You are on page 1of 190

Em busca da História do Judaísmo

A memória dos escribas hebreus

Trabalho Final: Seminário da História do Judaísmo


Docente: José Augusto Ramos
Discente: Ricardo Gomes

Faculdade de Letras
Lisboa, 2016
Resumo

Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu lês negro onde eu leio branco.
- William Blake

A Bíblia tem sido lida por pessoas há cerca de dois mil anos, as leituras têm sido literais, figurativas
ou simbólicas. Muitas acreditam que se tratam de textos divinamente revelados, uma fonte de
inspiração que inspira a parte mais sublime do humano. Da sua interpretação surgiram em várias
gerações os santos, os místicos e os profetas, os grandes filósofos que procuraram ligar o humano ao
divino.
Esta literatura canónica é a base de duas tradições religiosas concretas, o judaísmo e o cristianismo, no
contexto do seminário da História do Judaísmo realizei este trabalho.
Neste trabalho procurei situar no espaço do mundo bíblico as várias interseções da história dos textos
bíblicos. São estes que nos contam a história acerca do povo hebreu, o povo do judaísmo, nos autores
destes textos, encontraremos as crenças e as perceções do divino quue moldaram o judaísmo.
Assim é necessário recorrermos á memória e á sabedoria dos escribas do antigo Israel, nestes reside o
papel central da historiografia do judaísmo.
Os seus conceitos de tempo e de história certamente marcaram as suas narrativas, mas o que para eles
seria o judaísmo? Uma identidade, uma crença, uma civilização?
Até que ponto um inquérito histórico às raízes que antecedem as fontes, se a Bíblia for a árvore os
escribas serão as suas raízes, irá apurar o que é o judaísmo?
Neste trabalho procuro através de uma metodologia multidisciplinar abordar a cultura dos escribas
hebreus, analisando as suas diferentes teologias e perspetivas do divino que tiveram lugar no espaço
sócio-religioso do antigo Israel.
O núcleo deste processo histórico é o eterno conflito inerente às narrativas bíblicas e aos processos
que as formaram. Conflito este que foi um meio de recomposição constante, de reconfiguração do
divino e da fé humana.
Respondi de forma singular ainda que muita limitada à singularidade de certas questões
problematizadas na historiografia das crenças religiosas dos povos bíblicos. O livro de Deuteronónimo
e a sua teologia foram um ponto de partida e de chegada na reflexão acerca da religião bíblica.

Palavras-chave: Bíblia; Judaísmo; mundo bíblico; historiografia do judaísmo; crenças; perceção do


divino; escribas hebreus; Deuteronómio; religião bíblica
Índice

Introdução ............................................................................................................................................ 7
O Pensamento Histórico no Antigo Israel ......................................................................................... 9
A Relação da Historiografia do Antigo Israel com o Tempo ‫םֹוי‬ 14
1. Caraterização do espaço geográfico da história do antigo Israel ........................................... 17
1.1 O Espaço Geográfico 17
1.2 Ambiente e Ecologia ........................................................................................................ 20
1.2.1 Paisagem Física ............................................................................................................ 21
1.2.2 O Clima a Flora e a Fauna .......................................................................................... 22
1.3 O Contexto Geopolítico e Económico do Território 24
1.4 A Geografia Teológica 24
2. As Fontes Literárias ................................................................................................................... 25
2.1 Metodologia 26
2.1.1 A autoria no mundo bíblico 26
2.1.2 O livro moderno e o Pergaminho do antigo Israel 28
2.2 A Escrita no mundo da bíblia 29
2.2.1 A compreensão da (‫[ רָּ בָּ ד‬palavra]) na tradição oral 31
2.2.3 Os Estilos Literários das Culturas Orais 33
2.2.4 Os Custos de Produção 34
2.3 O Escriba do antigo Israel 34
2.3.1 Horizonte Comparativo: Cultura escriba da Mesopotâmia e do Egito .................. 36
2.3.1.1 Os Escribas da Mesopotâmia ...................................................................................... 36
Breve descrição do sistema educativo dos escribas da Mesopotâmia .................................... 38
A Carreira dos Escribas ............................................................................................................. 39
Relação dos Escribas com o Templo ......................................................................................... 40
A Questão da Distinção Social ................................................................................................... 41
2.3.1.2 Os Escribas do Antigo Egito 41
Breve Descrição sobre o Sistema dos Escribas do Antigo Egito............................................. 42
Relação dos Escribas com o Templo ......................................................................................... 43
O Caso Especifico da Academia Egipcia e o Sacerdócio ......................................................... 43
Conclusão do Horizonte Comparativo: Escriba da Mesopotâmia e Escriba do Egito ........ 44
2.3.1 Caraterização do Escriba do Antigo Israel 45
2.3.2As evidências bíblicas e epigráficas 46
O Termo “Sábio” ........................................................................................................................ 50
2.3.2.1 As Evidências Epigráficas 51
2.3.3 O Sistema educativo dos Escribas .............................................................................. 52
2.3.4. O termo “escola” no Antigo Israel .................................................................................. 54
2.3.5 O Currículo do Escriba de Israel ..................................................................................... 58
2.3.6 O Papel da Memória na Formação da Textualidade Hebraica ............................... 59
2.3.7Modos de Produção Textual 64
2.3.7.1 Transcrição ................................................................................................................... 65
2.3.7.2 Invenção ........................................................................................................................ 66
2.3.7.3 Compilação ................................................................................................................... 68
2.3.7.4 Expansão ....................................................................................................................... 70
2.3.7.5 Adaptação ..................................................................................................................... 71
2.3.7.6 Integração ..................................................................................................................... 72
2.3.8Síntese 72
2.4 O Corpo Literário da Bíblia Hebraica .................................................................................. 73
2.4.1 A Historiografia do Antigo Israel 75
2.5 A Hipótese Documental 79
2.5.1 A Ideia das Fontes.............................................................................................................. 82
2.5.2 Caraterização das fontes ................................................................................................... 84
Fonte J ......................................................................................................................................... 85
Fonte E ......................................................................................................................................... 86
Contextualização Histórica das Fontes J e E ........................................................................... 87
O Papel dos Sacerdotes .............................................................................................................. 88
Dois Países, Dois Escribas .......................................................................................................... 89
A Origem das Tribos .................................................................................................................. 90
O Bezerro de Ouro na Fonte E .................................................................................................. 92
Fonte P ......................................................................................................................................... 95
Breve Contextualização Histórica da Ideologia de P .............................................................. 96
Traços Literários de P ................................................................................................................ 97
Fonte D 99
Caraterísticas Literárias 100
O Livro de Deuteronómio 101
As Quatro Edições de Deuteronómio ...................................................................................... 102
As Perspetivas de Cada Edição ............................................................................................... 104
A Edição do Pacto ..................................................................................................................... 104
A Edição da Torá ...................................................................................................................... 105
A Edição Histórica .................................................................................................................... 107
A Edição de Sabedoria ............................................................................................................. 108
Síntese ........................................................................................................................................ 109
3 Os Primórdios da Religião dos povos bíblicos Israelita e Judaíta ............................................ 110
3.1 Fontes e Metodologia 110
3.2 Breve Panorama Histórico Do Desenvolvimento da Religião Bíblica: de Profecia a Texto
114
3.2.1 A Religião Deuteronomista do Pacto ............................................................................. 117
3.2.2 A Religião Sacerdotal - Cúltica ...................................................................................... 119
3.3 Aspetos históricos de Israel e Canaã ................................................................................. 121
3.4 As Raízes da Religião de Israel e Judá na Bíblia Hebraica.................................................... 122
3.4.1 Traços teológicos comuns no Antigo Médio Oriente 123
5 Temas comuns dos Profetas do Antigo Médio Oriente 126
3.5 Os Espaços Sagrados 127
A Conceção Do Divino no Antigo Israel ........................................................................................ 129
3.6 A Fluidez da Individualidade Divina no Antigo Israel 129
3.6.1 A Corporificação do Divino na Biblia Hebraica ........................................................... 135
3.6.2 O corpo do Deus da Biblia Hebraica ............................................................................. 136
3.7 Fluidez da Incorporação e Individualidade Divina 137
3.7.1 Fluidez da individualidade divina na Mesopotâmia ..................................................... 138
3.7.2 A Fluidez divina nos textos acadianos ........................................................................... 139
3.7.3 A Fluidez da Personalidade Divina entre os Semitas do Noroeste .............................. 142
3.7.4 Multiplicidade de Personificação entre as Divindades do Noroeste Semita ............... 145
3.8 Os Três Corpos de Deus na Biblia Hebraica 148
3.9 A Rejeição do Modelo de Fluídez Divina no Antigo Israel 154
3.10 O Tabernáculo nas fontes P e E 155
3.10.1 A Literatura Sacerdotal (Fonte P) ............................................................................... 155
3.10.2 A Literatura Eloísta (Fonte E) ..................................................................................... 157
3.11 Aspetos Profundos destas Duas Ideologias Religiosas................................................... 158
3.12 A Literatura Deuteronomista .......................................................................................... 159
3.13 Síntese das Raízes Conceptuais da Fluídez Divina ............................................................... 160
4. A Hipótese da Religião dos Patriarcas ....................................................................................... 162
4.1 Análise das fontes E, J, P 163
4.2 Os Epípetos com El 163
4.2.1 Él Olam ............................................................................................................................. 165
4.2.2. Él Elyon ........................................................................................................................... 166
4.3 A Transmutação de Javé com os elementos das várias divindades cananitas 168
4.4 As influências de El na representação bíblica de Javé 171
4.4.1 Javé como Ancião ............................................................................................................ 171
4.4.2 Javé como Sábio ............................................................................................................... 172
Ezequiel 28:2-10 reflete tradições referentes a El?................................................................ 173
4.4.3 Os Filhos de El ................................................................................................................. 176
4.5 As Influências de Baal na representação bíblica de Javé 176
4.5.1 O Conflito de Baal com o Dragão e o Mar .................................................................... 178
5. Conclusão ...................................................................................................................................... 180
Referências Bibliográficas ............................................................................................................... 182
Anexo 1.............................................................................................................................................. 186
Anexo II............................................................................................................................................. 188
Introdução

A história do judaísmo é a história da memória do povo judeu, a função da memória no judaísmo é


essencial à sua existência. A vivência da memória no judaísmo torna-se explicita no ritual pascal,
exprimindo-se em termos intemporais no texto da haggadáh da Páscoa. Aqui são recordados os
momentos históricos da estadia no Egito e a antecipação da libertação maravilhosa do povo judeu.
Neste contexto não podemos falar de um tempo linear que separa o passado do presente, o ritual pascal
judaico entra no atemporal, o eterno agora, o presente que transcende os limites do espaço e do tempo1.
A história como a perspetivamos é um processo contínuo de interação entre o historiador e os seus
factos, uma espécie de diálogo entre o presente o passado. A força motora desse diálogo é o tempo, o
objeto de estudo da história, ou melhor dizendo o campo em que toda a história se insere, eclode e
emana.
É no tempo que encontramos o sólo fértil da história documental, onde acedemos a factos específicos
que respondem-nos a certas questões. A leitura destes factos por si só é incompleta se não procurarmos
explicá-los, na necessidade de explicar o facto surge a história explicativa. Em que discutimos o papel
de vários eventos e factores que deram forma aquele facto no evento histórico em que surgiu.
A historiografia é o esforço final deste processo, talvez a compreensão dos significados mais profundos
da história documental e explicativa.
Com a historiografia o historiador forma grandes categorias interpretativas do espaço histórico
(Ricoeur, 2009, p. 139), neste trabalho serão abordadas várias temáticas relacionadas com a história
do Antigo Israel.
A história dos israelitas é a história da Bíblia Hebraica e a história do mundo bíblico que a compôs,
estes são os nossos elementos significativos no espaço e no tempo.
Neste seminário de História do Judaísmo, procurei desenvolver um trabalho que estudasse as origens
e a evolução das crenças e conceções do divino no mundo bíblico. Mais concretamente estas temáticas
no espaço sócio-religioso do antigo Judá e Israel, como esforço de compreensão procurei empreender
uma análise crítica de algumas fontes da história documental.
A releitura e a reinterpretação nalguns casos da história da crença religiosa foram possíveis dentro da
linha de raciocionio desenvolvida neste trabalho.

1
A minha reflexão do papel da memória no Judaísmo foi bastante influenciada pelo texto Memória e Sabedoria
Em Perspetiva Bíblica do professor José Augusto Ramos. Apresentado no colóquio «Memória e Sabedoria»,
organizado pelo Centro de Estudos Comparatistas da FLUL, em Dezembro de 2009.
No lugar de discutir a plausibilidade de uma fonte literária ou o papel interpretativo de uma fonte
arqueológica, preocupei-me antes com os mundos e realidades que geraram e interpretaram estas
fontes.
Porque é nessa interpretação e nessa escrita que temos o pressuposto de uma história do Antigo Israel,
história esta muito mais complexa e dinâmica.
Os escribas da Bíblia Hebraica são assim os elementos fundamentais para a historiografia de Israel,
foram os seus primeiros historiadores. Qual seria o seu pensamento histórico? Como seria para eles o
ato de escrever a história? Qual era o conceito de tempo destes autores?
Ao lermos superficialmente os seus textos detetamos uma certa ideologia com ênfase no mito nacional,
este historiador assume um papel político preponderonte no sentido em que os vários eventos por ele
relatados ilustram o poder do mito da história e a sua relevância para a consciência de identidade
nacional.
Sem este ponto de partida não conseguimos aceder aos dados históricos a que temos acesso. Não
porque não podemos lê-los, mas sim porque não podemos compreende-los num âmbito abrangente
que faça justiça à sua complexidade.
Na Bíblia Hebraica o conceito de tempo ‫ םֹוי‬apresenta uma vastidão de conceitos e ideias, sendo esta

antologia literária a base para o estudo do Judaísmo, a sensibilidade dos seus diferentes tempos é
essencial para apurarmos a sua história.
Estar atento às sensibilidades do discurso religioso bíblico ao longo do tempo implicou um afastamento
do conceito contemporâneo do judaísmo como uma “religião do livro”. Procurei estabelecer um
itinerário das suas raízes mais genéricas, onde não existiam livros, numa cultura oral apenas um grupo
capaz de escribas poderiam registar as narrativas.
Este percurso torna-se possivel pela análise crítica de algumas fontes textuais contextualizando o
tempo dos autores dos livros que compõe o “Livro” e as várias fases da conceção do divino.
Apesar do conceito ‫ םֹוי‬em si não ser discutido de forma aprofundada neste trabalho, ele é o fluxo no

qual todas as ideias fluem até convergirem na conclusão deste seminário.


Este conceito remete-nos ao texto bíblico, sendo a chave que permitirá acedermos à realidade histórica
existente por detrás das suas palavras.
O tempo dos escribas, o tempo das tradições literárias e o tempo das ideias são alguns dos pontos de
partida da nossa análise ao longo deste trabalho.
Alguns eventos importantes foram estandartes nestas transições ideológicas do fluir do tempo: a
transição da cultura oral para a cultra escriba; as diversas riquezas e especificidades da força dos
escribas na formação do judaísmo. As crenças tradicionais e populares exteriores à elite escriba e
sacerdotal, entre outras situações serão discutidas oportunamente ao longo deste trabalho.
O trabalho foi assim organizado em três etapas, na primeira etapa contextualizou-se a importância
histórica e estratégica do espaço territorial da terra da Palestina no mundo bíblico.
Na segunda etapa analisou-se as fontes literárias e arqueológicas, a partir de uma metodologia
multidisciplinar. Iniciando esta análise com a contextualização da cultura oral e do contexto social dos
escribas que puderam redigir os textos escritos desta cultura. Foram assim empregues três métodos de
estudo, o primeiro foi o estudo comparativo com o contexto social dos escribas do antigo Egito e da
Mesopotâmia. Estas civilizações que exerceram alguma influência em Israel numa perspetiva
heurística seriam úteis para reconstruir-se a cultura escriba israelita. As evidências epigráficas e fontes
extrabíblicas também serão contempladas nesta caracterização.
Analisou-se o livro de Deuteronómio e o de Josué desenvolvendo-se depois toda a reflexão histórica
da influência teológica destes textos nas crenças do judaísmo primitivo.
Na terceira seção trabalhei a problemática religiosa a partir da questão da perceção do divino nos
diversos textos bíblicos e nas fontes arqueológicas disponíveis. Através de uma metodologia
multidisciplinar específica para esta seção e de uma perspetiva de leitura assente na questão fluidez
divina nos textos bíblicos desenvolvi o estudo das raízes da crença na religião bíblica.
Partindo sempre do pressuposto que é a crença dos escribas e a sua perspetiva que estabelecem o
desenvolvimento da conceção do divino e por sua vez a compreensão histórica da formação do
judaísmo. Procurei as sensibilidades do conflito sempre presente e contínuo, reconfigurativo e pulsante
que chama a atenção para o outro pólo desta realidade. O pólo que não foi escrito em pergaminhos por
penas, mas está registado na pedra e na inscrição sendo este também importante para percerbermos a
construção histórica do judaísmo.
Antes de avançarmos no desenrolar deste percurso de investigação é necessário estabelecermos alguns
pressupostos úteis à nossa leitura da historiografia dos escribas do Antigo Israel.
Primeiramente será necessário discutirmos a noção de pensamento histórico no Antigo Israel, a noção
de tempo e a sua relação com a historiografia dos escribas, e a própria escrita da história.

O Pensamento Histórico no Antigo Israel

Ao depararmo-nos com a complexidade destas temáticas é necessário estipularmos uma definição de


história dentro do contexto da nossa investigação.
O que é a história?
Não irei definir história em termos abstratos, não poderemos abordar o pensamento histórico destes
autores com a nossa definição do termo “história”.
A minha resposta deriva apenas do contexto deste trabalho, que não é a história na sua generalidade
mas a história nas escrituras hebraicas.
No contexto da religião do Antigo Israel a “história” através do tempo tem sido identificada pelos
académicos como as escrituras hebraicas “Antigo Testamento”, identificando os livros de Génesis até
II Reis como a história padrão.
A história de Israel desde a criação até a expulsão da terra de Israel portanto, por “história”, iremos
assumir neste trabalho, a escrita que exibe os traços indicativos desses livros das escrituras hebraicas
(Neusner, 2004, p. 5).
Atendendo ao argumento de Jacob Neusner, estes livros das escrituras hebraicas reúnem as condições
necessárias para os considerarmos uma obra historiográfica da antiguidade pré- clássica.
Primeiramente escrever história exige uma narrativa num quadro teleológico ou um padrão de ligações
de eventos únicos e significativos que envolvam indivíduos. A história conta-nos o que aconteceu, de
modo a demonstrar várias preposições relativas ao destino e fé da comunidade. Nas escrituras
hebraicas a narrativa histórica é um meio de explicar a ordem social e transmite mensagens a respeito
de como esta ordem deve ser moldada e reformada.
Com estes traços presentes podemos caraterizar as escrituras hebraicas como livros históricos.
É importante compreendermos que a leitura confessional das escrituras por parte da religião é
fundamentalmente não histórica no sentido que torna a escritura numa espécie de mapa.
Neste sistema sincrónico cada parte ilumina o todo, neste processo não interessa que as diferentes
partes do mapa sejam provenientes de diferentes perspetivas e diferentes períodos.
O devoto procurará na Bíblia a “pérola de grande valor”, um conjunto de verdades são reunidas numa
exegese trabalhosa através da qual se podem conjurar conhecimentos, poder e eternidade.
Os crentes não leem a Bíblia com um interesse intrínseco pelos eventos humanos, eles procuram o que
está por de trás dos eventos. Uma causa única e singular que une todas as partículas deste mapa, dando-
lhe um significado maior e tornando as diferenças históricas irrelevantes.
Na história o fiel procura o permanente, aquilo que não é histórico, no tempo ele procura a
intemporalidade, na realidade concreta ele busca o Espírito, o insubstancial2.

22
O meu pensamento foi de certa forma influenciado por várias ideias de Baruch Halpern encontradas na sua
obra acerca da Bíblia Hebraica e a história: The First Historians. The Hebrew Bible and History (San Francisco,
1988: Harper & Row), pp.3-4
Esta leitura da Bíblia marcou o cristianismo e o judaísmo nos últimos 800 anos, até ao advento do
conhecimento histórico no século 19 e na forma como este se transformou num poderoso instrumento
exegético da escritura no século 20 (Neusner, 2004, p. 16).
Antes deste acontecimento existia uma forma de ler e responder aos eventos, que pressupunha uma
forma diferente de receber os escritos do Antigo Israel.
É na conceção do tempo ‫ םֹוי‬que assenta a grande diferença entre a leitura crítica e histórica das

escrituras e a leitura confessional das mesmas. Ao lerem as escrituras sem o pressuposto histórico o
cristianismo e o judaísmo identificaram as suas premissas e os seus resultados. Isto é diferente de
aferirmos se de facto os acontecimentos relatados aconteceram, quando falamos de intemporalidade,
estamos a falar da forma como a escritura do Antigo Israel foi recebida no judaísmo e cristianismo.
Durante séculos foram lidas com a ausente noção de tempo, intemporalidade para o fiel significa
ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço que aborda as escrituras numa espécie de “presente”
eterno que não é imediato.
Se até então estes textos foram lidos no sentido de se procurar compreender a perspetiva de Deus
acerca da humanidade. Com o advento do historicismo os livros passaram a ser lidos e dedicados aos
eventos humanos neles descritos (Neusner, 2004, p. 17).
O pensamento histórico moderno exige uma distinção entre o passado e o presente, o pensamento
rabínico3 de forma contrastante representa a ordem social de um grupo a partir do conteúdo histórico
de forma distinta. Em que transforma as formas do passado numa presença vivida e onde
simultaneamente o presente toma lugar no passado.
O argumento de Jacques LeGoff defende que o pensamento historiográfico existe na oposição entre o
passado e o presente. Algo fundamental uma vez que a memória e a história são fundadas nesta
distinção, este pressuposto de acordo com LeGoff é encontrado na obra de Piaget: “entender o tempo
é libertar-se do presente”4.
A nossa grande problemática é que esta psicologia e diria esta filosofia da história não pode ser
imputada a uma civilização que não fazia tal distinção. Que geria a memória de uma forma
completamente diferente, o historiador do Antigo Israel encontrava presente um capítulo do passado,
definindo o passado como uma componente de um presente duradouro. Iremos na historiografia
moderna reconstruir a mentalidade de um grupo inteiro que não se insere naquilo que hoje
consideramos normal (Neusner, 2004, pp. 18-19)?

3
O pensamento rabínico mencionado aqui apenas como comparação está bastante explícito na obra de Jacob
Neusner: The Idea of History in Rabbinic Judaism (2004)
4
Jacques LeGoff, History and Memory Citado em (Neusner, 2004, p. 18)
Nas palavras de LeGoff5:
The pathology of individual attitudes toward time shows that ‘normal’ behavior maintains an
equilibrium between the consciousness of the past, the present, and the future, but with a slight
predominance of the orientation toward the future...The orientation toward the present,
characteristic of very young children (who even ‘reconstitute the past in relation to the present,”
as Piaget has noted), of mentally defective or insane persons...is encountered fairly commonly
among old people...
A incapidade de dinstinguirmos o passado do presente é um indicador de insaniedade, isto torna
complicado compreendermos o entendimento da história nas escrituras. Ao longo dos séculos a
civilização ocidental judaico-cristã em nada concedeu a “antiguidade” do passado ou a barreira entre
passado e presente.
Deste ponto de vista os textos rabínicos por exemplo não contém nenhuma narrativa sustentada, porque
não admite nenhuma lacuna ou barreira que separa o presente do passado. A narrativa vê o presente
como algo autónomo do passado e do futuro. Não lidamos com autores iletrados mas com sábios
altamente alfabetizados, não com um mundo mitológico e ritualístico que se relaciona com o passado
e o presente para que a história seja separada do presente e unida ao presente (Neusner, 2004, p. 19).
As escrituras atestam que o Antigo Israel organizou e interpretou e experienciou uma história
sistematizada da criação à destruição do Templo de Jerusalém em 586 a.e.c.
Esta história composta em 560 a.e.c. não é totalmente contínua, deixa bastantes lacunas, mas é coerente
do começo ao fim (Neusner, 2004, p. 30).
É uma narrativa histórica formulada no período de uma teologia convincente da vida e experiência de
Israel desde os seus inícios até ao presente. Expressando também um sentido de encerramento: o
passado distinto do presente, o presente separado do futuro.
O pensamento é assim sistemático narra uma história primordial, onde retrata as origens do grupo e o
que foi acontecendo com este povo ao longo do tempo. A narrativa transmite uma mensagem repleta
de significado da existência social israelita.
A representação do pensamento histórico por parte das escrituras segue um curso linear e distingue
claramente o presente do passado e o presento do futuro.
O inicio do seu pensamento histórico reside no reconhecimento de um abismo e uma barreira entre o
agora e o antes, a circunstância do primeiro Templo em 586 a.e.c.

5
Citado em (Neusner, 2004, pp. 18-19)
No pensamento histórico israelita existia a convicção que os eventos eram singulares, significativos e
que vinham de um passado irrecuperável e apontam para carateristicas especificas do imediato, aqui e
agora (Neusner, 2004, p. 32).
A historiografia do Antigo Israel é assim uma composição de eventos destinados a explicar como as
coisas estão no momento presente a acontecer e como é que surgiram. A noção de história poderá
transportar consigo a ideia de eternidade, isto é, além da história. A eternidade é algo distinto da
história assim como o presente é do passado.
Sendo assim para nós uma problemática esta conceção da eternidade, mas de facto o conhecimento
de Deus era uma inferência que realmente tinha acontecido na história da humanidade. Para os
israelitas Javé é o Deus da história e a história é o seu principal meio de revelação.
Este é o modo de pensamento das escrituras hebraicas, a história israelita assume um lugar considerável
na formulação da visão do mundo do Antigo Israel.
É importante termos a noção de que a história bíblica é uma leitura interpretativa dos acontecimentos
por parte dos seus historiadores. Algumas leituras desta história pressupõe e desenvolvem a existência
de conceção linear do tempo6, contudo também é possível detetar uma conceção cíclica do tempo.
Sintetizando assim as categorias em discussão, o modo de pensamento histórico na bíblia identifica
fronteiras entre passado, presente e futuro, ao mesmo tempo que aponta caminhos de interseção estas
temporalidades.
Este pensamento tenta responder à necessidade inerente do homem que sente um desejo constante de
saber o que está a acontecer ao seu redor, o que já aconteceu e o que vai acontecer no futuro. Ele realiza
um esforço para superar a distância do espaço e do tempo, rasgando o véu que o separa dos factos que
não podem ser apurados pelos seus sentidos no momento e na localidade em que se encontra.
Como Cassuto afirmou os israelitas têm a distinção de ser o primeiro dos povos civilizados a criar
historiografia, no sentido pleno e preciso da palavra. No reinado de Salomão, no período de
prosperidade politica e social de Israel, não foi criado pela primeira vez, a historiografia, no sentido
com que hoje os estudiosos modernos concebem o termo. A escrita histórica cujo objetivo é determinar
os factos como eles são e explicar como é que se originaram e desenvolveram de acordo com as leis
da casualidade7.

6
As reflexões sobre o tempo na Bíblia Hebraica foram maturadas pelas leituras do texto “O Tempo Antes do
Tempo” do Professor José Augusto Ramos, publicado na Revista do Instituto Oriental da Universidade de
Lisboa.
7
Umberto Cassuto, Biblical and Oriental Studies, citado em (Neusner, 2004, pp. 32-33)
A Relação da Historiografia do Antigo Israel com o Tempo ‫םֹוי‬

Na caraterização feita acima acerca da historiografia e nas leituras acerca do tema encontramos sempre
o pressuposto que o passado é longo e realizado, mas também que o passado traz poder sobre o
presente.
Nas leituras de Jacob Neusner e Gershon Brin a conceção de tempo no âmbito da Bíblia Hebraica é
discutida em duas obras importantes: The Idea of History in Rabbinic Judaism e The Concept of Time
in the Bible and the Dead Sea Scrolls.
A leitura das suas obras influenciou e aprofundou a minha perceção deste conceito tão importante e
necessário para o desenvolvimento da nossa investigação.
A noção do tempo permite-nos reconstruir a historiografia dos escribas e através das nossas
ferramentas apurar a essência de forma a conceber uma historiografia aprofundada.
O poder que o passado tem sobre o presente assume um papel explicativo, explica o caráter do presente
e estabelece escolhas que confrontam aqueles que olham para o futuro.
Aquilo que o pensamento histórico moderno assume como um dado adquirido é que o passado finda
onde o presente começa. O presente representa um momento de espera e decisão face ao futuro, que é
outra realidade á parte.
O passado não forma uma presença no aqui e agora, apesar de muito do que acontece no presente
encontra as suas origens no passado. O presente não recapitula o passado, não diferenciado e
totalmente integrado. Ao contrário do que era antes, existe o que é agora, e isto ensina-nos uma
conceção muito diferente do tempo.
Ou seja a historiografia israelita bíblica oficial, fala do passado, presente e futuro delineando
claramente os limites que os distinguem. Mas ao mesmo tempo aponta cuidadosamente as ligações
ordenadas entre os passados, presentes e futuros. Especificamente a história de Israel, que engloba a
criação do mundo, começando no Éden e a queda da humanidade. Começando outra vez com Abraão
e a formação de Israel e conclui com a queda de Israel da sua terra (Neusner, 2004, p. 31).
Deteta-se aqui um paradigma diferente do linear, existe um paradigma do tempo cíclico representado
pelos padrões temáticos repetitivos da narrativa histórica.
Nesta discussão importante entre a relação do tempo com a historiografia do Antigo Israel surge uma
questão fundamental às leituras judaicas e cristãs feitas à escritura. E também à leitura do historiador
aos mesmos textos.
O pensamento histórico pressupõe uma linearidade dos eventos, um senso para os assuntos
teleológicos. A linearidade pressupõe previsibilidade, regularidade, ordem – contradizendo a
imprevisibilidade do mundo civilizacional.
A religião tem presente o fracasso da lógica linear, com as suas regularidades e certezas e dispensa
categórica do caos. A leitura da escritura feita pelo judaísmo postula em vez disso um mundo que pode
ser comparado às formas fractais na linguagem matemática8. Estas formas fractais podem ser
classificadas como paradigmas, modelos ou padrões, sendo aqui que se incide o conflito entre o caos
e a ordem.
Estes fractais ou paradigmas conseguem descrever a forma como as coisas são, hoje, num passado
distante ou num futuro inimaginável. O pensamento fractal encontra repetições sem levar em conta a
escala, do pequeno ao grande. Assim no caso de eventos o pensamento fractal possibilita a busca de
alguns padrões específicios, que serão utéis a situações particulares. Como reconhece o caos e isola os
pontos de regularidade e reincidência, descreve e analisa, para que os possamos interpretar de outra
forma.
Entre a profecia e o seu cumprimento, a lógica linear é ao mesmo tempo uma lógica cíclica e por vezes
fractal, todas coexistem num paralelismo singular ao longo da historiografia bíblica.
Esta singularidade da historiografia bíblica ilustra-se no tema do êxodo, existe uma noção de expulsão
e de retorno, desde o princípio da sua narrativa.
Para fundamentar esta leitura será necessário identificar uma polaridade existente entre duas estruturas
conflituantes da presença divina, quando o humano se aproxima de uma polaridade é expulso para a
outra.
Uma das estruturas apresenta Deus como um ser localizável, conhecível e utilizável9, a outra estrutura
reconhece Deus como um ser sobrenatural incognescível, perigoso, desapegado de qualquer habitação
e estranho ao ser humano.
Uma polaridade evoca as palavras de Moisés em êxodo 33:18, “Moisés disse ainda: rogo-te que me
mostres a tua glória (corpo, kabod)”; a outra representa a resposta dada por Deus em êxodo 33:20
“porquanto nenhum homem pode ver a minha face e viver”. Várias das narrativas históricas expressam
uma teologia de presença divina e até uma ideologia de espaço sagrado. Estas narrativas também
deconstroem estes conceitos, surge primeiro a noção de expulsão dando a entender que ela precede a

8
A analogia do pensamento fractal para descrevermos uma leitura paradigmática do tempo, apresenta-nos uma
certa racionalidade como Jacob Neusner apresentou: (1) a admissão de caos nos dados na ordem de que foram
selecionados (2) a demissão considerações de escala (3) a insistência que poucos padrões específicos são tudo
o que temos, mas que servem para uma variedade de circunstancias e podem ser descritos de uma forma
confiável e previsível.
9
O humano pode aproximar-se do divino, e até influênciá-lo com os rituais apropriados.
noção de casa contra a qual está definida. Esta expulsão pode ser a remoção geográfica como por
exemplo no caso dos exílios, ou pode ser a morte no caso do filho de Aarão morto no altar ou os
homens que tocaram na arca da aliança.
Este fio de rumo subliminar na narrativa histórica parece-nos original, mas é normal, considerando
que a chegada ao lugar prometido, deve ser constantemente adiada.
A natureza locomotiva do tabernáculo e o desastre que teve lugar no momento da sua dedicação
sugerem que o Deus que pertente ao tabernáculo, não pertence realmente àquele lugar, a sua presença
é uma forma de exílio.
Este tema cíclico na historiografia do antigo Israel sugere-nos a relação que os seus historiadores
tinham com o tempo. O tempo era linear para os humanos mas cíclico para o divino, o passado é
cuidadosamente distinguido do presente, o presente aponta para o futuro mas o futuro é concebido
como um reino autónomo de ser.
O tempo é assim sequencial e diferenciado, por isso de Génesis até Reis a história é contada de forma
coerente. Um passado que se diferencia do presente ainda assim ligado a ele, originando um futuro
que pode ser concebido fora das linhas de ordem estendidas para lá do momento presente.
A história padrão estabelecida pela escritura responde a um momento específico de recurso para o que
era portanto a sua razão e, além disso, explica esse mesmo momento por prognóstico sobre aquilo que
vai ser. As lições do passado explicam o presente e ditam a forma do futuro. O atual estado das coisas
é o elemento central de interesse (Neusner, 2004, p. 35).
Síntese
Pensar historicamente no modelo da Escritura é reconhecer a memória do passado, a diferença entre o
presente e o passado e o conjunto linear de linhas teleológicas que orientam para o futuro percebido.
No fundo este modo de pensar organiza a experiência apelando à forma como as coisas têm sido
explicadas, de como são agora e como irão ou deveriam ser.
Ao longo desta leitura e escrita histórica o pensamento hebraico fez uso de vários recursos mentais
específicos como um tempo para lá dos tempos, caótico e magnético, que inicia e conclui vários
cíclicos.
1. Caraterização do espaço geográfico da história do antigo Israel

Antes de analisarmos as fontes existentes para uma possível reconstrução da historiografia religiosa
do Antigo Israel, torna-se necessário descrever o panorama geográfico e cronológico que originou
essas fontes.
O estudo das fontes literárias bíblicas pode ser enriquecido pelo conhecimento da sua geografia e do
seu contexto social (Rogerson & Davies, 2007, p. 3).
Sendo que o propósito desta caracterização é tornar possível uma leitura das fontes dentro dos seus
contextos espaciais, sociais e temporais a fim de iluminar toda a dinâmica sócio-religiosa dos espaços
bíblicos.
O argumento central deste trabalho é aferir até que ponto a viabilidade destas fontes nos seus devidos
contextos, poderão fornecer-nos uma imagem viva das práticas e crenças religiosas do antigo Israel.
Esta imagem de um remoto passado será reconstruída com todas as dificuldades, limitações, cuidados
e percalços. A fim de nos fornecer um possível cenário do judaísmo primitivo. Este judaísmo primitivo
como termo empregue neste trabalho será o compêndio de várias buscas pelos traços, raízes e origens
que formaram a crença religiosa expressa no Antigo Israel.
1.1 O Espaço Geográfico
“Ora, o Senhor disse a Abrão: sai-te da tua terra, da tua parentela, e da casa de teu pai, para a terra que
eu te mostrarei.” (Génesis 12.1)

Figura 1 (Curtis, 2007)


A terra de Canaã

A terra peregrina designada na bíblia como Canaã seria o lugar para onde Abrão migraria, torna-se
mais tarde o palco histórico do Antigo Israel (Gottwald, 1988).
O antigo Israel desenvolveu-se historicamente neste território conhecido por terra de Canaã, também
chamado de Israel ou Palestina. Foi nesta área com não mais de 150 milhas de norte a sul e 75 milhas
de oeste a leste, que a maior parte da bíblia hebraica foi redigida e onde a maioria dos seus relatos
aconteceram.
Quando falamos na geografia de Canaã falamos de uma geografia histórica, mas também falamos de
uma geografia teológica.
Em termos gerais este território insere-se num espaço delimitado por traços geográficos bem definidos.
A norte, o seu território é fértil para cultivo sendo um corredor estreito de vales e montanhas. Que
possibilita a comunicação terrestre com a Mesopotâmia. Nos seus limites a sul, localiza-se o deserto
do Negueve, que possibilita a comunicação terrestre com o Egito, uma vez que se estende rumo ao
deserto do Sinai. A oeste localiza-se o mar mediterrânico, constituindo uma porta portuária de acesso
ao território e a leste situa-se o deserto da Arábia.
O território que vamos examinar forma do ponto de vista ecológico, étnico e linguístico, parte da Síria.
Podemos então distinguir entre uma “grande Síria”, compreendida nos territórios atuais do Líbano,
Israel e Jordânia e uma Síria no seu contexto geográfico atual (Soggin, 1997).
Esta “grande Síria” localiza-se historicamente na zona do Crescente Fértil, o termo designa um espaço
geográfico em forma de lua crescente, que é extremamente fértil em relação às regiões desérticas que
a confinavam. O Crescente Fértil tinha nas suas extremidades a leste a oeste terras10 que foram regadas
por dois grandes rios, o Tigre e o Eufrates, na Baixa Mesopotâmia e o rio Nilo no Egito. A parte central
deste “Crescente” compreende em grande parte a Alta Mesopotâmia e a faixa costeira oriental do mar
mediterrânico, baseando-se principalmente na chuva para a sua fertilidade (Curtis, 2007). Esta
perceção de terra fértil é de extrema importância para compreendermos o pano de fundo de algumas
tradições bíblicas. Onde nómadas são comumente retratados como viajantes envolvidos no comércio
ou na procura de novas áreas onde se pudessem estabelecer, seria necessário à sua sobrevivência
manterem-se em terras férteis e evitarem os desertos.

10
Estas terras passavam pelas inundações anuais dos seus rios.
Figura 2 (Aharoni, The Land of the Bible, 1979)
Assim a história de Abraão foi contada por alguém que estava perfeitamente ciente desta realidade, a
personagem sai de Ur11 com rebanhos e manadas para um dia se tornar Israel, não iria viajar pelo oeste
através do deserto. Mas seguiria o rio Eufrates em direção a Harã, antes de viajar a sul ao longo da
costa do mediterrâneo12.
A Ur dos Caldeus é no Iraque atual um dos seus patrimónios mais antigos e importantes, a investigação
académica deu-nos a possibilidade de aferir que Ur floresceu há mais de 5 mil anos (Crawford, 2015).
Por muito desse tempo, foi um importante centro político e económico, devido à sua posição geográfica
na cabeça do Golfo Pérsico. Isto permitiu a Ur controlar uma das mais importantes rotas comerciais
do mundo antigo, que traziam metais e muitos outros bens do interior da Mesopotâmia. A riqueza da
cidade torna-se evidente pelos monumentos e artefactos recuperados do local das escavações
(Crawford, 2015).
O norte-oeste do rio Eufrates ligava Ur ao coração da Anatólia, tornando-o assim um dos lugares mais
estratégicos para as primeiras cidades. Na bíblia a cidade aparece referenciada como o lugar onde
Abrão nasceu13, como acima referi este foi o ponto de partida para a sua migração.

11
A adição “terra dos Caldeus” prevê uma localização no sul da Mesopotâmia ver página 15 (Curtis, 2007).
12
Ver Génesis capítulo 11:31-32
13
Ver Génesis capítulo 11:8-31
~

Figura 3 (Crawford, 2015)


Como verificamos na figura 3, a peregrinação relatada pelo livro de Génesis, só poderia ter sido
possível em termos de empreendimento, se Abrão viajasse ao longo do Rio Eufrates em direção a Harã.
De igual modo os exércitos das potências regionais como o Egito ou a Mesopotâmia iriam seguir o
Crescente Fértil. A faixa costeira mediterrânea a leste era uma ponte de terra entre três continentes:
África, Ásia e Europa. Assim o controle deste território como mais a frente iremos abordar no seu
contexto geopolítico e económico, era de grande importância comercial e estratégica14.

1.2 Ambiente e Ecologia


“e desci para o livrar da mão dos egípcios, e para o fazer subir daquela terra para uma terra boa
e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel;” (Êxodo 3:8)

O levante situado nas costas orientais do mar mediterrânico é uma terra pequena em termos de área
geográfica, mas grande na sua diversidade ecológica (Golden, 2009). A sua paisagem física
desempenhou um papel crucial na história dos povos que habitaram esta região por milénios. A área

14
Por exemplo passagens como 2 Reis 23:28-29 descrevem a morte do rei Josias, num contexto geopolítico, em
que a marcha para norte de um faraó egípcio para assistir ao militarmente o rei assírio contra a ameaça do
império Babilónico.
predominante dos povos mencionados na passagem de Êxodo era o sul – o levante do sul – as terras
onde nos dias modernos situa-se Israel, o Sinai e a Transjordânia (Golden, 2009).
O Levante do sul é delimitado a norte pelo rio Litani, a leste pelo vale do Jordão, a sul pelo Golfo de
Aqaba e a oeste pelo mar mediterrânico e o deserto do Sinai. É atravessada pelo norte de África e pela
Ásia, criando assim um corredor entre estes dois continentes. As descrições da região oriundas das
fontes históricas retratam terras abundantes com recursos alimentares. Por exemplo na bíblia temos
várias referências especialmente no Pentateuco da comida produzida em Canaã “grão, mosto e
azeite”15.
Outra faceta importante na cultura histórica desta região é a sua posição central relativamente a um
mundo muito mais amplo do Mediterrâneo e do Médio Oriente. Desde o início da Idade do Bronze é
seguro afirmar que todos os grupos culturais que viriam a habitar o Levante do Sul foram influenciados
pelos grandes estados emergentes tanto a sudoeste como a nordeste nomeadamente: Egito, Síria e
Mesopotâmia (Golden, 2009). De acordo com o autor (Golden, 2009) há medida que a etnicidade
tornou-se uma questão cada vez mais importante, pelo menos visível aos arqueólogos, o mosaico
humano deste território tornou-se complexo. Na Idade do Ferro a terra já estava dividida pela Palestina,
Fenícia, os reinos de Judá e Israel, Edom, Amón e Moabe entre outros.

1.2.1 Paisagem Física

A região da antiga Canaã e Israel, a Palestina terra do mundo bíblico, é rodeada em três lados por
fronteiras naturais: a oeste localiza-se o mar mediterrânico, a este e a sul o deserto. A fronteira mais
permanente é o mar no oeste. O deserto servia nos tempos em que a Transjordânia foi ocupada como
uma fronteira oriental. Quando a Transjordânia tornou-se uma região instável, um pasto para os
nômadas do deserto, o vale do Jordão e o mar morto formaram a fronteira oriental natural da Palestina
ocidental.
Como referiu na sua obra-mestra em geografia histórica das terras bíblicas (Aharoni, 1979) o deserto
não é uma fronteira clara e permanente como o mar. Pelo contrário é bastante dinâmica, avançando ou
recuando conforme a habilidade expansiva das populações. Nunca existiu a necessidade de se fixarem
fronteiras precisas no oriente por causa das vastas expansões de desérticas, para lá de qualquer controle
governamental (Aharoni, 1979).

15
Ver Deuteronómio 14:23
Já a nível do sul o Egito era uma potência próxima, e o importante “caminho do mar” 16, passava por
esta região. Desta forma sempre existiu uma necessidade de determinar as fronteiras entre a Palestina
e o Egito, especialmente a nível costeiro. Os limites sulistas da população não eram reconhecidos como
fronteira nesta área porque as cidades fronteiriças dominavam grandes expansões no Negueve. As
próprias fronteiras destas zonas povoadas não eram por si só fixas, mas moviam-se de acordo com as
circunstâncias alguns quilómetros para o norte ou para o sul (Aharoni, Avi-Yonah, Rainey, & Safrai,
1998).
Estas circunstâncias deviam-se às especificidades desta terra, a região a norte e as zonas montanhas
eram abundantes em recursos hidráulicos. Mas a maior parte do levante do sul encontrava-se nas
margens da terra semiárida, nestas áreas a mínima alteração climática poderia ter um impacto imediato
na subsistência das populações (Golden, 2009).

1.2.2 O Clima a Flora e a Fauna

O clima geral do Levante do Sul durante os tempos antigos não é diferente do tempo atual, as
evidências paleo ambientais17 sugerem uma série de fases de seca, interrompidas por períodos ricos
em humidade.
O clima da Palestina é assim influenciado pela configuração do território, a sua proximidade do mar a
oeste e a proximidade do deserto a este. Apesar do território apresentar uma varidade climatérica,
existem no geral duas grandes estações (Curtis, 2007, p. 29).
O inverno18 (que quase inclui o outono e a primavera) podemos caraterizá-lo como uma estação
bastante chuvosa de baixa temperatura. E o verão tende a ser longo, sem chuva e bastante quente, esta
secura do verão é aliviada pelo orvalho, importante para o amadurecimento dos frutos de verão 19.
Existe uma grande variabilidade nos padrões de chuva entre as sub-regiões no regime climático atual,
que parece ter sido também o mesmo do passado (Golden, 2009, p. 17). Os ventos preodominantes
surgem do oeste, direção do mar, vindo as chuvas dessa direção. As nuvens precipitam-se assim nas
encostas ocidentais das colinas, não chovendo tanto nas encostas orientais (Curtis, 2007, p. 29).
Isto ilustra no geral a tendência da precipitação diminuir à medida que se vai de norte para sul, o texto
bíblico refere-se por exemplo a chuvas anteriores e a chuvas posteriores 20. As chuvas que vêm mais
cedo surgem no outuno e iniciam o ano agrícola, onde o arar a terra é feito à chuva. O arado é facilitado

16
Grande rota de comércio internacional
17
Referidas em (Golden, 2009, p. 17)
18
De Novembro até Março
19
Ver referência em Juízes 6:36-40
20
Ver referência em Deuteronómio 11:14
porque o solo é amolecido, compreendemos assim porque é que os israelitas tinham um calendário
outonal (Curtis, 2007, p. 31).
Como referi as primeiras chuvas (yoreh) vinham em outubro, amolecendo o solo, facilitando assim a
semeadura e a plantação. As principais chuvas, cerca de 70 por cento do total, caiam de dezembro a
fevereiro, a estação terminava com as chuvas tardias (malqosh) que amadureciam as colheitas
(Rogerson & Davies, 2007, p. 11).
Se 70 por cento da chuva estava concentrada em três meses, torna-se claro que a chuva era pesada, a
chuva no tempo apropriado era assim vista como uma bênção de Deus21.
A nível da flora podemos dividir o sul levantino em quatro grandes zonas climáticas: a zona húmida
mediterrânica, a zona semi árida irano-turaniana, a zona desértica árida saharo-arábica e a zona
desértica tropical sudanita.
A zona húmida mediterrânica no norte tem uma vegetação densa devido à grande quantidade de chuva
anual que recebe. Caraterizava-se pelas suas florestas densas de carvalhos, pistache e alfarrobas que
cobriam as zonas altas na antiguidade (Golden, 2009, p. 21).
Oliveiras e vinhas eram também cultivadas nesta área, sendo uma das zonas mais férteis da Palestina.
A zona semiárida irano-turaniana e a zona desértica do sahara-arábico têm uma vegetação limitada
devido à pouca chuva anual. A quarta zona tropical era composta por pequenos oásis de vegetação
limitada e densa (por exemplo palmeiras), criadas por fontes naturais. Um exemplo de fontes naturais
é encontrado em Jericó (Golden, 2009, pp. 21-22).
Sabemos que a agricultura na Palestina dependia da chuva e não da irrigação (como a civilização do
Egito e da Mesopotâmia desenvolveram). Por um lado isto tinha a vantagem de não ser necessário
esforço humano para irrigar a terra22, por outro lado se não houvesse chuva as colheitas seriam
desastrosas (Curtis, 2007, p. 31).
As três principais colheitas eram o grão, o vinho e o óleo (Joel 2:19), em Deuteronómio 8:8 é indicada
uma lista dos principais produtos produzidos na terra. Nos campos de cultivo o mais importante eram
os vários tipos de cereais, como o trigo e a cevada. Que eram usadas para fazer pão e no caso da cevada
para a preparação da cerveja. Os frutos mais importantes eram as uvas, usadas principalmente para a
produção de vinho e a azeitona que produzia azeite. Outros frutos como os frutos e as romãs também
são mencionados (Curtis, 2007, pp. 31-32).

21
Ver -Levitico 26:4.
22
Ver Deuteronómio 11:10-12
1.3 O Contexto Geopolítico e Económico do Território

A palestina ocupava uma importante posição geopolítica como uma ponte entre as terras do Crescente
fértil e a civilização do Egito (Aharoni, Avi-Yonah, Rainey, & Safrai, 1998, p. 12). Qualquer
comunicação entre o Egito e os reinos do Crescente Fértil passavam necessariamente pela Palestina,
sendo esta uma espécie de canal de comunicação entre as diferentes culturas e civilizações.
Por esta estreita faixa terrestre entre o deserto e o mar Mediterrâneo, passaram povos, exércitos e
caravanas comerciais que circulavam entre a Mesopotâmia, a norte, e o Egito, a sul.
Existiam três grandes rotas da antiguidade que contornavam as margens do deserto e terminavam em
portos das costas do Levante.
A primeira rota proveniente da Arábia cruzava a Palestina em direção ao Mediterrâneo, por onde eram
transportados, em caravanas, o incenso e a mirra da Arábia. A segunda rota começava na Babilónia no
Golfo Pérsico e seguia sempre por terra, para Palmira no norte, daí seguindo para oeste em direção a
Antioquia terminava no porto de Selêucia na zona da alta Síria. A terceira rota, a mais longa, era a
Rota da Seda da China, começava em Loyang na China, atravessanto um longo percurso pela Pérsia
até chegarem à costa mediterrânea, através de Palmira na alta Síria.

1.4 A Geografia Teológica

A terra no texto bíblico é representada como um simbolo importante, começando com a história de
Abraão em Génesis 12:1-8. O patriarca abandona a sua terra rumo a uma terra prometida a si e aos
seus descendentes (Génesis 13:14-18). A terra foi alterando a sua significância ao longo dos textos
bíblicos, mas foi sempre o espaço onde os israelitas viveram na presença de Deus.
Como a Bíblia Hebraica é uma antologia, os seus escritores apresentam diferentes visões da terra e a
da relação de Israel com a terra. Uma das visões encontradas nos textos bíblicos de vários períodos,
afirma que a terra percente a Javé e que esta a entregou aos israelitas. Por causa desta ligação a Javé a
terra adquiriu um cárater sagrado, é uma “terra santa” (Zacarias 2:12), constrastando-se de outras terras
impuras (Amós 7:17) (Coogan, 2012, p. 26).
A própria terra designa a sua capital Jerusalém de Sião, dando-lhe o estatuto especial de ser o lugar
onde Javé decidiu habitar (Ezequiel 38:12), “o centro das nações” (Ezequiel 5:5).
2. As Fontes Literárias

No âmbito deste trabalho o propósito da análise das diversas fontes literárias do antigo Israel tem como
objetivo compreender o contexto em que estas fontes surgiram. Na medida em que compreendendo o
contexto, possamos fazer uma releitura das fontes e apurar quais são as mais ‘criticas’ para a redação
de uma historiografia moderna.
Existe também o propósito de entender a diversidade das práticas e crenças religiosas relatadas nestas
diversas fontes, no fundo tentar compreender a história da crença e como esta se desenvolveu no
interior deste corpo literário23.
Quando se trata de fontes literárias do antigo Israel existe um consenso entre os estudiosos modernos
da bíblia, de que a maior parte dos livros da Bíblia Hebraica, como muitas composições literárias do
antigo Médio Oriente, são antologias de textos e tradições mais antigas. Estas antologias chegaram até
nós por meio de editores anónimos, que em certas circunstâncias fizeram acréscimos substanciais aos
textos e às tradições (Sommer, 2009, p. 9).
A grande questão colocada como ponto de partida para a história de Israel é nas palavras de (Soggin,
1997, p. 41) em que circunstâncias, onde e quando nasceu o povo que na Bíblia intitula-se Israel?
Conforme várias obras históricas (Soggin, 1997, pp. 41-71) (Wellhausen, 1957, pp. 1-13) (Rendtorff,
1997, pp. 177-189) acerca do antigo Israel afirmam, os estudiosos têm-se deparado com várias
dificuldades no que toca a historicidade dos relatos bíblicos. Isto porque estes relatos foram escritos
muito tempo depois das personagens neles retratadas terem existido.
A história relatada na bíblia hebraica teve no seu sentido uma direção mais teológica e política do que
propriamente histórica. A imagem mais antiga que temos de Israel no seu período pré-exilico e mais
remoto24 foi profundamente influenciada, pela releitura e redação das tradições feita no seu período
pós-exilico (Soggin, 1997, p. 50).
A Bíblia Hebraica como chegou até nós, é em grande medida um produto próprio do pensamento e da
obra do período pós-exilico de Israel. Contudo não se pode tratar este corpo literário de forma simples,
afirmando apenas a existência de uma ideologia na criação desta obra literária. Espero que neste breve
estudo possa expor alguns argumentos pertinentes, para uma maior compreensão das fontes literárias
do antigo Israel.

23
O corpo literário do Antigo Israel que será analisado neste trabalho abrange a Bíblia Hebraica.
24
Era dos Patriarcas e dos Juízes
2.1 Metodologia

Antes de analisarmos as várias fontes escritas e tradições, devemos traçar um método de estudo
histórico, que nos permita ultrapassar as questões iniciais do método da crítica da fonte histórica. Não
é na autenticidade autoral dos documentos que iremos resolver a nossa problemática, nem na sua data
de composição. Influenciado pela obra de (Toorn K. V., 2009) creio ser mais adequado contextualizar
historicamente o processo de produção e transmissão destas fontes. Por outras palavras procurar
desenvolver uma perceção histórica da perceção destes autores e das audiências dos seus textos.
O método consiste então em ler as fontes escritas a partir do mundo que as produziu, o mundo histórico
dos escribas de Israel.
Quem eram estes escribas? Podemos historicamente reconstruir os seus métodos, práticas e crenças?
A história de Israel começa com os seus autores, os escribas de Israel.
É incrível pensarmos como é que uma cultura oral como a de Israel, conseguiu deixar ao mundo um
legado literário que tem inspirado gerações ao longo dos séculos.
Este legado literário foi criado e produzido por uma elite profissional, uma cultura escriba ligada ao
templo de Jerusalém (Toorn K. V., 2009, p. 1). Como veremos ao longo desta breve análise os
conceitos de autoria no mundo antigo, e as condições de produção textual eram bastante diferentes
daqueles que hoje tomamos como referência para a nossa realidade. Os estudos modernos preocupam-
se com a autenticidade dos textos, e dos autores a quem os textos são atribuídos. Procurar separar a
verdade do mito, poderá tornar-se uma tarefa exaustiva e pouco produtiva no âmbito histórico.
Principalmente se abordarmos estes textos num prisma moderno, não tendo em conta o prisma
daqueles que o escreveram.

2.1.1 A autoria no mundo bíblico

Falando da noção de autoria sabemos que na Idade Média a principal função da academia em todos os
grandes centros de aprendizagem da Europa, era a transmissão e a perpetuação de um corpo de
conhecimento antigo, não existindo espaço para a inovação. Este corpo literário composto pelas
grandes obras clássicas dos gregos e romanos e os clássicos teológicos da Igreja eram tratados com
grande estima nestes centros.
Com o surgir das ciências naturais e o criticismo histórico do século dezasseis, todo este sistema
começou a ser desafiado. Desde esse momento até ao tempo atual a inovação e a nova verdade não são
mais baseadas na antiga tradição “canónica” (Seters J. V., Author or Redactor?, 2007, p. 2). Foi no
final do século dezoito, através do século dezanove que surgiu o grande florescer deste novo espirito
de “carisma académico” (Clark, 2006). Caraterizado não por uma mera transmissão da tradição antiga,
mas por trabalhos que refletiam criatividade, originalidade e individualidade, a pessoa do autor estava
naquele trabalho.
Estes tornaram-se na nossa cultura os atributos principais para falarmos de autoria, todos os autores e
artistas estão sujeitos a esta perspetiva romancista. Com estes ideais em mente muitos trabalhos da
antiguidade foram julgados e avaliados dentro destes parâmetros para ver se correspondiam a estas
ideias.
Surge aqui então o problema na abordagem das fontes literárias da antiguidade, mais concretamente
as do Antigo Israel.
Na antiguidade os leitores preocupavam-se com a autoridade dos livros, esse era o enfoque, não a
autenticidade mas a autoridade que provinha da antiguidade dos nomes a quem a obra era atribuída.
O autor de uma obra da antiguidade era um escriba anónimo, treinado e financiado por uma instituição
social. A conceção que surge na Era Romântica de autor é completamente anacrónica à ideia de autor
ou redator no contexto bíblico de autoria.
A essência da maior parte da obra dos autores da antiguidade baseava-se na coleção reunida de
tradições orais. Estes escribas preservavam estes escritos, dando-lhes uma forma familiar aos textos
que hoje encontramos na Bíblia hebraica. Esta forma tem um sentido de coesão e continuidade,
especialmente em relação às representações do passado25. A literatura da Bíblia hebraica é anónima,
nos tempos da sua redação o texto era tudo o que importava, o elemento essencial, sendo considerado
a fonte de verdade e sabedoria (Seters J. V., Author or Redactor?, 2007, p. 5).
Para propósitos de análise o trabalho literário anónimo não é necessariamente diferente de um trabalho
redigido por um autor conhecido. A ausência de um “nome” autêntico não torna a escrita diferente no
seu modo de composição, de um trabalho de autoria verificável. Pode porém afetar a receção do
trabalho e a sua interpretação. Os escribas redigiam trabalhos literários pseudónimos com o objetivo
de influenciar a sua receção. Tomemos como exemplo o livro de Deuteronómio, apesar do seu autor
ou (autores) permanecerem desconhecidos para nós, o livro tem a reputação de ser as palavras escritas

25
Existe uma continuidade e coesão no sentido em que estes escribas usaram os materiais tradicionais para
criarem novas composições, que pudessem dirigir-se às questões do seu tempo. Eles não eram somente editores
ou redatores, eram acima de tudo escritores (Seters J. V., Author or Redactor?, 2007, p. 7).
de Moisés26, de forma a reivindicar maior autoridade. Como acima referi a autoridade das obras
literárias baseava-se na antiguidade dos seus “autores”, os nomes a quem a obra era atribuída.
A noção de autor como artista individual é um legado do movimento romântico (Toorn K. V., 2009,
p. 27), esta ideia é tão familiar que tem sido aplicada aos ‘autores’ bíblicos.

