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O narrador aparece em cena e num diálogo rápido - do tipo “ping & pong” -entre si e

um interlocutor oculto faz- numa dinâmica à lá tentativa & erro- 3 afirmações que
procuram definir à priori o tema da história que será contada.

PARTE I

1ª cena : em voz alta ele diz:


(1ª tentativa)
Essa é uma história sobre :
Quando somos machucados.

(voz oculta no estilo


coro grego responde) -- Não .

(2ª tentativa)
Essa é uma história sobre :
Quando nos machucamos à nós próprios.

(voz oculta no estilo


coro grego responde) -- Não .

(3ª tentativa)
Essa é uma história sobre :
Quando deixamos de nos machucar .

(voz oculta no estilo


-- Sim. Essa é uma
coro grego responde)
história sobre eficiência .
(o narrador sai de cena)

------X-----

PARTE II

O narrador entrará novamente em cena e dirigirá uma fala - em tom acusatório - a


alguém que, imaginariamente, está ali.

2ª cena : a fala começa (monólogo)

Tu tens um cigarro na tua mão.


Um cigarro que nunca cessa.
Este cigarro que são muitos, um atrás do outro e atrás do outro e do outro,
ininterruptos, parecem ser um só, cuja a brasa é uma pira que nunca apaga .
Muito de vez em quando, por distração ou por extrema exaustão tu te descuidas e o
teu cigarro se apaga. Esse teu lapso, contudo, dura
um minúsculo período, o
escorregão de um instante, e com a mesma urgência de quem quase sufocando
consegue arfar o ar em desespero, tu o tornas a acender .

(como quem sai de um ritmo frenético


(levemente ofegante) e aparentando cansaço, o narrador faz uma pausa e como quem
medita faz um pouco de silêncio)

-----x-----

PARTE III

3ª cena : de repente ele retoma o prumo e num tom pausado diz:

Teu Tu vem do grego :

Com a ideia de fazer um paralelismo entre o conceito de piração - na gíria “pira”


– e o significado simbólico da pira “pyr” para os gregos, ele reproduzirá a
seguinte definição do dicionário de etimologia:

Pira , PIRÀ , PYR :

(definição)
“ Uma estrutura em que se queima o corpo humano como parte de um
funerário.”

Olha para a suposta pessoa que está ali e continua...:

Tua PIRÀ,
tu a levas outra e outra e mais outra à tua boca sem fundo e sem fim .
Tu e teu isqueiro sucessivo e eterno.

Tu, num eterno queimar de Ti .


Tu e Tua pira .
Teu Tu .
Tua pyra
Teu
Inapagável
Tu.

Aqui ele se cala por um instante, dá o tempo de quem para pra respirar e então,
tornando a olhar em direção ao seu ouvinte presente/ausente, como quem continua
a falar numa frase do tipo ponto na mesma linha, retoma o fôlego e vem para a 4ª
parte de seu monólogo acusatório
------x----

PARTE IV
4ª cena : olhando em direção ao presente/ausente, como quem continua uma fala
depois de uma longa respiração, ele diz :

...mas, apesar das tuas incontáveis piras,


Tu tens dado muitas gargalhadas também .
Essas risadas, as sinto, loucamente, deslocadas.
É como se não rissem do que é engraçado .

São risadas iguaizinhas às risadas, ao mesmo tempo nervosas, enlouquecidas e


prazerosas que as crianças dão, quando veem seus monstros projetados na parede
branca .

Agora ele para um pouquinho pra retomar a fala num tom quase que filosófico
tecendo algumas considerações tanto sobre a existeência física e cotidiana, quanto
como a metafísica da tal pessoa imaginária.
Sobre ela, ele fará perguntas e insinuaçòes provocativas as quais ele mesmo
responderá e tirará suas próprias conclusões

Ele alça a voz e faz a pergunta:

O TEMPO ?!

Faz muitos anos que :

Não sais de casa.

