minha con-
sualizar o local mais adequado para olhos da cena. Saio do cinema bem devagar, na ten- versa com Lúcia e Luan, vou direto
sentar e fazer minhas observações. tativa disfarçada de contar as pessoas ao ponto. Antes que eles subam na
Um único e largo corredor central, Aproveito para observar em volta, que permanecem no local. Na ante- moto, chamo Márcio pelo nome e o
ladeado por fileiras de poltronas ver- levantando os detalhes do ambien- sala, procuro saber outros detalhes convido para falar um pouco sobre a
melhas, vai se tornando mais nítido te e dos freqüentadores. Às minhas com Lúcia, da bilheteria, que havia apresentação deles.
conforme avança o degradê de luz costas, por onde se entra no cinema, me dado as primeiras informações
em direção ao cenário pobremente não se enxerga praticamente nada. por telefone no dia anterior, para sa- Para minha sorte, Márcio diz que
montado. Escolho um assento mais Conforme os olhos percorrem em ber da possibilidade de fazer a maté- não há problemas. Ligo o gravador,
ou menos a uns vinte metros do pal- direção contrária, a luz do palco ria. Dois homens grisalhos, parados explico os objetivos do trabalho
co, onde Luan – descubro o nome deixa ver uns vultos sentados e ou- junto à parede de vidro que separa e faço perguntas sem roteiro
mais tarde – e sua parceira se exibem tros que se dirigem ao banheiro lá os espaços antes e depois da roleta, programado. No espaço
em cima de um sofá roxo para um na frente. Ninguém sai, mas alguns me observam com reprovação, en- minúsculo da entrada do
público disperso na penumbra. ainda chegam atrasados. Um segu- quanto conversam com um casal de cinema, ficamos em
rança volta e meia ameaça um pas- motoqueiros. O mais desconfiado pé ao lado da moto
Ele, um homem com várias tatua- seio pelo corredor, mas não passa do deles, observando meu diálogo com atravessada quase no
gens nos braços e pernas, muscu- meio do salão. a funcionária, indaga se preciso de al- meio da porta.
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Márcio e Valéria são jovens, na faixa Márcio diz que já falhou algumas A distância da porta de acesso ao eletrônica e sob os olhares silenciosos
de uns vinte e cinco anos. Os nomes vezes, mas dá para disfarçar, improvi- palco é bem menor que no Apolo. da platéia. Porém, antes do final vou
são verdadeiros, mas o sobrenome sando na coreografia. Porém, ele ga- Calculo que deve ter uns 20 metros, embora, sem as respostas que procu-
eles escondem. Baixo e musculoso, rante que não toma nenhum estimu- mas a largura parece maior. São três rava.
cabelos curtos, óculos de grau, apa- lante. “É ela (Valéria) que me excita... fileiras de poltronas, cortadas por
rência amigável, se poderia Com outra eu não ia conseguir”. No dois corredores estreitos. Isso permi- 14 de outubro, Cine Apolo ao final
apostar que executa início, foi bastante difícil. Levaram te que a luz sobre os atores ilumine da tarde. Boa parcela da massa tra-
qualquer ofício, uns três meses para conseguir rela- de leve o ambiente até as últimas ca- balhadora da cidade se concentra nas
menos o de ator de xar em cena. “Hoje nós nem estamos deiras. Sento, primeiramente, num imediações da Voluntários da Pátria,
sexo. De fala mansa, se para o público, é como se estivésse- lugar central e conto trinta e duas nas longas filas dos ônibus metro-
mostra desconfiado, mo- mos em casa”. Além dessa jornada de pessoas comigo. As paredes claras politanos que partem lotados nesse
nossilábico, estranhamente sexo explícito, Márcio e Valéria aten- são visivelmente mal cuidadas; as horário.
tímido. Valéria é da mesma altu- dem “eles, elas e casais” quando surge poltronas, velhas e desconfortáveis,
ra do companheiro, morena de ca- um convite. e o sofá que serve de única peça Dessa vez, me certifiquei por telefo-
belos pretos pelos ombros, magra, ar do cenário não esconde – mesmo ne da presença de Márcio e Valéria.
sério, não tem nenhum atrativo que Encerro a primeira parte da entre- visto de longe – o estado precário. A mesma dança de cinco minutos,

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indique sua condição de atriz pornô. vista, com a disposição de Márcio de O público é composto de homens, os malabarismos cronometrados, as
Quieta, acompanha a conversa, con- variações ensaiadas, uma música ro-
cordando com a cabeça nas afirma- mântica. Doze espectadores presen-
ções do marido. Apesar da aceitação tes. No final do encontro, apagam-se
em conceder a entrevista, Márcio as luzes do palco e na tela de pano
não se sente à vontade. No en- brilha para mais um filme pornô.
tanto, revela que são casados há
oito anos e fazem shows desde Espero o casal na rua, longe das vistas
setembro do ano passado. do pessoal do cinema. Uns dez mi-
“Já faz um ano e um mês”. nutos depois, Valéria sai, seguida por
Atualmente, trabalham todos os Márcio. Ao ser abordado, ele alega es-
dias, ora no Apolo, ora no tar com pressa. Insisto que são apenas
Atlas, revezando as três ou quatro questões pendentes. As
atuações com pessoas passam e olham a cena inco-
Luan. Com mum: um homem com um gravador
freqüência, fazem na mão apontado para o rosto de um
dois espetáculos no casal em frente a um cine pornô na
mesmo dia. Sexo em beira de uma calçada mal iluminada.
casa, “só uma vez, aos do- A conversa, ao lado de um container
Pedestres são convidados a entrar na sala da Avenida Júlio de Castilhos, 450
mingos”. de lixo, se torna travada. Entendo a
que eu o procurasse em outra opor- dos mais diferentes perfis, ainda preocupação de Márcio em não se
Precisando de dinheiro, a opor- tunidade, caso necessário. Márcio e que a grande maioria seja de pes- expor na frente do local de trabalho,

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tunidade surgiu quando “Luan Valéria colocam o capacete, sobem soas evidentemente muito pobres. aos olhos dos passantes.
pediu ajuda para arranjar uma na pequena moto vermelha e vão Não se vê mulheres, mas um dos
companheira para ele. Depois embora. funcionários me disse, em off, que Márcio e Valéria moram em Porto
ele começou a faltar e eu e ela passam todos os tipos pela bilhete- Alegre, mas não revelam o bairro.
(refere-se à Valéria) viemos Shows recebem todo tipo de ria: jovens, velhos, lésbicas, homo e Eles me explicam que ninguém
assistir a um show dele, público heterossexuais. Gente arredia a todo sabe dessas funções; portanto, não
como curiosos, e vimos tipo de exposição. O que observei é se sentem vítimas de preconceito
que dava para a gente Terça-feira, 07 de outubro. Cine que nesse cinema há muito mais ve- por conta da profissão. Logo adian-
fazer... Aí conversamos Atlas, Avenida Júlio de Castilhos, lhos e pobres do que no Apolo, ain- te, ele confessa que a mãe sabe dos
com o Marcos (o dono nº 450. Atlas, assim como Apo- da que, num contraste interessante, shows, mas não se importa. Re-
dos dois cinemas, mais lo, era um dos deuses do Olimpo, circulem pelos corredores homens ferem que têm um filho de cinco
o Áurea, que só representante de uma geração de jovens e bem arrumados. O Atlas é anos, obviamente alheio à situação.
exibe filmes seres violentos e monstruosos. Na o que se chama de um ponto de “pe- Questiono se não seria um choque
pornôs), ebulição do centro da Capital gaú- gação”. Homossexuais percorrem a descoberta, por amigos ou paren-
fizemos cha, Atlas é um prédio velho, posi- o salão em busca de parceiros para tes, das atividades que eles exercem.
um teste cionado quase ao lado da poderosa aventuras ali e fora. “Estamos preparados, pois é esse
e foi indo até Igreja Universal do Reino de Deus, trabalho que fazemos para pagar as
hoje”. A dupla não a uma quadra da Estação Rodo- A atriz termina seu rebolado sensu- contas”.
tem nenhum curso viária de Porto Alegre. Dessa vez, al e entra o ator, já preparado para a
de teatro ou preparo téc- meu objetivo é acompanhar o show apresentação. Noto que se trata no- Dois catadores de papel param
nico nas artes dramáticas, desde o início, observar as diferen- vamente de Luan, e não de Márcio, ao lado do container para ouvir
mas considera o ganha-pão ças entre os dois cinemas e pegar como estava programado. Também a conversa. Márcio não gosta da
um trabalho artístico, não por- informações complementares com a atriz, apesar de semelhanças físi- aproximação e usa o motivo para ir
nográfico. “Para nós sempre Márcio e Valéria. Ainda mais pobre cas com Valéria, é outra, mais alta. embora. Fim da entrevista. Ônibus
foi uma coisa profissional, só que o Apolo, nessa sala o ingresso Depois, descubro que Luan contrata aceleram rumo à Avenida Farrapos.
pelo dinheiro realmente”. igualmente custa R$ 7,00 e o início garotas de programa para dividir o Apolo e Atlas lutam contra a mo-
do show é sempre pontual. Chego cachê. Nesse dia, por um contratem- dernidade, empurrados pela força
Mesmo com toda a ex- exatamente às 3 e meia e as únicas po, Márcio e Valério não puderam de trabalhadores braçais, de desocu-
periência de mais de lâmpadas acesas são os que ilumi- comparecer. pados, curiosos, solitários, de todos
um ano de atuação nam a bailarina, que começa a tirar aqueles que buscam o prazer dispo-
e de sua partner ser a roupa e a dançar em movimentos Desta vez, a sessão parece mais em- nível numa sala sombria de cinema
a própria esposa, ensaiados. polgada, ao som de uma forte batida longe dos shoppings.

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Personagens da vida Nathália Ely*
nathi.es@gmail.com

CAMILA MOZZINI
Quando a idade obriga
a viver à margem

A vida, assim como muitas histórias


contadas ao longo do tempo, é uma
história que abriga personagens
principais, um núcleo central e
os que estão por volta. Jovens, os
protagonistas passam a papéis
secundários quando a idade
chega. E as falas desses persona-
gens quase não são notadas, pois
ficar à margem é a função que
lhes cabem nessa narrativa. Seu
Walter e Dona Maria são alguns
desses personagens que estão nessa
condição devido à idade. Eles fazem
parte de um número de idosos que
já não integram o meio social. O ca-
minhar lento e os braços que já não
suportam tanto peso são algumas das
conseqüências do passar dos anos. O
pensamento e a fala também já não
possuem a mesma agilidade. As di-
ficuldades trazidas com o tempo
Caminhada matinal: séria e sem vontade de conversar, Dona Maria anda na calçada da rua Laurindo, o seu lar
transcorrido também perturbam o
convívio igualitário.
resmungos, eles se comunicam. É seu Tentei descobrir o que eles faziam du- materiais roubados inúmeras vezes.
Sem espaço na sociedade, a solução é Walter chamando-a. Uma Kombi se rante o dia. Seu Walter me olha com Maria também tem problemas físi-
abrigar-se fora dela e encontrar uma aproxima mostrando que é hora de o canto de um olho (o outro, machu- cos. Aida diz que já viu Maria fazen-
maneira de continuar a escrever suas ir embora. Os donos vieram abrir o cado, está completamente fechado) e do necessidades físicas na rua e per-
histórias. O abrigo pode vir de dife- estabelecimento. me diz que trabalha como porteiro cebeu que ela tinha ruptura de útero.
rentes formas – há os que tomam a em um restaurante. Agitada, Maria A comerciante disse que já tentou
rua como lar, outros são levados a No dia seguinte retorno ao local para começa a pegar suas coisas e a se reti- ajudá-los, oferecendo-se para levá-
uma casa onde convivem com de- conversar um pouco com eles. Uma rar. Walter a segue. Vamos atrás, mas los a um asilo. O casal, no entanto,
mais idosos, e ainda aqueles que, colega chega antes e já tenta iniciar de nada adianta. A primeira lotação negou, pois sabiam que a ida pra um
após viver uma vida agitada, optam a conversa. Chego quando Seu Wal- passa e eles embarcam. local desses implicaria em dormir
por retirar-se em um asilo, onde en- ter já está terminando de guardar separadamente.
contram companhia, o carinho de os objetos. A aproximação é difícil. Eu me pergunto por que a nossa
funcionários e até motivação para Sem nos encarar, ele fala pouco. O companhia os perturba. Será que eles Aida não foi a única a propor auxí-
trabalhar. diálogo não flui. Mal conseguimos já sofreram violência e maus tratos e lio. O taxista Brauriano Barcelos de
descobrir seu nome. Ao perguntar- por isso são receosos? Ao questionar, Fraga já conversou com seu Walter
A rua como lar mos a idade só ouvimos “Ah, muito seu Walter nega. Mas não é o que para ajudá-los a se aposentarem.
tempo”. Dona Maria se aproxima nos afirma Aida da Silva Costa, de Ele não aceitou. “Sinto muita pena,
A rotina começa cedo na Rua Lau- e não gosta da nossa presença. “O 61 anos, mulher de Ângelo Candia, porque se fossem bagaceiros... eles
rindo, afinal, antes das oito horas, Seu que vocês querem?”. ”A gente quer de 66, o dono do mercado que abri- são gente. São gente finíssima, só
Walter e Dona Maria devem deixar entrevistar vocês”. “Mas entrevistar ga o casal. Ela garante que os idosos que são abandonados, despreza-
o local onde passaram a noite, abai- por quê?” já sofreram agressões e tiveram seus dos”, afirma o taxista. Conforme
xo do telhado do mini-mercado. Seu Fraga, ele é da Vila São José e ela é
Walter arruma os panos e cobertores do Beco do Carvalho e há 30 anos
que os abrigaram do frio da madru- eles ficam na Praça Jerônimo de
gada, materiais doados pelos mora- Ornelas.
dores das residências do local. Assim
como as cobertas, os alimentos tam- À noite, por volta das oito horas, o
bém são fornecidos pela comunida- casal retorna e aguarda Aida e Ân-
de. gelo fecharem o mini-mercado. Aí
então, eles montam a cama para
Walter guarda tudo entre os galhos mais uma noite na rua.
de uma árvore em frente ao mini-
mercado. As tábuas, utilizadas para Seu Walter diz que agora, depois
parar o vento que entra pela lateral, de velho, não precisa mais de uma
divisa entre um prédio e outro, são O casal precisa casa. Alguns idosos, entretanto, en-
arrumar a
colocadas juntamente com os de- contram em lares construídos para
cama antes da
mais pertences do casal. Dona Maria abertura do recebê-los, a única forma de conti-
caminha pela calçada. E entre gritos e minimercado nuar a viver.
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Por trás dos muros muro e fugir. Vanderlei e um dos

NATHÁLIA ELY
filhos de seu Ênio pegaram um ôni-
Ao chegar à Rua Gonçalves de Ma- bus para o Centro da Capital e foram
galhães, em Alvorada, não enxergo atrás, percorrendo diversos lugares
a moradia que fui visitar. Um muro em Porto Alegre onde o idoso teria
alto a esconde e oculta também seus vivido momentos da juventude. Per-
moradores. Segundo Fernanda Silva correr esses locais era a chance de
e Silva, de 57 anos, que junto com o encontrá-lo, pois como o Alzhemeir
marido, Vanderlei Dias Fagundes, bloqueia a memória recente e man-
de 37, coordena o Lar para Idosos tém viva a mais antiga, seria em um
Cantinho dos Avôs, essa foi uma desses pontos que ele estaria.
das maneiras de controlar conflitos
com alguns vizinhos, que queriam Vanderlei não sabe explicar como,
o fechamento do local. No início do mas seu Ênio foi parar em Viamão,
funcionamento do lar, aberto em onde um senhor o ofereceu uma ca-
1996 com duas idosas, as pessoas rona para casa. Seu Ênio disse que
reclamavam. Hoje os velhinhos não morava no encontro das ruas São
perturbam a vizinhança. O pro- Manoel e São Francisco, em Porto
blema não era o barulho ou o mau Alegre, local que ele morou quando
Sempre ativo: Seu Hermínio encontrou no asilo vontade de continuar a viver
cheiro que poderia vir da casa. A jovem. Não encontrando, o senhor
questão era visual: “Eles dizem que decidiu levá-lo para a 8ª Delegacia
é uma visão do inferno”, afirma Fer- de Polícia da Protásio Alves. Coin- portagens e fotos antigas, tudo guar- O que mais incomoda
nanda. Ela conta que uma das vizi- cidência ou não, era onde um sobri- dado com muito carinho. Lembran- seu Hermínio é ver al-
nhas chegou a afirmar que o lar não nho trabalhava. O sobrinho ligou ças de um tempo em que ele vivia na guém jogando fora
poderia existir ali porque esse era para a mulher de seu Ênio, que con- sociedade. ou pisando no
um bairro residencial. “Quer dizer, tatou Vanderlei e eles foram buscá- informativo,
eles (os idosos) são bichos. Porque é lo. A idade chegou, mas não derrotou o “Chega a
residencial não pode ter outros seres jornalista Hermínio d’Andréa, mo- doer no coração”, ele
humanos?”. Isso ocorreu há três anos e, desde rador há três anos do local. Aos 83 diz. Além de manter o ouvido atento
então ele nunca mais fugiu. De vez anos, foi no Asilo que ele encontrou a tudo que acontece na casa, ele tam-
Pessoas que só têm algo diferente de em quando seu Ênio reclama um forças para recuperar-se da depres- bém está sempre ouvindo diferentes
nós: a idade. Com ela algumas do- cigarro, mas isso já não é mais pro- são que o atingiu após a morte da rádios, acompanhando as notícias.
enças. Como o Alzheimer que casti- blema. Sob cuidados mais atentos, mulher, Iraci Lucci, em 2005. “Eu
ga seu Ênio, de 74 anos. Ele acompa- sua ansiedade é controlada. Só após fiquei então solito, quase que eu me “Amigo, venha sempre, venha sem-
nha com os olhos o meu caminhar essa melhora, seu Ênio ganhou a atirei... Eu nem sabia o que fazer, pre, venha sempre...” é uma frase
pela casa. Quando eu paro na sala possibilidade de sair para visitas. nem comia”. Foram alguns amigos pendurada na parede. “Aí um belo
em que ele se encontra, logo se le- que o levaram para lá. Ele lembra: dia ele fica aqui!”, Hermínio comple-
vanta e oferece-me a cadeira para Assim como seu Ênio, outros 23 ido- “Eu cheguei aqui eram duas e quin- ta, com seu bom humor constante.
sentar. Agradeço e aproveito para sos vivem no Cantinho dos Avôs. A ze da tarde do dia cinco de seis de E, Seu Hermínio sabe que há fases
perguntar o que ele faz. “Eu trabalho maioria vem por indicação de outras 2005. Tu vês que eu não me esqueci na vida. “Tem gente que envelhece
aqui!” “E o que o senhor faz?”. “Ah, prefeituras, como dois novos mora- de nada”. por que quer!”, é o que ele diz quan-
de tudo! O que tiver para fazer eu dores que vieram de Caiçara. Visitas do pergunto sobre ser idoso.
faço!”. “E onde o senhor mora?”. “Na de familiares, como as que seu Ênio Bom de memória e de papo, ele
São Manoel, em Porto Alegre”. Mais recebe, são raras. Para grande par- me conta as inúmeras aventuras Ele afirma que nunca sofreu precon-
um pouco de conversa e ele me diz te deles, a família são todos aqueles e desafios da profissão. Para ele, o ceito, veio para o lugar certo. Sobre
que quer ir à farmácia. que convivem no lar, pois muitos jornalismo “ai, ai, ai, é pior que mu- família, também não fala muito. Diz
deles nem sequer conhecem seus lher, vicia”. Foi em Esteio, para onde que tinha nove irmãos, apenas dois
Farmácia. Uma recordação do mun- verdadeiros irmãos. ele se mudou na década de 1950, sobreviveram. De vez em quando
do fora do Lar. Às vezes, quando que ele fundou A Gazeta de Es- eles o visitam. Mas seu Hermínio
Vanderlei precisa ir comprar medi- Contudo, há ainda aqueles que op- teio. E, através do jornal, divulgou está bem como está. Saudade? Ele
camentos, ele leva Ênio para passear tam por deixar a sociedade, onde vi- a emancipação da cidade, ocorrida lembra tudo com carinho.
e ver paisagens além do muro. Seu viam isolados, e buscam abrigo em em 1952.
Ênio também passeia no dia do seu asilos, onde encontraram colegas
A história continua
aniversário, quando os filhos dele o para conviver. A tristeza pela morte da mulher o
buscam. Contudo, a ansiedade de abalou e interrompeu essa carreira, A idade vem e traz com ela algumas
voltar para o Lar não o deixa dormir. De fora, mas sempre ativo mas a vida no asilo lhe trouxe mo- conseqüências. Com ela vêm dores
Ele diz que precisa voltar para ajudar tivação. Por pedido dos diretores, no corpo, fragilidade física e alguns
Vanderlei. A residência da mulher já Chego ao Asilo Padre Cacique, em Júlio César Pinto e Cristina Mesqui- problemas psicológicos, decorrentes
não é mais a sua casa. Mesmo com Porto Alegre, e me deparo com al- ta, ele voltou a escrever. É ele quem de uma história de vida. Mas essa
os quatro filhos e a mulher, seu Ênio guns idosos sentados em um banco comanda o informativo O Cacique. biografia também pode conter ex-
só consegue ficar bem no Lar. conversando. Ao pedir pelo senhor A volta à atividade lhe trouxe con- periências que podem ser compar-
Hermínio, ele prontamente se levan- fiança e é a sua razão de viver atu- tilhadas. A jovialidade pode ter fim
Além do Alzheimer, seu Ênio possui ta e me convida para conversarmos almente. Seu quarto é também a e a vida social também. Seu Walter,
o vício do cigarro. O fumo exagera- em seu quarto que fica em uma sala redação. As observações feitas ao Seu Ênio e Seu Hermínio. Alguns
do causou um enfisema pulmonar e ampla, composta por divisórias, que longo do dia, anotadas em qualquer personagens que não mais ocupam
ele precisou ser internado. De volta separam o reservado de cada mora- pedaço de papel, são passadas para a área central da história, mas se
ao recanto, ele tinha uma recomen- dor. O do Seu Hermínio é diferente o computador. Às vezes, as notícias mantêm por aí, pelas margens.
dação médica a seguir: não fumar. A dos demais. Uma escrivaninha, um perturbam alguns, pois ele denuncia
ansiedade causada pela abstinência computador e uma cama dividem o o que está faltando e o que precisa
deu a seu Ênio forças para saltar o espaço com um monte de papel, re- mudar na casa. *Colaborou Camila Mozzini

