CULTURA
ATUALIDADE
SEM TÍTULO, TÊMPERA DE ALFREDO VOLPI, FINAL DA DÉCADA DE 50, REPRODUÇÃO/ZH
“Acreditamos que o real não está empenhado
em fazer fracassar todos nossos aparelhos
e quebrar todas nossas máquinas...”
Brasil: um caso
de politeísmo
(Jacques Lacan)
“Deus é astucioso, mas é honesto.”
(Albert Einstein)
ALFREDO JERUSALINSKY *
bem-sucedido
mundo pós-capitalista não
O
parece funcionar em harmo-
nia com as religiões mono-
teístas, que, durante 2 mil
anos, ordenaram as crenças
sobre a origem e o destino
nas sociedades ocidentais. É
notadamente uma caraterísti-
ca da pós-modernidade a
multiplicação a esmo de sei- Em artigo para o Cultura, Alfredo Jerusalinsky antecipa o
tas e novas igrejas. A tal ponto que dá a im-
pressão de que, se não fosse pela necessidade teor da conferência que fará na semana que vem: como se
própria do fenômeno religioso de se apoiar
num efeito de massa, estaríamos nos encami- deu no país a conjugação de diferentes matrizes religiosas
nhando para que cada um pudesse ter sua reli-
gião individual. Paradoxalmente, o conceito
de “liberdade religiosa”, que estava originalmente
destinado a garantir a comunhão de cada um com as
grandes expressões monoteístas de Deus, parece ter
aberto a porta para um “retorno infantil ao totemis-
mo”, multiplicando os deuses como se multiplicam
os objetos nas vitrinas dos shoppings.
Certamente, essa declaração de “liberdade religiosa”
– retomada da antiga reivindicação do Cristianismo
diante do Império Romano – teve, durante o surgi-
mento da modernidade, uma finalidade conciliatória.
Conciliação, em primeiro lugar, entre a ciência e o
Cristianismo, que deteve a Inquisição. Em segundo
lugar, a pacificação das relações entre as diferentes
igrejas cristãs, que deteve os confrontos causados
pelo processo da Reforma. Houve disso dois gran-
des resultados políticos: a coexistência do Cristianis-
mo em geral com os Estados modernos e a preva-
lência de uma referência única (embora sem reco-
nhecimento universal) de Deus na Terra, o papa.
Além desses efeitos buscados e desejados pela
Igreja Católica, produziram-se outros – não tão cô-
modos. O Estado moderno não teve como manter a
consistência de sua racionalidade sem que esse con-
ceito de “liberdade religiosa” se generalizasse, ou
seja, passasse a legitimar outras formas religiosas –
islamismo, hinduísmo –, pouco ou nada compatíveis
com os modos de organização social tido como ne-
cessários para a produção industrial e a economia de
mercado. Assim, esse conceito, que durante os últi-
mos séculos se ofereceu como resultado mais elabo-
rado após uma longa travessia pelo monoteísmo,
passou a ser sinônimo de conflito, ao mesmo tempo
corrosivo para aquilo que parecia sustentar.
A idéia de Freud de que o edifício da civilização
ocidental repousa sobre uma base monoteísta – no que
o Judaísmo e o Cristianismo têm grande responsabili-
dade – parece ter bom fundamento. A substituição das
crenças sincréticas por formas mais abstratas e invisí-
veis de Deus parece ter alentado o respeito por princí-
pios que se encontram além das aparências (princípios
mais simbólicos do que aqueles baseados na imagem
que oferecemos ou que contemplamos em cada um).
Ao mesmo tempo, a sustentação de uma idéia de Deus
único abriu caminho para a procura de verdades uni-
versais – universalismo que encontrou em São Tomás
de Aquino sua primeira formulação como causa divina
e, em Descartes, seu viés de causa real.
A idéia de um outro abstrato e geral, concebido co-
mo um imperativo que resume o conjunto social e o
torna inconsciente, é muito mais compatível com o
modo pelo qual o monoteísmo transforma em mito
religioso o “fundo de verdade” que há em cada um.
Certamente é mais difícil essa conjugação em cultu-
SÁBADO, 21 DE OUTUBRO DE 2000 5
os amos consideravam “mais avançadas” ou “mais
verdadeiras”. Essa substituição suprime a cadeia de
filiação que permite ao sujeito encontrar um sentido
para sua vida, respondendo aos ideais de seus antepa-
Programação
A Associação Psicanalítica de
sados. Elimina as significações particulares que em Porto Alegre (Appoa) promove
cada cultura tem o homem ou a mulher, anulando as de 26 a 29 de outubro, na
significações simbólicas do ato sexual. Destrói os sis- Reitoria da UFRGS (Paulo
temas de identificação, o que apaga para o sujeito sua Gama, 110), o seu Congresso de
posição no conjunto social: ele não é ninguém e tem Psicanálise. O evento, que tem
que conseguir ser alguém a qualquer custo. como título Descoberta e
Fica em evidência como essa substituição forçada Invenção, vai tratar de temas
provoca inusitadas condições de violência: apagam- ligados ao Brasil a aos 500
se os signos que marcam a posição da qual parte ca- anos da chegada dos
da um para se apropriar legitimamente das coisas de portugueses ao continente:
que precisa. Conjugada com essa “violência de ter”, civilização, identidade,
se articula a “violência de ser”: o sujeito não é nada memória, filiação, língua,
em ninguém, somente um instrumento do amo. religião, cultura.