2.1.2 O livro moderno e o Pergaminho do antigo Israel

Outra questão importante no tratamento das fontes literárias é a noção de Bíblia, a bíblia é um livro,
ou um conjunto de livros? Esta questão é importante uma vez que o livro é uma invenção helenística,
antes desse período, existiam pergaminhos, rolos e placas uniformes. As primeiras escrituras foram
escritas em placas e pergaminhos, a condição da produção escrita era limitada, uma vez que os custos
de produção eram extremamente elevados.
Estas escrituras eram compilações de tradições orais, livros como Levítico, Salmos ou Provérbios são
exemplos perfeitos disto. Tratam-se de compilações de regras, rituais, liturgias, cânticos e orações.
Estas unidades literárias separadas são unidas por um género literário, um protagonista ou um possível
autor. Os livros da bíblia não foram escritos com o propósito de serem lidos como unidades, antes
eram arquivos de tradições (Toorn K. V., 2009, p. 16).
Existe outro aspeto na escrita do antigo Israel que ilustra o facto de que os livros da bíblia não podem
ser vistos como livros no sentido moderno da palavra. O formato dos nossos livros remonta ao códice,
inventado na antiguidade tardia. Em 300 E.C. o códice tornou-se tão comum como o pergaminho e foi
ganhando predominância sobre os pergaminhos que começaram a diminuir. As edições modernas da
bíblia estão não forma de um livro, no período do Segundo Templo, a bíblia era uma coleção de
pergaminhos e não um códice. Mesmo que pensemos que isso é irrelevante uma vez que se trata apenas
de uma configuração física, a nível de análise histórica levantam-se três observações importantes
(Toorn K. V., 2009, pp. 21-23).
(1) Os escribas eram treinados para escrever frases a partir da memória, antes de as colocarem no
papiro. O pergaminho servia de repositório para um texto completo.
(2) O uso de pergaminhos de papiro como material de escrita tinha várias consequências para o
seu conteúdo escrito. Primeiramente a questão do espaço para o texto, se o texto fosse
excedesse o espaço era necessário outro pergaminho. Por isso hoje temos os dois livros de
Samuel, Crónicas e Reis na bíblia, o mesmo acontece no inverso com outros livros. Os escribas

26
“Além do Jordão, na terra de Moabe, Moisés se pôs a explicar a lei e disse:” Deuteronómio 1:5
por propósitos económicos escreviam um grande número de composições mais pequenas num
pergaminho. Temos o exemplo dos doze profetas menores. Estes exemplos de divisão e
combinação ilustram alguns dos procedimentos dos escribas que estão por detrás de outros
livros da bíblia.
(3) Um pergaminho não é um livro, para nós os livros não são apenas trabalhos de entretenimento,
instrução e meditação, são também obras de referência. Nós académicos precisamos de citar as
obras de referência dos assuntos que estamos a tratar, apresentamos um autor, título e página.
Um pergaminho dificilmente serviria como fonte de referência ou citação, o pergaminho servia
como um espaço onde o texto era depositado, para uso diário, as pessoas consultavam as suas
memórias.
Portanto como referi a diferença na apresentação dos textos afeta o modo de escrever, editar e compor,
acima de tudo afeta e influência a maneira como o leitor lê o texto.
Muitas das observações feitas às fontes transportam consigo a suposição de que cada livro deve ser
analisado como um todo num plano mais abrangente que se reflete por todas as escrituras “canónicas”.
De facto o que existiam eram pergaminhos, consultados para exposição oral, não uma bíblia
canonizada em formato moderno.
Para iniciarmos então a nossa breve análise, deste rico mundo literário, iremos explorar as raízes da
árvore, não nos fixando nos seus ramos.
A historiografia das fontes escritas que formam a Bíblia Hebraica encontra-se na história dos escribas
por detrás da Bíblia.

2.2 A Escrita no mundo da bíblia

O mundo bíblico era constituído por povos de tradição oral, contudo podemos considerar estas
sociedades como no caso do antigo Israel de sociedades literatas. Podemos definir literacia como a
capacidade de ler ou escrever a um número de níveis diferentes (Macdonald, 2005, p. 49). Na
antiguidade as sociedades podiam ser literatas, porque usavam a palavra escrita nalgumas das suas
funções vitais, apesar da maioria da população não saber ler nem escrever. Uma sociedade oral não
necessita de literacia para as suas atividades, a memória e comunicação oral realizam as mesmas
funções que a escrita e a leitura têm numa sociedade literata.
Existem vários indícios de atividade escrita na sociedade israelita, sendo que os registos mais antigos
remontam à Idade do Bronze (Rollston, Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew
Epigraphic Evidence , 2006, p. 1).
A literacia era reservada a grupos de elite, escribas e sacerdotes, assim como alguns funcionários de
cargos administrativos. A maioria da população não sabia ler nem escrever, os textos eram escritos
predominantemente para serem apresentados oralmente. O verbo nativo “ler” em hebraico (‫אָ ָרק‬
[qara]) significa ler em voz alta, declamar, proclamar. Este verbo reflete a maneira como os textos
eram utilizados. Os documentos escritos eram lidos em voz alta, tanto em público como em privado
(Toorn K. V., 2009, p. 12). Em Israel as composições escritas não eram produzidas para a leitura
privada. Os textos escritos chegavam à sua audiência através da entrega oral de o orador, se os profetas
escreviam ou tinham um escriba que escrevesse a sua mensagem, esta alcançava a sua audiência
através de leituras públicas (Toorn K. V., 2009, p. 13).
O profeta Habacuque recebeu a ordem de escrever a sua profecia de modo a que um arauto pudesse
espalhar a sua mensagem.

“Escreve a visão, e torna-se bem legível


sobre tábuas, para que a possa ler quem
passa correndo.”
Habacuque 2:2

Na sua publicação recente, Susana Niditch concluiu que a escrita israelita situava-se num contexto
oral27. Existia uma interação entre literacia e oralidade nas culturas da antiguidade, a autora apresentou
quatro modelos para a “génesis da Biblia Hebraica”:
(1) A declamação oral é ditada a um escriba que preserva o texto num arquivo, criando assim um
registo fixo daquele evento.
(2) A cristalização lenta das tradições literárias pan-israelitas que através de muitas exibições
públicas ao longo dos séculos de contos e épicos pan-israelitas para audiências com certas
expetativas e suposições sobre a identidade do grupo compartilhado. Mais tarde neste processo
os escribas escreveram estas histórias partilhadas.
(3) Surge nesta etapa uma imitação escrita do estilo literário oral, criando-se assim porções da
tradição.
(4) Por fim nesta etapa existe já a produção de um texto escrito retirado de outros textos escritos,
por um escriba hábil que edita ou reformula o texto de acordo com a visão da identidade
israelita que o seu grupo perceciona.

27
Nidcht, S.(1996) Oral World and Written Word: Ancient Israelite Literature. Louisville: Westminster/John
Knox
As composições escritas tendo por base fontes escritas, nesta fase inicial, nunca deixaram em Israel de
serem influenciadas por uma mentalidade “oral”. Por exemplo o livro de Crónicas é baseado em
Samuel e Reis, mas não os desloca ou substitui como seria de esperar numa cultura de mentalidade
literária. Hoje por exemplo ao escrevermos um trabalho historiográfico, temos a tendência de substituir
ou deslocar para áreas mais periféricas as historiografias que consideramos incompletas.
A mentalidade oral era diferente da nossa nesse aspeto, os escribas do antigo Israel não copiavam
apenas os textos palavra por palavra. Eles preservavam o significado dos textos para o período de
vigência das suas comunidades, da mesma forma que os cantores de épicos cantavam os seus textos,
trazendo dinamismo para as suas comunidades. Neste sentido o escriba israelita não era um mero
copista mas também um executante da palavra oral (Raymond F. Person, 1998, p. 602).

2.2.1 A compreensão da (‫[ רָּ בָּ ד‬palavra]) na tradição oral

Vários estudos asseveram que a compreensão da “palavra” como unidade literária nas tradições orais
diverge da nossa compreensão literária. Vejamos o conceito semântico da palavra ‫ רָּ בָּ ד‬é o termo mais
equivalente que temos para “palavra” em português, mas também pode significar “conselhos” “ordens”

“discurso”28. Por exemplo em Deuteronómio 4:13 e 10:4, podemos traduzir ‫ת ֲֶר ֲדע םי רבָּ ְּ דדםי‬
literalmente por “dez palavras”. Coloquemos a questão de quantas palavras estão escritas em cada um
dos “dez mandamentos”, como geralmente costumamos traduzir. É “Guarda o dia do sábado, para o
santificar, como te ordenou o Senhor teu Deus”29apenas uma “palavra” entre as “dez palavras”
(Raymond F. Person, 1998, p. 604)? Para nós são mais do que “dez palavras”, mas o leitor ou ouvinte
da época não tinha isso em mente. O conceito no antigo Israel da unidade do significado da “palavra”
pode não corresponder aos nossos padrões literários de compreensão de “palavra”.
Irei mostrar alguns exemplos de variações das “palavras” na Bíblia Hebraica, as evidências dentro do
próprio texto sugerem que os escribas tinham uma mentalidade “oral”, pelas várias leituras sinónimas.
Shemaryahu Talmon30 define leituras sinónimas desta forma:

28
Concordância Strong
29
Deuteronómio 5:12
30
T. Shemaruahu. (1989) “Observations on Variant Readins in the Isaiah Scroll (1QIsa a), in The World Of
Qumran From Within: Collected Studies. Jerusalem: Magnes Press. Citado em (Raymond F. Person, 1998, p.
604)
The class of synonymous readings will include only those variants which do not affect the
subject matter of the text, are derived correctly according to Hebrew gramatical and stylistic
rules, cannot be accounted for as being deliberate or due to slips to the pen or lapses of
memory, and (as far as our knowledge goes) do not spring from different linguistic strata
distinguishable from one another in point of time, place, or class in society.

Ao analisar algumas porções do texto de Jeremias encontramos variantes que sugerem que os escribas
abordaram a tarefa de copiar o texto com uma mentalidade estabelecida na sua cultura oral. As
variantes da LXX de Jeremias e a MT consistem em adições de títulos, nomes próprios, adjetivos, e
uma fórmula profética expandida no MT (Raymond F. Person, 1998, pp. 604-605). Alguns exemplos
seguem-se com as adições da MT entre parênteses:
Adição de títulos:

Adição de nomes próprios:

Adição de patronímicos

Adição de nomes divinos

Se tivermos em mente que a compreensão do termo “palavra” para um antigo escriba era mais amplo
do que a nossa, estas são variantes apenas do nosso ponto de vista literário. Este tipo de variações nos
nomes e nos títulos, até nas personagens é comum nas tradições orais. Mais adiante irei comprovar o
processo do qual decorrem estas variações.
A audiência familiar à tradição sabia que Jeconias era filho de Jeoiaquim de Judá que era rei de Judá,
assim qualquer combinação de títulos para Jeconias (incluindo os seus outros nomes) referem-se
sempre ao mesmo individuo – podendo ser entendidos como a mesma ‫רָּ בָּ ד‬.
A informação histórica mais importante que temos de transmissão textual dos escribas vem do nosso
entendimento do processo praticado pelos escribas em Qumran. Isto por causa da presença de
intervenções ou “correções” nos manuscritos, feitas pelos próprios escribas (Cross & Talmon, Qumran
and the History of Biblical Text, 1975). O pergaminho de Isaías (1QIsaa) inclui intervenções dos
escribas, como omissões atravessando uma palavra com uma linha horizontal ou a adição de frases e
palavras. Por vezes as alterações eram feitas pelo próprio escriba ou por outros. Este tipo de
intervenções sugere-nos que o escriba original do pergaminho 1QIsaa pode ter copiado o manuscrito
com a mente assente na oralidade. O que prova que nas correções mais tardias o escriba ou outros
tiveram acesso a um manuscrito que lhes permitiu corrigirem aquele texto.
Portanto apesar de algumas variantes nos textos poderem ser explicadas como um resultado da
abordagem oral na sua cópia, a correção dos textos era claramente uma atividade literária. Isto é
consistente com o argumento inicial de Niditch “a escrita israelita situava-se num contexto oral”.

2.2.3 Os Estilos Literários das Culturas Orais

As culturas orais possuem estilos literários bastante específicos no caso de Israel ou da Babilónia por
exemplo os textos eram uma extensão das apresentações orais. A entrega oral dos textos determinava
o seu estilo, mesmo que a origem do texto fosse apenas escrita e não oral (Toorn K. V., 2009, p. 14).
Encontramos nestes textos várias carateristicas estilísticas do género oral tais como o ritmo, a
repetição, epítetos de ações e frases padrão. As narrativas consistem em episódios relacionados mas
relativamente independentes entre si. Temos por exemplo o caso das histórias em Génesis e o Épico
de Gilgamesh. Encontramos também os textos de exortação que são semelhantes na Babilónia e em
Israel, estas instruções morais preservadas na forma oral de provérbios ou observações sucintas foram
colecionadas em unidades literárias maiores.
Podemos ainda acrescentar que a escrita não foi apenas utilizada nestas culturais orais para a
apresentação oral mas também foi concebida para arquivar informação. Os textos escritos eram
utilizados para “consulta” sendo assim compilações usadas para serem citadas e relembradas temos
como exemplos os códigos legislativos31. Os livros legislativos e os manuais da antiguidade são
compilações de leis, rituais, hinos e orações como as que encontramos em Levitico ou Provérbios
(Toorn K. V., 2009, pp. 15-16).

31
As leis de Hamurabi
2.2.4 Os Custos de Produção

Nas culturais orais onde a transmissão oral dominava a comunicação, não havia lugar para os livros.
Uma das primeiras observações históricas é o facto de nestas culturas o custo da produção de um livro
envolver duas facetas: primeiramente o trabalho empregue na produção textual e em segundo lugar a
natureza dos materiais de escrita.
Os livros eram escritos á mão, sendo um processo trabalhoso e de elevados custos, os materiais de
escrita tinham também um custo elevado. Por isso os livros não se encontravam ao alcance do leitor
individual comum, enquanto os livros foram raros a literacia não foi muito incentivada (Toorn K. V.,
2009, p. 17). Os livros eram assim propriedade das classes sociais mais abastadas, que possuíam
manuscritos e formas de aprendizagem.
Os escribas judeus usavam couro, papiro ou pergaminhos como material de escrita, estes pergaminhos
eram mais dispendiosos que as tábuas cuniformes. O material mais económico era o papiro, apesar de
a prática de reciclagem dos pergaminhos escritos indicar que nenhum destes materiais era
propriamente económico. Estima-se que o custo de um pergaminho de papiru na antiguidade tenha
sido equivalente a uma ou duas semanas de salário de um trabalhador normal. Os custos do material
de escrita eram superiores aos custos da escrita (Toorn K. V., 2009, p. 19).

2.3 O Escriba do antigo Israel

O escriba do antigo Israel na cultura escriba é na análise histórica deste trabalho o papel fundamental
para interpretarmos o contexto textual do mundo bíblico.
Como acima foi referido na antiguidade não existia no sentido moderno da palavra a noção de autoria.
Abordarmos as escrituras hebraicas em termos de autores e autoria limita a nossa compreensão das
suas origens.
Aqueles que de facto manufacturaram os textos32 não se viam como autores, não procuravam
originalidade. As obras que redigiam não eram entendidas como expressões de talento mas como
manifestações de habilidade e técnica (Toorn K. V., 2009, p. 51).
Em termos históricos eles eram escribas, não autores, escreviam pergaminhos que eram utilizados por
outros escribas (não para leitores particulares). Não existiam estruturas encorajadoras de literacia, não
existiam mercados de livros, nem livrarias públicas. Os textos escritos chegavam ao público quando
eram lidos em voz alta por uma elite literária.

32
Os escribas
Assim não podemos dissassociar a escrita da recitação, que eram facetas complementares da habilidade
escriba. A Bíblia Hebraica formou-se através da agência dos escribas, a mensagem foi proclamada
pela boca dos escribas e preservada para as gerações tardias através da habilidade e diligência dos
escribas (Toorn K. V., 2009, p. 51).
Em muitas instâncias a Bíblia é um fruto da cultura escriba, ao estudarmos os textos da Bíblia podemos
extrair informação acerca da cultura escriba que os produziu. Para conseguirmos realizar esta tarefa é
necessário suplementar os dados bíblicos com evidências extrabíblicas.
Leituras mais aprofundadas, particularmente de uma perspetiva heurística, tornam-se possíveis com a
evidência obtdida através de estudos comparativos de outras culturas que sabemos terem influenciado
a Palestina (Toorn K. V., 2009, p. 52).
O mundo bíblico relaciona-se com as culturas da Mesopotâmia e do Egito, a cultura escriba de Israel
deve o seu desenvolvimento a estas civilizações vizinhas.
Iremos assim explorar as evidências bíblicas que dispomos para o papel histórico do escriba no Antigo
Israel e depois faremos uma breve comparação com o escriba da Mesopotâmia e do Antigo Egito.
Muitas objeções podem levantar-se a este nível, por exemplo até que nível será adequado comparar a
evidência de grandes civilizações como a Mesopotâmia ou o Egito com o Antigo Israel?
Dadas as suas complexidades sociais não seria lógico compará-las á “pequena” civilização ou cultura
do Israel bíblico. No entanto o foco desta comparação é o papel do escriba, e a profissão escriba surge
como uma resposta à burocracia nas sociedades que desenvolveram a divisão do trabalho (Toorn K.
V., 2009, p. 52).
Mesmo que a formação do escriba israelita não tenha sido de longe tão complexa como a do escriba
egipcio33 não podemos negar que existiam escribas profissionais no Antigo Israel.
O termo escriba (soper) varia conforme o tempo e o contexto em que se insere mas implica sempre
uma literacia ativa que é adquirida através do treino. Assim como os seus homólogos na Mesopotâmia
e no Egito, os escribas israelitas eram os homens educados do seu tempo (Toorn K. V., 2009, p. 53).
Outro argumento a favor de uma comparação sociológica entre os escribas destes três contextos é o
facto da cultura a que estes escribas pertenciam ser cosmopolita. O escriba retratado por Ben Sirá:
“Exerce o seu cargo no meio dos poderosos, e comparece diante dos que governam. Percorre terras de
nações estranhas, para reconhecer o que há de bom e de mau entre os homens” (Ben Sirá 39:4).
O escriba interpretava textos e línguas, conhecer línguas estrangeiras fazia parte da sua profissão. O
espirito cosmopolita da cultura escriba tornou-o aberto a influências do mundo exterior. A influência

33
A escrita alfabética usada por exemplo para o hebraico não é tão elaborada com aquela que era usada na
Mesopotâmia ou no Egito.
egipcia nos tempos pré-exilicos e a da Mesopotâmia, a partir do período do exilio adiante, na cultura
escriba de Israel e da Bíblia é reconhecida (Carr, 2005, pp. 47-61).
Na perspetiva de Karel Van Der Toorn os dados fornecidos por um estudo comparativo com a
Mesopotâmia e o Egito fornecem-nos um modelo útil que pode ser utilizado como referência.
Para tentarmos reconstruir o mundo dos escribas da Bíblia Hebraica, este modelo não pode ser
confundido com uma “impressão digital”34 da realidade.
No entanto é útil para dirigirmos a investigação, a plausibilidade de qualquer reconstrução da cultura
escriba do Antigo Israel não passa pela forma como esta se insere no modelo35. Mas antes como pode
ou não ser suportada pelos dados históricos e várias evidências que encontramos na própria Bíblia.

2.3.1 Horizonte Comparativo: Cultura escriba da Mesopotâmia e do Egito

Iremos estabelecer um horizonte comparativo da cultura escriba israelita com a cultura escriba destas
duas civilizações, enfatizando apenas os períodos históricos que mais influência tiveram na cultura
israelita.
As evidências da Mesopotâmia são a fonte histórica mais rica da cultura escriba no Antigo Médio
Oriente, os dados históricos abrangem um período de dois milénios. No nosso propósito comparativo
iremos apenas enfatizar os escribas e os académicos dos tempos da Neo-Assíria e Neo-Babilónia (800-
500 a.e.c.). Este período é o mais informativo e está mais próximo de Israel durante uma fase vital da
sua história (Toorn K. V., 2009, p. 53).
No caso do Egito serão mencionados os escribas do período do Novo Reino (1550-1100 a.e.c.), o
modelo de cultura escriba obtido por estas evidências comparativas irão ajudar-nos a reconstruir o
mundo dos escribas por detrás da Bíblia (Toorn K. V., 2009, p. 54).

2.3.1.1 Os Escribas da Mesopotâmia

Na antiga Mesopotâmia a educação formal era algo estabelecido para as classes altas, os reis
vangloriaram-se das suas proezas na escola. Citando o exemplo do rei Shulgi (2050 a.e.c.):

34
Termo do autor (Toorn K. V., 2009, p. 53)
35
Do Egito ou da Mesopotâmia,
“As a youth, I studied the scribal art in school
from the tablets of Sumer and Akkad.
No noble could write a tablet like I did,
in the place where people try to master the scribal art.
Adding, subtracting, counting, and accounting:
I completed the whole curriculum.
The fair Nainbgal, that is: Nisaba,
Endowed me generously with wisdom and intelligence.
I am a dexterous scribe whom nothing impedes.”36

Como instituição formal a escola (é-dub-ba em sumério e bit tuppi em acadiano) literalmente “a casa
da tábua” desapareceu antes de 1900 a.e.c., mas a perspetiva do treino formal como um escriba dotado
com superioridade social manteve-se. Os reis continuaram a apresentar-se como estudantes brilhantes
e académicos bem-sucedidos (Toorn K. V., 2009, p. 54).
A expressão suméria é-dub-ba geralmente traduz-se por “escola”, apesar de não ser incorreto, a
tradução pode levar a pequenos mal entendidos37. Uma vez que associamos o termo a uma instituição
formal composta por vários professores e localizada nalgum edifício. No entanto no antigo período
babilónico a “casa da tábua” era frequentemente uma casa privada onde o pai iria instruir os seus filhos
e alguns rapazes da sua vizinhança (Robson, 2001, p. 62).
Existem evidências que a administração real estava envolvida no estabelecimento de um currículo,
mas a escola em si não era uma instituição administrada pela realeza (Toorn K. V., 2009, p. 55).
A escola no antigo período babilónico (1900-1500 a.e.c) não sobreviveu à chamada Idade das Trevas
da história da Mesopotâmia (1500-1100 a.e.c). No fim do período Cassita, a educação dos escribas
tomou lugar nas escolas dos templos (Toorn K. V., 2009, p. 56).
Várias descobertas arqueológicas significativas38 ilustraram que a educação dos escribas tinha lugar
nos templos. A instrução dos escribas tinha lugar na oficina do templo chamada bit mummu por essa
razão o escriba aprendiz referia-se a si como o “filho da oficina do templo”.
Os estudantes dedicavam geralmente as suas tábuas de exercícios ao deus do templo, na ocasião de
algum festival religioso eles ofereciam o seu trabalho à divindade como sinal da sua devoção (Toorn

36
Citado em (Toorn K. V., 2009, p. 54).
37
De acordo com Karel Van Der Toorn ver (Toorn K. V., 2009, p. 55)
38
A descoberta em 1970 de 1500 tábuas de exercícios no templo de Nabû na Babilónia mencionada em (Toorn
K. V., 2009, p. 57).
K. V., 2009, p. 56). Sob os auspícios de Nabu, o deus da escrita, os estudantes passavam anos na
oficina do templo a fim de se tornarem escribas bem-sucedidos.

Breve descrição do sistema educativo dos escribas da Mesopotâmia

O núcleo da educação formal na Mesopotâmia consistia na aquisição de literacia, na escola aprendia-


se a “a arte escriba” tupsarrutu (Toorn K. V., 2009, p. 57).
É importante compreendermos que o acesso à educação pertencia a uma elite social composta por
famílias de escribas, muitas traçavam os seus antepassados ao segundo milénio a.e.c.
Por exemplo na Neo-Babilónia muitos escribas consideravam-se descentendentes de Sin-leqe-unninni,
o compositor do épico de Gilgamesh (Beaulieu, 2000). Isto não significa que haja uma validade
histórica na sua afirmação, mas certamente revela a forma como a importância e a descendência eram
importantes para a identidade do escriba.
Numa primeira fase do currículo os estudantes aprendiam a escrever e a transcrever, citando um
provérbio sumério: “A scribe whose hand can keep up with the mouth, he is indeed a scribe!” (Alster,
1997).
Eles desenvolviam habilidades de escrita, primeiro por copiarem e memorizarem listas de silabas,
palavras, nomes, frases e provérbios. E depois prosseguiam para excertos de textos literários mais
longos (Toorn K. V., 2009, p. 56).
Os alunos ainda nesta primeira fase familiarizavam-se com gramática, lei, administração de negócios,
matemáticas, ciência, música e historiografia. A pedagogia deste ensino era orientada em torno da
mestria do vocabulário técnico destas disciplinas, a ênfase deste ensino assenta na memorização e nas
habilidades escribas ao invés da compreensão intelectual do assunto (Toorn K. V., 2009, p. 56).
A importância da língua suméria deve ser referida, uma vez que o domínio desta língua tinha um papel
importante no currículo, especialmente no antigo período babilónico. “A scribe who does not know
Sumerian, what kind of scribe is he?” (Alster, 1997).
O sumério tinha o prestígio cultural na antiguidade, semelhante ao prestígio que o latim teve na Europa
Medieval, os estudantes aprendiam-no através da repetição e reprodução dos textos clássicos (Toorn
K. V., 2009, p. 57).
Pelas fontes disponíveis sabemos que catorze composições sumérias eram padrão no currículo (Tinney,
1999). Uma vez estudados estes textos o currículo permitia uma certa liberdade de escolha nas leituras
prosseguintes.
Durante vários anos um escriba era imerso nas currentes da tradição, a sua educação não o tornava
num simples copista, mas sim num intelectual. Como foi notado por Karel Van Der Toorn a linha
estabelecida entre “escriba” (tupsarru) e “estudioso”39 (ummânu) é difícil de traçar uma vez que os
escribas eram os académicos do seu tempo. O escriba era por definição o especialista (mudû,
literalmente, “aquele que sabe”) de acordo com um glossário babilónico (Toorn K. V., 2009, p. 57).
A segunda fase do treino escriba na Mesopotâmia era, em termos atuais, o lado mais académico da sua
formação. Uma vez que o escriba adquiriu um conhecimento de trabalho em vários ramos de
especialização, ele podia escolher continuar os seus estudos, especializando-se num campo de
conhecimento em particular.
No primeiro milénio os estudantes podiam treinar para se tornarem astrólogos 40, exorcistas41,
adivinhadores42, praticantes de medicina43 e cantores no culto44. Para cada uma destas disciplinas
existia um corpo textual que servia de currículo base45 (Toorn K. V., 2009, p. 57).
Ao dominar os manuais do currículo base da sua especialidade por exemplo o exorcismo, o estudante
passava para os textos que continham comentários e interpretações, bem como textos noutros dialetos.
Assim ele estudava rituais bilingues, neste estágio ele não aprendia simplesmente por repetir, ele tinha
que aplicar-se e discutir com os seus professores e colegas a fim de chegar a um consenso acerca do
significado dos textos (Toorn K. V., 2009, p. 58).
Aqueles que completavam o programa mais avançado dos escribas eram submetidos a uma
examinação final pela Assembleia dos Académicos (puhur ummâni). Na sua graduação recebiam um
diploma que permitia-lhes praticarem a sua especialização profissionalmente. Eles alcançaram “as
profundidades da sabedoria”, como o currículo as designa. Tornavam-se escribas no pleno sentido do
termo – escribas, académicos e sábios – repositórios vivos das correntes da tradição (Toorn K. V.,
2009, p. 59).

A Carreira dos Escribas

Dependendo do tempo de duração e a área de especialização o treino escriba preparava os estudantes


para diferentes carreiras. A maioria dos estudantes completava a primeira fase do programa e

39
Académico.
40
Tupsar Enuma Anu Enlil, literalmente, “escriba [especializado no compêndio astrológico] Enuma Anu Enlil”
41
Asipu ou masmassu
42
Barû
43
Asû
44
Kalû
45
Várias cópias de uma lista do currículo de exorcistas foram encontradas nas cidades de Assur, Ninive,
Babilónia e Sipar, o que sugere que constituem um currículo “nacional. A edição mais recente destas quatro
cópias é a de Mark J.Geller, “Incipits and Rubris”,in Andrew R. George and Irving L. Finkel, eds., Wisdom,
Gods and Literature: Studies in Assyriology in Honour of W.G. Lambert (Winona Lake, In: Eisenbrauns, 2000),
Pp. 225-258
encontrava um lugar na administração. Trabalhavam também em propriedades privadas e casas
mercantis, outros viviam como escribas públicos. Podemos mencionar que os escribas de renome
desempenhavam um papel importante na corte real, sendo conselheiros do rei (Toorn K. V., 2009, p.
59).

Relação dos Escribas com o Templo

Os académicos da Mesopotâmia eram especialistas religiosos, e como tal o templo era o seu maior
empregador e o seu habitat natural. Na vida dos académicos a oficina do templo e a biblioteca do
templo eram instituições vitais (Toorn K. V., 2009, p. 63).
A oficina do templo, bit mummu, tinha vários propósitos, era o lugar onde os artesãos faziam e
reparavam as estátuas e outros objetos rituais. Era também o lugar onde estava a escola dos escribas e
o centro de produção textual, Nabû e Nisaba, os deuses da escrita eram os “senhores da oficina do
templo”. A Assembleia dos Académicos (puhur ummâni) tinha o seu assento na bit mummu,
precisamente porque era o lugar de encontro entre os académicos (Toorn K. V., 2009, p. 63).
Os templos eram os lugares de trabalho óbvios para os académicos da Mesopotâmia, eram centros de
academia e aprendizagem por causa das suas bibliotecas. Os templos providenciavam académicos
religiosos com oportunidades adequadas para praticarem as suas habilidades, o conhecimento dos
académicos da Mesopotâmia era sobretudo escrito. Quando a memória falhava eles podiam consultar
as tábuas, alguns possuíam bibliotecas pessoais, mas a maioria dependia os textos das bibliotecas
coletivas dos templos (Toorn K. V., 2009, p. 63).
A oficina do templo era como referi o assento da Assembleia dos Académicos e institucionalmente
gerava um ambiente propício ao debate académico. A discussão instrutiva era uma parte significativa
da vida dos escribas, a eloquência era um dos grandes objetivos da educação dos escribas46.
Ao lermos o epílogo do épico de Enuma Elish encontramos descrições de académicos, que são
referidos como: “the wise and the knowledheable”, “consulting one another” about the meaning of the
fifty names of Marduk47.
O propósito destas discussões era alcançarem um maior entendimento e em última instância um
consenso intelectual. Os estudantes participavam nestes debates e escreviam nas suas tábuas “in the
meeting of the scholars”48, beneficiando das explicações que académicos séniors lhes davam. O estudo

46
Lambert, Babylonian Wisdom Literature, 259 linha 19: “The scribal ar tis the mother or orators and the father
os scholars.”
47
Citado em (Toorn K. V., 2009, p. 64).
48
Citado em (Toorn K. V., 2009, p. 65)
dos textos escritos era assim na Mesopotâmia acompanhado por uma troca verbal de conhecimento
académico (Toorn K. V., 2009, p. 65).
A maior biblioteca de um templo da Mesopotâmia encontrada é a do templo de Samas em Sippar49 é
considerada a biblioteca mais antiga na história encontrada intacta nas suas estantes originais. São mais
de 800 tábuas que incluem uma varidade de textos académicos e alguns trabalhos literários
tradicionais.

A Questão da Distinção Social

A cultura escriba da Mesopotâmia incutiu um senso de superioridade nos seus académicos que os
colocou numa dimensão social á parte de todos os que não possuíam treino escriba. Os escribas
pertenciam a uma elite social, viam-se a si próprios como iniciados no conhecimento de textos que
apenas eles possuíam. Este ponto diferenciador é importante para analisarmos agora a literacia no
Antigo Egito

2.3.1.2 Os Escribas do Antigo Egito

A literacia era no Egito uma marca de elite, a proporção de população egipcia que podia ler e escrever
era cerca de cinco por cento, restringindo-se largamente à aristocracia (Janseen, 1990, pp. 67-68).
Os dignatários, clérgicos, oficiais e qualquer pessoa que desempenhasse um papel na administração
real enviava os seus filhos para a escola ou para um tutor.
A alfabetização que correu em famílias, assim como em escritórios de escribas era quase sempre
hereditária. A relação típica de ensino era modelada pelo laço entre pai e filho, que ainda que
meramente retórico continua a refletir a questão da importância que era dada ao nascimento e à família
para se ter acesso a educação formal (Carr, 2005, p. 66).
Devido a uma série de mudanças sociais no tempo que precedeu o Novo Reino, o privilégio da
educação escriba tornou-se acessível para a maioria das camadas da população (Toorn K. V., 2009, p.
67).

49
Poderá ser achado em Archives and Libraries in the Ancient Near East 1500-300 B.C. (Bethesda, Md.: CDL
Press, 1998), 129-213
Breve Descrição sobre o Sistema dos Escribas do Antigo Egito

Durante o período do Novo Reino (1550-1100 a.e.c.) o território egipcio expandiu-se e a burocracia
aumentou em tamanho, as escolas proliferaram. Muitas das escolas estavam também localizadas nos
templos, a instrução elementar durava cerca de quatro a cinco anos (Williams, The Sage in Egyptian
Literature, 1990, p. 22).
Depois de uma introdução aos princípios da escrita, os estudantes usavam um manual conhecido como
Kemyt “compendium” que continha exercícios em fórmulas epistolares, um modelo de uma carta e
vários tipos de frases adequadas (Toorn K. V., 2009, p. 68).
As listas léxiográficas50 tinham na educação do Egito o mesmo propósito que as listas cuniformes de
plantas, pedras e deuses tinham para os escribas da Mesopotâmia. Uma educação básica em geografia,
aritmética e geometria também faziam parte do currículo (Toorn K. V., 2009, p. 68).
Vários dos pupilos com a formação base continuavam a sua educação estudando alguns dos textos de
sabedoria clássicos e as várias instruções. As instruções conhecidas em egipcio por sb3yt
(convencionalmente vocalizado sboyet), consiste em conselhos e ditos exemplificando a importância
dos provérbios e outros textos de sabedoria no currículo escriba egipcio (Williams, 1972, p. 215).
As composições eram cantadas e memorizadas, os estudantes faziam cópias tendo por base a memória,
após quatro anos, quando a primeira fase do currículo terminava os estudantes podiam considerar-se
escribas (Toorn K. V., 2009, p. 68).
O título profissional geralmente assegurava-lhes uma posição na administração real, o seu
conhecimento de escrita não se extendia para os hieróglifos. A escrita clássica usada para as inscrições
monumentais e textos antigos. O escriba comum não ia para lá da mestria de uma escrita hierática mais
simples que era suficiente para as tarefas administrativas (Toorn K. V., 2009, p. 69).
Os estudantes que pretendiam adquirir mestria nos hieróglifos tinham que continuar a sua educação
por um longo período de tempo. O currículo avançado que incluía a aprendizagem de uma das
profissões que poderiam ser exercidas após este treino literário e académico. Profissões como médico
ou sacerdote poderia ter uma formação de doze anos (Janseen, 1990, p. 69).
O conhecimento especializado adquirido por estes estudantes era baseado na exposição extensiva aos
textos mais técnicos, amplamente comparável ao currículo seguido pelos exorcistas babilónicos (Toorn
K. V., 2009, p. 69).

50
Chamadas de Onomastica
Relação dos Escribas com o Templo

Para aqueles que entravam para o sacerdócio51 reunido no local de instrução designado “Casa da Vida”
(pr-‘nh) (Gardiner, 1938). Este termo refere-se a um lugar próximo do templo onde se reuniam o corpo
de académicos e os especialistas. A Casa da Vida Egipcia era mais do que uma escola de escrita, era
um lugar de doutores, astrónomos, matemáticos e escultores que trabalhavam e colaboravam em
atividades destinadas a promover o bem-estar da terra (Toorn K. V., 2009, p. 69).
Por ser um centro de aprendizagem e vida intelectual, a Casa da Vida é comparada à universidade da
europa pré-moderna. O paralelismo é feito no sentido que muitos dos trabalhos académicos e religiosos
originados na Casa da Vida eram copiados lá para propósitos de ensino e investigação (Gardiner, 1938,
p. 176) .
Em muitos aspetos a Casa da Vida Egipcia é reminescente da oficina do templo mesopotâmico bit
mummu.
Sobre a supervisão do “professor da Casa da Vida”, o estudante escriba segue o programa de estudos
avançados. O treino transformava os escribas em académicos, os pergaminhos desempenharam um
papel crucial durante os seus estudos e mais tardiamente nas suas profissões (Toorn K. V., 2009, p.
69).
Normalmente a Casa da Vida ficaria situada próxima de uma biblioteca ou teria a sua própria, o termo
egipcio que se traduz por biblioteca significa literalmente “casa dos pergaminhos” (Toorn K. V., 2009,
p. 70). O termo pode referir-se a um arquivo ou a uma biblioteca, como no caso das bibliotecas dos
templos da Mesopotâmia, onde costuma utilizar-se o termo neutro “coleção textual”. Estas coleções
incluem rituais, cânticos cúlticos, mitos, astrologia, astronomia e exorcismos, assim como manuais de
medicina e literatura funerária. A Casa da Vida era uma plataforma priveligiada para a discussão
académica e diálogo filosófico. Os “escribas da Casa da Vida” eram um sinónimo dos “homens
instruídos” (rh-ht), a sua cultura como tal baseou-se nos textos clássicos da literatura e na academia
(Toorn K. V., 2009, p. 70).

O Caso Especifico da Academia Egipcia e o Sacerdócio

A existência de uma classe de sacerdotes conhecida por sacerdotes - instrutores52 em egipcio (hry-hbt)
apresenta-nos a relação entre literacia e sacerdócio. Qual seria o papel do sacerdócio na formação e na
transmissão da cultura escrita no Antigo Egito?

51
Que neste contexto abrangia várias profissões todas de certa forma ligadas ao templo.
52
Apropriei-me do termo em inglês Lector-priest empregue pelo autor Karel Van Der Toorn
Sabemos que a Casa da Vida era uma instituição do templo, isto poderá levar-nos a supor que os
sacerdotes transmitiam a tradição escrita.
De qualquer forma é necessário estabelecermos alguns pressupostos sobre o sacerdócio egipcio, o
sacerdócio era um corpo hierárquico composto por três níveis (Toorn K. V., 2009, p. 70).
A classe mais baixa dos sacerdotes designava-se w’b – sacerdotes, “os puros”, que cantavam coros
serviçais no santuário. A maioria destes homens eram iletrados, os sacerdotes – instrutores constituem
a classe média, para eles a literacia era um pré-requisito. Eles recitavam feitiços e realizam rituais nas
cerimónios do templo e ritos funerários, na Bíblia Hebraica são mencionados como os “magos do
Egito” (hartummê misraym, Exôdo 7:9, 22) (Toorn K. V., 2009, p. 70).
Nos murais os sacerdotes-instrutores são geralmente representados a segurarem ou a lerem um
pergaminho de papiro, acima deles na hierarquia estavam os “servos de Deus”. Geralmente referidos
na literatura secundária, pela designação grega como “profetas”53, o único grupo no sacerdócio que
pode ser considerado guardião da escrita sagrada foi o dos sacerdotes-instrutores (Lichtheim, 1973-
80).
O conhecido profeta do reino Médio Neferti era um sacerdote-instrutor54 em consonância com o facto
de que os sacerdotes-instrutores são documentados por anunciar vereditos de oráculos que tomam lugar
em festivais (Toorn K. V., 2009, p. 71).
O chefe sacerdote-instrutor (hry-hbt hry-tp) era responsável por verificar se a recitação correta dos
textos estava a ser feita, a investigação exegética era uma das suas funções.

Conclusão do Horizonte Comparativo: Escriba da Mesopotâmia e Escriba do Egito

Ao estabelecermos esta breve comparação encontramos várias semelhanças entre as culturas escribas
do antigo Egito e da Mesopotâmia. Em ambas as civilizações, a educação formal e a literacia estavam
destinadas às classes superiores.
Existiam escribas que completavam o primeiro nível de formação e ocupavam cargos administrativos
ou trabalhavam como escribas privados. Mas também havia aqueles que prosseguiam para estudos
mais avançados.
Os escribas investiam um extenso período de tempo a estudar e a memorizar uma ampla variedade de
conhecimento escrito pertinente para as suas áreas de especialização (Toorn K. V., 2009, p. 72).

53
Na opinião do autor Karel Van Der Toorn o termo “profeta” pode ser enganador porque estes homens não se
assemelham aos profetas bíblicos. Isto porque existiam quatro classes diferentes de “profetas” (Toorn K. V.,
2009, p. 71).
54
Mencionado em (Lichtheim, 1973-80) 1:140, onde Neferti é chamado: “a great lector-priest of Bastet…, a
citizen with capable arm, a scribe with wxcellent fingers.”
Tanto na Mesopotâmia como no Egito os escribas que terminavam a segunda fase do seu treino eram
reconhecidos como os sábios do seu tempo.
O centro intelectual dos escribas académicos era a oficina do tempo, conhecida como bit mummu na
Mesopotâmia e a Casa da Vida (pr- ‘nh) no Egito. Ambos formavam uma sociedade elitista, o seu
conhecimento residia em textos que eles podiam ler, mas que eram inacessíveis para o cidadão comum.
Estes académicos não só estudavam e usavam estes textos sagrados, mas também escreviam e
editavam-nos. É importante ficarmos com a ideia que ambos os pólos de conhecimento eram centros
de estudo dos textos, preservação e transmissão, mas também centros de criação textual (Toorn K. V.,
2009, p. 72).
Os escribas treinados academicamente foram fundamentais na composição de novos textos, este é o
ponto fundamental para a nossa investigação.
Uma vez que a nossa procura pelos escribas por detrás da Bíblia Hebraica acarreta não tanto uma
investigação de indivíduos, mas a caracterização de uma classe social especifica. As evidências
comparativas recolhidas da Mesopotâmia e do Egito, demonstram-nos que os escribas são um grupo
profissional com uma cultura distinta. Existe também uma relação entre escribas e sacerdotes,
bibliotecas e templos, a fim de aferirmos mais sobre os escribas hebraicos tomaremos em consideração
todos estes aspetos.

2.3.1 Caraterização do Escriba do Antigo Israel

Os livros da Bíblia Hebraica não teriam sido gerados na cultura oral israelita se não tivessem sido os
escribas profissionais. Eles são as principais figuras por detrás da literatura bíblica, esquecidos e pouco
relembrados, é a estes escribas que devemos o legado bíblico.
A principal dificuldade em reconstruirmos uma análise para o escriba israelita como aquela que
conseguimos realizar para o escriba egipcio ou babilónico, é apenas uma. Temos poucos artefactos
escritos da Palestina Pré-Helenista, o conhecimento que temos dos escribas das outras civilizações
deve-se aos registos que eles nos deixaram.
O clima da Palestina teve um efeito corrosivo nos materiais utilizados pelos escribas hebreus, apenas
algumas inscrições foram preservadas. Sabemos que o principal legado dos escribas hebreus é a Bíblia
Hebraica, no entanto os manuscritos mais antigos que temos ao nosso dispor são da metade do segundo
século a.e.c. (Qumran) (Toorn K. V., 2009, p. 75).
A Bíblia como a conhecemos é literatura canónica, os textos passaram por um grande processo de
seleção e edição. As evidências históricas de escribas hebreus são indiretas e adaptadas a outras
necessidades para além das do historiador (Toorn K. V., 2009, p. 76).
Apesar das várias dificuldades no uso da Bíblia Hebraica como um meio para investigar os escribas
hebreus, dificilmente existem opções melhores disponíveis. Para além da evidência comparativa, e as
descobertas epigráficas55 que iluminam certos aspetos da prática dos escribas, a maior fonte de
informação continua a ser a Bíblia Hebraica.
Como metodologia para este procedimento será importante procurar no texto bíblico os dados que nos
forneçam informação sobre a identidade dos escribas hebreus. O seu lugar na sociedade e as
instituições a que pertenciam, eles estavam afiliados com o templo. Para compreendermos o seu quadro
mental devemos identificar os dados relativos ao sistema de educação escriba em Israel, reconstruindo
o seu currículo.
Num sistema religioso que era cada vez mais baseado na autoridade de textos escritos, os poucos
priveligiados que tinham acesso a esses textos mantinham uma posição de poder e prestigio (Toorn K.
V., 2009, p. 76).
Partimos do pressuposto que qualquer cultura oral necessitou de um grupo profissional capacitado para
escrever e preservar todos os registos escritos. É raro claro está encontrarmos uma referência direta
aos escribas como escritores de textos na Bíblia. Quando a Bíblia mencionada um escritor, refere-se
geralmente a Deus ou a um profeta. Nas duas ocasiões em que a Bíblia menciona os escribas como
escritores de textos bíblicos aparece no Livro do Profeta Jeremias e são textos que merecem toda a
nossa atenção.

2.3.2 As evidências bíblicas e epigráficas

Começando então por explorar as evidências bíblicas, um oráculo atribuído ao profeta Jeremias
descreve-nos os escribas como sábios que têm prestígio por causa dos textos religiosos que escrevem:

“Como podeis dizer: «Somos sábios, a lei do Senhor está conosco»? Isso é verdade! Mas eis que
a falsa pena dos escribas a converteu em mentira.
Os sábios serão confundidos, ficarão consternados e cobertos de vergonha, por terem rejeitado a
palavra do Senhor. Afinal que sabedoria há neles?”
Jeremias 8:8-9

55
Incluindo os Manuscritos do Mar Morto
Não irei aqui abordar as várias polémicas desta passagem, iremos apenas selecionar os aspetos
importantes para identificarmos a cultura escriba do antigo Israel.
Primeiramente pela referência da “pena” do escriba, claramente a lei aqui referida é um documento
escrito. O autor deste versículo considera que esta lei é uma mentira (seqer) e nega a sua inspiração
divina. Este oráculo demonstra-nos uma certa polémica entre diferentes versões de uma lei escrita, se
esta tinha ou não legitimidade. O mais importante é que os escribas que são responsáveis por esta lei
não eram apenas copistas de um texto, eram também compositores do texto.
Temos outra referência no relato de Baruque em Jeremias 36:17-18

“E disseram a Baruque: Declara-nos agora como escreveste todas estas palavras.


Ele as ditava?
E disse-lhes Baruque: Sim, da sua boca ele me ditava todas estas palavras, e eu com tinta as
escrevia no livro.”

A ênfase numa transcrição literal legitima a coleção de profecias atribuída a Jeremias, o preconceito
teológico deste relato alerta-nos para a possibilidade de o escriba ter produzido mais do que uma mera
transcrição (Toorn K. V., 2009, p. 77).
O termo que estas duas passagens utilizam para escriba é soper (por vezes escrito sôper), com o plural
soperîm. Para encontrarmos os escribas por detrás da Bíblia Hebraica devemos naturalmente começar
pelo estudo da sua palavra hebraica.
De acordo com a obra Hebrew and Aramaic Lexicon by Koehler, Baumgartner, and Stamm, a palavra
hebraica soper tem quatro significados:
(1) Scribe, secretary; (2) royal oficial, secretary of state; (3) secretary for Jewish affairs; (4) scholar
of scripture.
Irei agora basear a minha reflexão acerca desta palavra no estudo realizado pelo autor Karel Van Der
Toorn56.
A palavra soper primeiramente denota o escriba como um artesão da escrita associado a instrumentos
como a “pena” (‘et, Salmo 45:2; Jeremias 8:8), o “tinteiro de escrivão” (qeset, Ezequiel 9:2-3). Ele
normalmente escreve com tinta57 num pergaminho (megillâ, Jeremias 36:2), onde dispõe o seu texto
em colunas (delet, delatôt no plural, Jeremias 36:23).

56
Comentário das quatro definições acima citadas com observações e estudos por parte do autor na sua obra
(Toorn K. V., 2009)
57
“…e eu com tinta as escrevia no livro” Jeremias 36:18b
O uso mais antigo do termo soper na Bíblia Hebraica está sempre associado à corte real, Seraías era
“escrivão” na corte do rei David (2 Samuel 8:17), os seus filhos Eliorete e Aías eram “escribas de
Salomão (1 Reis 4:3). Sebna era o “escriba” de Ezequias (2 Reis 18:18), Elisama era o “escriba” do
rei Jeoiaquim (Jeremias 36:10) e Jônatas era “escriba” do rei Zedequias (Jeremias 37:15).
A partir destas referências entendemos que estes homens não eram escribas comuns, mas oficiais de
instâncias superiores. Sebna por exemplo é referido como administrador real (‘aser ‘al-habbayit)58, ao
aplicarmos o termo soper a estes homens estamos a descrever um cargo ou função politica e
administrativa (Toorn K. V., 2009, p. 78).
Na sociedade israelita eles ocupavam uma posição de destaque, superior à de um escriba comum ou
até de à de um professor. A sua posição assemelha-se ao “escritor de cartas do Faraó”, que era o
administrador do secretariado real, sendo responsável pelas correspondências domésticas e externas
do rei (Mettinger, 1971, pp. 45-48).
A partir das referências bíblicas constatamos que as atividades dos escribas reais estavam relacionadas
com encontros diplomáticos (2 Reis 18:17-37); consulta com conselheiros políticos (2 Reis 19:1-7) e
a gestão dos fundos do Templo (2 Reis 12:10-16; 22:3-7). O ato da escrita propriamente dita parece
ter sido menos relevante nas suas tarefas (Toorn K. V., 2009, p. 78).
O terceiro significado para soper, definido como “secretário dos assuntos judaicos”, atesta-se apenas
em Esdras59. A versão hebraica do título de Esdras afasta-se do significado aramaico, tornando-se antes
“era escriba hábil na lei de Moisés”60 Esdras era um estudioso em vez de funcionário. Um paralelo
aramaico para a expressão soper mahîr é spr hkym wmhyr esta expressão ocorre na história de Aquibar,
um romance do século 5 a.e.c.
Que qualifica Aquibar como um “sábio e escriba perito”, Esdras também era um escriba “sábio” de
acordo com Esdras 7:25 “…a sabedoria do teu Deus, que possuis, constitui magistrados e juízes…” e
Esdras 7:14 “…a lei do teu Deus, a qual está na tua mão”. Tanto Esdras como Aquibar eram estudiosos
peritos e não apenas meros escribas. A área de especialização “académica” se é que posso usar o termo
de Esdras era a torá escrita. A torá é a sua sabedoria, na interpretação hebraica do estatuto de Esdras
como “escriba”, Esdras é um académico da torá (Toorn K. V., 2009, p. 79).

58
Ver Isaías 22:15
59
Conforme Karel Von Der Toorn comenta (Toorn K. V., 2009, p. 79), o estudo clássico do livro de Esdras
realizado por Hans Heinrich Shaeder distingue o título aramaico Sapra’, encontrado em Esdras 7:12,21 e a sua
interpretação hebraica em Esdras 7:6,11. Na nomenclatura do governa Persa, um escriba é um membro de alta
patente na burocracia persa. No caso de Esdras este seria um escribra com responsabilidade especial pelos
assuntos judaicos, sendo autorizado a financiar a reconstrução do Templo de Jerusalém com os fundos do
tesouro real (Esdras 7:21-22).
60
Esdras 7:6 (soper mahîr betôrat Moseh)
A interpretação judaica do título soper aplicado a Esdras como académico torna-o na personalidade
representativa dos “doutores da lei” do Segundo Templo. Este é o quarto significado do termo soper
os escribas eram os doutores da escritura pertencentens ao grupo dos levitas (2 Crónicas 34:13).
Citando Neemias, vários escribas assistiram à leitura da torá no templo por Esdras:

“…os Levitas explicavam ao povo a lei; e o povo estava em pé no seu lugar.


Assim leram no livro, na lei de Deus, distintamente; e deram o sentido, de modo
que se entendesse a leitura.”
Neemias 8:7-8
Termos esta alusão nas escrituras que os escribas levitas operavam como um grupo é significativa, isto
não significa que eles apenas liam e explicavam os textos. Eles instruíam a diferentes níveis e a
diferentes camadas sociais, audiências, os escribas levitas eram os professores da Torá.

“E ensinaram em Judá, levando consigo o livro da lei do Senhor; foram por todas as cidades de
Judá, ensinando entre o povo.”
2 Crónicas 17:9

Possuindo consigo a Torá escrita este grupo de escribas levitas estavam a “ensinar” (lmd, pi’el, 2
Crónicas 17:9); “interpretar” (byn, hip’il, Neemias 8:7); “explicar” (prs, pi’el, Neemias 8:8) e a
“esclarecerem o significado” (sym sekel, Neemias 8:8) da Torá. Como doutores da escritura, os Levitas
agiram como sucessores de Moisés que de acordo com a versão deuteronomista61 foi o primeiro a
“explicar” (b’r, pi’el) a Torá (Toorn K. V., 2009, p. 80).
Existe uma ligação entre o termo soper e hakam, o sentido básico do termo hakam é “sábio”, em
adjetivo e em nome. Quando as escrituras se referem a sabedoria, esta é contemplada no contexto das
línguas do Antigo Médio Oriente onde se insere o hebraico. Neste espaço linguístico “sabedoria” pode
referir-se a conhecimento especializado e aprendizagem adquirida através de educação.
A sabedoria no sentido do ensino e da aprendizagem pressupõe alta literacia e a literacia no contexto
do Antigo Israel era adquirida pelo treino escriba.
Como foi notado por outros autores62 não é de admirar que os termos hakamîm e soperîm são usados
ocasionalmente como sinónimos.

61
Ver Deuteronómio 1:5 e comparar com Deuteronómio 30:1-13.
62
(Toorn K. V., 2009, p. 81)
Regressando à nossa primeira evidência bíblica, Jeremias no seu discurso (8:8-9) ataca os hakamîm e
identifica-os como escribas. Séculos mais tarde encontramos no livro de Ben Sirá uma afirmação
interessante, em que o autor afirma que a sabedoria é a senda adequada do escriba (Ben Sirá 38:24).
Quando no livro de Provérbios encontramos a afirmação que o temor do Senhor é o princípio da
sabedoria, entende-se que a sabedoria neste contexto é o ensino obtido através da educação dos
escribas. Ponto que será explorada mais adiante, por agora podemos aferir que um escriba bem-
sucedido é por outras palavras um especialista e um académico – um hakam.
Considerando as evidências comparativas da Mesopotâmia e do Egito onde se verifica uma ligação
entre a arte escriba, a academia e a sabedoria. Sabemos que os académicos do Antigo Médio Oriente
tinham por definição recebido um treino escriba, eram escribas no senso de serem académicos.
O que vai de encontro á apropriação do termo soper que passou a significar “académico da escritura”,
o conceito de escriba é agora particularizado para o conceito de académico.
Assim os académicos do Antigo Israel não eram uma exceção ao padrão comum do seu tempo: eles
eram escribas, que se especializavam em textos clássicos, que neste caso tornava-os académicos da
Torá (Toorn K. V., 2009, p. 81).

