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O RELATÓRIO CONCLUSIVO DE INQUÉRITO POLICIAL

Francis Flávio Tadano Araújo Freire1

1. Introdução

Não é raro encontrar entendimentos que sustentam a dispensabilidade do


relatório final do inquérito policial 1 . Também são comuns as afirmações de que o
Delegado de Polícia não pode, em seu relatório, tecer opiniões e realizar juízo de valor
das condutas investigadas 2 . Neste breve ensaio veremos que tais entendimentos são
desprovidos de fundamentação jurídica, além de incompatíveis com a natureza jurídica
do cargo de Delegado de Polícia, a imparcialidade da Polícia Judiciária e o princípio da
motivação.
Embora o projeto do Novo CPP sinalize avanço nos atributos do relatório final,
é necessário buscar uma redação legislativa compatível com importância desta peça.

2. Desenvolvimento

O relatório conclusivo de inquérito policial está previsto atualmente no Artigo


10, §1º, do CPP, promulgado nos idos de 1941. Passados 76 anos, não houve qualquer
alteração legislativa a respeito desta importante peça, a qual encerra a investigação
estatal sobre um caso específico.
O CPP prevê que o relatório será elaborado pela autoridade de forma
minuciosa acerca do que foi apurado. Apesar da clareza do termo utilizado
(“minucioso”), parte da doutrina sustenta que a Polícia Judiciária não pode emitir juízo
de valor acerca dos fatos e do Direito aplicável no caso concreto:
“Encerradas as investigações, não podendo a polícia judiciária emitir
qualquer juízo de valor - a não ser aquele meramente opinativo, constante
do relatório de encerramento do procedimento (art. 10, §§ 1º e 2º, CPP) -
acerca dos fatos e do direito a eles aplicável, isto é, a respeito de eventual
ocorrência de prescrição ou de qualquer outra causa extintiva da
punibilidade, bem como acerca da suficiência ou insuficiência da prova,
da existência ou inexistência de crime, os autos de inquérito deverão ser
encaminhados ao Ministério Público, que poderá adotar as seguintes
providências” 3

O fundamento para obstar a Polícia Judiciária a valorar os fatos e as normas


jurídicas do caso investigado no relatório conclusivo deriva da assertiva de que cabe ao

1
Delegado de Polícia Civil do Estado de Mato Grosso do Sul. Pós-graduando em Direito de Polícia
Judiciária pela Academia Nacional de Polícia.
Ministério Público, titular da ação penal pública, emitir a opinio delicti. Curiosamente, a
doutrina admite que há exceção prevista na Lei Antidrogas, o que, por si só, suplanta o
argumento de que a valoração feita pelo Delegado de Polícia impede, dificulta, vincula
ou usurpa a emissão da opinio delicti ministerial:
“Não deve a autoridade policial esboçar juízo de valor no relatório, afinal, a
opinião delitiva cabe ao titular da ação penal, e não ao delegado de polícia,
ressalva feita à Lei Nº 11.343/2006 (Lei de Tóxicos), onde na elaboração do
relatório deve a autoridade policial justificar as razões que a levaram à
classificação do delito (art. 52).” 4

Embora o Parquet seja o titular da ação penal pública, tal fato é insuficiente
para alijar Polícia Judiciária de externar o resultado do trabalho por ela realizado.
O Delegado de Polícia exerce a autoridade policial, representando o Estado-
Investigação, por expressa disposição constitucional e legal (Art. 4º do CPP e Art. 144
da CF/88).
É através do relatório final que o Estado descreve as diligências investigatórias
realizadas e, eventualmente, justifica a não realização de outras, podendo indicar
testemunhas que não foram inquiridas (Art. 10, §2º, do CPP). Em última análise, é no
relatório final que a Polícia Judiciária exerce o accountability de uma investigação
específica, prevenindo o abuso de poder por meio da obrigação de informar e justificar
suas ações - answerability5.
O relatório final não é uma peça dirigida ao Juiz ou Promotor de Justiça, não
havendo qualquer previsão legal neste sentido. Na verdade, os “autos” do inquérito são
encaminhados ao juiz competente, conforme o Art. 10, §1º, do CPP.
De mais a mais, não há qualquer ascendência, subordinação e ingerência entre
Polícia Judiciária e Ministério Público.
E, está cada vez mais superada a ideia de que o inquérito policial é um “mero”
6
instrumento de investigação policial, visando à coleta de indícios de autoria e prova de
materialidade a serviço do titular da ação penal – função preparatória. Existe a função
garantidora do inquérito com o “nítido caráter de evitar a instauração de uma
persecução penal infundada por parte do Ministério Público” 7.
Desta maneira, o inquérito não é um instrumento “unidirecional” 8, pois não
objetiva, exclusivamente, a lastrear acusações. A tarefa da Polícia Judiciária é esclarecer
o fato, tendo a “finalidade de buscar a verdade, amparando a acusação ao fornecer
substrato mínimo para a ação penal ou auxiliando a própria defesa ao documentar
elementos em favor do investigado que possibilitem o arquivamento” 9.
O fato é que a investigação é conduzida de forma imparcial e autônoma, razão
pela qual não cabe às partes impedirem que órgão investigativo estatal externe as suas
convicções sobre o caso concreto, até porque não estão vinculadas a elas.
O relatório final encerra a primeira fase da persecução penal, sob encargo da
Polícia Judiciária. Regra geral, o relatório é o documento remissivo às diligências
realizadas. Todavia, o relatório pode, em determinado tópico ou capítulo, possuir feição
de ato administrativo constitutivo, criando uma nova situação jurídica. É a hipótese do
indiciamento incluso no relatório.
A Lei nº 12.830/13 prevê a necessidade de fundamentação do indiciamento,
mediante análise técnico-jurídica do fato, indicando a autoria, materialidade e suas
circunstâncias. Conforme leciona a doutrina, o indiciamento produz efeitos
extraprocessuais e endoprocessuais:
“Produz efeitos extraprocessuais, pois aponta à sociedade a pessoa
considerada pela autoridade policial como a provável autora do delito, ao
mesmo passo que produz efeitos endoprocessuais, representados pela
probabilidade de ser o indiciado o autor do delito, considerado antecedente
lógico, mas não necessário, do oferecimento da peça acusatória.” 10