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Filipe Peixoto

Ô abre alas, o teatro quer passar filipeixoto@gmail.com

REPRODUÇÃO
As dificuldades e peculiaridades dos grupos de teatro
do interior do Rio Grande do Sul

Nesta noite, um ator vai entrar em bate, é um momento que temos para
cena em alguma cidade do interior refletir sobre a arte, a teoria, os jeitos
do Rio Grande do Sul. Ele vai dar seu de montagem – conta o ator e profes-
texto, interpretar e suar. Ao final da sor de teatro Rony Pereira, natural de
peça, receberá aplausos e talvez seja Palmeira das Missões que hoje vive
cumprimentado no camarim. Até aí, em Carazinho.
tudo igual ao que acontece em Porto
Alegre, mas atrás das cortinas existe Durante o festival, são realizados
uma realidade interiorana que se di- cursos e oficinas que contribuem
fere da capital. Uma diferença que vai na formação dos participantes. Os
além das condições técnicas precá- grupos aproveitam os festivais para
rias, que envolvem luz, som, cenário se reciclar e refletir sobre o fazer
e teatros disponíveis para se apresen- teatral. A tendência hoje é reforçar Vanessa Giovanella dirigiu o espetáculo “Torturas de um Coração”, em Santa Maria.
tar. Os grupos de teatro do interior o caráter de fórum dos festivais e
A independência e autonomia do – Os espetáculos do interior tinham
possuem uma dinâmica própria de estimular o debate – principal di-
teatro do interior nem sempre são que meter mais a cara e vir mais.
organização e se formam à imagem e ferencial do teatro do interior. A
vistas com bons olhos. Vanessa conta Não é porque é do interior que não
dissemelhança de Porto Alegre. atriz, diretora e professora de arte
que os profissionais da área acadê- tem qualidade e não é porque é da
dramática Vanessa Giovanella, de
mica não valorizam com igualdade capital que tem qualidade. Existem
O alicerce dos grupos no interior são Santa Maria, acredita que crescerá
o teatro nascido longe da faculdade. safras. Sempre comparo o teatro
os festivais de teatro. Pelos cantos do a responsabilidade dos festivais de
Segundo ela, as pessoas da universi- com a safra de arroz. Um ano dá
estado, os grupos se reúnem nos fes- profissionalizar atores, diretores e
dade tem um “ranço” com o teatro superbom e outro não dá – diz Air-
tivais para apresentar peças, concor- técnicos:
que não é acadêmico. ton.
rer a prêmios e serem avaliados por
um júri de profissionais experientes – Será fortalecido o papel do fes-
Outro obstáculo é a dificuldade das Embora não exista concretude no
das artes cênicas. tival como escola e a tendência é
peças do interior em transitarem em suposto preconceito de Porto Alegre
terminar a competitividade. Essa
Porto Alegre. É raro ver em cartaz com o teatro do interior, a sensação
– Temos um perfil autodidata e os é uma visão social que deve ser in-
uma produção do interior. Para Rony, de não ser bem-vindo na capital pai-
festivais nos proporcionam um de- corporada aos festivais.
a culpa é dos palcos porto-alegrenses, ra entre os teatreiros interioranos. A
que não são receptivos: divisão, mais psicológica do que real,
GRUPO DE TEATRO DA UNIJUÍ

dicotomiza a produção teatral. Para


– O interior tem uma baita produ- Rony, que diz não ter planos de tra-
ção, extremamente competente e de balhar em Porto Alegre, há resistên-
qualidade, que não é vista por Porto cia ao se tentar cruzar essa fronteira:
Alegre. Uma vez tentamos levar para
Porto Alegre “A Sobrinha da Mar- – Quando você fala que é de qual-
reca”, Melhor Espetáculo Infantil no quer cidadezinha do interior, já fi-
Festival de Erechim (2005). Fizemos cam de pé atrás. Eu não sei se duvi-
inscrições, era uma peça com quali- dam da competência técnica ou se é
A humildade que faz a diferença dade artística, mas não foi aceita. A medo da concorrência.
gente sente que é uma falta de vonta-
A qualidade do debate teatral e a humildade para ouvir críticas são apon-
de política de abrir as portas. Enquanto não há livre circulação
tadas como vantagens dos grupos do interior em relação aos da capital.
nesta divisa, o teatro da capital e o
– O interior cresce muito mais ou- – A gente faz teatro porque acredita As portas que Porto Alegre pode teatro do interior vivem cada um no
vindo nos festivais. E eu também, na arte, pelo tesão que temos pelo
quando sou jurado de um festival
abrir são capazes de escancarar ja- seu quadrado, zelando por seu qui-
teatro. Aqui no interior temos a des-
aprendo muito com os grupos. Teve vantagem de estar longe da Capital, nelas no interior. A capital é uma vi- nhão. Atores e diretores do interior
uma época que se tentou algo pareci- onde o acesso à informação é mais trine. Se um grupo do interior passa – cientes de que estão à margem da
do aqui em Porto Alegre. Nas segun- fácil, mas temos a vantagem de ter por ela, automaticamente recebe um capital – fazem questão de demarcar
das-feiras um grupo se apresentava e os festivais. Eu nunca ambicionei ir passe para se apresentar no resto do seu território e cuidar bem do
havia um debate, mas não deu certo, trabalhar em Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Assim, além do farto público em potencial:
as pessoas têm muitos dedos. Rony Pereira, ator e professor de te- prestígio, entrar em cartaz em Porto os nove milhões de pes-
Airton de Oliveira, diretor, ator e atro – Carazinho Alegre significa aumentar as chances soas que vivem fora de
produtor teatral – Porto Alegre
de boas bilheterias no interior. Porto Alegre, equiva-
– O teatro no interior é prejudicado lente a 87% da popu-
– A nossa vantagem é a humildade na parte técnica de montagem de Também há os que vêm do interior lação gaúcha. Para
e o se querer bem. O que faz os fes- som e luz com qualidade e eficiência, para Porto Alegre e acabam ficando. os grupos do
tivais perdurarem é a vontade dos mas leva vantagem na união, no im-
grupos de querer se ver. O teatro do proviso e na vontade de fazer teatro, É o caso do diretor, ator e produtor interior, é gen-
interior trabalha mais a humaniza- mesmo em condições precárias e de teatral Airton de Oliveira, natural de te o bastante
ção, isso torna o trabalho mais hu- difícil trabalho. Alegrete, mas que há 26 anos mora e que está
mano. Jeferson Luiz, organizador do Festival na capital. Ele estimula os grupos a em boas
Vanessa Giovanella, atriz, diretora e Pedritense de Teatro (Dom Pedrito- lutar por espaço em Porto Alegre e mãos.
professora de arte dramática – Santa RS), um dos maiores festivais do es- diz que a maioria dos que fazem tea-
Maria tado. tro na capital veio do interior.
Ana Lúcia Mohr analumohr@gmail.com

Toda forma de poder Douglas Carvalho douglasgravatai@yahoo com.br


Tássia Kastner tc_kastner@yahoo.com.br

O sucesso da estratégia do partido, campanha pouco abriram espaço


A política no Brasil é sinônimo de partidos de nome, de basear a campanha no nome do para mostrar quem estava em sua
mas com programas pouco representativos. Em con- candidato, pode estar ligado à vida coligação – PPS e PSB. Segundo Raul
trapartida, algumas organizações defendem ideários pública pregressa de Fogaça, inicia- Pont, o caso de Manuela difere do de
da na década de 1970, como com- Fogaça porque naquele “há uma de-
políticos fora da política tradicional positor, apresentador de programas terminação explícita de esconder o
de TV (pela TV Difusora de Porto PPS, de esconder o PCdoB e centrar
Sem Fronteiras Políticas vereadora pelo PCdoB, porém, no Alegre), rádio (pela Continental) e toda a campanha na figura simpáti-
ano seguinte à posse, filiou-se ao PT. como articulista do jornal Zero Hora. ca, de muita empatia televisiva que
Tornar-se um jogador de futebol Ligada à tendência Movimento PT Conforme Raul Pont, a campanha a Manuela tem como uma forma de
exige dos pequenos talentos a cons- (a mesma de Marta Suplicy e Arlin- de Fogaça está imbuída de um “anti- vincular isso com o eleitor”.
trução da carreira a partir de cate- do Chinaglia), sua indicação como petismo”, idêntico ao do governo do
gorias de base de grandes times. O candidata do PT à prefeitura mar- Estado, expressado recentemente A história do Partido Comunista
garoto participa de uma peneira cou a derrota, nas prévias, da De- pela “ilustre governadora” ao dizer no Brasil inicia em 1922, alternando
seletiva e joga pelo juniores até que mocracia Socialista (DS), tendência que “era anti-PT de carteirinha”: “O períodos de legalidade e ilegalidade,
técnico do time principal do clube trotskista que indicou Raul Pont a Fogaça também procura expressar e dificultando a articulação. O infor-
encontre nele uma solução para o candidato na eleição de 2004. explorar na campanha eleitoral um me confidencial de Kruchov ao 20º
time. É o início de uma vida profis- Congresso do Partido Comunis-tas
sional no futebol, que no clube de da URSS, em 1956, no qual ele de-
origem não dura muito tempo. Logo nunciava os crimes de Stalin, ge-rou
um time europeu oferece um gordo perturbações no movimento co-
salário e lá se vai a nova estrela do munista mundial. No Brasil, foi em
futebol, brilhar em outros grama- 1962 (com o partido na ilegalidade)
dos. A equipe do coração facilmente que a ala stalinista – descontente
recebe a gratidão, e não mais o de- com o novo programa adotado em
sempenho em campo. 1961 – reuniu-se sob a sigla PCdoB.
Jacob Gorender, no livro Combate
Alguns políticos guardam seme- nas trevas – A Esquerda Brasileira:
lhanças com esses jogadores de fu- das Ilusões Perdidas à Luta Armada,
tebol. Reconhecem a importância relata que “o PCdoB se proclamou
do partido pelo qual iniciaram sua (e o faz até hoje) o mesmo partido
vida política, mas estão bem, obri- comunista fundado em 1922 e ‘reor-
gado, apoiados pela sigla que lhes ganizado’ em 1962. Eleva essa duvi-
convém. O outdoor afixado no diretório do PMDB não estampa o logotipo do partido, apenas o dosa versão historiográfica a ques-
número que o eleitor deve memorizar tão de princípio (...) De acordo com
A disputa pela prefeitura de Porto o dogma stalinista, o proletariado
Alegre, em 2008, reuniu 19 partidos Algumas diferenças entre as duas anti-petismo que foi construído ao não pode ter mais de um autêntico
em oito candidaturas. A julgar pelos últimas candidaturas do PT po- longo de décadas aqui pela RBS pe- partido revolucionário”.
números, a probabilidade de en- dem ser estabelecidas em função los meios de comunicação, pelos co-
contrar uma chapa cujas propostas da tendência a que cada uma lunistas, pela maioria dos radialistas Em 1992, o PCB virou Partido Po-
se aproximassem dos interesses do pertence. O personalismo decor- que tem programas que expressam a pu-lar Socialista (PPS), e um grupo
cidadão era alta. Entretanto, as elei- reria “de uma certa rendição aos voz do dono e que são pugilistas de divergente reorganizou o PCB. Até
ções foram construídas, mais do que especialistas em marketing, que aluguel aí das campanhas, ou duran- hoje PCB, PCdoB e PPS se procla-
nunca, a partir de personalidades. estabelecem determinados com- te o ano inteiro”. mam o mesmo partido fundado em
O eleitor não conheceu programas portamentos que eu acho que são 1922. Ironicamente, o PPS se afas-
partidários, menos ainda as coliga- contraditórios com uma visão Sob o ponto de vista político, a au- ta do ideário comunista. Segundo
ções estabelecidas entre partidos. estratégica, de longo prazo”. O sência dos partidos na campanha de Raul Pont, os votos dos parlamenta-
Foi uma eleição marcada por rostos deputado diz ter discutido, em Fogaça também pode se justificar res deste partido “são sempre com a
e pelo uso da primeira pessoa do sua campanha para prefeito (em por ele ter se candidatado à reelei- direita, sempre são contra o povo...”.
singular. 2004), com o responsável pelo ção por um partido diferente do que E complementa: “Qualquer medida
marketing sobre apresentação. lhe elegeu em 2004. O político saiu que seja para melhorar salário, para
Raul Pont, deputado estadual (PT- Quanto ao argumento segundo o do PMDB em 2001, por uma diver- distribuir melhor a renda, para fazer
RS), justifica, em parte, a ausência qual “é isto que as pessoas querem gência política com Pedro Simon reforma agrária, os caras são contra.
dos partidos na campanha: “Como ouvir”, Pont rebate: “Claro, pode (senador gaúcho pelo PMDB), e se São defensores das empresas”.
são frentes políticas, não pode haver até ser o senso comum das pesso- filiou ao PPS. O retorno do político
o predomínio de um partido”. Mas, as quererem ouvir, agora o nosso ao PMDB se deu às vésperas do lan- A coligação do PCdoB com o PPS (o
ao mesmo tempo, declara que isso papel não pode ser de ficar sem- çamento das candidaturas ao pleito mesmo que elegeu Fogaça) poderia
vai do interesse de cada partido. pre refém do senso comum.” municipal de 2008. simbolizar uma união de dois parti-
dos que possuem a mesma origem,
A candidata do PT, Ma- José Fogaça, prefeito reeleito, es- O PCdoB, de Manuela D’Ávila, tam- porém, no contexto atual, a aliança
ria do Rosário, iniciou tampou em bandeiras, cartazes e bém abriu mão de estampar sua causa estranhamento. Isto porque
sua vida política outdoors nome e número do par- identidade em bandeiras e panfletos Fogaça, quando saiu do PMDB, foi
como tido, porém, a sigla PMDB e de – abdicando do vermelho, marca acompanhado por outros colegas de
seus coligados, PTB e PDT, esteve dos partidos comunistas – em favor partido, que ali permanecem. Além
praticamente ausente da campa- de cores que a aproximassem do pú- disso, o programa doutrinário deste
nha. bico jovem. O roxo e o verde de sua partido, ratificado em 24 de março

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3
ria ser a sociedade”.
Dessa disputa, o proje-
t o liberal saiu ven-
cedor e, “para
o projeto liberal
poder se afirmar,
ele precisa da
desmobilização
do cidadão”.