Que paraste de gastar as solas dos sapatos. Estes que na verdade trás nos pés, nunca
saíram do lugar.

Que trajas esta tua única roupa e que a janela não é olhada .

Tu que não escutas


e também não ouves.

Não falas.

Que não apertas nenhuma espécie de botões .


Não discas .
Não agachas pra pegar.
Não esticas pra alcançar.
Não acendes ou apagas luzes . Só cigarros.

Não enxergas. (afirma irônico)

Não enxergas ?! (pergunta provocativo)


Vês ? (pergunta provocativo)

Tu não deitas na cama.


A colcha
está intacta,
faz anos.
(entrando em estado de confusão e devaneio, continua falando...)

De fato eu que sei bem quem sou, diante de Ti, fico tão confuso que acabo me
perguntando:

Existe mesmo esse pronome pessoal do caso reto -> TU, ou tu, na tua ausência, és,
na verdade uma coisa inexistenete ?

Tu existes... ou.. és impessoal de


um caso torto ? ANTI-TU.

Tu, pra desaparecer e deixar de existir-se acabaste afinal por queimar com tua PYRá
a tua pessoa e todas as garantias de uma gramática perfeita ?

(ele sai da elocubração metafísica e volta pra ausência das coisas bem cotidianas e continua
falando...)

As cerdas das escovas


de cabelo,
de sapato,
e de dentes
ficaram velhas,
porém não gastas. Nunca foram usadas
afinal.

As comidas secas
dentro dos armários
estão intactas
e duraram todos estes anos.
Não precisaram ser repostas .
Não apodreceram.

Isso, penso,
só pode ser
por causa da secura da casa.
Sem água,
não há bactérias
sem bactérias
as coisas duram.

O que é seco
dura mais
do que
o que é
congelado.

Tu és seca ou congelada ?

Resta, contudo,
o oxigênio.
O oxigênio
para a pira
para a tua pyrá

(para um pouquinho, respira e continua em outro tom, num tom de quem aponta o dedo e de quem
se sente capacitado para definir o outro com clareza, Assim...)

SOBRE TU :

Não estás inválida ou paralítica .

Estás paralisada, apenas .

Paralisia Voluntária.

Tu projetaste tua vida e traçaste uma estratégia precisa para vivê-la .


Foste exímia na disciplina e perseverança.
Foste até o fim na execução do teu projeto .

Buscastes uma boa mala .


Abrindo-a cuidadosamente começaste a arrumá-la.
Levaste tempo.
Da tua vida,
selecionaste os pertences mais preciosos e essenciais
e puseste-os,
impecáveis,
nesta mala.

Terminado o trabalho, com zelo, fechaste-a com zíper e cadeado.


Jogaste a chave no fundo do rio . Assim para sempre .

Depois, como quem


já está com as malas prontas e fechadas
e apenas espera o dia da partida
encostaste-a num canto.

Naquele dia ainda eras moça .

Moça.
Sem fome
e sem sede.

Incrível que
sendo moça
não tivesses
nem fome
nem sede

justamente porque são os moços


tão famintos e sedentos

Projeto acabado.
Executado.
As essências da vida trancadas dentro da mala-sem-chave-pra-sempre.

Sentaste-te imóvel,para nunca mais conjugar verbos


de AR
de IR
de SER

Ahhh, foste tão eficiente em administrar capital, estratégia, projeto e execução !!!

Toda a fortuna que herdaste - porque foste moça sem fome e sem sede- gastaste no
projeto da mala fechada e sem chave que esperaria pra sempre encostada num canto
com seus pertences mais preciosos e essenciais e na aquisição do estoque vitalício
das tuas piras intermináveis que pelo resto da sua vida tragaria no lugar do oxigênio,
desde o dia em que acendendo a chama da tua 1ª pyrá iniciaste a tua auto-cremação
e levando o primeiro cigarro e outro, outro, outro, outro, outro,outro .... à tua boca sem
fundo e sem fim,
fumando,
esperaste a vida passar.

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