O Termo “Sábio”

Nesta linha de raciocionio a Bíblia Hebraica emprega a designação de “sábio” para o mestre. O profeta
Jeremias 18:18 menciona-o ao lado de grupos sociais como os sacerdotes e os profetas. Estes sábios
são mencionados como transmissores de ensino no cabeçalho da coletânea de Provérbios 22:16; 24:23.
A confirmação textual de estes sábios tinham uma escola na corte consta em Provérbios 25:1, em que
a coleção de ditos de Salomão é atribuída “aos homens de Ezequias, rei de Judá”. Portanto estes sábios
são em primeiro lugar “escribas” (Provérbios 22:20; Eclesiastes 12:10); depois “investigadores” que
pesquisam as tradições dos pais (Job 8:8). Examinando também as ligações (Eclesiastes 8:1,5,17; 12:9)
tornando-se assim “mestres” (Provérbios 8:10, Job 15:18; Eclesiastes 12:9) e “conselheiros” (Jeremias
18:18; 2 Samuel 16:20,23; 17:1-14). A audiência destes sábios não era apenas constituída de “alunos”
ou “discípulos” (limud) que “escutam” manhã após manhã, aprendendo a responder devidamente
(Isaias 50:4). Os reis (2 Samuel 12:2), os filhos dos reis (2 Samuel 16:15), os funcionários dos reis (2
Samuel 20:16) e todos aqueles que precisavam dos seus conselhos (2 Samuel 20:22) (Wolff, 2007, p.
312).
2.3.2.1 As Evidências Epigráficas

A investigação académica tem permitido o acesso a várias evidências epigráficas importantes no


decurso de apurarmos melhor a realidade histórica dos escribas hebreus.
Apesar das escrituras hebraicas terem-nos fornecido um quadro geral informativo bastante razoável e
na seção seguinte ainda prestarem mais informações quanto ao sistema de ensino. O suplemento do
estudo comparativo da cultura escriba de outras civilizações e a análise dos dados epigráficos são
elementos necessários.
As questões de literacia e os debates em torno de quem no Israel da Idade do Ferro podia ler e escrever
deve ter em consideração várias formas de evidência. Várias evidências de escrita e leitura que
remetem às fases primitivas de Israel têm vindo a ser descobertas. Muitas destas evidências apontam
para uma diversidade de textos no período monárquico israelita, motivos não administrativos para a
literacia, escolas de escribas e níveis de literacia (Hess, 2009, p. 1).
Uma das evidências mais significativas em termos de descoberta epigráfica foi o abecedário de Tel
Zayt. É um abecedário do 10 século a.e.c. a este texto podemos ainda acrescentar o calendário de Gezer
e outras quatro inscrições hebraicas do 10 século.
Os textos hebraicos de Tel ‘ Amal, Tel Batash, Beth Shemesh e Rehob foram publicados entre 1991 e
2003. Apesar destas descobertas de textos hebraicos mais antigos, continuam a ser poucos em relação
às centras de inscrições encontradas no reino de Judá e de Israel, dos séculos finais (oitavo, sétimo e
sexto) (Hess, 2009, p. 2).
Um estudo realizado por Alan R. Millard63 procurou identificar o fenómeno do número de textos
preservados no mundo cuniforme da antiga Siria e Mesopotâmia. Nas suas conclusões ele idenfiticou
certas flutuações no número de tábuas preservadas durante a história das maiores cidades e civilizações
do mundo antigo. Como a Terceira Dinastia de ur, o período Larsa, a Primeira Dinastia da Babilónia,
Mari, Ugarit, o Período Médio Assírio e a era Neo-Babilónica. Em todos estes casos, é possível chegar-
se a um consenso geral de que quando um lugar é ocupado continuamente por longos períodos de
tempo, os textos que são descobertos irão pertencer ao último século da sua ocupação. Podendo não
haver textos do período inicial antes da ocupação, portanto a escassez de documentos dos períodos
mais antigos da monarquia em Israel não é algo incomum (Hess, 2009, p. 2).
Os vestígios que chegaram aos tempos modernos estão preservados em tábuas cuniformes, o fenómeno
da raridade de documentos explicado pelas ocupações sucessivas não é um fenómeno exclusivo do

Alan R. Millard, “Only Fragments from the Past: The Role of Accident in Our Knowledge if the Ancient
63

Near East,” in Writing and Ancient Near Easter Society


Antigo Israel mas encontrado noutros espaços físicos e temporais em períodos anteriores e
contemporâneos ao antigo Israel.
Várias inscrições monumentais do período da Idade do Ferro foram achados em várias nações vizinhas
de Israel e Judá: tais como a estela Mesha Moabita, a estela Aramaica de Tel Dan, e o texto neo-filisteu
de Tel Miqne. Em Jerusalém a inscrição do túnel de Siloé é uma grande inscrição monumental (Hess,
2009, p. 4).
As questões epigráficas estão diretamente relacionados com o sistema educacional dos escribas, isto
porque a proficiência em escrever alfabetos não é alcançada facilmente.

2.3.3 O Sistema educativo dos Escribas

Será necessário fazer uma recolha razoável de algumas fontes epigráficas que provam historicamente
uma elite especializada de escribas em Israel e consequentemente um sistema de ensino para os formar.
A questão da existência de “escolas” no Antigo Israel levanta várias dificuldades iniciais do ponto de
vista histórico. É portanto fulcral adotar uma metodologia multidisciplinar para esta questão especifica,
que envolva algumas áreas especificas e presentes nas antigas evidências hebraicas: (1) paleografia;
(2) ortografia; (3) numerais hieráticos.
Baseado nestes elementos é possível argumentar que uma educação escriba formal e padronizada era
uma componente da antiga sociedade israelita durante a Idade do Ferro II.
Tem sido dada atenção à forma de como o antigo sistema alfabético de escrita era aprendido, o registo
epigráfico do hebreu antigo reflete uma sofisticação profunda. Assim como consistência na produção
de materiais escritos sendo os dados do antigo hebreu consistentes com a presença de um mecanismo
para a educação formal e padronizada das elites de escribas no antigo Israel (Rollston, 2006, p. 48).
A paleografia é baseada nas evidências existentes mais antigas e mais puras, como a morfologia das
letras de uma sequência de escrita, o tamanho relativo das letras e o ambiente das letras (a proximidade
horizontal e vertical da posição das letras). A relação das letras com a linha de escrita, determinações
relativas a semelhanças e diferenças entras as várias componentes das séries de escrita, como as
lapidares e as cursivas. Assim como as questões referentes aos meios e instrumentos de escrita (tinta
na cerâmica, esculpida em pedra). E o desenvolvimento diacrónico e as variações sincrónicas dentro
de uma sequência escrita incluindo coisas como as inovações da escrita e as suas preservações
(Rollston, 2006, p. 50).
A antiga escrita hebraica apresenta uma uniformidade básica entre a escrita cursiva semi-formal usada
em tinta na cerâmica e a escrita semi-formal cravada em superfícies de pedra. Os antigos selos
hebraicos têm uma escrita cursiva formal, sendo esta mais conservadora em termos tipológicos.
Quando os especialistas fazem uma análise paleográfica devem segundo Christopher A. Rollston, ter
em consideração a presença do cursivo formal e do cursivo semi-formal. As conclusões do seu estudo
demonstram uma certa continuidade entre a escrita cursiva semi-formal (por exemplo os vários
conjuntos de inscrições por incisão) e a escrita cursiva formal. Sendo claro que a escrita cursiva formal
de selos (também por incisão) exibe certas diferenças em relação à escrita semi-formal (Rollston, 2006,
p. 53).

Figura 4 (Rollston, 2006, p. 58)

As antigas escritas hebraicas refletecem claros desenvolvimentos durante o oitavo até ao sexto século,
e estes desenvolvimentos podem ser discernidos e descritos de maneira empírica. Além disso, a antiga
escrita hebraica de um horizonte cronológico específico também reflete a consistência sincrónica (com
variação modesta dentro de determinados parâmetros). O antigo registo epigráfico hebraico reflete a
consistência sincrónica e um certo desenvolvimento diacrónico, aspetos significativos, porque exigem
um mecanismo formal e padronizado de educação escriba (Rollston, 2006, p. 58).
Outro aspeto importante de mencionar é a ortografia, os escribas hebreus eram treinados no
conhecimento de certas práticas convencionais referentes à relação espacial das letras.
Apresentarei o estudo de caso da sequência samek-pe, que ilustra este aspeto da análise paleográfica,
da figura 4.
Tendo por base os exemplares das antigas inscrições hebraicas do século 8 até ao 6 a.e.c. nota-se que
a antiga letra hebraica samek é iniciada de forma consistente acima da “linha de escrita” das outras
letras. Vários outros exemplos da sequência samek-pe permitem analisar com precisão distâncias
relativas nestas letras quando estão em sequência64. Isto demonstra que os escribas hebreus eram
meticulosos com a sua morfologia e a posição das letras que escreviam. Para além disso eram
meticulosos em manter a relação espacial convencional entre as letras, isto resulta de um treino
curricular especializado na produção de textos escritos (Rollston, 2006, p. 59).
Esta análise paleográfica vai de encontro a alguns argumentos que consideram não ter sido necessário
qualquer educação formal em Israel, uma vez que a sua escrita era simples e facilmente transmitida
em pouco tempo. O que de facto se afere é que a evidência epigráfica da antiga escrita hebraica
demonstra uma produção consistente e sofistificada de morfologia e posição das letras, padronizada
em certos horizontes específicos. Como acima foi referido os escribas aderiram a certas convenções
curriculares referentes a posições de certas letras sequências (samek-pe) (Rollston, 2006, p. 60).
Reunindo assim alguma argumentação face à possível existência de uma realidade educativa e
padronizada das formas da antiga escrita hebraica é necessário tentarmos reconstruir esse sistema de
ensino.

2.3.4. O termo “escola” no Antigo Israel

A definição e a delimitação de “escolas israelitas” tem sido uma componente problemática na


discussão da educação no antigo espaço israelita. Pelas evidências paleográficas existentes é difícil
concluir que exisitam um sistema educacional público acessível às massas populacionais. Existia antes
um mecanismo facilitado e orquestrado de forma formal e padronizada para a educação escriba no
antigo Israel (Rollston, 2006, p. 50).
A compreensão das mentalidades, tradições e valores dos escribas da Bíblia Hebraica jaz na maneira
como estes foram treinados. A educação escriba não era apenas um meio de aprendizagens técnica
mas também tinha uma componente de formas de pensamento e ética profissional.
A educação dos escribas em Israel não passava necessariamente pela dependência de um edifício que
possa ser identificado como uma escola, mas numa relação professor-estudante. Nesta relação o mestre
transmitia ao discípulo as habilidades escribas baseadas num currículo. Este programa de estudo pode

64
Aparece assim no abecedário de Kuntilet ‘Ajrud, neste caso, a letra samek é substancialmente mais alta que
a letra pe que a precede e normalmente noutros exemplos o samek simplesmente se ergue sobre a letra pe.
ser distinguido da simples aquisição de literacia para tarefas simples como contabilidade e tarefas
administrativas. As evidências epigráficas sugerem que existia um treino para o escriba em toda a
Palestina, mas a formação de escribas “especialistas e sábios” exigia um programa de estudos
providenciado apenas pela escola do templo (Toorn K. V., 2009, p. 97).
O treino oficial escriba pode ter sido na maioria dos casos uma experiência entre professor e aluno,
especialmente porque a profissão escriba tendencialmente ocorria em família e o pai seria naturalmente
o professor do seu filho. De qualquer forma alguns textos mostram alunos a referirem-se aos seus
professores no plural (Salmos 119:99; Provérbios 5:12-14, melammedîm, môrîm). Os estudantes
sentavam-se aos pés dos seus mestres, como os discípulos de Eliseu sentavam-se diante dele (2 Reis
4:38; 6:1) os anciãos no exilio sentavam-se diante do profeta Ezequiel (Ezequiel 8:1) e Paulo também
recebeu instrução aos pés de Gamaliel (Atos 22:3).
Apesar de em nenhum destes três casos acima referidos mencionar a instrução escriba, os exemplos
ilustram a configuração de uma situação de aprendizagem e ensino (Toorn K. V., 2009, p. 97).
Um profeta anónimo do da metade do século 6 a.e.c. retrata uma situação típica de uma sala de aula
para explicar a fonte dos seus oráculos:

“O Senhor Deus me deu a língua dos instruídos para que eu saiba sustentar com uma palavra o
que está cansado; ele desperta-me todas as manhãs; desperta-me o ouvido para que eu ouça como
discípulo.”
Isaías 50:4

Neste caso o profeta compara a inspiração da palavra falada por Deus com a instrução diária do
professor. O professor fala o texto primeiro, e os seus “alunos” (limmûdîm) repetem o texto a seguir
para o poderem escrever. A “escola” pode ter sido um fenómeno desconhecido antes do período
helenista (Bem Sirá 51:23, é a primeira menção para “escola”, bêt midras), mas os escribas recebiam
treino formal ao longo dos séculos.
O nosso acesso histórico a um currículo israelita é bastante reduzido em comparação com a lista
babilónica de manuais e compêndios para aprendizes de exorcismo.
As descobertas textuais feitas neste âmbito que foram interpretadas como excercicios escolares para
os escribas israelitas, são também suscetíveis a outras interpretações. Deparamo-nos aqui com um
trabalho de reconstrução do currículo israelita envolvido numa certa atividade especulativa. Como
fontes temos os dados comparativos da Mesopotâmia e do Egito que são úteis até certo ponto, as
indicações de Ben Sirá e as coleções da biblioteca de Qumran (Toorn K. V., 2009, p. 98).
O currículo do escriba no período do Segundo Templo deve ter consistido provavelmente em duas
fases, como os currículos do Egito e da Mesopotâmia. Numa primeira fase os estudantes adquiram as
habilitações básicas da escrita, composição e eloquência. Numa segunda fase o currículo estaria
orientado para a memorização e o estudo dos textos clássicos da sua cultural
As habilidades básicas da escrita numa fase inicial do programa consistia no domínio das vinte e duas
letras do alfabeto hebraico. Os escribas não podiam apenas ser meros reprodutores das letras, eles
tinham que aprender a escrever depressa e de forma legível. Como acima referi a caligrafia é um dos
nossos melhores indicadores a nível epigráfico da sofistificação da escrita. A califrafia e a velocidade
eram o resultado do exercício e da prática, dos estudantes, em copiarem textos que continham todas as
letras do alfabeto (Toorn K. V., 2009, p. 98).
No período Persa e Helenista os estudantes copiavam provavelmente os salmos 25 e 119, estes dois
textos são comparáveis à teodiceia babilónica, um acróstico cuniforme utilizado na instrução dos
escribas na Mesopotâmia.
O uso de salmos como material de ensino para alunos iniciantes dá-nos a impressão que a escola dos
escribas estava ligada ao templo.
Salmo 25 é um acróstico simples, tem vinte e dois versos e cada um começa com uma letra diferente
do alfabeto hebraico. O salmo 119 é uma composição mais complexa, composto por vinte e duas
estrofes com oito linhas por estrofe. As estrofes seguem a ordem do alfabeto hebraico, ao copiarem
estes textos os alunos automaticamente trabalhavam o alfabeto inteiro. O uso destes salmos como
exercícios para escribas aprendizes explicam-nos porque é que o seu protagonista é tipicamente um
jovem. O “eu” do salmo 25 preocupa-se com os “pecados da mocidade” (v.7), e o autor do salmo 119
é um “jovem” (v.9) que afirma ter aprendido a ter entendimento com os seus mestres (v.99) (Toorn K.
V., 2009, p. 99).
Pelo que já foi referido da evidência comparativa da Mesopotâmia e do Egito, a educação escriba
visava dominar a técnica da escrita e a aquisição de um vasto leque de vocabulário. Para o último
propósito os professos usavam listas como os textos lexicais da Babilónia e a onomástica egipcia. Tais
listas hebraicas sobreviveram em pequenos fragmentos, utilizados mais tarde noutras composições.
Por exemplo as listas dos animais puros e impuros em Deuteronómio 14 (comparar com Levítico 11)
é uma boa ilustração deste exemplo em termos comparativos com a Babilónia. As listas ordenam os
animais de acordo com o seu habitat (céu, terra, água) e as suas carateristicas físicas.
Associada à mestria de um vasto vocabulário estava a habilidade de compreender e usar terminologias
particulares a campos específicos de atividade. Os escribas tinham habilitações para escrever contratos
de compra (Jeremias 32:9-15); todo o tipo de transações como uma venda ou um divórcio exigiam um
documento escrito com o idioma legal apropriado (Deuteronómio 24:1,3; Isaías 50:1; Jeremias 3:8).
No treino os escribas tinham que aprender a linguagem dos notários, em casos de litígio a escrita era
essencial, a lei de acusação, a confissão de inocência e o veredito jurídico eram todos assentes por
escrito em documentos (Salmo 149:9; Job 31:35).
Os escribas eram os contabilistas da antiguidade, como foi sugerido pelo autor Karel Van Der Toorn,
a composição da lista de maldições mencionada em Números 5:23. Pressupõe da parte do escriba um
conhecimento de trabalho da tipologia do género, a afinidade entre as maldições em Deuteronómio 28
e os tratados de maldição assírios reflete provavelmente acesso a um fundo comum adquirido através
da educação (Toorn K. V., 2009, p. 100).
Podemos considerar que géneros literários específicos e até idiomas de profissões particulares podem
ser parte de um maior programa de ensino da língua. As competências linguísticas dos escribas
incluíam normalmente o domínio de uma ou mais línguas estrangeiras.
Por volta do ano 700 a.e.c. os oficiais do rei Hezequias estavam habilitados a realizar uma conversação
em aramaico (2 Reis 18:26).
Em adição ao aramaico o programa escriba pode ter ensinado outras línguas como o egipcio e mais
tarde o grego. Na descrição de Ben Sirá (39:4) o escriba bem-sucedido “exerce o seu cargo no meio
dos poderosos, e comparece diante dos que governam. Percorre terras de nações estranhas, para
reconhecer o que há de bom e de mau entre os homens”. Tais viagens pressupõe que o treinamento em
línguas estrangeiras era parte do currículo escriba (Toorn K. V., 2009, p. 100).
Não podemos omitir a mestria oral destes escribas, na evidência comparativa que temos do Egito e da
Mesopotâmia mostra que os escribas eram tão falantes como eram escritores e leitores. O escriba
israelita tinha a mestria da pena e da língua (ver salmo 45). Os escribas podiam compor os seus próprios
textos, e a composição era em grande parte uma arte oral dependente de habilidades retóricas. Para
desenvolver a habilidade retórica do estudante escriba, os professores recorriam a provérbios. Os
provérbios eram algo regular nos currículos da Mesopotâmia e do Egito e também no de Israel. O
didatismo dos provérbios e a sua qualidade rítmica tornavam-nos apropriados como material de ensino.
A referência no livro de Provérbios para “escrever nas tábuas do coração” (Provérbios 3:3; 7:3) usa a
imagem dos estudantes a escreverem os provérbios a partir de ditados. Esta expressão que irei explorar
mais adiante serve também como metáfora para a memória, atestando a prática educacional de
memorizar e copiar provérbios.
A fase secundária do programa escriba era dedicado ao estudo dos clássicos, o prólogo de Ben Sirá é
bastante explícito quando menciona “os livros dos pais” comparando com “ a sabedoria dos antigos/
estudo dos profetas/ história dos homens célebres” (Ben Sirá 39:1-3). A evidência interna do livro de
Isaías é favorável à transmissão através de escolas, o caráter sedimentar do texto é melhor explicado
por um crescimento ao longo dos séculos através de um processo de comentário oral por professores
que se tornou parte do texto escrito (Toorn K. V., 2009, p. 101).

2.3.5 O Currículo do Escriba de Israel

Para podermos estabelecer as hipóteses mais viáveis dos clássicos presentes no currículo escriba
hebreu devemos observar a biblioteca de Qumran. Os livros mais copiados nesta biblioteca são o livro
de Deuteronómio, os Salmos e o profeta Isaías, esta estatística foi comentada por Eugene Ulrich que
referiu ser interessante serem estes os três livros mais frequentemente citados no Novo Testamento
(Ulrich, 1999, p. 19).
Outras possibilidades que fundamentam o papel central de Deuteronómio, Isaías e Salmos no currículo
escriba encontram-se na assinatura levítica na redação final destes livros. O papel dos levitas nos
capítulos finais de Deuteronómio é particularmente proeminente, os levitas são aqueles que mantêm a
Torá como guardiãos e intérpretes (Deuteronómio 31:9-13, 24-26).
O saltério na sua forma canónica é também uma compilação de cariz levita (Smith M. S., 1991, pp.
258-263), encontramos a menção à “Casa de Levi” num salmo exterior às cinco coleções (Salmo
135:20) como algo significativo, assim como a ênfase no estudo da Torá na introdução do saltério
(Salmo 1:2).
A redação levita é menos óbvia no Livro de Isaías, no capítulo final encontramos uma referência aos
Levitas, em concreto uma promessa que Deus iria reúni-los em Jerusalém, chamando-os das várias
nações (Isaías 66:32). Esta profecia demonstra a redação escatológica levita no Livro de Isaías (Toorn
K. V., 2009, p. 102).
A educação escriba no Período Persa estava nas mãos Levitas, o papel levitico na formação de
Deuteronómio, Isaías e Salmos é uma evidência que corrobora o uso destes livros no treinamento dos
escribas. A seleção destes textos presumivelmente baseou-se na sua antiguidade e autoridade, em parte
na sua utilidade como ferramentas para os escribas e os professores. Os escribas ensinavam a Torá ao
povo, o Livro de Deuteronómio providenciava-lhes o texto de uso. Os escribas assistiam os fiéis nos
seus deveres devocionais, incluindo a recitação de orações e a composição por escrito de cantos de
ações de graça, o Livro de Salmos era o manual para estes liturgistas. O Livro de Isaías ensinava os
escribas formas de construir o passado, o presente e o futuro, dando-lhes um meio interpretativo de
lidarem com a história e as suas vicissitudes (Toorn K. V., 2009, p. 103).
O escriba no seu treino estudava os clássicos através da “imersão” no texto, as citações, alusões e
afinidades estilísticas com os clássicos na “literatura secundária”, como os escritos não canónicos de
Qumram, os pseudo-epigrafos e o Novo Testamento, trazem um conhecimento profundo da tradição
escrita. Os estudantes cantavam os textos, copiavam-nos por ditados e comprometiam-se a memorizá-
los, era um processo de enculturação65 através da memorização.
O salmo 119 era material de exercício para estudantes do ensino fundamental, transmite a imagem de
um escriba a murmurar o texto da Torá. A instrução nos clássicos não era apenas neste contexto de
educação escriba uma questão de memorização. Os professores explicavam o significado dos textos
aos seus alunos, se os escribas conseguiam elucidar o sentido das escrituras (sekel, Neemias 8:8; hebîn,
Daniel 11:33), eles recebiam treino exegético (Toorn K. V., 2009, p. 103).
Encontramos rastos desta tradição nalguns textos bíblicos por exemplo em Neemias 8:13-18 temos
uma regra haláquica sobre os vários tipos de ramos que podem ser utilizados para construírem cabanas
na festa dos tabernáculos. Uma profecia dada pelo profeta Ageu (2:11-13) contém um comentário a
uma pergunta sobre as regras de pureza e contágio.
Para continuarmos a nossa caracterização é importante ressaltarmos alguns aspetos no contexto do
Antigo Médio Oriente no que se refere à recuperação da memória e à tecnologia da escrita.

2.3.6 O Papel da Memória na Formação da Textualidade Hebraica

A nossa reflexão sobre o sistema educativo dos escribas hebreus e dos seus currículos enviesa-se na
tentativa de recuperar o processo pelo qual os antigos escribas hebreus, escreveram e reveram os textos
de longa duração presentes na Bíblia Hebraica.
Até aqui temos estudado os contextos históricos da escrita e as exigências da tecnologia dos
pergaminhos, por exemplo a sua durabilidade.
Neste seguimento o papel da memória que por sua vez insere-se num âmbito cognitivo é agora alvo da
nossa reflexão acerca da composição e revisão textual, algo que já foi designado por “tecnologia
cognitiva”66.
Esta reflexão insere-se nos estudos literários da Mesopotâmia, Egito, Grécia e Israel, estes temas
surgem da interseção de diferentes disciplinas independentes como a educação e a socialização das
elites mais elevadas da sociedade. É neste contexto que encontramos historicamente o ambiente
primário favorável para a transmissão de literatura de longa-duração como a Bíblia, Gilgamesh, Enuma
Elish ou Homero.
A literatura de longa-duração é a categoria onde se inserem textos geralmente vistos como arcaicos e
antigos, inspirados e sagrados, que são transmitidos de geração em geração transcendendo de forma

65
Onde se internalizava a memória cultural.
66
Termo utilizado pelo autor David Carr no seu ensaio Torah on the Heart: Literary Jewish Textuality Within
Its Ancient Near Eastern Context (Carr, 2005)
independente o contexto do seu calendário originário. Estes textos foram e são consumidos por
gerações sucessivas (Carr, 2005, p. 18).
O processo de educação ou enculturação não era necessariamente na antiguidade um treino numa
“escola” no sentido moderno do termo com um professor profissional e um edifício específico para o
efeito. No contexto por nós estudado o ambiente educacional era mais familiar ou pseudo-familiar,
onde o “pai” ensinava os seus filhos (ou estudantes que eram vistos como filhos) a antiga tradição.
Num sentido mais amplo as “elites” não eram apenas educadas pelos profissionais do texto como os
“escribas”, mas também por profissionais da classe sacerdotal, governamental, altas patentes militares
e burocracia como outras elites.
O ponto principal da produção textual e do processo de receção no contexto educacional e de
enculturação não era tanto para rever e gravar textos em tábuas, papiros ou pergaminhos. Mas para
“gravar” os textos palavra por palavra nas mentes da geração seguinte. A forma de literacia antiga era
aprendida, mas todo o processo ultrapassava as dimensões do mero aprendizado de letras e palavras.
Era a apropriação de um vocabulário de episódios inteiro, linhas poéticas, temas narraticas e valores
implícitos. As cópias escritas dos textos serviam como um propósito subsidiário neste sistema, como
símbolos numinosos da reverenciada tradição antiga, como auxiliares de aprendizagem e pontos de
referência para garantir o desempenho oral preciso (Carr, 2005, p. 18).
Esta noção é importante para compreendermos como é que os escribas recriavam os textos bíblicos, já
foi referido que a Bíblia foi formada e usada num contexto oral-escrito. Por um lado os textos bíblicos
e textos semelhantes de outras culturas eram “orais” no sentido que eram memorizados e declamados
publicamente. Por outro lado as cópias escritas destes textos eram utilizados neste processo para ajudar
os escribas a interiorizar a tradição textual e verificarem se a apresentação oral dos textos era a correta.

“Filho meu, guarda as minhas palavras e entesoura contigo os meus mandamentos observa os meus
mandamentos e vive; guarda a minha lei como a menina dos teus olhos. Ata-os aos teus dedos,
escreve-os na tábua do teu coração”
Provérbios 7:1-3

O modelo de textualidade pelo meio da educação oral-escrita correlaciona-se com os dados históricos
disponíveis dentro e fora da Biblia Hebraica. Verifica-se que existiu um processo de socialização de
elites através de um processo de internalização oral-escrita de textos antigos, a mente desempenhou
um papel fundamental nas culturas orais. Quer seja pela memória, quer seja pela recomposição dos
textos que memorizou, qualquer sistema de educação textual no Antigo Israel prioriza esta vertente
particular.
O foco da oralidade e da literacia no uso de textos como os da Bíblia era cognitiva e social, apesar de
termos registos históricos da exposição de textos em contextos específicos para audiências mais
abrangentes. Como por exemplo a leitura da Torá por Esdras, o grande contexto da transmissão e da
revisão ao longo do tempo foi o processo de internalização dos textos, palavra por palavra, no contexto
educativo da antiguidade.
Será útil referir o sistema egipcio que neste aspeto aproxima-se bastante de Israel, desempenhando um
papel importante na emergência da textualidade israelita antiga. Como é evidente na apropriação
israelita dos termos, para instrumentos de escrita, números egípcios e o modo egipcio de escrita da
direita para a esquerda (Carr, 2005, p. 20).
É interessante a citação proveniente do sistema egípcio que pode ter sido a fonte do verso de Provérbios
acima referido: “You are, of course, a skilled scribe at the head of his fellows, and the teaching of
every book is incised on your heart”67. Outros testemunhos de uma educação oral-escritra podem ser
acrescentados ao nosso estudo na Instruçao de Merikare: “Do not kill one whose excellences you know,
with whom you once chanted the writings” ou a conclusão da Instrução de Ptah-Hotep que menciona:
“Memory of [the teaching’s maxims] will not depart from the mouths of humankind, because of the
perfection of their verses” (Parkinson, 1997, p. 51).
Estas passagens sugerem que o processo educativo oral-escrito focava-se na interiorização e na
socialização das gerações jovens para cargos de elite. A literatura educacional egipcia inclusive exorta
a memorização dos ensinamentos dos textos escritos (Carr, 2005, p. 21). As cópias práticas dos textos
instrutivos egipcios incluem geralmente marcações vermelhas para ajudar na recitação e interiozação
de blocos memorizáveis. A própria palavra egipcia “ler”, sdy, significa “ler em voz alta”, apontando
para a inter-relação da escrita e oralidade no processo de interiorização da educação (Carr, 2005, p.
21). A publicação em 1923 do livro egipcío Instrução de Amenemope e a sua análise com Provérbios
22:17-24 apresenta o único exemplo existente da antiga literatura aforística do Oriente Próximo. É
material que certamene foi usado para ensinar os escribas egipcios e podemos pela comparação aferir
que o material em Provérbios foi usado também para instruir os escribas hebreus.
Farei apenas uma breve menção:

“Incline your ear and hear my words,


and direct your hear to my knowledge;
for it will be pleasant if you keep them in your belly,

67
Citado em (Carr, 2005, p. 20).
that they may all be secure on your lips.”68

Comparemos com Provérbios 22:17-18:


“Inclina o teu ouvido e ouve as palavras dos sábios,
e aplica o teu coração ao meu conhecimento.
Porque será coisa suave, se os guardares no teu peito,
se estiverem todos eles prontos nos teus lábios”

Em ambas as passagens o exórdio inicia-se com o ato de “ouvir”, “inclinar o ouvido” às palavras dos
sábios. A expressão na versão de amemonepe que ensina “marca as minhas palavras no caixão da tua
barriga” (3:13) é importante para detetramos o seu significado no texto bíblico e na instrução dos
escribas. O homem reúne os seus pensamentos no seu ventre, esta noção egípcia da função do ventre
encontra-se em Provérbios 18:8; 20:27,30 e 26:22. O “caixão do ventre” é uma metáfora baseada numa
prática egípcia, em que o armazenamento de rolos de papiro era feito num tipo especial de caixa (Fox,
2009, p. 707).
A noção do ventre reter as palavras aparece também em Job 15:2 e 32:18-19, mas são os lábios que
têm a função de segurar os pensamentos que estão armazenados no ventre. O sábio ao falar iria citar
esses ensinamentos “armazenados” no ventre e elaborar o seu discurso em conformidade com os
princípios da tradição que aprendeu.
O conceito de sabedoria no livro de Provérbios foi crescendo em estágios69, não sendo apenas um
género literário, é um processo. Uma dialética em que pensadores de diferentes épocas meditaram
sobre as ideias que haviam aprendido dos seus antepassados, formando-as de novas maneiras, nesta
dialética os novos conceitos não anulam nem deslocam os antigos, antes ampliam-nos e enriquecem-
nos, testemunhando todo o processo histórico do papel da memória na textualidade hebraica (Fox,
2009, p. 922).
Na Bíblia Hebraica temos na maioria dos casos referências a uma educação “pai-filho” em que o
“escrever” e o “guardar” no coração a Torá eram a essência desse processo educativo. Textos como
Deuteronómio 6:-6-9 e 11:18-21, e textos que falam do selar a torá nos corações dos filhos/alunos em
Isaías 8:16-18 e 30:9-11 fazem muitas vezes referência à memorização.

68
The Amenemope Collection traduzida em (Fox, 2009, p. 707)
69
O primeiro estágio aparece em Provérbios 10-29 (Partes II-V), as “coleções antigas”; o segundo estágio
aparece em Provérbios 1-9 (Parte I), as dez lições e o prólogo; o terceiro estágio aparece em Provérbios 1-9
(Parte I), os cinco interlúdios
Os temas e imagens simbólicas nas narrativas também não nos devem ser despercebidos, temos a
promessa em Jeremias que Deus iria escrever uma nova aliança no coração de Israel (Jeremias 31:33-
34). O profeta Ezequiel é retratado a comer um pergaminho, isto é uma imagem de interiozação de
uma mensagem escrita (Ezequiel 2:9-3:3), e a menção da Torá de Deus ser escrita nas partes mais
íntimas do salmista no salmo 40:9.
Todos estes discursos são reflexos de uma educação oral-escrita, verificamos a ênfase na tradição
bíblica do “escutar” como prioridade relativamente ao “ler” ou “escrever” os textos bíblicos. Esta
ênfase no “escutar” e no “falar” remete-nos a um contexto simbólico em que os estudantes escreviam
os textos da tradição antiga “nos seus corações” depois de os “escutarem” e interiorizá-los (Carr, 2005,
p. 23).
Desta reflexão do ponto de vista histórico interessa perceber qual foi o papel da memória na
transmissão das fontes escritas. Os textos memorizados e apresentados oralmente exibem um tipo
diferente de variação de tradições escritas que são transmitidos exclusivamente através da cópia
manual. Estas tradições tardias mostram variações que eram geralmente resultado de erros visuais dos
copistas – variantes gráficas70. Os estudos realizados em manuscritos mais antigos como por exemplo
o texto de Homero71 exibem outro tipo de variações, que apontam para um processo adaptativo de
atualização livre da tradição, que acaba por ser dinâmica e não uma mera cópia reproduzida. Estes
indicadores preservaram nos registos escritos dos versos homéricos um processo de memorização e
recitação.
Existem diferentes tipos de variantes textuais entre os textos memorizados e declamados e as tradições
escritas. Verificam-se casos de adaptação, em vez de cópia destas tradições, surge assim entre os
escribas uma tradição livre de melhorarem e adaptarem o texto. Estes indicadores podem ser
identificados nos versos de Homero ou nos da Bíblia (Carr, 2005, p. 30), apontando-nos para um
processo de recitação e memorização.
Dentro desta realidade histórica materiais textuais antigos como o épico de Homero ou a Bíblia,
devemos lidar com uma mistura de dinâmicas orais e escritas. Ao serem reproduzidos, estes textos são
muitas das vezes escritos de memória apresentando assim a substituição de alguns termos e adaptações
radicais da tradição, designa-se este fenómeno de variações de memória.
A linguista israelita Tamar Zeui72 encontrou váios exemplos nos livros de Samuel, Reis e Crónicas,
variações nos verbos ativos ou passivos são utilizados para expressar conteúdos semelhantes. Estes e

70
Como por exemplo saltarem uma linha, confundirem letras entre outros.
71
Estudo realizado por Milmam Parry em The Making of Homeric Verse: The Collected papers of Milman
Parry. Ed. By Adam Parry. Oxford: Clarendon Press citado em (Carr, 2005, p. 25)
72
Citada em (Carr, 2005, p. 30)
outros casos envolvwem a variação sintática que não aparenta estar ligada a alterações na língua
hebraica ou a diferenças no conteúdo semântico. Tão pouco representam as mudanças comuns que
ocorrem num ambiente focado exclusivamente na cópia gráfica dos textos. (Carr, 2005, p. 30).
São antes exemplos pesquisados pelo linguista sem qualquer investimento aparente em qualquer
modelo, para a criação desta literatura de transformações cognitivas que ocorrem nos textos
transmitidos em parte através da memória.
Verifica-se também uma tendência expansionista da tradição textual antiga, na literatura do Antigo
Israel a datação dos documentos é bastante debatida. Mas alguns dos casos de expansão documental
mais verificáveis são: os manuscritos do Pentateuco proto-samaritano, 4QRP, e as versões longas do
livro de Ester e Daniel, provavelmente a tradição de Jeremias.
A tradição de Samuel e Reis em Crónicas, foi abreviada não expandindo assim a sua tradição
percursora.
A terceira marca das variações da memória é a harmonização, geralmente a harmonização de uma
parte de um dado texto com outra seção literária que o escriba entendia fazer parte do mesmo texto.
As tradições do pergaminho do templo e do pergaminho proto samaritano são harmonizações de várias
leis bíblicas (Tygay, 1985).
Estas variações de memória permitem-nos historicamente “imaginar” o escriba na sua sala de trabalho
a compilar um pergaminho.
No caso do Pentateuco os escribas ao reproduzirem as tradições lidaram com este fenómeno (as
discrepâncias), combinando e harmonizando as diversas tradições divergentes. Por vezes e como se
verifica este provesso leva à contração das tradições, contradizendo a tendência escriba de preservar e
expandiar as tradições. Estas harmonizações envolviam aquilo que pode ser entendido como “híper-
memorização” da tradição, onde diferentes partes da tradição eram consideradas santas e assim não
era permitido contradizerem-se.

2.3.7 Modos de Produção Textual

Tendo em conta o contexto histórico da escrita israelita e do papel da memória na textualidade


hebraica, será útil examinarmos os vários modos de produção textual, usados pelos antigos escribas,
exibidos na Bíblia Hebraica.
Como acima foi referido o escriba não era apenas um copista, mas também um compositor que dava
aos seus trabalhos uma certa forma e estrutura determinando as palavras e a terminologia dos textos.
A transmissão da tradição textual para as gerações posteriores era uma responsibilidade dos estudantes
da arte escriba ao copiar os textos clássicos. O envolvimento dos escribas na produção literária excedia
o papel do mero copista, como demonstramos acima, o escriba tinha um papel ativo na formação e na
transformação da tradição (Toorn K. V., 2009, p. 110).
Podemos distinguir seis formas de produção textual por parte dos escribas: (1) a transcrição do
conhecimento oral; (2) a invenção de textos novos; (3) compilação do conhecimento existente, seja
oral ou escrito; (4) expansão de um texto herdado; (5) adaptação de um texto existente para uma nova
audiência e (6) integração de documentos individuais numa composição mais compreensiva.
A transição entre estes vários modos e técnicas de produção textual encontra-se presente em vários
textos antigos, da Bíblia, da Babilónia ou do Egito (Toorn K. V., 2009, p. 110).

2.3.7.1 Transcrição

Neste método o escriba transcrevia um texto que lhe tinha sido ditado, sendo por isso um texto de fonte
oral, ele copiava pelo “ouvir” e não por “ver”. Encontramos a imagem de modelo de produção textual
nas fontes bíblicas do Livro de Jeremias, em que o escriba Baruque regista os oráculos que lhe são
ditados por Jeremias.

“Então Jeremias chamou a Baruque, filho de Nerias; e escreveu Baruque, no rolo dum livro,
enquanto Jeremias lhas ditava, todas as palavras que o Senhor lhe havia falado”

Jeremias 36:4

Nesta descrição o escriba regista fielmente o que o ouve sem acrescentar ou omitar uma única palavra,
ele apenas transforma um artefacto oral num texto escrito (Toorn K. V., 2009, p. 110).
Este fenómeno de produção textual através do ditado é comum no mundo antigo, existem outras
referências por exemplo numa carta da Mesopotâmia encontrada no arquivo real da cidade de Mari.
Onde se descreve um profeta a perguntar o a um oficial real por um “escriba discreto” que “possa
escrever-lhe uma mensagem do deus Samas para o rei”73.
Não podemos apurar se a história do escriba Baruque é ou não fictícia, mas o fenómeno de um profeta
ditar algo a um escriba não é uma fantasia literária. A partir deste relato nota-se que o escriba assume
um papel invisível no texto que escreve por ditado, de qualquer forma a transformação do discurso em
escritura não consistia apenas num registo mecânico do discurso oral. Ao tornar a palavra anunciada

73
Publicado em Letters to the King of Mari: A New Translation, with Historical Introduction, Notes, and
Commentary, Mesopotamian Civilizations 12 (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2003) citado em (Toorn K. V.,
2009, p. 111)
em escrita, o escriba adaptava o discurso às convenções do género escrito narrativo, no contexto do
Antigo Médio Oriente o género mais comum usado nas transcrições era a carta. Como já foi referido
o nível modesto de literacia na social, levava os correspondentes a usarem o trabalho dos escribas.
Estas cartas continham algumas marcas do trabalho escriba, resumindo podemos afirmar que o escriba
mesmo no desempenho de papéis mais instrumentais como registar um ditado, impõe o seu estilo,
linguagem e ideias sobre o texto. Historicamente os escribas são secretários e transcritores, não
fonógrafos na sua escrita, eles moldam o material que lhes chega por via da tradição oral. Se a maior
parte da Bíblia Hebraica remonta à tradição oral, desde as narrativas patriarcais, os oráculos dos
profetas, as leis sacerdotais às geneologias e provérbios. O único acesso contemporâneo que temos a
esta tradição passa pela sua transcrição (Toorn K. V., 2009, p. 115).

2.3.7.2 Invenção

A transcrição e a invenção são dois modos de produção textual onde não se verifica uma extensão do
texto anterior por parte do escriba. Tanto na transcrição como na invenção o escriba produz um texto
original, o escriba que transcreve transforma a tradição oral em palavra escrita. O escriba que inventa
compõe um texto da sua própria autoria, em ambos os casos estes escribas produzem as fontes escritas
das quais todos os outros modos de produção textual dependem (Toorn K. V., 2009, p. 115).
Como nenhum texto da Bíblia Hebraica é numa primeira instância uma invenção explícita de um
escriba, farei uma breve alusão a um exemplo da literatura do Antigo Médio Oriente, indo depois ao
encontro de certas especificidades textuais bíblicas.
Uma composição famosa elaborada por um escriba é a Teodiceia Babilónica74 este poema identifica
que Saggil-Kinam-ubbib foi o seu autor. De acordo com a tradição este homem foi um académico que
serviu na corte de Nabucodonor I (1125-1104) e Adad-apla-iddina (1068-1047). Treinado como
exorcista o autor deste poema compôs um diálogo entre dois académicos, se considerarmos o elo
tradicional entre a sabedoria e a arte escriba como realidades retratadas nas duas personagens desta
Teodiceia. Naturalmente podemos assumir que se trata de uma representação da cultura escriba, as
carateristicas desta composição em forma de diálogo, focam o contexto escriba.
A partir da especificidade deste texto babilónico podemos sugerir que algumas composições literárias
acrósticas do corpo bíblico são invenções escribas. Este argumento sugerido por Toorn defende que

74
Tradução publicada por Wilfred G. Lambert, Babylonian Wisdom Literature (Oxford: Clarendon, 1960),
63-91 citado em (Toorn K. V., 2009, p. 115)
estas composições literárias podem ser totalmente apreciadas apenas por pessoas que conhecem o
modo correto de ler estes textos (Toorn K. V., 2009, p. 116).
Neste âmbito estamos perante acrósticos bíblicos, produtos da cultura escriba, para a instrução e o
entretenimento dos escribas e dos seus aprendizes. Quando abordei a questão do currículo escriba
hebreu, mencionei que os salmos 25 e 91 estão dispostos de forma alfabética, como materiais de
ensino. É assim possível que os escribas que ensinavam os aprendizes tivessem composto estes textos,
utilizados num contexto de sala de aula75. Outro exemplo de uma composição escriba em forma
acróstica é o louvor da mulher virtuosa em Provérbios 31:10-31, isto porque combina a técnica
acróstica com ensinos de sabedoria. A admoestação “filhos”76 na acróstica do salmo 34:11 “Vinde,
filhos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do Senhor.” é outra indicação que acrósticos foram usados
num contexto educacional (Soll, 1988).
Reunindo as evidências até aqui mencionadas: o uso de acrósticos na literatura, o conhecimento
específico da cultura escriba e por sua vez o uso de fontes escritas para redigir textos originais, são os
indicadores necessários para identificar este modo de produção textual.
O livro de Job apresenta-se na forma de um diálogo com ênfase no tema da teodiceia, assemelhando-
se ao primeiro exemplo aqui referido da Teodiceia Babilónica. Para além destes traços gerais o livro
exibe um vocabulário raro e um conhecimento específico acerca de certos fenómenos naturais, sendo
um diálogo entre escribas. Claramente o texto demonstra a influência de listas de compêndios usadas
em escolas de escribas (Toorn K. V., 2009, p. 116).
Outras composições sapienciais como o livro de Eclesiastes77 e o livro de Ben Sirá são invenções
escribas, Eclesiastes cita inúmeros provérbios e identificou o escriba no seu pós-escrito (Eclesiastes
12:9-10). No caso de Ben Sirá o autor refere-se a si próprio como o professor de uma escola (Ben Sirá
50:27; 51:23).
Outra composição bíblica baseada em fontes escritas anteriores é o livro de Crónicas, o seu autor (ou
autores) são anónimos e o seu discurso enfatiza duas coisas: o tempo e o facto de a sua obra ser um
trabalho historiográfico estudado.
Ao longo do livro existem referências a inúmeras fontes escritas, algumas conhecidas outras perdidas,
em grande medida estas referências são uma demonstração de uma aprendizagem ampla.
Resumindo quando a invenção é o modo de produção textual, o escriba que escrevia agia como um
autor. Contudo se o escriba permanecia anónimo, era porque não pensava em si como um autor no

75
O termo mais correto seria num contexto de aprendizagem, ambos os textos mencionam jovens e professores.
76
Que sabemos referir-se a alunos num contexto de aprendizagem.
77
Uma das carateristicas que enquadra Eclesiastes como uma composição escriba é a citação de provérbios, isto
porque usa material existente noutras fontes escritas.
sentido moderno do termo. Ele praticava a arte da produção literária utilizando as técnicas e
ferramentas que adquiriu na sua educação escriba. Como foi referido anteriormente a transcrição e a
invenção são as fontes primárias dos textos bíblicos, sendo que a invenção é o modo de produção
textual proeminente na literatura sapiencial, historiografia e os salmos.

2.3.7.3 Compilação

Outra forma de redigir livros era a arte escriba da compilação, será apropriado neste modo de produção
textual falar do livro de Provérbios. Provérbios 25:1 introduz vários proérbios com as seguintes
palavras: “Também estes são provérbios de Salomão, os quais transcreveram os homens de Ezequias,
rei de Judá”. Este excerto menciona a transcrição que testemunha a formação de uma coleção escrita
ou compilação.
A compilação pode englobar elementos da tradição oral ou textual, no primeiro caso envolve uma
transcrição, no segundo dirige-se apenas à criação de uma série. A essência da compilação de textos
por parte dos escribas em ambos os casos é uma justaposição. Tendo por lógica uma perspetiva aditiva
e agregadora, no lugar de uma perspetiva subordinativa e analítica (Toorn K. V., 2009, p. 119).
O livro de Provérbios78 apresenta-se como “Provérbios de Salomão” (Provérbios 1:1, 10:1, 25:1),
“Palavras do Sábio” (Provérbios 22:17, 24:23), as “Palavras de Agur filho de Jaqué” (Provérbios 30:1)
e as “Palavras de Lemuel, rei de Massá” (Provérbios 31:1).
Esta coleção foi um trabalho escriba porque compilar era uma técnica escriba clássica de composição,
os escribas redigiram e formaram o livro de Provérbios ao colecionarem vários ditos e apresentando-
os em séries de compilações escritas. No antigo Médio Oriente a compilação era um modo de produção
escriba bastante comum presente numa grande variedade de textos (Toorn K. V., 2009, p. 119).
As listas lexicais podem ser consideradas como o primeiro nível da arte escriba da compilação, poucas
listas hebraicas sobrevivem em fragmentos. Sendo no entanto suficientes como evidência da prática
de listagem entre os escribas hebreus, algumas listas de fenómenos naturais são aludidas em hinos.
Como em Job 38, Salmos 148, Ben Sirá 43 e a versão de Daniel 3:52-90 na Septuaginta (Toorn K. V.,
2009, p. 120).
A especificidade destas passagens deve-se ao facto dos seus autores não as terem copiado ou inventado,
estes escribas utilizaram um formato de lista e até um esboço substancial de uma lista existente como
meio de elevar o seu louvor ao divino. Estas listas a um nível mais sofisticado são listas de observações,
em vez de palavras ou nomes, o escriba lista fenómenos como as várias configurações de entranhas de

78
Na alínea 2.3.6 e na nota de rodapé nº69 desenvolvi vários aspetos da formação do Livro de Provérbios.
animais79. É importante aprofundarmos a ligação existente entre listas enciclopédicas de oráculos
interpretados na Babilónia, com a anatomia dos animais. Isto porque nas crenças da Babilónia os
deuses escreviam os seus desígnios nas entranhas dos animais, e as listas de oráculos assemelham-se
a listas de sinais cuniformes, o escriba recolhia os sinais escritos pelos deuses (Toorn K. V., 2009, p.
121).
Existem várias listas de oráculos desde a astrologia até formas particulares do comportamento humano,
á primeira vista este tipo de compilações não fazem parte da Bíblia. Mas isto não indica que os escribas
hebreus não tivessem casos compilados como um modo de produção textual.
Temos assim o caso das coleções primitivas de leis, como as que estão preservadas no código da
aliança (Êxodo 21:1-22:16), estas coleções formalmente assemelham-se às listas de oráculos da
Babilónia. Isto porque todos as entradas de uma lista de oráculos consiste em duas partes: a prótase
que é a descrição da situação ameaçadora e depois a explicação do seu significado, que neste contexto
seria um decreto divino.
As leis bíblicas casuísticas80 apresentam a mesma estrutura, após a definição de uma cláusula legal na
prótase, a consequência é o veredito correspondente, uma maldição que também é o decreto divino.
Em ambos os casos, os oráculos e as leis, são uma junção de casos históricos e hipotéticos. Os escribas
na Babilónia que recolhiam oráculos, na sua ânsia de completarem as listas observavam sinais da sua
própria invenção (Morrow, 2000, p. 308).
Esta observação é importante uma vez que como no caso dos oráculos cuniformes, muitos dos casos e
vereditos bíblicos são invenções escribas, porque a compilação leva à invenção.
As leis sacerdotais por exemplo podem ser vistas como compilações de instruções separadas, a palavra
hebraica para uma instrução sacerdotal é tôrâ; sob circunstâncias normais a “não perecerá a lei do
sacerdote” (Jeremias 18:18; comparar com Ezequiel 7:26). Pelas passagens em questão a instrução do
sacerdote era casuística, aquele que buscava instrução dirigia-se ao sacerdo-te perguntando uma
questão específica e recebia uma resposta específica (os exemplos de Ageu 2:11-13 e Malaquias 2:6-
7).
O livro de Levitico é uma compilação deste tipo de instruções sacerdotais, as várias “leis” são marcadas
por pós-escritos:

“Esta é a lei sobre os animais e as aves, e sobre toda critatura vivente que se move nas águas e
toda criatura que se arrasta sobre a terra;”

79
No caso especifico dos manuais babilónicos.
80
Ver o caso de Êxodo 21:26-28
Levitico 11:46

“Esta será a lei do leproso no dia da sua purificação: será levado ao sacerdote,…”
Levitico 14:2

Para sinalizar o fim da compilação o escriba acrescentava este pós-escrito dizendo “são esses os
estatutos, os preceitos e as leis que o Senhor firmou…no monte Sinai, por intermédio de Moisés”
(Levitico 26:46). O livro é uma compilação escriba de tôrôt, endossado com uma origem divina e
atribuído a Moisés (Toorn K. V., 2009, p. 123).

2.3.7.4 Expansão

A expansão ocorria quando um escriba expandia um documento existente com adições suas, exceto no
caso de anotações e rabiscos nas margens, geralmente referidas como comentários ou explicações, as
expansões exigiam a preparação de uma nova cópia do texto.
O formato de uma tábua cuneiforme ou um pergaminho hebraico não tornavam possivem a expansão
textual, a não ser que o escriba estivesse preparado a escrever o texto inteiro, ele não podia incorporar
material novo no manuscrito existente (Toorn K. V., 2009, p. 125).
Anteriormente referimos o papel dinâmico da variação da memória na produção textual, o papel desta
variação implicou certas expansões textuais.
Neste caso concreto de modo de produção textual, farei a distinção entre a expansão que ocorre num
contexto de uma nova edição do texto existente e o processo comum da reprodução de um manuscrito
base pela memória.
Iremos abordar a expansão textual neste caso como atividade no contexto de uma nova edição, este
fenómeno parece-nos supreendente porque contrasta com a veneração que os escribas tinham pela
tradição escrita. Será necessário situarmo-nos num plano concreto da cultura escriba, a expansão era
de facto uma infração no código de conduta do escriba, se o virmos como um copista fiel dos
manuscritos. Nesta situação o escriba é um editor, a expansão é um fenómemo bem atestado no
contexto de novas edições, como editor o escriba tem liberdade para fazer aquilo que seria proibido ao
escriba copista (Toorn K. V., 2009, p. 126).
Por um lado devemos ter em conta que o fenómeno de expansão intratextual situa-se numa dinâmica
da tradição oral dos mestres que era assimilada no texto escrito. Situamos a origem das expansões
textuais nas explicações que os professores oralmente transmistiam aos seus alunos acerca dos textos.
O fenómeno da produção textual ocorria em paralelo ao fenómeno da cultura oral e da transmissão dos
seus conhecimentos. O fenómeno que atesta esta realidade é a Torá Oral judaica, a Torá “através do
canal da boca”, sebbe’al peh que na tradição rabínica é escrita ao lado da Torá escrita.
A noção da literatura tradicional ser uma herança que os escribas transmitiram de forma inalterável ao
longo dos séculos, não faz juz às transformações e ao crescimento da tradição escrita, estas mudanças
refletem historicamente uma tradição oral viva contínua lado a lado com a transmissão escrita.
Mencionaremos apenas o caso do texto do profeta Jeremias, a tradução grega de Jeremias na
Septuaginta tem um tamanho reduzido relativamente ao texto que se encontra na Bíblia Hebraica. O
arranjo do seu material difere consideravelmente do texto hebraico, a descoberta do fragmento 4QJer,
que é uma versão hebraica de Jeremias é semelhante à versão grega da septuaginta. Discordando com
a versão que está no texto massorético da Bíblia Hebraica, por esse motivo alguns académicos
concluem que a tradução grega antecede o texto hebraico massorético (Toorn K. V., 2009, p. 131).
Comparativamente com a versão grega e o fragmento 4QJer, a versão de Jeremias no texto massorético
representa uma expansão em várias maneiras. Especifica a profissão de Baruque (Jeremias 36:26;
36:32); explica o cenário topográfico dos acontecimentos (Jeremias 37:17; 41:1); enfatiza a cronologia
(Jeremias 28:1) e clarifica o significado das descrições acrescentado detalhes (Jeremias 36:6; 41:2;
41:7).
No caso especifico de Jeremias 33:14-26, o escriba que elaborou esta seção do texto deu-lhes um toque
especial enfatizando o papel central da dinastia da Casa de Davi e os sacerdotes Levitas (33:17-18;
33:22; 33:26).
A perspetiva é pós-exilica, uma vez que a expansão textual contempla a restauração da monarquia e
do sacerdócio dentro do mesmo pensamento que os oráculos do profeta Zacarias (3-4; 6:9-13).

2.3.7.5 Adaptação

O modelo de produção textual de adaptação é semelhante ao modelo de compilação porque ambos


dependem de material escrito. O escriba que transcreve ou o escriba que inventa não têm um texto
escrito para produzirem o seu, o escriba que vai adaptar necessita de um texto anterior. Este escriba
usava o texto como um modelo para o seu próprio texto, em vez de escrever o texto ele reescrevia o
texto existente. A adaptação poderia assumir diversas formas, desde a tradução de uma linguagem para
outra, esta tradução linguística podia transformar o texto substancialmente se fosse adaptado a uma
audiência com diferentes vínculos religiosos. A adaptação também poderia resultar numa versão
variante do texto ou uma forma de repensar um texto clássico, atualizando assim a tradição escrita.
Um caso estudado neste contexto é o salmo 20, em concreto a descoberta 81 de uma bênção aramaica
que corresponde quase por inteiro palavra por palavra ao salmo 20. O texto aramaico remonta a um
texto originalmente fenício, indicado pelos nomes divinos Bethel e Baal Shamayn e a menção de Zafon
como a montanha sagrada.
De acordo com Karel Van Der Toorn, a semelhança entre este texto aramaico e o salmo 20 explica-se
se assumirmos que ambos são revisões do mesmo texto original fenício. O original está perdido, mas
o paralelismo entre o texto hebraico e aramaico conseguem reconstruir o original fenício. Nesta
suposição que o salmo aramaico é uma tradução original fenícia, as adaptações realizadas pelo escriba
judeu que escreveu o salmo 20 são claras. Houve uma substituição do nome, “Baal” foi substituído por
“Javé”, o nome “Zafon” por “Sião” (Toorn K. V., 2009, p. 134).

2.3.7.6 Integração

Este último modo de produção textual é ilustrado na descrição das fontes J e E na alínea 2.5.2 deste
trabalho. Podemos aqui referir que a atividade editorial baseada em fontes textuais é algo notório na
Bíblia Hebraica. A partir de dois documentos, o escriba hebreu podia adotar várias estratégias para
torná-los num único documento. Se ele optasse por preservar os dois documentos intactos ele iria
agregar as várias partes dos textos dando-lhes uma nova configuração. Outra forma de integração
baseava-se na escolha de um documento base como texto mestre e ecleticamente usar um segundo
documento como seu suplemento.
Do ponto de vista histórico é importante colocarmos a seguinte questão: porque é que os escribas
estavam a compilar diferentes versões textuais da tradição oral?
Ao que parece os escribas que editaram a narrativa bíblica do dilúvio ou a Torá, aspiravam produzir
um documento que tinha o apoio de diferentes comunidades textuais. Ao escreverem um documento
integrado com diferentes ideias e perspetivas, os escribas criaram uma herança textual nacional que
transcendia qualquer divisão anterior a esse evento.

2.3.8 Síntese

Os escribas da Bíblia Hebraica não eram apenas escribas que copiavam textos, eles eram académicos
envolvidos na transmissão, interpretação e divulgação das escrituras. Tendo estabelecido o papel da

81
A descoberta em 1980 na Ameherts collection of the Pierpont Morgan Library em Nova Iorque do Demotic
papyrus, citada em (Toorn K. V., 2009, p. 134).
escrita e da autoria, o lugar dos escribas, os seus métodos e técnicas. Assim como a complexidade do
método dos seus métodos educativos.
Podemos perspetivar que os textos que receberam dos seus antepassados teriam que ser “audíveis” aos
seus contemporâneos, é com estas noções que iremos agora abordar algumas das tradições textuais por
eles deixadas. Procederemos ao estudo de alguns livros e textos bíblicos como amostras da cultura
escriba.