A proposta vencedora tornava


inviável a realização do projeto
abraçado pelo PT e outros par-
tidos na década de 80 – de uma
participação popular, que ainda
tinha força durante a constituinte
de 1988: “Tanto que a nossa consti-
tuição tem paralelismo de projetos
libe-rais e de projetos com partici-
pação popular, inclusive elementos
de forte tendência redistributiva,
que não foram implementados
de 1996 – que foi porque politicamente, esse projeto
coordenado, em sua primeira co- foi derrotado”. A vitória política do
missão de elaboração, por José Fo- libe-ralismo fez com que o PT, para
gaça – defende no item Reformas ter maioria eleitoral, abdicasse de
para Consolidar a Democracia, a suas características, conforme pro- Sempre, em qualquer época ou re- de propagarem suas idéias. “Não
fidelidade partidária: “O instituto fessor Emil. Para ele, “a Carta ao gião, houve marginais. Os que estão tem lugar ruim pra militar, o ruim
da fidelidade partidária é questão Povo Brasileiro é um atestado de aí iniciaram de algum lugar, e essa é não militar”, acredita.
de princípio para o PMDB. O man- fracasso de tudo aquilo que o PT é a parte que certos relatos oficiais
dato eleitoral deve pertencer ao defendia desde a sua criação (...) omitem. “O Partido Comunista Tal declaração se assemelha mui-
partido, perdendo-o quem o deixar Lula e os seus principais conselhei- Russo, quando surgiu, o primeiro to à do Secretário de Relações da
ou dele for expulso em decorrência ros se dobraram a tese vencedora do congresso dele tinha cinco pessoas, Fede-ração Anarquista Gaúcha
de violações ao Programa Doutri- libera-lismo e renunciaram a todo o e eles fizeram a maior revolução da (FAG), Leonardo Leitão: “A gente
nário e aos Estatutos”. Portanto, ao passado político que eles defendiam história, apesar dos pesares, de onde não quer ser vanguarda de nada”.
candidatar-se à reeleição, Fogaça até lá, em prol da obtenção de uma foi dar a revolução”, diz Leonardo Para a FAG, os membros “têm
não agiu de acordo com o princípio maioria eleitoral”. Sosa González, militante do PCML que estar inseridos no que a so-
que ele mesmo ajudou a criar, pois (Partido Comunista Marxista-Le- ciedade está fazendo, sindicato,
era o PPS quem detinha o mandato Depois de mais de uma década ninista) e estudante de História na associação, grupos, movimentos,
de sua primeira gestão. empunhando a bandeira do PT, UFRGS. Para Emil Albert Sobotka, e politicamente eles têm que se or-
a insatisfação com os rumos do “as minorias são capazes de levantar ganizar”. Segundo Leitão – cuja in-
A indiferença do eleitor ante a pro- partido gerou dissidências. PCO, teses, reivindicações, que vão desa- serção social se dá como professor
miscuidade partidária está ligada PSTU e, mais recentemente, PSol fiar os partidos majoritários”. Daí a em um curso pré-vestibular para
ao personalismo político: o cidadão representam aqueles que ainda importância da existência de parti- jovens carentes, entre outras ativi-
vota no indivíduo e não no partido. não desistiram da militância polí- dos políticos contra-hegemônicos e dades –, é assim que membros da
Para o doutor em Ciência Política tica, entretanto, conforme explicou dos movimentos sociais. FAG atuam, junto ao Movimento
e Sociologia pela Universidade de Emil Sobotka, “há um cansaço no dos Catadores de Materiais Reci-
Münster e professor da PUC-RS, mundo ocidental com relação a A fundação do PCML deu-se atra- cláveis, ao movimento muralis-
Emil Albert Sobotka, isso pode ser eleições”. Para ele, “nós até temos vés do Congresso de Refundação do ta, às rádios comunitárias A Voz
explicado pelo fato de que “os par- barulho (em campanha eleitoral), Partido Comunista no Brasil, a fim do Morro (no Morro Santana) e
tidos querem hoje, no máximo, o mas esse barulho é menos em cima de retomar os princípios doutriná- Quilombo FM (na Restinga), por
voto. Não mais que isso. Nem mes- de apresentação e de discussão de rios do Marxismo-Leninismo, base exemplo. Deste modo, buscam in-
mo tornar-se partido de massa”. E propostas e mais de apontar defei- teórica da qual o PCdoB teria se verter a lógica do poder capitalista,
complementa: “Porque os partidos tos alheios”. afastado. O PCML é definitivamen- construindo um “poder popular”,
não têm a pretensão de mobilizar te um partido contra-hegemônico: “uma sociedade onde tu tenhas
as pessoas e discutir. A convenções “Ruim é não Militar” não está registrado no Tribunal Su- participação, coope-ração, auto-
partidárias são a discussão da apro- perior Eleitoral (TSE) e propõe-se a gestão das pessoas, da vida social
priação do aparelho partidário pe- O Brasil é um país teoricamen- organizar as pessoas em núcleos de e dos meios produtivos”. Anar-
las tendências internas do partido te democrático, presidencialista, atuação – os Comitês de Luta Con- quia, ao contrário do que se rotula,
e não a discussão de propostas do que escolhe seus empoderados tra o Neolibe-ralismo. Participar não significa bagunça. Con-
cidadão. Nós temos uma despoliti- por meio de eleições, o que não das eleições, para o partido, seria forme o militante, organiza-
zação da vida política dos partidos”. impede que existam insatis-fei- “administrar os problemas da bur- ção não necessariamente é
tos com a forma de governo vi- guesia”. Também o “reformismo” ter alguém que mande,
O advento da despolitização se dá gente que lutem para mudá-la. (melhorar o que está aí) está fora uma hierarquia. Contrá-
na promulgação da Constituição Sites, murais, rádios, jornais, revistas de questão. Segundo González, as rios ao individualismo e
de 1988 e com a eleição de 1989. são os instrumentos utilizados para eleições “dão uma falsa idéia de ao “liberalismo primitivo”, os
Até esta data, segundo o professor criar uma esfera pública paralela participação popular”. Os militantes anarquistas da FAG são, sobre-
da PUC-RS, havia “uma disputa de às tradicionais emissoras de rádio procuram dialogar com diferentes tudo, humanistas. “A gente acha
projetos de sociedade”, ainda havia e TV, de onde foram excluídos. A segmentos políticos e sociais – tais que no coletivo a pessoa pode ter
“visões alternativas de como deve- marginália também se comunica. como sindicatos, estudantes – a fim liberdade, e acreditamos tanto no
ção do Partido Comunista – hoje Se a FAG acredita na ausência de por es-
Partido Comunista Marxista Le- governo, o presidente do IBEM- tar fora
ninista, o PCML. RS (Instituto Brasileiro de Estu- do de-
dos Monárquicos do Rio Grande bate po-
Em 1993, surgiu a Editora Inverta, do Sul), Fernando Bolzoni, defen- lítico, não
hoje responsável pelas edições em de a existência de uma figura hu- tem como
português do Jornal Granma Inter- mana que simbolize o poder. Ele ser “aparelha-
nacional (Órgão Oficial do Partido entende que a monarquia gera do”, “conquistado” ou
Comunista Cubano no exterior) e progresso. “comprado”, diferentemente da
da revista cubana Tricontinental do presidente (cita o exemplo de
da Organização de Solidariedade Citando o economista estaduni- Berlusconi, atual presidente da
Fernando Bolzoni,
dos Povos da África, Ásia e Amé- dense Douglas North, diz que uma Itália, que acabou de “comprar
presidente do IBEM-RS, rica Latina (OSPAAAL). Tam- organização precisa ter capacidade sua eleição”). Complementa ain-
defende que países com bém distribui a revista das FARC de incentivar o que as pessoas têm da que as fraudes que ocorrem
regime monárquico
são tão democráticos (Forças Armadas Revolucionárias de bom e de inibir o que elas têm no Poder Legislativo, como o
quanto o Brasil da Colômbia), a Revista Resistên- de ruim. “Os interesses induzem Mensalão (escândalo ocorrido
cia Internacional e representa a comportamentos. Não é razoável no Congresso Nacional em 2005
Agência de Notícias Prensa Latina esperar que as pessoas sejam sui- envolvendo compra de deputa-
(fundadada a partir da Operação cidas dos próprios interesses”, diz dos), existem “exclusivamente”
Verdade, em 1959, em Cuba, por Bolzoni. É por esse e outros mo- devido ao regime político vigen-
iniciativa de Che Guevara e Fidel tivos que o procurador-geral da te, isto é, dificilmente ocorreriam
Castro) no Brasil. A Editora está Assembléia Legislativa do Estado numa monarquia parlamentar.
sediada no Rio de Janeiro e pos- defende a monarquia parlamentar. “Até porque para manter um es-
sui sucursais em São Paulo, Minas quema tu precisas de um grau
Gerais, Paraíba, Brasília, Ceará e A razão da fundação do IBEM era de capitalidade, tu precisas de
Rio Grande do Sul. O jornal, que “organizar um lobby para partici- tempo e, sobretudo, de interesses
ser humano que acre-ditamos que possui edição quinzenal e circula par da Constituinte de maneira que envolvidos que tu não consegues
ele pode se organizar de outro jei- nacionalmente, também pode ser a constituição não proibisse mais criar na organização monárqui-
to”, explica Leitão. lido no site www.inverta.org/jor- a discussão sobre monarquia”. No co-parlamentarista”. O instituto
nal. Ali é possível encontrar repor- meio do caminho, acabaram se mantém um endereço eletrônico
Para ser membro da FAG, é ne- tagens sobre política nacional e in- unindo ao deputado Cunha Bue- www.ibem.org, no qual divulga o
cessário concordar com uma ternacional, análises da conjuntura no, do então PDS de São Paulo, que ideário monarquista.
Declaração de Princípios: “Os e editoriais. Apesar disso, trata-se era “um monarquista de quatro
três compromissos básicos são a de um jornal de modelo leninista costados” e, na época, era quarto Ao ser questionado acerca da
inserção social, tem que ter um (“se não se consegue formar a opi- secretário da mesa da Câmara dos influência da cultura na políti-
trabalho social, não um traba- nião do povo, como se pode aspi- Deputados. Cunha Bueno incum- ca brasileira, Bolzoni respondeu
lho assistencial, tem que existir rar a liderar seus movimentos?”), biu-se da tarefa de alavancar a que “a cultura te define as insti-
enquanto sujeito que atua na so- isto é, a serviço do partido, como discussão. Encaminharam, então, tuições no curto prazo. No longo
ciedade; fazer propaganda da ide- muitos alternativos da época da uma proposta de emenda popular, prazo, as instituições amoldam
ologia também; e participar da ditadura. a qual contou com 44.632 votos (o a cultura”. Segundo o cientista
organização, ou seja, concordar e mínimo necessário era de 30.000). político da PUC-RS, o monar-
participar dentro das instâncias A FAG também conta com seus Tal proposta, que viria a ser a úni- quista estaria ignorando o fato
da organização”, explica. Tais dire- próprios meios de propaganda. ca aprovada, foi responsável por de que existem monarquias
trizes “especifistas”, que surgiram O site www.vermelhonegro.org/fag tirar os membros do IBEM da “muito corruptas” no continente
na América Latina, fruto de uma se presta a análises de conjuntura ilegalidade, uma vez que previa a africano. Para ele, o problema
cultura de organização que nas- (característica comum a todo o realização de um plebiscito no dia brasileiro está mais relacionado à
ceu no Rio da Prata, nas décadas jornal de esquerda). Além disso, 7 de setembro de1993, a fim de cultura política do que ao regime
de 1950 e 1960, diferenciam-se do em sua biblioteca, localizada no que o povo brasileiro pudesse de- político. Trocando em míudos:
anarco-sindicalismo do início do bairro Cidade Baixa, em Porto cidir se queria viver num regime as eleições e políticas públicas
século XX, cujos integrantes ti- Alegre (onde é possível encontrar parlamentarista, presidencialista personalizadas e a apropriação
nham a noção de que o sindicato um bom acervo da história do ou monarquista. O plebiscito aca- do que é público para fins priva-
deveria organizar a sociedade. anarquismo e da história social), se bou por ser antecipado para 21 de dos, embora no parlamentaris-
dão as reuniões de um coletivo de abril daquele ano. mo haja a necessidade de fazer
Falar do PCML é falar do Inver- estudo, que é aberto à população. mais acordos políticos para con-
ta, órgão central do partido. O Os encontros iniciam em março e Para Bolzoni, os países onde há seguir maioria. Também aponta
jornal surgiu em 1991, por ini- vão até o final do ano. Trata-se de monarquia não seriam menos distorções institucionais, como
ciativa da Organização Popular mais uma tarefa de propaganda democráticos que o Brasil. Pelo a profusão de CC’s (Cargos de
Prá Lutar (a OPPL), formada por direcionada a pessoas que desejem contrário, crê que eles, “em certo Confiança) em detrimento das
um grupo de trabalhadores ra- conhecer a organização. “A gente sentido, são mais cidadãos, sendo poucas carreiras de estado. Isto
dicados em Nova Iguaçu, Baixa- preza muito o auto-didatismo, que súditos, do que nós, se a gente for faz com que as secretarias de es-
da Fluminense. A OPPL é uma tradição do anarquismo. Tu olhar o que a gente pode ou não tado sejam moeda de troca no
desmembrou-s e vai ver poucos anarquistas teóricos, pode, como a gente exerce nos- jogo político. “Uma das ironias
em dois mo- que se formaram, que tem grandes sa cidadania”. Acha, por isso, que no Brasil é que são os cargos de
vimentos: o estudos filosóficos. Essa idéia do “a monarquia constitui a forma confiança e a comissão cobrada
Movimento 5 coletivo de estudos é um pouco mais adequada a que se chegou sobre cargos de confiança que
de julho – atual isso: pra gente ir conhecendo as para a proteção da res publica – a são a sustentação de uma boa
Movimento Nacio- coisas que a gente acredita, por nós coisa pública –, ou seja, a monar- parte dos partidos políticos, o
nal de Luta Contra o mesmos, ir buscando, criando um quia é o regime mais republicano que também mostra que ali você
Neoliberalismo – e o método próprio de conhecer a rea- que exis-te”. Segundo ele, isso se tem uma fluidez entre o privado
Movimento de Refunda- lidade”, explica Leitão. dá devido à figura do rei, o qual, e o público”, observa.

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Felipe Schroeder
Ensaio: Onde mora o humano felipesfranke@gmail.com

cava na manutenção da má quali- possuíam estrutura política ou


Mais que um relato cru da pobreza, a representação da
dade de vida de ampla população social ampla, seja sob a forma de
marginalidade desempenha um papel fundamental na russa. O grande invento do oci- partidos políticos, seja como aque-
visão de mundo de Dostoiévksi dente de então – a burguesia – vi- le tipo de oposição informal, mas
nha chegando às estepes nórdico- generalizada, da classe media que
“Que acabe, que torture! – con- veis. É o caso do projeto de Re- orientais. A inteligentsia, o corpo precedeu à grande Revolução Fran-
tinuou Elena, com veemência. – cordações da Casa dos Mortos, seu intelectual crítico encarregado de cesa. “Dostoiévski, como intelectu-
Não sou a primeira. Outras pes- relato da vivência com prisioneiros discutir e problematizar o rumo al, fez parte deste grupo, razão pela
soas, melhores do que eu, também e marginais quando do cumpri- da sociedade, encontrava-se numa qual, ao ler um panfleto esquer-
so-frem. Foi uma mendiga de rua mento de sua pena de quatro anos situação ambígua: de um lado, o dista numa reunião, acabou sendo
que me disse isso. Sou pobre e na Sibéria. Também do pobre e peso da tradição do “povo russo“, condenado à morte e, depois, à
quero ser pobre. A vida toda serei atormentado estudante de Crime da “alma russa“, ainda pertencente prisão, iniciando uma série de pro-
pobre. Foi minha mãe quem man- e Castigo, que elabora uma teoria a um mundo já visivelmente antigo blemas em sua vida. Como escritor
dou, quando estava morrendo. sobre a liberdade humana. e predominantemente religioso; do tentou transcen-der. Influenciado
Vou trabalhar... e não quero esse À primeira vista, Dostoiévski parece outro, a invasão ideológica do libe- pela Escola Naturalista de Nikolai
vestido”. glorificar e, ao fazê-lo, mi-
nimalizar a pobreza. Mas
Elena tem ralos 10 anos. Perdeu a o contexto histórico e po-
mãe e avô para a doença. Perdeu lítico em que Dostoiévski
o pai, que as deixou. Tem a si so- viveu e escreveu revela
mente a patroa gorda e espalha- facetas da sua aproxima-
fatosa do subúrbio, que a espanca ção aos miseráveis. Ajuda
enquanto, suando, se suja ao chão a entender o que ele quer
para desengordurar a imundície mostrar quando nos põe
da patroa. Ao presente que recebe olho a olho com a popu-
de desconhecidos, responde: lação marginal de São Pe-
“Esse vestidinho é mau – disse ela tersburgo e dos campo-
sufocando de emoção. – Por que o neses da Rússia imperial,
chamou de bonitinho? Não que- mostrando que “miséria”,
ro usá-lo! – gritou ela de repente, embora algo trágico e que
levantando-se de um salto. – Vou produz sofrimento, é, na
rasgá-lo todo. Não pedi para ela nossa época, uma espécie
me vestir. Ela me vestiu à força. de reduto da dignidade
Eu já tinha rasgado um, vou ras- humana.
gar este também. Vou rasgar! Vou
rasgar!” Nascido a 1821 em Mos-
cou, Dostoiévski não foi
Esta é a pequena heroína de Hu- exatamente um pobre.
milhados e Ofendidos, de Fiódor Estudou engenharia, e
Mikhailovitch Dostoiévksi. Sua desde cedo entrou em
extrema pobreza, mesclada a um contato com grandes no-
orgulho da própria miséria, à hon- mes das literaturas russa
ra de subsistir e sobreviver, guia e européia de seu tempo,
o romance. Mas sua personagem não tardando para come-
tem algo de exagerado, há como çar a trilhar seu caminho na arte li- ralismo burguês ocidental. Gógol, outro expoente literário de
que um descabimento no seu tem- terária (estreou no romance, Gente A articulação desta inteligentsia seu tempo, ele tentou, na primeira
peramento e gênio. O tipo de per- Pobre, com 25 anos de idade). Nes- como força motriz da modifica- fase da carreira, aproximar-se do
sonagem de Elena é somente um se processo, adentrou, como era o ção da estrutura social vigente, no povo real, daquilo que os naturalis-
dentre muitos outros na obra de costume, os debates políticos do entanto, era fraca, como escreve o tas consideravam a alma russa. E à
Dostoiévski. Gente Pobre, seu ro- seu tempo, debatendo-se, o que à historiador Isaiah Berlin: “Os libe- medida que se distanciava de Gó-
mance de estréia, aborda época era inevitável, com as fortes rais e radicais russos dos anos 30 e gol, desvinculava-se da metafísica
a vida entre ambivalências do que significava 40 (1830, 1840), que se limitavam intelectual russa. É nesse momento
os mise- ser russo no século XIX. a questões estéticas ou filosóficas, que sua compreensão da mi-séria
rá- como o círculo que se reunia em ganha força – e amplitude.
Nem puramente oriental ou oci- torno de Stankevitch, ou que se
dental, o Império Russo desenvol- preocupavam com questões políti- Um exemplo da complexidade do
veu-se tardiamente. No decorrer cas e sociais, como Herzen e Oga- pensamento de Dostoiévski so-
dos 1800, passava pelo processo rev, permaneceram como lumières bre a realidade russa é o romance
já sentido há pelo menos 100 anos isoladas. Tratava-se de uma elite político Os Demônios. Na história,
por um número considerável de intelectual diminuta, extremamen- que teve como inspiração real o as-
países europeus: o crescente te envolvida com ela mesma. Eles sassinato de um estudante por um
desgaste do Estado absolutista. se encontravam, discutiam e se in- grupo niilista russo, desenrola-se
Esse atraso encarnava-se fluenciavam mutuamente nas salas catastroficamente uma trama de
na persistência de um de visita e salões de Moscou ou São pequenos revolucionários inspira-
Czar que concentrava em Petersburgo, mas não contavam dos pelo anarquismo do pensador
si os poderes e desembo- com o menor apoio popular, nem francês Fourier. Críticos radicais do
absolutismo czarista e adeptos da
revolução social total, estes ideólo-
gos foram alvo da crítica de Dostoi-
évksi, que via uma irracionalidade
absoluta no projeto de instaurar
um novo governo totalitário, com
a única diferença de que, neste, o
fundamento seria “científico” – se-
guindo o espírito, popular então
entre os intelectuais, da filosofia
positivista de Auguste Comte.

Ao mesmo tempo, Dostoiévksi


também foi um critico do libe-ra-
lismo burguês, tal como ele se ma-
nifestava nas sociedades européias
de então. “Por que ele escondeu não
sei onde todos os pobres e procura
convencer-se de que eles absoluta-
titui, para muitos críticos, um dos
ápices de sua obra.

“Agora, vou vivendo os meus dias


em meu canto, incitando-me a
mim mesmo com o consolo raivo-
so – que para nada serve – de que
um homem inteligente não pode,
a sério, tornar-se algo, e de que so-
mente os imbecis o conse-guem.”
A idéia marginalidade experimen-
tada pelos pobres agora se desloca
para o campo moral e intelectual, à
medida que, na lei-tura do narra-
dor, “uma consciência muito pers-
picaz é uma doença”. O homem do
subsolo, que tem consciência e se
vê obrigado a refletir sobre o mun-
do à sua volta, está à margem do
nalidade, tal como
ela aparece reite-
radamente nos seus
livros, na medida
em que Dostoiévksi
não promove uma

4
defesa deste ou daquele grupo, ou
uma glorificação destes ou daque-
les tipos humanos, como às vezes
pode justamente parecer. Nesse
sentido, Dostoiévksi quer, sobre-
tudo, aproximar as personagens,
conferir-lhes (e a nós mesmos)
uma fraternidade. Ele nos provê
um humanismo que só é possível
a partir do contato com persona-
gens como a pequena Elena: é lá
– lá onde se sente a opressão, onde
se é pobre, humilhado, ofendido e
milhão não é
aquele que faz o que bem
entende, mas aquele com
quem fazem o que bem
entendem”.

Enquanto caçoava da liberdade bur-


guesa, a liberdade existencial foi,
talvez, um dos temais mais caros ao
humanismo de Dostoiévski. À parte
das vantagens em voga na sociedade
vigente, afora a vontade e o desejo de
conforto, tranqüilidade e bem-estar,
Dostoiévksi elegeu uma
outra, superior a todas as

GABRIEL HORNOS
demais. “Uma vantagem
que seja nossa, livre, um
capricho nosso, ainda
que dos mais absurdos,
nossa própria imagina-
ção, mesmo quando exci-
tada até a loucura – tudo
isto constitui aquela van-
tagem das vantagens que
deixei de citar, que não se
enquadra em nenhuma
classificação, e devido a
qual todos os sistemas e
teorias se desmancham
continuamente com to-
dos os diabos! (...) O ho-
mem precisa unicamente
de uma vontade indepen-
dente, custe o que custar
essa independência e leve
aonde levar”.

Como anota José Mer-


quior, “a vida é, para
Dostoiévski, senão algo
sem sentido, pelo me-
nos algo cujo significado
mente não existem?” O burguês, pensamento corrente: por pensar levado a condições extremas – que trans-cenderá sempre a razão hu-
não satisfeito com a ordem em que demais e não conseguir achar fun- encontraremos o fenômeno do hu- mana”.
vive, “cobre os buraquinhos das damento no absurdo mundo, esse mano.
botas com tinta de escrever, con- habitante do subsolo transforma-se Assim, essa vontade de indepen-
tanto que, pelo amor de Deus, não num camundongo. “Ali, no seu ig- “É verdade que nem todos os se- dência – não pareceria errado
se note alguma coisa!”, pois, afinal, nóbil e fétido subsolo, o nosso ca- res criados por Dostoiévski con- afirmar – consiste o fundamento
“é preciso, realmente, que tudo re- mundongo, ofendido, machucado, seguem articular-se ao jogo certo não-racional, não-passível de sis-
luza de virtude”, isto é, “acumular coberto de zombarias, imerge logo das relações humanas, nem todos tema ou ciência, governo ou polí-
fortuna e ter o maior número pos- num rancor frígido, envenenado e, voltam vitoriosos das suas experi- tica. Essa vontade de independên-
sível de objetos transformou-se no sobretudo, sempiterno.” ências, mas essa falange de humil- cia, de “nos tornarmos aquilo que
principal código de moralidade no des, de fracassados, de vencidos, realmente somos” como defendeu
catecismo do parisiense”. Mikhail Bakhtin lançou a chamada nos oferece uma lição de amor e de Nietzsche, constitui a nossa mais
Tese polifônica, segundo a qual os respeito à vida”, comenta o ensaísta profunda humanidade.
Rejeição categórica do socialis- romances de Dostoiévski teriam Hamilton Nogueira. Dostoiévksi
mo utópico e crítica mordaz da uma “opinião” esmigalhada entre não conferiu destinos felizes a seus “Toda a obra humana realmente
moralidade burguesa nascente uma vasta gama de personagens. A personagens, não acreditou no so- consiste apenas em que o homem,
fundem-se em Memórias do Sub- hipótese ajuda a aceitar a complexi- cialismo revolucionário de Fourier a cada momento, demonstre a si
solo. Rotulada de novela, a primei- dade do universo e dos personagens e também não deixou de notar que, mesmo que é um homem e não
ra parte da obra mais se aproxima de Dostoiévksi, difíceis que são de embora na sociedade burguesa haja uma tecla”, escreveu Dostoiévski. E
de um manifesto existencial, no serem rebaixados a um conceito ou o direito à liberdade, livre mesmo parte fundamental desta demons-
qual a filosofia de Dostoiévski se de provocarem somente ódio ou só aquele que tem “um milhão”, de tração só é possível à margem, ao
funde num monólogo que cons- paixão. Parece ser o caso da margi- modo que “o homem desprovido de subsolo.

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 13


Gabriela Haas

Sou marginal, mas tô na moda gabihaas002@yahoo.com.br


Juliana Wecki
ju.wecki@terra.com.br

GABRIELA HAAS
Os adeptos da tatuagem mostram por que o
símbolo da marginalidade se tornou pop

Antes no limbo dos costumes, a tatua- des atribui a mudança pela qual a so-
gem hoje é só mais uma mania incor- ciedade passou, em todos os campos,
porada à lógica da moda. Ela já marcou (e ao, e também, principalmente) ao
rituais de passagem e de magia negra, capitalismo. “Tudo perdeu a pers-
estampou braços de bandidos, conta- pectiva do alternativo. Hoje em dia, a
bilizou as viagens dos marinheiros e já identidade não se marca pela bandeira
figurou em muitos corpos revolucio- da ruptura, tudo é aceitável”, explica
nários. Atualmente, se compara a um a socióloga. Ela ainda afirma que as
brinco ou a outro penduricalho qual- marcas corporais agora são ligadas à
quer: é só mais um enfeite. estética e não a um comportamento, existindo. Isso se percebe através da- identidade. Hoje em dia, no entanto,
crença ou atitude de protesto. quelas tatuagens que, de alguma for- isso também não faz mais sentido.
A socióloga e professora da Pontifícia ma, ainda servem para distinguir as As pessoas não ficam mais chocadas
Universidade Católica do Rio de Ja- Essa transformação da maneira como famílias, homenagear guerreiros ou com as marcas. Elas se tornaram algo
neiro (PUC-RJ), Maria Isabel Mendes, a arte é encarada pela sociedade é tam- mortos, que buscam proteção”, expli- muito normal”.
afirma que, no passado, a tatuagem era bém conseqüência da forma como ca o tatuador Glauco.