Embora o sistema processual penal não seja muito claro, podemos elencar os
principais efeitos endoprocessuais do indiciamento através de uma interpretação
sistemática. O indiciamento possui o condão de manter o indiciado vinculado às demais
fases do processo penal, sendo inclusive pressuposto das seguintes medidas:

a) da prisão temporária (Art. 1º, III, da Lei nº 7.960/89);


b) do requerimento de diligências por parte da Defesa do indiciado (Art. 14 do
CPP);
c) do sequestro dos bens imóveis ou móveis, adquiridos pelo indiciado com os
proventos da infração (Art. 125 e 132 do CPP);
d) da hipoteca legal sobre os imóveis do indiciado (Art. 134 do CPP);
e) das medidas cautelares diversas da prisão (Art. 282, II, e Art. 319, II e III, do
CPP);
f) da proibição de ausentar-se do País, mediante a entrega do passaporte (Art. 320
do CPP);
g) da identificação criminal (Art. 3º, II, III, parágrafo único, Art. 7º, da Lei nº
12.037/09);
h) da suspensão cautelar para dirigir veículo automotor ou a proibição de se obter a
permissão ou a habilitação (Art. 295 do CTB);
i) o afastamento cautelar de servidor público das suas funções em crimes de
lavagem de dinheiro (Art. 17-D da Lei nº 9.613/98);
j) da possibilidade de colaboração voluntária com vistas à redução da pena nos
relacionados a tráfico de drogas (Art. 41 da Lei nº 11.343/06).
É inegável a repercussão que o indiciamento pode causar na esfera jurídica do
investigado, seja restringindo direitos fundamentais, seja reconhecendo direitos
subjetivos inerentes a sua condição. Dessa forma, a decisão de indiciamento não é um
ato discricionário da autoridade, devendo basear-se nos fatos, normas e conhecimentos
técnicos aplicáveis ao caso.
A análise técnica-jurídica para o indiciamento, a ser realizada pela autoridade
jurista-policial, exige conhecimentos técnicos em várias Ciências: Direito, Investigação
Criminal, Criminalística, Medicina Legal, Criminologia, Psicologia Judiciária, etc.
No cumprimento do seu ofício, a autoridade policial pode se deparar com
inúmeras situações que demandem a realização de juízo de valor, notadamente no
campo jurídico. O reconhecimento da normatividade dos princípios, a existência de
conceitos jurídicos indeterminados e a colisão de normas jurídicas são alguns exemplos
das situações em que necessariamente haverá a valoração, sob o ponto de vista pessoal,
das informações apuradas. É o que ocorre quando a autoridade policial deixa de indiciar
uma pessoa, fundamentando na atipicidade da conduta por aplicação do princípio da
insignificância.
Portanto, não se sustenta a afirmação de que a autoridade policial não pode
tecer juízos de fato e valor. Nesse sentido é a lição da melhor doutrina:

“É inegável que o ato de indiciamento exige juízo de valor, o qual, nos


meandros do inquérito policial, é exercitado pela autoridade policial que
preside a investigação. Por isso, dever-se-ia exigir desta a explicitação de
suas razões, ao determinar o indiciamento, as quais deveriam ser
apresentadas no inquérito policial para que fossem conhecidas pelo indiciado
e seu defensor, pelo órgão do Ministério Público e, quando necessário, pelos
juízes e tribunais” 11.

