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Artigo

A dignidade da pessoa humana como


valor-fonte da ordem jurídica

Vander Ferreira de Andrade


Professor de Direito Penal e de Introdução ao Estudo do Direito do IMES.
Professor de Direito Administrativo da FIG. Especialista em Direito Penal e
Mestrando em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Oficial de Polícia Militar.
Atualmente exerce a função de Juiz Militar na 1ª Auditoria do Tribunal de
Justiça Militar do Estado de São Paulo.

R e s u m o A b s t r a c t

O presente artigo objetiva dissertar sobre a The present article has the objective to explain
influência do Humanismo na formatação do prin- the influence of the Humanism in the creation
cípio constitucional da dignidade da pessoa hu- of the constitutional principle of the human
mana, bem como analisar os corolários da inci- person dignity, and to analyse the consequences
dência de tal princípio no ordenamento of the incidence of this principle in Brazilian
jurídico brasileiro. juridical order.

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INTRODUÇÃO o poder constituinte deriva da a perscrutação da dignidade da


Chama-nos a atenção a pro- lei natural, teríamos que é esta pessoa humana, antes de decli-
posta de Miguel Reale, intitulan- mesma lei que exige seja o nar o alcance e o sentido da
do a pessoa humana como va- homem respeitado por todos os norma, mas sobretudo, antes
lor-fonte de toda a ciência e que o cercam, somente pelo da aplicação; é que não temos
experiência jurídica, propug- fato de ser portador de uma a ingenuidade de desacreditar
nando em sua teoria, ainda que determinada natureza humana. da existência de normas injus-
implicitamente, a existência de Tal consideração leva-nos a tas ou mesmo iníquas; elas exis-
uma estrutura hierárquica ver- pensar que não há que se falar, tem e persistem, e às miríades;
ticalizada, na qual o ser huma- mesmo em face de um poder contudo, face ao dogmatismo
no e sua imanente dignidade constituinte originário, uma do primado constitucional, es-
desempenham o papel de ampla liberdade, mesmo irres- tas não poderão ser declinadas
cume, de ponto mais elevado, trita, no que diz respeito ao no caso concreto se aviltarem
importando na necessidade de conteúdo a ser descerrado pela ou afrontarem o mandamento
se reconhecer a sua importân- tarefa legisferante, ao contrário, constitucional.
cia para a compreensão de todo a esta mesma atividade impõe- Outrossim, temos para nós
o sistema social e jurídico. se o reconhecimento da existên- que a ciência não cria, nem
Com efeito, tal ponderação cia de uma pré-limitação, de criou, nem construiu o postula-
parece ter encontrado guarida uma limitação material, não do da dignidade da pessoa hu-
no pensamento do legislador importando a definição ou de- mana; este sempre existiu e
constituinte de 88, o qual, ao nominação que lhe conceda- preexistiu, e se ainda no mun-
descerrar o conteúdo incipien- mos, seja de direito natural, do em que vivemos outras cul-
te da vontade do poder consti- compreendido este como o di- turas não o reconhecem como
tuinte originário, manifestou- reito da natureza humana, e não tal (e o dado cultural ou deriva-
se, insculpindo dentre os fun- como de conjunto de leis natu- do do misticismo ou fanatismo
damentos da República Federa- rais ou da natureza propriamen- religioso será sempre um poten-
tiva do Brasil e, conseqüente- te dita (no sentido puramente cial estímulo para a sua nega-
mente, do Estado Democrático aristotélico), o de direitos huma- ção), nada disso impede que,
e Direito implantado pela nova nos, ou o de respeito e acata- fora do conhecimento de dada
ordem constitucional, a digni- mento à dignidade da pessoa cultura, este conceito já não
dade da pessoa humana, vérti- humana (Gomes da estivesse presente, vivo e laten-
ce da nova Carta, espinha dor- Silva, p. 98). te, na própria consciência hu-
sal para a compreensão mais Entendemos assim que, mes- mana, no que divergimos, de
profunda do estágio de civiliza- mo respeitando os elementos certa forma, do papel da histo-
ção e experiência histórica que histórico, sociológico e criativo ricidade na consubstanciação
logramos atingir.1 que permeiam a experiência de determinados direitos; é que,
Com isso, e partindo-se de jurídica, ou a denominada “dia- para nós, a barbárie em si não
uma das matizes apresentadas lética da complementaridade”, retira do homem sua condição
por Bobbio (1998, p. 64) como como denomina Reale, há na de ente vivo e pensante, cria-
justificadoras de um poder es- tarefa do intérprete uma porta dor e modificador de situações
tatal, ou aquela que afirma que de passagem obrigatória que é fáticas das mais diversas, nem