X
utilizada para relatar fatos da vida so- a sociedade encara a si própria. “Do Se antes o público que se deixava
cial de comunidades, além de dividir e mesmo jeito que a sociedade se acos- E o biólogo, P. M., ainda vai mais marcar pela agulha dos tatuadores era
rotular indivíduos e grupos. “A tatua- tumou a ver pessoas passando fome além: “Quando se é adolescente, até radical, subversivo ou militante, hoje
gem era vista como algo maldito, que na rua, situação que se tornou nor- existe a vontade de marcar o corpo não é mais. Agora, exibem na pele as
marcava a exclusão”, garante. A arte de mal com o passar do tempo, também como forma de protesto, porque se marcas de um tatuador, artistas, mo-
marcar o corpo com desenhos, se acostumou com esse outro tipo de quer ir contra alguns valores im- delos e todo o tipo de “vítimas do ca-
no entanto, foi se modifi- manifestação”, explica P. M., biólogo de postos pelos pais ou pela sociedade. pitalismo” que se renderam à prática:
cando com o passar do tem- 32 anos que exibe os braços e as costas O que se quer é encontrar a própria a tatuagem agora é pop.
po: as perspectivas mudaram com diversas tatuagens coloridas.
na sociedade contemporânea.
Durante alguns anos, a sociólo- Se, antigamente, as tatuagens eram uti-
ga desenvolveu pesquisas junto a lizadas como forma de expressar uma
tatuadores profissionais, quando atitude de subversão, hoje aparecem
constatou que marcar o corpo não na pele de todos os tipos de pessoas,
é algo que causa estranheza: “Hoje, a independentemente de faixa etária
tatuagem se tornou oficial. Ela foi in- ou classe social e, principalmente, de

REPRODUÇÃO
corporada pela moda”. A sociedade, ideologias ou da falta delas. Mas, o
que anteriormente marginalizava que leva tanta gente diferente a buscar
aqueles que exibiam, orgu- esse tipo de marca? P.M. responde: “Eu
lhosos, dragões, animais faço as minhas por achar bonito. É o
ou símbolos tribais, único motivo”. Dos pés à cabeça
hoje se acostu-
mou com os Funcionário público, o estudante de Quem nunca usou All Star que atire les significava um posicionamento
a primeira pedra. O tênis que é fácil contra tudo que era considerado
desenhos. administração Filipe Saldanha, 26
de calçar há muito tempo é conhe- adequado pela sociedade: o All Star
anos, é outra prova de que esse costu- cido por todos. Mas nem sempre era marginal. Era simples, surrado
Glauco Tattoo, que há 25 me não está mais à margem. “Aos 20 foi símbolo da cultura pop. Dese- e, principalmente, barato. Mas nem
anos exerce a profissão de tatuador em anos, fiz a minha primeira tatuagem nhado como forma de protesto pelo o tênis com o design mais simples,
um estúdio na Guarda do Embaú, em apenas porque acho legal. É como um jovem Marquis Converse, contra o de pano e solado de borracha esca-
Santa Catarina, acredita que essa mu- enfeite”, revela. O estudante afirma deslizante piso de sua casa, o tênis pou do processo de modificação de
foi projetado com um solado anti-
dança se deve, principalmente, à po- que escolheu uma marca tribal como seu significado na sociedade.
derrapante e veio a ser usado nos
pularização da tatuagem. “Isso acon- estampa do braço esquerdo sem ne- pés de diversos tipos de pessoas. A década de 1980 veio e com ela a
teceu em função da forma como ela nhum motivo específico: “Gostei do Nos anos 70, ele atingiu o público
popularização do calçado. O lança-
começou a atingir o grande público. desenho e fiz”. Situações desse tipo mento do modelo três em um, cuja
que o tornaria um verdadeiro sím-
Personalidades da música e do cine- foram constatadas por Maria Isabel bolo de subversão: o movimento sola era ligada com um zíper à parte
ma – os trendsetters – por exemplo, se durante as suas pesquisas. “As pessoas punk. Não apenas como ícone de de cima, serviu como alavanca para
um protesto contra valores sociais, a entrada do tênis no mundo da
tornaram adeptas e, assim, essa atitude não sabem nem o significado dos sím-
o All Star significava um rompi- moda. Nos anos 2000 se consoli-
começou a ser vista como uma arte de bolos que inscrevem no corpo, porque dou como hype ao figurar nos pés
mento com a moda.
verdade e, com a difusão de suas ori- não é algo que fazem por militância, é de artistas e modelos, e a venda da
gens, acabou ganhando muito mais somente pela aparência”, declara. Ícone da subversão musical da
época, a banda Ramones se tornou marca Converse para a Nike, em
respeito”, explica. forte adepta do calçado, o que aju- 2003, ajudou a popularizá-lo ainda
Ainda há, no entanto, algumas pessoas dou a alavancar o sucesso do All mais. Em 2008, o All Star comple-
O processo de aceitação da tatuagem que se propõem a marcar o corpo com Star no meio alternativo. Mais tar- tou cem anos de existência. Mar-
como um adorno, e não como algo imagens que remetem às origens da de, Kurt Cobain, vocalista da banda ginal ou não, ele provou que, inde-
que pudesse modificar as relações de arte. “Mesmo os desenhos não tendo Nirvana, também viria a exibir os pendentemente da forma como as
tênis especialmente imundos pelos pessoas o vêem, ele se consolidou
um indivíduo com a comunidade na mais motivos de protesto, alguns anti-
palcos do mundo. Usar um par de- na sociedade.
qual vive, foi lento. Maria Isabel Men- gos objetivos da tatuagem continuam
4
Pedro Argenti
pedroargenti@gmail.com

Entrevista: Norton Guimarães Maria Lina Colnaghi


linacolnaghi@gmail.com

va de roubar carro não, gostava era ele me perguntou depois de tudo que
“Cada corrupção dessas que o cara rouba milhares de
de comprar. Não colocava no meu eu falei, que eu era ex-presidiário, me
dólares e de euros, ele tá matando sem dar um tiro” nome, o único que eu coloquei no perguntou o que que eu tinha de va-
meu nome me levou preso, porque lor. Aí eu falei que a única coisa que eu
tinha meu endereço. Mas eu gostava tinha de valor era uma barraquinha
Norton Guimarães tem 51 anos – 30 se que não teria condição. Ele agrediu que eu tinha ganho para fazer batata
realmente disso tudo.
dedicados ao crime, tendo vivido 11 ela, deu um soco na cara dela e co- frita, que eu só não tava fazendo ain-
deles na prisão. Usuário de drogas meçou aquela briga. Foi espalhando da porque eu não tinha dinheiro nem
3x4 - Tu acreditas que as pessoas vi-
desde a adolescência, com problemas feijão, aquele negócio todo no chão. para comprar batata e óleo, todas es-
vam sob uma grande pressão que as
familiares e fruto de uma sociedade E aí eles se separaram. Na separação sas coisas. Ele falou para eu colocar
faz almejarem coisas que não têm
em que o Estado não se faz presente, minha mãe perdeu tudo, a gente teve a barraquinha na fogueira santa que
condições de adquirir levando-as a
Norton se tornou um dos maiores as- que morar com a minha avó, com a Deus ia me dar em dobro. Pô, fiquei
cometer crimes?
saltantes a bancos e carros-fortes do minha tia, e começou uma fase mui- muito puto, fui embora falei,
Rio de Janeiro. to difícil na minha vida. Morar em “Pô só dando um tiro na cara
Norton – Eu acredito, hoje em dia,
comunidade. desse pastor”. Aí fui embora
em falta de oportunidades e esco-
Ele conquistou sua liberdade em 2006 boladão, fui pra casa e no
lhas mal feitas. As oportunidades são
e já está há mais de um ano no Grupo 3x4 - Tu acreditas que isso tenha outro dia eu procurei
bem poucas, e escolhas também. Eu
Cultural Afroreggae, uma organiza- contribuído para o teu interesse o pastor Marcos. O
tive que fazer uma escolha. Mas era
ção que procura oferecer uma forma- por drogas mais tarde? pastor Marcos tem
falta de oportunidade mesmo. Hoje
ção cultural e artística para jovens uma igreja aqui
eu tive que marcar a entrevista às 14
moradores de favelas do Rio de Janeiro Norton – Eu comecei a estudar e a no Rio, a Assem-
horas porque 11 eu tinha que estar
de modo a promover a inclusão social. ter algumas amizades. Em convívio bléia de Deus dos
numa firma que nós temos uma par-
Graças ao coordenador executivo da em comunidade, de favela, a gente vê Últimos Dias, ele
ceria com a empregabilidade. Eu tra-
instituição, José Júnior, Norton promo- pessoas usando drogas. E eu come- é conhecido na-
balho com isso no Afroreggae, com
ve a inclusão de jovens no mercado de cei com o negócio de maconha. Mas cionalmente e in-
um projeto de geração de empregos.
trabalho, tirando-os da criminalidade não gostei porque eu não gostava do ternacionalmente,
Então eu tento encaminhar as pesso-
e da marginalidade. cheiro da maconha, me fazia mal, ele é um cara de
as, tirar as pessoas da criminalidade.
me deixava abobalhado e aí eu pas- Deus mesmo. Ele
Eu acabei agora de encaminhar qua-
Norton Guimarães é o entrevistado sei pra cocaína. E fiquei muito tempo era um cara que freqüentava muito,
tro pessoas. Dessas quatro pessoas,
desta 3x4 por sua história de vida: a dependente químico. E isso foi um e agora tá voltando a freqüentar, o
são três que saíram da criminalidade.
história de quem viveu à margem da pulo, aos 17 anos, foi um pulo por- centro penitenciário, e ajuda muito
Só que é muito difícil. Eu sei como
sociedade por muito tempo e hoje se que eu não trabalhava. Minha mãe as pessoas a largarem a criminalida-
foi o meu sacrifício depois que eu saí
insere nela, levando seu aprendizado não tinha condição, ela trabalhava no de. Envolto na religião. E ele ia em
da prisão dessa última vez em 2006.
ao jovens, para que não sigam o seu jornal Última Hora e no Hospital Pe- rebeliões. Eu sempre fui, não é bem
Quando eu ganhei minha liberdade
longo e espinhoso caminho. dro Ernesto. Ela não tinha condição líder, mas sempre estive à frente nas
condicional, eu fiquei praticamen-
de me dar as coisas também, de me rebeliões, e tinha sempre a presença
te seis meses batendo de porta em
3x4 - Como foi a tua infância, o teu vestir, de me calçar, e a nossa alimen- dele nas rebeliões. Ele sempre ajuda-
porta, e as portas todas de se fechan-
ambiente familiar? tação já era bastante reduzida. A gen- va muito a gente. Aí eu fui lá nele, e
do mesmo, até mesmo na minha
te tinha poucas coisas dentro de casa. ele se sentiu surpreso de eu ter saído
própria família as portas estavam se
Norton – Até os quatro anos de ida- Daí eu comecei a praticar os peque- rapidamente, que eu tava na condi-
fechando. E eu fui muito iluminado.
de eu tinha uma família estrutura- nos delitos, como furtos de toca-fitas. cional, e ele ficou todo feliz, pediu pra
Eu tenho 51 anos de idade, fiquei 32
da. Meu pai era uma pessoa muito Aí começou tudo. Era para sustentar eu aguardar e (não levei ninguém,
anos na criminalidade, fiquei 11 anos
agressiva, trabalhava no Detran na o vício. Foi passando o tempo e eu já nem minha filha nem minha esposa,
preso. Eu tive muita sorte de encon-
época, como advogado, e minha mãe tinha alguns contatos na época com a fui sozinho) jantamos juntos (quanto
trar o Júnior no meu caminho.
era dona de casa. Ela tinha os sonhos Falange Vermelha – a facção que hoje tempo que eu não comia nada, pô,
dela, que era tocar piano e outras em dia é o Comando Vermelho aqui jantei comi pra caramba, quase pas-
3x4 - E como foi esse encontro com
coisas mais, e ele tolhia sempre. E eu no Rio de Janeiro – e fiz muito conta- sei mal). E dali eu já saí, ele me deu
o Júnior?
me lembro que foi uma fase muito to. Mas eu nunca gostei do tráfico em uma cesta básica, né? E começou a
decisiva na nossa vida. No início de si, de trabalhar em boca de fumo, de me ajudar. Uma semana depois ele
Norton – Teve um domingo na mi-
uma semana, uma segunda-feira, ser dono de boca de fumo. Eu sempre me chamou na igreja, e me apresen-
nha vida, eu tava passando muita
minha mãe estava fazendo uma fei- gostei mesmo é de assaltar: cargas, tou o José Júnior. Nessa época eu tava
necessidade mesmo, passando fome,
joada junto com a empregada e meu bancos, carros-fortes. Naquela época devendo seis meses de aluguel, uma
tava numa dificuldade terrível. Nem
pai cismou que ela tinha que passar tinha muito disso. Aí começou meu dificuldade, minha geladeira parecia
café a gente conseguia, merenda pra
uma camisa que estava para passar. martírio de prisões, de idas e vindas a até uma piscina, só tinha água. Tava
minha filha a gente não conseguia
Mas já tinha várias outras camisas penitenciárias. uma loucura a minha vida mesmo.
dar, ela comia no colégio. Só que eu
passadas e minha mãe dis- Tava devendo mais de R$ 1,8 mil de
não queria ter mais conivência ne-
3x4 – Em entrevista ao jornal O aluguel. Aí o Júnior escutou minha
nhuma com o crime, eu não queria
Globo tu disseste que teu inte- história, tava junto até uma jornalis-
mais cometer delitos e pedir nada a
resse não era só por dro- ta da Veja, eles escutaram a minha
bandido nenhum. Aí, nesse domin-
gas, mas também por história, se emocionaram e o Júnior
go, a minha esposa pediu pra gente ir
carros, ouro e mulhe- entrou no banheiro e eu ainda pen-
numa igreja evangélica e nós fomos.
res. Como é isso? sei “Pô mais um filho da puta, vai
Chegando lá, eu esperei acabar o
culto, quando deu 10 horas da noite, ficar cagando, não vai nem me dar
Norton – É. Ouro, atenção”. Aí ele voltou do banheiro e
eu fui na direção do pastor para falar
mulher, carro – pediu para eu passar no Afro-reggae
com ele, e tal. Eu queria uma orien-
não gosta- que ele ia pagar os meus aluguéis
tação espiritual. Chegando no pastor,

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 15


ROGÉRIO RESENDE, DIVULGAÇÃO
atrasados e me dar um dinheiro para Tento passar pra eles que eu fui um
alimentação. Eu achei maravilhoso e espelho do mal, hoje sou um espelho
começou essa minha nova vida. Faz do bem para eles.
dois anos que eu trabalho com em-
pregabilidade e palestras. 3x4 – E nesse teu tempo de presidi-
ário, o que tu podes nos dizer sobre
3x4 – Qual é o público que o Afro- o sistema penitenciário? Como isso
reggae assiste? contribui para que as coisas piorem
na vida das pessoas?
Norton – O nosso público-alvo é
o excluído. Para que a gente possa Norton – O sistema é um sistema
incluir socialmente esse público. E falido, muito problemático mesmo,
eu acho que a empregabilidade é a com uma carência grande mesmo,
primeira etapa para a inclusão so- uma dificuldade pra se ter as coisas.
cial. Sem trabalho, as pessoas não Se a tua família não levasse algumas
têm como conseguir alguma coisa. coisas... Eu comi muita comida es-
A gente tem quatro núcleos em co- tragada, muita comida azeda. As
munidades: Cantagalo, Vigário Ge- agressões eram muito grandes, não
ral, Parada de Lucas e Complexo do só física, mas verbal também. Tem
Alemão. E tem também um outro mudado aos poucos o sistema pe-
núcleo que a gente trabalha que é lá nitenciário do Rio de Janeiro, tem
em Nova Iguaçu. Nosso público é mudado realmente. Depende tam-
esse, aquele pessoal realmente exclu- bém muito do preso porque o preso
ído. A gente faz, dá algumas oficinas tem os direitos, mas tem os deveres.
de grafite e percussão. O Afroreggae Então para cada direito você tem
é conhecido não só no Rio, mas na- um dever a cumprir. Falta muito a
cionalmente e internacionalmente. capacitação, a qualificação do preso,
Tem até uma coisa que a gente fala o preso estudar. De que adianta você
muito agora, que a gente leva tec- prender uma pessoa durante anos, a
nologia social para fora do Brasil. pessoa passar várias agruras na vida,
A credibilidade, a visibilidade que o decepções, agressões, ver a família
Afroreggae tem hoje em dia é muito passar várias dificuldades, às vezes
legal, muito importante. nem poder te visitar porque não tem
o dinheiro da passagem e você tá lá
3x4 – Tecnologia social. Com isso dentro, vivendo ocioso, não trabalha,
vocês pretendem dizer mais preci- não faz um curso, não estuda, não faz
samente o quê? nada? Você chega na rua e continua
a mesma coisa porque ninguém quer
Norton – Mais precisamente é que te dar uma oportunidade profissio-
a gente consegue passar esperança nal, capacitar você, qualificar para das no nosso país como questões de cabo se a mentalidade de um patente
para as pessoas. A gente consegue que você tire aquela arma da mão, polícia? maior é aquela mentalidade arcai-
mostrar que não é utopia a gente para que você tire aquela droga da ca, é aquela mentalidade corrupta, é
conseguir encaminhar para o em- mão, para que você possa se ressocia- Norton – Eu acho que a última se- aquela mentalidade agressiva? Não
prego e os estudos. Eu faço palestras, lizar. Na realidade, essa é uma palavra cretaria a entrar em uma comunidade adianta nada. Eu acho que no Brasil,
eu tenho uma parceria agora com a um pouco mentirosa. Ela consta no teria que ser a secretaria de segurança. a gente tem que se ajudar muito. Da
Secretaria de Segurança Pública do dicionário, mas gostaria que contasse Eu acho que antes de qualquer coisa mesma forma que eu não tenho uto-
Rio de Janeiro, como voluntário, fa- na realidade no coração e na menta- quem teria que estar lá era a secreta- pia de achar que o crime vai acabar,
zemos palestras em colégios eu e um lidade de muitos brasileiros, mas não ria de educação e cultura, a de espor- que todos vão querer trabalhar, da
policial civil. O alvo: na realidade consta. A sociedade tem uma parte te e lazer, a de saúde, a de habitação, mesma forma eu não tenho a utopia
quem necessita de carinho, de inclu- hipócrita, porque ela pede o término saneamento básico. Tudo isso que de que vá acabar essa corrupção. Por-
são, de amor, de um papo. Às vezes da violência, ela pede realmente para realmente necessitam aquelas pesso- que isso é um câncer, é uma doença
num papo você consegue tirar uma acabar essa violência, ela quer acredi- as das comunidades, aquelas pessoas muito grave. E ela está em todos os
pessoa da criminalidade, mos-tran- tar em um mundo melhor, mas ela que tem um poder aquisitivo bem setores. Ela está na política, no Ju-
do a ela um caminho, sendo uma re- não faz nada para que isso aconteça. baixo, aquelas pessoas que moram lá diciário, está nos grandes empre-
ferência, como eu fui durante muito Não dá sua parte. Como é que se dá a mas que trabalham, porque bandido sários, ela está em vários setores
tempo na criminalidade hoje sua parte? É ajudando aquele que está lá é menos de 1%. O Júnior fala muito da nossa sociedade. Agora, é brabo
em dia de uma saindo do crime. Eu não posso dizer nisso e é uma verdade. No Complexo você escutar que houve um con-
forma dife- com certeza que todos vão querer. do Alemão é menos de 0.001%. En- fronto entre policiais e traficantes
rente. Minha Mas eu tenho certeza, porque eu tive tão, na realidade, a polícia – eu tenho e dizerem que mataram 19 bandi-
referência é uma convivência muito grande no feito esse trabalho com esse amigo e dos e, na realidade, daqueles quatro
pelo traba- crime, que a maioria vai querer essa quero acreditar na polícia – é tachada ou cinco ou seis eram bandidos e
lho. Então, oportunidade. como corrupta, como repressora. Ela o resto era tudo trabalhador, como
muitos con- se torna uma linha daquela ditadura teve na chacina de Vigário Geral. E
seguem sair 3x4 – E como é que tu avalias o fato que a gente conhe-ceu em épocas esses trabalhadores morreram por
por isso. dessas questões sociais serem trata- atrás. O que vai ter que mudar é a es- uma brutalidade, por um confron-
trutura. Agora essa mudança to desigual, por uma coisa infame,
ela tem que vir de cima. de uma agressão policial que en-
O que adianta você que- trou numa comunidade pra cobrar
rer mudar uma mentalida- ou pagar aquilo que tinha sido feito
de de um soldado ou de um com outros policiais. Quer dizer, ti-
rou simplesmente a vida de pessoas que é a milícia. A milícia é a mesma no complexo do Alemão, Rio 4, isso 3x4 - Qual é a importância
sem ligação nenhuma com o tráfi- coisa que o tráfico, só não vende dro- sai em capa de jornal, fica falado no da família no momento de
co, com a criminalidade. gas. Mas ela é feita de ex-policias, de jornal da manhã até finalizar aquele reabilitar uma pessoa?
policiais, de agentes penitenciários, dia e ainda volta no dia subseqüen-
3x4 - No teu tempo de assaltante, de pessoas que, na realidade, se jun- te. Agora se o Afroreggae tirou 20 Norton – Sem comparação, cara.
tu chegaste a pensar que a tua atu- tam para fazer uma proteção, entre pessoas da crimi-nalidade ninguém Eu vi a minha famí-
ação nos assaltos tinha alguma es- aspas, da comunidade. O problema sabe, e até que o Afroreaggae tem lia quando eu saí
pécie de engajamento político? Tu do Estado é a ausência dele. Quando uma visibilidade grande, imagina as ter que dividir um
acreditavas que fazendo aquilo tu se fala em ausência, acham então que outras ONGs que fazem trabalhos ovo, dividir mesmo,
tem que botar a polícia. Não tem que maravilhosos, e as ONGs só existem minha esposa tinha que