2.4 O Corpo Literário da Bíblia Hebraica

Na tradição judaica, a Bíblia Hebraica, tem três partes – a torá, os profetas e os escritos82, a torá que é
a primeira parte é constituída por cinco livros – Génesis, Êxodo, Levitico, Números e Deuteronómio.
Estes livros estão ligados por uma narrativa cronológica contínua, desde a criação do mundo no início
de Génesis à morte de Moisés no fim de Deuteronómio.
Os profetas são a segunda parte do corpo literário da Bíblia Hebraica tendo estes duas divisões: os
profetas anteriores (antigos) que constitutem os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis que continuam
a narrativa cronológica da Torá. Começam após a morte de Moisés com a missão divina atribuída a
Josué, o seu sucessor, recontando a história dos israelitas na terra prometida. Englobando nesta
narrativa a sua entrada com Josué e a perda da terra para o Império da Babilónia em 586 aec.
Os profetas tardios são os livros que contém nomes de profetas individuais, que muitas vezes dividem-
se em duas categorias: os profetas maiores – que são os livros mais longos de Isaías, Jeremias e
Ezequiel. E os profetas menores – que são os doze livros mais breves de Óseias até Malaquias.
A categoria “profetas” estabelece uma ligação entre as narrativas históricas e a profecia, dando a
indicação que estas narrativas servem o propósito de comunicar a vontade divina e a forma como esta
se relaciona com o contexto histórico do profeta (Coogan, 2012, p. 4).
Os livros proféticos incluem interpretações, oriundas de uma “perspetiva divina”, comunicada através
de intérpretes e profetas divinamente inspirados.
A terceira divisão do corpo literário judaico corresponde aos escritos, esta parte contém uma variedade
de livros de diferentes géneros literários.
Existe a narrativa histórica: os livros das Crónicas que cobrem o mesmo espaço cronológico que a torá
e os profetas antigos e conclui com o retorno do exilio da Babilónia na segunda metade do século 6

82
Torah, Neviim e Ketuvim das primeiras letras destas palavras hebraicas surge o acrônimo Tanakh para os
judeus o Tanak é simplesmente a Bíblia para os cristãos é o Antigo Testamento.
aec. Os livros de Neemias e Esdras continuam esta narrativa, relatando a história dos judeus no final
do século 6 e 5 aec.
Os escritos também incluem aquilo que os académicos modernos consideram obras de fição histórica
(Coogan, 2012, p. 5), estes são os livros de Rute, Ester e Daniel.
Incluem também os livros poéticos de Salmos, Provérbios, Cantares de Salomão e Lamentações e as
reflexões acerca da condição humana nos livros de Jó e Eclesiastes.
Figura
_

(Walton, 1989)
Este mapa demonstra uma parte significativa do mundo bíblico, podemos afirmar que o corpo literário
da Bíblia Hebraica reúne em si as várias influências das literaturas circunvizinhas de Israel.
As civilizações do Antigo Médio Oriente desempenharam um papel fundamental na influência da
narrativa bíblica e dos seus variados estilos literários. O período do exílio permitiu a introdução de
novos estilos e reflexões teológicas que enriqueceram a narrativa bíblica.
Em termos latos esta antologia literária possui textos cosmológicos, arquivos pessoais e épicos, textos
legislativos, pactos e tratados, literatura histórica, literatura sapiencial. Hinos, orações e
encantamentos, literatura profética e literatura apocalitica.
Sendo assim um campo muito rico de estudos, no escopo deste trabalho apenas serão abordadas as
questões referentes a historiografia no sentido de se estabelecer um fio condutor à história das crenças,
práticas religiosas e conceções do divino no Antigo Israel.
Portanto a nossa análise do conteúdo literário será breve e orientada especificamente para o esforço de
reconstrução histórica dos cenários culturais e sociais dos escribas, assim como de toda a dinâmica
sócio-religioso do Antigo Israel.

2.4.1 A Historiografia do Antigo Israel

Ao considerarmos a Bíblia Hebraica como uma fonte literária histórica, procuramos compreender e
identificar a historiografia subjacente ao povo de Israel. Esta narração dos eventos do passado é
inserida numa cronologia que se estende do início da humanidade e da nação israelita até ao fim da
monarquia. Apesar de se assemelhar à historiografia moderna, quando lidamos com a historiografia
bíblica devemos colocar de parte várias noções modernas. Como a reconstrução do passado baseada
na ciência da crítica das fontes ou o uso de arquivos históricos por parte do historiador, não existia
também a distinção entre evidência documental de fontes primárias e os mitos e lendas tradicionais
(Seters J. V., 2011, p. 76).
Os escribas da Bíblia Hebraica não concebiam tais noções de apresentação da história, o que
conceberam como a história do povo de Israel de Génesis a 2 Reis é uma narrativa baseada num corpo
de tradições. Estas tradições eram nativas para uma variedade de grupos que habitaram as terras altas
da Palestina, também eram compostas por mitos e lendas estrangeiras que foram colecionadas e
moldadas pelos escribas israelitas. A versão mais antiga desta história foi sendo expandida e
readaptada progressivamente pelos escribas subsequentes até chegar à forma que hoje conhecemos
(Seters J. V., 2011, p. 76).
Mesmo após a versão final desta história ter sido completa, uma história “revista” foi apresentada em
1 e 2 de Crónicas, que era basicamente um comentário à história de Samuel e Reis. Quando os dois
livros de Crónicas foram traduzidos para grego, foram chamados de paralipomena83, os escribas e
editores destes livros procuraram conciliar as omissões das duas antologias historiográficas anteriores
(Armstrong, 2007, p. 36).
É importante termos a noção de que em cada estágio desta reconstrução e revisão, os historiadores da
Bíblia Hebraica foram motivados por novas conceções daquilo que para eles era a natureza e a
identidade do povo de Israel. Tal história apresentará anacromismos e os escribas da antiguidade

83
Que significa as “coisas omitidas”
acrescentaram e inventaram de forma criativa uma parte da sua narrativa, ao ponto de esta ser
desqualificada como história para os historiadores modernos (Seters J. V., 2011, p. 76).
Não negamos no entanto as fontes orais desta tradição, discutidas anteriormente à luz das técnicas de
produção textual dos escribas do Antigo Israel de forma a compreendermos toda a dinâmica de
produção textual da Bíblia Hebraica.
Apesar da diversidade de autorias e tradições é possível identificarmos um conjunto de questões
comuns aos escribas nos seus usos do passado na história bíblica. Por exemplo a formação da
identidade comunitária de Israel, enraizada numa tradição de origem e destino nacional. Estas origens
baseavam-se nas ações de uma divindade particular que os libertou do Egito, ou então na seleção de
um antepassado84 que seria o progenitor de uma nação especial. Ambas as versões da história são
imbuídas de causalidade teológica, a intervenção divina na história humana é um pressuposto básico
para a maioria destes escribas.
Associada à construção da identidade comunitária surgem outras etiologias e legitimazações de
instituições como o Templo, o sacerdócio e a monarquia.
Quando esta forma básica da história do povo israelita foi criada, atraiu grandes revisões e expansões
ao longo dos tempos, mas também foi alvo de acrescentos secundários que podemos aqui considerar
como uma variedade de reflexões que o narrador desenvolveu ao “retirar lições do passado” (Seters J.
V., 2011, p. 77).
Como foi acima referido os historiadores bíblicos eram todos anónimos e a delimitação dos seus
trabalhos desde Génesis a 2 Reis não é facilmente demarcada. Esta procura académica de dividir e
analisar de forma crítica o corpo literário hebraico tem sido alvo de inúmeros debates.
Será assim importante fazer uma breve síntese historiográfica do desenvolvimento deste corpo
literário, explorando depois as principais carateristicas de cada escola de pensamento no interior do
corpo literário bíblico.
Os israelitas assim como a maioria dos povos do mundo antigo eram uma cultura oral que transmitia
as suas tradições oralmente. As tradições das suas origens remontam a um passado distante em que a
sua nação era composta por doze tribos que habitam as terras altas de Canaã. Estas tribos acreditavam
partilhar antepassados comuns e uma história comum, que celebravam nos santuários associados a um
dos seus patriarcas.
Os israelitas acreditavam que os seus antepassados tinham sido nómadas que viveram muitos anos
debaixo da escravidão egipcia, até que foram libertos por Javé através de sinais e maravilhas. Sendo
depois guiados para a terra prometida, é importante notarmos que não existe apenas uma versão desta

84
Abraão
narrativa. Na verdade existem algumas versões da narrativa das origens nacionais israelitas, cada tribo
tinha a sua própria versão da história. Os sacerdotes de Dã no norte acreditavam descender de Moisés,
Abraão o pai da nação viveu em Hebrom e era especialmente popular no Sul. Em Gilgal as tribos locais
celebraram a entrada miraculosa na terra prometida quando as águas do rio Jordão foram
miraculosamente afastadas. Assim o povo de Siquém renovava o pacto que Josué celebrou com Javé
depois da sua conquista de Canaã (Armstrong, 2007, p. 13).
Eventualmente o sistema tribal foi substituído pela monarquia por volta de 1030 a 1010 a.e.c com o
rei Saúl estendendo-se depois como nação unificada até ao reinado de Salomão que termina
aproximadamente em 930 a.e.c.
Durante o século 8 a.e.c. houve uma revolução de literacia por todo o antigo Médio Oriente e o
Mediterrâneo Oriental (Schniedewind, 2004, pp. 35-47).
Reis comissionaram documentos que glorificassem os seus regimes e armazenaram essa produção
textual nas suas bibliotecas. Na Grécia épicos de Homero começaram a ser escritos e em Israel e Judá
os historiadores começaram a combinar as antigas histórias da sua tradição oral para criarem sagas
nacionais. Estas compilações foram preservadas na versão mais antiga da torá – os cinco primeiros
livros da Bíblia (Cross, 2000, pp. 41-42).
Este processo inicial de compilações ocorreu durante o período histórico dos dois reinos, Israel e Judá,
os escribas do século 8 a.e.c conceberam uma narrativa coerente mas múltiplas tradições orais
existentes no seu tempo. É nesta fase que surgem as fontes J e E85 ambos estes relatos não são relatos
históricos semelhantes aos relatos históricos modernos.
Israel passou por momentos históricos conturbados de guerra e opressão estrangeira, Jerusalém foi
quase destruída pela Assíria em 701 a.e.c.
Aproximadamente em 622 a.e.c o rei Josias restaurou o templo de Salomão e de acordo com os relatos
o sumo-sacerdote hilquias descobriu o livro da lei, que Javé deu a Moisés no monte Sinai.
Nas duas compilações de histórias mais antigas (J e E) não existem referências a este ensino escrito,
antes Moisés passou a lei aos israelitas oralmente. Os reformadores do século 7 a.e.c acrescentaram
versículos às sagas J e E explicando que Moisés escreveu os mandamentos de Javé e leu a sefer torá
ao povo86. O sumo-sacerdote afirmou que o pergaminho estava perdido e que os seus ensinamentos
nunca tinham sido implementados, Judá podia assim iniciar uma nova reforma aplicando os
mandamentos do livro de Deuteronómio.

85
Designadas assim pela Hipótese Documental, estas duas fontes serão desenvolvidas nas seções abaixo.
86
Êxodo 24: 4-8 é o único sítio na Bíblia onde aparece a expressão sefer torá, sendo assim considerado um
acréscimo (Schniedewind, 2004, pp. 124-6).
Longe de ser um trabalho antigo, Deuteronómio é uma escritura nova, os deuteronomistas acreditavam
estar a falar por Moisés, este texto trouxe mudanças radicais.
Estas mudanças alteraram a antiga fé de Israel, os altares do norte assim como os templos de Betel e
Samaria considerados até ali legítimos foram destruídos. Os sacerdotes dos santuários rurais foram
assassinados e o culto foi centralizado no Templo de Jerusalém.
Até então não existia esta ideia de centralidade do culto em Jerusalém, o livro de Deuteronómio criou
também uma jurisdição secular e independente do templo, retirando do rei os seus poderes
sacramentais. O rei seria apenas mais um súbito da torá como todos os outros israelitas, verificam-se
alterações na ordem dos trabalhos anteriores, códigos, sagas e textos litúrgicos de forma a reforçarem
os seus propósitos políticos (Armstrong, 2007, pp. 22-23).
Os pormenores teológicos desta corrente e a sua história são discutidas noutras seções deste trabalho.
Para concluir esta seção devemos mencionar outro acontecimento histórico importante que culminou
com o desabrochar da quarta fonte literária da Bíblia Hebraica.
Os deuteronomistas celebraram as reformas religiosas do rei Josias convencidos que Israel estava no
ínicio de uma nova era. Mas em 622 a.e.c. o rei Josias foi morto numa batalha contra o exército egipcio,
dentro de poucos anos a capital Assíria foi conquistada pela Babilónia. Em 586 a.e.c. Nabucodonosor
destrói Jerusalém e o Templo, levando o povo de Israel para o exilio.
No exílio os escribas debruçaram-se sobre os pergaminhos do arquivo real, os deuteronomistas
acrescentaram passagens ao seu relato do desastre, que atribuíram às políticas religiosas de Manassés
(2 Reis 21:10-15).
No entanto outros sacerdotes e escribas ao perderem o templo, perderam também o seu mundo, nesta
dimensão fizeram um esforço de olhar para trás e encontrarem uma esperança. A esta nova corrente a
J e E e adicionou livros novos. Como Números e Levitico, baseados em documentos antigos,
geneologias, leis e textos ritualísticos, alguns escritos outros transmitidos oralmente (Cross, 1973, pp.
321-5).
Os textos mais importantes desta fonte são o “Código da Santidade”87 e o documento do Tabernáculo
que é uma descrição do santuário portátil de Javé na peregrinação do Sinai. A fonte sacerdotal entendia
o relato do Êxodo de uma forma bastante diferente dos deuteronomistas. O climax desse acontecimento
não foi a sefer torá mas a promessa da presença contínua de Deus durante os anos que Israel caminharia
pelo deserto. Deus tirou Israel do Egito para poder “habitar [skn] entre eles”88, o verbo shakan significa
“levar a vida de um nómada habitante de tendas” (Armstrong, 2007, p. 26).

87
Levitico 17-26 que é uma coleção de leis do século 7 a.e.c.
88
Êxodo 29: 45-6
Isto implica que em vez de Deus residir permanentemente num edifício (como o Templo de Jerusalém),
Deus preferia “montar a sua tenda” entre o seu povo nómada, ele não estava fixo a um lugar, mas podia
acompanhá-los para onde quer que eles fossem.
Em P Israel não é uma nação porque habita num país em particular, mas porque vive na presença do
seu Deus.
Estas diversas tradições iriam assim assumir com o passar do tempo a forma de cânone, a canonização
foi um passo muito importante para o judaísmo. Os cinco livros da torá foram revestidos de especial
autoridade por serem associados a Moisés. A torá foi a primeira parte do corpo literário a receber um
estatuto canónico, isto ocorreu por volta do 5 século aec. Como sugere a descrição de Esdras “E Esdras
subiu de Babilônia. E ele era escriba hábil na lei de Moisés”89. Por volta do 2 século aec. os profetas
também adquirem estatuto canónico, o livro de Ben Sirach uma fonte do 2 século tardio aec. refere-se
à “Lei e os Profetas”. Encontramos a mesma terminologia noutros textos judaicos daquele período e
mais tardiamente no Novo Testamento (Coogan, 2012, p. 5).

2.5 A Hipótese Documental

O canône judaico é a antologia de fontes escritas que serão consultadas ao longo deste trabalho, por
esse motivo será necessário procedermos a uma leitura crítica destas fontes.
Começando pela torá, o seu primeiro livro Génesis contém dois relatos da criação, cada um tem um
estilo, vocabulário e contéudos distintos. Até a forma como se referem à divindade é diferente, leituras
cuidadosas da Bíblia permitem-nos observar várias repetições em pequena e grande escala. Também
ao compararmos passagens paralelas encontramos inconsistências. A tradição judaica atribui a autoria
da torá a Moisés, contudo esta posição não se pode hoje manter devido aos avanços na investigação
textual (Coogan, 2012, p. 47).
Para começar podemos aferir que nenhum dos cinco livros tradicionalmente atribuídos a Moisés
afirmam que ele é o seu autor. A descrição de eventos segue uma ordem particular, que noutras
passagens segue o sentido contrário. Existem inclusive passagens que não poderiam ter sido escritas
por Moisés, por exemplo o relato da sua morte em Deuteronómio. Os primeiros argumentos daqueles
que questionaram a autoria de Moisés foram rejeitados. Por volta do 3 século d.e.c Orígenes respondeu
àqueles que questionaram a unidade e a autoria de Moisés. O mesmo aconteceu com os rabis durante
os séculos que procederam a completude da Bíblia Hebraica, explicando os problemas e as
contradições dentro dos limites da sua tradição. As contradições eram apenas contradições, que

89
Esdras 7:6
poderiam ser explicadas através da nterpretação, mesmo que isso implicasse introduzir narrativas
adicionais ao texto bíblico (Friedman, 1997, p. 18).
Quanto ao facto de Moisés referir-se a episódios que seriam para ele desconhecidos, estes seriam
justificados pelo facto de ele ser profeta. Estas soluções orientadas pela tradição prevaleceram durante
a Idade Média. Comentadores bíblicos medievais como Rashi em França e Moisés Maimônides em
Espanha desenvolveram comentários de grande importância, que procuraram reconciliar todas as
contradições encontradas na torá (Friedman, 1997, p. 18)
Ainda neste período outros investigadores começaram a propôr novas respostas para estas questões,
primeiramente os autores aceitavam que Moisés tinha escrito os livros mas que parágrafos tinham sido
acrescentadas à obra.
No século 11 d.e.c Isaac Ibn Yashush, um médico judeu na corte da espanha muçulmana apontou que
a lista de reis Edomitas mencionada em Génesis 36 nomeia reis que viveram muito depois de Moisés
ter falecido. Iben Yashush sugeriu que a lista foi escrita por alguém que viveu depois de Moisés, a
resposta à sua conclusão foi ter-lhe sido atribuído o título “Isaac o errado” (Friedman, 1997, p. 19).
O homem que lhe deu este nome era um rabi espanhol do 2 século d.e.c Abraham Ibn Ezra, que afirmou
enfaticamente que “o seu livro merece ser queimado”. Contudo este rabino também teve as suas
próprias questões, que incluiu nos seus escritos, aludindo a várias passagens que referem Moisés na
terceira pessoa. De qualquer forma, Ibn Ezra não negou a autoria de Moisés nos primeiros cinco livros
da bíblia, simplesmente escreveu “se tu compreenderes, irás reconhecer a verdade” (Friedman, 1997,
p. 19). No século 15, Tostatus bispo de Ávila também afirmou que certas passagens, nomeadamente o
relato da morte de Moisés, não podia ter sido escrito por Moisés. Existia uma tradição antiga que o seu
sucessor Josué tinha escrito este relato.
Numa segunda fase deste processo interpretativo da torá, os investigadores sugeriram que Moisés
escreveu os cinco livros da torá, mas que os editores moldaram estes textos mais tardiamente.
No século 16 Andreas van Maes e dois estudiosos jesuítas Benedito Pereira e Jacques Bonfrere
conceberam um texto original escrito por Moisés, que escribas tardios expandiram. Van Maes sugeriu
que editores tardios inseriram frases ou mudaram o nome de determinados lugares para nomes recentes
que os leitores pudessem compreender melhor. O seu livro foi colocado na lista de livros proibidos
pela igreja católica (Friedman, 1997, p. 20).
Numa terceira fase, investigadores concluíram que Moisés não escreveu a maioria da torá, o primeiro
a referi-lo foi o filósofo britânico Thomas Hobbes no século 17. Este filósofo reuniu vários factos e
afirmações ao longo dos cinco livros que eram inconsistentes com a autoria mosaica da torá. Por
exemplo, o texto utiliza a expressão “até hoje”, esta expressão não é uma frase de alguém que está a
descrever uma situação contemporânea. É antes uma frase de um autor tardio que está a descrever algo
que permaneceu até hoje.
Quatro anos depois o francês calvinista Isaac de La Peyrère escreveu explicitamente que Moisés não
era o autor da torá. Ele mencionou também problemas ao longo do texto, incluindo por exemplo, as
palavras “além do Jordão” no primeiro verso de Deuteronómio. Este verso afirma “Estas são as
palavras que Moisés falou a todo Israel além do Jordão…”. O problema com a frase para “além do
Jordão” é que esta refere-se a alguém que está no outro lado do rio Jordão a partir do escritor
(Friedman, 1997, p. 20). Os versos aparentam assim ser palavras de alguém em Israel, no lado oeste
do Jordão referindo-se ao que Moisés fez no lado este do Jordão. O livro de la Peyrère foi banido e
queimado, ele foi preso e intimado a tornar-se católico abjurando as suas ideias ao papa, o que ele fez
(Friedman, 1997, p. 20).
Contemporâneo a la Peyrère existiu o filósofo holândes Espinoza que publicou uma análise crítica,
demonstrando que as passagens problemáticas não eram casos isolados que poderiam ser explicados
um a um. Entre os vários problemas ele mencionou os relatos de Moisés na terceira pessoa, as
declarações que Moisés provavelmente não fez 90. O relato da sua morte, a expressão “até ao dia de
hoje”, as referências a lugares geográficos por nomes que foram adquiridos muito após o tempo de
vida de Moisés. O tratamento de matérias muito posteriores a Moisés como a lista dos reis Edomitas e
as várias contradições e problemas no texto que os investigadores antecedentes a Espinoza tinham
observado. Espinoza também notou que o texto em Deuteronómio 34 “E nunca mais se levantou em
Israel profeta como Moisés, a quem o Senhor conhecesse face a face…” soava a palavras de alguém
que viveu muito tempo depois de Moisés. Tendo a oportunidade de ver outros profetas e compará-los
a Moisés, ele escreveu: “É… mais claro que o sol ao meio dia que o Pentateuco não foi escrito por
Moisés, mas por alguém que viveu muito tempo depois de Moisés” (Friedman, 1997, p. 21).
Espinoza foi excomungado do judaísmo e o seu trabalho foi condenado por católicos e protestantes,
sendo colocado na lista de livros proibidos pela igreja católica.
Anos mais tarde em França o padre católico Richard Simons convertido do protestantismo escreveu
um trabalho que tencionava ser uma crítica ao trabalho de Espinoza. Ele afirmou que o núcleo do
pentateuco91 eram da autoria de Moisés, mas existiam alguns acrescentos ao texto.
Os acrescentos, segundo Simons, foram elaborados por escribas que colecionaram, arranjaram e
elaboraram sobre os textos antigos. Estes escribas eram profetas, guiados pelo espirito santo e assim

90
Por exemplo “o homem mais manso do que todos os homens que andavam sobre a terra” Números 12:3
91
Isto é as suas leis
sendo ele considerava o seu trabalho como uma defesa da santidade do texto bíblico (Friedman, 1997,
p. 21).
Contudo os seus contemporâneos não aceitaram esta abordagem e expulsaram Simons da ordem do
clero, os seus livros também foram proibidos e quarenta refutações ao seu trabalho foram redigidas
por protestantes. Das trezentas cópias impressas do seu livro, todas excepto seis foram queimadas
(Friedman, 1997, p. 21).

2.5.1 A Ideia das Fontes

A ideia deste último autor foi muito importante para as abordagens modernas do texto bíblico. A ideia
que os escribas bíblicos reuniram a sua narrativa de fontes antigas que tinham ao seu dispôr foi um
passo importante para se descobrir quem escreveu a Bíblia.
No campo da história sabemos que as fontes escritas são importantes para a narrativa dos eventos, a
hipótese que os cinco livros de Moisés eram resultado de uma combinação de várias fontes antigas de
diferentes autores foi importante. Porque abriu o caminho para os estudos bíblicos lidarem com um
novo tipo de evidência que foi desenvolvida por três investigadores no século seguinte: a duplicação.
A duplicação é o caso em que a mesma história é contada duas vezes, este fenómeno é notório existem
histórias iguais mas com variações nos detalhes em dois sítios diferentes na Bíblia.
Existem por exemplo duas histórias diferentes da criação do mundo, da aliança entre Deus e o patriarca
Abraão, duas histórias do nome dado ao filho de Abraaão, Isaque, duas histórias de Abraão a afirmar
a um rei estrangeiro que Sara era sua irmã, duas histórias da revelação de Jacó em Beith-El, entre
outras.
Aqueles que defendem a autoria de Moisés afirmam que estas duplicações não se contradizem entre
si, mas complementam-se ensinando-nos uma lição pela sua aparente “contradição” (Friedman, 1997,
p. 22).
Outra evidência no entanto rebateu esta resposta tradicional, investigadores descobriram que na
maioria dos casos as duas versões das histórias duplicadas referem-se à deidade pelo nome divino de
Javé e a outra versão da história refere-se à deidade simplesmente como “Deus”92.
Sabemos assim que as duplicações alinham-se em dois grupos com versões paralelas da mesma
história, cada um dos grupos é quase sempre consistente no uso do nome da deidade a que corresponde
a sua tradição. Não são apenas os nomes da deidade que estão alinhados, existem outros termos e
carateristicas que aparecem de forma regular num ou noutro grupo (Friedman, 1997, pp. 22-23).

92
No hebraico El
Estas evidências sustentam assim a hipótese que os escribas recolheram de duas diferentes fontes
escritas antigas93, selecionaram-nas e teceram-nas em conjunto a fim de formarem a história dos cinco
livros de Moisés.
A próxima fase da investigação foi o processo de se separarem as cadeias das duas antigas fontes
documentais. No século 18 três investigadores independentes94 chegaram à mesma conclusão.
Primeiramente pensou-se que uma destas duas versões de histórias no livro de Génesis era um texto
antigo que Moisés utilizou como fonte e que a outra versão das histórias foram escritas pelo próprio
Moisés.
Mais tardiamente pensou-se que ambas as versões eram documentos antigos que Moisés usou para
escrever o Pentateuco. Mas por fim concluiu-se que ambas as fontes tinham que ser de escritores que
viveram depois de Moisés.
No início do século 19 a hipótese das duas fontes foi expandida, encontraram-se evidências que
apontavam para quatro grandes fontes documentais. Em primeiro lugar existiam não só histórias
duplicadas mas também três versões da mesma história. O académico W. M. L. De Wette observou na
sua tese de doutoramento que o livro de Deuterónomio tinha uma linguagem completamente distinta
dos outros quatro livros do Pentateuco. Nenhuma das três fontes anteriores parecia continuar neste
documento, assim Deuteronómio foi hipotetizado como uma quarta fonte separada (Friedman, 1997,
p. 23).
A partir desta desenvoltura o trabalho de muitos investigadores e até a vida de alguns permitiu o acesso
às origens misterioras da Bíblia de forma aberta, esta hipótese para trabalhos de investigação foi assim
formada. Seria agora possível ler o livro de Génesis e identificar a escrita de dois ou três autores na
mesma página. Havia também o trabalho do editor, aquele que selecionou e combinou os documentos
das diversas fontes numa única história. Quatro pessoas podem assim ter contribuído para a produção
de uma única página da Bíblia, os investigadores estariam aptos a ver o mosaico existente e os traços
básicos deste mosaico. Ainda assim não conheciam os autores de nenhuma das quatro antigas fontes
documentais, não havia nenhuma informação histórica disponível sobre quando viveram ou porque é
que escreveram. Também não existia qualquer conhecimento acerca do editor que combinou estas
fontes e porque é que as combinou desta forma.

93
Irei demonstrar noutra seção que as fontes antigas não eram todas na sua maioria fontes escritas.
94
O autor alemão H.Bb. Witter; o francês Jean astruc e o professor alemão J.G. Eichhorn citados em (Friedman,
1997, p. 23)
2.5.2 Caraterização das fontes

De forma sucinta existem evidências que os cinco livros de Moisés foram compostos pela combinação
de quatro fontes textuais diferentes, tornando-se numa história continua.
Para propósitos de trabalho estas quatro fontes foram identificadas por letras do alfabeto, no âmbito
do nosso trabalho iremos abordar de forma sucinta as principais carateristicas ideológicas de cada uma
destas fontes. Com o próposito de reconstruirmos o cenário histórico que as originou e como a sua
ideologia influenciou as crenças religiosas do Antigo Israel.
A fonte associada com o nome divino Javé foi designada de fonte J, a fonte identificada por referir-se
à divindade simplesmente por deus (em hebraico Elohim) foi chamada de fonte E. A terceira fonte,
que constitui a maior parte do Pentateuco que inclui muitas das seções legislativas e concentra-se nas
questões relativas aos sacerdotes designou-se por fonte P. Por fim a última fonte que só se encontra no
livro de Deuteronómio designou-se fonte D.
O autor alemão Julius Wellhausen (1844-1918) estabeleceu os sólidos fundamentos da hipótese
documental. Para além de analisar os textos Wellhausen 95 conciliou duas abordagens do seu tempo,
uma incidia sobre os estágios evolutivos da religião israelita. Em que a religião desenvolvou-se em
três fases que correspondem a três períodos distintos espelhados nas três diferentes fontes. A outra
abordagem focava-se na produção textual em três períodos históricos distintos. Este autor uniu ambas
as abordagens, examinando as histórias bíblicas e leis que aparecem em J e E, argumentou que estas
refletiam um modo de vida de um estágio da religião natural de cultos de fertilidade. Argumentando
também que as histórias e leis de Deuteronómio (D) refletiam a vida de um estágio da religião mais
espiritual e ético. Considerou também que P derivava de um estágio da religião legislativo e sacerdotal.
Desta forma traçou as carateristicas de cada estágio e o período correspondente através do texto de
cada documento, examinando em que medida os documentos refletiam algumas dos aspetos
fundamentais da religião. Tais como o caráter do clero, os tipos de sacrificios, os lugares de adoração
e as festividades religiosas. Esta análise das seções legislativas e narrativas do Pentateuco, foi feito em
consonância com os outros livros históricos e proféticos da Bíblia Hebraica (Friedman, 1997, p. 26).
A análise destas fontes é frequentemente chamada de “crítica literária”, mas que melhor se pode
designar por análise das fontes (Coogan, 2012, p. 47).

95
Esta análise encontra-se na sua obra traduzida para a língua inglesa Prolegomena to the History of Ancient
Israel
Estas fontes ou documentos são hipotéticos, com isto afirmo que nunca foi descoberto nenhum
documento independente que servisse como fonte. Mas a hipótese documental providencia uma
explicação convincente das repetições, semelhanças, inconsistências e contradições do Pentateuco.
De qualquer forma serão apresentadas algumas evidências neste trabalho que podem reforçar a
hipótese documental e a forma como esta é um grande contributo para a investigação histórica do
mundo bíblico.
Atualmente existem novas ferramentas e novos métodos que produziram contribuições importantes,
os novos métodos de análise linguística tornaram possível estabelecer cronologias relativas a porções
da Bíblia. Assim é possível medir e descrever carateristicas do hebraico bíblico em vários períodos,
como o autor (Friedman, 1997, p. 29) exemplificou: Moisés estava distante da linguagem dos cinco
livros do Pentateuco como Shakspeare está do inglês moderno.

Fonte J

A fonte J, Javista é identificada no livro de Génesis pelo seu uso consistente do nome divino Javé, nas
passagens em que o nome é utilizado, Javé é descrito com um vívido antropoformismo (Coogan, 2012,
p. 48). Deus aparece descrito em termos muito humanos a narrativa do Jardim do Éden (Génesis 2:4b-
3:24), ele caminha no jardim e faz roupas para o homem e a mulher. Em passagens subsequentes ele
fecha a porta da arca (Génesis 7:16), cheira o odor do sacricio que Noé oferece-lhe depois do dilúvio
(Génesis 8:21) visita Abraão para uma refeição (Génesis 18:1-8).
Esta fonte tem como tema principal a tripla promessa feita a Abraão da terra, dos descendentes e da
bênção (Coogan, 2012, p. 48). As fronteiras da terra prometida em J são: “…desde o rio do Egito até
o grande rio Eufrates” (Génesis 15:18) que corresponde aos territórios atribuídos na narrativa a David
e Salomão, reis de Israel no século 10 a.e.c. Este é um dos motivos pela qual a fonte J é datada nesse
século.
No livro de Génesis J concebe a noção da criação da humanidade como na Mesopotâmia, mas restringe
o número de pessoas criadas para um casal. A restante humanidade deriva deste casal e estabelece
geneologias até ao período do dilúvio. No mito da Mesopotâmia este desastre resulta num novo início,
mas para esta tradição não se trata de uma nova criação. Antes é a continuação de uma família cujos
membros são apresentados como os progenitores da raça humana. Deus é assim concebido como um
criador universal que provoca o dilúvio, um juízo universal sobre a criação.
A história dos antepassados – Abraão, Isaque, Jacob e os doze filhos de Jacob (mais a sua filha) –
constituem a maior parte do livro de Génesis (12-50).
Com o propósito de relatar o período pré-histórico da nação, este historiador recolhe as tradições locais
orais acerca dos antepassados e compila-as numa estrutura geneológica de gerações sucessivas.
Através deste método ele cria um itinerário das suas peregrinações associando-as com toda a região da
terra de Israel (Seters J. V., 2011, p. 84).
De acordo com a fonte J que é uma tradição anterior à tradição de Moisés, Abraão o patriarca de Israel,
já tinha sido trazido de uma terra estrangeiro e Deus tinha determinado o destino da sua descendência.
Esta promessa de nacionalidade, terra e prosperidade são repetidas e transmitidas de geração em
geração, dando um significado histórico ao período patriarcal. Desta forma esta fonte criou uma
dimensão importante para o senso de identidade nacional israelita-judaica, que provem da promessa
incondicional por Javé a um conjunto de antepassados comum.
Mesmo com a perda da terra de Israel, o exilio e a diáspora, os israelitas podeiam manter um certo
sentido de identidade por estarem ligados aos filhos de Jacob (Israel) e as suas aspirações estarem
expressas nas narrativas patriarcais.

Fonte E

A fonte E, Eloísta, adquiriu o seu nome pelo uso consistente do título divino elohim (“Deus”) no livro
de Génesis até à revelação do nome Javé dada a Moisés em Exodus 3. Esta fonte é fragmentária ao
longo do Pentateuco, começa em Génesis 15 e pode ser mais facilmente identificada do capítulo 20 de
Génesis adiante (Coogan, 2012, p. 49).
Nesta fonte a divindade é mais remota do que em J, revelando-se de forma indireta através de sonhos
(Génesis 20:3; 28:12), mensageiros divinos (“anjos” Génesis 21:17; 22:11; Exodo 3:2) e profetas.
Apenas em E Abraão é chamado profeta (Génesis 20:7), e o mesmo se aplica a Miriãm (Exodo 15:20)
(Coogan, 2012, p. 49).
Em Génesis 15-50 a configuração geográfica das narrativas de E correspondem ao norte de Israel, que
do século 10 tardio até ao século 8 tardio a.e.c. era um reino separado. Nos textos poéticos este reino
do norte é frequentemente associado a sua tribo dominante, Efraim, a fonte E foca-se em Efraim e J
foca-se em Judá.
O enfoque no norte por parte desta fonte e a sua ênfase na profecia sugerem que E originou-se no reino
do norte provavelmente no século 9 ou 8 a.e.c. (Coogan, 2012, p. 49).
Contextualização Histórica das Fontes J e E

As histórias dos antepassados de Israel e as experiências do êxodo no deserto, são tradições orais
antigas e provavelmente foram escritas pela primeira vez durante os reinados de David e Salomão
(Século 10 a.e.c). Provavelmente por escribas em Jerusalém que estavam associados à corte real, para
compreendermos o mundo que originou a Bíblia temos que considerar o cenário político da época. É
possível identificarmos certas semelhanças entre a narrativa J e o reino de David, o texto parece indicar
que o reino da casa de David foi um cumprimento das promessas feitas a Abraão e aos seus
descendentes. Uma visão alternativa da história encontra-se na fonte E e possivelmente foi escrita no
reino do Norte, quando Israel se dividiu em dois reinos (Bailey, The Oxford Study Bible, 2016).
Após a morte de Salomão o reino dividiu-se em dois, Israel e Judá96, Israel teve como capital Jerusalém
a cidade de David e Judá estabeleceu como sua capital Siquém. A divisão política do país teve enormes
implicações para a religião. A religião não era separada do estado e Jerusalém tinha sido a capital
política e o centro religioso do país. Jeroboão estava assim numa posição bastante difícil, apesar de
Israel e Judá serem dois países separados, ambos partilhavam a mesma religião. Tinham as mesmas
tradições orais acerca dos patriarcas, da escravidão e do êxodo do Egito e a experiência do Sinai.
Ambas as nações adoravam Javé, mas o Templo, a arca e o sumo-sacerdote encontravam-se em
Jerusalém. Isto implicava que nas festas religiosas grandes massas da população de Jeroboão iriam
atravessar a fronteira para Judá, levando consigo uma porção considerável do gado produzido na nação
do norte. Para sacrificios na Cidade de David, Jeroboão não podia inventar uma religião nova, para
impedir o povo de ir a Jerusalém. Ele podia e acabou por estabelecer uma versão nacional da religião
comum. Assim o reino de Israel, continuou a adorar Javé como o reino de Judá, Jeroboão estabeleceu
novos centros religiosos, novas festividades, novos sacerdotes e novos símbolos da fé (Friedman, 1997,
p. 46).
Os novos centros religiosos que substituíram Jerusalém encontravam-se nas cidades de Dã e Beith-El,
Dã era a cidade mais a norte em Israel e Beith-El estava localizada mais a sul a uma curta distância de
Jerusalém.
Os novos símbolos da religião de Jeroboão substituíam os dois querubins de ouro de Jerusalém por
dois bezerros de ouro. A palavra “bezerro” que aparece na maior parte das traduções é enganosa
segundo certos autores (Friedman, 1997, p. 47) a palavra em hebreu significa um touro jovem. Que é

96
Com os seus respetivos reis Jereboão e Roboão
um simbolo de força, em vez da imagem fraca que a palavra “bezerro” conota. O bezerro ou touro
jovem, eram frequentemente associado em ao deus El, o deus chefe do panteão cananita. Existem assim
razões para acreditarmos que a versão nortenha da religião de Javé identifica de certa forma Javé com
El. A ideia de Javé e El serem um acrescentaria um valor significativo no esforço de união da
população israelita com a grande população cananita que existia no reino de Jeroboão (Friedman, 1997,
p. 47).
Tanto os querubins feitos de outro com os bezerros de outro em Beith-El e Dã não eram estátuas de
deuses, mas eram pedestais do deus invisível Javé. Assim Deus podia ser imaginado em Israel como
um rei entronizado sobre todo o reino, desde a fronteira a norte até ao sul, em vez de estar entronizada
apenas no templo como em Judá.

O Papel dos Sacerdotes

A escolha de sacerdotes para o novo reino de Israel era fundamental, os levitas do norte sofreram certas
injustiças sobre o reinado do rei Salomão (Friedman, 1997, p. 47). Muitos eram residentes das vinte
cidades que Salomão deu a Hiram, o rei Fenicio. Aqueles que provinham de Siló sofreram mais, nos
dias dos Juízes, Siló era a localização do tabernáculo e da arca sendo o santuário central do povo. O
sacerdote, profeta e juíz de Siló, Samuel, designou e ungiu os dois primeiros reis de Israel, Saul e
David. Abiatar, um sacerdote de Siló, esteve durante o reinado de David a exercer funções de sumo-
sacerdote. O rei Salomão expulsou Abiatar por este ter apoiado a pretensão do seu irmão ao trono,
tirando o poder dos sacerdotes de Siló em Jerusalém.
Estes membros da mais antiga classe sacerdotal estabelecida em Israel tinham vários motivos para se
sentirem traídos e excluídos da casa real em Jerusalém. É interessante notarmos pelos relatos que o
profeta que instigou a sucessão e designou Jeroboão como rei foi um homem chamado Aijá de Siló
(Friedman, 1997, p. 48).
Os sacerdotes de Siló voltariam a ser excluídos, Jeroboão não os designou como sacerdotes em Dã ou
Beith-El. Em Dã já existia um sacerdócio estabelecido antigo fundado pelo neto de Moisés de acordo
com o livro de Juízes. Em Beith-El o rei escolheu novos indivíduos muitos deles não pertenciam à
tribo de Levi. Os sacerdotes de Siló não tinham lugar na nova estrutura religiosa de Jeroboão, eles
condenaram os bezerros de ouro que eram símbolos da religião como heresia. Aijá de Siló, o profeta
que creditou Jeroboão como rei, profetizou a queda da sua família por causa da heresia de Jeroboão.
Uma vez que a tribo de Levi não tinha território em Israel, os levitas de Siló e de outros lugares de
Israel tinham duas escolhas: podiam mover-se para Judá e tentar encontrar um lugar na hierarquia
sacerdotal lá. Ou podiam permanecer em Israel, tentando sobreviver da melhor forma que
conseguissem (Friedman, 1997, p. 48).
Durante os duzentos anos que estes dois reinos existiram lado a lado, viveram os escribas que
compuseram a versão da história do seu povo. Ambas as versões foram incluídas na bíblia, sendo
respetivamente a fonte J e a fonte E.

Dois Países, Dois Escribas

As primeiras duas fontes, J e E foram escritas por dois escribas 97 que estavam ligados à vida da sua
época, os grandes acontecimentos, as políticas, a religião e as catástrofes. Este período descrito
brevemente acima engloba mais acontecimentos, começando pelo reinado de Salomão e as várias
políticas que levaram a várias posições de insatisfação na sociedade israelita.
O autor de J proveio de Judá e o autor de E veio de Israel, o facto de ambas as fontes utilizarem nomes
diferentes para a deidade não são em si uma prova definitiva. Os dois nomes diferentes Javé e Elohim
podem-nos servir como ponto de referência para separarmos todas as histórias e narrativas em que se
agrupam. A partir desta separação encontramos provas consistentes que as narrativas da fonte E
preocupam-se com Israel e as histórias da fonte J foram escritas por alguém preocupado com Judá.
No livro de Génesis encontramos um conjunto de histórias que nos permitem tirar estas conclusões,
nas histórias que chamam Deus de Javé, o patriarca Abraão vive em Hebrom. Esta era a principal
cidade de Judá, a capital de Judá quando David era rei, a cidade donde o sacerdote chefe Zadok veio.
No pacto que Javé faz com Abraão, ele promete que os descendentes de Abraão irão possuir a terra
“do rio do Egito até…rio Eufrates”. Estas eram as fronteiras nacionais do reinado de David, o fundador
da família real de Judá.
Mas nas histórias que chamam Deus de Elohim, o neto de Abraão, Jacob luta face a face com um ser
que parece ser divino (ou talvez angélico). Jacob nomeia esse lugar de Peni-El (que significa a “face
de deus”), Peni-El era a cidade que o rei Jeroboão construiu em Israel98.
Ambas as fontes, J e E, contam histórias acerca da cidade Beith-El e ambos os reinos Judá e Israel
fazem reivindicações políticas em Beitth-El, que é uma cidade entre as suas fronteiras (Friedman,
1997, p. 62).
Ambas as fontes também contam histórias acerca da cidade de Siquém construída por Jeroboão, as
duas histórias são bastante diferentes. Na versão da fonte J um homem chamado Siquém era o principe
original dessa cidade, que amou Diná a filha de Jacob. Dormiu com ela e pediu a Jacob a sua mão em

97
Ou duas escolas de escribas
98
Génesis 32:25-31; 1 Reis 12:25
casamento, os filhos de Jacob não aceitaram a proposta. Porque os habitantes de Siquém não eram
circuncisados, desta forma o principe e o rei de Siquém persuadiram todos os homens da cidade a
serem circuncisados. Enquanto os homens estavam imobilizados pela dor da cirurgia, dois dos filhos
de Jacob, Simeão e Levi entram na cidade e matam todos os homens trazendo de volta com eles a sua
irmão Diná.
O seu pai Jacob critica estes comportamentos duramente (Génesis 34) esta história de J conta a forma
bárbara como Israel adquiriu a sua capital.
No entanto a fonte E conta doutra forma, na narrativa de E Jacob comprou a porção de terra ao pai de
Siquém (Génesis 33:19). Como é que Israel adquiriu Siquém? O autor E conta que a comprou o autor
J conta que a conquistou num massacre violento.

A Origem das Tribos

Nos relatos dos netos e bisnetos de Jacob, cada um deles torna-se um ancião de uma das tribos, existe
geralmente uma referência à divindade quando se dá o nome à criança. O grupo de histórias que
incovam Elohim são as histórias de: Dã, Naftali, Gad, Asher, Isacar, Zebulom, Efraim, Manassés e
Benjamim. Por aqui podemos concluir que o grupo com o nome Elohim inclui os nomes de todas as
tribos de Israel (Génesis 30:1-24a).
O grupo de histórias que invoca o nome Javé são as histórias de: Rúben, Simeão, Levi, Judá. Os
primeiros três dos quatro nomes nesta lista são nomes de tribos que perderam os seus territórios e
mesclaram-se com outras tribos. O único nome nesta lista de uma tribo com território existente na
narrativa de J é Judá (Génesis 29:32-35).
A narrativa de J justifica a ascendência de Judá, de acordo com a história, Rúben foi o primeiro filho,
Simeão foi o segundo, Levi o terceiro e Judá o quarto. No contexto do Antigo Médio Oriente a ordem
de nascimento era muito importante, o primogénito tinha direito à maior porção da herança (Friedman,
1997, p. 64).
No entanto existem várias narrativas que justificam o facto de Judá ter ganho proeminência,
primeiramente temos uma história de Rúben ter dormido com as concubinas do pai e este ter
descoberto. Portanto aqui o primogénito perdeu o direito à herança, depois temos a história de Simeão
e Levi retratada em J como aqueles que massacraram a cidade de Siquém e foram criticados pelo seu
Pai. Desta forta a fonte J transporta o direito da primogenitura para o quarto filho, Judá.
Analisemos a profecia de Jacó no leito da morte:

Rúben, tu és meu primogênito, minha força e as primícias do meu vigor,


Preeminente em dignidade e peeminente em poder.
Descomedido como a água, não reterás a preeminência;
Porquanto subiste ao leito de teu pai;
Então o contaminaste. Sim, ele subiu à minha cama.
Génesis 49:2-4

Simeão e Levi são irmãos;


as suas espadas são instrumentos de
violência.
No seu concílio não entres, ó minha
alma!
com a sua assembleia não te ajuntes,
ó minha glória!
porque no seu furor mataram homens,
e na sua teima jarretaram bois.
Maldito o seu furor, porque era forte!
maldita a sua ira, porque era cruel!
Dividi-los-ei em Jacó,
e os espalharei em Israel.
Génesis 49:5-7

Judá, a ti te louvarão teus irmãos;


a tua mão será sobre o pescoço de
teus inimigos:
diante de ti se prostrarão os filhos de
teu pai.
Génesis 49:8

Na versão da fonte E a profecia de Jacob no leito de morte é diferente, Jacob dá porção dobrada a José,
anunciando que cada um dos dois filhos de José, Efraim e Manassés irão receber a porção inteira. Esta
porção seria equivalente às porções de Rúben, Simeão e outros. Porque é que o autor de E favoreceu
José e os seus filhos?
A resposta está em mais um detalhe da história de E, quando Jacob está a dar a sua bênção antes de
morrer, José senta os seus filhos à frente de Jacob. De tal forma que Jacob coloca a sua mão direita
sobre a cabeça de Manassés o filho mais velho de José. A mão direita era um sinal de proeminência
(Friedman, 1997, p. 65). Jacob cruzou os seus braços, para que a sua mão direita pousasse sobre a
cabeça de Efraim, José protestou a troca mas Jacob insistiu que Efraim iria se tornar maior (Génesis
48:8-20).
Existia alguma significância histórica acerca da tribo de Efraim no tempo do escriba desta narrativa?
Sim, Efraim era a tribo do rei Jeroboão, a capital do seu reino era Siquém que se localizava nas colinas
de Efraim (1 Reis 12:25) e de facto foi um nome utilizado para mencionar o reino de Israel (Isaías
7:17; Jeremias 7:15).
Estas evidências só nos demonstram que as histórias de J enquadram-se nas cidades do território de
Judá e as histórias de E enquadram-se nas cidades e território de Israel.
Como foi referido por (Friedman, 1997, p. 70) as histórias bíblicas são uma cadeia de pistas para a
identidade dos seus autores e ao mesmo tempo são janelas para o seu mundo antigo. As histórias da
fonte J refletem as condições do tempo e do lugar em que o seu autor viveu e mostram onde alguns
dos seus interesses se posicionam.

O Bezerro de Ouro na Fonte E

A narrativa do bezerro de ouro é um exemplo bastante rico em carateristicas que nos permitem aceder
ao mundo do escriba que a redigiu. Sumarizando a narrativa esta decorre enquanto Moisés está na
montanha de Deus a receber os dez mandamentos. Aarão faz um bezerro de ouro para o povo, eles
dizem: “Estes são os teus deuses, Israel, que te trouxeram da terra do Egito”. E Aarão diz, “Amanhã
haverá festa ao Senhor” (Êxodo 32:5).
As pessoas sacrificaram e festejaram, enquanto Deus conta a Moisés do sucedido, dizendo que vai
destruir o povo e começar um novo povo descendente de Moisés.
Moisés intercede por misericórdia, desce da montanha com Josué, ao deparar-se com o cenário ele ira-
se e esmaga as tábuas da lei. A tribo de Levi reúne-se à volta de Moisés e leva a cabo uma purga
sangrenta entre o povo.
Várias questões são levantadas neste relato, tais como porque é que alguém iria representar o povo
como rebelde no momento da sua libertação quando estão a receber a aliança? Porque é que Aarão é
retratado como o líder da heresia? E porque é que ele não sofre qualquer castigo por isso no final da
história? Porque é que o simbolo da heresia era um bezerro de ouro?
Na narrativa as pessoas dizem “estes são os teus deuses, Israel…,” e só há um bezerro de ouro, dizendo
também “…que nos tirou da terra do Egito”. Aarão diz “amanhã haverá festa ao Senhor” portanto
devemos assumir que ele não esta a apresentar um deus (ídolo) rival a Javé. O bezerro não é tratado
como um deus no Antigo Médio Oriente e nesta narrativa é retratado como tal. Moisés esmaga as
tábuas dos dez mandamentos, os levitas chacinam o povo e Josué não está associado neste incidente.
Sabemos que o autor da fonte J é proveniente de Judá e o autor E de Israel, este autor tem um interesse
particular por assuntos relacionados com o Rei Jeroboão e as suas políticas. Ele lida com cidades que
Jeroboão reconstruiu: Siquém, Peniel, Beith-El, justifica a ascendência da sua tribo Efraim. E dá
especial importância ao enterro de José cujo sepulcro tradicional está em Siquém.
A fonte E também enfatiza Moisés em particular como o seu herói, de forma muito mais notória que a
fonte J. Nesta narrativa é a intercessão de Moisés que salva o povo da destruição, também em E Moisés
desempenha um papel pessoal significativo na libertação da escravatura, de uma forma de J não
descreve. Em E há menos material concernente aos patriarcas do que a Moisés enquanto em J há mais
material referente aos patriarcas.
Seguindo a linha de pensamento do autor (Friedman, 1997, p. 70) consideremos a hipótese do escriba
de E ter sido um sacerdote levita, provavelmente oriundo de Siló e possivelmente descendente de
Moisés.
Tal pessoa teria interesse em desenvolver estes tópicos: as políticas económicas judaitas opressivas, o
estabelecimento de um reino independente reinado por Jeroboão e o estatuto superior de Moisés. Se
realmente esta hipótese for plausível parte das nossas questões referentes à narrativa do bezerro de
ouro ficam respondidas.
Os sacerdotes de Siló sofreram uma perda de influência na hierarquia sacerdotal debaixo do reinado
do rei Salomão. O seu líder Abiatar foi expulso de Jerusalém, o outro sumo-sacerdote, Zadok que era
considerado descendente de Aarão manteve-se no poder.
As terras dos levitas do norte foram oferecidas aos Fenícios, o profeta de Siló Aijá instigou a revolta
do reino do norte e designou Jeroboão como rei do norte. Os sacerdotes de Siló esperavam um lugar
no novo reino, no entanto as suas expetativas foram frustradas quando Jeroboão estabelece os centros
religiosos de bezerros de ouro em Dã e Beith-El.
Não sendo incluídos na nova estrutura religiosa, esta antiga família de sacerdotes sentiu-se traída. O
simbolo da sua exclusão em Israel eram os bezerros de ouro, o símbolo da sua exclusão em Judá era
Aarão (Friedman, 1997, p. 74).
Alguém oriundo desta família sacerdotal, o escriba de E, escreveu uma história que afirmou que depois
dos israelitas se libertarem da escravidão, cometeram heresia. Esta heresia era adorarem um bezerro
de ouro feito por Aarão.
Todos os detalhes da narrativa encaixam-se neste pensamento, Aarão não sofre qualquer tipo de castigo
na história, porque ele era um antigo sumo-sacerdote. Um sumo-sacerdote não podia sofrer nenhum
mal pela parte de Deus, porque em tal caso ele já não continuava a servir como sumo-sacerdote.
Qualquer tipo de defeito no sumo-sacerdote iria desqualificá-lo do serviço, o autor não podia inventar
uma história em que o sumo-sacerdote foi desqualificado neste estágio tão inicial.
Quando Aarão diz “Amanhã uma festa para o Senhor”, ele não estava a apresentar um deus rival, o
bezerro, ou jovem touro é apenas a plataforma do trono ou o símbolo da deidade, não a própria deidade.
Esta narrativa trata o bezerro como se fosse um deus, porque se trata de uma narrativa polémica, o
escriba pretendia criar a pior imagem possível no reino de Israel para os bezerros de ouro. Analisando
ainda a expressão “estes são os teus deuses Israel…que te libertaram da terra do Egito” tiramos duas
conclusões:
No relato de 1 Reis 12:28 “Pelo que o rei, tendo tomado conselho, fez dois bezerros de ouro; e disse
ao povo: Basta de subires a Jerusalém; eis aqui os teus deuses, ó Israel, que te dizeram subir da terra
do Egito”. As palavras do povo na narrativa do livro de Exodo são idênticas às palavras de Jeroboão
no 1 Livro de Reis. Será difícil estabelecer a história textual destas duas passagens mas no mínimo
será seguro dizer que o escriba da narrativa do bezerro de ouro citou as palavras tradicionalmente
atribuídas a Jeroboão nos lábios do povo (Friedman, 1997, p. 75).
Isto estabelece a ligação entre a história do bezerro de ouro e os bezerros de ouro do reino de Israel de
forma bastante clara para os seus primeiros leitores.
O escriba de E retratou os levitas a agirem de forma sanguinária, ele era levita, escrevendo que Aarão
agiu de forma rebelde enquanto os outros levitas agiram lealmente. Moisés diz aos levitas que eles
alcançaram bênçãos pelas suas ações.
Deste modo a história denigre a imagem dos antepassados dos sacerdotes de Jerusalém enquanto louva
os outros levitas. A menção de Josué na história não deixa de ser indeferente na nossa discussão, ele
foi dissassociado da heresia, porque era um herói do norte. A sua tribo era a mesma que a do rei
Jeroboão: Efraim, a sua sepultura como a de José também era em Efraim. Atribuia-se a Josué o crédito
de ter liderado uma cerimónia de aliança nacional em Siquém, o lugar que se tornou a capital de
Jeroboão. O escriba da fonte E adicionava desta forma um elemento á sua narrativa do bezerro de ouro
que glorificava um herói do norte que estava associado à capital e à tribo preeminente (Friedman,
1997, p. 73).
O facto de Josué não ter participado nesta heresia, explica porque é que ele se tornou sucessor de
Moisés.
Para concluirmos Moisés é ainda retratado a esmagar as tábuas dos dez mandamentos, possivelmente
para levantar dúvidas acerca do santuário central religioso Judá. O Templo em Judá abrigava a arca
que continha as duas tábuas dos dez mandamentos. De acordo com esta narrativa do bezerro de ouro,
Moisés esmaga as tábuas, o que significa que de acordo com a fonte E a arca no Templo de Jerusalém
não continua as tábuas da lei, ou então continua tábuas inautênticas.
O relato de J aqui apresenta a solução para o problema “Então disse o Senhor a Moisés: Lavra duas
tábuas de pedra, como as primeiras; e eu escreverei nelas as tábuas, que tu quebraste.” (Êxodo 34:1).
Com a narrativa do bezerro de ouro o escriba de E atacou os estabelecimentos religiosos de Judá e
Israel, ambos excluíram o seu grupo. Se nos questionarmos porque motivo é que a fonte E noutras
narrativas favorece o reino de Jeroboão, a tribo de Efraim e as cidades de Siquém, Peniel e Beit-El?
Teremos que concluir que Siló localizava-se em Efraim e o grande sacerdote Samuel era de Efraim, o
reino do norte seria também a sua única esperança política. Uma vez que existiam sacerdotes não
levitas em Beith-El que poderiam ser rejeitados dando lugar ao seu grupo. Jerusalem não oferecia
qualquer tipo de esperança naquele tempo uma vez que os sacerdotes da família de Aarão estavam
estabelecidos desde o reinado de Salomão tendo uniões politicas e casamentos99 com a família real.

Fonte P

A fonte P, ou fonte sacerdotal100, é assim designada pela sua ênfase em matérias de observâncias
religiosas e ritualísticas. Assim em Génesis, por exemplo, o primeiro relato da criação redigido por P,
conclui o seu relato com o descanso divino e poranto a observação do sabbath (Génesis 2:2-3). P
também se preocupa com detalhes relacionados às leis alimentares (Génesis 9:4-6). Nas narrativas
ancestrais dos patriarcas, a instituição da circunsição para Abraão e a sua casa aparece em P (Génesis
17:9-14) (Coogan, 2012, p. 49).
Tanto em P como em E a divindade chamasa-se elohim até à revelação do nome divino a Moisés
(Êxodo 6:2-3). Mas ao contrário de E, a fonte P preserva outras designações para a divindade, como
el shadday e outras combinações com o epíteto El.
Na narrativa de P a divindade é retratada como sendo mais remota e transcendente do que nas outras
fontes, nunca aparecendo de forma direta como por exemplo em J, ou indiretamente na forma de
sonhos em E.
Para P, começando especialmente por Êxodo a divindiade manifesta-se tipicamente na sua “glória”,
que pode ser uma imagem concreta de uma luz cheia de luz que revela a presença divina que
simultaneamente enconbre.