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de ensejador de novos existiu; é portanto incumbência podemos olvidar ter sido o refe-
rumos para a história. dos povos e nações que ainda rido autor um permanente pes-
Nesse sentido estamos a afir- não se aproximaram deste es- quisador do postulado axioló-
mar que, em verdade, o pensa- tágio do devir humano, incor- gico da dignidade da pessoa
mento de Reale tem o mérito porar ao seu ordenamento su- humana como valor fundante,
de, ao afirmar a existência de premo este postulado, mesmo principiológico, de uma herme-
um valor-fonte, permitir-nos que isto signifique derrogar al- nêutica necessariamente con-
asseverar não somente a pre- gumas de suas tradições, ain- juntural.
existência deste mesmo pres- da que se possa entendê-las Não é à toa que a seu respei-
suposto, mas igualmente o de como expressões ou manifesta- to encontramos pronunciamen-
imantá-lo à norma fundamental, ções de suas culturas milenares. tos dos mais aguçados, como
como elo inseparável de uma Amalgamada a dignidade da se verifica nesse registro do
regra perene e verdadeiramen- pessoa humana à norma hipo- professor José Cretella Júnior,
te imutável; esta regra, que en- tética fundamental, não basta em que é apresentado como
contra seu suporte lógico na declinar seu mais sintético sendo o grande animador dos
existência de Deus e do homem enunciado: cumpra-se a consti- grandes e profundos proble-
como criatura feita a sua seme- tuição; é preciso, antes de tudo, mas jusfilosóficos entre nós
lhança, peca talvez por dogma- que a norma constitucional brasileiros: “Miguel Reale...
tizar-se, no momento em que prestigie o homem, por sua na- coloca-se nitidamente entre os
recorremos ao espírito para ten- tureza humana, originariamen- adeptos do culturalismo jurídi-
tar explicar coisas da razão; te divina. Temos para nós que co, mostrando como esta orien-
porém, como São Tomás de a norma é produto da experi- tação, desligada do idealismo
Aquino, estamos dizendo que ência humana e não fonte; o ser, que a inspirou no período inici-
por certo “aquilo que não é em o ente humano, este sim é fon- al, é a única que possibilita es-
si mesmo existe em Deus, en- te, não somente da regra de di- tudo integral da fenomenologia
quanto nele é previamente re- reito mas principalmente da jurídica, permitindo apreciação
conhecido e preordenado, con- própria experiência humana, panorâmica e completa dos ele-
forme a passagem de Romanos que decorre do simples fato de mentos do Direito, evitando, de
4,17: ‘Aquele que chama entes o homem existir, não como os um lado, a unilateral preferência
os não entes’. É assim que o eter- animais, os vegetais ou os mi- dos juristas-sociólogos pelo fato,
no conceito da divina lei é dota- nerais, mas como a mais per- e, de outro, a unilateralidade dos
do da razão de lei eterna, na me- feita de todas as criações de juristas técnicos seduzidos pela
dida em que é por Deus ordena- Deus. norma” (Cretella Júnior, 1967, p.
do para o governo das coisas por 109).
Ele previamente conhecidas” 1 ENFOCANDO A OBRA DE Optando assim, nitidamente,
(Aquino, 1997, p. 43). MIGUEL REALE pela eleição da axiologia como
A ciência não teria assim criado De fato, nosso estudo a res- ponto de convergência do fato
o fundamento da dignidade da peito do valor-fonte implicará a e da norma, Miguel Reale, com
pessoa humana, mas desco- necessidade de fazermos ex- sua clássica e notória aborda-
berto, no que queremos dizer pressa referência à obra de gem sobre o tridimensionalismo
que este em verdade sempre Miguel Reale, posto que não do direito, delineia a valoração