X
estavas de alguma forma fazendo
justiça social? botar a polícia, não. O Estado não dá pela ausência do Estado e graças a fritar o ovo e dividir pra
saúde, habitação, saneamento básico, Deus que existem pois o papel que comer ela e Taíssa com
Norton – Não, eu não tinha essa idéia educação. As coisas principais o Es- fazem as ONGs o governo, não só o feijão com arroz e eu comia o feijão
de Robin Hood não e nem posso le- tado não dá. É difícil tu ver o que o municipal e esta-dual mas o federal com arroz. E eu dizia “Taíssa, papai
var essa idéia de que teria um cunho Estado pode fazer. O que o Estado também, não teria condições de fazer não tem dinheiro pra comprar me-
político e social. Na verdade eu fazia pode fazer? Nada, eles querem entrar nem 1%. É um acúmulo de erros. renda”, e ela dizia “não tem problema
porque eu era um dependente quí- na política, eles querem ter seus R$ não, papai, lá no colégio tem comida”,
mico, eu fazia porque eu não tinha 13 milhões, R$ 15 milhões, fazer o 3x4 - Tu acreditas que a mídia con- “mas você não gosta de peixe”, e
aquela oportunidade que eu alme- nepotismo deles, cada vez trazer mais tribui para manter o sistema que ela “não pai, mas eu tô aprenden-
java, eu fazia porque eu queria dar parentes. Homicídio é um crime he- criminaliza as pessoas das comu- do a gostar”. Ela com sete anos
uma condição para a minha família, diondo? Sim, é um crime hediondo. nidades? de idade falava isso pra mim. É
queria ajudar as pessoas da comuni- Tráfico de drogas é um crime he- motivo de emoção, é inexplicável.
dade, mas não tinha um cunho po- diondo? Também. E político que Norton – Você acredita que o que A Taíssa me marca todos os dias da
lítico e social não. Na minha época rouba, faz evasão de divisas, corrup- mais vende jornal é bandido tro- minha vida, que está sendo feita de
o traficante tinha essa parte de assis- ção ativa e passiva, empresário que cando tiro com polícia, o Flamengo muitas glórias, todas as pessoas que
tencialismo realmente, cesta básica, rouba? Os crimes destes não são he- ganhando de goleada e mulher nua, trabalham no Afroreggae colaboram
pagava gás, pagava mercado para as diondos? Nossas leis são muito falhas, pelada? É o que mais vende jornal. muito com tudo isso. Eu sou envolto
pessoas, pagava enterro, na realidade tem uma porrada de advogado que é Eles querem que as mulheres de dis- de pessoas do bem, quando a gente
na minha época tinha disso. Eu até águia e conhece tudo, vai no código pam cada vez mais, que o Flamengo trabalha com pessoas do bem que
fiz muitas vezes. Roubei caminhões penal ver se talvez, quem sabe, pega sempre dê uma porrada em alguém, querem a mesma coisa, o mesmo
de cargas de alimentação e deixava ali, bota o habeas corpus e o cara tá e querem que a bala coma toda hora. ideal, isso é muito importante.
numa comunidade para que eles pu- na rua. A cadeia, na realidade, é feita Pelos jornais seria sempre assim. Às
dessem ter as coisas. para pobre, preto, favelado e nordes- vezes sai uma notícia no jornal de 3x4 – O Afroreggae faz trabalhos
tino. Infelizmente é assim. E eu acho manhã, fulano de tal está escondido nas comunidades com produção
3x4 – Tu falaste em assistencialis- que ainda vai ser por muito tempo. E em tal lugar e de tarde sai uma ope- audiovisual. Qual a importância
mo. Em tempos de eleições a gente existem as suas exceções, mas não é ração sinistra e o cara nem té lá, tá destes trabalhos nestas comunida-
vê isso na política, compra de votos uma regra. E é onde deveria ter regra numa outra comunidade, aí tem um des?
e ações que promovem bem-estar e não exceções. Cada evasão de divi- confronto policial, uma operação,
paliativo em comunidades. Tu sas, cada corrupção dessas que o cara duzentos policiais entram na comu- Norton – É importantíssimo. A ca-
achas que esse assistencialismo do rouba milhares de dólares e de euros, nidade dando tiro a esmo pra cacete, rência é muito grande nas comuni-
tráfico é pior ou tão ruim quanto o ele tá matando sem dar um tiro, mas morre seis pessoas, três feridas a bala, dades. Quanto tu chega com um dos
assistencialismo da política? ele tá matando milhares de pessoas. e dessas seis quantas são bandido? nossos filmes e documentários, com
Milhares de crianças que não têm Duas. Há duas ou três semanas atrás palestras, falando com as crianças e
Norton – Eu acho o da política pior. saúde, milhares de crianças que não deu uma notícia que eu fiquei mui- os jovens, passando uma mensagem,
Porque o bandido, quando ele faz tem a educação, milhares de crianças to entristecido, e em tempos atrás tudo o que você passa com amor,
esse tipo de assistencialismo, ajuda que morrem sem saúde, habitação. eu não ficaria não, porque há seis carinho e afeto, para aquelas crian-
uma pessoa que é da comunidade anos um policial pra mim ia ser que ças significa a beça, porque essa é a
num gás, numa cesta básica, num 3x4 – Se o Estado fosse atuante, tu nem gato e rato, eu dava tiro nele ele esperança deles, um mundo melhor,
enterro, ele está querendo realmente achas que o tráfico teria tanta in- dava tiro em mim. Saiu uma notícia essa é a minha esperança, essa é a tua
a cooperação da pessoa em termos fluência como tem hoje junto às de que a polícia faria uma operação esperança. Em todo o lugar do mun-
de calar a boca e tudo o mais, mas ele comunidades? no Complexo do Alemão devido à do, quem tem boa índole, quem tem
não está num lado em que ele pode morte de um traficante. Foram não bom coração, não importa se foi ex-
sempre ajudar as pessoas. O político Norton – Claro que não. As pessoas sei quantos policiais. A filha de um presidiário, não importa se cometeu
usa o povo para esse tipo de coisa, pra são carentes na comunidade, as pes- policial, da mesma idade da minha delito, pagou pelo delito, todos têm o
que ele possa financeiramente ter um soas são muito carentes. O Estado filha Taíssa, telefonou para o pai direito à regeneração, à ressocializa-
cargo, e depois que ele faz o churrasco não se faz presente. Aí a única for- perguntando onde ele tava e se ele ia ção, o direito de poder ajudar as pes-
dele, leva as caixinhas de cerveja dele, ma de eles procurarem um acalanto embora pra casa e ele falou com ela soas, ajudar o próximo, e a coisa mais
dá jogo de camisa dele, nunca mais. é ali, é o traficante que está com eles. “fica tranqüila filha que papai já tá importante e vital no mundo é ajudar
Fica quatro anos sem voltar àquela O cara tá cheio de ouro, como eu indo embora pra casa” e mandou um o próximo. O Júnior diz: o Afroreggae
comunidade. A maior parte é assim. andava, fuzil na bandoleira, cheio beijo pra ela. Três minutos depois, ele é uma ponte de mão dupla que une o
de granada na cintura, folheando levou um tiro no colete e morreu. Aí rico com pobre, o preto com branco,
3x4 – Qual deveria ser o papel do dinheiro pra caramba. Carros com eu pensei comigo mesmo, caramba, médico com ex-bandido, une essas
Estado brasileiro em relação à po- mulheres, bailes, festas e tudo o mais, eu fui iluminado na minha vida, a partes e isso é muito importante.
pulação marginalizada? isso aí é um glamour para a garotada minha força vital pra largar isso tudo
que tá vendo aquilo. Eu não sei como se chama Taíssa, que tem nove anos 3x4 - Tu tens esperança de que um
Norton – Recuperar. É a grande re- é a mídia no Rio Grande do Sul, não de idade e é minha filha. Tenho três dia não haja tanta desigualdade so-
alidade, não matar, não se isentar de sei como é que vocês fazem, mas filhos, a Patrícia, do primeiro casa- cial?
suas obrigações. O Estado é ausente, aqui no Rio de Janeiro é sensaciona- mento, o Iuri, do segundo, e a Taíssa,
tão ausente que aqui o tráfico tem três lista demais. Nem todos, mas uma do terceiro. A Taíssa foi fundamental Norton – Tenho, claro que tenho. O
facções e ainda tem uma quarta agora grande parte. Se tem um confronto para mudar a minha vida. Afroreggae existe.

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 17


A palavra e a periferia
“Creio que a literatura serve como uma das muitas pos-
sibilidades do homem de realizar-se como homo ludens.
E, em última instância, como homem feliz. A literatura
é uma das possibilidades da felicidade humana. Fazer e
ler literatura” (Julio Cortázar)

João de Souza Machado dirige


seu Fusca 74 na avenida Vicente
Monteggia. A cada sinal verme-
lho, lembra ao caroneiro de que
ele precisa se segurar no puta-
merda instalado sobre o porta-
luvas. “O teu banco está solto. No
domingo preciso tirar ele do car-
ro, é o único jeito de caber tudo o
que levo pra feira”.

À medida que o veículo se aproxi-


ma das vilas da zona sul de Porto
Alegre, a paisagem se modifica. No
horizonte já não se avistam mais
prédios, e sim o relevo dos mor-
lambendo-lhe as mãos. A porta
da casa também não possui ne-
nhuma tranca, basta desatar o nó
de uma corda, cuja outra ponta
está amarrada a uma árvore.

Foi ele próprio, com a ajuda de


sua atual esposa, Irene Olivei-
ra Machado, quem construiu a
moradia. Ao se divorciar da ex-
mulher, deixou a casa que possuía
na vila Restinga. Com o dinhei-
ro que tinha na poupança, com-
prou um novo terreno, mandou
vir uma carga de 13 mil tijolos
de Santa Catarina, uma caçamba
cujas obras cobrem as paredes.
As mãos gesticulam rapidamente,
tentando acompanhar a agilida-
de do raciocínio. De quando em
quando apanha um livro, abre em
determinada página e lê um pe-
queno trecho, para ilustrar o que
dizia. Quando não encontra a pá-
gina correta na primeira tentati-
va, devolve o livro para a estante
e cita outro trecho, de memória.
Entre os autores prediletos estão
Aldous Huxley (“foi por muito
tempo o modelo de Érico Veríssi-
mo”), Castro Alves (“nosso poeta
maior”), e Hermann Hesse (“já
fiz quatro leituras em voz alta de
Sidarta”). A cada passo, um novo
olhar para as estantes aumenta a
lista. “A Espanha tem Cervantes,
a França tem Victor Hugo, a Itália
tem Giovanni Papinni”. Apanha
o primeiro volume de O Tempo e
o Vento, e, enquanto elogia o tra-
Guilherme Villa Verde
guivillaverde@yahoo.com.br

meses depois. Eram nesses


períodos que João mais
sofria, as surras eram
freqüentes. Mas, além
da violência, havia ou-
tros tipos de abuso. “Ela
me botava na cama dela,
pegava minha mão, bota-
va em cima da xota dela, e
queria que eu movimentasse
a mão”. Temendo que fosse
alguma armadilha, João fica-
va parado. “Como eu não fazia
nada, ela se levantava e pegava
os arreamentos dos cavalos”. Ele
era pendurado pelo pescoço com
as cordas, presas a uma viga de
madeira. Quando estava ficando
roxo, Ninícia soltava a corda e
ele caía no chão, desmaiado. Ela
esperava que João se acordasse e
então começava a bater.

Caminha até o quarto e pára em


4
X
ros verdes, alguns cobertos por de areia de um depósito na rua balho de Érico Veríssimo, cita a frente a um relógio. Explica que
pequenas manchas, aglomerados Voluntários da Pátria e um cami- máxima de Tolstói: “Canta a tua mantém com disciplina o horário
de casas de madeira ou alvenaria. nhão de argamassa. O cimento foi aldeia e cantarás o mundo”. Expli- que dedica à leitura, das três às
João aponta algumas construções comprado pouco a pouco, para ca que, no mundo todo, se repete cinco horas da madrugada. Ain-
recentes às margens da pista. “Por não estragar. “Naquela época a a realidade que cerca sua casa – da atento ao movimento dos pon-
causa do BarraShopping, as vilas poupança funcionava, no tempo pessoas interdependentes, viven- teiros reflete sobre a passagem do
que ficavam por lá estão se mu- da ciranda financeira”. Utilizando do juntas, sofrendo juntas. tempo. Constata que o mundo de
dando pra cá”. Seu destino é a vila os anos de experiência de traba- agora não é o mesmo
Campo Novo, onde fica sua resi- lho na construção civil, fez dois João dos Livros nasceu em Vila de quando era crian-
dência desde 1982. quartos, cozinha, sala e banheiro. Vasconcelos, interior de Tapes, ça. Esta mudança é
Depois foi ampliando. Ia cons- em 1939. Saiu de casa pela pri- muito lenta, quase
Após percorrer um caminho in- truir uma garagem, mas acabou meira vez aos dois anos de idade, imperceptível, mas
teiramente asfaltado desde o bair- transformando ela em varanda dado para criação. Daí para frente constante. Os costu-
ro Cristal, entra numa estrada de – os parentes de Irene lhe alerta- passou por diversas famílias, com mes mudam, pessoas
chão batido. Estaciona o Fusca e ram de que o ambiente era muito breves intervalos de retorno à casa morrem, e os que sobram
retira do porta-luvas uma alavan- agradável para receber as visitas. de sua mãe natural, dona Eva. Aos são os velhos, os remanes-
ca. Ela é encaixada na porta, para seis anos, foi adotado por Geneci, centes. “Vocês, jovens, nos
acionar o mecanismo de abertu- Entra na sua residência e anda um domador de cavalos cuja es- olham como se não fôssemos
ra. As duas portas do veículo não por corredores estreitos. Eles de- posa não podia ter filhos. Acabou nada”.
possuem travas e por toda a cabi- sembocam em salas onde há vá- fugindo de lá aos nove anos, com
ne há ferragens à mostra, sem re- rias estantes, repletas de livros. medo de que o matassem. “Ele era Atravessa novamente o corredor,
vestimentos. Talvez outro truque Daí vem o seu apelido: João dos um bom homem. O problema era com os óculos de leitura pen-
para ampliar o espaço. Livros. “Não sei quantos tenho, a mulher dele, a Ninícia”. Por cau- durados no pescoço, pronto
nunca me dei ao trabalho de con- sa do trabalho, Geneci precisava se para qualquer emergência.
Abre um frágil portão de ferro e, tar”. Caminha entre as estantes, ausentar de casa com freqüência. Mostra um quadro na pa-
ao pisar no gramado do quintal, falando ininterruptamente. Con- Em sociedade com outros doma- rede da sala, onde há um
é cercado por cinco cães vira- ta histórias de sua vida pessoal e, dores, levava dezenas de cavalos poema seu, ilustrado
latas, que o recebem com grande com a mesma riqueza de detalhes, para Encruzilhada, onde mora- pela artista plástica
alegria, pulando em seu corpo e da vida de grandes escritores, va seu pai, e só voltava de lá seis Amarina Prado.
4
GUILHERME VILLA VERDE
Com
a obra, ti-
rou primei-
ro lugar no
concurso Ex-
poesia, realiza- Como sapateiro,
do na Casa de Cultura Mário Quin- Seu João garante
o sustento da
tana. Repetiu a primeira colocação famíla. É aos fins
em diversas edições do concurso de semana que
na década de 90. Em uma delas, trabalho e prazer
sua poesia foi ilustrada por Ivanize se unem: ele
vende livros
Mantovani e ganharam a primeira
dobradinha – melhor poesia e me- no. Aos dezesseis anos, cansado Entre 1970 e 1979 morou na vila um livro sozinho, minha vaidade
lhor ilustração. da exploração, alistou-se volunta- Restinga. Atuou como líder co- não chega a tanto”.
riamente no exército e foi morar munitário e passou a ser conhe-
Comprou o primeiro livro aos em Porto Alegre, na casa de um cido na comunidade pelo gosto Aos domingos, João dos Livros

X
dez anos de idade – A Ladeira da irmão. que nutria pela poesia. Na época monta uma barraca no Brique do
Memória, de José Geraldo Vieira. da campanha eleitoral para car- Gasômetro, em Porto Alegre. Par-
Ao chegar em casa, mostrou para João sai de sua residência e liga gos estaduais eram freqüentes as ticipa da feira desde 2000, onde é o
a mãe, orgulhoso, sua nova aqui- novamente o Fusca. Resolve vol- visitas de candidatos da ARENA. único livreiro. A cada cliente que
sição. Ela achou que o filho estava tar à sapataria e adiantar o ser- Numa delas, João estava ajudan- se aproxima da banca, pergunta a
louco. Como podia se interessar viço do dia seguinte. Aprendeu do a servir um grande almoço, preferência literária, recita poesias
tanto por um livro se era analfa- o ofício de sapateiro em 1964. para recepcionar as autoridades. e mostra alguma obra rara. Fre-
beto, não sabia sequer escrever o Trabalhava como pedreiro, mas Um amigo seu entrou no pavi- qüentemente, as discussões duram
próprio nome? “Eu não era louco. um problema de saúde o afastou lhão, acompanhado de um depu- horas e o cliente é convidado a vi-
Gostava da forma do li- da profissão. Estava com he- tado e disse que o político queria sitar a sua casa e tomar algum li-
vro, da capa, achei moptise, devido a uma lesão na conhecê-lo. “Ele já tinha tirado a vro emprestado. João parece estar
bonito”. Aprendeu parte inferior do pulmão. Se fi- informação, sabia quem poderia mais interessado em trocar idéias
a ler meses mais tar- zesse muito esforço físico, teria ser fator multiplicador de voto”. do que em vender mercadorias.
de, quando passou um hemorragia. O amigo apresentou João como Entre seus clientes habituais, há
tempo na casa de um tio. “o poeta Souza Machado”. Afe- médicos, advogados, filósofos e
“Ele me mostrava os obje- O auxílio que passou a receber do tando grande comoção, o depu- sociólogos. Mesmo sem ter o En-
tos e, a partir deles, formava INSS, 70% do salário que consta- tado abraçou João, dizendo-se fã sino Primário, não se sente discri-
as letras. O anzol era o jota, e va na carteira de trabalho, era in- de suas poesias. João nunca tinha minado. Acredita que a cultura,
assim por diante”. Em seguida suficiente para sustentar a mulher publicado nada. “Tu vê como es- adquirida na leitura obstinada dos
foi adotado pelo dono de uma e a filha de seis meses. Conheceu ses caras inventam... Chegou a mais variados autores, permite-
granja de arroz em Capivari, que um uruguaio, chamado Gonzá- falar que eu descrevia muito bem lhe conversar e fazer amizade com
lhe prometeu roupas novas e les, que demonstrava grande ha- as flores”. pessoas de educação elevada. Per-
educação. Lá chegando, só bilidade para fabricar e consertar guntado sobre o papel que a lite-
ganhou serviço. Trabalhou sapatos, mas era alcoólatra e es- Já publicou poesias em sete cole- ratura teve em sua vida, resume
nos tratores, em turnos tava com problemas financeiros. tâneas, a primeira delas em 1986. de imediato (seu discurso ágil não
de doze horas. Se al- João ofereceu um espaço em sua As edições foram organizadas por permite pausas): “Não bebo, não
guém adoecesse, era casa para o novo amigo dormir. Nelson Fachinelli, ex-presidente jogo, não sou viciado em sexo.
ele quem tinha que Em troca, o uruguaio lhe ensinou da Casa do Poeta Brasileiro, fale- Sem os livros eu seria um homem
aumentar o tur- tudo o que sabia. cido em 2006. “Nunca publiquei profundamente deprimido”.