99
A ligação do casamento parece refletir-se na tradição sacerdota em que Aarão casou-se com a irmã de
Nachshon bem Amminabad, o principe da tribo de Judá; ver Êxodo 6:23 e Números 2:3
100
P do inglês priestly source
Enquanto J descreve um pacto com Abraão (Génesis 15:18-21) e J e E descrevem um pacto no monte
Sinai/ Horebe. Em P uma série de pactos temáticos ocorrem (Coogan, 2012, p. 49), o primeiro é o
pacto celebrado com Noé e os seus descendentes cujo sinal era um arco-íris no céu (Génesis 9:12-17).
O segundo pacto ocorre com Abraãoo e é o sinal da circuncisão (Génesis 17:11), o terceiro pacto é a
aliança entre Deus e Israel cujo sinal é o sabbath (Êxodo 21:12-17).
Por causa de P ter sido o editor final das fontes existentes, o primeiro capítulo de Génesis e o último
de Deuteronómio são maioritariamente produções suas.

Breve Contextualização Histórica da Ideologia de P

A fonte P foi composta não muito tempo depois da destruição de Jerusalém e do primeiro templo em
587 a.e.c. baseando-se em tradições antigas, os sacerdotes escribas procuraram fornecer uma resposta
teológica. À tragédia do fim do reino e o exílio do povo para a Babilónia, assim esta antologia
sacerdotal enfatiza o tabernáculo. Um santuário móvel utilizado no deserto (Êxodo 25-31; 35-40),
relembrando o povo que Deus já estivera uma vez presente em Israel na adoração fora da terra
prometida e sem o templo de Jerusalém. Ao darem relevo à circunsição e ao sabbath, duas práticas que
podiam ser praticas independentemente da localização geográgica em que se estivesse. P apontou um
caminho para a emergência da identidade judaica afastada de um estado-nação.
Podemos afirmar em linhas gerais que o trabalho literário da tradição sacerdotal foi fundacional para
o desenvolvimento do judaísmo da diáspora (Bailey, 2016).
A tradição sacerdotal tem um vocabulário específico, frases típicas e particularidades estilísticas, o
interesse religioso pelo culto e a ênfase colocada sobre "Aarão e os seus filhos”. Como iremos notar
esta fonte divide a história em eras, etapas significativas para a compreensão da identidade israelita.
Como foi referido esta tradição formou-se no tempo do exílio e no exílio da Babilónia, tendo sido
baseada em tradições antigas e sagradas, transmitidas nos círculos sacerdotais.
A data desta fonte no século 5 a.e.c. torna esta a mais recente da torá, tendo uma grande importância
na composição da Torá, fixada no exílio ou logo depois do exílio, foi a base literária onde se inseriu o
resto do material (Shreiner, 2004, p. 297).
Analisando alguns aspetos literários desta fonte começaremos pelo documento base sacerdotal que é
uma narração histórica contínua. Começa na narração da criação (Génesis 1:1-2:4a), tendo como ponto
central a criação do homem segundo o plano de Deus que culmina com o sábado divino, depois de
Deus afirmar que tudo era muito bom.
A geneologia em Génesis 5 descreve-nos o dilúvio universal e com isso a aliança de Deus com a
humanidade. Uma nova geneologia (Génesis 11:10) introduz a história dos patriarcas, que só em
Génesis 17 e 23 se prolonga. Em Génesis 17 a aliança de Deus com Abrão começa uma nova época
que se distingue da criação e do dilúvio, porque agora Deus revela-se como El-Shaddai (Génesis 17:1).
O tema central de P é a história de Moisés que como a dos patriarcas carateriza-se pelo nome 'El-
Shaddai, a de Moisés distingue-se pela revelação do nome Javé (Êxodo 6:2)
Dos prodigios realizados no Egito e a libertação do povo, Moisés leva Israel ao Sinai onde Javé
manifesta a sua vontade, e a sua glória desce numa nuvem e enche o tabernáculo santo.
A fonte P omite uma narrativa de conquista da terra prometida concluindo de uma forma bastante
simbólica, Moisés deve contemplar a terra prometida sabendo que não poderá entrar nesse lugar, ele
deve olhar não só com o olhar ancioso mas também com uma certa fé. Acreditando que a promessa
ainda subsiste e que já desponta uma nova geração, na qual Deus realizará a sua promessa. Estes serão
os israelitas que obedecerão e porão em prática o que Javé ordenou a Moisés (Dt 34:9) (Shreiner, 2004,
p. 299).
Para compreendermos a conclusão da fonte P relativamente ao facto de Moisés não poder entrar na
terra prometida, é necessário considerar que P formou-se no exílio. A situação do exilio claramente
influenciou a conceção de P.
A ênfase colocada no sabbath reside no facto de que este não é apenas um mandamento do Sinai, mas
é algo que se fundamenta na criação. É o gesto do repouso divino, a bênção e a santificação deste dia
receberam em P um destaque especial. O sábado é assim um sinal do começo do mundo, na perspetiva
cosmológica de P. A origem de Israel em P é assinalada pela Aliança com Abraão, que se simboliza
no ato da circuncisão. Apesar dos egipcios praticarem o mesmo rito (Coogan, 2012, p. 70) este rito era
importante para os judeus do exilio porque os distinguia do ambiente pagão que os cercava.
Além disso são atos independentes do templo e, por isso, possiveis no exilio, somente nestas
circunstâncias os escribas conseguiram amadurecer teologicamente e definir o seu caráter de sinal
(Shreiner, 2004, p. 299).

Traços Literários de P

Fazendo agora uma releitura do ponto de vista literário, o escriba sacerdotal (P) iniciou provavelmente
a sua produção textual no período de resconstrução em Judá no final do século 5 a.e.c.
Expandindo e modifando a antiga história de J, adicionou como prólogo, uma cosmologia que incluiu
as origens humanas, animais, vegetais e de todo o cosmos.
Esta criação do cosmos é realizada por meio de palavras proferidas pela divindade durante um período
de seis dias (Seters J. V., 2011, p. 86). Quando esta ordem é estabelecida e confirmada como “boa”, o
sétimo dia é consagrado como o dia santo de repouso, que imita o descanso do criador.
Os pormenores importantes deste relato cosmológico é que o escriba de P desmitologiza e racionaliza
os típicos relatos da criação. Assim dividir as águas do abismo já não é matar o monstro demoníaco, a
palavra que reforça a “terra” para esta gerar o seu fruto é uma reflexão que substitui a grande deusa
mãe. O sol e a lua que “governam” o dia e a noite tornam-se em P grandes luminárias em vez de deuses,
assim o princípio do céu e da terra segue uma sucessão de eventos racionalizados que se conformam
com a teologia monoteísta de P.
O prólogo de P relata-nos a história universal começando por nos contar como é que aconteceu a
criação do próprio tempo. Quando a criação da luz tornou possível a realidade do primeiro dia, esta
criação do tempo começou a ser usada como medida temporal para o resto dos dias da criação. A
principal função dos corpos celestes é neste contexto regularem os tempos, as estações, meses e anos.
Os dias sagrados como sabbath são reconhecidos como parte desta ordem cósmica e a história como
cronologia é entendida como um aspeto da ordem cósmica dos eventos.
Estas crenças e conceções legitimizam e elevam o papel dos sacerdotes como guardiões desta ordem
cósmica.
Este relato da criação tem assim bastantes diferenças do relato da criação anterior redigido pela fonte
J (Génesis 2:4b-3:24) tanto na apresentação como na ordem dos atos individuais da criação.
A grande adição que P faz à Torá está relacionada com os assuntos concernentes à adoração no templo,
leis de pureza, sacrificios e regulamentos dos festivais. Isto relaciona-se diretamente com os cultos
sacerdotais no período do Segundo Templo.
A “tenda do encontro” em J é uma tenda meramente oracular onde Moisés recebia as suas revelações,
não são mencionados sacerdotes nem cultos, apenas Josué é associado à tenda. (Seters J. V., 2011, p.
88).
Contrastando com a “tenda do encontro” de J, o tabernáculo na fonte P é um elaborado santuário
portátil com um grande sacerdócio, práticas sacrificiais e liturgia. Que formam no seu todo o centro
da vida social de Israel, a compreensão constitucional do povo é revista por P como uma “teocracia”.
Em que existe um líder secular e um sumo-sacerdote, no início Moisés é preeminente em relação a
Aarão, o sumo-sacerdote. Isto porque ele recebe a revelação de todo o sistema, mas depois de Moisés
os seus sucessores, como Josué, devem assumir direções provenientes do sumo-sacerdote.
Aspetos teológicos relevantes desta fonte serão discutidos em pormenor na seções referentes ao
tabernáculo e à teologia de P.

Fonte D

A fonte D encontra-se quase de forma completa representada no livro de Deuteronómio, de acordo


com o consenso entre os académicos, o núcleo de Deuteronómio foi o livro descoberto no Templo
durante o reinado do rei Josias no fim do século 7 a.e.c101 (Coogan, 2012, p. 49).
Aparentemente Deuteronómio utiliza fontes anteriores ao século 7, existem algumas conexões entre D
e E. Por exemplo D utiliza Horebe (Deuteronómio 1:2;5:2) como o nome da montanha da revelação
em vez de utilizar o monte Sinai. D também enfatiza a profecia (Deuteronómio 13:1-5; 18:15-22),
assim como E, provavelmente teve as suas origens no reino do norte (Coogan, 2012, p. 49).
Esta fonte é caraterizada como sendo uma escola, a escola deuteronomista, que teve ligações com os
sacerdotes levitas e os profetas do reino do norte.
Alguns dos motivos críticos que levaram os críticos a identificaram que o livro não é da autoria de
Moisés são: o próprio quadro narrativo que está colocado na terceira pessoa. O narrador dos discursos
viveu no lado oeste do rio Jordão em Israel, onde Moisés morreu.
D Continuou a rever o seu núcleo textual, o livro de Deuteronómio, há medida que as circunstâncias
de Israel foram-se alterando. De reino autónomo no norte, a um reino vassalo no sul e por fim um povo
conquistado a viver no exilio da Babilónia (Coogan, 2012, p. 154).
Esta escola produziu aquilo a que os estudiosos designam História Deuteronomista, que é uma
narrativa interpretativa da história de Israel. Esta interpretação baseou-se nos ideais do livro de
Deuteronómio e compreende um extenso trabalho dentro do corpo literário das escrituras.
Compreendendo os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis, a história deuteronomista reveu e readaptou-
se inúmeras vezes.
Esta escola é responsável pela edição dos oráculos e autobiografias de vários profetas bíblicos,
incluindo Isaías de Jerusalém102, Óseias, Amós, Miquéias e Zacarias (Coogan, 2012, p. 154).
O livro profético mais próximo ideologicamente da escola deuteronomista é o livro do profeta
Jeremias, que pertenceu à escola deuteronomista ou foi bastante influenciado pelas suas ideias.

101
Ver 2 Reis 22:8
102
O Primeiro Isaías
A carreira profética de Jeremias começou no fim do século 7 a.e.c. durante o reinado do rei Josias,
cujas reformas foram inspiradas e modeladas pelo núcleo do livro de Deuteronómio.
A ideologia da fonte D passa pela centralidade da fidelidade ao ensino (torá) de Moisés, adaptado às
circunstâncias transitórias do período do domínio Assírio no fim do século 8 a.e.c. e início do século
7 a.e.c.
Durante o exílio o deuteronomista interpretou a catástrofe da destruição de Jerusalém em 586 a.e.c.
como um castigo divino, porque a nação falhou em observar os ensinamentos de Moisés.

Caraterísticas Literárias

A história de Israel narrada por D é tratada como uma lição de obediência e desobediência à lei de
Moisés, a sua narrativa inicia-se na origem do povo de Israel no deserto.
Após serem libertos do Egito debaixo da liderança de Moisés, faz a narração através da conquista da
terra prometida sobre a liderança de Josué103. Relatando também a vida de Israel na terra debaixo do
governo dos Juízes e a instituição da monarquia sobre o reinado de Saul, David e Salomão. A separação
em dois reinos, Judá e Israel e a história destes dois estados até à sua extinção.
Desta forma temos uma história imbuída de interpretações teológicas particulares e uma conceção do
divino diferente.
De acordo com D a lei de Moisés foi dada por Javé como uma constituição e como esta constituição
foi violada por Israel, o exilio e a destruição foram as consequências imediatas dessa realidade.
É a referência anacrónica a esta coleção de leis que nos proporciona algumas pistas do contexto social
e histórico do trabalho literário como originário do movimento de reformas religiosas do rei Josias de
Judá (Seters J. V., 2011, p. 78).
Este rei viveu no final do século 7 a.e.c. e baseou as suas reformas na “descoberta” do “livro da lei” (2
Reis 22-23). Os capítulos 12-26 de Deuteronómio são um código de leis introduzidas por um prólogo
de exortações dadas por Moisés (Deuteronómio 6-8), e temos numa conclusão uma série de ameaças
caso as leis fossem violadas (Deuteronómio 28).
Acredita-se que este seria o livro inicial de Deuteronómio, cujo escriba no princípio do século 6 a.e.c.
começou a expandir com comentários acerca da viagem no deserto (Deuteronómio 1-3) e as
circunstâncias em que a lei foi dada por Javé através de Moisés (Deuteronómio 5; 9-10) (Seters J. V.,
2011, p. 78).

103
O Livro de Josué foi redigido nesta época, século 7 a.e.c.
Estabeleceu-se ainda uma ligação à conquista e ocupação da Terra Prometida através de Josué o
sucessor de Moisés, após a sua morte.
Constatamos que para Deuteronómio a origem de Israel surge debaixo de uma aliança solene com o
seu deus Javé. Os termos desta aliança foram estabelecidos nas leis do decálogo e o código mosaico.
Javé estava assim compromissado com Israel em cumprir a sua aliança para com o povo, dando-lhes a
Terra Prometida. Em troca Israel teria que obedecer à lei, desta forma o programa reformador de Josias
foi criado anacrosticamente como a base constitucional da nação desde o início primordial que
remontava ao dador da lei, Moisés.
As narrativas que se seguem de Josué até 2 Reis são a história da forma como o povo e os seus líderes
cumpriram ou violaram estas leis, e quais as consequências das suas ações nos vários períodos da
história.

O Livro de Deuteronómio

Nas duas fontes antigas (J e E) não existe qualquer menção ao ensino de Javé ter sido escrita, em ambas
as fontes Moisés transmistiu os mandamentos oralmente. Os reformadores do século 7 a.e.c.
acrescentaram versículos às sagas J e E que explicaram que Moisés “Então Moisés escreveu todas as
palavras do Senhor e, tendo-se levantado de manhã cedo, edificou um altar (…) Também tomou o
livro do pacto e o leu perante o povo; e o povo disse: Tudo o que o Senhor tem falado faremos, e
obedeceremos” (Êxodo 24:4;7)104.
Podemos afirmar que o Bíblia Hebraica é um produto e um monumento da cultura escriba do Antigo
Israel. Para nos aproximarmos dos escribas hebreus, do seu pensar, dos seus valores e dos métodos de
trabalho, devemos estudar os textos que eles produziram (Toorn K. V., 2009, p. 143).
O livro de Deuteronómio em concreto é uma amostra da cultura escriba, sendo um artefacto literário e
uma reflexão das preocupações dos escribas. Este livro dentro do âmbito histórico funciona como uma
janela para o fundo histórico e social dos escribas.
Da forma como o conhecemos na Bíblia Hebraica, o livro de Deuteronómio é um trabalho de várias
gerações de escribas. O livro foi concebido e composto nos meios da cultura escriba, aí foi ensinado e
transmitido. No decorrer dessa transmissão, recebeu três novas edições 105, cada uma separada das
anteriores pelo menos por um período de quarenta anos (Toorn K. V., 2009, p. 171).

104
É o único lugar da Bíblia Hebraica em que a expressão sefer torah é encontrada (Schniedewind, 2004, pp.
124-126).
105
Que mais à frente serão exemplificadas.
Cada edição de Deuteronómio implicava uma revisão do manuscrito inteiro, os escribas acrescentaram
uma nova estrutura interpretativa, inserindo material novo e reformulando o texto como eles tinham
recebido. As quatro edições do livro revelam-nos as mudanças e a continuidade no meio escriba (Toorn
K. V., 2009, p. 171).
Os escribas de Deuteronómio descendiam de famílias sacerdotais que se deslocaram, antes de 722 do
Reino do Norte para Judá. Eles traçaram as suas origens à tribo de Levi, como levitas eles
consideravam-se intitulados a servirem no templo. Mas em vez de se focarem no culto sacrificial,
desenvolveram o seu perfil como juristas, através das quatro edições de Deuteronómio eles
promoveram a sua própria área de especialização. A sua preocupação principal era o sacerdócio como
a sua maior fonte de autoridade. A erudição destes escribas abraçou a torá escrita e a torá oral, para
eles a torá era mais do que um trabalho legislativo. A torá era um caminho, uma forma de viver e uma
certa visão da história (Toorn K. V., 2009, p. 171).
Os géneros literários presentes no texto têm um estilo retórico, sendo de certa forma persuasivos, ao
usar as mesmas frases e conceitos de forma repetida (Coogan, 2012, p. 148).
A lei em Deuteronómio é lida de forma diferente daquilo que podemos encontrar nos livros de Êxodo,
Levitico e Números. No Sinai Deus falou, em Deuteronómio é Moisés que fala, desta forma o livro
inicia o processo de interpretação continua. Colocando nos lábios de Moisés a promulgação de uma
“segunda lei”, os escribas reconheceram implicitamente que a escritura necessita de interpretação e
adaptações aos diferentes contextos históricos.

As Quatro Edições de Deuteronómio

Aparentemente a estrutura do livro de Deuteronómio parece-nos simple, o livro contém vários


discursos entregues por Moisés antes da sua morte. Deuteronómio é o texto da segunda aliança
concluída na terra de Moabe, quarenta anos após a primeira aliança em Horebe.
O Discurso de Moisés consiste em recordações do passado (Deuteronómio 1-3); uma série de
exortações (Deuteronómio 4-11), uma exposição de leis e vereditos106 (Deuteronómio 12-26);
discursos no âmbito da cerimónia da aliança, incluindo maldições e benções condicionais
(Deuteronómio 27-30); e discursos e poemas à luz da morte de Moisés (Deuteronómio 31-34).
A primeira edição de Deuteronómio não era considerada um texto comum, sendo promovida ao
estatuto de um texto há muito perdido, a reverência e o respeito pelo livro foram suficientes para
legitimarem uma reforma cultual em grande escala.

106
Conhecido também por Código Legislativo Deuteronomista
Pela descrição que temos em Jeremias 8:8-9 “Como pois dizeis: Nós somos sábios, e a lei do Senhor
está conosco? Mas eis que a falsa pena dos escribas a converteu em mentira. Os sábios são
envergonhados, espandos e presos; rejeitaram a palavra do Senhor; que sabedoria, pois, têm eles?”.
O profeta refere que os sábios acreditam estar na posse de um pergaminho divinamente inspirado,
como se de a lei do Senhor se tratasse. Um texto com este prestígio não passa facilmente por revisões,
correções, expansões, sumplementações, nem alterações de qualquer tipo. Qualquer alteração teria que
ser feita com cautela uma vez que se tratava de um texto sagrado. Embora Deuteronómio tenha passado
por várias edições, o documento no qual as edições foram realizadas tinha um estatuto que tornava a
revisão como uma espécie de sacrilégio (Toorn K. V., 2009, p. 145).
O texto de Deuteronómio contém evidências que demonstram que a preservação do texto correto era
algo que preocupou os círculos escribas que o produziram. A injunção para não se alterar o texto com
adições ou eliminações107 prova a importância da integridade textual (Toorn K. V., 2009, p. 145).
De acordo com Deuteronómio 31:9, Moisés escreveu os ensinamentos e confiou-os aos sacerdotes, a
responsabilidade sacerdotal pela torá escrita surge na regra que ordena que o rei deve procurar uma
cópia da torá fornecida pelos escribas (Deuteronómio 17-18).
Deste modo os sacerdotes eram a autoridade, responsabilizados por preservar a pureza da torá,
qualquer cópia necessitava do seu certificado.
Como meio de identificação das edições podemos comparar a versão final de Deuteronómio com a
versão final do épico de Gilgamesh. As duas grandes edições de Gilgamesh extendem-se em várias
cópias é nos possível identificar que o compositor da segunda edição transformou o texto da primeira
(Tigay, 1982). No caso de Deuteronómio como refere o autor Karel Van Der Toorn108 será necessário
reconstruir as edições prévias com base nos traços e nas pistas deixadas na versão final, todo o processo
envolve um certo nível de especulação.
Algo que nos pode ajudar neste processo é sabermos que o motivo geral que leva um escriba a produzir
uma nova edição é o desejo de fornecer um novo quadro interpretativo ao material existente. Em vez
de acrescentarem material novo, os escribas elaboraram uma nova edição de modo a estabelecer uma
nova compreensão do texto antigo (Toorn K. V., 2009, p. 150).
A evidência comparativa dos clássicos da Mesopotâmia como o Épico de Gilgamesh ilustram o modo
como os escribas procedem como editores109.

107
Ver Deuteronómio 4:2; 13:1
108
(Toorn K. V., 2009, p. 150)
109
A versão padrão do Épico de Gilgamesh (1100 a.e.c.) reformolou a antiga edição babiblónica (1700 b.c.e.)
adicionando um prólogo e reformulando o episódio final. De modo a transmitir uma nova perspetiva do texto,
o editor expandiu o princípio e o fim, providenciando um novo horizonte interpretativo (Tigay, 1982).
Tendo como modelo a técnica editorial do escriba da Babilónia, iremos procurar explorar evidências
de sucessivas edições no livro de Deuteronómio.
Para começar o livro de Deuteronómio tem vários inícios e vários finais, existem três rúbricas que
abrem o livro (Deuteronómio 1:1; 4:44; 4:45) e três prelúdios que o fecham (Deuteronómio 28:69;
29:28; 34:10-12) (Toorn K. V., 2009, p. 151).
Como referido por Karel Van Der Toorn este facto é bastante relevante por estas três rúbricas
correspondem a três diferentes edições do livro de Deuteronómio. Sendo que a quarta edição não tem
rúbrica identificativa, a ordem cronológica110 destas quatro edições pode-se distinguir da seguinte
forma:
(1) A Edição do Pacto
(2) A Edição da Torá
(3) A Edição Histórica
(4) A Edição de Sabedoria

As Perspetivas de Cada Edição

A Edição do Pacto

A primeira edição de Deuteronómio tem um termo hebraico crucial ‫( ית רִםב‬berît) que significa
literalmente “tratado ou pacto”. Esta edição do pacto é o seper habberît, “ o livro do pacto” que é
referido nos relatos da reforma do rei Josias (2 Reis 23:2).

“Estes são os testemunhos, os estatutos e os preceitos que Moisés falou aos filhos de Israel, depois
que saíram do Egito”
Deuteronómio 4:45
A perspetiva do pacto não se limita apenas a esta edição, a estrutura do livro de Deuteronómio segue
o padrão literário de um tratado, quando comparado aos tratados hititas e neo-assírios. A estrutura de
tratado neste texto consiste em três partes: o prólogo (começando em Deuteronómio 6:4-9), seguindo-
se as estipulações do tratado (Deuteronómio 12:1-16:17, 26) e finalmente as benções e maldições
condicionais (Deuteronómio 28).
As implicações históricas que a forma literária de Deuteronómio teve foram imensas, no escopo deste
trabalho vamos atener-nos às implicações religiosas.

110
Os nomes são invenções modernas para caraterizar as edições ver (Toorn K. V., 2009, p. 151).
O primeiro editor de Deuteronómio apresentou o texto na forma de um tratado, a razão desta escolha
relaciona-se com as reformas religiosas implementadas pelo rei Josias. Esta reforma baseou-se num
pacto com uma liderança de Israel, numa ocasião o rei leu o pergaminho que foi encontrado no templo
(2 Reis 23:1-3).
Assim a primeira edição de Deuteronómio apresenta-se como o texto chamado “pergaminho do pacto”.
Para legitimizar as medidas levadas a cabo pelo rei o escriba da edição do pacto de Deuteronómio
inventou a noção de um pacto anterior concluído na terra de Moabe quando Israel estava a entrar na
terra prometida (Deuteronómio 28:69), para servir como precedente histórico para o pacto de Josias
com o povo (Toorn K. V., 2009, p. 153).
Os pormenores da teologia deuteronomista serão discutidos numa secção mais abaixo, de qualquer
forma a ênfase da reforma de Josias consistia numa variedade de medidas. Sendo que o seu objetivo
principal era centralizar o culto de Javé no Templo de Jerusalém.
Por isso encontramos nesta edição de Deuteronómio a doutrina do único lugar legitimo de adoração
em Israel que constituirá o núcleo da edição do pacto. Sumarizando a mensagem da primeira edição
temos a seguinte crença: um Deus, um templo, a ideologia do shemá111.
Algo importante a reter é que os capítulos da edição do pacto não foram inventados de raíz, antes
constituem uma revisão do código do pacto mais antigo que se encontra em Êxodo 21-23. O que a
edição do pacto contém é uma reflexão teológica da reforma e um aprimoramento da lei existente à
luz da reforma.
Revestido da autoridade de Moisés o antigo dador da lei, o escriba desta edição reinterpretou, adaptou
e rescreveu as tradições legais com as quais estava familiarizado. No seu trabalho escrito é possível
que ele tenha recorrido a uma extensão de tradição oral, mas a edição que ele produziu usou como
fontes material escrito. A natureza literária da edição do pacto deixa-nos a impressão que o editor
utilizou os textos de tratados Neo-Assírios como modelo (Toorn K. V., 2009, pp. 154-155).

A Edição da Torá

A nomenclatura desta edição deve-se ao seu termo em hebraico seper hattôrâ (Deuteronómio 28:61;
29:29;30:10). A sua autoria é atribuída a Moisés, tradições mais tardias identificaram a seper hattôrâ

111
“Ouve ó Israel; o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Deuteronómio 6:4) esta fórmula constitui o ínicio
do documento reformador deuteronomista. Identificamos o apelo à adoração exclusiva de Javé como uma
divindade singular, assentando o capítulo central da edição do pacto (capítulo 12). Iniciando-se com uma série
de “regras e vereditos” (Deuteronómio 12-26). Nesta perspetiva assim como Javé é um, o seu templo deve ser
um, Israel só o pode adorar num local que ele escolherá (Toorn K. V., 2009, p. 153).
como sendo a tôrat moseh (Josué 8:31;23;23:6; 1 Reis 2:3; 2 Reis 14:6; 23:25) ou seper moseh
(Neemias 13:1; 2 Crónicas 25:4; 35:12).
Na edição da Torá o livro de Deuteronómio inicia-se com a rúbrica que está em Deuteronómio 4:44

“Esta é a lei que Moisés propôs aos filhos de Israel”

Concluindo em Deuteronómio 29:28

“As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, mas as reveladas nos pertencem a nós e
a nossos filhos apra sempre, para que observemos todas as palavras desta lei”
Nesta apresentação da edição da Torá, o texto de Deuteronómio é a Torá, ou seja, é uma instrução dada
por Moisés o fundador lendário da nação israelita (Toorn K. V., 2009, pp. 155-156).
Esta edição enfatiza assim o papel especial de Moisés num prólogo encontrado em Deuteronómio 5,
inserido entre a rúbrica da edição do pacto (Deuteronómio 4:45) e a sua seção de abertura
(Deuteronómio 6:4-9). O novo prólogo relembra o sue leitor que Javé fez um pacto com os israelitas
no monte Horebe, todo o povo ouviu as dez palavras (5:2-18), quando Javé “parou de falar” escreveu
as palavras em duas tábuas de pedra de deus a Moisés (5:19).
A perspetiva desta edição assenta no facto de que Deus “parou de falar” com o povo, porque o povo
tinha medo (5:24) (Toorn K. V., 2009, p. 156).
Esta passagem teve assim duas implicações as duas tábuas não continham todos os mandamentos de
Javé. Portanto ao lado do mandamento escrito, existia um mandamento oral falado por Deus a Moisés.
Moisés era o receptáculo deste mandamento oral, a revelação oral completava a revelação escrita,
sendo um complemento.
Através do constructo de uma revelação oral, o escriba da edição da torá criou espaço para inserir
novos materiais no livro da lei que ele herdou.
Esta edição trouxe enormes contributos políticos para o Antigo Israel que não serão explorados neste
trabalho. O impacto na realidade religiosa sentiu-se ao nível dos profetas, a edição da torá redefine o
papel do profeta em Israel (Deuteronómio 18:9-22). A profecia na visão do editor da torá é a resposta
israelita às práticas de adivinhação das nações pagãs (Toorn K. V., 2009, p. 158).
Nem todos estariam qualificados para serem profetas, o contexto da edição da Torá (18:15) deixa claro
que este “profeta como Moisés” não é uma figura única, mas um numa sucessão de profetas. De outro
modo a profecia não iria oferecer uma alternativa viável aos meios de adivinhação proibidos. Ao tornar
Moisés um profeta modelo, o editor da torá, redefiniu os profetas como professores da torá. Assim ele
reformolou os profetas, tornando-os extensões dos sacerdotes que possuem a torá (Toorn K. V., 2009,
pp. 158-159)

A Edição Histórica

Esta edição é posterior às duas anteriores e funde as suas perspetivas distintas numa só. Na edição
histórica o pacto e a torá são duas noções intarcambiáveis, apesar da seper habberit e a seper hattôrâ
terem sido edições de Deuteronómio distintas, a edição histórica trata-as como se fossem uma (Toorn
K. V., 2009).
Atentando para a descrição da reforma do rei Josias, em 2 Reis 22-23, que se refere ao “Livro da
Torá”112, e também como “Livro do Pacto” (2 Reis 23:2; 23:21 ; compare 23:3).
Este paralelo entre a edição histórica de Deuteronómio e a história deuteronomista não é uma
coincidência (Toorn K. V., 2009, p. 160).
O autor da terceira edição de Deuteronómio rescreveu o texto para que este servisse como o princípio
base de um trabalho histórico mais abrangente. De um documento de reforma e mais tarde uma visão
teocrática, Deuteronómio tornou-se parte de um projeto historiográfico.
O escribra acrescentou os capítulos 1-3 no princípio e os capítulos 27 e 31-34 no final, na sua versão
Deuteronómio abre com a rúbrica:

“Estas são as palavras que Moises falou a todo Israel além do Jordão.”
Deuteronómio 1:1

E finaliza com uma observação acerca de Moisés:

“E nunca mais se levantou em Israel profeta como Moisés, a quem o Senhor conhecesse face a
face,
nem semelhante em todos os sinais e maravilhas que o Senhor o enviou para fazer na terra do
Egito, a Faraó, e a todos os seus servos, e a toda a sua terra ;
e em tudo o que Moisés operou com mão forte, e com grande espanto, aos olhos de todo o
Israel”.
Deuteronómio 34:10-12

112
2 Reis 22:8; 22:11 compare 23:24
Esta edição de Deuteronómio foca-se em Moisés, enquanto a edição da torá apresentou Moisés como
modelo e protótipo para uma sucessão de profetas (Deuteronómio 18:15-18). A edição histórica corrige
essa noção afirmando que nunca mais se levantou um profeta “como Moisés”. A observação implica
aqui uma visão de uma era pós-mosaica, onde faltou a grandeza e a pureza do passado (Toorn K. V.,
2009, p. 161).
Este escriba tinha uma perceção da história nacional, os primeiros três capítulos do livro são um
sumário comemorativo dos eventos ocorridos na jornada de quarenta anos pelo deserto, de Horebe a
Moabe. Como Martin Noth demonstrou, este sumário foi concebido para abrir e definir o tom da
história deuteronomista (Noth, 1981).
Os capítulos retratam o povo de forma desfavorável113 este criticismo é ainda mais aguçado nos
capítulos finais do livro. O escriba desta edição adicionou material disperso da tradição mosaica (o
episódio do Monte Ebal, O Cântico do Mar e a Bênção de Moisés antes da sua morte), emoldurando-
os com referências a pecados e apostaias que os israelitas iriam cometer após a morte de Moisés (Toorn
K. V., 2009, p. 162).
Se pudermos considerar estes escribas historiadores, mesmo que a sua história esteja empregnada de
religião, eles leram a história nacional de Israel como uma teodiceia do exilio.

A Edição de Sabedoria

O escriba que escreveu esta edição estava menos preocupado com a noção de pacto, do que com a o
significado intelectual do caminho de vida judeu baseado na torá. Ele refere-se à lei de Moisés como
tôrâ e miswâ, “ensino” e “mandamento”, termos proeminentes na edição de sabedoria (Toorn K. V.,
2009, p. 163). Esta edição representa a ultima maior redação no estágio final de Deuteronómio, as suas
contribuições estão no capítulo 4 e 30 que serviram de novo quadro para a leitura do texto. Os capítulos
em questão dão nos algumas indicações do tempo do editor. Deuteronómio 30:1-5 contempla a
possibilidade da conversão israelita seguida pelo retorno dos exilados espalhados por todo o mundo.
Uma alusão idêntica é feita em Deuteronómio 4:29-31 referindo-se à conversão nacional, este
otimismo não está presente nas edições anteriores do texto antes do exilio, o que torna possível sugerir
que o escriba viveu depois do exilio (Toorn K. V., 2009, p. 163).
Um estudo do enquadramento da sabedoria em Deuteronómio sustenta evidências de influências de
tradições de escribas provenientes da Mesopotâmia. Como os seus predecessores que escreveram a

113
Ver Deuteronómio 1:12; 1:26-28; 1:32; 1:34-36; 1:41-45; 3:26
torá e a edição histórica, o escriba desta edição teve um pano de fundo presumivelmente babilónico
(Toorn K. V., 2009, p. 163).

Síntese

O livro de Deuteronómio é importante para o estudo da história das crenças religiosas dos povos da
Bíblia Hebraica. Por esse motivo decidimos expandir a análise de alguns dos seus pormenores, o tom
distinto de cada uma das suas quatro edições, reflete o desenvolvimento da visão escriba da torá. Na
Edição do Pacto, a Lei estabele a ortodoxia religiosa, prescrevendo uma forma de devoção na qual
existe um lugar para um Deus e somente nesse lugar poderia haver adoração. Na Edição da Torá a Lei
é um projeto para a futuro que foi revelado no passado, descrevendo uma utopia teocrática. A Edição
Histórica apresenta a Lei como uma testemunha contra as gerações passadas, cujos pecados explicam
os desastres que atingiram Judá e Jerusalém. A Edição de Sabedo ria, apresenta a Lei como uma forma
superior de sabedoria que poderia ser apreciada por qualquer ser humano (Toorn K. V., 2009, pp. 171-
172)
Numa seção posterior será abordada a teologia da religião deuteronomista, em termos de análise
textual: O núcleo de Deuteronómio consiste nos capítulos 12-26 esta coleção de regras e vereditos
termina em Deuteronómio 26:16-19. Encerrando com uma seção de bênçãos e maldições
(Deuteronómio 28 minus uma expansão) e um epílogo (Deuteronómio 26:69).
A segunda edição expandiu a secção das maldiçoes no capítulo 28 e adicionou o capítulo 29 que
termina com o epílogo em Deuteronómio 29:28. Um terceiro fecho ocorre em Deuteronómio 34:10-
12, no qual conclui-se a seção que contém as últimas palavras de Moisés (Deuteronómio 31-34).
A terceira edição também inseriu o capítulo 27, a quarta edição inseriu o capítulo 30 (Toorn K. V.,
2009, p. 151).
A edição do pacto inicia-se com a rúbrica de Deuteronómio 4:45 e termina com Deuteronómio 28:69,
a edição da torá abre com a rúbrica preservada em 1:1 e tem o capítulo 5 como a sua primeira seção.
A edição histórica acrescentou 1-3 como um prólogo ao texto com a rúbrica preservada em 1:1 e a
edição de sabedoria inseriu o capítulo 4 como um início depois do prólogo, não tendo nem rúbrica nem
epílogo (Toorn K. V., 2009, p. 152)
3 Os Primórdios da Religião dos povos bíblicos Israelita e Judaíta

3.1 Fontes e Metodologia

A investigação académica dos últimos anos tem mudado consideravelmente as perceções académicas
da religião israelita e judaita. Uso estes dois termos para apurar a especificidade histórica das crenças
religiosas existentes no Reino de Judá (judaitas) e no Reino de Israel (israelitas). O tema que mais se
denota nos estudos recentes é a diversidade religiosa existente nestes dois espaços geográficos (Ed. &
Barton, 2010, pp. 1-7).
Esta diversidade é a compreensão de que a “religião” não é uma realidade uniforme mas antes uma
realidade pluriforme que pode variar de contexto em contexto. Seja no templo, nos túmulos ou em casa
– dentro de vários grupos ou entre esses mesmos grupos de pessoas – de casas rurais, de casas da
realeza, de guarnições do exército a redes de locais de mulheres.
As crenças e práticas religiosas são atividades culturais e sociais, as pessoas “fazem” a religião e a
religião não pode ser no âmbito do nosso estudo divorciada daqueles que a fazem (idem, p.1).
Na tentativa de elaborar uma reconstrução histórica desta dinâmica religiosa, vários estudiosos
deparam-se com as potencialidades e as limitações da Bíblia Hebraica para a reconstrução histórica da
realidade religiosa.
Isto porque grande parte da representação do mundo religioso descrito pela Bíblia Hebraica, não é
viável pelo simples facto que a literatura bíblica é seletiva e ideológica quando conta a história de
Israel e Judá.
Temos assim que ter cautela ao usarmos as fontes bíblicas, os escribas deuteronomistas apagaram
muita da diversidade local em favor da sua versão “normativa” da Javismo, dando até interpretações
tendenciosas aos traços do culto mais antigo. Tais como o culto dos “bezerros” nos santuários do norte
que são tidos nestas fontes literários como indicadores de apostasia para com Javé.
Ao estabelecermos uma polaridade entre uma religião “popular” que mantinha estas práticas e uma
religião “oficial”, arriscamo-nos a distorcer as realidades do antigo Israel e de Judá. Isto porque, por
um lado, a Bíblia Hebraica encoraja-nos a fazer a distinção na sua representação do passado religioso.
Que muito longe de ser um culto uniformizado é antes um tempo de grande variedade, competição e
divisão entre diferentes grupos sócio religiosos (Ed. & Barton, 2010, p. 37).
Por outro lado os estudiosos tendem a assumir que a religião “popular” era intelectualmente inferior,
encoberta por superstições e práticas ”pagãs”. Sendo uma fé desviante da religião “oficial” ortodoxa
de cariz monoteísta.
Os problemas do ponto de vista historiográfico para com esta posição académica são imensos.
Primeiramente a distinção feita entre religião “popular” e religião “oficial” apoia-se sem qualquer base
critica a nível histórico, num âmbito teológico.
Reconstruirmos a história das religiões daquela época, tendo como base uma abordagem bíblica de
distinções teológicas é problemático. Isto porque a construímos na aceitação relativa ausente de crítica
da fiabilidade histórica dos textos bíblicos, uma posição difícil de manter (Ed. & Barton, 2010, p. 38).
A religião “oficial” alinha-se com grupos percecionados como superiores, dominantes e elitistas seja
a nível social, politico ou teológico. Assim as reconstruções históricas da religião burocrática ou do
templo em Judá e Israel tendencialmente é definida como a religião do “Estado”, sendo assim a
“oficial”. Enquanto dentro do pano de fundo bíblico, as teologias “sacerdotais” e da “torá” moldam a
Bíblia Hebraica e são representadas frequentemente como socialmente sancionadas sendo assim
“oficiais”.
Desenhando-se assim expressões “normativas” da religião de Javé, na suposição que estes textos foram
produzidos por escribas do palácio e/ou do templo (idem, p.40). Estas descrições bíblicas foram
escritas por perspetivas especializadas e elitistas dos escribas da bíblia, cujas representações de certos
grupos sócio religiosos pode ter sido com ou sem intenção mal representadas a nível da das crenças e
práticas religiosas de certos grupos sociais (idem, p.49).
Certamente que não devemos dispensar os textos bíblicos e a sua utilidade, mas estes devem ser
utilizados de forma cuidadosa e responsável quando se trata de reconstruirmos o passado histórico da
crença religiosa.
A nível metodológico teremos assim que nos fazermos valer da abundante evidência arqueológica, a
antiga evidência textual de fontes escritas de outras nações circunvizinhas e uma leitura crítica da
Bíblia Hebraica (K.L.Sparks, 2007, p. 1).
É então assim importante explorarmos o conceito da religião do livro, como os autores desta
compilação de artigos referiram (Ed. & Barton, 2010), aquilo que podemos ou não saber a partir dos
textos bíblicos sobre as realidades sócio religiosas do passado está “configurado” pela própria natureza
da Bíblia Hebraica. A auto legitimação dos textos bíblicos, em especial os da torá, como ensinos
religiosos autoritários, tornam a Bíblia Hebraica num constructo de um tipo diferente de religião mais
tardia. Muito diferente das religiões dos grupos sociais que existiram na matriz social do antigo Israel
e Judá.
Apesar dos seus textos basearem-se numa seleção de várias tradições derivadas de diferentes contextos
sócio religiosos. A Bíblia Hebraica apresenta e representa essencialmente uma “religião do livro”
muito dissimilar das realidades religiosas do antigo Israel e Judá para nos oferecer um modelo sólido
para reconstruções do passado sócio religioso.
Em vez disso, a religião da Bíblia Hebraica reflete preferências religiosas idealizadas da elite dos
escribas e as suas comunidades textuais dos períodos persa e helenista. Os grupos de onde a “religião
escrita” passou a auto promover-se e a auto referenciar-se em textos como Êxodo 24:12; 2 Reis 22-23;
Jeremias 29; Neemias 8 e o livro de Deuteronómio (Ed. & Barton, 2010, p. 49).
As caraterísticas de uma comunidade textual são, por um lado, o facto de estas usarem um texto base
para definirem a sua identidade e por outro, para estruturarem a autoridade e a liderança que surge da
capacidade de se usarem dos textos para dominar. As competências políticas e filológicas convergem
neste ponto, a liderança recai sobre o individuo que possui o conhecimento mais compreensivo e a
interpretação mais iluminada dos textos (Assman, 2006, p. 73)
Nesta perspetiva a “religião do livro” apresentada pela Bíblia Hebraica mascarada como uma religião
“oficial” arcaica, parece compromissada intencionalmente a transformar e a eclipsar as religiões
práticas por outros grupos dentro da ampla comunidade cultural, para que se tornem “impróprias”,
“ilegítimas” ou até religiões “desviantes”.
Como (Toorn K. V., 1997, p. 229) referiu a religião do livro foi concebida para substituir a religião
familiar e a religião estatal, uma vez que o pai na família tinha que ler a torá ao seu filho, assim como
o rei tinha que ler a torá para si próprio. A partir daquele momento, surgiu o nascimento de uma religião
oficial, e todas as formas de vida religiosa que se afastavam desta doutrina tornar-se-iam não oficiais
e mais tarde referidas como religião popular.
Mencionando ainda o artigo da autora (Stavrakopoulou, 2010, p. 50), apesar do retrato bíblico de uma
religião escrita ancestral que remonta a Moisés, esta religião “oficial” promovida nos textos bíblicos,
não era a realidade do antigo Israel e Judá. Mas antes um constructo literário assente nas camadas
elitistas tardias e na priorização da “revelação” escrita de Javé.
Antes de prosseguirmos podemos concluir que o estudo académico da antiga religião de Israel e Judá
move-se através de um pêndulo entre aqueles que advogam a singularidade da revelação bíblica
(abordagem da “teologia bíblica”). E aqueles que afirmam que esta antiga religião surge da mesma
“substância” que as outras religiões do Antigo Médio Oriente.
Como acima referi muitas das abordagens em torno desta última posição foram ocasionadas por
descobertas arqueológicas que correlacionam a Bíblia com o seu contexto do Antigo Médio Oriente.

A Revolução da Arqueologia

Em termos metodológicos devemos assim pender para a arqueologia e como esta se relaciona com os
textos bíblicos. É possível reconstruir a partir destas duas fontes a religião de Israel e Judá de 900 a
600 A.E.C. de qualquer forma esta reconstrução será sempre parcial.
As descobertas arqueológicas necessitam de uma interpretação que por vezes é subjetiva e até
dogmática, a grande força da evidência arqueológica na reconstrução religiosa é o seu comentário às
causas e ideologias que estão por detrás do monoteísmo (Lewis, 2016).
Foi a partir de 1970 que a arqueologia bíblica americana iniciou uma série de processos inovadores a
nível metodológico, criando uma revolução arqueológica no mundo bíblico. Até então a investigação
arqueológica transportava consigo uma certa “agenda teológica”.
A partir desse momento os dados arqueológicos começaram a ser considerados a fonte primária de
achados externos para avaliar-se a tradição recebida.
As descobertas arqueológicas no âmbito da religião e do culto são inúmeros para mencionar no escopo
deste trabalho. Basicamente são vários templos e santuários públicos e privados da Idade do Ferro,
1200-600 A.E.C. Temos locais de culto em Hazor (Idade do Ferro I) do período monárquico temos o
enorme complexo de culto em Dã com um “lugar alto” e um santuário num portão em Tell el-Far’ah.
Um templo em Arad e um santuário no deserto em Kuntillet ‘Ajrud no Sinai (todos floresceram
particularmente nos séculos 8 e 9 A.E.C) (Dever, 2016).
A proliferação de novas evidências trazidas de estratégias arqueológicas mais diversificadas
permitiram mudanças revolucionárias na abordagem do estudo da antiga religião israelita, que
substituem os estudos textuais.
As suposições das abordagens textuais têm uma ênfase diferente, a primeira diferença é que no estudo
da cultura material, são as evidências materiais e não o texto que são a evidência primária.
Existem muitas razões para esta troca metodológica:
Primeiramente os textos bíblicos são relativamente tardios face aos achados arqueológicos, muitos
destes textos são seleções literárias e elitistas por natureza compromissadas em transmitir um retrato
ideal da realidade religiosa, politica e social.
Os autores bíblicos transmitiram-nos um retrato idealizado das crenças e práticas israelitas, estas visões
eram ortodoxas e prevaleciam nos círculos sacerdotais. Contudo a maioria da população não tinha
estas práticas e podemos arriscar dizer que não assumia o mesmo tipo de crenças. O corpo bíblico é
estático e limitado, o cânone está fechado e depois de mais de 2000 anos das mais variadas atividades
interpretativas, pode-se argumentar que muita pouca informação útil pode ser extraída do texto.
Os artefactos arqueológicos em comparação com o texto são mais primários, diversos e
compreensivos, sendo também mais objetivos (Dever, 2016).
A arqueologia constrói o contexto do texto, sendo a sua prioridade a cultura material e o contexto,
discernindo o “significado das coisas” num contexto temporal e social mais abrangente. A partir destes
novos elementos é possível “entrarmos” nos eventos usando a evidência arqueológica juntamente com
os textos e empregando a linguagem específica de ambos.
A cultura e o contexto social ganharam uma nova importância nesta abordagem metodológica, a
religião israelita já não é vista como uma tradição literária, essencialmente composta pelas formulações
teológicas dos autores bíblicos. Muito menos é vista como “única” no ambiente do Antigo Médio
Oriente.
A nova ênfase metodológica já não se foca no evento em si, mas antes no processo, na evolução da
antiga religião israelita, que não foi entregue a Moisés no Monte Sinai. Mas foi antes uma evolução da
religião cananita num complexo processo de mudanças socioeconómicas, politicas e culturais ao longo
de séculos. A religião apresenta-se como uma dinâmica viva e não uma proclamação ortodoxa
cristalizada no espaço e no tempo. Apresenta-se como uma prática e não como um dogma, o resultado
desta nova metodologia é uma nova compreensão da formação e função das tradições religiosas no
antigo Israel e especialmente as suas transformações no judaísmo pós exílico.
Não existe assim para o historiador uma “unidade da Biblia” ou um estabelecimento religioso fixo,
encontramos e detetamos, uma diversidade de crenças e práticas nas várias religiões do espaço bíblico
do Antigo Israel.

A Complexidade da Interpretação

Autores como Yehezkel Kaufmann114 atacaram a tese de Wellhausen aferindo que a religião israelita
refletiu sempre as mesmas ideias básicas desde os seus inícios até ao fim. Alguns clamam que a religião
bíblica é um produto do período persa e do período helenista, sendo que a existência de uma religião
israelita ou judaita e até de Israel são produtos literários.
Que abordagem será assim a mais adequada, com base nas evidências bíblicas e extra bíblicas
incluindo a arqueologia? Deparamo-nos aqui não apenas com uma matéria em que os “factos” falam
por si, porque a interpretação desempenha um papel central em todos os estágios da nossa discussão.
Na conclusão deste trabalho responderei a esta questão, tendo em consideração toda a reflexão que
será realizada até lá.

3.2 Breve Panorama Histórico Do Desenvolvimento da Religião Bíblica: de Profecia a Texto

Existe uma questão importante a ser colocada antes de empreendermos qualquer descrição do
panorama geral da religião bíblica. O complexo de tradições nos textos editados datam a evidência da

114
Citado em (Geller, 2016)
religião bíblica do sétimo ao quinto século A.E.C: a torá, os livros históricos e o início da compilação
dos livros proféticos. Nestes trabalhos encontramos estágios mais antigos da religião israelita,
nomeadamente a sua pré-história.
A questão que devemos colocar é esta: a tradição bíblica reflete um estágio mais desenvolvido e tardio
da religião israelita-judaita, ou continuou as mesmas ideias e tendências religiosas, sendo assim
continua? Temos uma tradição contínua ou uma reinterpretação das tradições antigas e uma nova
religião radical e revolucionária?
Continuidade ou revolução?
A bíblia afirma continuidade desde Moisés sem qualquer desenvolvimento significativo. A única
tradição autêntica foi constantemente violada pela apostasia e restaurada por “reformas” religiosas
atribuídas a figuras como Josias e Esdras.
O estudo moderno conclui que existiu alteração e desenvolvimento, Julius Wellsausen115 no século
XIX até afirmou existir descontinuidade entre as antigas tradições bíblicas e as tradições mais recentes.
A tradição antiga era uma religião “natural”, não muito diferente dos cultos dos povos circunvizinhos.
A tardia era um novo tipo de fé enraizado na inspiração profética. Um claro exemplo deste é o modelo
dos pactos bíblicos entre Israel e Deus, este modelo é encontrado nas civilazações do Antigo Médio
Oriente no segundo milénio, enquanto as tradições patriarcas demonstram raízes mais antigas.
De forma sintetizada abordarei os estágios históricos mais relevantes, se a religião bíblica teve uma
quebra radical com a antiga religião israelita – judaita, ou uma nova fase surgiu. O seu estímulo
formativo ocorreu de acordo com os nossos textos no reino do norte de Israel no século IX a.e.c.
Nesta época relata-se a tentativa da rainha Jezabel importar a adoração de Baal, com todos os seus
ritos e profetas próprios. Este sincretismo suscitou oposições violentas por parte dos profetas da
deidade nativa Javé, tanto o profeta Elias como Eliseu inspiraram um golpe militar contra os monarcas
do norte.
A intolerância retratada na figura do profeta Elias, cheio de zelo por Deus, antagónico a outras
divindades, permaneceu como uma das carateristicas da religião bíblica.
A luta contra o culto de Balal no norte continuou no VIII Século, como nos testemunha o livro do
profeta Óseias, que introduz várias ideias chave importantes. Como o uso de terminologia sexual para
descrever a apostasia religiosa (Davidson, 2007, p. 410).
A religião bíblica originou-se no reino do norte, isto explica porque é que como referência religiosa
(opõe-se politica e culturalmente). O nome da comunidade que aceitou a religião bíblica manteve-se
“Israel” muito depois do oitavo século, e do desaparecimento do reino histórico de Israel.

115
Citado em (Geller, 2016)
Após a queda do reino do norte no século VIII, esta fé exclusiva enraizada na tradição profética migrou
para sul de Judá. Talvez no fim do século VIII, quando deve ter inspirado os eforços de reforma por
parte do rei Hezequias. No fim do século VII a religião bíblica consolidou-se no “movimento”
deuteronomista, que pela nossa leitura histórica parece-nos ter sido composto por uma confederação
de sacerdotes, profetas e seus discípulos, escribas e oficiais da realeza. O rei Josias foi induzido pela
descoberta do “livro da instrução” (sefer hatorah – provavelmente uma forma de Deuteronómio) no
templo e por motivos políticos (o enfraquecimento da Assiria) a empreender uma grande reforma em
621 A.E.C.
Os lugares altos tradicionais até então foram proscritos, a adoração foi centralizada no Templo de
Jerusalém, imagens, estelas e postes de madeira (‘asherot) foram considerados idolatria e
destruídos116; e o culto à “Rainha do Céu” (Astarte) foi proibido117.
A reforma, ou revolução do rei Josias caducou após a sua morte em batalha, que dificilmente não terá
sido interpretada pela maioria dos seus contemporâneos como um juízo divino. Sobre a sua impiedade
em desenraizar tantas formas tradicionais de adoração118.
As classes dirigentes de Judá foram exiladas para a Babilónia, esta comunidade do 6 século A.E.C teve
um papel crucial na atividade religiosa. Tanto a nível de atividades proféticas (Ezequiel e Segundo
Isaías) como a nível de produção literária histórica (o trabalho do historiador deuteronomista, editor
da primeira edição dos profetas antigos e livros históricos de Josué aos livros de Reis).
A teologia básica das ideologias deuteronomista e sacerdotal começaram a estabelecer as suas formas
literárias básicas.
O período mais ativo no estabelecimento da religião bíblica teve o seu lugar no exilio, foi esta religião
que foi transplantada de volta para a comunidade judaica de exilados retornados no final do século 6
inicios do século 5 A.E.C.
As reformas finais de Esdras e Neemias depois de 450 A.E.C. estabeleceram os padrões da religião
bíblica desenvolvida até então na comunidade, com a Torá provavelmente na forma como a temos
hoje, como constituição.
O desenvolvimento da religião bíblica foi assim gradual, abrangendo um período histórico desde dos
finais do século 9 ou 8 até ao século 5 A.E.C. (Geller, 2016). Podemos aferir que a sua forma final
carateriza-se por uma tentativa de restauro da Judá pré-exilica, reinterpretando-se a si, como a
comunidade religiosa de Israel. Isto através da reestruturação das antigas instituições e a formulação

116
2 Reis capítulos 22-23
117
Jeremias 44:18
118
Jeremias 44:15-19
de novas ideias teológicas projetadas para uma idade “mosaica” distante, que passou a ser vista como
a única autoridade.
A profecia contemporânea foi rebaixada até ser completamente abolida em favor dos documentos
escritos que continham a revelação passada. Assim a religião bíblica transformou-se numa religião
textual, o que requeria um corpo de intérpretes aprovadas e escribas. A interpretação da antiga
revelação substituiu as novas revelações dos profetas contemporâneos daquela época.
A forma final da religião bíblica foi suportada pelo Império Persa, que pode ter estimulado a vários
níveis a formação oficial da Torá, que neste estudo pode ser lida como um documento de duas grandes
tradições religiosas bíblicas. A tradição deutoronomista-pactual e a tradição sacerdotal-cúltica, ambas
serão descritas sumariamente de seguida.

3.2.1 A Religião Deuteronomista do Pacto

Esta é a corrente dominante da religião bíblica, designada por tradição do pacto, a teologia
deuteronomista compreende a relação entre Deus e Israel como um contrato legal, um tratado jurídico.
Que foi celebrado entre Deus e o povo de Israel no monte Horebe outras tradições mencionam o Monte
Sinai. Este pacto foi mediado pelo profeta Moisés, pela tradição textual o povo recebeu a revelação do
decálogo diretamente de uma teofania divina. Enquanto de as restantes leis e termos do tratado foram
transmitidos em privado a Moisés, na montanha para que mais tarde este os lêsse ao povo.
Esta forma de tratado entre Deus e Israel segue geralmente a forma de tratado entre um suserano e os
seus vassalos, no contexto do segundo milénio no Antigo Médio Oriente119 (Geller, 2016).
É incerto estabelecermos historicamente uma data precisa de quando é que a tradição pactual celebrada
na Biblia entre Deus e Israel começou, nem qual a sua proveniência. O que podemos afirmar é que a
ideologia do pacto, expressa na tradição deuteronomista, domina atualmente a Bíblia Hebraica. Não
apenas domina a Torá mas também o trabalho dos livros históricos que foram editados pela mesma
tradição e alguns dos profetas. Especialmente Óseias e principalmente Jeremias120 podemos sumarizar
alguns traços desta ideologia religiosa nos seguintes termos:
A religião deuteronomistica é monoteísta, insistindo não apenas na adoração de um único Deus no
Templo de Jerusalém mas também afirmando que não existem outros deuses. Estes outros deuses são
ídolos, feitos de madeira e pedra não tendo qualquer existência real.

119
Temos exemplos comparativos nas formas dos tratados Assírios do primeiro milénio e também os tratados
dos Hititas na Idade do Bronze Tardia
120
Apesar da ideologia do pacto não ser muito mencionada fora da Torá e destes casos, esta é a ideologia
religiosa que prevalece.
A ideologia deuteronomista centraliza a questão do nome divino, é o nome (shem) em vez da divindade
que “repousa” (shakan) no lugar que Deus escolheu. Neste caso o Templo de Jerusalém, que é o único
santuário legítimo tornando todos os outros santuários israelitas idólatras. É uma religião que implica
uma certa transcendência divina, isto porque o contacto divino como o mundo é fortemente negado.
Em exceção da revelação recebida no monte Horebe/Sinai121, Deus permanece no céu onde ouve a
oração humana (1 Reis 8:30-40).
Este tipo de religião enfatiza a palavra escrita e a palavra falada, existe um sentido importante no ouvir,
Deus ouve a oração do fiel e o humano ouve as palavras do pacto, transmitindo-as para as gerações
posteriores. A instrução divina (torá) torna-se o único tópico do pensamento religioso humano e da sua
meditação. É a verdadeira “sabedoria” de Israel (Deutoronómio 4:6), Deuteronómio enfatiza a mente
e o pensamento interior, contendo assim uma certa racionalização. Percebemos logo nas nossas leituras
iniciais que estes escribas procuraram oferecer uma teologia explicativa e racional, que frequentemente
procura dar razões e explicações para os mandamentos do pacto (Deuteronómio 5:15; 15:18; etc.).
A nível histórico a religião deuteronomista deu um passo importante naquilo a que podemos designar
de experiência religiosa. Isto porque o foco na unicidade divina, no templo e no pensamento também
se extende à emoção.
Israel é convidada não apenas a temer e a obeder a Deus, mas também a amá-lo com uma devoção
interna total e singular. A linguagem deuteronomista ultrapassa a mera obrigação legal típica das
linguagens contratuais do Antigo Médio Oriente em que o vassalo é ordenado a “amar” o seu Senhor.
Em Deuteronómio amar a Deus é mais do que uma metáfora legal, é um compromisso total, expressivo
e emocional, com a forte emoção de kin’ah que não é apenas “zelo” mas também “ciúme” (Geller,
2016).
Este amor devoto e singular, permitiu em termos pessoais a produção de incríveis textos religiosos
como os salmos 51, 119 entre outros. Esta religião foca-se muito no individuo dentro do contexto
grupal, dando lugar a doutrina do livre-arbitrio, porque Israel é sempre confrontada com a escolha de
obedecer ou desobedecer. Mesmo que a recompensa prometida seja num caso a vida e noutra o castigo
e a morte (Deuteronómio 30:15-20).
Em suma esta religião é uma religião textual, limitando-se ao registo escrito do contrato entre Deus e
Israel. Ainda podemos aferir que esta religião não estava muito interessada no culto, tirando o aspecto
de este ter que ser centralizado em Jerusalém. O ritual mais relevante para a teologia deuteronomista
é a Páscoa e a observação do Shabbat ambos associados com o livro de Êxodo (Deuteronómio 5:15).