Urge então para o escravo se apropriar de alguma Confira a programação:
forma de saber. O que ele tem mais a mão, mais per-
to e mais acabado é o saber que o amo lhe oferece
“graciosamente”. Passa então a se vestir como a no-
Quinta, dia 26
20h – Conferência Brasileiro:
breza do século 17 e 18... no Carnaval. Penas e ouro, Profissão Desejante, com
sedas e brasões constituem a máscara pela qual o es- Robson de Freitas Pereira
cravo aquire o semblante do amo. Apenas por uns
dias ele é rei. Desde essa posição, em contraste fla- Sexta, dia 27
grante com seu cotidiano, interroga suas origens e re- 9h – Mesa 1: Formações do
toma o fio de seu saber: um politeísmo mágico. Sem Brasil Contemporâneo
ras onde as crenças se ordenam na exterioridade do rência não único mas central, nasce a harmonia do expulsar o Deus único adquirido como sintoma de 9h – Mesa 2: O Tempo e o
ser por meio de sinais que os diferentes deuses ofere- barroco e uma versão original do Cristianismo que sua desgraça (no fim das contas, Jesus Cristo é um Vento
cem para cada um (ou para o conjunto social) pelas empresta às plantas e aos animais uma condição espi- personagem bem-adaptado à identificação do escravo 11h15min – Conferência
substâncias, animais ou personagens em que suposta- ritual que até então transitara somente pelas escuridões no seu calvário), o escravo e seus herdeiros o incor- Descoberta e Invenção: os
mente se encontram presentes. Se nessas formas cul- demoníacas. Mesmo a mulher, exposta na sua nudez poram a uma comunidade maior: a dos orixás. Analistas e a História, com
turais as curas psíquicas operam em geral por meio indígena, deixa de ser uma representação das tenta- A terminologia africana, que se conserva mais pela Maria Belo
da sugestão, naquelas os procedimentos transitam ções do “Maldito” e passa a ser expressão duma espé- via do saber religioso do que pela via do sistema lin- 14h30min – Mesa 3: Raízes do
necessariamente pelo campo seja da revelação de cie de “paixão pura” presente no natural das coisas. güístico, permeia o português e, conjuntamente com Brasil
uma verdade oculta nas profundezas do ser (o exor- A admiração de Pero Vaz de Caminha, em 1500, já o tupi-guarani, torce sua fonética. Introduz nela um 16h30min – Mesa 4: Pelas
cismo e a confisão) ou seja pela via mais racional da antecipara o deslocamento da visão do paraíso para o ritmo que encanta o mundo todo: é um ritmo que Tabelas
interpretação (a enunciação de uma significação es- cálculo da incalculável riqueza que as novas terras simboliza a estranha coexistência entre três deuses. 16h30min – Mesa 5: Brasil,
quecida ou rejeitada contida nas matrizes lingüísticas escondiam. Dito de outro modo, eles estavam ali pa- Estranha porque essa coexistência em outras latitudes Raça e Cor
que organizam as relações de cada sujeito). Percebe- ra integrar as novas terras na unificação de uma na- tem assumido contornos de enfrentamentos trágicos 17h30min – Conferência
se então que, malgrado a necessária oposição entre ção moderna, ligada ao sistema de saber europeu, e ou atualmente formas de racismo e discriminação Os Costumes do Brasil, com
uma concepção lógico-racional do fundamento do não para modernizar a nação guarani. A nação guara- oculta. Entre o panteísmo indígena, o politeísmo afri- Octávio Souza
ser, sustentada pela psicanálise, e uma concepção ni ameaçava a unicidade da autoridade do rei (neces- cano e o Deus único europeu, tem-se articulado uma
místico-dogmática exercida pelas religiões, a formu- sariamente único, como Frei Vicente de Valverde ha- teia simbólica que reconhece diferentes posições de Sábado, dia 28
lação judaico-cristã que propõe uma relação intimista via antecipado) e diversificava as verdades em jogo. “arrebite”. São nós que funcionam como estações al- 9h – Mesa 6: Um Olhar sobre o
com um deus único é bem mais prática para a psica- O barroco ficou reduzido a uma expressão puramen- ternativas de decodificação, permitindo a coexistên- Barroco
nálise. Digamos que um sujeito baseado na suposi- te estética, recusando-se o que revela – por certo de cia de significações diversas e simultâneas, sem que 9h – Mesa 7: O Som do Brasil
ção de ser o dono e o modo escancarado – uma cada uma pretenda eliminar o valor de verdade da 11h – Conferência
construtor do seu próprio ética diferente: a combi- outra. O sujeito fica a salvo, por essa via, da exigên- Singularidades ou
destino – e com uma rela- nação do universalismo cia de ser um e somente um. O brasileiro cumpre en- Universalidade?, com
ção totalmente pessoal O Deus único se tornou com a polissemia. Uma tão a consignação da modernidade que o convoca a Roland Chemana