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 19


Jacqueline Pasini
jacqpasini@hotmail.com

Um puta M.E.R.D.A. Caroline Borges


caroline-lb@hotmail.com

to, a secretária de cultura interferiu, comer. Se eu der cesta básica, como


Os desafios enfrentados pelos movimentos mandou fiscais recolherem a aparel- é que eu vou comer?”. Resultado: o
marginais quando governos oferecem apoio hagem, alegando que continuavam processo foi arquivado.
sem permissão. Chuck disse-lhe que
“Hey, ho! Let’s go! Hey, ho! Let’s deveria falar a todos presentes que Quando aconteceu o 8° Ensaio de
go!” é o som que vem um grupo Mesmo após o desfalque, o aquele evento não deveria prosseguir. Rua foi aberta uma assessoria de ju-
reunido em uma arquibancada de M.E.R.D.A seguiu em frente con- Naquele momento conseguiram a ventude na prefeitura, unicamente
concreto, em formato de meia lua. forme manda uma das idéi-as permissão. A partir do quinto evento para o movimento, já que era o único
De lá, o grupo gritava o clássico re- centrais do movimento Punk: os jovens começaram a ligar a ativi- na época. Ali os jovens tinham toda
frão punk rock dos Ramones. Ao “faça você mesmo”. E realizaram dade à filantropia. As campanhas a estrutura necessária para fazer os
centro uma bateria e uma guitarra o primeiro encontro. Anti-con- envolvem desde a arrecadação de ali- Ensaios. Porém, o governo começou
davam os compassos à canção sumistas, acreditam que as pessoas mentos, livros e roupas, até o sorteio a exigir que seu slogan e o do Con-
puxada pelo vocal que incitava a são capazes de fazer muito mais do de brindes, cedidos por comerciantes selho de Juventude aparecessem nos
multidão. que se julgam capazes. Basta que que acreditam no projeto. eventos. Chuck era quem trabalhava
queiram a aprender e trabalhar. A na assessoria e diz não ter permiti-
Esta é a 27ª vez que, naquele mes- do. Segundo ele “não importava se
JACQUELINE PASINI

mo local (Praça João Goulart, cen- gradeassem minha sala e colocassem


tro do município de Alvorada), jo- um cartaz dizendo Chuck não entra
vens se reúnem para tocar músicas aqui”. Ele não insistiria. O Movimen-
e mostrar o valor da sua expressão. to continuaria sem apoio político.
O Ensaio de Rua é caracteristica- Afinal, começaram por suas próprias
mente underground. Seja pelo ques- mãos e podiam continuar sozinhos.
ito música – ao participar espere
apenas bandas de punk rock, hard Autogestão é o ideal do Movimento
core e afins – seja pela sua concep- Ensaio de Rua de Alvorada. Nisso
ção. O primeiro Ensaio de Rua foi acreditam seus criadores e é assim
realizado em 19 de agosto de 2001, que segue há sete anos. A não ne-
sem a autorização da prefeitura. cessidade de um apoio do governo,
Um ato transgressor, que após de um partido, porque o povo é capaz
muita briga e insistência, deu ori- de fazer por si mesmo. O movimento
gem a um evento legal. acredita que pode fazer algo por Al-
vorada, já que a mídia, quando no-
Chuck, como é conhecido pelos ticia a cidade, é apenas para tratar de
integrantes do evento, é o orga- assassinatos e brigas entre traficantes.
nizador e um dos criadores do Apresentando suas concepções o
Movimento Ensaio de Rua de Al- M.E.R.D.A representou Alvorada no

X
vorada (M.E.R.D.A). Ele e alguns quesito autogestão no 3° Fórum So-
amigos, entre eles o Punk, também cial de Educação, na PUC, que reuniu
fundador do movimento, tem uma vários países da América Latina.
banda chamada Distúrbios, influ-
enciada pelos Garotos Podres. A O último encontro foi em 2006.
idéia surgiu em uma rádio local, a Um novo problema foi o suficiente
Rádio Integração, durante um pro- para dois anos sem manifestações
grama sobre rock que apresenta- M.E.R.D.A. Faltavam poucos dias
vam. Decidiram enviar um projeto para o Natal e a aparelhagem para o
cultural para o Ministério da Cul- autonomia total do indivíduo é um Chuck já foi processado por causa ensaio estava alugada pela organiza-
tura, então dirigido por Gil- dos ideais. do Ensaio de Rua, na 12º edição do ção. As bandas fazendo seu som.
berto Gil, pedindo um movimento. A confusão foi em fun- Até a chegada do pessoal da prefeit-
incentivo. O pro- M.E.R.D.A. e mais ção de um folder, criado pela respon- ura que mandou o controlador dos
jeto foi aprovado M.E.R.D.A. em andamento sável pelo material de divulgação. No equipamentos desligar os micro-
e eles conseguiram folder havia o desenho de um punk fones. Começa a confusão.
R$ 150 mil para inve- “Nós fizemos frustradas reuniões com as calças arriadas, “mijando” em
stir no M.E.R.D.A. Nesse com a prefeitura. Nunca deu nada um capacete da PM. Quando Chuck O controle e as proibições da prefeit-
meio tempo Chuck esteve certo”, diz Chuck sobre o início da or- descobriu, o papel já estava circu- ura se devem, segundo o Movimen-
na Bienal de São Paulo, rep- ganização. Certa vez o grupo invadiu lando pela cidade e acabou caindo to, ao alternativismo. O underground
resentando a rádio comunitária. a Câmara. Cerca de 15 pessoas, usan- nas mãos do comandante da brigada. não ganha espaço, por isso mesmo é
Quando voltou, alguns integrantes do máscaras. Não obtive-ram resul- Ele o processou por desacato à auto- underground. A bebida é motivo de
do movimento afirmaram não tados. Decidiram realizar o encontro ridade. Por decisão da justiça, Chuck repreensões: “A galera bebe direto.
querer mais organizar os eventos, sem apoio. “Vamos seguir a risca o teve de pagar seis meses de cesta bási- Mas em qualquer show que tu fize-
queriam oficinas e workshop. Es- faça você mesmo”. Então usaram a luz ca como serviço comunitário. Teria. res em lugar aberto vai ter gente be-
tas pessoas se encarregaram do de um parque, que ficava na praça, in- Vivendo de artesanato ele foi justifi- bendo. Tu não controla o público.
dinheiro recebido do Governo stalaram a aparelhagem e começaram car-se com a juíza para tentar escapar Não tem como querer privar”. Como
Federal e pretendiam modificar a tocar. “Foi um dos maiores que da punição. “Eu me sustento com o explica, não é essa a idéia do negócio,
a idéia central do M.E.R.D.A. ocorreu. O primeiro. Mais de mil meu artesanato. Se eu trabalhar pra é para todos curtirem. E o nome do
“Sumiram” com o dinheiro pessoas participaram. Foi em 19 de pagar as cestas, não vou ter tempo movimento está aí por isso. É pra
ganho. agosto de 2001”. No segundo even- de fazer meu artesanato e eu não vou contestar, fugir dos padrões.
Ana Lúcia Behenck Mohr
analumohr@gmail.com

“Se a senhora soubesse...” Camila Mozzini


camila.mozzini@yahoo.com

e poucos quilômetros a pé, porém de repente foi por causa disso”. De-
As histórias e relatos de pessoas muito nunca pensou em pedir ajuda para pois de diversas fugas, foi parar na

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explicadas e pouco compreendidas a família que, com a morte da mãe, Febem (atual Fase), onde estudou
um pouco, fez um curso e seguiu a
“Bah, dona, a senhora sabe aqueles vida. Segundo ele, após a morte de

ANA LÚCIA MOHR


cachorros sarnento que a senhora seu pai, a mãe e a irmã fugiram para
vê de vez em quando na rua, que o Rio de Janeiro com o dinheiro do
a senhora sente até um nojo. É isso inventário: “Ficaram com tudo que
pra mim. Mais ou menos isso pra meu pai deixou pra nós”.
pior. Humilhação, frio, fome, sem
poder tomar um banho. O pessoal Heron foi morar na rua – onde está
olha pra senhora pior que um saco há quase cinco anos – após ter se
de lixo às vezes.” separado da mulher com a qual fi-
cou casado por 15 anos. “Ela bebia,
Manoel de Mello, 43 anos, estava tomava um garrafão de vinho por
ao lado do Hospital de Pronto- dia. Aí briguemo, briguemo, até
Socorro de Porto Alegre (HPS) que se separemo, vendemo a casa
perto do meio-dia de uma terça- e dei a metade do dinheiro pra ela”.
feira ensolarada. De longe se podia Medeiros também já havia se en-
sentir o cheiro de álcool. Para ele a volvido com drogas: “Eu morava
bebida tem três finalidades: “tira a na favela, tinha tudo perto,
vergonha na cara, esquenta no frio Paulo (acima): “O medo, ele é inimigo
as amizades também.
Heron (abaixo): leitor de
e mata a fome”. Quando indaga- da perfeição” diversos jornais e morador Comecei fumando
do sobre sua vida pregressa, uma de rua baseado com os
das primeiras reações de Manoel amigos, já passei
foi retirar de dentro da cueca – o pra cocaína, aí
lugar mais seguro a se guardar – a depois mais a ca-
prova de que algum dia fora “al- chaça junto. Só
guém na vida”. Mostrou a carteira não fui na pedra
de identidade, a carteira de tra- ainda, mas o resto
balho: ambas com fotos que con- tudo de droga já expe- ri-
trastavam com seu atual estado. mentei.” No entanto, a única dro-
“Tenho meus documentos aqui no ga que Heron afirmou usar hoje
meu bolso, todos. Não tenho um “é a cachaça de vez em quando,
só, tenho todos meus documen- pra distrair, pra desbaratinar”. Ele
tos”. Manoel é natural de General relatou que tem uma passagem na
Câmara, estudou até a quinta série polícia por furto – junto com um
e disse não ter antecedentes crimi- grupo,
nais. Em uma família de doze fi- entrou
lhos, não concluiu o primeiro grau em um
para, desde os oito anos, ajudar no restau-
sustento da casa. Antes de ir parar o teria deixado de fora da partilha rante do
eu digo ‘ah, tô bem perto’. Só que
na rua, trabalhava como safrista dos bens: “Praticamente vivi minha C entro,
eles não sabem que eu tô em Porto
na colheita de soja em Panambi. vida inteira ajudando meus familiar mas como
Alegre... aí acabou o cartão.” Ao ser
Morava em Cruz Alta com a mu- em tudo. Eles acham que são gran- era primário,
perguntado sobre se já pedira aju-
lher e os dois filhos. “Até um ano dão, dono do mundo. E me ver nes- ficou só dois dias
da à família – pai, mãe, irmãos –,
se estado... ‘Esse é meu irmão mas – e que aos poucos foi
antes, tava bem, tinha casa, tinha argumentou: “Os meus irmãos têm
não presta’. Se eu não presto, então “relaxando, relaxando, até
tudo. Agora não tenho mais nada.” a vida deles (...) Eu não vou mistu-
não vou ficar perto, vou sair fora”. que vim parar nessa situação
Disse ter largado tudo por ter sido rar a minha vida aqui pra estragar
Paulo revelou não ter mais vergo- assim”.
traído pela mulher. Preferiu sair a deles também. Não foi eles que
de casa a fazer alguma bobagem: fizeram nada pra mim.” nha nem medo, pois, segundo ele,
se tivesse medo, estaria morto: “Já Heron é um homem solitário.
“Que que tu faria na minha situ-
que tamo no inferno, vamo encará, Prefere andar sozinho pelas ruas
ação? Saí mais um pouco de ver- Acompanhando de Manoel estava
né? A pessoa tem que ter fé. Pode para não arranjar confusão pois,
gonha também, antes que eu ia Paulo Isidoro Farias. Aos 28 anos, já
morar embaixo da ponte ou dormir segundo ele, os moradores de rua
preso”. Ao chegar na rodoviária foi pedreiro e motorista. Hoje vive
em cima de uma árvore, e a pessoa bebem a ponto de se desentende-
de Porto Alegre, dormiu. Quando do dinheiro que consegue catando
não pode carregar medo. O medo, rem. “Quanto à polícia, todas as
acordou, percebeu que lhe haviam lixo na rua. Assim como Manoel,
ele é inimigo da perfeição”. vezes que chegaram em mim, fala-
levado a mochila com roupas lim- disse ter saído de casa após uma
ram comigo numa boa, nunca me
pas e calçados. traição da esposa: “Minha mulher
Sentado em um dos bancos do Par- agrediram, mas já vi outros sendo
me trocou por uma machorra”. A
que da Redenção, Heron Medeiros, agredidos pela polícia”. Conforme
Manoel carregava consigo um partir de então, saiu de Cruz Alta e
45 anos com o olhar um pouco per- Heron, quando se tem 45 anos não
cartão telefônico usado, o qual fez veio para Porto Alegre. Na cidade
dido ou mesmo apático, afirmou tem serviço para mais ninguém.
questão de mostrar. Disse ter liga- natal deixou uma filha de 16 anos
não saber bem porque começou a Restou-lhe, portanto, a alternativa
do para os filhos naquele dia pela com a qual, ao contrário da ex-es-
fugir de casa aos sete anos, mas dei- da reciclagem: “É o que dá pra se
manhã. “Só deram ‘oi, tudo bem?’, posa, disse nunca ter brigado. Pau-
xou escapar que “eu era adotado, aí defender... pelo menos dá pra tirar
aí perguntou onde é que eu tava, e lo relatou que viajara mais de cento

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pros vícios. Cigarro, tomar uma rua. A não ser aqueles que jogam
cachaça de vez em quando, porque lixo no chão, ganham comida e
comida eles dão aí”. Se ele pudesse jogam na porta, mas eu não passo

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voltar no tempo? Voltaria a estu- fome graças a Deus. Deus nunca
dar – responde sem pensar duas me deixou passar fome, eu agrade-
vezes. “Eu gosto de estudar, tô ço todos os alimentos que ele me
sempre lendo. Eu leio a Zero Hora, dá e todas as coisas ruins eu peço
que é um pouco falcatrua mas tem pra ele me tirar”.
um pouco mais de conteúdo. Eu
gosto de ler aquele David Coim- Em um sábado à noite, Cláudio
bra, Paulo Sant’Ana. O Kleidir tá Lira, 36 anos, estava parado em
escrevendo na Zero Hora agora. frente a uma casa de muro ver-
Eu gosto também daquele cara melho na Rua Castro Alves. Pa-
do Correio do Povo, o recia estar à espera de algo – era
Juremir, aquele. comida. Alguns minutos depois,
Aquele cara saiu um membro da Toca de Assis
é muito oferecendo-lhe um copo de plásti- Manoel: “Tenho meus documentos aqui no meu bolso, todos. Não tenho um só,
b o m ”. co recheado com carne, polenta e tenho todos”
Frente à arroz. Cláudio comeu com gosto. convívio social”. Para ele, o fe- mulher? Eu tinha que ter saído por
leva de ma- Desempregado e sem filhos, está chamento das pontes “representa cima pra ela não me ver assim”.
térias que o na rua desde 2004: “Albergue é uma proteção, porque evita que a
jornal de maior muito ruim. Não tem vaga, tem população de rua ocupe um lugar A história de Tiago é muito pare-
tiragem do Estado muita briga, não tem condições. inadequado e aumenta a eficácia cida com a dos outros entrevista-
vem realizando so- Muita cachaça, maconha, pedra. dos programas públicos”. E acres- dos exceto por um detalhe – a base
bre moradores de rua, Tudo não tem segurança nenhu- centou: “Não acredito que a me- familiar: “Meus pais são show de
Heron demonstrou não ma. É melhor a rua, não se inco- dida vá alterar os indicadores de bola. Até evito pedir dinheiro em
se reconhecer dentre moda”, justifica. Desde então, vive violência, mas aumentar a sensa- sinaleira com medo de que algum
os retratados como de catar latinhas e cuidar carros. ção de segurança, já que algumas dia eles passem de carro e me ve-
provocadores de Cláudio tem o primeiro grau com- vezes esses moradores abordam a jam. Tenho família, mas não quero
‘constrangimento’: pleto. Mesmo falando de forma ar- população de forma inadequada”. dar esse desgosto pra eles”, disse. O
“Realmente ocor- ticulada e com uma boa aparência, rapaz parecia ter vontade de voltar
re aquilo ali. Os revelou que não é fácil conseguir A sorte de Tiago, encontrado na a dar orgulho à família. Ao menos
caras constran- um emprego: “É difícil na rua con- Rua Laurindo por volta das 23h30 ele tinha um plano, o qual contou
gem mesmo. seguir uma entrada pra tomar um de um dia da semana, é que a parte animadamente: “Semana que vem
Não peço banho. A gente tem que ter um lu- da ponte próxima ao Instituto Es- vou para a clínica para me reabili-
nem gosto de pe- dir... Eu gar pra parar, se estabilizar e pro- pírita Dias da Cruz, localizado na tar. Vou começar de novo, se Deus
prefiro juntar uma latinha. A rua curar serviço. A gente tem pouca Avenida Azenha, não foi fechada. É quiser. Na clínica tu fica preso, é
é livre, cada um mora onde quer”. chance nessa vida, as oportuni- lá que ele mora há um ano. Mesmo isso que eu quero: sair com a cabe-
Heron entende que o “constran- dades são muito raras”. Ele tentou perto de um albergue, o rapaz ne- ça boa para arranjar um emprego
gimento” a que o jornal se refere conversar com o membro da Toca gro, de cabelo raspado e com uma e me levantar. Tem até um curso
se dá somente quando a pessoa é de Assis. Perguntou se havia va- cicatriz na altura do olho prefere lá!”. A vaga na clínica de reabili-
abordada. Ele não pede esmola, gas e relatou que um amigo dele dormir ao relento. As razões são tação, conforme Tiago, foi resul-
portanto, acha que não é respon- conseguiu entrar, mas saiu logo várias: “Eles tratam a gente mal, tado da ajuda de Andréia, a ‘Déia’
sável pelo “constrangimento” dos depois, por não ter se ajustado a humilham a gente, porque a gente a quem ele tanto se referiu, a qual
jornalistas e leitores de Zero Hora. regras, como não beber nem usar precisa. Além disso, os voluntários também o auxiliou a tirar os do-
drogas. O moço de bata marrom da rua, que trabalham lá, pegam cumentos que não mais possuía.
Sentado na calçada, oferecendo se mostrou reticente e o aconse- as coisas da gente”. Ele contou que Além de Déia, um professor de in-
santinhos na Rua Santa Teresinha, lhou a falar com o guardião logo foi casado por seis anos, tem qua- glês o apóia às vezes. No entanto,
Rubens Conceição Costa, 36 anos, às 7h da manhã do dia seguinte. tro filhos, mas o momento de sua “a maior parte das pessoas reage
sorrindo disse ter sofrido um aci- Cláudio não apareceu. queda foi quando descobriu a trai- com medo, protegem as bolsas ou
dente de carro e ter um tumor no ção da esposa – o então promotor fazem algo parecido. Teve uma vez
cérebro – “uma bola de sangue Desde 2007, as pontes do Arroio de vendas de uma conhecida rede uma senhora que no começo
parada” – há 20 anos, o qual, se- Dilúvio – ponto de abrigo aos de lojas passou a morador de rua. tava com medo, mas
gundo o médico, não tem perigo. moradores de rua – vêm sendo O crack tem sido sua companhia depois foi fa-
Natural de Umuarama, no Para- fechadas com pedras nas mar- desde então. “O crack tu não tem lando comigo
ná, veio para Porto Alegre há dois gens, formando paredões que im- noção do que é, é uma coisa que o e percebeu
meses após uma discussão com a pedem que pessoas durmam no diabo inventou, vicia, muito. Tem que eu era
irmã, que se queixava por ele não local. O primeiro fechamento, em crianças de até seis anos usando “do bem”.
trabalhar. “Eu não tinha como aju- janeiro de 2007, foi feito a pedido crack. (...) Ir para a rua não é uma Antes
dar ela”, disse ele apontando para da Associação dos Amigos e Mo- escolha. Muitos acabam na rua por e l a
a perna aleijada. Morando em ca- radores do Bairro Menino Deus e causa de drogas. Tem caras que que-
sas abandonadas, seu maior sonho de moradores de outros bairros, são expulsos de onde moram, ou- ria
hoje é juntar “uns R$ 300” e vol- conforme a Secretaria Munici- tros ficam com dívidas na boca de
tar para ajudar a irmã, pessoa que pal de Obras e Viação da capital fumo e tem que sair de casa para
considera sua mãe, e ter o seu can- (Smov). À época, o coordenador não serem mortos. Largam famí-
tinho, “um lugar para descansar, do Núcleo de Políticas Sociais da lia e vão pra rua. Cinco reais uma
um dinheirinho e uma comida”. prefeitura de Porto Alegre, Léo pedra não é difícil de conseguir. As
Segundo Rubens, “se eu te disser Voigt, declarou ao jornal Zero bocas têm em tudo que é lugar. Me
que passo fome na rua, tô te men- Hora que, “há um percentual da atirei até por relaxamento. Quem
tindo. Ninguém passa fome na população que não se adapta ao se atira nas drogas por causa de
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te, os telejornais bombardeiam
notícias sobre violência – se não
existe mais segurança nem mes-
mo dentro do lar, quem dirá nas
ruas. Nestas se encontra o princi-
pal problema: o desconhecido que
inspira medo, ainda mais se ele es-
tiver maltrapilho e sujo.