121
E Deuteronómio 4 aparenta negar que Deus apareceu na terra até nesse contexto específico.
Aparentemente a Páscoa desempenhou um papel central na religião deuteronomista, uma vez que as
“reformas” religiosas de Hezequias e Josias foram acompanhadas por cerimónias especiais de Páscoa,
de acordo com as fontes escritas.

3.2.2 A Religião Sacerdotal - Cúltica

O núcleo da tradição sacerdotal é a legislação referente ao culto que inclui o final do livro de Êxodo,
todo o livro de Levitico e partes do livro de Números. Esta religião também é à semelhança da fé
deuteronomistica, uma religião monoteísta e centrada num único local legítimo de adoração (Geller,
2016).
O que diferencia esta teologia da teologia que tratamos anteriormente é o facto da tradição sacerdotal
utilitzar o termo “repousar” (shakan) para descrever a ligação de Deus com o santuário (mishkan).
Sendo que aquilo que “repousa” não é o nome divino mas a “glória” (kavod), por esse motivo afirma-
se que os textos sacerdotais refletem uma teologia da “glória” (Geller, 2016) antagónica à teologia do
nome. A tradição sacerdotal expressa a ideia da imanência divina em vez da transcendência. É uma
religião no seu geral “visionária” enfatiza o ver e não o ouvir como a religião deuteronomista. É
também a religião do toque e do odor, toca-se e cheira-se o odor das ofertas propiciatórias e sacrificios,
incluindo aqui também o doce sabor do incenso e das especiarias. Por outras palavras é uma religião
do físico, no qual a linguagem e até a oração desempenham um papel menor.
A tradição sacerdotal inclui não apenas os textos cúlticos relacionados com os sacrificios e o ritual,
mas também a narrativa sacerdotal responsável pelo relato da criação em Génesis 1:1-2:4.
O ponto central desta teologia é ideia religiosa da expiação relacionada com o sacrifício de sangue, em
Levítico 17:11 temos a relação entre ambas as ideias. Nessa passagem demonstra-se que o sacrifício
de sangue expia os pecados dos israelitas, a teologia subjacente a este conceito não nos é explicada
pelos escribas. No capítulo 16 de Levitico é dito que o sumo-sacerdote obtém a expiação dos pecados
para Israel, entrando no Santo dos Santos e aspergindo o sangue sacrificial diante da presença divina.
Historicamente é nos difícil alcançarmos a compreensão teológica destes sacerdotes, os textos cultivam
um certo mistério um sentido do imanente numinoso (Geller, 2016).
Os grandes conceitos de pureza bíblica foram herdados desta tradição, que insistia que os adoradores
forem moralmente e ritualmente puros. Tem sido sugerido por alguns autores122 que alguns salmos em
especial o 15 e o 24, refletem uma antiga “liturgia de entrada”, declarações de pureza moral que os
peregrinos faziam antes de entrarem nos recintos sagrados do santuário.

122
(Geller, 2016)
O aspeto moral expressa-se na tradição sacerdotal da religião bíblica maioritariamente no “código de
santidade” (Levitico, capítulos 17-26), especialmente o capítulo 19 que tem o célebre mandamento
“Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Eu sou o Senhor” (Levitico 19:18). Nestes capítulos os fiéis são encorajados a serem santos
como o Senhor é santo.
Em suma a religião sacerdotal desenvolveu uma tradição de santidade que não significa apenas uma
perfeição moral, historicamente significava uma separação espiritual e física daquilo que era impuro.
O capitulo 1 de Génesis representa uma série de separações e distinções, através das quais o caos
primordial ordenou-se. De igual forma o Templo consistia num compleximo de precintos que iam
intensificando a sua santidade.
Não serão aqui tratadas as outras tradições religiosas bíblicas, por não haver espaço no escopo deste
trabalho para tal. Mais à frente serão abordadas outras tradições textuais e aprofundadas estas duas,
em termos da sua história e teologia.
Após esta análise histórica que nos permitiu esboçar o panorama da religião bíblica algumas questões
a nível metodológico devem ser colocadas.

Como é que ultrapassamos as dificuldades do texto bíblico a nível metodológico?

Para podermos aferir a história das práticas e crenças religiosas do antigo Israel e Judá, devemos
observar os vestígios materiais deixados por estas culturas. Como também alguns estudiosos observam
e exploram já numa perspetiva comparatista os vestígios materiais e crenças de outras culturas antigas
da Ásia Ocidental e do Médio Oriente.
Tradicionalmente a religião israelita é entendida como uma fé puramente monoteísta, que com a
entrada das tribos em Canaã corrompeu-se pelos cultos de fertilidade cananitas. Estudos recentes
demonstram que os israelitas eram eles próprios cananitas e também já foi demonstrado que a sua
religião era simplesmente um subconjunto da religião semita do Oeste mais no geral (Stavrakopoulou,
2010, p. 3) como irei explorar mais adiante nos traços comuns de uma possível teologia comum do
Antigo Médio Oriente.
Antes de concluir a questão do tratamento das fontes e da metodologia devo referir que irei considerar
viável a hipótese do “Deus Paterno” de Albrecht Alt. A minha abordagem a esta questão estará inserida
noutro âmbito metodológico e interpretativo, contudo irei tratar as narrativas patriarcais não como
factos históricos. Mas como vestígios de memórias na cadeia de transmissão oral de uma fé anterior a
fé oficial javeísta, estudando também os santuários existentes e supostamente fundados pelos patriarcas
nessas narrativas. Estas narrativas contém memórias de uma realidade religiosa bastante diferente e
talvez serviram para afirmar e validar as práticas variadas que existiram em Israel e em Judá (Coogan,
2012, p. 79).
Podemos encontrar uma base viável para a existência destas memórias nas práticas religiosas dos
povos bíblicos. A Bíblia Hebraica apresenta as suas práticas e atividades religiosas a um nível
“nacional”. Portanto em termos de macro religiosidade, são descritas práticas do topo da pirâmide
social. Embora existam algumas referências à prática da religião no contexto familiar, temos a nível
de fontes, vários dados arqueológicos relevantes. Aliados aos estudos etnográficos e à comparação
com os textos religiosos dos Ugaritas (Ras Shamra).

3.3 Aspetos históricos de Israel e Canaã

Antes de abordarmos a esfera das religiões, devemos contextualizar a nossa discussão começando por
nos focar nos conceitos históricos e geográficos de Canaã e Israel durante a Idade do Bronze Tardia.
A referência mais antiga que menciona os cananitas aparece nas cartas de Mari (1750 A.E.C.) e Canaã
é mencionada pela primeira vez em 1500 A.E.C numa inscrição de uma estátua de um rei chamado
Idrimi de Alalach. Outras menções surgem de inscrições egípcias, cartas de Hattusha e Ugarit e
sobretudo do arquivo e Amarna.
Com base nestes textos, tornar-se visível uma delimitação de Canaã que durante a idade de Amarna
pareceu compreender a Palestina e o Líbano. Estendendo-se da área de Gaza até à região de Biblos no
norte.
Quanto a Israel a menção mais antiga encontra-se numa inscrição na estela de Merneptá (1200 A.E.C)
que fala de «Israel» como um grupo humano do centro ou norte da Palestina. Não discutiremos aqui
as origens de Israel como povo, mas iremos focar-nos apenas nos aspetos literários de Israel e Canaã.
A nível literário as narrativas bíblicas apresentam-nos duas histórias distintas acerca da origem de
Israel: as narrativas patriarcais (Génesis 12-36) e a história do Êxodo (1-12). O denominador comum
em ambas as tradições é que a origem de Israel acontece fora de Canaã e é autónoma.
Com base na evidência textual da Bíblia Hebraica, o autor Nadav Na’aman tem razão quando afirma
que as descrições textuais acerca da realidade religiosa no antigo Israel e Judá, são elaboradas numa
atmosfera política e teológica que as afastam da realidade histórica.
Citando as suas palavras123:
“The idea that the canaanites were the former inahabitants of Palestine is not a literary construction
no ris the description of their land a late scribal invention.” On the other hand, however, he also

123
Citadas em (Nieher, 2010, p. 26)
states: “the image of the canaanites as it appears in the Old Testament and its heavy theological
overlay are certaintly the product of biblical authors [sic] and are greatly divorced from historical
reality”.
Daqui podemos concluir que as religiões de Judá e Israel não se desenvolveram de forma isolada das
religiões dos cananitas. Pelo contrário estas religiões são parte integrante da religião e cultura semita
ocidental.
A construção do etnos “Israel” oposto ao etnos “Canaã” é uma ficção ideológica e a afirmação bíblica
que a religião “Israelita” foi importada de fora de Canaã é um produto literário sem realidade histórica.
Assim como a bíblia descrever que a religião cananita era oposta à religião de Israel e Judá, também
isto é ficção ausente de historicidade. Com isto não nego a existência de religiões judaitas e israelitas,
no entanto, estas religiões devem ser julgadas como variantes locais das religiões cananitas na Palestina
durante o primeiro milénio A.E.C.
Não devemos assumir um meio literário como os relatos bíblicos simplesmente como algo verídico,
nem redigir uma história completa e social baseada nisso124 (Nieher, 2010, p. 32).

3.4 As Raízes da Religião de Israel e Judá na Bíblia Hebraica

Antes de iniciarmos o nosso estudo das raízes e traços comuns achados nos relatos religiosos da Bíblia
Hebraica e das religiões existentes no espaço histórico da Idade do Bronze Tardia no contexto do
Antigo Médio Oriente. Será necessário situarmo-nos com uma breve introdução histórica e
comparativa daquilo a que podemos chamar de “teologia comum do Antigo Médio Oriente” (Smith
M. , 1952, p. 137).
Neste âmbito tomemos como ponto de partida a seguinte questão existe no campo historiográfico
diferenças entre “religião cananita” e “religião israelita”?
De acordo com a Bíblia Hebraica especialmente o relato encontrado em Deuteronómio e no corpo
literário deuteronomista (Josué-2Reis), a história de Israel é marcada por uma profunda oposição entre
Israel e Canaã.
Israel entrou na terra prometida a partir do deserto, trazendo consigo o culto incorruptível de Javé. Este
culto monoteísta tinha um único deus e corrompeu-se quando Israel entrou na terra prometida. De
acordo com a história deuteronomista Israel corrompeu-se ao entrar em contacto com os deuses e
deusas de Canaã, pervertendo a religião de Javé.

124
Mais à frente irei explorar e justificar melhor esta posição.
A implicação central da visão bíblica da religião de Israel é que a religião israelita difere
fundamentalmente da religião cananita e Javé não tem qualquer tipo de relação com os deuses de
Canaã.
Esta perspetiva bíblica tinha sido mantida no âmbito académico, até à descoberta de vários achados
arqueológicos importantes. Estas escavações encontraram vários textos das culturas circunvizinhas a
Israel, duas mudanças importantes tiveram lugar na reconstrução histórica da religião de Judá e de
Israel. A primeira foi o achado de inscrições em Kuntillet ‘Ajrud no Negev em 1975/6. Isto ajudou a
interpretar outra descoberta que já tinha sido feita em 1967 em Khirbet El-Qom, perto de Hebrom.
Tendo em conta esta afirmação (Smith M. S., 2011):

These inscriptions associate Yhwh with the goddess Asherah and his paredros both deities, Yhwh
and his Asherah, are invoked to bestow blessings on those bearing israelite and/or judahite names.
The decipherement of the inscriptions and their subsequente discussion sparked new interest in the
history of israelite religion which was, in the wake of this discussion, increasingly judged to be
canaanite.”
Estas descobertas redefiniram a investigação histórica da antiga religião dos povos bíblicos.

3.4.1 Traços teológicos comuns no Antigo Médio Oriente

Vários dos fragmentos textuais que servem como pano de fundo para identificarmos e reunirmos
material teológico do Antigo Médio Oriente, encontra-se compilado pela universidade de Princeton na
obra Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, ed. J.B. Pritchard, Princeton, 1950.
É possível identificarmos um padrão geral nos traços teológicos das religiões do Antigo Médio Oriente
(Smith M. , 1952, p. 135). Neste trabalho assim como no trabalho do autor citado, definimos material
teológico como aquele que descreve um deus (ou deuses) e a sua (ou as ações) deles.

Quais são os traços gerais?

A oração e a adoração eram dirigidas a um deus de cada vez (este é um traço comum ao padrão
teológico restante). Existia mitologia que falava sobre vários deuses, a mitologia aparenta ser mais um
produto literária do que religioso. O deus que é alvo de adoração é regularmente lisonjeado e exaltado,
pode até ocupar uma posição menor nos trabalhos mitológicos preservados. Mas quando é adorado
pelo seu devoto regular, ele é representado como um deus maior do que os outros deuses.
Geralmente é dito que ele não apenas criou o mundo mas também os outros deuses. Ele é o único deus
verdadeiro, até quando é adorado em conjunto com outras divindades, é o único deus.
Citando as palavras do autor (Smith M. , 1952):
“This does not mean, of course, that he is actually thought to be the only god; the expression is
usually no more than a form of flattery; only in a few special cases does it come to be taken
literally.
As a form of flattery it is often na expression of local patriotism, which achieved it by a chain of
exaggeration something like this: Our god is the greatest of all gods, there is none other like him,
there is no other”.
Este aspeto é muito importante porque tal como o autor sugeriu a relação íntima de Javé com um povo
em vez de um local tem paralelos muito próximos com o deus de Ashur para com os Assírios. Já
Albrecht Alt tinha observado sem as fontes históricas que hoje dispomos que o “Deus Paterno” não
tinha uma religião fixada num local específico mas na relação constante com um grupo humano (Alt,
1981, p. 45). Ou até em certos casos com indivíduos humanos como por exemplo os patriarcas daí o
termo “Deus de Abraão, Isaque e Jacob”. Existe ainda outro épico ugarita chamado Kirta que reúne
também vários elementos comuns às narrativas de Génesis 12-50. Neste épico o deus El orienta e guia
o herói Kirta sendo também exaltado na sua intervenção divina (Coogan, 2012, p. 78).
Explorando então a seguinte expressão sugerida pelo autor (Smith M. , 1952): “O nosso deus é o maior
de todos os deuses, não há outro como ele, não há nenhum outro.”
Encontramos vários exemplos desta linha de pensamento não só nos textos da Bíblia Hebraica, mas
também nos manuscritos das outras civilizações do Antigo Médio Oriente registados na obra Ancient
Near Eastern Texts Relating to the Old Testament.
A adoração egípcia a Amon-Re:
“ADORATION of Amon-Re, the Bull Residing in Heliopolis, chief of all gods, the good god, the
beloved, who gives life to all that is warm and to all good cattle.
Eldest of heaven, first-born of earth, Lord of what is, enduring in all things, enduring in all things.
(5) UNIQUE IN HIS NATURE LIKE THE FLUID of the gods, The goodly bull of the Ennead,
chief of all gods, The lord of truth and father of the gods.
(…) The chief one, who made the entire earth. More distinguished in nature than any (other)
god…”
Adoração dos sumérios à deusa Ishtar:
“Praise the goddess, the most awesome of the goddesses. Let one revere the mistress of the
peoples, the greatest of the Igigi.
(…)
Who—to her greatness who can be equal ? Strong, exalted, splendid are her decrees. Ishtar—to
her greatness who can be equal? Strong, exalted, splendid are her decrees.
(…)
Ishtar among the gods, extraordinary is her station. Respected is her word; it is supreme over them”
Adoração acadiana ao deus Marduk:
“LUGALDURMAH, the king, bond of the gods, lord of the Durmah,
Who is pre-eminent in the abode of the gods, most exalted of the gods.
ARANUNNA, counselor of Ea, creator of the gods, his fathers, Whose princely ways no god
whatever can equal.”
Adoração na Bíblia Hebraica ao deus de Israel:
“Quem entre os deuses é como tu ó Senhor?” Êxodo 15:11
“Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cinjo, ainda que tu não me
conheças. Para que se saiba desde o nascente do sol, e desde o poente, que fora de mim não há
outro; eu sou o Senhor e não há outro” Isaías 45:5-6
Tal exaltação e adoração a um desses deuses em particular era motivada pelo desejo que os adoradores
tinham de esse deus lhes conceder os seus pedidos. A atividade deste deus não se limitava à sua própria
(nação) terra, ele regularmente lutava contra inimigos estrangeiros. Dava terras aos seus adoradores
ou até entregava as terras dos seus adoradores a inimigos exteriores como forma de punição. Isto são
temas comuns nos manuscritos ditos teológicos dos povos do Antigo Médio Oriente. O que nos leva a
reforçar a posição que como leitores da história devemos inserir o contexto religioso do antigo Israel
no contexto religioso do Antigo Médio Oriente, mais propriamente o âmbito cultural e religioso semita
ocidental.
Este deus que era adorado pessoalmente, mantinha a ordem moral através de recompensas e castigos,
também eram a ele associados vários símbolos e significados, citando as palavras do autor (Smith M.
, 1952, p. 141):
“He is regularly described by comparisons with the most conspicuous of the most powerful objects
known to the culture, for instance, the sun, the father, the king and the bull.
His minor attributes are usually those of the objects to which he is compared: As bull he is noisy,
violent and fertile. As the sun he is glorious, perfect in beauty, the source of light and knowledge,
the enemy of darkness, ignorance and falsity, the witness and judge of all that is done on earth. He
is the father and the king of his people”.
O deus da Bíblia Hebraica é representado por alguns destes símbolos no Antigo Israel125 sendo que
aqueles que não o representam diretamente fizeram parte do seu culto, o que nos leva a reforçar ainda
mais a ideia que a religião israelita era uma entre muitas no contexto semita ocidental.
Como Pai e Rei, o deus que está a ser adorado neste contexto histórico é justo e misericordioso – uma
projeção de medo e amor. A sua justiça expressava-se na sua lei (a lei do seu culto) que era conduzida
sobre a supervisão atenta de um sacerdócio específico e por sacrifícios que eram também similares
entre as nações.
A semelhança dos códigos civis destas nações é notória, mas temos que ter em conta que a lei civil
assim como a lei do culto eram a lei de deus, e um transgressor dessas leis era um ofensor contra o
deus desse povo. A relação entre os povos e os seus deuses era neste contexto contratual. Temos por
exemplo o livro de Deuteronómio em que o povo concorda em cumprir certas leis, em troca de Deus
compromissar-se a abençoar e a protegê-los. Esta teologia contratual se assim a quisermos chamar era
igualmente praticada nas outras nações que circunvizinham Israel (Smith M. , 1952, p. 143).
Por causa de existir uma relação contratual com os deuses, surgiu a necessidade de existirem profetas
que afirmam saber por revelação o estado de obediência das nações e as suas recompensas e castigos.

5 Temas comuns dos Profetas do Antigo Médio Oriente

Estes profetas eram os mensageiros da vontade do deus que representavam falando por ele, quando o
deus estava insatisfeita, os castigos da sociedade eram sempre: inundações/ou secas, fome, pestilência,
conflitos internos ou derrota às mãos de um exército inimigo.
Nalguns casos admoestavam os povos alertando para o facto de que se este continuasse na perversidade
contrariando a lei do deus que estava a ser representado por esse profeta, esse deus ia acabar por
destrui-los.
Também existiam profecias boas que geralmente eram o reverso destes castigos, exceto no caso de
tremores de terra ou eclipses, estes geralmente eram vistos como sinais de algo miraculoso que estava
para vir. A vinda de um rei bom que iria salvar o seu povo (Smith M. , 1952, p. 145).
As raízes do messianismo são raízes da realeza, podemos chamá-las de raízes reais do messianismo.
Todas as nações do Antigo Médio Oriente tinham no seu espaço religioso manifestações da atividade
profética.

125
Poderá consultar-se os anexos: 1 sobre os simbolismos de Javé e do seu culto na Bíblia Hebraica
3.5 Os Espaços Sagrados

O modelo bíblico do templo e do tabernáculo têm a forma rectangular comum e convencional dos
templos siro-palestinianos das idades do bronze e do ferro em geral. O tabernáculo mosaico e o templo
salomónico seguem o padrão comum conhecido pelas áreas do noroeste semita nas idades do Bronze
e do Ferro.

Figura 9 (Sommer, 2009, pp. 91-92)


As semelhanças são notórias: uma forma rectangular, uma idivisao entre uma sala comprida principal
e um santuário interior. Porém é importante referir que o tabernáculo e o templo israelita partilham
uma orientação leste-oeste, que não é comum em todos os templos rectangulares sirio-palestinianos126.
A interação destes padrões comuns na teologia do Antigo Médio Oriente produziram um padrão único
de uma “divindade maior” à qual todas as outras divindades naquele espaço e tempo tiveram que se ir
conformando, independentemente dos antecedentes históricos e mitológicos. O autor (Smith M. , The

126
As paredes mais longas do templo de Salomão e do tabernáculo de Moisés dirigem-se de leste a oeste e o
“santo dos santos” – o santuário interior – está no lado ocidental da estrutura (Sommer, 2009, p. 92).
Common Theology of the Ancient near East, 1952, p. 146) defende que os paralelos entre o material
teológico dos textos do antigo médio oriente e aquele que se encontra na Bíblia Hebraica, não podem
ser interpretados como indicadores de empréstimos culturais, dependências literárias ou fontes
comuns. Podemos antes encará-los como desenvolvimentos comuns deste espaço geográfico no que
toca à conceção do divino e à sua interação com o homem. Nesta história das crenças encontramos
paralelismos na essência das crenças, mas é difícil assumirmos uma conexão literária de um espaço
para o outro. A leitura digamos, cuidadosa deste autor leva-nos a abordar cuidadosamente fontes
históricas paralelas ao espaço israelita de forma a conseguirmos reconstruir historicamente uma noção
cuidadosa da nossa releitura do passado. A “descoberta do monoteísmo” pelo livro de Segundo Isaías,
provavelmente não foi uma descoberta do monoteísmo como hoje o entendemos mas antes um exagero
do patriotismo israelita (Smith M. , The Common Theology of the Ancient near East, 1952, p. 147).
Temos certezas que quando uma divindade era colocada acima de todos os deuses, inclusive os de
outras nações, tratava-se acima de tudo de uma exaltação com propósitos patrióticos de exaltação
nacional. Por isso no que toca ao poder, o atributo do deus de Israel era meramente aquele tipo de
atributo do antigo médio oriente. Assim ele foi declarado o único deus e prometeu a hegemonia do
mundo ao seu povo, isto se seguirmos o raciocínio acima desenvolvido que no contexto religioso do
Antigo Médio Oriente os deuses de cada nação eram maiores que os deuses dos seus vizinhos. Ao
extinguirem-se os deuses e as suas civilizações manteve-se o deus israelita como o senhor do mundo,
o que sobrou para ele se não o monoteísmo?
Esta pergunta colocada por Smith (Smith M. , The Common Theology of the Ancient near East, 1952,
p. 147) tem toda a pertinência na nossa investigação histórica. À sua linha de raciocínio posso ainda
acrescentar alguns traços estudados e ponderados pelo autor (Nieher, 2010, pp. 27-31): o politeísmo
que dentro do meu estudo é a multiplicidade da essência divina127, a crença numa hierarquia celestial
que na Bíblia Hebraica é o concilio divino de Javé, a menção a uma cúpula (abóbada) celestial. A
questão dos tempos sagrados (calendários sacerdotais), magia e adivinhação (enquadrados no
fenómeno do profetismo), a mitologia em que certas narrativas bíblicas retratam episódios mitológicos
e por fim as diferentes segmentações ou emanações de Javé por áreas geográficas diferentes “Javé de
Shomron”; “Javé de Teiman”; “Deus de Jerusalém”. Aquilo que o autor designou de “poly-yahwism”
é como mostrarei mais á frente um conceito que deve ser abordado com um pano de fundo histórico
mais alargado.

127
Irei justificar mais à frente a minha posição em relação a esta leitura histórica que faço a multiplicidade de
deuses distribuídos por espaços geográficos diferentes, contudo com o mesmo nome.
É necessário compreendermos historicamente qual era a conceção do divino no Antigo Médio Oriente,
mais propriamente como é que os povos acreditavam que as suas divindades se manifestavam e
interagiam com a esfera humana. Na seguinte secção serão discutidas estas novas perspetivas na
releitura histórica desta problemática.

A Conceção Do Divino no Antigo Israel

3.6 A Fluidez da Individualidade Divina no Antigo Israel

A fim de se explorar historicamente a crença na fluidez da individualidade divina nas práticas


religiosas israelitas, teremos que nos voltar para um conjunto restrito de evidências. Úteis apenas numa
leitura enquadrada no contexto maior do antigo médio oriente, na secção anterior apresentei um
enquadramento geral das crenças religiosas dos povos que circunvizinhavam o antigo Israel.
Nesta secção serão feitas comparações e exploradas algumas fontes históricas extra bíblicas e
evidências encontradas dentro do próprio corpo da Bíblia Hebraica.
Antes de iniciarmos esta análise, estamos a procurar aferir a historicidade da seguinte crença: a crença
que a individualidade divina pode reproduzir-se em múltiplas manifestações de pequena escala, que
são até certo ponto autónomas entre si sem tornarem-se divindades diferentes. Estamos portanto a falar
de uma crença que apropriando-me de o termo “avatar”128, utilizado nas religiões indianas. Que
considerava no contexto histórico a que nos referimos, que a divindade assumia diversas formas para

128
Mais á frente será explicado a pertinência do uso deste termo no contexto do antigo Israel. No hinduísmo o
termo avatar é uma palavra do hindi moderno que deriva da palavra sânscrita avatara, que significa “aquele que
desceu ao reino terrestre” a palavra tanto em sânscrito como em hindi é utilizado no Vaishnavism (termo inglês)
que é o grupo de tradições que adoram o deus Vishnu (Jones & Ryan, 2007, p. 57) para descrever as encarnações
do deus hindu Vishnu. De acordo com estas crenças hindus, Vishnu expressou-se através de dez avatares
(encarnações) sendo as duas mais importantes Rama e Krishna, que recebem no norte da India mais adoração
do que Vishnu. Apesar dos hindus honrarem vários deuses, eles consideram-nos diferentes representações do
único que a tudo permeia, a realidade subjacente e suprema, Krishna ou Rama são emanações representativas
de Vishnu, não deixando de serem Vishnu. Acompanhando os inícios das crenças védicas, sabemos que os
deuses védicos foram originalmente concebidos como personificações das forças da natureza. Esta conceção
alterou-se e na sua evolução histórica os deuses passaram a ser vistos como manifestações de um poder supremo
todo penetrante, da qual derivam os seus poderes individuais. Por trás da multiplicidade de deuses havia o Ser
Único, Brahma, a fonte de todos. Citando o Riga Veda “A verdade é uma só. Os sábios falam dele de várias
maneiras”.
interagir com os humanos. Formas estas corporais ou fluidas que podiam encarnar129 em anjos, seres
de aparência humana, pedras, árvores, estelas, estátuas ou até comunidades.
É importante termos este ponto de partida antes de nos aproximarmos das nossas fontes históricas.
Sendo que as primeiras a indicarem-nos uma possível fragmentação de Javé em várias manifestações
geográficas são achadas em antigas inscrições hebraicas nuns vasos descobertos a nordeste do deserto
do Sinai130 em 1970 em Kuntillet Ajrud. Este local fica a cerca de 50 km de Qadesh-Barnea e a poucos
quilómetros a oeste de Darb Ghazza, é importante referir que se tratava de uma rota antiga e agora é
uma estrada moderna construída em direção de Eilat e sul do Sinai.

Figura 10 (Meshe, 2016)


O monte sobre proeminentemente do amplo vale de Wadi Qurayyah, o topo da colina isolada é um
planalto estreito, com ruínas na sua extremidade ocidental. Kuntillet Ajrud foi explorado por Edward
H. Palmer (1869), Alois Musil (1902), Beno Rothenberg (1967) e Ze’ev Meshel (1970). Meshel dirigiu
três temporadas de escavação entre outubro de 1975 e abril de 1976 sob o financiamento da
Universidade de Tel Aviv, o Departamento de Antiguidades de Israel e o Movimento Kibbutz de
divisão e exploração da terra (Meshel, 2016).
Existem no local duas estruturas: um edifício principal, no extremo oeste do planalto e um secundário,
dez metros a leste. O estado de conservação deste é bastante pobre assim como os seus achados.
O edifício principal é um retângulo com quatro quartos de esquina, abrangendo uma área
aproximadamente de 15x 25 metros. A entrada era feita através de um pequeno pátio exterior rodeado
de bancos de pedras, e em seguida, através de um portão pequeno que dava para uma câmara estreita
divida em duas alas. As paredes das alas estão cravadas com bancos de pedra, exceto uma que tem

129
Quando consideramos a capacidade do divino na sua fluidez encarnar ou incorporar um determinado objeto
(estela) ou uma forma física, estamos a falar da manifestação da presença divina no mundo físico.
130
30º11’N, 34º25’E
uma passagem estreita entre as alas. A quarta sala estende-se de norte a sul por toda a largura do
edifício e aparentemente seria a parte mais importante das atividades ali realizadas. Fragmentos de
gesso foram encontrados nesta sala, alguns dos fragmentos são duas inscrições hebraicas na escrita
fenícia e uma terceira inscrição parcial. A terceira inscrição foi encontrada no umbral da porta norte
da entrada principal para o pátio principal. As inscrições hebraicas e o estilo cosmopolita assim como
os motivos dos desenhos encontrados no local atestam a sua significância particular (Meshe, 2016).
Algumas destas inscrições estão escritas em hebraico antigo e outras em fenício, em gesso, pedra e
cerâmica. Três inscrições foram encontradas em fragmentos de gesso na sala de banco, partes de duas
outras, escritas em hebraico antigo, foram encontradas nos escombros da entrada do armazém
ocidental.
Uma das inscrições fenícias lê-se:

“your days may be prolonged, and you shall be satisfied…give YHWH of Teman and his
Asherah…YHWH of Teman and his Asherah favored.…”.

Falando ainda dos achados nos vasos de armazenamento em cerâmica, foram identificadas incisões de
uma ou duas letras sobre os ombros da maioria destes vasos designados pithoi. O aleph é a letra mais
frequente, o yod é a menos frequente, a combinação qoph-resh aparece em duas circunstâncias. Supõe-
se que estas letras são abreviaturas que serviam para indicar os tipos de ofertas e dízimos, prática esta
que um milénio mais tarde foi descrita na Mishná e Tosefta. Estas letras foram gravadas nos pithoi
antes de estes terem sido moldados no fogo. As análises realizadas pelos arqueólogos estabeleceram
que estes pithoi foram feitos nas imediações de Jerusalém, talvez reforçando a sugestão de que o local
era habitado por sacerdotes que recebiam suprimentos nas formas de sacrifícios e dízimos. Entre as
inscrições escritas a tinta vermelha em dois grandes pithoi decorados com imagens encontramos quatro
repetições do alfabeto, uma lista de nomes de pessoas, e duas bênçãos que se assemelham à bênção
sacerdotal. Um destes foi escrito acima de duas figuras do deus egípcio Bes e pode ser reconstruído da
seguinte forma:
A[shy]o m[lk] (the king) said: tell [x, y, and z], may you be blessed by YHWH of Shomron
(Samaria) and his Asherah.”.
Se esta reconstrução é fonética é possível que ‘(sy) w (hm) Ik (“Ashyo the King”) seja uma
transposição do nome yw'š, Joás (801-786 a.C.) referindo-se assim ao rei de Israel que reinou em
Samaria, isto pode fornecermos um importante sincronismo para datarmos o local. A segunda inscrição
é reconstruída como:
“Amaryo said: tell my lord, may you be well and be blessed by YHWH of Teman and his Asherah.
May he bless and keep you and be with you.”
Como foi referido pelos arqueólogos estas duas inscrições lançam luz sobre o caráter religioso de
Kuntillet ‘Ajrud e ainda proporcionam vislumbres reveladores da história da religião israelita.

Figura 11 (Smith M. S., 2011)


A situação ancestral da religião israelita parece refletir em Génesis 49:25-26 a mesma realidade aludida
nesta iconografia. Apesar da versão massorética quebrar a estrutura de emparelhamentos nos versos e
ser difícil identificarmos as figuras específicas envolvidas (Smith M. S., 2011). Os autores
mencionados neste artigo (Smith M. S., 2011) sugerem que os vários versos contêm emparelhamentos,
incluindo uma deusa neste caso chamada “Seios e Ventre”. Colocarei aqui algumas traduções deste
versículo começando pela apresentada neste artigo:

By the god of your father [or El, your father] who aids you,
And Shadday who blesses you (with)
the blessings of Heaven above,
the blessings of Deep crouching below;
the blessings of Breasts and Womb,
the blessings of your Father, warrior Most High;
the blessings of the Everlasting Mountains,
of the outlying Eternal Hills131.

131
(Smith, 2011, p. 218)
Outra versão do autor André Chouraqui132
Pelo Él de teu pai, ele te socorre,
com Shadai, ele te abençoa.
Bênçãos dos altos céus,
bênçãos do abismo agachado abaixo,
bênçãos dos seios e da matriz!

Nesta tradução a bênção concedida mobiliza em seu favor o universo interior: os céus, reservatórios
das chuvas o abismo, reservatório das àguas de baixo, comparado a um animal agachado, a terra
fecundada, representada pelos seios e pela matriz. Tomei ainda a liberdade de mencionar duas versões
da mesma passagem:

João Ferreira de Almeida Revista e Corrigida 1969:


pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo Todo-poderoso, o qual te abençoará com bênçãos
dos céus de cima, com bênçãos do abismo que está debaixo, com bênçãos dos peitos e da madre.
(Gen 49:25 ARC)

João Ferreira de Almeida, revista e actualizada segunda edição 1993:


pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo Todo-Poderoso, o qual te abençoará com bênçãos
dos altos céus, com bênçãos das profundezas, com bênçãos dos seios e da madre.
(Gen 49:25 ARA)
A passagem aparentemente começa com um paralelismo entre El e Shadai, no versículo 26. Este
paralelismo é igualmente atestado no livro de Números 24:4 e 16:

João Ferreira de Almeida Corrigida Fiel 1995

Fala aquele que ouviu as palavras de Deus (Él [‫אל‬


ֵ ]),

o que vê a visão do Todo-Poderoso (Shadai [‫;)] ַׁש ַׁדי‬

que cai, e se lhe abrem os olhos.


Él e Shadai no argumento do autor (Smith M. S., The Blessing God and Goddess: A Longitudinal
View from Ugarit to "Yahweh and...his Asherah" at Kuntillet 'Ajrud, 2011, p. 219) e também no meu

132
Fonte especificada inválida.
consistem num par de uma figura masculina e uma figura feminina. Evidentemente uma deusa e um
deus na perspetiva de outros pares divinos cosmológicos neste contexto histórico. Alguns autores
contestam esta ideia, mas mesmo que não identifiquemos as figuras deste par com divindades
específicas, ainda parece atestado em Génesis 49:25 ecoa a ideia de bênção por uma figura masculina
e feminina.
Como (Smith M. S., The Blessing God and Goddess: A Longitudinal View from Ugarit to "Yahweh
and...his Asherah" at Kuntillet 'Ajrud, 2011, p. 219) afirmou, no contexto deste verso, o
emparelhamento não precisa ser especificamente uma referência a Él. Como esta divindade está a
frente da lista, o verso pode ser lido como uma alusão à deusa e deus através dos seus atributos como
seios e útero e como pai divino.
De facto o texto da versão massorética mostra-nos a alusão à deusa abençoadora (“seios e ventre”) e
deus (“teu pai”).
Outro par cosmológico como o deste versículo pode ser achado em relação às “montanhas”
emparelhadas com o “abismo”, as montanhas mencionadas em Génesis 49:26
Tradução de André Chouraqui133

As bênçãos de teu pai


foram mais poderosas
que as bênçãos de meus genitores,
até a aspiração das colinas da eternidade

A versão de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada, 2ªEdição 1993 para os seguintes versos

As bênçãos de teu pai


excederão as bênçãos de meus pais
até ao cimo dos montes eternos;

Este termo é encontrado em Deuteronómio 33:15

com o que é mais excelente dos montes antigos


e mais excelente dos outeiros eternos,

E no profeta Habacuque 3:6

Ele pára e faz tremer a terra; olha e sacode as nações.

133
(Chouraqui, 1995, p. 518)
Esmigalham-se os montes primitivos; os outeiros eternos se abatem.
Os caminhos de Deus são eternos.

A palavra hebraica ta’ awat tem sido entendido como “fronteira” (Smith M. S., The Blessing God and
Goddess: A Longitudinal View from Ugarit to "Yahweh and...his Asherah" at Kuntillet 'Ajrud, 2011,
p. 220). Se assim for o palavra sugere a nivel cosmológico uma espécie de montanha primordial deitada
na borda do mundo. Comparado com Deuteronómio 33:15 e Génesis 49:26 estende os termos
associados com colinas eternas. Estas montanhas primordiais aparecem em relatos biblicos da criação
(Provérbios 8:25; Salmo 104:6,8) faço este pequeno reparo que a Sabedoria aparece como uma
personificação de deus no livro de provérbios e esta relacionada com os temas acima referidos: as
águas, os abismos e os outeiros. Tanto que nalguns dos relatos as montanhas servem como pilares para
a fundação do mundo, estas montanhas servem para conter a água primordial (Salmo 104:8).
De qualquer forma a única fórmula de bênção com El/Shadai só aparece em Génesis 49:25-26 nas
outras passagens referidas são acrescentados os motivos das montanhas.
Comentando agora o achado arqueológico de Kuntillet ‘Ajrud, no contexto em que se insere, o termo
“sua Ashera” parece fazer parte do repertório simbólico de Javé. Portanto é algo que pertence a Javé e
não existe uma clara alusão a uma deusa neste contexto. Podemos assim sumarizar que o termo “sua
Ashera” aparece em contextos de bênção porque é uma das mais antigas associações ao símbolo. Nos
períodos mais antigos, Asherá poderá ter sido uma deusa, e não uma deusa comum mas a deusa
abençoadora.
No contexto do século oito, o simbolo pode já não ser associado à deusa134 mas antes ser uma emanação
ou uma extensão da atividade abençoadora de Javé.

3.6.1 A Corporificação do Divino na Biblia Hebraica

Esta perceção da divindade do Antigo Médio Oriente há muito perdida será útil para relermos a origem
da crença religiosa israelita e a interpretação do seu desenvolvimento histórico.
O autor (Sommer, 2009) investiga na sua obra a noção do “corpo de deus” ou da “essência” de deus
no Antigo Israel, Canaã e Mesopotâmia. Ele demonstra uma crença há muito perdida que será útil no
âmbito da nossa investigação histórica.

134
Serão discutidas as várias alusões e símbolos da deusa feminina mencionada na Bíblia Hebraica noutra seção mais
adiante.
A noção de corpo que vamos definir no âmbito deste trabalho quando nos referimos ao corpo de deus,
é algo que está localizado num sítio particular, num tempo particular, independentemente da forma ou
da substância.
No contexto do Antigo Médio Oriente a diferença entre deuses e humanos era que os deuses tinham
mais do que um corpo e de fluídos, “eus” ilimitados. Apesar da religião biblica rejeitar tal ideia, uma
versão monoteísta desta intuição teológica é encontrada nalguns textos biblicos. Sendo mais
tardiamente encontrada no pensamento judaico e cristão, nomeadamente nas ideias das sefirotes na
cabala ou as três “pessoas” da trindade cristã, ambos os casos representam uma versão posterior desta
teologia ancestral.
Em termos metodológicos iremos fazer um levantamento histórico da perceção do divino,
nomeadamente do modelo de fluidez da individualidade divina, na Mesopotâmia e Canaã abrangendo
os povos semitas do noroeste, a Babilónia e a Assíria.
Estabelecendo pontos de ligação significativos com textos encontrados na Bíblia Hebraica, e também
numa das subseções deste trabalho relativa à hipótese histórica da religião dos patriarcas.

3.6.2 O corpo do Deus da Biblia Hebraica

Como ponto de partida teremos que admitir a possibilidade histórica dos autores biblicos terem
considerado Deus como um ser que podia ser localizado em determinados momentos em locais
especificos – isto é, como um ser encarnado. O Deus da Biblia Hebraica tem um corpo, apesar dos
seus muitos intérpretes assumirem o contrário. Esta afirmação será de inicio problemática se
observarmos o quadro conceptual do judaísmo desde os inicios das suas reflexões teológicas.
Um dos trabalhos centrais da filosofia judaica da Idade Média, redigido no século doze por
Maimónides, dedica a esta problemática 175 páginas da sua obra O Guia dos Perplexos. Nestes
primeiros setenta capitulos, o filósofo aborda a questão da Biblia Hebraica mencionar Deus em termos
corpóreos, o que na crença do filósofo era um Deus incorpóreo.
Para Maimónides e outros filósofos judeus a negação da corporalidade de Deus era um aspeto crucial
do monoteísmo rabinico. Porque um Deus com um corpo era um Deus que poderia ser dividido e para
estes filósofos a crença num Deus divisivel constituiria um politeísmo interno. (Sommer, 2009, p. 8).
Se ponderarmos nalgumas passagens iremos concluir que os autores referem-se sempre a uma forma
física de Deus:
“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;” (Génesis 1:26).
Este versículo começa com a suposição que Deus e as critaturas celestiais que não estão nomeadas têm
corpos, e diz-nos que os corpos humanos vão ter a mesma forma básica que a deles.
Quando falamos de antropoformismo bíblico, afirmamos que os textos atribuem a Deus uma forma
humana, mas neste contexto a concepção de corpo não é necessariamente do mesmo tipo de matéria
que o corpo humano. Portanto será mais apropriado nomear esta crença numa concepção não material
ou spiritual de Deus, de facto Yehezkel Kaufmann135 descreve a concepção bíblica de Deus como
espiritual e antropofórmica. O Deus bíblico tem forma mas nenhuma substância material.
Em Génesis 2:7, Deus sopra o sopro de vida para o primeiro ser humano – uma ação que sugere que
Deus têm uma boca ou qualquer órgão que lhe permita exalar. A descida de Deus em (Génesis 11:5),
o encontro entre Deus e Abraão em (Génesis 18) são textos que retratam um corpo divino que situa-se
num local específico a um dado momento.
O trabalho de (Sommer, 2009) procura explorar e confirmar as seguintes suposições: (a) o Deus da
Bíblia Hebraica tem um corpo (b) tanto o corpo como a auto-identidade de Deus têm uma fluidez e
multiplicidade de formas. (c) Existem vários textos biblicos de fontes mais tardias que combatem esta
percepção.
Iniciaremos então esta investigação citando as seguintes palavras de (Sommer, 2009, p. 11):

“To achieve the first of these goals, it is necessary to place the biblical documents into their
cultural, ideological, and theological contexts. When we examine biblical texts from within their
world – the world of the ancient near east – we can notice crucial aspects of these texts that were
clear to their original audiences, but seem hazy or completely invisible to our much latter eyes.
What I have to say about the Hebrew Bible in this book is based on models drawn from texts
written by the Mesopotamian and Northwest Semitic Peoples who were the ancestors and
neighbours of the ancient Israelites.”

Será então necessário fazermos o esforço de reler as fontes históricas à nossa disposição dentro do
âmbito mais alargado do espaço sócio religioso do Antigo Médio Oriente.

3.7 Fluidez da Incorporação e Individualidade Divina

No pensamento religioso dos babilónios, assírios, cananitas, arameus e egipcios, uma divindade podia
existir simultaneamente em vários corpos. Para além disso, a divindade podia ter o ‘eu’136 fragmentado,

135
Citado por (Sommer, 2009, p. 2)
136
Por ‘eu’ baseio-me na definição dada pelo autor: uma entidade consciente discreta que está consciente da
sua natureza discreta. (Sommer, 2009, p. 12)
pois os deuses não eram completamente distintos uns dos outros, durante todo o tempo. Por exemplo
na concepção grega do divino, um deus tinha um corpo e uma personalidade assim como o ser humano.
No caso das religiões do antigo médio oriente os deuses podiam ter múltiplos corpos e “eus fluídos”,
estes deuses eram semelhantes aos seres humanos, nos seus comportamentos, motivações e até nas
formas físicas que geralmente assumiam. Os deuses antropofórmicos dos assírios, babilónios e
cananitas eram pessoas, no mesmo sentido que um individuo é uma pessoa.
Esta visão das diferentes divindades do antigo médio oriente é válida, mas obscurece algo essencial:
para estes povos os deuses eram feitos de outra matéria, não apenas fisicamente, mas também
ontologicamente (Sommer, 2009, p. 13). Uma leitura atenta de alguns dos textos religiosos antigos
deste contexto, examinam o ‘eu’ e o ‘corpo’ e isto abre a possibilidade de uma nova leitura teológica
que tenha um valor mais explicativo que as típicas polaridades - monoteismo vs. politeísmo, ou
imanência vs. transcendência.

3.7.1 Fluidez da individualidade divina na Mesopotâmia

No âmbito dos textos religiosos da Mesopotâmia assistimos a uma fragmentação 137 de algumas
divindades, a deusa Ishtar representa este fenómeno. Como personagem literária, Ishtar tem uma
identidade bastante clara, mesmo que nem sempre viva como os terapeutas modernos chamam a “vida
integrada”. Isto porque é um objecto de adoração e uma participante ativa na diplomacia
mesopotâmica, onde aparece fragmentada – mas não contraditória, ela manifesta-se a si própria como
seres separados em lugares separados. Este fenómeno pode ser de facto o resultado do sincretismo
onde várias divindades emergiram na mesma personalidade.
Mesmo que esse seja o fenómeno histórico que originalmente emergiu divindades independentes numa
única divindade. Não é este o caso que estamos a discutir nesta sequência, antes estamos a apontar
para o facto de os escribas dos textos de Ishtar, terem visto, num dado momento do tempo. A deusa
Ishtar unificada no entanto múltipla, ao ponto de verem-na a manifestar-se em vários seres
independentes, no entanto paralelos.
Os adoradores do antigo médio oriente que adoravam estas divindades não sabiam nem se importavam
com os processos diacrónicos que ajudaram a produzir este fenómeno.
Para o nosso estudo o foco é a percepção da multiplicidade na unidade, a imaginação religiosa que
construiu e aceitou esta noção do divino, esta crença importa-nos a nivel da história das crenças. O

A fragmentação da divindade é um ‘eu’ de uma deidade que se fragmenta em várias divindades com o
137

mesmo nome mas que de alguma forma não são a mesma divindade.
sincretismo desempenhou de facto um papel importante no surgir destas crenças, mas não será tratado
no âmbito deste trabalho.
Vou colocar um exemplo de um hino entoado às duas Ishtar de Ninive e Arbela138:

Exalt and glorify the Lady of Nineveh,


magnify and praise the Lady of Arbela,
who have no equal among the great gods!
Their names are most precious among the goddesses!
Their cult centres have no equal among all the shrines!
A word from their lips is blazing fireQ
Their utterances are valid for ever!
I am Assurbanipal, their favorite…
I grew up in the lap of my goddesses…

Podemos aqui denotar a fragmentação de Ishtar, o seu ‘eu’ parece estar fragmentado: Ishtar de Ninive
age de forma autónoma e independente da Ishtar de Arbela, esta também é autónoma em relação à
outra. No entanto as suas ações independentes estão completamente paralelas.
O autor (Sommer, 2009, p. 15) exemplificou esta situação com o mesmo exemplo que referi na seção
inicial139, retirado da cultura indiana. O fenómeno hindu dos avatares é um termo apropriado, porque
implica uma certa diminuição da divindade, quando esta assume a forma de um avatar. Os avatares
são usualmente percebidos como manifestações parciais do deus que as assume140.
Os paradoxos da personalidade da deusa Ishtar são indicações da sua identidade fragmentada: ela é a
deusa do amor e da guerra. É a deusa da fertilidade que define a sua mente para habitar no reino da
morte. Tem vários casamentos com deuses importantes (Dumuzi, Gilgamesh, e o jardineiro do seu pai
Ishullanu). Como personagem literária, Ishtar tem uma identidade muito bem definida, mas
fragmentada como se iniciou este pensamento no âmbito da religião da Mesopotâmia.

3.7.2 A Fluidez divina nos textos acadianos

Outro tipo de fluidez caraterístico nos deuses do antigo médio oriente é a sobreposição de identidades
entre deuses que são geralmente individuais e separados. Vários textos acadianos descrevem um deus

138
Citado em (Sommer, 2009, p. 14)
139
A Conceção do Divino no Antigo Israel
140
Ver nota explicativa nº21
como um aspeto de outro deus. Colocarei para ilustrar como exemplo um hino do segundo milénio ao
deus Ninurta141:

O lord, your face is Shamash, your locks [Nisaba],


Your eyes, o lord, are Enlil and Ninlin,
Your eyeballs are Gula and Belet-ili,
Your eyelids, O lord, athe the twins Sin and Shamash,

Your head is Adad, how [makes] heaven and earth [resound] like a smithy,
Your brow is Shala, beloved [sp]ouse who contents [Adad’s hear],
Your neck is Marduk, judge of heaven [and netherworld…
Your throat is Sarpanitum, creat[ress of peo]ple…

Podemos ver que este hino descreve outros deuses como partes do corpo do deus Ninurta. O texto
continua mais abaixo idenficando as componentes do seu corpo com vários deuses.
Encontramos o mesmo fenómeno num hino contemporâneo a este ao deus Marduk142:

Sin is your divinity, Anu your sovereignty,


Dagan is yout lordship, Enlil your kingship,
Adad is your might, wise Ea your perception,
Nabu, holder of the tablet stylus, is your skill,
Your leadership (in battle) is Ninurta, your might Nergal…

Nestes dois hinos parece que os vários deuses são reduzidos a aspetos de um deus, teríamos aqui um
possivel monoteísmo. Mas como vários assiriologistas apontaram143 não existem evidências para um
culto monoteísta na Meposotâmia. Os escribas que copiaram estes textos e os sacerdotes que
aparentemente os cantavam, estavam confortáveis ao descrever Marduk como a garganta de Ninurta.
Portanto nesta teologia os deuses podiam sobrepor-se a outros, tornando-os mesmo elementos que os
constituiam, mas estes outros nunca deixavam de ser deuses neste processo.
A atitude da Mesopotâmia face à encorporação divina relaciona-se com a sua percepção de identidade
divina como um fluido. Claro está que os deuses da Mesopotâmia tinham corpos, mas nestas religiões

141
Citado em (Sommer, 2009, p. 16)
142
Citado em (Sommer, 2009, p. 16)
143
Benedikt Hartman e Barbara Nevling Porter citados em (Sommer, 2009, p. 16)
a diferença entre os corpos divinos e o corpo humano era que os divinos não estavam limitados a um
único corpo. Eles podiam emergir simultaneamente em vários objetos, esta multiplicidade de
personificações torna-se clara nos textos rituais acadianos.
Alguns destes textos descrevem a ativação de um ídolo ou uma imagem divina (em acadiano, salmu),
nestas cerimónias um deus entrava numa imagem.
Existiam duas cerimónias específicas, uma era a pit pî (“abertura da boca”) e a mis pî (“lavagem da
boca”), eram acompanhadas de encantamentos que estão descritos em vários textos acadianos e
sumerianos (Sommer, 2009, p. 19).
Estes rituais expressavam uma crença carateristica em que os artesãos acreditavam não ser eles, mas
os próprios deuses, os criadores das imagens. As imagens eram “dadas à luz” no céu. O termo aplicado
às estátuas cultuais em acadiano é o mesmo aplicado aos deuses (Sommer, 2009, p. 22), esta estátua
podia ouvir, falar e cheirar incenso. Chamava-se carne dos deuses à madeira com que estas estátuas
eram construídas, um salmu não dirigia apenas a mente do devoto a um deus que habitava noutra
esfera. Ele não representava o deus, em vez disso, quando a cerimónia ritual de mis pî ou pit pî era
concluída, a presença divina entrava na estátua e o salmu era o deus.
Como Sommer refere144 existem mais evidências que suportam esta leitura histórica, da unidade divina
entre a estátua e o ser divino, que aparecem fora dos textos relacionados com os rituais mis pî ou pit
tî. Nalguns textos acadianos a palavra salmu é precedida pelo determinativo divino , o sinal
DINGIR, indicando que a estátua tem um estatuto divino.
Em suma podemos distinguir dois tipos de salmus: aqueles que carregavam a presença divina e aqueles
que apenas representavam algum ser, humano ou divino.
A presença da divindade na estátua do salmu é representada de outras formas, as estátuas divinas são
neste contexto geralmente referidas como “deuses”. As qualidades divinas destas estátuas eram de
grande importância para os escribas assírios e babilónios, basta observarmos o papel destas estátuas
nas suas viagens durante as procissões festivas e o seu destino em tempos de guerra.
A estátuta divina no pensamento mesopotâmico não era apenas um símbolo que apontava para uma
realidade para além de si mesma. Em lugar disso o salmu era uma encarnação, cuja substância era
idêntica à do deus, através de um ritual específíco aquilo que fora um objeto físico tornava-se no corpo
do deus. Antes de prosseguirmos é importante referir que este não era o único corpo que este deus
tinha. Porque existiam várias estátuas (salmu) espalhadas pelos santuários e asssociadas ao mesmo
deus (Sommer, 2009, p. 22).

144
(Sommer, 2009, p. 21)
Nao existe nenhuma indicação que o corpo celestial divino deixou de existir, assim o ilu babilónico
podia estar fisicamente presente em vários lugares ao mesmo tempo. A estátua era idêntica ao deus,
mas não abrangia toda a inteireza do deus.
A fluidez divina é notória nesta situação, por vezes um deus zangado podia abandonar a sua estátuta e
ascender ao templo celestial, a estátua deixada para trás, passava a ser apenas um objeto de madeira,
pedra ou metal (Sommer, 2009, p. idem).
A personalidade divina, era identificada com o salmu de forma ambígua mas não de forma permanente
ou total. A substância de um deus gozava de uma certa fluidez que é negada aos seres mortais.
Para concluirmos a corporificação divina nos registos acadianos e da mesopotâmia citaremos as
palavras de (Sommer, 2009, pp. 23-24):

“The salmu was a body of the god, but it did not exhaust that god’s being; it was itself a god,
assimilated into the heavenly god yet physically a distinct thing that could lose its divine status at
any moment, should the deity choose to abandon it.
It follows, then, that what we saw earlier concerning the complex self of a god also applies to the
god’s physical presence. The divine body, like the divine self, can be fragmented yet somehow
remain unified.
Any one body was part of the god, but did not exhaust the gods bodies paralleled god’s selves.”

Aproximando-nos cada vez mais de um retrato geral do espaço sócio religioso do Antigo Médio
Oriente, explorando as suas crenças e perceções gerais do divino, a fim de compreendermos melhor
esta perceção no contexto religioso de Israel e Judá.

3.7.3 A Fluidez da Personalidade Divina entre os Semitas do Noroeste

Um paralelismo semelhante referente à multiplicidade de personificações e à fluidez da personalidade


divina, aparece nas teologias dos cananitas e dos arameus. Assim como o exemplo que referi na
Mesopotâmia com a deusa Ishtar, encontramos vários deuses com o nome de Baal em Canaã. Eles
partilham a mesma identidade apesar de serem mencionados como seres separados (Sommer, 2009, p.
42).
O termo “Baal” nos textos semitas refere-se a “deus” também conhecido como “Hadod” ou “Haddu”,
este termo também era utilizado em associação com espaços geográficos: Baal de Peor, Baal de Ugarit,
Baal Shamayn (Baal do céu) etc.
Baal era a divindidade das tempestades, nos seus hinos e épicos ele envia um vento agressivo, a Bíblia
Hebraica conhece estas várias divindades chamadas “Baal” ao qual se refere dezoito vezes145 em
adição a bíblia ainda menciona “Baal” cinquenta e oito vezes146. Esta tendência de um único deus ser
mencionado mais de uma vez nestas listas afecta não apenas Baal mas também El, porque listam El de
Saphon separadamente de El.
O mesmo fenómeno é frequente nos textos ugaritas que especificam oferendas a vários deuses. Um
destes textos especifica uma cabeça de gado para Saphon, uma para o o Antepassado Divino, outra
para El, outra para Dagon, outra para Baal de Saphon e outra para cada um dos cinco grupos de deuses
com o nome de Baal (Sommer, 2009, p. 25).
Como podemos constatar assim como nos textos da Mesopotâmia que falam de Ishtar e Adad
(pronúncia acadadiana de Hadad). O mito cananita de Baal aparenta ter-se fragmentado numa grande
quantidade de deuses-Baal que poderiam ser adorados separadamente. Estes deuses não mostram
individuação da sua personalidade, personagem ou função, sendo sempre mencionados uns ao lado
dos outros.
Outro fenómeno frequente para além da fragmentação da personalidade divina é a tendência na religião
semita do nordeste da sobreposição de ‘eus’ divinos entre os deuses cananitas.
Isto é evidente entre as divindades cananitas com o uso de termos como ‫( םֵׁ י‬shem – nome) e ‫םי ִר םי‬

(panim – literalmente “face” e também “presença”) nos textos ugaritas e fenícios. Nas linguagens
cananitas estes termos podem referir-se à essência da pessoa ou à sua presença física147.
Citando as palavras de (Sommer, 2009, p. 26):

“Explaining the significance of the term Shem in hebrew, S. Dean McBride describes what he
calls the “nominal realism” prevalente in ancient Near Eastern Thinking. Nominal realism is the
belief in

a concrete, ontological relationship…between words and the things and actions which the words
describe. A name is consubstancial with the thing named…[or] a physical extension of the name
bearer, na attribute which when uttered evokes the bearer’s life, essence and power.”