com um Deus constante- verdade universal, seja ela ser polissêmico ao mesmo tempo que universal, mas 14h30min – Mesa 8: Visões do
mente verdadeiro – é o pa- imprescindível no um princípio moral, um se nega a obedecer a consignação do individualismo Paraíso
ciente mais cômodo para modo de gozar ou uma e, por isso, é, antes de tudo, cordial. 14h30min – Mesa 9: Minha
o divã do analista. processo de colonização simples técnica, não fun- Há algo que rompe a boa vizinhança entre imigran- Pátria, Minha Língua
Mas onde Deus certa- ciona para todos da mes- tes europeus, tupis e herdeiros dos africanos deporta- 16h30min – Mesa 10: As
mente se tornou mais im- ma maneira, pelo simples dos para este nosso país. É a obrigatoriadade ser um e Virtudes da Casa
prescindível foi no precesso da colonização. Ali se fato de que em diferentes culturas adquire significa- somente um, introduzida pela economia de mercado, 16h30min – Mesa 11: Formas
requeria que a forma de saber reconhecida fosse ção diferente. E não porque o sujeito não possa com- que requer a construção de um consumidor típico. e Cores Brasileiras
única e tivesse como referente tanto lógico quanto preender o que o outro quis dizer, mas porque, em- Desconhecendo qualquer diferença de filiação (que 18h – Conferência Saudade
simbólico uma única versão. bora possa traduzir para a sua língua a proposição leva à fantasia de autogeração), qualquer diferença na da Maloca, com
Quando Francisco Pizarro desembarcou nas praias originária da língua estrangeira, os atos têm em dife- simbolização dos sexos (que leva à postura unissex, Contardo Calligaris
peruanas, o Inca Capac foi recebê-lo com 2 mil rentes culturas um valor simbólico diferente, o que bissex, ou multissex) e apagando o papel diferenciado
guerreiros mas sem atacá-lo. Frei Vicente de Valver- transforma a significação das palavras. de cada um (que conduz a valorização dos traços de Domingo, dia 29
de alcançou para o Inca um volume dos Evangelhos A suspensão do tempo de espera entre um aconteci- aparência), o imperativo de fazer da posse do objeto o 9h – Mesa 12: País de Todos
e assinalou que ali dizia-se que seu Rei era o único mento e sua transmissão pode precipitar um significa- valor de qualquer sujeito apaga a cordialidade e de- os Santos
Rei (leitura particular e astuciosa de “Deus Rei” que do de proporções trágicas. O valor de ato que a pala- volve esse delicado tecido, cuidadosamente trançado 9h – Mesa 13: Mar de Histórias
desloca o caráter único do termo Deus para o termo vra tem em diversas culturas africanas, somado à ace- durante 500 anos, para o terreno do real. 11h15min – Conferência
Rei). Com isso, automaticamente o Inca ficava pri- leração de sua transmissão, freqüentemente tem efei- Saudade da época dos mil-réis, quando a moeda Brasil – Um Caso de Politeísmo
vado de qualquer autoridade sobre aquelas terras. tos aterradores. A ferocidade necessária para intimi- não era real mas simbólica, quando os reis eram plu- Bem-sucedido, com
Não concordando, o Inca foi preso e seus 2 mil dar o inimigo no exercício da guerra, em que se esgri- rais. Saudade não porque aquela época fosse neces- Alfredo Jerusalinsky
guerreiros, eliminados. mem armas primitivas de escaso valor mortífero, ad- sariamente melhor, mas porque cumprir o imperati-
O equívoco maior – e, portanto, o mais frutífero – quire conseqüências da ordem do horror quando apli- vo de nos unificarmos como nação moderna, cons- As inscrições, com valores de
foi cometido pelos jesuítas que levaram demasiada- cada no uso de armas de refinada tecnologia mórbida. truir a imagem típica do consumidor necessário à R$ 90 a R$ 140, podem ser
mente a sério a tarefa da catequização. Em lugar de to- A persistente corrosão dos organizadores simbólicos globalização, pode transformar um politeísmo até feitas na sede da Appoa (Rua
mar o saber de suas origens como única fonte de sa- da vida africana praticada pelos colonizadores – que aqui interessante e frutífero num totemismo infantil Faria Santos, 258). Mais
ber, eles reconheceram nos tupis e guaranis certas for- unificaram forçadamente em supostdas nações moder- e, por isso, cruelmente real. informações pelo fone
mas de saber derivadas e sustentadas pela sua intimi- nas tribos e países das mais heterogêneas formas cul- (51) 333-2140 ou pelo
dade com a natureza (fonte de seu panteísmo). Articu- turais – esteve baseada na suposição de que bastava a * Psicanalista, presidente da Associação Psicanalí- fax (51) 333-7922.
lando essa polissemia cultural com um ponto de refe- substituição daquelas formas de saber por outras que tica de Porto Alegre (Appoa)