O segurança de uma Associação


de Moradores de uma rua do bair-
me ro Santana, que pediu para não ser
dar identificado por receio de retalia-
d e z ção por parte da empresa em que
pila, mas trabalha há oito anos, descreveu a
por medo, de- forma que lida com os moradores
pois ela me deu, de rua: “A gente tenta fazer da me-
mas sem medo.” Tiago lhor forma possível, porque a as- Cláudio: “Al-
não quis revelar seu sobrenome sociação dos moradores não quer
bergue é muito
ruim. Não tem
nem ser fotografado para não ser que eles fiquem aí. É como se fosse vaga, tem mui-
localizado pela família na situação um estorvo. ‘Tá me estorvando, ta briga, não
tem condições”
em que foi entrevistado. vai pra lá!’ A verdade é essa, fa-
zem cara de nojo, ‘vai mais pra lá’. ter uma reação agressiva. Então é regras, de bons lares que têm, que
O medo É um medo até natural, faz parte. uma caixinha de surpresas.” cumprem horários, que tem que
O cara vem todo sujo, claro que a tomar banho.” Ele culpa tanto aos
Vive-se hoje no espaço urbano pessoa vai se assustar. É uma vida Já Hamilton Dias Ângelo, 26 anos, moradores de rua quanto à socie-
uma espécie de volta ao período muito triste, feliz aquele que tem publicitário, relatou não ter reação dade, “por não gerar mais chances.
medieval. A cidade e a sociedade uma cama limpa pra dormir.” Para nenhuma ao ver um morador de (...) Para sair da rua basta querer, a
progressivamente se feudalizam: Renato Fuhr, 21 anos, estudante rua: “No máximo sinto pena, mas gente vê exemplos em diversos lu-
são construídos pequenos burgos de Segurança do Trabalho da Es- eu tenho um pensamento diferen- gares do país de moradores de rua
que, herméticos, estabelecem nor- cola Técnica da UFRGS, ao ver te: eu acho que ele não fez por me- que saem de tal condição, só que
mas internas que vão contra o di- um morador de rua do seu lado “a recer algumas chances que pode tem que partir deles. Entretanto
reito de ir-e-vir do cidadão tanto pessoa fica meio atônita, não tem ter tido na vida anteriormente e muitos preferem se drogar ou be-
em favelas em estado de exceção muito como reagir. É um proble- chegar ao estado que ele tá atu- ber.”
quanto em condomínios fechados. ma social que já vem há bastante almente.” Ao invés de medo, de-
Esta é uma era de medo, de cercas tempo e vai ser bem complicado clarou ter receio, principalmente “Eu fico com pena deles, e um pou-
elétricas, muros altos, de passo de acabar. A gente sempre fica quando estão em grupo. Apesar de co de nojo quando eles tão comen-
apressado, de câmeras filmado- meio receoso, não adianta dizer enfatizar a necessidade de políticas do numa lata de lixo por toda essa
ras, coletes à prova de bala, carros que o pessoal não fica preocupa- públicas, disse não ver da parte dos situação, não deles propriamente
blindados, vidros fumê e empresas do porque não sabe como ele vai próprios moradores de rua “uma dito, mais pela situação que envolve
de segurança privada. Diariamen- reagir, pode estar bêbado drogado, pró-atividade de seguir algumas isso. Obviamente que dá um pouco
de medo”, afirmou Mariane Soares,
32 anos, assessora de imprensa.
Sobre as possíveis soluções ao pro-
blema, ela observou que “não vem
sendo feito nada. Até porque esses
cara acho que nem identidade têm,
quem não tem identidade não vota,
não serve pra nada pra quem faz
as leis, pra quem governa estados e
esse país”.

***
“Se a senhora soubesse mesmo da
realidade da rua, dona, se alguém
contasse pra senhora direitinho, se
a senhora dormisse uma noite per-
to, só perto de uma pessoa que tá
na situação que nós temo, aí no ou-
tro dia a senhora não ia nem querer
comer o meio-dia na mesa sentada,
de nojo” – Manoel de Mello.

Em certos casos, abstração e expe-


riência são irremediavelmente in-
compatíveis.

O maior sonho de Rubens é


juntar “uns 300 reais” e voltar
para Umuarama (PR) para
ajudar a irmã.

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 23


Maria Lina Colnaghi

Perfil: Lauro Hagemann linacolnaghi@gmail.com


Tássia Kastner
tc_kastner@yahoo.com.br
“Eu vendia o meu trabalho, TÁSSIA KASTNER

não vendia a minha cabeça”


Ainda de pijama, Lauro Hage- do Brasil (PCB),
mann nos recebe em sua casa, às conhecido pelos
10h da manhã de uma sexta-feira. integrantes como
Desculpa-se pelos trajes inade- Partidão, desde os
quados, e lamenta “eu queria me tempos do Julinho.
afeitar, mas não deu tempo, pen- Também foi um
sei que a entrevista era às 11h”. dos fundadores
O senhor de 78 anos, sentado a do Sindicato dos
nossa frente, passaria as próximas Radialistas do Rio
duas horas contando histórias da Grande do Sul.
política e do jornalismo gaúcho.
As histórias de sua vida. Dividido entre a
política e o jorna-
Lauro é natural de Santa Cruz lismo, Lauro era,
do Sul, “um país muito amigo do ao mesmo tempo,
Brasil”, brinca, e veio para Por- o dono da conhe-
to Alegre estudar. Foi aluno do cida voz do Repór-
colégio Júlio de Castilhos (o Ju- ter Esso e freqüen-
linho) – onde travou o primeiro tador das reuniões
contato com o movimento estu- clandestinas do
dantil – e se formou na segunda Partidão. “Não ti-
turma do curso de Jornalismo nha nada que ver
na, então, URGS (Universidade uma coisa com ou-
do Rio Grande do Sul). “O meu tra. Eu vendia meu
Lauro, aos 78 anos, ainda participa da política, filiado ao PSB. “A politica é a ciência da convivência humana”, diz.
paraninfo foi o Alexandre Mar- peixe assim como
tins da Rosa, por aí vocês podem me davam. Agora, a Câmara Municipal levado até o Nei Moura, que era o presiden-
ver o quanto antigo eu sou. O a minha crença política era ou- a porta da prefeitura por uma te do grêmio, sacudindo o dedo
Alexandre Martins da Rosa foi tra. Dessa eu não abria mão, não figura: Germano Bonow (pai do na cara do diretor do colégio,
o primeiro reitor da Universida- abro até hoje”. A crença política atual deputado federal). Eu fui reivindicando não sei o quê. Eu
de do Rio Grande do Sul. Vocês de Lauro é o Comunismo: “o Co- despedido na porta da prefeitu- me apavorei, eu nunca tinha vis-
não são desse tempo, mas eu munismo defende uma nova so- ra com a seguinte recomendação to aquilo, não sabia que pudesse
peguei a greve universitária que ciedade. Isso é o que nós estamos do Germano: ‘Tu vai lá em cima, existir. Então eu comecei a ter
criou a Universidade Federal do procurando todos os dias. Uma assume a tua cadeira, desanca o contato com uma visão diferen-
Rio Grande do Sul (UFRGS)” sociedade fraterna, aberta, de pau na milicada e vai pra casa te da vida. Uma visão coletivista,
Foi, também, radialista e parti- preferência sem classes, mas isso esperar a tua cassação’. Essas fo- coisa que hoje não existe mais”.

X
cipou de episódios importantes é uma utopia. Então nós lutamos ram as palavras de alento que eu
da história do Rio Grande do Sul: por isso. Os comunistas sempre recebi do velho Germano Bonow, Lauro conta que em Santa Cruz
transmitiu dos porões do Palácio lutaram pela transformação da que era o presidente do Partido do Sul, além de não existir um
Piratini os boletins da Cadeia da sociedade”. Socialista”. Dois anos mais tarde, movimento estudantil como o do
Legalidade (episódio ocorrido em elegeu-se deputado estadual no Julinho, ele cresceu em uma casa
1961, que tentava garantir a posse Com 78 anos, Lauro permanece recém criado MDB. Em 1969, foi sem livros, “isso é o maior crime
do presidente João Goulart). na política filiado ao PSB, ape- cassado com base no AI-5. Com que se pode fazer contra uma
sar do cenário atual: “Ninguém a anistia, volta ao cenário políti- criança”, diz. Com
“Eu tenho três vertentes políti- está procurando transformar a co sendo eleito, em 1982, verea- humor, ele conta
cas: a partidária – o comunis- sociedade, está procurando usar dor de Porto Alegre, pelo PMDB. por que situa-
mo eu adotei depois de muito a sociedade para o seu uso. Para Com a legalização do PCB, em ções a sua falta
tempo, demorei até descobrir o satisfazer as suas crenças e não 1985, Lauro protagonizou a pri- de informação já
que eu era – mais a estudantil pra mudar esse sentimento, no meira bancada comunista do Le- o fez passar: “Nos
e a sindical”. Lauro foi mili- sentido de torná-lo coletivo. O gislativo porto-alegrense. meus tempos de in-
tante do Partido Comunista coletivismo hoje está saindo fora consciência cívica a
do vocabulário, há muito indivi- Pode-se atribuir ao Julinho a for- minha mãe me fanta-
dualismo, muito egocentrismo. mação de duas das três vertentes siava de integralista. É
Todo mundo só procura o seu”. políticas de Lauro: a comunista bom até nem falar muito
e a mobilização estudantil. Foi alto. Eu participei de uma
O radialista iniciou-se na polí- a saída de sua cidade natal que manifestação pública como
tica em 1963, quando ficou de proporcionou a Lauro um con- Pliniano. Ela me fanta-
suplente para vereador de Porto tato com a vida política: “Aqui siou de galinha verde.
Alegre pela ARS (Aliança Repu- eu entrei pro Julinho, e era um Me botou uma ca-
blicano-Socialista), uma junção fervedouro. Eu nunca tinha vis- misa verde com
do Partido Republicano com o to nada parecido com aquilo. um sigma no
Partido Socialista, e tomou Eu um dia cheguei no colégio e braço, que
posse em 1964. “Eu as- tinha uma assembléia dos estu- era o
sumi pela primeira vez dantes na escadaria do colégio. E s í m -
X
4
dio que essa coisa vai ficar livre. é um ato político. Pura política.
Por isso que eu preconizei sem- Não tem como sair dessa. Agora,
pre a formação de entidades de que uso o homem está fazendo
jornalistas, os sindicatos, como disso e vai fazer daqui pra fren-
meio de manter a categoria orga- te é outra historia. Nós estamos
nizada. Porque só esse processo é muito atrasados mentalmente.
que vai salvar a nossa memória”. Por isso é que nós vamos ter que
Sobre a discussão do fim da ne- nos colocar a par da evolução,
cessidade do diploma para nós vamos ter que evoluir
exercer a profissão Lau- muito ainda”.
ro é categórico: “Isso
é uma besteira. Na política, Lauro parti-
Quanto mais se cipou de episódios como
aperfeiçoar, melhor a Cadeia da Legalidade.
o jornalista. E isso é uma tarefa No entanto, pouco par-
da sociedade: dar condições de ticipou da ação política
aperfeiçoamento do exercício em si: “Eu participei
bolo do integralismo. Então,
profissional”. da Legalidade numa
nesse ambiente multifuso eu cres-
posição muito in-
ci. E quando cheguei aqui (Porto
Ao defender os cursos de jor- grata. Eu fiquei no
Alegre) me dei conta de que ha-
nalismo, no entanto, Lauro diz porão do Palácio
via outras coisas no mundo, que
que muitos precisam passar por (Piratini). Lá que
não era só aquele umbigo lá. Fui
modificações, dando atenção era o estúdio, e ali
lendo, lendo os socialistas utópi-
especial à base de toda a comu- me prenderam pra ler
cos, aquela coisa toda, junto com
nicação, a nossa língua: “O ins- as coisas. Fiquei vários d e s -
a influência dos companheiros
trumento da comunicação não é dia ali, trancado. Tanto é se país. Em
do colégio. Era uma comunada
cultivado. Nenhum jornalista vai que a passagem do Jango nome da mobilidade
danada aquilo lá, o Júlio sempre
se comunicar com o mundo se por aqui, aquela história automobilística, da queima do
foi”.
não for através do pensamento, toda que houve lá em cima petróleo isso obedeceu a instin-
da palavra escrita, falada, televi- no Palácio, eu não vi nada. Eu só tos econômicos”.
As Preocupações sionada, seja lá de que jeito for. E ouvi pelo rádio. Eu estava lá em-
de Lauro isso nós estamos esquecendo. Nós baixo no porão e lá em cima as Durante as horas em que estive-
estamos grunhindo ao invés de coisas acontecendo. Eu só saia do mos em sua companhia Lauro
Ao longo da conversa, o radia- falar. Porque a magrinhagem não Palácio pra ir pra casa. E olha lá”. Hagemann não só nos falou so-
lista fala sobre o jornalismo. Fala fala, grunhe. Isso é um retroces- bre os feitos de sua vida política
como alguém que fundou o Sin- so, porque ninguém fala mais. E A mesma crítica feita à política e como radialista como também
dicato dos Radialistas, e critica: “A falar escandidamente, pior ainda. ele faz à atual condição do mo- nos confidenciou: “Olha, a velhi-
imprensa acompanhou a evolu- Esses dias eu pronunciei esse pa- vimento sindical: “Perdeu muito ce é uma droga”. Ele conta que “a
ção, ou a involução. Ela acompa- lavrão e ninguém sabia o que era. de consistência. Porque o sindi- lataria está boa, o motor é que de
nhou a involução do ser humano. Eu tive que explicar que o que é cato, o sindicalismo, ele perdeu vez em quando dá um susto”. Mas
Evolução no sentido tecnológico, escandido, é separado silaba por um pouco do rumo, e no nosso do que ele mais reclama é de uma
porque hoje nós temos meios a silaba, para juntar tudo em uma caso, por um defeito gravíssimo.

X
das limitações que a sáude lhe
nossa disposição que nós não tí- palavra. O cara sai aos gritos, aos Até hoje o movimento sindical impôs: “Com isso aí me tiraram
nhamos antes. Sou do tempo do berros. Ninguém entende nada, brasileiro não tem um norte, não o trago. Essa é a péssima notícia
telégrafo, imagine. Isso no tempo nem ele. Porque o cara não sabe tem um programa, não tem uma do dia. Não pode tomar nada. Eu
em que se caçava cachorro com o que está dizendo. O pensamen- bandeira. Tem outros movimen- não era um bebum, mas manti-
lingüiça. Essas coisas foram se to precisa se transformar em co- tos sindicais que são organizados. nha o nível, para não perder o
aprimorando. Hoje tu apertas municação. A linguagem é um Eu cito como exemplo a Central jeito. Pois é, gurizada, agora es-
um botão e tu falas com qualquer negocio muito sério, e não está se Obrera Boliviana, a COB. Ela tou reduzido a isso. É pena, mas
parte do mundo. Agora, a ques- dando importância. Nós estamos tem um programa definido: é a enquanto a cabeça estiver fun-
tão do substrato disso, o avanço correndo o risco de virarmos to- defesa do cobre boliviano, e não cionando, vai indo. Quando não
da concepção de imprensa como dos uns analfabetos, porque os abre mão disso. Eles admitiram juntar mais as palavras aí é que a
difusor do conhecimento, isso cursos não preparam, nem o co- uma defesa política do Estado, ou coisa fica feia”.
foi sofrendo um processo de légio secundário prepara”. de parte do Estado do qual eles
estancamento, continua são componentes. O movimento Apesar de ter respostas para tan-
até hoje e o homem vai Quando o assunto é política, sindical brasileiro não teve isso”. tas perguntas ele parece não ter
custar a se livrar disso, Lauro Hagemann lamenta ao Quando perguntamos se nem a a solução para uma rápida ques-
mas nós precisamos fazer dizer que “a política ficou muito experiência do Sindicato dos Me- tão: “Quem é você?”. Ele nos diz
alguma coisa”. egocêntrica, muito voltada pra talúrgicos no ABC Paulista teve assim: “Olha, isso é um bicho di-
dentro. Cada um está procuran- essa organização Lauro respon- fícil de saber. Até hoje eu estou
Lauro acredita que os jornalistas do o seu lado. E, procurando o de: “Tinha. Mas aí uma coisa que procurando também e não acho.
têm um papel fundamental na seu lado, esquecem o lado de to- não tinha nada a ver com a nossa. É um cidadão comum, nada de
reversão deste quadro: “Nisso re- dos. Politicamente o homem in- O movimento sindical brasileiro, especial. Apenas com ânsias dife-
side a importância dos cursos de voluiu”. Ele fala com pesar, pois, o núcleo paulista, defendeu a in- rentes. Mas, isso é da vida. Aspi-
jornalismo e da profissão de jor- como diz: “A politica é a ciência dústria automobilística. Uma coi- rações, ânsias, desejos”.
nalista. Porque nós somos os ge- da convivência humana. O casa- sa que produziu um resultado te-
néricos, os generalistas – melhor mento é um ato político. Porque, nebroso. O nosso transporte que
que genéricos. Nós entendemos como duas criaturas que nunca se era fluvial, que era ferroviário, se * Paulo Azevedo também partici-
de tudo e não entendemos de conheceram vão viver juntas, vão transformou em um transporte pou da entrevista
nada. Mas é por nosso intermé- conciliar os seus interesses? Isso rodoviário. E isso foi a desgraça

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 25


Lucas Rizzatti
lucasrizzatti@hotmail.com

O verdadeiro cinema marginal Paulo Azevedo


paulinhoazevedo@gmail.com

Com dificuldades de freqüentar as salas de exibição produzir sem remuneração, não


– Chegou já a ter 200 pessoas numa mais um trabalho contratado. Al-
convencionais, comunidades reinventam maneiras sessão, fechamos a rua – conta João, guns vídeos que foram utilizados
para poder assistir a filmes na grande tela com uma ponta de orgulho. quando o MST denunciou para o
Brasil e para o exterior essa per-
Gerson, mais conhecido como Fus- var aos jovens do morro a cultura, a As limitações com a recente falta de seguição aqui no Estado, do Mi-
cão, tem cara de mau. Um negro arte, a música, como o hip-hop e o verba ainda não propiciaram a João nistério Público e da Segurança,
alto, de feições que pareciam ter sido pagode. E, a partir desses elementos, e ao projeto Morro da Cruz para a em relação ao movimento – conta
talhadas a facão. Quando surgiu na tentar inserir o jovem da periferia em Vida um salto maior, o da produção Jefferson.
minúscula sala da casa onde mora atividades sociais, como conjuntos cinematográfica na comunidade. No
com mais cinco pessoas, olhou dire- musicais e oficinas de grafite. A idéia entanto, já há quem consiga fazer essa Se fazer cinema no mainstream
to para a visita, o João, que sorvia um é formar adultos com inclinações ponte entre a idéia na cabeça e a câ- já e uma tarefa árdua e de retor-
chimarrão sentado em uma cadeira para determinadas áreas, tentar dar mera na mão em comunidades po- no financeiro duvidoso, como um
um caminho à pulares e em movimentos sociais. grupo de pessoas consegue manter
DIVULGAÇÃO, MORRO DA CRUZ PARA A VIDA

juventude. uma produtora audiovisual inde-


Com seis integrantes (cinco jorna- pendente, com temáticas pouco
Desde 2007, o listas e um publicitário) trabalhando atraentes para um público massivo?
projeto sofre com diretamente, fora colaboradores, a A solução é escapar pela tangente,
dificuldades. A Coletivo Catarse é um exemplo disso. fazendo renda com outras ativi-
parceria com o Eles trabalham há quatro anos com dades. A Catarse se sustenta com
instituto Leonar- produção audiovisual. Para a Catar- trabalhos gráficos, criação de sites,
do Murialdo e a se, um filme pode ser muito mais do boletins informativos e assessoria
entidade alemã que simples diversão. A sétima arte se de comunicação.
Kinder Not Hilfe, transforma em crítica social.
de apoio à crian- – Mas tem trabalhos que a gente não
ça, se encerrou – Não montamos a cooperativa faz, coisas que a gente não executa.
no terceiro ano como uma alternativa ao mercado. Nós temos um posicionamento
do projeto. A Nunca nos interessamos em traba- bem claro: responsabilidade de ex-
Os moradores do Morro da Cruz não tiram os olhos da
projeção improvisada. As sessões de cinema estão escassas Kinder Not Hilfe lhar com o jornalismo corporativo. pressão, comunicação para transfor-
contribuía com R$ Sempre pensamos em usar a comu- mar. O que adianta a gente trabalhar
de praia. Foi só Fuscão abrir a boca 100 mil por mês. Já o Murialdo en- nicação como um instrumento de para a Aracruz e perder a coerência?
para denunciar sua cumplicidade trava com a espaço físico do colégio transformação social. As causas e – contesta Gustavo Türck.
com seu interlocutor. que pertence à instituição. as pessoas nos interessam – expli-
ca Jefferson Pinheiro, integrante do A vida no morro também costuma
– Por que tu não faz mais as sessões – Terminado o convênio, após três grupo. ser coerente, ou, pelo menos, ter
de cinema por aqui? – perguntou anos, meio que parou o projeto. Nes- a sua própria lógica. Desde que o
Fuscão, em tom brando e amistoso, se meio tempo, não conseguimos au- A aproximação da Catarse com mo- projeto Morro da Cruz para a Vida
contrastando com a tal cara de mau. tonomia financeira – conta João. vimentos sociais seria então questão diminuiu a sua atuação devido a
A indagação veio acompanhada de
um sorriso de ambos. João, meio Quem mais sente falta são os mo-
DIVULGAÇÃO, CATARSE

sem jeito, tentou responder: – Está radores. O Fuscão, por exemplo,


meio difícil ultimamente, mas na que ficou sem o seu cinema se-
próxima semana vamos fazer. manal. Virou tradição no Morro
da Cruz a exibição de filmes a céu
João Werlang não é cineasta nem aberto nesse período do projeto.
produtor de cinema. Muito menos Mais do que trazer o hábito de as-
ator. Desde 2004, como coordena- sistir a filmes, as sessões transfor-
dor, se transformou num dos pro- mavam a rotina da comunidade:
tagonistas do Morro da Cruz para
a Vida, projeto na comunidade po- – Tem toda uma mobilização, quem
pular na Zona Leste de Porto Alegre, vai fazer a pipoca, decorar a rua, esco-
com mais de 20 mil habitantes. lher o filme... – enumera João.