Na sua linha de pensamento o autor ainda discute a significância de associarmos o termo panim a uma
deidade cananita. Este termo pode significar apenas o ‘eu’ individual, porque o rosto é a parte mais

145
Ver Juízes 2:11 e Jeremias 2:23
146
Ver Juízes 6:25 e Jeremias 19:5
147
Citado em (Sommer, 2009, p. 26)
identificável da pessoa. Quando panim ou shem se referem a uma divindade cananita podem indicar
um aspeto da identidade divina. Esta tendência não se limita apenas a representar um forma particular
da representação divina (uma tendência evidente nos textos bíblicos) mas também para se mencionar
uma secunda deidade em conjunto com a primeira. Colocarei aqui um breve exemplo textual desta
realidade histórica. O termo “face de Baal” ou “presença de Baal” ocorre doze vezes numas inscrições
púnicas da diaspora fenícia situada no mediterrâneo ocidental central, por volta do primeiro milénio
tardio.
Em cada caso serve como epíteto para a deusa Tanit, quando a deusa é mencionada, é sempre descrita
ao lado de Baal. O facto deste epíteto ocorrer apenas ao lado de Baal sugere que Tanit era sua consorte
e revela que na presença de Baal ela tem uma existência pouco independente.

“To Lady Tannit, the presence of Baal, and to the lord, to Baal of Hammon”148

Algumas linhas adiante:

“May Tannit, the presence of Baal, judge the spirit of that person!”

A deusa Tanit age e é aderessada de forma independente, no entanto ela é de alguma forma parte de
Baal, pelo menos durante a maior parte do tempo. O autor Shmuel Ahituv149 argumenta que neste
contexto Baal é um deus superior, muito distante dos seus adoradores para poder ser abordado. E assim
eles aproximavam-se da sua presença feminina hipostasiada em vez dele. Aqui temos a fragmentação
da essência de Baal e uma sobreposição de duas deidades, Tanit é ao mesmo tempo uma deusa
independente e uma parte do seu marido Baal.
Não será esse o caso do achado arqueológico de Kuntilet ‘Ajrud?
Muito poderia ser ainda discutido, pelo menos temos um pano de fundo comum para estabelecermos
estudos comparativos e um contexto sócio religioso histórico mais alargado para discutirmos noções
de crença e perceção do divino.

148
Ambas as citações foram feitas por Sommer em (Sommer, 2009, p. 26)
149
Citado em (Sommer, 2009, p. idem)
3.7.4 Multiplicidade de Personificação entre as Divindades do Noroeste Semita

As divindades cananitas e dos outros povos semitas do nordeste, assemelham-se às da Mesopotâmia,


na medida em que têm “eus” que se trocam e se transformam, é importante atermo-nos às evidências
textuais.
Na esfera semita do noroeste a presença divina podia habitar múltiplos objetos físicos na terra sem
deixar de ter um corpo divino no céu. Entre os cananitas, arameus e hebreus, observamos esta crença,
os obeliscos de pedra e madeira e os pilares são objetos comuns de veneração.
A estela tem várias terminologias, em aramaico e em hebreu designa-se beitel ou bethel, as fontes
bíblicas mencionam as maséba (estela) e os textos ugaritas referem-se a ztr e skn, o mais tardio aparece
em textos acadianos de àreas do noroeste semita como sikkanu (Sommer, 2009, p. 28).
Várias observações devem ser feitas a esta prática religiosa, iremos utilizar um texto de Génesis que
descreve a prática religiosa do patriarca Jacó.
Os patriarcas tinham como lugares de culto, estelas, pedras e colunas, assim como àrvores, estando
então os seus relatos perfeitamente inseridos nas crenças gerais dos povos do noroeste semita.

Exemplo de análise: Génesis 28:18-21

Versão Revisada da Tradução de João Ferreira de Almeida 8ªImpressão – 1992

“Jacó levantou-se de manhã cedo, tomou a pedra que pusera debaixo da cabeça,
e a pôs como coluna; e derramou-lhe azeite em cima.
E chamou aquele lugar Betel; porém o nome da cidade antes era Luz.

Tradução de André Chouraqui150

Ia’acob levanta-se cedo pela manhã.


Pega a pedra que havia usado à guisa de cabeçeira,
faz dela uma estela e derrama o óleo sobre a sua cabeça.
Elec lama o nome do lugar: Béit-Él – casa do Él -.
Primeiramente era luz o nome dessa cidade.

150
(Chouraqui, 1995, p. 295)
Esta pedra que Jacó manteve junto à cabeça foi visitada pela presença divina, por esse motivo foi
erigida como memorial.
Uma maséba é um monolito erigido no âmbito da Bíblia Hebraica, a maioria das vezes para comemorar
um acontecimento importante (Josué 4:4-9), especialmente a conclusão de um pacto com Deus (Exôdo
24:4; Josué 24:7). O estabelecimento de uma fronteira (Génesis 31:45) a realização de um voto (Isaías
19:18-23) e o local de um túmulo (Génesis 31:45).
Em termos históricos é importante referir que a ereção de estelas era algo comum entre os povos do
antigo médio oriente, estando presentes em santuários cananeus e de outros povos do noroeste semita.
Este texto ilumina-nos a importância central que uma estela tinha para o culto, sendo tão necessária
como o altar ou a àrvore sagrada. Encontramos mais tarde proibições a esta prática em relação a ídolos
(Êxodo 23:24; 34:12; Levitico 26:1); depois a sua proibição estende-se de uma maneira geral a todos
os contextos sócio religiosos (Deuteronómio 16:22).
O relato indica-nos que a pedra foi ungida com óleo, este uso como chouraqui comenta encontra-se
nas práticas religiosas de Assur. O cimo da pedra é chamado “sua cabeça”, ela é ungida como também
serão os objetos de culto, os sacerdotes e os reis (Exôdo 30:22-30; 1 Samuel 10:1). Ao atribuir a esse
local o nome Béit-Él, assume que o Él passa a habitar nesse local, que é a sua casa.
Como Sommer refere (Sommer, 2009, p. 28):

“At least two of these terms suggest that the stelae were sometimes viewed not simply as a symbol
of a god but as a god’s residence, and hence that the northwest semitic stelae were viewed in a
way that recalls the Mesopotamian salmu after it had undergone transformation from object to
living incarnation in the mis pî ritual.
The first of these terms ‫( ֵׁתםבתיֵׁ ב‬often refered to english as ‘betyl’), means ‘house of god’, that

is, a place were divinity resides.”

Assim como o salmu mesopotâmico podia ouvir e cheirar, o betyl estava dotado de vida. Vários textos
antigos mencionam um antigo deus do noroeste semita chamado Bethel 151, ele aparece nas fontes
assírias do sétimo século (onde é classificado como uma divindade aramea ou fenícia), em textos
aramaicos do sexto século e em fontes helenísticas incluindo Philo de Byblos. Que descreve um deus
Betyl como filho de Ouranos. É significativo como o autor refere152 que Philo tenha descrito Betyl
como o filho de Ouranos, e logo de seguida asserta que Ouranos criou as betyls, que eram pedras vivas.

151
(Sommer, 2009, p. 28)
152
(Sommer, 2009, p. idem)
Ambas as passagens não se contradizem se forem lidas dentro da tradição do noroeste semita. Ouranos
criou a habilidade de encarnar a presença divina em pedras e por isso ele era o pai das pedras
deidificadas, as betyls.
Assim como um deus salmu é reconhecido na Mesopotâmia, as pedras deidificadas também podem
tornar-se objeto de adoração e um deus quase independente com o seu próprio culto (Sommer, 2009,
p. 28).
Temos assim um paralelismo nestas noções, em que o divino está presente e habita numa estátua (no
caso da Mesopotâmia) e em algo físico que se chama ‫“ תֵׁ םבתיֵׁ ב‬casa de Él” ou casa de deus, porque

Él é deus, entre os semitas do noroeste.


Betyl não se limita semânticamente a um edifício, em muitos casos é uma pedra e não uma casa. O
termo betyl refere-se a uma residência ou a um corpo de um deus aparece como skn em ugarita e
sikkanum nos textos acadianos das regiões do noroeste semita.
Autores como Karel Von der Torn e Tryggue Mettinger sugerem que este termo refe-se a um pilar
(estela) que era considerada a residência do deus e não simplesmente um símbolo. A raíz verbal skn
aparece nos textos do arquivo de Mari como: habitar, permanecer, pousar153.
Citando a linha de pensamento do autor (Sommer, 2009, p. 29):

“The skn/sikkany may be more or less identical to a betyl: a stone in which divinity dwells or,
more preciselly, in which a particular god is presente. Significantly, skn also served as a divine
name, whose vocalization is likely to have been sikkun (perhaps also sakkan). The god’s name
appears as a part of human personal names (that is, in what scholars cal theoporic names).”

As estelas são assim conhecidas por terem sido sagradas para vários deuses, Él e Baal são associados
a estelas, como também de igual forma os ancestrais divinizados. Nalguns casos estes deuses eram
considerados presentes nestas estelas, especialmente em betyl e skn. O corpo celestial da divindade
continuava a existir, mesmo quando a divindade encarnava a estela, várias estelas podiam encarnar a
mesma divindade. Também encontramos estas noções na religião egipcia que será explorada de forma
sintetizada no escopo deste trabalho.
O corpo celestial da deidade continuava a existir mesmo quando esta se encarnava no betyl,
frequentemente percebemos que as deidades encarnavam tipicamente em várias estelas diferentes
distribuídas por amplos espaços geográficos. Daí termos os mesmos nomes com apostos geográficos

153
Citados em (Sommer, 2009, p. 29)
associados, seria a mesma divindade fragmentada em várias pequenas versões de si nestes locais onde
se manifestava aos seus devotos.
Este fenómeno pode ser encontrado ainda na religião egípcia, também pertencente ao espaço sócio
religioso do Antigo Médio Oriente. No antigo egípto encontramos concepções idênticas na sua cultura
religiosa.
A evidência da fragmentação e da sobreposição de “eus” divinos é especialmente forte nesta antiga
religião.
Os deuses egípcios sobrepunham-se uns aos outros em várias formas, por exemplo o faráo regente que
era considerado um deus, era identificada com Hórus enquanto estava vivo. Após a sua morte ele
perdia a identificação com Hórus e unia-se a Ósiris o pai de Hórus, passando a ser identificado com
este. A cerimónia da abertura de boca desempenhou um papel proeminente na religião egípcia e a
existência de várias estátuas do mesmo deus sugerem-nos que as divindades egípcias estavam
presentes em mais do que um corpo (Sommer, 2009, p. 30).

3.8 Os Três Corpos de Deus na Biblia Hebraica

No início desta seção procuramos explorar a conceção do divino no Antigo Israel, começando por
introduzir a noção histórica do modelo de fluídez divina.
Nesta subseção iremos aprofundar esse modelo demonstrando várias evidências literárias e refletindo
sobre várias aspetos da história da crença no antigo Israel e Judá. Nomeadamente como é que a crença
foi evoluindo e qual foi o papel dos escribas. Como poderemos conciliar estes aspetos com os achados
arqueológicos apresentados no ínicio da seção, na nossa busca pelas várias teologias que tiveram o seu
espaço existencial dentro da Bíblia Hebraica?
Antes de mais devemos abordar a questão do corpo divino dentro da Bíblia Hebraica recorrendo a uma
definição do termo corpo que se possa aplicar ao nosso método de investigação histórica.
Não faremos uso da definição de corpo dada por Benjamim Sommer no seu trabalho acerca dos corpos
de Deus no Antigo Israel154.
Uma definição de “corpo” para o material bíblico sem referirmos o corpo humano, não seria completa.
Uma vez que não inclui o papel central do corpo humano no antropoformismo bíblico em geral e na
representação do corpo de Deus em particular (Smith M. S., 2015, p. 473).

154
Esta definição foi utilizada anteriormente, mas neste contexto iremos trazer uma noção mais aprofundada
que nos permita estabelecer termos comparativos sólidos para a leitura que iremos fazer das nossas fontes
históricas.
Opto assim no âmbito deste trabalho por recorrer à definição de corpo dada pelo Dicionário Houaiss
de Língua Portuguesa (2005, p.2241-2242):

“Corpo. 9.a Substância, a matéria, tudo o que ocupa lugar; tudo o que tem existência física e
extensão no espaço <c. gasoso> <c.líquido> <c.sólido> 10. Parte essencial ou principal de uma
estrutura material ou abstracta. 11. Consistência, densidade, viscosidade de matéria fluida. 12. O
que possui carnalidade, concretude. 13. Algo que incorpora, abrange ou propicia concreção a certa
coisa”

Estas são algumas definições chave para compreendermos a dinâmica do nosso vocabulário quando
falamos do corpo de Deus na Bíblia Hebraica. O mais importante é a definição de corpo humano:

“1. A estrutura física de um organism vivo (esp. o homem e o animal) englobando as suas funções
fisiológicas; parte concreta, material dos seres.
2 Anat. Hum na configuração da espécie humana, o conjunto formado por cabeça, troncos e
membros.”

É à luz destas definições que iremos procurer interpreter a história da crença na corporidade divina no
antigo Israel. É importante referir que alguns autores argumentam que pelo texto bíblico nós temos
uma forma semelhante à de seres divinos.

“In Genesis 1.26 shows that humans, angels, and God all have the same basic shape.” (Sommer, 2009,
p. 69)

Existem várias implicações da noção que a corporidade divina trás à noção de espaços sagrados, nos
textos bíblicos encontramos tradições de fluídez divina, que consideram várias lugares geográficos
como sagrados. E por outro lado encontramos tradições de não fluídez divina, em concreto, as fontes
textuais deuteronomistas e sacerdotais que apontam para uma ideologia centrada num único espaço
sagrado155.
Uma leitura atenta a estas tradições textuais, revela que estas a dado momento contradizem a sua
própria ideologia156.

155
Seja este o tabernáculo no deserto (fonte P), ou o templo de Jerusalém (fonte D).
156
Na próxima subseção serão apresentadas e discutidas as ideologias destas tradições textuais.
Voltando ao ponto inicial desta subseção quais são os corpos associados a Deus na Bíblia Hebraica?
Ao analisarmos as nossas fontes literárias identificamos três tipos de corpos atribuídos pelas tradições
textuais ao Deus do antigo Israel.
Quando falamos em três corpos estamos a levantar a hipótese levantada pelo autor Mark S. Smith, de
três “tipos” de corpos divinos.
Como foi referido anteriormente estes corpos divinos não são feitos da mesma substância que o corpo
físico, estando por isso situados noutro âmbito ontológico.
O primeiro tipo de corpo divino aparece-nos nos textos como um corpo equivalente à escala do corpo
humano, Deus manifesta-se corporeamente na terra como se fosse um ser humano.
Antes de iniciar a caraterização deste corpo que só aparece em Génesis, damos relevo aos termos
utilizados para se definir a palavra “corpo”: substância, algo que ocupa lugar. Esta substância neste
caso não tem que ser obrigatoriamente humana.
Em Génesis 2-3 Deus aparenta ter um corpo para caminhar no jardim do Éden, contudo a passage mais
importante para para o nosso estudo está em Génesis 18. No versículo 2 deste capítulo Javé é um dos
“três homens” que apareceram a Abraão, este Deus caminha, fala, come e bebe (Smith M. S., 2015, p.
475).
Este primeiro tipo de corpo tem uma escala humana, interage com os humanos de forma humana, no
sentido que come, caminha entre eles e bebe com eles. É podemos até dizer confundido com um ser
humano e só aparece mencionado no livro de Génesis. Portanto esta teologia reserve-se há nossa
hipótese histórica levantada mais à frente da possibilidade histórica da existência de uma religião dos
patriarcas. Onde o seu Deus manifestava-se de forma corpórea concreta como nos exemplos que acabo
de mencionar ou nas estelas.
O segundo tipo de corpo divino é caraterizado como “um corpo litúrgico”, porque está associado a
vários temas referentes ao templo e ao palácio da divindade localizado no monte santo.
“The most dramatic manifestation of the second, supersized body of God is attested at Mount Sinai in
the book of Exodus. The Superhuman body of God seems to appear in Exod 24:1-11” (Smith M. S.,
2015, p. 478).
Neste episódio setenta anciãos de Israel, mais Moisés, Aarão, Nadab e Abidu viram Deus enquanto
tomaram uma refeição. Moisés teve a sua experiência revelatória nesta conceção de super corpo de
Deus.
Outro exemplo bastante notório da mesma crença encontra-se no relato do profeta Isaías, quando este
descreve a visão do trono. Como o autor Mark Smith notou157 o trono onde o corpo divino foi visto,

157
(Smith M. S., 2015, p. 481)
não foi o trono celestial158 mas o trono no Santo dos Santos do templo. As vestes divinas enchem o
templo irradiando do corpo divino no templo, a glória divina ‫ כָּבֹ ד‬kavod enchia a terra (Isaías 6:3).
Com estes dois tipos de corpos podemos justificar o uso do termo “avatares” como realidade
comparativa. Nos relatos de Génesis Deus literalmente desdobrou-se em manifestações físicas de
aparência humana, inseridas no contexto religioso da antiga terra de Canaã. Ainda temos os exemplos
das estelas e se quiséssemos poderiamos abordar ainda a questão das árvores sagradas, não tendo neste
trabalho espaço para tal. Sabemos que historicamente estes espaços implicavam uma manifestação do
sagrado e que segunda esta crença, o divino residia naqueles objectos ou espaços. Era a sua habitação,
o lugar do seu “corpo”. No segundo tipo de corpo divino descrito como um corpo gigante que habita
no monte santo, temos fontes paralelas com Baal. Portanto este tipo de manifestação corpórea do
divino enquadra-se perfeitamente no espaço religioso da antiga terra de Canaã.
O terceiro tipo de corpo é um corpo cósmico de caráter mais místico, não se manifesta a nível terreno
(Smith M. S., 2015, p. 482).
O capítulo final de Isaías contrasta o templo cósmico com o templo terrestre (Isaías 66:1):
“Assim diz o Senhor. O céu é o meu trono, e
a terra o escabelo dos meus pés. Que casa me
edificareis vós? E que lugar seria o meu descanso?”
Por outras palavras Deus está sentado acima dos céus e da terra, este corpo cósmico é tão grande como
os céus, o profeta Ezequiel dá-nos no primeiro capítulo do seu livro uma versão elaborada deste corpo
cósmico.
O foco da visão destes dois profetas Isaías e Ezequiel diferem no sentido em que Isaías é terreno
localizando a sua visão no templo terrestre (Isaías 6:1). Ezequiel viu os céus abertos (Ezequiel 1:1),
nas suas descrições relata visões que se movem para a redoma cósmica (ou “firmamento”), e um pouco
mais acima “o aspeto da glória do senhor”.

A Questão da Perceção Humana

O livro de Isaías relata uma visão de Deus sem o qualificar (Isaías 6:1), aquilo que o livro de Ezequiel
relata, portanto a visão de Ezequiel não era a visão em si mas uma aparência dela.
“When it comes to the perceived phenomena, he sees their (‫ מרקה‬mar’eh, 1:5, 10, 16, 26, 28 [2x]),
usually translated ‘appearance.’” (Smith M. S., 2015, p. 483).

158
Como em 1 Reis 22:19; cf. Jeremias 23:18,22
Ezequiel viu a “semelhança” de algo, Isaías viu o Senhor, a linguagem de Ezequiel mostra três
qualificações: a “aparência; “semelhança” e também a “glória” que é a linguagem mais antiga para
descrever a aparição de Deus na tempestade (Salmo 29).
Em Ezequiel o divino está marcado intensamente por fogo (1:4, 13 (3x), 27 (2x)). Esta é a única
descrição na Bíblia Hebraica em que a aparição de Deus acontece acima do firmamento.
O Deus flamejante sentado no trono divino iria tornar-se o padrão representative para aquilo que
podemos chamar de “corpo místico/ cósmico de Deus”159. Por exemplo em Daniel 7 o “Ancião de
Dias” senta-se no seu trono para julgar (Daniel 7:9a) “o seu trono era de chamas de fogo, e as rodas
dele eram de fogo ardente” (Daniel 7:9b); “um rio de fogo manava e saía dele” (Daniel 7:10a).
É importante do ponto de vista da história da crença, nomeadamente no caso deste trabalho, a história
da perceção do divino. Não sermos tentados a ler as fontes textuais com bases modernas e complexas
de questões teológicas ou até filosóficas que permeiam a mente e impedem-nos de analisar o texto de
uma forma mais livre. O historiador tem que ser racional na sua análise, ou pelo menos tentar sê-lo, é
ambicioso pressupormos que conseguimos de facto “ler” os textos como aqueles que os escreveram e
ouviram em primeira mão.
Contudo ao esboçarmos um cenário histórico do espaço sócio religioso do Antigo Médio Oriente,
identificarmos crenças e perceções até descobrirmos um padrão comum. Será muito mais fácil
aproximarmo-nos das nossas fontes, porque num sentido historiográfico, estamos a “lê-las” dentro do
mundo em que foram escritas. Este mundo é um mundo simbólico, composto pela reunião de várias
peças arqueológicas, epigráficas, textos dispersos e nomes há muito desligados da realidade bíblica.
Mas é também uma porta que nos convida a entrar na perceção histórica mais profunda da crença
religiosa antiga, como referi na seção das fontes literárias, o historiador do mundo bíblico é refém dos
escribas. Estes criaram e conceberam realidades nem sempre verificáveis, porque não eram em si
realidades factuais, mas antes realidades da crença, da ideologia e da intenção política.
Ao lermos estes excertos, ao depararmo-nos com estas perceções, não estamos de facto a divagar em
relação a algo absurdo ou irreal. Estamos antes à procura das crenças, das perceções e ideologias,
porque estas sim são as componentes por excelência da historiografia bíblica.
Sem compreendermos estas tonalidades, sem as mencionarmos, seremos reféns dos escribas e da sua
“história”, inconscientemente abandona-se o olhar histórico e ganha-se o olhar teológico.
Não existia uma religião digamos “pura” certa da qual outras se desviaram e se tornaram heréticas,
existia sim neste espaço de crenças. Um corpo condensado mas ao mesmo tempo diverso de várias

159
(Smith M. S., 2015, p. 484)
crenças e perceções do divino que com o tempo lutaram entre si até que uma se impôs como a única
viável, marginalizando as outras.
Historicamente isto comprava-se quando começamos a ler as nossas fontes a partir do mundo dos
escribas e da tradição oral, passando depois para os vestígios materiais no que toca à arqueologia das
práticas religiosas.

O Contexto Cultural dos Escribas

“The human-looking body in the older, prose storytelling tradition of Genesis; the superhuman
divine body of the eight-century prophetic tradition, as seen in Isaiah and the prose traditions
surrounding Moses; and the cosmic divine body of the sixth-century prophetic reflections in Third
Isaiah and Ezequiel.”
(Smith M. S., 2015, p. 484)
O primeiro tipo de corpo “natural” e humana contextualiza-se nas sagas familiares dos patriarcas
(Génesis 18-19). Os exemplos ugaritas (épicos de Aqhat e Kirta) sugerem que este fenómeno faz parte
de uma tradiçao muito antiga de raízes cananitas, apenas do livro de Génesis temos esta forma de
perceção do divino.
O segundo corpo de tamanho gigante é também uma representação tradicional do divino no contexto
sócio religioso cananita. Como referi acima o deus ugarita Baal é representado de igual forma como
uma figura gigante no seu palácio celestial na montanha de deus no ciclo de Baal.
Este tipo de corpo tem as suas raízes no contexto dos templos antigos, em Isaías 6 Deus é visto dentro
do templo de Jerusalém.
O encontro de Moisés e dos anciãos com Deus em Êxodo 24 e 33-34 contextualiza-se numa visão do
mundo assente no templo. Em que o templo ou palácio da divindade localizava-se numa montanha
divina.
Percebemos então por estes dois exemplos que os escribas que as redigiram estavam familiarizados
com tradições antigas, referentes à conceção do divino, enquadradas no espaço sócio religioso do
noroeste ocidental semita.
O terceiro tipo de corpo é um caso diferente, os especialistas referem que as ideias acerca do céu,
provenientes da Mesopotâmia, influenciaram a cosmologia israelita (Smith M. S., 2015, pp. 486-487).
Ezequiel 1 e Génesis 1 descrevem uma redoma celestial (traduzida frequentemente por “firmamento”)
que sela a terra e o céu160. Enquanto o segundo tipo de corpo está no topo da montanha161, em Ezequiel
1 a entronização do corpo (semelhança do) divino era consideravelmente mais alta, acima da abóbada
celeste.
O período correspondente a estes dois textos é o sexto século, por esta altura os textos mesopotâmicos
também identificavam múltiplas esferas e habitações para os seus deuses.
Assim como as habitações celestiais para os deuses da Mesopotâmia, o terceiro tipo de corpo divino
em Ezequiel e talvez a sua localização implicita em Génesis 1, situa-se a um nível cósmico do
firmamento. A nova cosmologia destes dois textos bíblicos representa um ajustamento espacial das
antigas tradições do corpo divino gigante. Da sua entronização na montanha de Deus para a nova teoria
mesopotâmica que localiza deus no firmamento (Smith M. S., 2015, pp. 486-487).
É portanto plausível aferir que a nova teoria proveniente da Mesopotâmia acerca do Universo, tenha
influenciado a ideia de um corpo de divino cósmico ou místico, como o que encontramos em Ezequiel
1, dado o fundo sacerdotal destes textos.
Em síntese a representação do corpo cósmico e “místico” de Deus, insere-se no contexto mais
abragente da religião israelita, envolvendo a sua cosmovisão de “um-deus”.
Em vários trabalhos dos séculos sétimo-sexto, incluindo o trabalho sacerdotal do pentateuco, o livro
de Deuteronómio, Jeremias e Segundo Isaías162 encontramos a ideia que pode ser tratada como
monoteísta163. Este monoteísmo emergeu como temática central para a compreensão israelita da
realidade.
Isto claro está afetou a representação do corpo divino nalguns textos, assim como a sua não
representação noutros.

3.9 A Rejeição do Modelo de Fluídez Divina no Antigo Israel

Continuando a nossa linha de raciocionio teremos agora oportunidade de demonstrar como o modelo
de fluídez divina encontrado no primeiro tipo de corpo divino acima mencionado e em todas as outras
possibilidades discutidas nas seções anteriores. Foi rejeitado por duas grandes tradições escribas que
redigiram e contribuiram para a formação do texto da Bíblia Hebraica. Será possível aqui
compreendermos a influência do contexto cultural dos escribas na conceção do divino.

160
Ver Ezequiel 1:22-23; 25-26; Génesis 1:6-8; 14-15;17,20
161
Por exemplo Exôdo 24:9-11
162
Atribuídos à tradição deuteronomista mas de qualquer forma redigidos neste período histórico.
163
Ou talvez de forma melhor, as cosmovisões israelitas de um “único deus” que podem representar aquilo que
na teologia comum do Antigo Médio Oriente, seria mais uma afirmação de caráter patriótico e zelo pela nação.
Para iniciarmos essa discussão devemos ter como ponto de partida a noção não do corpo divino mas
antes do espaço sagrado. Porque a raíz do problema com a qual estas fontes se degladiam é a
problemática do espaço sagrado onde Deus poderia ser adorado, ou poderia situar-se.
As diferentes atitudes em relação ao espaço sagrado farão imergir as tradições de fluídez divina e de
não fluídez divina (Sommer, 2009, p. 84).
As tradições associadas a fluídez divina consideram que vários espaços geográficos são sagrados e na
sua ideologia, todos os santuários fundados pelos patriarcas são lícitos para adorar. Se entrarmos em
detalhes mais profundos estas tradições deveriam englobar a religião familiar realizada em altares nas
casas ou no meio rural em lugares de culto.
As tradições de anti fluídez divina, conhecidas a partir da literature deuteronomista e sacerdotal,
enfatizam sempre a existência de um único centro sagrado legítimo para a adoração em Israel.
Iremos agora examinar o conflito entre tradições, um conflito a nível de crenças, ideologias e perceções
do divino.
Historicamente esta análise do conflito é útil para a nossa compreensão das dinâmicas da experiência
religiosa no Antigo Israel e Judá?
Creio que sim e terei o cuidado de apresentar todos os argumentos viáveis, analisando criticamente as
fontes históricas disponíveis.
Começarei por examinar as fontes do pentateuco referentes ao tabernáculo, templo e arca, como é que
as diferentes compreensões do espaço sagrado refletem as diferentes perceções da encarnação divina.

3.10 O Tabernáculo nas fontes P e E

No âmbito do pentateuco ambos os textos sacerdotais e não sacerdotais descrevem uma tenda onde o
divino se manifesta.

3.10.1 A Literatura Sacerdotal (Fonte P)

De acordo com os escribas da fonte sacerdotal a kavod entrou e residiu no tabernáculo ‫( רן יםשי מ‬Mîskan)

que literalmente significa “lugar de habitação”. Usaram também outras terminologias como a “tenda
do encontro” ‫יהב ןֹועֵׁ מ‬e a “tenda do pacto”.

Em Números 9:15-23 os escribas afirmam que a nuvem e o fogo indicavam a presença imediata do
divino que estava sempre localizada no tabernáculo ou em cima dele.
Uma leitura atenta da fonte sacerdotal permite-nos tirar algumas conclusões de como é que esta
teologia se posicionava em relação à perceção do divino.
Para começar o tabernáculo desempenha na literatura sacerdotal um papel central único (Sommer,
2009, p. 81). O tabernáculo é descrito como um lugar teofânico incessante e sempre acessível a
experiências de teofania e revelação. Por detrás das cortinas do santo dos santos, estava a arca cuja a
cobertura tinha as asas de dois querubins. Esta arca era o trono onde Deus se situava dentro do
tabernáculo, dentro do tabernáculo ou talvez acima dele estava a própria kavod.
Esta kavod era oculta por uma nuvem ‫ עי ִימ‬de forma que ninguém a via, era a partir do tabernáculo que

a presença divina se manifestava em tempos de crise164.


Para aferirmos a centralidade do tabernáculo na literatura sacerdotal temos dois grandes argumentos:
o primeiro é o mapa elaborada no capítulo 2 do livro de Números. A centralidade do tabernáculo é
proclamada numa dimensão extremamente literal, de acordo com o mapa o tabernáculo era o centro
do acampamento israelita. Rodeado de círculos concêntricos de sacerdotes, levitas e as tribos de Israel.
Simbolicamente o tabernáculo desempenha um papel central no cosmos, na cosmologia sacerdotal o
mundo estava incompleto até à construção do tabernáculo.
Para afirmarmos isto temos o nosso segundo argumento, duas cerimónias inaugurais para o tabernáculo
demonstram este papel cosmológico proeminente na literatura sacerdotal.
A primeira cerimónia era uma dedicação de oito dias, descrita em Exôdo 40 – Levitico 10, durante a
qual o tabernáculo foi construído, a presença divina entrou, o altar foi purificado e o sacerdócio
instalou-se (Sommer, 2009, p. 81). Outros autores (Barker, 2004, pp. 18-20) interpretam uma
simbologia da própria criação na construção do tabernáculo. Os paralelismos não podem ser ignorados,
sete dias de construção, e toda esta de acordo com a fonte que temos em Exôdo 25:9, os escribas
afirmam que a construção baseou-se na visão que Deus deu a Moisés. Portanto os seis dias da criação
descritos em Génesis 1 são replicados nos seis estágios de construção do tabernáculo no deserto
(Barker, 2004, p. 17). Não mencionarei as fontes judaicas tardias que interpretam cada uma das seis
etapas, porque não são pertinentes para o âmbito do nosso estudo.
A segunda cerimónia encontra-se descrita em Números capítulo 7, era uma cerimónia de doze dias,
duranque os quais as doze tribos de Israel traziam ofertas ao tabernáculo.
Podemos ainda afirmar que de acordo com a fonte sacerdotal, foi o tabernáculo e não o Monte Sinai,
o lugar onde a lei de Deus foi revelada, começando em Levitico 1:1165.

164
Ver Números 14:2; 16:19; 17:7 e 20:6
165
Tal como (Sommer, 2009, p. 81) notou a descrição da entrega da lei no Monte sinai descrita no livro de
Exôdo, ocorre apenas nos textos da fonte Javeista e Eloísta e nunca na fonte sacerdotal.
Nestas narrativas o tabernáculo sacerdotal era o único lugar legítimo para a adoração no deserto,
nenhum outro lugar era permitido. O tabernáculo era o centro sagrado do povo israelita, a máxima
realização do Universo, o ponto onde Deus constantemente se manifestava ao seu povo.

3.10.2 A Literatura Eloísta (Fonte E)

A conceção da presença divina nos documentos da fonte eloísta apresentam-nos uma perceção
completamente diferente da fonte sacerdotal. Estes escribas introduziram a tenda no relato de Exôdo
33:7-11, a “tenda do encontro” ‫יהב ןֹועֵׁ מ‬nunca é designada por tabernáculo (lugar de habitação).

Ao lermos o relato encontramos o centro desta divergência entre estas duas fontes, na literatura eloísta
a tenta do encontro situa-se fora do acampamento israelita. A breve passagem de Exôdo 33 demonstra
que era necessário deslocarem-se para fora do acampamento até à tenda, a presença divina não habitava
permanentemente na tenda. Estes escribas acreditaram que a presença divina manifestava-se apenas
quando era necessário. Quando Deus se dirigiu a Moisés para ele reunir os setenta anciãos em redor
da tenda disse: “ Então descerei e ali falarei contigo, e tirarei do espírito que está sobre ti, e o porei
sobre eles …” Números 11:17, notemos também a passagem no versículo 25, é nos referido no verso
seguinte que a tenda estava fora do acampamento.
No caso da nossa primeira fonte P, Moisés teria levado os anciãos ao centro do acampamento onde a
presença divina emanava por meio do tabernáculo. No caso de E a presença divina desce do céu para
falar em situações específicas não habitando permanentemente no tabernáculo.
Podemos fundamentar esta observação por meio da natureza ocasional da presença divina na tenda de
E especialmente clara em Números 12:4-10 que narra a chegada e a partida da coluna de nuvem.
De forma sintetizada concluímos que a fonte E não demonstra um Deus de imanência permanente,
mesmo quando manifesta a sua presença, fá-lo fora do acampamento israelita. Também não temos
referências da arca e do trono divino.
Como notado pelo autor (Sommer, 2009, p. 82) o contraste entre as visões da tenda eloístas e
sacerdotais tornam-se bastante claras no uso da palavra ‫ עי ִימ‬que se refere à nuvem que indica a presença

de Deus.
Nos textos da tradição eloísta166 a nuvem é o sujeito do verbo ‫( ם ָיִמ‬descer), isto é a nuvem vai e vem,

nunca permanece. Nos textos da tradição sacerdotal167 em contraste, enfatizam que a nuvem e o fogo
permanecem na tenda. Ascendendo apenas quando Javé deseja que os israelitas interrompam o

166
Exôdo 33:9 e Números 11:25; 12:5
167
Exôdo 40:36-8 e Números 9:15-23
acampamento e avancem para uma localização diferente. Em Números 9:16 os escribas sacerdotais
afirmam que a nuvem cobriu a tenda e que nunca se podia mover dali. O tom insistente de Números
9:15-23 neste ponto pode ser uma resposta sacerdotal ao ponto de vista alternativo apresentado pela
fonte eloísta (Sommer, 2009, p. 82).

3.11 Aspetos Profundos destas Duas Ideologias Religiosas

As tendas da fonte P e E apresentam dois tipos diferentes de ideologias religiosas importantes para o
âmbito deste trabalho.
A distinção fundamental entre as tendas de P e E é evidente nos dois nomes atribuídos às suas
instituições: a palavra ‫ רן יםשי מ‬miskan, tabernáculo, indica o lugar onde Deus soken, habita. Enquanto o

termo “tenda do encontro”, ‫יהב ןֹועֵׁ מ‬, descreve o lugar para o qual ele vem num tempo determinado.

Ele desce a este mundo, entrando na tenda em resposta a uma invocação profética, apenas para deixá-
la quando a comunhão com ele termina (Sommer, 2009, p. 90).
Em P existe assim uma visão do centro sagrado, que não está limitada a um lugar fixo, uma vez que o
tabernáculo movimenta-se pelo deserto. Esta mentalidade expressa uma ideologia de imanência,
porque baseia-se na convicção que o divino irrompe no espaço e no tempo, mais concretamente em
determinados espaços durante determinados períodos de tempo. Nesta cosmovisão toda a realidade
relaciona-se, imitando, replicando simbolicamente ou reconhecendo o momento da criação primordial.
O eixo de liga a terra ao céu, axis mundi, que corresponde neste caso ao tabernáculo e a uma montanha
sagrada. Exemplos clássicos deste mapa locativo do universo proveem da antiga Mesopotâmia, Egito
e Ugarit (Sommer, 2009, p. 83). Esta ideologia religiosa prevaleceu em Israel, na sua forma mais
proeminente, na ideologia da presença divina no templo de Jerusalém168.
Em suma o tabernáculo sacerdotal apresenta um modelo locativo do universo, em que Deus é imanente
num centro divino, cuja construção origina o momento em que o mundo veio à existência.
Quanto à ideologia religiosa de E, esta apresenta-nos uma visão alternativa do universo, que enfatiza
não o centro mas a periferia. Não a imanência mas a transcendência169, por outras palavras a tenda de
E apresenta-nos uma visão utópica do mundo170. Localiza o valor religioso na periferia em vez de o
localizar no centro e apoia um modelo restrito de imanência. Estas culturas de visão utópica, segundo

168
Ver Salmo 48 e Isaías 6
169
Porque nenhum lugar compreende o divino na sua totalidade, nem tão pouco o comporta na sua dimensão.
170
O termo visão utópica proveem do modelo de religiões arcaicas e pós arcaicas do autor J.Z. Smith em (Smith
J. Z., 1978, pp. 292-3)
Smith, expressão uma visão mais aberta, em que seres são chamados a desafiar os limites estabelecidos,
a quebrá-los e a criarem novas possibilidades.
Esta descrição é importante para considerarmos a passagem da fonte E em Números 11:26-9, onde
dois anciãos israelitas que supostamente deviam ter ido à tenda do encontro fora do acampamento,
ficaram dentro do acampamento. No entanto ambos entraram num êxtase profético e começaram a
profetizar, mesmo não estando localizados ao pé da coluna da nuvem.
Josué prontamente foi informar Moisés do sucedido, pedindo-lhe que calasse os dois anciãos. Mas o
texto dá-nos uma resposta muito interessante dos lábios de Moisés:

“Estás ciumento por minha causa? Oxalá todo o povo de Iahweh fosse profeta, dando-lhe Iahweh
o seu Espírito!” (Números 11:29).

Nestes versos a fonte E articula uma visão idealizada da profecia, segunda a qual todos os israelitas
podiam entrar num extâse profético, independentemente da sua localização geográfica ou social. Uma
possibilidade que ameaçe as estruturas de poder estabelecidas e aqueles que esperam herdá-las, neste
caso Josué (Sommer, 2009, p. 84).
Estas diferentes perceções do divino são importantes para entendermos e até situarmos as crenças
religiosas do espaço sócio religioso do antigo Israel e Judá.
A fonte E pertence a um conjunto de textos israelitas antigos que consideram a essência de Deus fluída,
e atribuiem vários corpos a Deus.
Em contraste a ênfase num único centro sagrado, aponta para uma posição antifluida da essência
divina. Só existe um corpo divino e só pode haver um único espaço sagrado verdadeiro num dado
momento do tempo.

3.12 A Literatura Deuteronomista

Para concluirmos esta seção iremos proceder agora a análise do corpo literário da fonte D, onde existe
uma intensidade temática incidida sobre a cidade santa de Jerusalém. O único espaço verdadeiro e
sagrado é o centro simbólico da terra de Israel, a própria cidade de Jerusalém, nomeadamente o monte
em que o templo se situa.
A fonte D preserva a ideia da arca da aliança mas concebea de uma forma completamente diferente
dos outros textos. Em D a arca não é o trono de Deus, o papel da arca é estas conterem as tábuas da
lei, tendo essencialmente uma função educativa. Ela contém as tábuas com as palavras de Deus
gravadas e ao seu lado está o Livro da Torá171.
Citando as palavras de (Sommer, 2009, p. 100):

“Where other biblical texts put God, Deuteronomy puts words that came from God.”

Os historiadores deuteronomistas também enfatizam que:


“Nada havia na arca, senão as duas tábuas de pedra, que Moisés ali pusera, junto a Horebe, quando
o Senhor fez um pacto com os filhos de Israel, ao saírem da terra do Egito.”
1 Reis 8:9
O templo de Jerusalém na teologia de D é a habitação do nome (shem), não do corpo (kavod) de Deus.
Temos aqui uma perceção do templo antropocêntrica, o templo era algo acerca dos israelitas, que iam
adorar no tempo. Para D, Deus nunca visita o templo de Jerusalém, apenas os israelitas o fazem
(Sommer, 2009, p. 100). Os deuteronomistas afirmaram assim que a arca continha palavras faladas e
escritas por Deus, e Deus ordenou que os registos dessas palavras fossem colocados na arca172. A
localização do templo foi uma escolha de Deus e não de Israel.

3.13 Síntese das Raízes Conceptuais da Fluídez Divina

A conceção divina da fonte D e a sua ideia de espaço sagrado difere significativamente da fonte P e
das tradições de fluidez divina. As tradições de fluidez consideravam qualquer lugar dentro da terra
prometida como sagrado. Uma estela ou uma ‘ashera podiam ser consagradas e os sacrificios a Deus
podiam ocorrer em qualquer lugar. Estas antologias literárias mais antigas orientavam-se para uma
mentalidade de imanência divina, onde não há um centro sagrado, uma vez que a terra de Israel, tem
muitos centros sagrados.
A fonte D por outro lado aponta para uma teologia transcendente, existia um centro, contudo este não
era sagrado no sentido de ser tocado pelo divino, era apenas escolhido por este para lá colocar o seu
nome.
Posto isto dentro do âmbito do corpo literário biblico, consideraremos agora o âmbito do mundo
bíblico que abrange as civilizações, textos e cerimónias do Antigo Médio Oriente. As noções e
conceitos que surgem neste material precisam de ser analisadas e explicadas em termos

171
Ver Deuteronómio 31:26; cf. Versículos 12 e 13
172
Ver Deuteronómio 10:1-4
historiográficos não apenas como uma polaridade entre politeísmo e monoteísmo. Mas antes por uma
segunda polaridade mais complexa que envolve diferentes conceções do divino (Sommer, 2009, p.
36).
Em termos metodológicos esta proposta faz sentido, uma vez que na antiguidade pré clássica o espaço
sócio religioso era demarcado por diferentes conceções do divino e da forma como este se manifestava.
Categorias como politeísmo e monoteísmo, ou religião “pura” e religiões “contaminadas/heréticas”
são termos redutores e simplistas que não abarcam a realidade histórica que está a ser estudada.
Os textos destes povos não nos apresentam estas categorias, e daquilo que foi estudado do mundo dos
escribas e dos vários elementos literários das culturas orais, não há espaço para forçarmos estas
metodologias simplistas. Que retratam mais a nossa maneira ocidental e diria eu “ortodoxa” de ler a
história da crença religiosa e não uma leitura cuidadosa e atenta a pormenores essenciais e até evidentes
da complexidade destas perceções.
Poderiamos compreender as conceções do divino na Mesopotâmia e nos povos semitas do noroeste, a
partir do conceito de sagrado de Rudolfo Otto, que como este define a ideia de sagrado como um
mysterium tremendum et fascinans.
A grandeza tremenda da manifestação divina previne o homem de imaginar ou perceber o sagrado,
como resultado disto, uma única representação do sagrado falha em representá-lo na sua totalidade.
Ishtar dividia-se em vários corpos, isto espelha a ideia que a sua divindade tinha que ser dividida em
porções manobráveis e acessiveis ao ser humano.
A nível conceptual todos os exemplos que acima foram referidos e analisados apontam para esta ideia
que o estudo da história da religião começa no estudo da história das crenças e perceções que as pessoas
dessa religião tinham. Porque como referi acima a religião é feita por pessoas, logo são as pessoas e
as suas perceções a primeira chave para a metodologia do nosso estudo histórico.
As raízes conceptuais da fluidez divina têm um respalde na literatura do antigo médio oriente e como
tal também se encontram na literatura bíblica. Uma vez que esta faz parte desse mundo e desse
contexto, o espaço sócio religioso num dado local, num dado momento revela-nos todas estas incriveis
semelhanças. Facultando-nos novos elementos para relermos o passado e compreendermos o que de
facto reside por detrás das suas crenças.
4. A Hipótese da Religião dos Patriarcas

O tema da religião dos patriarcas a nível histórico apresenta as suas limitações, uma vez que os
historiadores não confiam na autenticidade das narrativas patriarcais como relatos de uma realidade
histórica.
Como referi na metodologia que iria utilizar e baseando-se no ensaio clássico de Albrecht Alt (1929),
que decidiu contrariar a tendência positivista da história. Procurando descobrir vestígios e lembranças
da história religiosa pré-javista, nas sagas patriarcais.
Neste trabalho eu subscrevo a sua perspetiva pelo simples facto de compreender que as narrativas
patriarcais foram redigidas com vários propósitos e nenhum deles foi a sua historicidade factual.
No livro de Génesis encontramos um aglomerado de crenças e práticas religiosas praticadas pelos
patriarcas que são anteriores á religião de Moisés.
Alt fez o seguinte comentário ao descrever o “Deus Paterno” dos patriarcas:

“A razão verdadeira, porém, para tratar esta figura de maneira especial, reside no fato de ela já
representar, desde o inicio, um outro tipo de religião, diferente daquela dos ‘elim: uma religião em
que o elemento decisivo não está na fixação local, mas na constante relação com um grupo
humano. Até mesmo a designação “Deus Paterno” de acordo com individuos humanos, e jamais
com lugares, vale com segura indicação do caráter peculiar deste tipo de religião.
(…) Assim era intrínseca ao próprio Deus paterno, desde o o inicio, a possibilidade da livre
movimentação. De maneira mais especifica, pode-se falar da sua adaptabilidade a cada mudança
do respetivo grupo humano.”
(Alt, O Deus
Paterno, 1929, p. 42)

Como já foi estudado em literatura mais recente, a discussão da importância dos textos ugaritas para
as ideias importantes para a nossa análise: a primeira é a possibilidade de livre movimentação
intrínseca a deus e a segunda é a sua adatabilidade às mudanças do respetivo grupo humano.
Com o estudo do pano de fundo do Antigo Médio Oriente, aferimos a conceção divina de múltiplos
corpos que se desdobram, em múltiplas localizações geográficas, tendo também nomes desses locais
associados ao seu nome.
Tanto nas religiões semitas ocidentais, como na Mesopotâmia ou no Egito, o divino era um e assumia
múltiplas “formas” ou manifestações da sua presença.
Tendo isto como ponto de partida cabe-nos agora colocar a seguinte questão:
Quem é o deus mencionado em Génesis, nas sagas patriarcais e quais são as suas caraterísticas?

4.1 Análise das fontes E, J, P

A Biblia Hebraica indica alguma descontinuidade e também uma continuidade em ambas as fontes E
e P implicam que os patriarcais não conheciam o nome Javé e que este nome foi revelado
primeiramente a Moisés (Exôdo 3:3-15, E; Exôdo 2-3, P). Em contraste a fonte J afirma que o nome
Javé já era conhecida nos tempos primordiais (Génesis 4:26). Já a fonte P afirma que os patriarcas
tinham conhecido deus pelo nome de El Shadai (Exôdo 6:3) (Day, 2000, p. 13).

4.2 Os Epípetos com El

Nas narrativas patriarcais encontram-se uma série de apelidos divinos que começam com o element
‘el seguido de um substantivo. De acordo com (Jr., 1981, p. 76) o epíteto ‘el pode ter duas ou mais
interpretações filológicas. Podemos ler ‘el como um termo genérico para “deus” aposto por um nome
divino ou um substantivo de relação genitiva. Ou podemos compreender Él como o nome próprio desse
deus cananita, o segundo como um apelativo da divindade oriundo de moldes litúrgicos ou
mitológicos.
Por exemplo no caso ‘El Olam poder ser interpretado como “Deus Olam”, ou seja, “Deus de
eternidade”, no primeiro caso, bem como ‘El, o Eterno’ na segunda.

“Talvez o argumento mais poderoso em favor da leitura, “o deus n”, prende-se ao fato de cada um
dos três nomes mencionados acima aparecer no Antigo Testamento, bem como nas fontes
extrabiblicas, também sem o elemento ‘el. Por conseguinte, tem-se a impressão que a formula com
o prefixo ‘el foi abreviada pela tradiçao posterior”.
(Jr., 1981, p. 77)
A descoberta das tábuas mitólogicas cananeias de Ugarit e a expansão do conhecimento geral das
religiões amoritas e cananitas, demonstra-nos que estes nomes são epítetos do deus El. ‘Il nos textos
cananitas é na maioria das vezes o nome próprio da divindade cósmica El, pai dos deuses, chefe do
panteão.
El é a figura central do panteão, epítetos como El Olam podem se considerer títulos do El cananeu
(Coogan, 2012, p. 79), epítetos tirados dos nomes litúrgicos do rei dos deuses, tal como era adorado
nos principais santuários palestinenes (Jr., 1981, p. 78). Tal como Cross afirmou:

“Quando lemos por exemplo, o título “el ‘elohe yisra’el’’, “El, deus do (patriarca Jacó) Israel”,
parece imprescendível supor que o antigo Deus Paterno, divindade ou divindades de tribo ou clã,
de cunho patriarcal, bem cedo se identificou com o El cananeu.
O epípeto “El, deus de teu pai”, semelhantemente parece ser uma referência transparente a El.
Não se concluiria, então, que ‘el olam, ‘el shadday etc.
Poderiam ser nomes cultuais, variants de El?”

Esta questão ilustra aquilo que procuramos aferir historicamente com o suporte de investigação
académica mais recente (Sommer, 2009, p. 13). Todos os estudos providenciam uma nova
possibilidade de relermos a pré-história religiosa de Israel.
O deus El que mais à frente mostrarei ser o deus de que Abraão adorava desdobrava-se em vários
fluídos, manifestando a sua presença em diferentes espaços geográficos (os santuários). Os atributos
acrescidos ao seu nome, não nos revelam múltiplos deuses “El”, mas um deus “El” que se manifesta
nos mais variados atributos.
Esta leitura enquadra-se no espaço histórico das religiões do Oeste Semita, egipcios, babilónios,
assírios e arameus. Todos estes povos acreditavam que uma divindade podia existir simultaneamente
em vários corpos diferentes. Esta fragmentação do ente divino em vários ‘personalidades’ diferentes,
torna-as distintas mas nunca separadas (Sommer, 2009, p. 12).
Tanto Cross (1962) como Alt (1929) descreveram este fenómeno da forma que lhes foi possivel dentro
do âmbito das suas investigações.
Ao referirem a adaptabilidade, movimentação e variação da divindade, seja a nível dos seus nomes
como a nível da sua interação com os seres humanos (ou clãs). Temos hoje as sagas patriarcais que
relatam as experiências dos patriarcas com Él e as sagas nos textos ugaritas, sendo que a mais
significativa é o épico de Kirta (Coogan, 2012, p. 72) que contém vários elementos narrativos de
Génesis 12-50.
Neste épico é nos introduzido o herói Kirta que perdeu o seu filho e foi abandonado pela sua mulher.
Num sonho, o deus Él aparece-lhe e dá-lhe um conjunto de instruções para uma expedição para outra
cidade. Onde ele iria achar outra mulher, ao acordar ele segue as instruções e durante o percurso ele
faz uma paragem num santuário onde presta os seus votos à deusa Asherá.
A sua viagem foi bem sucedida e ele teve um casamento abençoado pelos deuses, cedo a sua esposa
começou a gerar descendência.
Como podemos constatatr estas narrativas ancestrais que acabam por ser os mitos fundadores dos
povos, têm antepassados sem descendência, uma promessa divina de descendentes, uma viagem em
busca de uma progenitora.
No decorrer das viagens fazem-se paragens em santuários onde se prestam votos e por fim acontece
sempre o milagre da concepção. O deus El aparece em todas estas fontes o “Deus Paterno” segundo
Alt (1929) do patriarca fundador do clã.
Iremos agora explorar os epítetos signigicativos para a nossa investigação: Él Olam e Él Elyon.

4.2.1 Él Olam

Em Deuteronómio 33:27 lê-se: “O Deus eterno é a tua habitação e por baixo estão os braços eternos”.
No seu artigo (Jr., 1981, p. 79) Cross transliterou o verso da seguinte forma:
“me’ ono ‘elohe qedem/ mittahtaw zero’ot ólam, seu (isto é: de Jeshurun) refúgio é o Deus de
Antiguidade/ debaixo dele estão os braços do Antigo (Olam)”
Em Jeremias 10:10 Javé recebe uma série de epítetos sendo um deles melek ‘olam, “o rei antigo ou
eterno”. Isto tráz à lembrança um dos epítetos de El: milk ‘ abu shanima, “o rei, pai de anos”.
Durante a expedição do Sinai em 1947, na região de Serabit El-Hadum, foram reconhecidas
designações em textos proto-cananeus para divindades cananéias, algumas identificadas com os seus
egipcios: Ptah, deus criador de Mênfis, Sehmet sua esposa e Hator.
“Essa última chamava-se ba’lat (u) gubli, “Senhora de Biblos”, como já indicou, em 1915, Alan
Gardiner. Quando decifrou os textos – obra publicada em 1948- Albright leu dt btn, “a Senhora
Serpente”, um epíteto de Qudshu Ashera a grande deusa de Canaã conserte de El.”
(Jr., 1981, p. 80)
De acordo com o autor Ptah e El eram identificados e fundidos no sincretismo egípcio-cananita deste
período. A inscrição dizia: “El, o Antigo (ou Eterno). Ptah também é chamado de: “O Senhor (ou:
aquele) de eternidade”173.
Os textos mitológicos de Ugarit descrevem El como um homem idoso com cabelos e barba branca.
Sendo o Pai dos deuses e pai dos homens, o seu apelativo: abu shanima, “pai dos anos”, é

173
Citado em (Jr., 1981, p. 80)
reminiscente do “Senhor dos anos de Ptah”, sendo tambem semelhante a ‘attiq yomim “antigo em
dias” (Daniel 7:9). Comparando-se ainda com ‘El qibbor ‘abi ‘ad, “El, o Guerreiro, o Pai Eterno”,
nome que aparece numa frase litúrgica em Isaías 9:6.
Em suma podemos reunir neste epíteto estas carateristicas: apelativos como “eterno” e “criador”,
assim como “eterno ou antigo criador”. Estas são as designações litúrgicas cananéis para o grande
deus Él.

4.2.2. Él Elyon

Em Génesis 14:19 encontramos o segundo epíteto biblico que reconhece El como o antigo criador: “El
Elyon (Deus Altíssimo), o criador do céu e da terra”. No versículo anterior temos a forma abreviada
do título El Elyon (Deus Altissimo).
De acordo com (Jr., 1981, p. 82), este título pode ser entendido como:
“o deus elyon, criador…”, ou então “El o Altíssimo criador…”, ou ainda, “El Elyon, criador…”
(nome divino duplo de um tipo familiar ou cananeu).
Existem três inscrições extra-bíblicas citadas na mesma página, importantes para esta discussão:
“…[e diante de Hadad de Ha]lab (Allepo) e diante de sibit, e diante de El e Elyon, e diante de cé[u
e Terra, e diante de Ab]ismo e fontes, e diante de Dia e Noite…”
Aparecem vários deuses invocados para testemunharem um contrato que se registou no monumento
em questão. Estas divindades são enumeradas aos pares, como consortes.
O par El e Elyon vem logo após os deuses tutelares, é possivel interpretar este par como o nome duplo
de um único deus como aparece nos textos ugaritas.
No âmbito bíblico determinamos a identidade desse deus adorado em Jerusalém a partir da fórmula
litúrgica “criador do céu e da terra”. Já chegamos à conclusão que El era o deus criador em Canaã e
Ugarit.
Existe ainda a inscrição neo-púnica de Leptis Magna, que é posterior, encontrada em Karatepe no
oitavo século A.E.C, este título: “Él, criador da terra” (idem, p.84). Por fim podemos comparar epítetos
acadianos: bani shame u erseti, “senhor do céu e da terra” (Marduk); bel shame u erseti, “senhor do
céu e da terra” (Anu, Enlil, Marduk, Bhamash) (idem, p.84).
Sintetizando a informarção proveniente para o estudo deste epíteto deparamo-nos com algo
extremamente importante para o âmbito do estudo da “religião dos patriarcas”.
O deus Él cananita mencionado nos épicos de Kirta e Aqhat é o rei, o pai dos anos, o pai eterno, o
criador das criaturas, o touro, o bondoso e misericordioso. Guiou os destinos dos patriarcas ancestrais
destes épicos, revelou-se por intermédio de sonhos, protegeu.os e concedeu-lhes primogenitura
(Coogan, 2012, p. 78).
Este deus é o mesmo deus de Abraão, Isaque e Jacob, quando Melquisedeque, rei de Salém e sumo
sacerdote do deus El Elyon, abençoou Abraão, este aceitou a bênção (Génesis 14:18-20).
Para além deste episódio vários nomes próprios em Génesis 12-50 são formados com o nome “Él”
(Ismael, Israel, Betel, Penuel) e nenhum nome próprio nestes capítulos incluem a forma do nome
divino Javé, que é um elemento mais frequente nos nomes israelitas no primeiro milénio antes da era
comum.
Génesis preserva-nos assim a memória de um passado distante em que o deus de Abraão, Isaque e Jacó
era Él e não Javé.
Os autores de Génesis retratam o deus dos patriarcas como um entre muitos, notemos por exemplo as
instruções de Jacó para a sua familia em Génesis 35:2-4. Ao contrário dos reformadores tardios, Jacó
não destruiu as imagens dos outros deuses, ele simplesmente ordenou que fossem enterradas. Para que
a sua familia voltasse a adorar o deus cujo templo chamava-se “Casa de Él”174, de forma a que
pudessem ser recebidos.
Existe um episódio relevante nestas narrativas que endossa esta perspetiva em Génesis 31:53a, foi (Alt,
O Deus Paterno, 1929, p. 37) que chamou a atenção para esta passagem.
Tradução André Chouraqui175

“Os Elohîms de Abrahâm e os Elohîms de Nahor,


Os Elohîms dos pais deles julgarão entre nós.
Ia’acob jura pelo tremor do seu pai Is’hac”

João Ferreira de Almeira versão revisada 8ªImpressão:

“O Deus de Abraão e o Deus de naor, o Deus do pai deles, julgue entre nós.
E jurou Jacó pelo temor de seu pai Isaque.”