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como o amálgama, a liga da direito natural, numa releitura aponta para uma hierarquia de
qual as junções entre fato e de seus pressupostos, mesmo valores, mesmo numa estru-
regra não podem prescindir, se formatando-o sob uma nova tura axiológica verticalizada, da
o que se intenta é descobrir jus- denominação – o realismo cul- qual o ápice se descortina como
tamente a razão lógica de coe- tural – análise acurada e apro- sendo a própria pessoa humana,
rência e fundamento de uma fundada do direito positivo, na exata medida que a cada
ciência que se pretenda apre- aderindo a esta postura um valor corresponde um fato, um
sentar-se e verificar-se como tal. comportamento denotadamen- evento, e sendo o homem uma
Para Reale, haverá sempre te crítico, o qual culminará criatura de per si existente, au-
um caráter integrativo dos ele- numa tentativa bem sucedida tônoma em si mesma, a ela deve
mentos sociais em face de um de aprimorá-lo, sobretudo em necessariamente corresponder
sistema normativo de valores, seu aspecto muitas vezes descui- um valor, o qual se justifica
enfim, como aponta José Crete- dado, a face ética do direito. como o hierarquicamente supe-
lla Júnior “uma subordinação da Partindo da crítica da unila- rior, posto que os demais são
atividade humana aos fins éti- teralidade do sociologismo ju- todos decorrências daquele, por
cos precípuos da conveniên- rídico, cujo fundamento encon- lógica dependência e subordi-
cia” (Cretella Júnior, 1967, p. tra-se na realidade fática, e en- nação; todavia o valor que se
109). troncando uma acendrada ob- posiciona teleologicamente
Partindo de um caráter de servação sobre a unilateralida- para o direito não será o homem
bidimensionalidade e que en- de das teorias formalistas e téc- em si, mas sim uma de suas
contra no tecido sociológico a nicas embasadas única e exclu- maiores virtudes e emanações,
tríade necessária para a confi- sivamente nos aspectos técni- a saber, a justiça, a qual, mes-
guração lógica, do engate subs- cos e puramente normativos, mo diante de sua plúrima sig-
tancial para uma ciência norma- postura um enlace de meio ter- nificação, deve se tornar o ide-
tiva por excelência, Reale pro- mo, de equilíbrio entre as ten- ário de todos os operadores da
pugna a imperiosidade de se dências polarizantes, ensejan- ciência em voga. É por isso que
perscrutar os valores culturais do a atenuação dos rigores do não se pode deixar de conside-
de determinado povo, para ne- formalismo técnico e do rigor rar na obra de professor Reale
les verificar a real necessidade da observação dos fatos sociais; a importância que o contexto
de uma norma, não descuidan- daí porque não rejeita a reali- social desempenha na consa-
do da necessidade de constan- dade histórica dos fatos, even- gração da norma, bem como os
te atenção com o aspecto da to sobremaneira relevante para valores que se realizam efetiva
mutação e conseqüente altera- a transmutação destes mesmos, e concretamente no processo
ção axiológica, decorrente da nem da racionalidade, pano de legisferante e de declinação do
dinâmica social, histórica e, fundo essencial para direito.
portanto, da cultura de valores. a descortinação dos aspectos da Reale afirma em obra de sua
Identifica-se em Reale, em normatização. É como diz lavra que o primado humano na
especial, na manifestação de Cretella Júnior, “ a síntese do ser hierarquia axiológica se justifi-
seu pensamento, uma ótica e do dever-ser ” (Cretella ca logicamente pelo fato de o
toda própria, um mecanismo de Júnior, 1967, p. 110). ser humano ser a única espécie
se entender e compreender o Todavia, parece-nos que Reale dentre os seres viventes que