Considerando que o relatório pode conter carga decisória, que exige


fundamentação técnica adequada, convém lembrar que o princípio da motivação tem
origem no Estado de Direito. A motivação é requisito para o controle da decisão, sendo
pressuposto na restrição a direitos fundamentais. Neste passo, o Projeto de Lei nº
8.045/10, de autoria do Senado Federal, que propõe o Novo CPP, dá novos contornos ao
relatório final do inquérito, prevendo sua fundamentação:
“Art. 34. Concluídas as investigações, em relatório sumário e fundamentado,
com as observações que entender pertinentes, a autoridade policial remeterá
os autos do inquérito ao Ministério Público, adotando, ainda, as providências
necessárias ao registro de estatística criminal.”

Todavia, há nítida contrariedade entre os adjetivos “sumário” e


“fundamentado”, devendo ser excluída a primeira expressão, pois minimiza o poder de
valoração fática e jurídica do Delegado de Polícia, que deve fundamentar e fazer “as
observações que entender pertinentes”.
Ademais, embora nos pareça lógico, seria de bom alvitre assentar a
obrigatoriedade do relatório final, não só pelos fundamentos anteriormente alinhavados.
É que da forma como redigido o artigo, os autos tramitam diretamente entre a Polícia
Judiciária e Ministério Público. Nesta situação, pode ocorrer dos autos serem
encaminhados ao órgão ministerial com pedido de prorrogação de prazo, visando, por
exemplo, implementar diligências requeridas pela Defesa do indiciado. Entendendo que
o relatório final é dispensável, o Ministério Público poderia, açodadamente, oferecer a
denúncia, tolhendo a produção de provas em favor da Defesa.

3. Conclusão

Em razão do exposto, cremos que o Artigo 34 do Projeto do Novo CPP ficaria


melhor redigido da seguinte forma:
“Art. 34. As investigações serão concluídas obrigatoriamente em relatório
fundamentado, podendo a autoridade policial fazer as análises técnico-
jurídicas necessárias, remetendo os autos do inquérito ao Juiz das Garantias,
adotando, ainda, as providências necessárias ao registro de estatística
criminal.”

Como se viu, o relatório final do inquérito policial possui clara feição de


parecer técnico obrigatório, não vinculante, expedido por um órgão técnico
especializado (ato administrativo enunciativo), podendo inclusive ter natureza híbrida
(ato administrativo constitutivo), caso contenha carga decisória (despacho de
indiciamento).
Eventuais juízos de fato e valor das condutas apuradas – e não da pessoa
investigada - são inerentes ao relatório final, em que a autoridade deve informar e
justificar tecnicamente as suas ações, em prestígio ao princípio da motivação e
obrigatoriedade da prestação de contas.

REFERÊNCIAS
1
“A ausência de relatório policial não gera a nulidade do inquérito, até porque o STF tem se manifestado
pela prescindibilidade do inquérito policial, no caso de haver peças de informação a comprovar a
materialidade do delito e indícios de sua autoria, a propiciar o oferecimento da denúncia por parte do
órgão acusador. Ora se até o inquérito policial é dispensável, o que dizer do relatório policial, cuja
inexistência nenhum prejuízo trouxe à defesa do acusado?” (TRF 3ª Região, ACR 9699 -
2000.03.99.013732-4, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL RAMZA TARTUCE, julgado em
17/12/2002).
2
“Deve a autoridade policial abster-se de fazer qualquer juízo de valor no relatório, já que a opinio delicti
deve ser formada pelo titular da ação penal: Ministério Público, nos crimes de ação penal pública;
ofendido ou seu representante legal, nos crimes de ação penal de iniciativa privada”. (LIMA, Renato
Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3ª edição, 2015, JusPodivm, p. 152).
3
Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de·processo penal. 15ª ed. Rio de Janeiro. LumenJuris, 2011, p. 64.

4
Curso de Direito Processual Penal. Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar. 10ª edição. Salvador,
JusPodivm, 2015, p. 148.

5
Por um conceito de accountability. Andreas Schedler. Para entender a democracia. Larry Diamond. 1ª
ed. Curitiba: Instituto Atuação, 2017.
6
STF, RE 136239, Relator Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 07/04/1992.

7 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª edição. EDITORA LUMEN JURIS. Rio de Janeiro.
2011, p. 77.

8 NICOLITT, André Luiz. Manual de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.
201/202.
9
HOFFMAN, Henrique. Moderno Conceito do Inquérito Policial. Temas Avançados de Polícia
Judiciária. 1ª ed. Salvador, JusPodivm, p. 27.
10
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3ª edição, 2015, JusPodivm, p. 144.
11
SOBRINHO, Mário Sérgio. A identificação criminal. São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 100.

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