Nesta passagem Jacó e Labão celebram um acordo de acordo com os costumos antigos do seu tempo,
evocam o deus paterno, segundo Alt (1929), ou seja o deus dos seus antepassados como grupo.

174
Significado literal de Bétel
175
(Chouraqui, 1995, p. 334)
Muitas questões foram aqui levantadas e analisadas por Alt (1929), da minha perspestiva posso afirmar
que esta passagem demonstra a crença da religião patriarcal israelita que considerava o seu deus como
um entre muitos. O próprio (Alt, O Deus Paterno, 1929, p. 37) questionou-se:
“Este fecho da narração provocou, mais tarde grandes preocupações. Não seria um puro paganismo
o fato do genarca de Israel e um parente seu terem jurado perante duas divindades distintas?
Precisava-se abrandar uma afirmação tão capciosa mediante um adendo ou uma mudança textual.
O resultado, no entanto, das emendas lançadas com essa finalidade não foi sempre o mesmo”.
Alt refere que este extrato (Génesis 31:53) foi alterado e passou por várias mudanças textuais (idem,
p.38). Todas as tentativas de correção textual testemunham a antiguidade daquilo que o texto expressou
na sua forma original.
Ao afirmar que como Jacó fez, assim também Labão havia evocado uma divindade paterna que
derivava do seu antepassado.
Para cada uma das partes, estas divindades eram os seus deuses, outro episódio narrado em Génesis
46:1 contém formulações posteriores sobre este Deus Paterno. A caminho do Egito, em Berseba, Jacó
oferece um sacrificio “ao Deus do seu pai Isaque” (Génesis 46:1) e neste mesmo lugar recebe uma
revelação começando com estas palavras: “eu sou a divindade, o Deus de teu Pai”.
Em suma independentemente de ter existido um periodo patriarcal histórico, o livro de Génesis, retrata
os anscestrais de Israel a praticarem uma religião menos orientada para um espaço físico e mais
orientada para um clã. Estas atividades religiosas providenciaram um modelo para os seus
descendentes, o livro de Génesis usou as narrativas patriarcais para representar uma ideologia religiosa
especifica.
Esta ideologia capta e exige a nossa atenção (Sommer, 2009, p. 89), mesmo que seja um produto da
Idade do Ferro em vez de ser uma realidade da Idade do Bonze Tardia onde supostamente os patriarcas
teriam existido. Mesmo que reflita mais os valores de uma sociedade sedentarizada do que o estilo de
vida nómada, e mesmo que se tenha originado em Canaã e não no seu exterior. Estas memórias são
uma prova viva que existiram tradições anteriores ao monoteísmo, tradições estas extremamente
ligadas às tradições religiosas dos outros povos de Canaã.

4.3 A Transmutação de Javé com os elementos das várias divindades cananitas

Após esta análise feita à hipótese da Religião dos Patriarcas é necessário compreendermos e até
explicarmos como é que o culto de Javé se tornou preeminente no antigo Israel.
A tradição Eloísta e a sacerdotal identificaram o deus Javé que apareceu a Moisés com o deus de
Abraão, Isaque e Jacó (Exôdo 3:6).
Esta narrative harmoniza e uniformiza a temática da manifestação do divino nas sagas patriarcais, com
a manifestação do divino a partir da revelação do nome a Moisés.
Nesta seção iremos analisar as influências do deus cananita El absorvidas por Javé e aceites na Bíblia
Hebraica assim como as carateristicas que não foram aceites. Também iremos de analisar a apropriação
da imagem de Baal realizada pelos escribas à personagem de Javé.
Antes de relatarmos do ponto de vista histórico toda essa assimilação de atributos por parte de Javé, é
necessário referirmos a análise de Cross (Jr., 1981) quanto a esta questão.
O autor acredita que Javé era originalmente um nome cultural de El, e este deus Javé, numa
diferenciação do seu próprio culto separou-se de El, desalojando-o do seu lugar no concelho divino,
condenando à morte os antigos poderes (Jr., 1981, p. 91).
Vários materiais extra biblicos da época pré-exilica contém o nome YHWH isolado de outros títulos
(Jr., 1981, p. 88). Em Deuteronómio 32:6 temos a seguinte afirmação para Javé: “Não é ele o teu pai,
que te adquiriu, que te fez e estabeleceu?”,
Existem paralelos exatos para El na literatura ugarita: du yakaninu [], “aquele que cria…”, [‘i]l du
yaqniyu “[E]l que cria”176.
As versões mais longas destas formulas têm o elemento verbal “criar” que receve um objeto direto:
um deus, um conselho divino, o céu e a terra.
O autor suspeita que a palavra tseba’ot da fórmula alternativo yahwe tseba’ot oferece pelo menos um
destes objetos. Neste contexto tseba’ot provavelmente sifnifica “as hostes celestiais”, ou seja, os
bene’elim, “filhos de Deus” ou os “santos”.
Neste caso Javé é descrito como du yahwi tsaba’ot, “aquele que cria os exércitos (celestiais)” que é
um título de guerreiro divino e criador.
Citando Cross (Jr., 1981, p. 90):

“Não é portanto, tão diferente dos epítetos de El, a saber “pai dos deuses”, “criador das criaturas”.
Mais ainda, esse epíteto se presta a ser usado não simplesmente como formula da criação, mas
também como nome oportuno do deus que conduziu Israel em suas guerras históricas. O nome
seria então um element na assim chamada ideologia da guerra santa (herem) da liga antiga”.

176
Citado em Cross (Jr., 1981, p. 90)
Em termos históricos a crença religiosa refletida no corpo textual da Bíblia Hebraica nomes como El,
Elyon, Shadday e Olam continuaram a ser nomes apropriados para Javé. A popularidade do culto a El
nas comunidades semitas do Sinai, Egitp e Seir dá-nos uma certa plausibilidade à noção de que Javé,
era de facto uma manifestação de El (Jr., 1981, p. 91).
No século XIX este autor e Wellhausen acreditam que Javé era o mesmo deus que El, esta posição foi
argumentada por F.M. Cross (1973) e J.C. de Moor.
No entanto os argumentos apresentados por (Day, 2000) podem contrariar esta noção: Primeiramente
nos textos ugaritas o deus El é revelado como um ser todo benovelente por natureza. Enquanto Javé
tem um lado agressivo e ao mesmo tempo bondoso. A evidência mais antiga encontrada em Juizes 5:4-
5 associa Javé com as tempestades, algo que nunca estava associado a El, mas a Baal.
O autor ainda faz a seguinte afirmação (Day, 2000, p. 14):

“Thirdly, as for F.M. Cross’s view that Yahweh was originally a part of El’s cultic title, ‘El who
creates hosts’ (‘il du yawi saba’ot), this is pure speculation. The formula in question is nowhere
attested, whetter inside or outside the Bible. Cross’s reasons for thinking that Yhwh sb’t cannot
simply means ‘Lord of Hosts’ namely, that a proper name should not appear in the construct is
incorrect. Further, hyh (hwh) is not attested in Hebrew in the hiphil (‘cause to be’, ‘create’) though
this is the case in aramaic and syriac. Yahweh in any case more likely means ‘he is’ (qal) rather
than ‘he causes to be/creates (hiphil): to suppose otherwise requires emendation of the hebrew text
in Exod.3.14 (‘ehyeh, ‘I am’), which explains the name Yahweh. I conclude, therefore, that El and
Yahweh were originally distinct deities that became amalgamated.”

A Bíblia Hebraica não hesita em harmonizar e igualar Javé com El, algo que demarca uma forte
oposição a Baal. Isto leva-nos a crer que existe uma apreciação favorável aos atributos carateritisticos
de El.
El era a divindade suprema do panteão cananita, o deus criador, aquele que possui sabedoria, toda a
dimensão de El encaixa-se em Javé. Por outro lado Baal era um deus subordinado a El no panteão
cananita, considerado morto durante metade do ano no submundo. Isto dificilmente é compativel com
Javé que nunca dorme (Salmo 121:4).

Se Javé e El eram divindades distintas onde é que Javé se originou?

Javé não parece ser um deus cananita, ele não é mencionado nas listas do panteão ugarita. Muitos
académicos suportam a ideia que o culto de Javé teve as suas origens fora da terra de Israel, para sul
de Midiã (K.L.Sparks, 2007, pp. 604-605). Esta ideia é também suportada pela Bíblia Hebraica, basta
considerarmos as seguintes passagens: Juízes 4:4-5; Deuteronómio 33:2 e Habacuque 3:3-7. Tem
havido uma tendência de localizar o Monte Sinai e Kodesh no Noroeste Arábico (da Arábia) do que
peninsula do Sinai (Day, 2000, p. 15). Existem evidências arqueológicas para esta posição,
nomeadamente vestigios civilazionais na àrea de Heejaz no noroeste da Arábia (Midiã) na Idade do
Bronze Tardia/ Idade do Ferro. Em contraste com a ausência geral de tais evidências durante este
period na peninsula do Sinai. Também o epíteto “Javé de Teman” numa das inscrições achadas em
Kuntillet ‘Ajrud suportam esta teoria.

4.4 As influências de El na representação bíblica de Javé

4.4.1 Javé como Ancião

Nos textos ugaritas El é representado frequentemente pelo epíteto ‘ab snm “Pai de Anos”, conceito
reforçado pelo seu cabelo grisalho. Na Biblia Hebraica existem apenas três mênções aos “anos” de
Javé e em duas ele é chamado pelo nome de El.
A primeira está em Job 36:26 onde Eliú declara: “Eis que Deus é grande, e nós não o conhecemos, e
o número dos seus anos não se pode esquadrinhar”. Aqui Javé é representado como uma divindade
idosa. A segunda menção ocorre no salmo 102:24 onde o salmista ora: “Deus meu, (‘elî) não me leves
no meio dos meus dias, tu, cujos anos alcançam todas as gerações”.
Como notado pelo autor (Day, 2000, p. 18), o facto de Javé sera qui referido como “Deus meu”
(literalmente, “meu El”) é mais impressionante, sendo o único sitio em todo o salmo em que deus não
é tratado por Javé177.

177
Cf. Versículos 2,13,16,17,19,20,22,23
A terceira instância em que os “anos” de Javé são referidos também se encontra no livro de Job 10:5
quando este pergunta a Deus: “São os teus dias como os dias do homem? Ou são os teus anos como os
anos de um homem…”178.
Para além destas três referências especificas aos anos de Javé, existe ainda na Bíblia Hebraica o retrato
de um deus envelhecido na visão apocaliptica do profeta Daniel 7:9

“Eu continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e um ancião de dias se assentou; o seu
vestido era branco como a neve, e o cabelo da sua cabeça como lã puríssima; o seu trono era de
chamas de fogo, e as rodas dele eram fogo ardente”.

Este conceito também é apropriado de El, nesta visão ele é designado por “Ancião de Dias”, um termo
remeniscente de “Pai de Anos” e lêmos que o seu cabelo era branco como lã, imagem que nos relembra
os retratos de El nos textos ugaritas.
É também plausivel afirmar que a Bíblia Hebraica faz uma alusão a El como sendo um deus antigo em
Génesis 21:33. Aqui a divindade patriarchal em Beer-seba foi chamada de El-Olam, “El o Eterno”, o
que possivelmente significou na sua forma original “El, o Antigo” (Day, 2000, p. 19).

“Abraão plantou uma tamargueira em Beer-Seba, e invocou ali o nome do Senhor, o Deus Eterno”.
Génesis 21:33
Esta eternidade ou intemporalidade de deus evoca-nos a crença retratada no salmo 90:1-2:

“Senhor, tu tens sido o nosso refúgio de geração em geração. Antes que nascessem os montes, ou
que tivesses formado a terra e o mundo, sim de eternidade a eternidade tu és Deus”.

4.4.2 Javé como Sábio

Nos textos ugaritas o due El é notado especialmente pela sua sabedoria, na leitura de (Day, 2000, p.
19) as tradições de El como sábio estão por detrás do Éden. A sabedoria divina relaciona-se com a
história do primeiro homem em Génesis 3:5;6:22; Ezequiel 28:12.17 e Job 15:7-8.
Em Ezequiel 28 é enfatizada a sabedoria do Rei de Tiro nos versículos 2,3,4,5 e nesse mesmo contexto
ele considera ser deus (‘el). Na opinião de (Day, 2000) foi do deus El que a noção da sabedoria de Javé
foi apropriada.

178
Esta parte do texto insere-se na seção onde deus é chamado de ‘elôah, um termo relacionado em ‘el, e.g. em
Job 10:2
Seguiremos agora a linha de pensamento deste autor na sua leitura de Ezequiel 28:2-10, assumindo
claro está no âmbito deste trabalho vou investigar a tradição de uma crença e não a profundidade de
tradições interpretativas desta passagem.

Ezequiel 28:2-10 reflete tradições referentes a El?

Esta passagem de Ezequiel é um oráculo de julgamento contra o rei de Tiro, Ittobaal II. Por causa de
ele querer ser como deus, será lançado no submundo. Vários debates têm sido realizados para apurar
a influência de tradições do deus El neste oráculo, estes são alguns dos pontos apresentados pelo autor:
(1) O nome usado para deus em Ezequiel 28:2179 e 9 é El (‘el), encontramos isto apenas mais uma
vez no livro de Ezequiel em Ezequiel 10:5 (El- Shaddai)180.
(2) Ao dizer “eu sou El (deus)”, o rei de tiro declara: “na cadeira dos deuses eu me assento, no
meio dos mares”181 . Isto é sugestivo para El, cujo a sua habitação de acordo com os textos
ugaritas é "at the source of rivers, in the midst of the double deep”182. Apesar da localização de
Tiro ser “no coração dos mares” (Ezequiel 27:4;32) a associação disto com o “trono de Deus”
reflete El.
(3) A divindade associa-se especialmente à sabedoria: “Com efeito és mais sábio que Daniel; não
há segredo que se possa seconder de ti”183. “Pois que consideras o teu coração como se fora o
coração de um deus”184. El em Ugarit é reconhecido por ser particularmente sábio, a
combinação destes traços criam um bom caso para vermos as tradições de El refletidas aqui.
No Segundo oráculo em Ezequiel 28:12-19 aparece o mesmo tema que no primeiro oráculo: o conceito
que o rei tem da sua sabedoria exalta-o e leva-o à expulsão (ou queda).
El nos textos ugaritas habita numa montanha que é a fonte dos rios, existe uma refência às àguas no
primeiro oráculo, mas não se mencionam montanhas.
No segundo oráculo já é referida a montanha de Deus185, Ezequiel 28:12-19 é uma variante da história
do jardim do Éden em Génesis 2-3, temos vários elementos narrativos para chegarmos a esta
conclusão: referências ao Éden, querubim e a expulsão do homem em ambos os casos.

179
Duas vezes
180
Comparar também o salmo 82:1, Job 36:36 e Salmo 102:25-28 que são outros lugares na Bíblia Hebraica
onde o nome El (‘el) é usado para Deus em associação com ideias que pertencem a El nos textos ugaritas
(assembleia divina, divindade idosa e criação).
181
Cadeira dos deuses (mosab ‘elohîm) em Ezequiel 28:2
182
Citado em (Day, 2000, p. 27)
183
Versículo 8
184
Versículo 6
185
Ezequiel 28:14, 16)
Em Génesis 2:10-14 o jardim de deus é a fonte de rios, nenhuma menção disto é feita em Ezequiel
28:12-4, mas há claras referências à natureza abundante de àguas da habitação divina em Ezequiel
28:2.
Para nos aprofundarmos um pouco mais na crença histórica da antiguidade relative à habitação do deus
cananita El, temos que nos voltar para raízes do relato do Éden.
Apesar de hoje para o leitor modern, o jardim do Éden não ser um lugar literal, para os antigos este
lugar tinha indicações geográficas específicas.

Génesis 2:10:14 (Chouraqui, 1995, p. 52) Génesis 2:10-14 (Almeida, 1992,6)

Um rio corre do ‘Éden para regar o jardim. E saía um rio do Éden para regar
De lá ele se separa: em quatro fontes. o jardim; e dali se dividia e se
Nome de um, Pishôn, que contorna tornava em quatro braços.
Toda a terra de Havilla, O nome do primeiro é Pisom: este é
Lá onde há ouro. o que rodeia toda a terra de Havilá,
O ouro dessa terra é bom onde há ouro;
e lá se encontram obdélio e a pedra e o ouro dessa terra é bom: ali há
de ônix. obdélio e a pedra de berilo.
Nome do segundo rio: Guihôn, O nome do segundo rio é Giom: este
que contorna toda a terra de Koush. é o que rodria toda a terra de Cuche.
Nome do terceiro rio: Hidèqél O nome do terceiro rio é Tigre: este
que segue a levante de Ashour. é o que corre pelo Oriente da Assíria.
O quarto rio é o Perat. E o quarto rio é o Eufrates.

O detalhe desta descrição refuta a tese de autores como C. Westermann, que defendem que os autores
do texto nao tinham uma localização geográfica em mente. Claro está que estamos a referir-nos a uma
geografia da antiguidade, muito menos precisa que a nossa e revestida de certos aspetos míticos e
simbólicos.
A localização do Éden na fonte dos rios Tigre e Eufrates sugere duas possibilidades de acordo com
(Day, 2000, p. 29): A Arménia (no seu limite ocidental) ou o Golfo Pérsico (no seu limite oriental).
Podemos tirar algumas considerações importantes que nos levam a localizar a localização mítica do
Éden na Arménia.
Como Albright (1922,18) afirmou o rio que fluía do Éden dividiu-se em quarto fontes ele escreveu:

“Like Assyr Res Nâri, and eg. Rs Heb. Râsîm refers solely to the headwaters of a river and even
the Hebrew scribes never went so far as to picture a river running upstream to its source”

Como já foi referido em Ezequiel 28:13-14 e 16 o Éden localiza-se numa montanha, isto não se encaixa
no Golfo Pérsico mas torna-se coeso com as regiões montanhosas da Arménia.
Que Giom e Pisom não podem hoje ser localizados com precisão geográfica é irrelevante para o nosso
propósito, isto porque estamos a estudar a história desta crença e não se a crença é verídica ou não.
Isto acavo por ser uma geografia arcaiva, o rio Giom que rodeia toda a terra de Cuche186 denota o rio
Nilo como está referido: “É ela que derrama a ciência como o Nilo, como o Geon no tempo da vindima”
(Eclesiástico 24:27) e Jeremias 2:18.
Cuche representa normalmente a Núbia, Pisom representa possivelmente os Indus (Day, 2000, p. 30),
dois registos históricos poderão ser um auxilio esclarecedor para nós, citados em (Day, 2000, p. 30):

Note that Pausanias, description of Greece 2.5.3 reports the ‘story that the Nile is the Euphrates,
which disappears, into a march, rises again beyond Ethiopia and becomes the Nile’, and Arriah
(Anabasis Alexandria 6.1.1.2-6) records that alexander the Great at girst thought that the Indus
was the upper course of the Nile (cf. Strabo, Geography 15.1.25)

Digno de nota é ainda sabermos que de acordo com Génesis 8:4, a arca de Noé aterrou numa das
montanhas da Arménia, mais concretamente Ararat; i.e. Urartu. Na versão do dilúvio mesopotâmica
o herói do dilúvio foi trasladado para o paraíso depois de ter aterrado a arca (Épico de Gilgamesh,
tábua 11, linhas 194-97). Quando este herói utnapishtim esteve em Pî Nârâti, “a boca dos rios” (tábua
11, linhas 194-97) é natural supormos que isto é a fonte armeniana dos rios Trigre e Eufrates.
Isto também é coerente com o facto de que em Gilgamesh, o herói do dilúvio, na sua busca do
Utnapishtim, atravessa o monte Mashu que é o monte Masios na Arménia – o tunél escuro que ele
atravessa termina no rio Tigre (Day, 2000, p. 30).
Existem evidências que o lugar de habitaçãpo do supremo deus cananita El, localizava-se na fonte do
rio Eufrates. No mito hitita-cananita Elkurnisa187 vive numa tenda situada na fonte do rio Mala
(Eufrates). Isto também poderá ser na Arménia uma vez que El nos textos ugaritas habita
especificamente numa montanha.
Em suma a tese defendida por (Day, 2000) afirma que o jardim do Éden deriva do lugar da habitação
de El. Temos ainda um pequeno fragment do mito do Paraíso em Job 15:7-8

“Foste porventura, o primeiro homem que nasceu, e vieste ao mundo antes das Colinas?
Acaso foste admitido ao conselho de Deus, e te apropriaste da sabedoria?”

186
Génesis 2:13
187
Elkurnisa significa El, o criador da terra
O primeiro lugar de habitação do homem é o “conselho de Deus”, o concilio divino é formado pela
Assembleia dos filhos de El, que está localizada na montanha de El de acordo com os textos ugaritas.
A ênfase atribuida ao tema da sabedoria é notória nas menções ao Paraíso, o que sugere também El
por ser reconhecido pela sua sabedoria188. Por fim a associação do Éden com a criação está em
consonância com El, o deus criador, um dos rios do Éden chama-se Giom. O mesmo nome que de
acordo com o salmo 46:5 é a mesma fonte que flui na Jerusalém da Bíblia Hebraica.

“Há um rio cujos afluentes alegram a cidade de Deus, o lar santo de ‘Elyon – Deus está na cidade.”
(Stern, 2010, p. 862)
“Um rio! Os seus canais alegram a cidade de Deus a mais santa entre as moradas do Altissímo”

4.4.3 Os Filhos de El

Na Bíblia Hebraica aparece o conceito de que Javé tem uma Assembleia Divina (Corte Celestial); de
filhos de Deus. É com este termo que são referidos (benê na’elohîm, Génesis 6:2; 4; Job 1:6; 2:2, ou
benê ‘elohîm, Job 38:7), os “filhos dos deuses” (benê’elîm, salmo 29:1; 89:7 [6]), ou os “filhos do
Altíssimo” (benê ‘elyôn, salmo 82:6).
Existe um debate sobre se devia ler-se “filhos de Deus” (benê ‘elohîm) para “filhos de Israel” em
Deuteronómio 32:8 (Day, 2000, pp. 22-23).
Á parte de referências isoladas da Assembleia divina na montanha sagrada em Isaías 14:13 e a
sabedoria personificada em Ben Sirac 24:2, as outras referências são mais gerais 189.
Assim como um rei humano era suportado por corte, Javé como rei também tinha a sua corte,
originalmente eram deuses, mas quando o monoteísmo se tornou absoluto foram demovidos para o
estatuto de anjos.

4.5 As Influências de Baal na representação bíblica de Javé

Nesta seção faremos uma breve menção a um tema comum entre Baal e Javé, concretamente o tema
mitológico da bataha contra o monstro marinho. Podemos aferir que várias elementos mitológicos de
Baal foram empregues nas narrativas dedicadas a Javé ao longo da Bíblia Hebraica.

188
Génesis 3:6; 22; Job 15:8; Ezequiel 28:12; 12
189
Zacarias 1:10-11; 3:7; 14:5; Salmo 89:6-8; Daniel 4:14; 7:10,21,25,27; 8:10-13; cf. Job 1:6;2:2; 38:7 e
Salmos 29:1; 89:7.
Como primeiro exemplo podemos mencionar o salmo 29:

“Tributai ao Senhor, ó filhos dos deuses,


Tributai ao Senhor honra e glória.
Tributai ao Senhor a glória do Seu nome,
prostrai-vos diante d’Ele no splendor sagrado
A voz do Senhor ressoa sobre as águas.
o Deus da glória impera aos trovões,
o Senhor, sobre as águas numerosas:
a voz do Senhor com poder,
a voz do senhor com majestade;
a voz do senhor fende os cedros,
o Senhor quebra os cedros do Líbano;
faz faltar o Líbano como um novilho,
e o Sirião como um antílope.
A voz do Senhor despede relâmpagos;
a voz do senhor abala o deserto,
o Senhor faz tremer o deserto de Cades.
A voz do senhor contorce os carvalhos,
Despe os bosques.
No Seu santuário todos exclamam: Glória!
O senhor sentou-se em cima do dilúvio,
e estabeleceu-se como rei eterno.
O Senhor dá poder ao seu povo
e o abençoa com a paz.”

Este salmo está relacionado com a realeza de Javé190, ele manifesta o seu poder como rei nos trovões
assim como Baal também representa a sua voz por trovões. Neste salmo Javé domina as águas
cósmicas191e exalta-se sobre os deuses (“filhos dos deuses”) da assembleia divina192. Estes temas são
apropriados da mitologia de Baal (Day, 2000, p. 96), primeiramente temos o uso linguistico no salmo
de sete trovões. A divindade manifesta-se sete vezes por meio trovões algo que é mencionado nos
textos de Baal193:

Sb’t. brqm. [[.t]] Seven lightnings…


Tmnt. ‘isr r’t. ‘s. brq. Y [] Eight storehouses of thunder. The shaft of lightning…

190
Versículo 10
191
Versículo 3 e 10
192
Versículo 1
193
Citados em (Day, 2000, p. 96)
Pelo que entendemos dos textos a referência aos sete trovões de Baal assim como os relâmpagos194
têm paralelos com o salmo 29. De acordo com o autor (Day, 2000, p. 97) existe ainda outro factor
decisivo para estabelecermos este paralelismo, antes da referência aos trovões e relâmpagos de Baal
lê-se no relato mítico um episódio de entronização:

“Baal sits enthroned, like the sitting of a mountain, Hadad [ ] like the flood, in the midst of his
mountain, the god of Zaphon in the [midst of] mountain of victory’

Assim como no salmo 29:10 “o senhor sentou-se em cima do dilúvio, e estabeleceu-se como rei
eterno”, podemos concluir com esta análise que o salmo 29 terá sido provavelmente uma composição
israelita. Modelada e influenciada grandemente pela linguagem utilizada pelos cananitas acerta de Baal
(Day, 2000, p. 98).

4.5.1 O Conflito de Baal com o Dragão e o Mar

O conflito de Baal com o dragão e o mar é o tema apropriado pelos escribas da Bíblia Hebraica,
empregue a Javé. Muitas das vezes o mito está associado à criação do mundo, noutras o dragão ou o
mar são historicizados, no sentido de aludirem a nações hostis a Israel. Ocasionalmente a imagem deste
mito é empregue em termos escatológicos, referindo-se a uma potência hostil no final dos tempos.
Várias das referências ao conflito de Javé com o dragão e o mar situam-se no momento da criação e
ocorrem nos salmos. Tanto os salmos 74:12-17 e 89:10-15 descrevem Javé a derrotar o dragão (Leviatã
e Raabe). Noutras passagens Javé é descrito a controlar as águas do caos, temos em especial o relato
da criação redigido pela fonte sacerdotal (Génesis 1:2, 6-10) e outras passagens como o salmo 33:7-8;
Provérbios 8:24, 27-29; Jeremias 5:22 e 31:35. Alguns autores (Day, 2000, p. 100) referem que estas
passagens representam uma demitologização do conflito divino com o dragão e o mar. Esta batalha

Salmo 104 Génesis 1

1-4 Criação do céu e da terra Cf. 1-5


5-9 Águas empurradas para trás Cf. 6-10
10-13 Águas disponibilizadas para todos Implicito em 6-10
14-18 Criação da Vegetação Cf. 11-12
19-23 Criação das Luminárias Cf. 14-18
24-26 Criação das criaturas marinhas Cf. 20-22
27-30 Criação das criaturas vivas Cf.24-31

194
Cf. Habacuque 3:9
passou a ser apenas um trabalho divino, a odrdem da criação em Génesis 1 é a mesma que a do salmo
104.

Na análise de (Day, 2000, p. 101) o relato de Génesis 1 depende do salmo 104 por vários motivos:
primeiramente porque o salmo é mais mitológico, menciona uma batalha com as águas (v.6-9) e refere-
se a Leviatã (v.26). Enquanto o capítulo 1 de Génesis menciona o controlo do de Deus sobre as àguas
(v.6-19) e fala de grandes mosntros marinhos (v.26). Percebemos que ocorreu aqui um processo de
desmitologização, este processo está tambem presente no livro do profeta Óseias e no livro de Daniel.
A imagem da ressureição que encontramos em Daniel 12:2 é uma reeleitura de Isaías 26:19, referindo-
se à restauração da nação após o exilio em vez do sentido literal da vida após a morte (Day, 2000, p.
116). A própria passagem de Isaías 26:19 depende literariamente das imagens da morte e ressurreição
no livro de Óseias, especialmente Óseias 13:14. Este tema em Óseias195 refere-se de igual modo ao
exilio e restauração da nação e foi tirado diretamente pelo profeta da imagem da morte e ressurreição
do deus da fertilidade Baal (Gowan, 1998, pp. 44-45).
Os capítulos de Óseias mencionados na nota de rodapé nº98 aludem à morte e ressurreição de Israel,
podemos supor historicamente que esta imagem foi tirada do culto de fertilidade de Baal.
“Efraim…se fez culpado no tocante a Baal e morreu.” (Óseias 13:1), para Óseias não é Baal que more
e desperta, mas é Israel que more por adorer Baal, seguindo-se depois a sua ressurreição caso se
arrependa. Noutro versículo “Conheçamos, e prossigamos em conhecer ao Senhor; a sua saída, como
a alva, é certa; e ele a nós virá como a chuva, como a chuva serôdia que rega a terra.” (Óseias 6:3), a
ressurreição israelita é associada à chuva e em Óseias 14:6 tambem é mencionado o orvalho como
aquele que trás a fertilidade renovada para Israel.
O paralelismo com o mito ugarita de Baal é bastante latente, no mito lê-se que Baal tomou a chuva e
duas deusas do orvalho quando foi para o submundo, o texto implica que estas iriam reaparecer quando
ele ressuscitasse (Day, 2000, p. 120).
Podemos assim constatar que Javé assumiu muitos dos traços literários de Baal esta realidade revela a
dinâmica dos escribas hebreus em adaptarem tradições cananitas à sua perceção do divino.

195
Capítulos 5-6 e 13-14
5. Conclusão

Ao longo deste trabalho desbravamos um extenso terreno de complexidades e âmbitos bastante


abrangentes. De forma sintetizada tentou-se esboçar um percurso através de várias fontes históricas
tendo como alvo reconstituir a historiografia da religião bíblica desde a sua génese ao seu
desenvolvimento.
Quando falamos em religião bíblica, falamos no conflito contínuo entre as várias perceções e
questionamentos do ser humano em relação ao divino. Este conflito presente nas escrituras foi
configurador das imagens do divino e do humano ao longo dos tempos bíblicos. A história de Israel é
a história da fé hebraica, e ambas partem ou remetem-nos sempre ao mesmo espaço, que é o espaço
do mundo bíblico.
A reflexão histórica acerca da história do Judaísmo nunca dará respostas definitivas às perguntas que
coloca.
A história da religião não responde definitivamente às problemáticas que levanta, contudo ajuda a
responder e de certa forma coloca outras questões. No apuraramento dos resultados deste trabalho em
termos de reflexão, podemos colocar a seguinte questão: poderá alguém sumarizar a religião bíblica
de modo a organizar as suas diversas tradições?
A Bíblia Hebraica é das antalogias de textos sagrados, a mais assistemática de todas, representado mil
anos de desenvolvimento textual a partir de diversas áreas e diferentes grupos sociais e religiosos.
Ao abordar as fontes escritas a partir da tradição oral e da caracterização do mundo dos escribas, de
certa forma abri caminhos para o entendimento da produção narrativa-teológica das grandes teologias
presentes nas escrituras. Apesar de termos caraterizado estas correntes teológicas em diferentes
aspetos, uma certa névoa de mistério continua a envolver estes textos.
Esta névoa é o próprio olhar humano sobre estas questões, foi o olhar dos escribas e as vozes do
passado que nos deixaram aquilo que poderemos chamar fé judaica.
Mas o que é a fé bíblica? Qual a sua origem? Não temos respostas para esta procura, a história do
judaísmo é a história de uma memória e a história de como esta memória foi vista e interpretada por
homens ao longo dos tempos.
Desde aos escribas da Bíblia aos rabis intérpretes e criadores de tradições orais, esta memória
permanece viva, transcendendo o espaço e o tempo.
A fé bíblica começou por ser uma confiança absoluta no libertador do povo israelita, tardiamente este
conceito transmutou-se na fé como a autenticidade do registo textual da revelação do passado.
A memória é a revelação que manteve o povo judeu vivo e estimulou o judaísmo, a crença dos judeus,
da sua identidade.
Os profetas retratados na Bíblia lutaram com a fé constantemente, especialmente com a fé no facto de
eles serem profetas inspirados por Deus e não falsos profetas. Esta luta também retratada pelos
israelitas como o povo escolhido que ao longo da narrativa sofre várias fatalidades e luta com a fé.
É no livro de Salmos e na teologia Deuteronomista, que econtramos as bases transformadoras da fé
bíblica, o judaísmo, na religião do livro.
Surgiu na história um novo tipo de religiosidade individual, o “eu que acredita”, unido na sua devoção
à única divindade.
Este exemplo ilustrado na ideia da centralidade da Torá é como uma partícula de luz no núcleo da
história do judaísmo.
O salmo 119 é o mais longo das escrituras hebraicas e é um “salmo-torá” o seu propósito é exaltar a
Torá acima de tudo, orando por iluminação pela Torá existindo nela. Ideologicamente este salmo
encontra as suas raízes em Deuteronómio, sendo este o único livro do Pentateuco que requer que o
judeu medite na Torá, recordando-a e ensinando-a, todas estas atividades são a preocupação central
deste salmo.
O papel da memória, do recordar e por fim o meditar na torá são os três traços preponderantes da
história do judaísmo.
Todos os escribas dependeram da memória e da recordação, readaptando as tradições dos seus
antepassados pela sua meditação na torá e no ambiente que os rodeava.
Podemos assim afirmar que a história do judaísmo é a história dos escribas hebreus, a história das suas
memórias e das suas meditações.
Referências Bibliográficas

Aharoni, Y. (1979). The Land of the Bible. Philadelphia, Pennsylvania: The Westminster Press.

Aharoni, Y., Avi-Yonah, M., Rainey, A. F., & Safrai, Z. (1998). Atlas Bíblico. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
das Assembleias de Deus.

Alster, B. (1997). Proverbs of Ancient Summer: The World's Earliest Proverb Collections. Bethesda: CDL Press.

Alt, A. (1929). O Deus Paterno. Em E. S. Ed., Deus no Antigo Testamento (pp. 33-71). São Paulo: Associação
de Seminários Teológicos Evangélicos.

Alt, A. (1981). O Deus Paterno. Em G. Gerstenberger, Deus no Antigo Testamento (pp. 31-73). São Paulo:
Associação de Seminário Teológicos Evangélicos.

Armstrong, K. (2007). The Bible. London: Atlantic Books.

Assman, J. (2006). Religion and Cultural Memory: Ten Studies. Palo Alto: Stanford University Press.

Bailey, L. R. (22 de Abril de 2016). "The P Source". in The Oxford Study Bible. Obtido de Oxford Biblical Studies
Online: http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/book/obso-9780195290004/obso-
9780195290004-div1-92

Bailey, L. R. (20 de Abril de 2016). The Oxford Study Bible. Obtido de Oxford Biblical Studies Online:
http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/book/obso-9780195290004/obso-9780195290004-
div1-91

Barker, M. (2004). Temple Theology. London: SPCK.

Beaulieu, P.-A. (2000). The Descendants of Sîn-lequi-unninni. Em J. Marzahn, & H. Neuman, Assyriologica et
Semitica (pp. 1-16). Munster: AOAT.

Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford
University Press.

Chouraqui, A. (1995). A Bíblia No Princípio (Gênesis). Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA LTDA.

Clark, W. (2006). Academic Charisma and the Origins of the Research University. Chicago: University of
Chicago Press.

Coogan, M. D. (2012). A Brief Introduction To The Old Testament Third Edition. New York: Oxford University
Press.

Crawford, H. (2015). Ur. London: Bloomsbury Academic.

Cross, F. M. (1973). Canaanite Myth and Hebrew Epic. Londres: Cambridge University Press.

Cross, F. M. (2000). From Epic to Canon: History and Literature in Ancient Israel. Baltimore : John Hopkins
University Press.

Cross, F. M., & Talmon, S. (1975). Qumran and the History of Biblical Text. London: Harvard University Press.

Curtis, A. (2007). Oxford Bible Atlas Fourth Edition. New York: Oxford University Press.

Davidson, R. M. (2007). Flame of Yhaweh: Sexuality in the Old Testament. Massachusetts: Hendrickson
Publishers.
Day, J. (2000). Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan. New York: Sheffield Academic Press.

Dever, W. G. (15 de Janeiro de 2016). Religion and Cult, Bronze and Iron Age. Obtido em 15 de Janeiro de
2016, de Oxford Biblical Studies Online:
http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/opr7t393/e124

Ed., F. S., & Barton, J. (2010). Religious Diversity in Ancient Israel and Judah. New York: T&T Clark
International.

Fox, M. V. (2009). Proverbs 10-31. New Haven & London: Yale University Press.

Friedman, R. (1997). Who Wrote The Bible? New York: HarperCollins Publishers.

Gardiner, A. H. (1938). The House of Life. Journal of Egyptian Archeology, 157-179.

Geller, S. A. (15 de Janeiro de 2016). The Religion or the Bible in The Jewish Study Bible. Obtido de Oxford
Biblical Studies: http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/book/obso-9780195297515/obso-
9780195297515-chapter-55

Golden, J. M. (2009). Ancient Canaan & Israel. New York: Oxford University Press.

Gottwald, N. K. (1988). Introdução Sócioliterária à Biblia Hebraica. São Paulo: Paulinas.

Gowan, D. E. (1998). Theology of the Prophetic Books . Kentucky: Westminster John Knox Press.

Hess, R. S. (2009). Questions of Reading and Writing in Ancient Israel. Bulletin for Biblical Research, 1-9.

Janseen, R. M. (1990). Growing Up in Ancient Egypt. London: The Rubicon Press.

Jones, C. A., & Ryan, J. D. (2007). Encyclopedia of Hinduism. New York: Infobase Publishing .

Jr., F. M. (1981). Javé e os Deuses dos Patriarcas. Em G. G. Ed., Deus no Antigo Testamento (pp. 75-102). São
Paulo: Associação de Seminários Teológicos Evangélicos .

K.L.Sparks. (2007). Religion, Identity and the Origins of Ancient Israel. Religion Compass, 587-614.

Lewis, T. J. (15 de Janeiro de 2016). Oxford Biblical Studies. Obtido em 15 de Janeiro de 2015, de Oxford
Biblical Studies: http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/oprt/t120/e0357

Lichtheim, M. (1973-80). Ancient Egyptian Literature, 3 vols. Berkeley: University of California Press.

Macdonald, M. C. (2005). Literacy in an Oral Environment. Em P. Bienkowski, C. Mee, & E. Slater, Writing and
Ancient Near Eastern Society (pp. 49-119). New York: t&t Clark International.

Meshe, Z. (04 de 03 de 2016). Oxford Encyclopedia of Archaeology in the Near East. Obtido de Oxford Biblical
Studies: http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/opr/t256/e605

Meshel, Z. (05 de 03 de 2016). The Oxford Encyclopedia of Archaeology in the Near East. Obtido de Oxford
Biblical Studies Online: http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/opr/t256/e605

Mettinger, T. N. (1971). Solomonic State Officials: A Study of the Civil Government Officials of the Israelite
Monarchy. Michigan: Gleerup.

Morrow, W. S. (2000). Mesopotamian Scribal Techniques and Deuteronomic Composition: Notes on


Deuteronomy and the Hermeneutics of Legal Innovation. Em E. Otto, M. Arneth, & R. Achenbach,
Zeitschrift fur die altorientalische Rechtsgeschichte (pp. 302-313). Wiesbaden Taunusstrasse:
Harrassowitz .
Neusner, J. (2004). The Idea of History in Rabbinic Judaism. Boston: Koninklijke Brill NV.

Nieher, H. (2010). 'Israelite' Religion AND 'Cananite' Religion . Em C. F. Ed., & J. Barton, Religious Diversity in
Ancient Israel and Judah (pp. 23-36). New York: T&T Clark International.

Noth, M. (1981). The Deuteronomistic History. Sheffield: JSOT Press.

Parkinson, R. B. (1997). The Tale of Sinuhne and Other Ancient Egyptian Poems 1940-1640 BC. Oxford:
Clarendon.

Raymond F. Person, J. (1998). The Ancient Israelite Scribe As Performer. Journal of Biblical Literature, 601-
609.

Rendtorff, R. (1997). The Problem of The Process of Transmission in the Pentateuch. Shedfield: JSOT Press .

Ricoeur, P. (2009). A Crítica e a Convicção. Lisboa: Edições 70.

Robson, E. (2001). The Tablet House: A Scribal School in Old Babylon Nippur. RA 95, 39-66.

Rogerson, J., & Davies, P. (2007). The Old Testament World. New York: T & T Clark.

Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence. BASOR, 47-
74.

Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence . BASOR, 47-
47.

Schniedewind, W. M. (2004). How the Bible Became a Book: The Textualization of Ancient Israel. Cambridge:
Cambridge University Press.

Seters, J. v. (1983). In Search of History. Historiography in the Ancient World and the Origins of Biblical
History. London: New Haven and London.

Seters, J. V. (2007). Author or Redactor? The Journal of Hebrew Scriptures, 1-22.

Seters, J. V. (2011). The Oxford History of Historical Writing. Pxford: Oxford University Press.

Shreiner, J. (2004). Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica.

Smith, J. Z. (1978). Map is Not Territory. Chigaco: University of Chicago Press.

Smith, M. (September de 1952). The Common Theology of the Ancient near East. Journal of Biblical
Literature, 71, 135-147. Obtido em 01 de 08 de 2010, de http://www.jstor.org/stable/3261800

Smith, M. (1952). The Common Theology of the Ancient near East. Journal of Biblical Literature, 135-147.

Smith, M. S. (1991). The Levitical Compilation of the Psalter. ZAW, 258-263.

Smith, M. S. (2003). Astral Religion And The Representation of Divinity. Em S. Noegel, J. Walker, & B.
Wheller, Prayer, Aramaic, And The Stars In The Ancient And Late Antique World (pp. 187-206).
University Park: Pennsylvania State University Press.

Smith, M. S. (2011). The Blessing God and Goddess: A Longitudinal View from Ugarit to "Yahweh and...his
Asherah" at Kuntillet 'Ajrud. Em G. E. ed., & B. Scheuer, Enigmas and Images (pp. 213-226). Winona
Lake: Eisenbrauns.

Smith, M. S. (2015). The Three Bodies of God in the Hebrew Bible. Journal of Biblical Literature, 471-488.
Soggin, J. A. (1997). Nueva Historial de Israel. Bilbao: Editoral Desclée de Brouwer, S.A.

Soll, W. M. (1988). Babylonian and Biblical Acrostics. Biblica, 305-323.

Sommer, B. D. (2009). The Bodies of God and the World of Ancient Israel. New York: Cambridge University
Press.

Stavrakopoulou, F. (2010). 'POPULAR' RELIGION AND 'OFFICIAL' RELIGION. Em .. F. Ed, & J. Barton, Religious
Diversity in Ancient Israel and Judah (pp. 37-58). New York: T&T Clark International.

Stern, D. H. (2010). Bíblia Judaica Completa. São Paulo: Vida.

Stuckey, J. H. (2003). The Great Goddesses Of The Levant. JSSEA , 127-157.

Tigay, J. H. (1982). The Evolution of the Gilgamesh Epic. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.

Tinney, S. (1999). On the Curricular Setting of Sumerian Kiterature. Iraque 61, 159-172.

Toorn, K. V. (1997). The Iconic Book: Analogies between the Babylonian Cult of Images and the Veneration of
the Torah. Em K. V. Toorn, The Image and the Book: Iconic Cults, Aniconism, and the Rise of Book
Religion In Israel and the Ancient Near East (pp. 229-48). Peeters: Leuven.

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University
Press.

Tygay, J. (1985). Conflation as a Redactional Technique. Em J. Tygay, Empirical Models for Biblical Criticism
(pp. 61-83). Philadelphia: University of Pennsylvania Press.

Ulrich, E. (1999). The Dead Sea Scrolls and the Origins of the Bible. Michigan: Leiden: Brill.

Walton, J. H. (1989). Ancient Israelite Literature in its Cultural Context. Grand Rapids, Michigan: Zondervan
Publishing House.

Wellhausen, J. (1957). Prolegomena to the History of Israel. New York: Meridian Books.

Williams, R. J. (1972). Scribal Training in Ancient Egypt. JAOS , 214-221.

Williams, R. J. (1990). The Sage in Egyptian Literature. Em J. G. Gammie, & L. G. Perdue, The Sage in Israel
and the Ancient Near East (pp. 19-30). Winona Lake: IN: Eisenbrauns.

Wolff, H. W. (2007). Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Magnos.

Wright, J. E. (2000). The Early History of Heaven. New York: Oxford University Press.
Anexo 1
Os simbolismos de Javé e do seu culto na Bíblia Hebraica

De forma breve e sintetizada iremos apenas explorar os traços do culto astral e a influência de certas
divindades astrais com o culto de Javé.
Os relatos bíblicos mencionam locais de culto, associados ao culto solar isto por causa da sua
nomenclatura: Zeth-Shemesh (casa do solo) na fronteira norte de Judá (Josué 15:10) que foi entregue
aos levitas (Josué 21 e 1 Crónicas 6:44).
Ir- Shemesh (cidade do sol) dada a Dã (Josué 19:41) e Har-Heres (montanha do sol) em Juízes 1:35,
En-Shemesh (primavera do sol) em Judá na fronteira com Benjamim em Juízes 15:7; 18:17. Por fim
Timanth Heres (porção do sol) em Efraim, Juízes 2:9 onde Josué foi sepultado. A palavra sol (heres)
foi distorcida para ‘Jezrah’ para evitar alusões politeístas (Day, 2000, p. 158).
Foram encontradas duas peças arqueológicas que evidenciam o uso do Sol no culto de Javé (Day,
2000, p. 153), estes achados associam-se ao relato de 2 Reis 23:11.
É importante esclarecer que a adoração do Sol em Israel enquadrava-se na adoração da hoste celestial
e não propriamente na associação da Javé como o sol.
O sol fazia parte da hoste celestial (Job 38:7) este culto estava presente no templo e foi aceitável até
às reformas religiosas descritas em 2 Reis 23:5,11 e Ezequiel 8:16. Este culto não era incompatível
com o Javismo (Day, 2000, p. 158), a lua e a hoste celestial também eram adorados na religião de
Manassés que Josias removeu (2 Reis 21:3; cf. 23:5).
O sol e a lua eram neste contexto considerados subordinados a Javé, sendo pertencentes da hoste
celeste (Day, 2000, p. 158).
Relativamente ao culto lunar todas as passagens referentes ao culto lunar são na sua maioria
deuteronomistas (Deuteronómio 4:19; 17:3; 2 Reis 23:5 e Jeremias 8:2). A passagem que não provem
desta fonte literária está em Job 31:26, a adoração à lua ocorre também dentro do contexto da hoste
celestial (2 Reis 21:3-5; Zacarias 1:5) um nome que testifica o culto lunar é Beth – Yerah (=Kirbet
Kerak) conhecido por fontes rabínicas (b.bek. 55a e Génesis Rabba 94:9 e 98:16) (Day, 2000, p. 163).
Vários salmos reconhecem a existência de outros deuses no céu, apesar de todos serem submissos a
Javé (Wright, 2000, pp. 63-64).

“Os céus celebram as vossas maravilhas, Senhor


e a vossa fidelidade na assembleia dos santos.
Quem poderá nos céus comparar-se ao Senhor,
quem, entre os filhos dos deuses, poderá igualar-se-lhe?
Deus é temível na assembleia dos santos.
Grande terrível sob quantos o rodeiam.
Senhor, Deus dos exércitos, quem é como vós?
Sois poderoso, ó Deus, e a vossa fidelidqade nos circunda!”
Salmo 89:6-9

O paralelismo por todo o salmo 89 implica a identidade dos “filhos dos deuses”, o salmista pergunta
se entre estes seres poderemos encontrar um deus igual a Javé. Noutro salmo os autores colocaram o
sol, a lua e as estrelas entre estas hostes celestiais.

“Louvai o Senhor, do alto dos céus,


louvai-o nas alturas:
todos os seus anjos louvai-o,
exércitos celestes louvai-o,
sol e lua louvai-o,
os céus dos ceús louvai-o,
e as águas de sobre os céus.
Bendigam o Nome do Senhor.
Ele ordenou e logo foram criados;
Ele os fixou pelos séculos sem fim
E estabeleceu-lhes leis a que não faltam.”
Salmo 148: 1-6

De acordo com a estilística poética hebraica, este paralelismo indica que estes termos são identificados como
coisas semelhantes – deuses celestiais representados por corpos celestiais (Wright, 2000, p. 64). O propósito
deste salmo serve para considerar todos estes corpos celestes como servos de Javé.
Como já foi mencionado no trabalho Javé assumiu certos traços de El, nos textos ugaritas indicam que certos
membros da família de El têm um caráter astral (Smith M. S., 2003, p. 191). O autor cita para exemplificar um
texto ugarita:
“…which the sons of El do not know [?]… [ ]h dlyd’ bn ‘il
Anexo II
Os Impactos Religiosos da Ideologia Deuteronomista

O estilo do livro de Deuteronómio é retórico, o livro pretende convencer e persuadir e assim o faz
repetindo o uso de certas frases e conceitos que coloco em itálico no seguinte resumo: A lei que Moisés
proclama consiste em mandamentos, estatutos, ordenanças e decretos. Neste livro os israelitas são
instados a amar Deus de todo o seu coração e com toda a sua alma. Ele escolheu Israel entre todas as
nações, salvou-os do Egito com a sua mão poderosa e braço forte, porque os amou.
Portanto, os israelitas deviam adorar apenas a ele e não outros deuses, de modo a que ele vai abençoá-
los e os prolongará os seus dias na terra que ele entrega nas suas mãos, a qual eles estão a entrar
para possuir. Porque é nesta terra que ele irá escolher um lugar para o seu nome habitar, e será aí que
o povo se reunirá regularmente em festivais específicos nos quais a lei será lida.
Em Deuteronómio esta lei será lida de forma diferente daquela lei que encontramos anteriormente dada
no Monte Sinai, achada nos livros de Êxodo, Levitico e Números (Coogan, 2012, p. 148).
Encontramos aqui uma interpretação da lei, já não é Deus que fala, mas Moisés “promulga” uma
“segunda lei”. Noutras seções expliquei com detalhe as várias edições do livro de Deuteronómio e a
sua evolução neste anexo iremos discutir as implicações religiosas que o seu caráter ideológico exerceu
sobre as crenças religiosas de Judá e Israel.
O primeiro grande aspeto é a centralidade da crença de um único santuário central como o único lugar
permitido onde o culto sacrificial poderia funcionar em Israel na altura das peregrinações (Coogan,
2012, p. 150).
Várias leis associadas a esta crença central endorsam a eliminação da adoração de outros deuses e a
execução daqueles que apoiam tal adoração. Ao longo da história deuteronomista os seus historiadores
transformaram os santuários de adoração israelita concorrentes ao Templo de Jerusalém, em lugares
de adoração pagã.
Este tema é assim proeminente na literatura deuteronomista, a adoração exclusiva de Javé é um pré-
requisito para Israel continuar a ter a possessão e a prosperidade da sua terra prometida. Adorar outros
deuses, iria resultar inevitavelmente num castigo divino, como as maldições descritas em
Deuteronómio 28. A adoração só podia ocorrer no lugar “que o Senhor Deus iria escolher”
(Deuteronómio 12:5) centralizaria o poder do culto em Jerusalém sobre a égide da monarquia em
Jerusalém. O terceiro tema da história deuteronomista é o pacto que Javé fez com a dinastia fundada
por David.
Para refletirmos acerca dos traços ideológicos da história deuteronomista e como estes configuraram
a crença bíblica, é importante compreendermos de forma mais progunda como é que esta historiografia
se desenvolveu.
O tema da história deuteronomista é a história dos israelitas na terra prometida de Canaã, da sua entrada
com Josué até à perda da terra no século 6 a.e.c.
Ao escreverem esta história, os historiadores deuteronomistas utilizaram fontes antigas, que
mencionam na sua obra. Estas fontes não chegaram até nós mas são referidas: “o livro de Jasar”196, “o
livro dos atos de Salomão”197, o “livro das crónicas dos reis de Israel”198 e o “livro das crónicas dos
reis de Judá”199. Quando utilizaram estas fontes conhecidas e várias outras que não referiram, estes
historiadores estavam mais interessados em registar as tradições encontradas nas diferentes fontes 200,
do que numa consistência superficial (Coogan, 2012, p. 162).
Neste sentido os historiadores deuteronomistas eram para a sua época historiadores responsáveis, que
procuraram preservar tradições contraditórias, independentemente das suas próprias perspetivas
ideológicas.
Esta perspetiva ideológica deuteronomista é expressa em discursos realizados por Deus e por
personagens literários importantes. Estes discursos são composições dos historiadores
deuteronomistas, técnica comum dos historiadores da antiguidade, como o escritor grego Thucydides
(Coogan, 2012, p. 162).
Nas primeiras partes da história deuteronomista, Deus fala com Josué ou Samuel, nos livros mais
tardios Deus fala indiretamente através dos profetas. Estes discursos proféticos funcionam na narrativa
histórica como uma espécie de comentário aos acontecimentos.
Deste modo a historiografia deuteronomista abrange seis séculos da história israelita, mas o constructo
mais importante da sua obra seja o conceito de “revelação”.
Quando a revelação oral dos profetas tornou-se palavra escrita pelos escribas, o conceito de revelação
ganhou um novo conceito. A revelação tornou-se agora propriedade dos escribas e dos académicos, a
arte da sua interpretação suplantou o dom intuitivo da profecia.
O livro da Torá trouxe uma “revelação” a Israel, que dirigiu a centralização do culto e o sacrifício
pascal como temas centrais à reforma do rei Josias (Deuteronómio 12; 16:1-8). Na sua edição da Torá,
o livro de Deuteronómio combina a doutrina da revelação por escrito com a consciência da palavra
escrita. As secções finais desta edição (capítulos 28 e 29) enfatiza que a torá se tornou um livro: “se

196
Mencionado em Josué10:13 e 2 Samuel 1:18
197
Mencionado em 1 Reis 11:41
198
Mencionado em 1 Reis 14:19
199
Mencionado em 1 Reis 14:29
200
Muitas destas tradições era diferentes.
não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei, que estão escritas neste livro, para temeres
este nome glorioso e temível, o Senhor teu Deus”.
Compreendamos que a inovação de Deuteronómio não reside no facto de se apresentar como uma Torá
escrita, mas de reclamar ser a fonte de autoridade sobre a tradição oral.
Até Deuteronómio a palavra escrita tinha sito um apoio à transmissão oral, a partir do momento que a
Torá surge os papéis invertem-se.
A Lei escrita ultrapassou a Torá oral como fonte de autoridade, o conceito de revelação tornou-se um
tema de reflexão teórica. Desde o período helenístico que os teólogos judeus desenvolveram a teologia
da Torá e por conseguinte a teologia da revelação.
A imagem literária de alguns textos como Provérbios 8; Job 28; Deuteronómio 30:12-14 e Ben Sirá
24 equacionaram a Sabedoria personificada com a Torá.
A teologia rabínica do desenvolvimento da Torá desenvolveu duas noções: os sábios ressaltaram a
preexistência da Torá, esta doutrina esta referida em Ben Sirá 24:9. Rabi Aqiba argumentou que a Torá
foi “o instrumento através do qual o mundo foi criado” (m.’Abot 3:14).
A centralidade da Torá transformou o judaísmo na religião do Livro, a revelação escrita transportou o
divino para outras dimensões do humano que ganharam expressões religiosas diferentes.
O meditar na Torá e o recordar as suas palavras transportou o divino para a atividade mental judaica,
o judaísmo é uma religião mental de raciocínio e pensamento criativo.
O impacto histórico da ideologia Deuteronomista foi a pedra fundadora do monoteísmo, um Deus, um
Templo, um livro, um povo, uma única verdade.
No escopo deste trabalho não temos os meios para compreender quais os impactos significativos que
esta ideologia exerceu sobre a crença religiosa bíblica, a civilização judaica e as outras tradições
monoteístas.
Certamente que a ideia da revelação escrita e a superioridade da interpretação dessa revelação escrita
sobre a revelação intuída de cariz profética, estabeleceu as bases fundamentais para os canônes
religiosos.

You might also like