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possui, além de uma estrutura seja, o valor a cuja atualização pessoa humana a inspirar a sua
psicofísica e biológica (o que tendem os renovados esforços declinação, sendo que a hipó-
não o diferencia dos demais do homem em sua faina civili- tese contrária haverá de reme-
gêneros animais), uma nature- zadora” (Reale, 1998, p. 214). ter o sujeito que não atente para
za capaz de proporcionar uma De fato, repousa na pessoa o seu enunciado principiológi-
mutação na ordem das coisas, humana um diferencial de per co, ou para o arbítrio, para a ile-
da história, mercê de sua capa- si, que não nos permite encon- galidade propriamente dita, ou
cidade de superação; para ele trar outro ser que com ela ou para o abuso do direito, conje-
“a natureza sempre se repete, em face dela encontre equiva- turas que não se coadunam com
segundo a fórmula de todos lência. Na medida e mensura- a liceidade que se espera de
conhecida, segundo a qual tudo ção dos bens jurídicos, indivi- uma ciência que tem na justiça
se transforma e nada se cria. dual ou coletivamente conside- seu ideal a ser alcançado.
Mas o homem representa algo rados, a pessoa humana está
que é um acréscimo à nature- obrigatoriamente em primeiro 2 O DIREITO E A PERFEIÇÃO
za, a sua capacidade de sínte- lugar, antecedendo a configu- DA VIDA HUMANA
se, tanto no ato instaurador de ração de bem interesse a con- Se o homem é um ser gregá-
novos objetos de conhecimen- vergência para o seu aspecto rio por excelência, como afirma-
to, como no ato constitutivo de axiológico, o que por certo nos ria Aristóteles, e se a vida em
novas formas de vida” (Reale, permitirá atribuir valoração sociedade é imprescindível para
1998, p. 211). máxima; nesse sentido, não nos o aperfeiçoamento do próprio
Não refutando a tese que sensibilizam, nem nos seduzem homem, porque é mediante ela
aponta a concepção humanísti- argumentações no sentido de que se permite forjar a educa-
ca que se tem na hodiernidade, que nem mesmo a vida huma- ção da razão e da vontade, fo-
como fruto e vetor de um lon- na é um valor absoluto, na me- mentando-se o exercício da vir-
go e imenso processo históri- dida em que encontramos como tude, e só por meio de uma vida
co, mesmo dialético das diver- lícitos os institutos do estado ativa é que se permite admitir a
sas teorias que se digladiaram de necessidade ou o da legíti- necessidade de uma existência
no percorrer da humanidade, ma defesa no campo do direito de momentos de contemplação,
Reale aponta, embasando-se penal ou do direito resulta forçoso reconhecer que
em Cuvillier, que a chamada civil; o fato é que tais postu- o direito coopera de maneira
“convergência de valores” é de lados do direito, ao invés de essencial para o sucesso da fi-
fato uma resultante do proces- negá-lo, estão certamente por nalidade última da pessoa hu-
so histórico que somente se ratificar, por meio de sua previ- mana, enquanto regra de tute-
verifica numa dada sociedade. são legal, o primado da digni- la da própria existência e sobre-
Não é por outra razão que Rea- dade da pessoa humana como vivência de toda uma raça, de
le encerra o estudo da pessoa valor-fonte de toda a ciência toda uma espécie, isso enquan-
humana como valor-fonte do jurídica; isso porque, nos exem- to determine imperativamente
direito apontando: “a pessoa, plos aventados, tais institutos o concurso efetivo de todos os
como autoconsciência espiri- só poderão ser implementados membros da sociedade para o
tual, é o valor que dá sentido se diante do valor posto em interesse em conjunto – o bem
a todo evolver histórico, ou confronto estiver a dignidade da comum, sendo necessária para