– A pedagogia do projeto é a peda- As sessões de cinema prossegui-


gogia do cotidiano. Ir onde as pesso- ram com apoio da Caixa Econô-
as estão. Antes, a gurizada ficava nas mica Federal. Mas, atualmente, é de tempo, algo natural. A cooperativa distúrbios financeiros, o comércio
esquinas por aí – conta o pedagogo tudo com o Morro da Cruz para foi contratada para produzir quatro de drogas aumentou.
João, agora nem tão sem jeito como a Vida. Como se fosse uma cara- filmes com o Movimento dos Tra-
ficara na pergunta de Fuscão. vana, João vai com seu projetor e balhadores Sem-Terra (MST). Mas a – Se deixar, eles (pessoas ligadas ao
DVDs emprestados em um lugar afinidade não parou por aí e a Catar- tráfico) vão ocupando espaço. Du-
O Morro da Cruz para a diferente a cada exibição, nem se seguiu com uma câmera passo-a- rantes os três anos em que o projeto
Vida tem como sempre semanal. A intenção é passo o movimento. funcionava direto, não havia pro-
objetivo le- fazer as pessoas verem cinema, blemas. Mas, de meio ano para cá,
nem que seja projetando o filme – Nós começamos a acompanhar o comércio de drogas voltou forte
numa parede com anúncio de alguns momentos de marcha, de no morro – analisa o pedagogo
padaria. mobilização aqui na cidade e João Werlang.
A sede da Associação Comunitária oficinas permitiram que a história de

LUCAS RIZZATTI
do Morro da Cruz é um exemplo quem não costuma ser ouvido fosse
de que as atividades sociais podem contada, e pelo ponto de vista dos
estar perdendo terreno. Inutilizada, próprios protagonistas da vida real.
teve seus vidros quebrados e paredes – É diferente da gente, de classe mé-
pichadas. A idéia da chapa que vai as- dia, que vai pra casa e dorme tran-
sumir a associação é de reativar o es- qüilo e está bem alimentado, que vai
paço em 2009, criando uma sala fixa olhar a rua com um olhar de quem
de projeção de filmes, exatamente não vive a história, produzir alguma
como manda o figurino: toda pinta- coisa – relata Jefferson.
da de preto.
– Passamos noção de roteiro, de pro-
– Nós não temos uma referência fí- dução. “Como é que vocês vão contar
sica, o que é um problema muito essa história? É só pegar a câmera e
grande. Tivemos que desocupar as sair?” Eles montavam a cena, alguém
instalações do colégio Murialdo após escrevia. “Vai ter fala? Vai.” Eles mes-
o fim da parceria – argumenta João. mos filmaram e atuaram. Tinham
que fazer a produção, ver o que preci-
A ausência de locais para exibição de sava conseguir – lembra Gustavo, que A sede da Associação Comunitária do Morro da Cruz, inutilizada e depredada, é um
exemplo de que as atividades sociais podem estar perdendo terreno na comunidade
filmes, no entanto, não é um proble- não escondeu a tristeza ao lembrar
ma somente do Morro da Cruz. No de dois moradores de rua que mor-
Brasil, pouco mais de 8% das cida- reram antes do término da edição. O As sessões de cinema que João traz A dona Tânia Maria é um exemplo
des possuem sala de cinema, segun- impacto da morte deles foi enorme para a comunidade são sempre du- do quão inacessível pode ser o cine-
do dados da Fundação Cinema RS no grupo. Ali, segundo os integrantes pla. Primeiro, um filme mais popular, ma hoje, para as camadas populares.
(Fundacine). da Catarse, foi possível perceber uma de preferência norte-americano, um Ela conta, com um bom humor meio
certa noção de família, de relação blockbuster, que é o que a maioria nostálgico, que há 28 anos não fre-
A Catarse, sim, tem sede própria em cúmplice entre os moradores de rua, pede, confessa João. Outro quesito a qüenta cinemas. Nessa época, Porto

4
uma movimentada avenida da Ca- mesmo não havendo uma convivên- ser preenchido pela trama: ser para Alegre ainda nem sonhava em ter
pital. Mas o que importa para eles é cia diária entre eles. a toda a família. Já o segundo filme, shoppings. O passado é um tanto lon-
o que está do outro lado da porta. A João faz questão que seja brasileiro, gínquo, mas Tânia se lembra como se
parceria com a Agência Livre para Caminhando pelas ruelas do Mor- para valorizar a produção local. A fosse hoje o nome do longa-metra-
Informação, Cidadania e Educação ro da Cruz, umas tão apertadas predileção dos moradores do Mor- gem e o local em que viu seu último
(Alice) e com o Grupo de Apoio à que só se podia passar um por vez, ro da Cruz pelos filmes importados filme no escurinho da grande tela. O
Prevenção da Aids (Gapa) rendeu pode-se notar facilmente essa mes- apenas acompanha a tendência das Vendedor de Lingüiça, lá no Cinema
vídeos com a participação de mora- ma idéia de família que o Boca de salas de cinema do país. A produção Castelo – recorda.
dores de rua, do Jornal Boca de Rua, Rua adotou e que a Catarse detec- cinematográfica dos Estados Unidos
vinculado à Alice. Uma atuação inte- tou. Todos se co-nhecem. E mais: ocupa mais da metade dos locais de O Castelo foi inaugurado em 1939
gral, por trás e diante das câmeras. todos conhecem João Werlang. exibição de filmes do Brasil. O filme e, como a maioria das salas de exibi-
O seu Gilberto, que aparenta bem mais visto no país, em 2007, segun- ção de rua de Porto Alegre, fechou as
– Para eles (moradores de rua), foi mais que os 49 anos que ele mesmo do a revista francesa Cahiers du Ci- portas, em 1980.
muito bom. Quando eles fazem o se atribui, cumprimentou João com nema, foi a produção hollywoodiana
jornal, eles fazem tudo, de foto a tex- entusiasmo. Com a mesma empol- Homem-Aranha 3. Os olhos de Tânia Maria brilharam
to. No vídeo, também foi assim, fil- gação, contou a sua experiência em meio aos resquícios de um sau-
maram e apareceram na tela – conta com o cinema – Ah, quando eu era Blockbuster ou educativo, americani- doso passado. A magia da tela grande
zado ou totalmente nacional, o cine- pode propiciar isso para quem assiste
ma atrai olhares e desperta sentimen- a um filme. Ter a possibilidade de fa-
tos. Mas nem todos podem pagar ou zer um, dar o seu toque pessoal, pa-
se deslocar a uma sala de exibição. rece ser ainda mais transformador. O
Saídas alternativas de mostra de fil- cinema para os que têm pouco acesso
mes, como a do Morro da Cruz, são a a ele, seja como espectador, seja como
solução de diversão para muitos. atuante na produção, surge como um
alento. É a arte ajudando as pessoas a
– Aqui (no Morro da Cruz), é com- levarem a vida real.
plicado. Não há muitos equipamen-
tos de lazer nem muito incentivo – As pessoas acabam obvia-
para isso. O cinema itinerante vem mente também aprendendo
preencher essa lacuna – conta João. algumas coisas de cine-
ma. A oportunidade de
Segundo uma pesquisa da Federação eles estarem vendo,
Nacional das Empresas Exibidoras criando, pensan-
Maria Margareth Rossal, a Marga, jovem, ia ao cinema de manhã, de Cinematográficas (Fennec), o públi- do e produzindo
uma das coordenadoras da Alice. tarde, não tinha hora. co de cinema é formado em 71% por as coisas também
jovens de 12 a 29 anos e 73% são das é muito bacana, é
Foram realizados três vídeos com o Como Fuscão, seu Gilberto se ressen- classes A e B. Cerca de 90% das cida- um ganho grande.
Boca de Rua, durante o mês de junho te pelas sessões de cinema não serem des brasileiras não têm cinema. Há E depois elas po-
de 2008. Um só de depoimentos dos mais semanais. Apesar de fazer um 2.120 salas no Brasil, concentradas derem apresentar
moradores de rua, outro de ficção e, bom tempo que o projetor de João em 719 pontos. O preço médio do para as pessoas a
por fim, um documentário da vida não passa pela casa de seu Gilberto, ingresso no país foi de R$ 8 em 2007, produção é melhor
de quem não tem para onde ir quan- ele ainda lembra o último filme que segundo dados do Sindicato das Em- ainda. “O filme que eu fiz”. Isso para
do escurece. Mais do que aprender a viu, junto com a família – Era um presas Distribuidoras Cinematográ- a auto-estima é fundamental – diz
fazer um foco ou a dar um close, as muito bom, do Zorro. ficas do Rio de Janeiro. Jefferson.

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 27


Um olhar sobre a fé
A visita a uma mesquista em Porto Alegre traz
reflexões sobre a presença dos islâmicos no Brasil

Meio dia de sexta-feira é momen-


to de oração no Centro Islâmico
de Porto Alegre na estreita e mo-
vimentada Rua Dr. Flores. Para
os muçulmanos, este é um dia
sagrado, que equivale à missa
de domingo para católicos ou o
sábado para judeus.

O local é uma ampla sala no déci-


mo andar de um prédio comer-
cial, no centro de Porto Alegre.
convertidos e o restante vem de
países como Iraque, Afeganistão,
Palestina, Senegal.

Diallo Alpha, como quer ser


chamado, entra caminhando len-
tamente, cumprimenta-nos e à
Mahmoud, senta no chão, encos-
ta-se na parede, fecha os olhos,
ora. O senegalês mora no Bra-
sil há cerca de cinco anos. Hoje
– O Islã não faz distinção de na-
cionalidades, raça, cor, condição
social. Um equívoco freqüente,
por exemplo, é relacionar os
muçulmanos apenas ao povo
árabe, já que pessoas de todo o
mundo são adeptas à religião. A
maior população muçulmana do
mundo fica na Indonésia.

Recentemente o Vaticano anun-


ciou que, pela primeira vez na
história, o número de muçul-
manos ultrapassa o de católicos
no mundo. Islâmicos somam 1,3
Pouco antes do
início da oração
as questões con-
vergem para a
política, conflitos
entre ocidente e
oriente e a forma
como a grande mídia

3
Régis Machado
regismachado.s@hotmail.com
Iur Priebe
iur.preiebe@ufrgs.br

judaico-cristã aborda a re-


ligião islâmica. Um dos muçul-
manos presentes, um homem em
torno de 50 anos, se aproxima e
avisa de forma amistosa:

– Vamos falar sobre religião.

PEDRO ARGENTI
Os irmãos chegam aos poucos, Ele abre o alcorão numa página
sentam no carpete azul com lis- qualquer e conversa com outros
tras brancas, levam as mãos ao sobre dizeres do profeta. Mah-
rosto, alguns ajoelham, outros moud inicia uma série de expli-
oram de pé. Todos conversam e cações sobre as bases da religião
aos poucos silenciam quando o (ver box na página ao lado). O
Muazin se dirige à Meca e começa Zakat, um dos pilares, parece re-
o Azan, um chamamento musi- presentar certa evolução em rela-
cal com frases em árabe para dar ção a outras religiões. Estabelece
início à oração. um percentual de dois e meio
por cento da renda anual de um
Chegamos à mesquita, ou Masjid, muçulmano, descontados os gas-
por volta das 11h30min da ma- tos com necessidades básicas, que
nhã à procura de Mahmoud. deve ser entregue a um pobre,
Três homens sentados ao fundo diretamente, sem intermediários
da sala liam o Alcorão. Um deles, e sem o conhecimento dos ou-
com a longa barba e uma bela ta- tros.
kir verde sobre a cabeça, se apre-
senta e pede a aproximação. Aparentemente, o Xeque é um jo-
vem como qualquer outro porto-
– Tirem os calçados e entrem alegrense, veste roupas ocidentais,
Os muçulmanos são minoria no Brasil, mas na Turquia o símbolo do islã está na
aqui. bandeira do país. tem a cabeça raspada e uma barba
não tão longa. Após o chamamen-
Apesar de não ter feito o chama- está formado em Administração bilhão de seguidores ante 1,13 bi to ele sobe em uma bancada e ini-
mento neste dia, Mahmoud é o pela Universidade Federal do Rio de católicos. Estimativas apon- cia o discurso de forma tranqüila,
Muazin da mesquita. Grande do Sul e pensa em seguir tam que cerca de 27 mil pessoas mas séria e incisiva, transmite
os estudos cursando pós-gradua- são seguidoras de Allah no Brasil, força nas palavras pronunciadas
Dois pares de tênis imundos ficam ção ou mestrado. O motivo para o que significa que devem haver em árabe. A história de um ne-
ao lado da porta. Higiene, naquele ter vindo morar em Porto Alegre muito mais, pois muitas con- gro escravizado que durante um
momento, não parecia tão impor- foi apenas a universidade. Através versões não entram para os regis- longo período foi torturado por
tante para nós ocidentais quanto do olhar e uma seqüência de res- tros oficiais. manifestar sua crença no único
para os muçulmanos em uma postas curtas, ele deixa claro que Deus. “Deus é o único” ele dizia
mesquita antes da oração. aquele não era um bom momento Não é de hoje que o país se tornou enquanto era arrastado pelas ruas
e lugar para conversas além da re- referência, por opção ou obriga- e humilhado publicamente.
O objetivo era entrar em con- ligião. ção, milhares de estrangeiros e
tato com estrangeiros e refugia- refugiados de antigos e atuais con- – Estas histórias não são con-
dos de guerras que vivem em Sentados no chão, Mahmoud fala flitos pelo mundo. No século XIX, tadas apenas para diversão. São
Porto Alegre e encontram na sobre o grande crescimento no quando a intolerância religiosa era histórias reais, contadas para
mesquita uma forma de manter número de adeptos ao Islã em prática no país, uma revolta surgia mostrar que mesmo um homem
a forte ligação com a religião, todo o mundo, principalmente para afirmar que um povo jamais oprimido, escravizado e tortura-
com os irmãos do Islã e com o em países como França e Esta- se submeteria a tais condições do, não abriu mão de sua fé e
idioma de Allah. Uma possibili- dos Unidos, onde cerca de 1,6 mil onde quer que fosse. Depois que continuou manifestando em voz
dade completamente distante da pessoas se convertem todos os autoridades brasileiras destruíram alta a crença em seu único Deus –
realidade de cada um no lado de anos. No centro islâmico de Porto a mesquita de Vitória e prenderam esclarece o homem que traduz o
fora daquele prédio localizado na Alegre, diz ele, ainda não é como dois líderes religiosos, em Salva- discurso para o português.
movimentada rua do centro. As em São Paulo – onde uma pessoa dor, um grupo de escravos de ori-
orações são um momento de un- se converte a cada dia – mas há entação islâmica arquitetou para o O Xeque termina e todos se levan-
ião e aproximação com a comu- cerca de uma ou duas conversões dia 25 de janeiro de 1835, o motim tam. Lado a lado sobre as listras
nidade religiosa e local. Muitos a cada duas semanas. Todos são que marcou a história como a Re- marcadas no solo, unidos ombro
freqüentadores são brasileiros bem vindos: volta de Malês. a ombro em fileiras compactas
3 por toda
a sala, cerca
de 60 pessoas em silêncio
se curvam à Allah, ajoelham, en-
costam a cabeça no chão e rezam.
Surgem vozes e soluços e os mo-
vimentos se repetem por mais três
vezes. Ao final da oração as pessoas
confraternizam e o clima de des-
contração retorna à mesquita.

Antes de sair aguardamos por ali


quem geralmente realiza a oração
em português. A. nasceu na Pales-
tina e veio para o Brasil em 1989,
quando seus irmãos já moravam
no país. Em tom de brincadeira,
diz ter vindo ao país por aventura,
mas depois afirma que seu obje-
tivo era mesmo servir a religião.
falam demais, sem conhecer a
realidade dos muçulmanos e
sem nunca ter aparecido numa
Masjid.

Uma referência seria a associa-


ção feita pela imprensa da pala-
vra jihad com a guerra santa. Em
árabe, guerra significa Harb e a
palavra jihad pode ser traduzida
por “esforço”.

Descendente de turcos que vivi-


am no deserto do sul do país, Phil
manifesta sua posição em rela-
ção à possibilidade de entrada da
Turquia na União Européia. Mais
tarde, ele pede permissão para ver
as anotações de um dos repór-
teres. Depois de ler, pede que seja
retirada uma frase aparentemente
inofensiva. Mas não para ele.

– É sobre política. Prefiro falar so-


bre religião.

A. retorna à conversa e enfatiza


que não falam sobre política, não
permitem entrevistas gravadas,
fotografias ou filmagem e pede
para retirar seu nome da reporta-
gem. “Somos muito perseguidos”.

Mais um homem se aproxima:


O Islã
A Oração (Asalat) – A conexão en-
tre o servo e o seu criador, primeira
obrigação a ser julgada no dia do juízo,
são cinco distribuídas entre o dia e a
noite, uma prática padronizada para
todos os muçulmanos, dentro de
horários determinados, a oração dife-
rencia o muçulmano do incrédulo em
Allah. Todo muçulmano se direciona à
Mecca, com o coração e a mente puros
para Allah, uma ligação entre o ser hu-
mano fraco incapaz com seu criador,
o todo-poderoso. A ele se direciona
pedindo perdão, ajuda e misericórdia,
alimentando o coração com a paz, a
força e a tranqüilidade, e fortalecendo
sua alma cinco vezes por dia.

A caridade (Zakat) – A palavra Zakat


significa purificação. Uma obrigação
de todo muçulmano rico, que retira
uma porcentagem do seu dinheiro,
ou outra fonte, é distribui aos neces-
sitados, garantindo assim ajuda so-
cial entre muçulmanos e prevenindo

ano, o jornal inglês The Guardian


publicou reportagens sobre a pre-
sença de “prisões flutuantes” para
suspeitos de terrorismo em locais
secretos como os grandes navios
(USS Bataan e USS Peleliu) situ-
ados no território britânico de
Diego Garcia, no Oceano Índico,
problemas como a inveja e o ódio
entre as diferentes classes sociais. A
purificação do egoísmo.

O Jejum (Asiam) – É a aproximação de


Allah, se abstendo de ingerir qualquer
espécie de alimentos ou bebidas, fu-
mar e ter relações sexuais durante
o mês do Ramadan. Um ato para
educar a alma, ensinar a disciplina e
o costume de superar as vontades e
prazeres.

A Peregrinação (Alhajj) – Obrigação


para todo o muçulmano capaz, fisica-
mente e financeiramente, de visitar a
casa de Allah (Kaaba) em Mecca, para
executar certos ritos definidos pela re-
ligião islâmica pelo menos uma vez
na vida. No Hajj, um grande número
de muçulmanos viaja de todos os lu-
gares do mundo para obedecer Al-
lah, provar sua dedicação à religião
e unificar muçulmanos de todas as
nacionalidades.

comprovadas na conhecida e per-


mitida base americana de Guan-
tánamo, em Cuba. A organização
do Reino Unido estima que o
estado americano detenha atual-
mente pelo menos 26 mil pes-
soas sem julgamento e que mais
de 80 mil já teriam ingressado no
Praticar e converter. – Eles são jornalistas. Phil continua: desde 2001. sistema desde 2001.

– Cremos em todas as revelações – Conversamos entre nós so- Análises da organização de Dire- Enquanto nos despedíamos, na
de Deus. Cremos que a Torá foi bre qualquer coisa relacionada à itos Humanos Reprieve UK saída, um brasileiro – com cerca
revelada a Moisés, os Salmos a política. Aqui falamos de religião. (www.reprieve.org.uk) apontam de 40 anos, calça social e camisa,
Davi, o Evangelho a Jesus. O Al- E é muito difícil ser muçulmano que estas prisões também funcio- as mãos entrelaçadas e apoiadas
corão é uma mensagem eterna no Brasil. nariam na Tailândia, Afeganistão, na cintura – chegava à mesquita
revelada ao profeta Muhammad Síria, Jordânia, Marrocos, Egito, para conhecer a religião e aguar-
e um resumo histórico que es- Compreensível apreensão em Polônia e Romênia. Prisioneiros, dava ser recebido. São cinco ora-
clarece muitos fatos mal interpre- falar sobre política numa época entre os quais muitos muçulma- ções por dia e sua próxima seria
tados pelo homem. em que são políticos os motivos nos, são detidos sem julgamento às 15h45min.
que impulsionam pelo mundo as e alegam torturas semelhantes às
FLÁVIO AGUILAR
O Muazin do dia se aproxima e chamadas “guerras con-
nos cumprimenta. Phil quer sa- tra o terror”. No
ber quem somos nós, o que faze- início do
mos ali e o que queremos.

– Acho bom que vocês


tenham vindo aqui,
porque muitos
jornalistas

3x4 MARGINALIDADE 2008/2 29


As margens

Por último, oferecem-se as margens. De todas, as mais óbvias, que contornam


de águas o flanco em que repousa a cidade. Separam a placidez líquida do
horizonte tenaz e denteado, a observar perenes o revolver intenso dos homens
em seus arrabaldes. As margens não falam, não movem, apenas limitam. Diante
delas, paira a imagem ribeira e convexa de um mundo que recobre outro, aquele
que vive em suas profundezas. E, quando descontentes com os desígnios da
natureza, os homens convocam do fundo do leito a terra negra e pura, que
jamais presenciou as revoluções dos que a dragam à superfície, e lhe rogam por
novas margens. E os homens, na ilusão de promover o infinito, vão transpondo
suas fronteiras, sempre incapazes de apagá-las.

As margens são testemunhas incontestes de ambos os lados. São jacentes


observadoras da luz que emana de um verso e da escuridão que sorve tudo
noutro. Postas pelas intempéries e arbítrios, marcam um fim e um começo de
domínios que, por encontrarem-nas entre si, opõem-se. O maciço e o fugaz,
o opulento e o escasso, o perpétuo e o transitório, o certo e o incerto. Viver às
margens é estar sob a constante ameaça de ter-se engolido pela sede de um dos
lados, como quem vive numa palafita pantaneira ou na beirada dos morros.
O destino é um só: tudo se afoga ou se soterra, aglutina-se num dos extremos,
cede à sua pertença. E assim, muda-se a paisagem, mas não muda o fato de que
sempre haverá uma elementar margem.

Pedro Argenti
pedroargenti@gmail.com

Foto: ANA LÚCIA MOHR

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