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a obtenção desse desiderato a que impregnam o próprio direi- Prega que o divino direito
presença na lei, e na declinação to, dificultam sobremaneira en- dos Reis é uma invenção dos
e operação desta, o dos ideári- contrar um consenso conceitu- poderosos para opressão dos
os da justiça, ou como nos di- al e satisfatório; contudo pode- humildes.
ria Joaquin Ruiz Gimenez, “el mos constatar que, em meio ao “Todo o poder emana do
estado de seguridad y de paz transcurso histórico da huma- povo” – clama.
que el Derecho constituye – nidade, tais ideários pareceram Daí a necessidade de repre-
pax causatur ex ter sido buscados incessante- sentação popular, através da
iustitia...inquantum ille qui ab mente, como a pedra filosofal, qual esse povo fará reconhecer
iniuriis aliorum abstinet, subs- ou como a panacéia para todos a sua vontade.
tahit litigiorum et tumultum os males, no que identificamos Renascia assim a liberdade,
occasiones –, es de tal suerte uma de suas mais expressivas tal qual a Phénix das próprias
importante para el desenvol- características, a historicidade, cinzas.
vimento del hombre, que debe ou como dos diria, em lingua- Embarcada em navios sem
estimarse como condición in- gem poética, Anacleto de Ma- bússola e exilada nos confins da
dispensable para su realizaci- galhães Fernandes: “Montes- Terra e do silêncio, retornava
ón del bien.” (Gimenez, p. quieu, Voltaire, Diderot e Rous- forte como Hércules e invencí-
125). seau são os arquitetos de um vel como Esparta.” (Fernandes,
Esse bem comum, buscado mundo novo, surgido a partir do 1975, p. 70-71).
e alçado juridicamente, só pode século XVIII. Todos se revela- De fato não há como disso-
ser atingido por meio do reco- ram contra a ordem social exis- ciar-se liberdade e livre-arbítrio
nhecimento da existência de tente; cada um carrega o triunfo do evolver histórico do homem;
desdobramentos naturais do do livre pensamento, do culto à aliás a própria história da hu-
valor-fonte da vida humana, ló- ciência e da crença no progres- manidade nada mais é do que
gicos consectários desse mes- so que a Revolução Francesa con- a história da busca da liberda-
mo valor original, dos quais sagrou como colméia de valores de e da manutenção de suas
enumeramos a liberdade e o eternos. conquistas, o que, mesmo na
livre arbítrio, que, apesar dos Luís XVI, na cadeia, ao reen- proximidade de um novo milê-
pontos em comum, divergem contrar-se com os livros de Vol- nio, ainda não se verificou obti-
em suas específicas finalidades. taire e de Rousseau, gritava: da em caráter definitivo. Con-
Não ousamos ao certo, nem “Estes dois homens destruí- tudo ao direito, numa perspec-
poderíamos fazê-lo, sequer ten- ram a França”. tiva praeter positiva, impõe-se
tar definir em contornos preci- O rei deposto, porém, con- respeitar a pessoa humana, de-
sos os significados destes prin- fundia o despotismo de seu clinando as liberdades públi-
cípios; em verdade sabemos, e governo com o país onde era cas necessárias à consecução
isso podemos afirmar que, a par monarca. da felicidade, algo que para os
do dado cultural, que multipli- Rousseau, no nomadismo norte-americanos, com funda-
ca a plúrima compreensão de de sua imaginação, advoga no mento no direito natural, che-
seus postulados, a ideologia, o contrato social uma nova era de gou a ser erigido em direito
sentido político, a força, mercê liberdade, criando um novo con- público subjetivo.2
da coercitividade e coatividade ceito de sociedade. Tal liberdade, analisável sob

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os ângulos individual ou coleti- sentada pelas palavras direita/ aos norte-americanos do fim
vo, só se torna passível de exer- esquerda, pela qual, coloquial- deste século, ou como diria
citação em meio a um governo mente, uma pessoa de esquer- Kant (1970, p. 76), no sentido
democrático, onde devem pre- da não poderia ser jusnaturalis- de “hospitalidade universal”, no
valecer as tão difíceis (muitas ta. Supondo que isto seja fato, que recebe a complementação
vezes paradoxalmente inatingí- a verdade é que, sendo esquer- de Celso Lafer, quando este afir-
veis) e decantadas regras de da ou direita, não podemos es- ma que “Kant confirma o direi-
consenso, no qual possam ser capar à aceitação de um conteú- to à hospitalidade universal ao
fincados os pressupostos da do mínimo do direito natural” afirmar a existência de um di-
legitimidade. (Gomes da Silva, p. 37-38), o reito comum à posse da super-
Esta liberdade buscada em que se afirma com as observa- fície da terra, pois ela sendo um
seu devir histórico representa ções de L. A. Hart: “Há, contu- globo, os homens não podem
o resultado, o produto de um do considerações mais simples se dispersar infinitamente e
processo histórico dialético, menos filosóficas do que estas, devem tolerar-se uns ao lado
mesmo de luta de classes, no que mostram a aceitação da dos outros, ninguém tendo um
que parece estar presente e sobrevivência como uma finali- direito fundamental, maior do
mais do que a teoria marxista dade que é necessária, num que o do outro, a ocupar um
do materialismo histórico; e sentido mais directamente re- determinado local” (Lafer, 1988,
para aqueles que talvez não levante para a discussão do di- p. 182).
admitam conjugar o direito na- reito humano e da moral.(...) A É portanto de se concluir
tural com o materialismo histó- partir deste ponto, o argumen- que, incumbe ao direito, e es-
rico, vale a pena ponderar a res- to é simples. A reflexão acerca pecialmente ao direito positivo,
peito da atenta observação de de algumas generalizações bas- uma vez que de acordo com
Christian Thomasius “# VIII. Y, tante óbvias - na verdade, tru- Franco Montoro: “o positivismo
si la dureza en la expresión re- ísmos - respeitantes à natureza jurídico, apesar de ligar-se à
sulta menos grata, será lícito humana e ao mundo em que os mesma linha de pensamento,
sustituir ésta por outra menos homens vivem mostra que, en- não se confunde com o positi-
dura. Pues esto quierem decir quanto estas se mantiverem vismo filosófico e o positivismo
los autores de esta opinión: que válidas, há certas regras de con- científico. Ele consiste funda-
el derecho natural obligará a duta que qualquer organização mentalmente na identificação
todos los hombres, cualquiera social deve conter para ser viá- do “direito”, com o direito posi-
que sea la idea de Dios que ten- vel” (Hart, 1986, p. 208-209). tivo” (Montoro, 1997, p. 252),
gam, tanto si son verdadera- Em verdade a assertiva de Hart a tarefa de regular não somen-
mente piadosos, como si son incide no aspecto da sobrevi- te as relações humanas inter e
supersticiosos o ateos” (Thoma- vência humana como o mínimo transindividuais, mas sobretu-
sius, 1994, p. 245). de direito natural que deve ser do o exercício do poder, em to-
De fato, como nos aponta respeitado por todos e isso den- das as suas manifestações, ou
Paulo Thadeu Gomes da Silva, tro de um amplo aspecto de real seja, política, econômica, ideo-
“o debate pode crescer em globalização, compreendida lógica ou psicossocial, posto
abrangência e ir da velha e ain- esta não no sentido neo-impe- que somente através de uma
da importante dicotomia repre- rialista que Galbraith3 imputa normatização eivada e corrobo-

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rada de legitimidade (e não O predomínio do cristianis- quem o humanismo autêntico


pode haver maior legitimidade mo na Idade Média, com sua é o humanismo proletário, so-
do que a lei que ampare e pro- doutrina da alma, preparou o cialista, que preconiza a liber-
mova a dignidade da pessoa terreno para o surgimento do tação dos trabalhadores da ex-
humana) é que se pode pensar humanismo renascentista, que ploração capitalista, como pri-
tutelar a pessoa como ser, como encontrou sua expressão máxi- meira etapa da integração do
ente, como a mais perfeita ar- ma nas obras de homens como homem em sua verdadeira
quitetura, dentre todas as obras Petrarca, Boccacio, Pico della posição no mundo.
do Criador de todas as coisas. Mirandola, Erasmo e Thomas Contudo, teve o humanismo
Morus. Como movimento cultu- o mérito de estabelecer a con-
3 A INFLUÊNCIA DO ral, resultou do estudo dos clás- vicção da necessidade imperio-
HUMANISMO NA DEFINIÇÃO sicos da Antiguidade greco-ro- sa do reconhecimento da
DE PESSOA HUMANA mana, os quais proporcionavam liberdade; segundo Hegel, esta
A expressão “humanismo” a revelação do valor intrínseco observação é recente na histó-
foi empregada pela primeira vez da vida humana em face da ria, dado que nem Platão, nem
pelo pedagogo bávaro F. J. Nie- morte e da grandeza de suas Aristóteles souberam que o ho-
thammer, que entendia ser o possibilidades. Em sua última mem enquanto tal era livre: “A
sistema de educação tradicional etapa, o humanismo renascen- exigência infinita da subjetivi-
que visa à formação da perso- tista limitou-se a grupos cada dade, da autonomia do espírito
nalidade total e da humanida- vez mais restritos de sábios em si era desconhecida dos ate-
de pelas “humanidades”, ao latinistas. nienses” (Hegel, 1954, p. 11).
qual se opõem as escolas que Nos séc. XVIII e XIX, a pala- Johannes Messner (p. 12-20)
se designaram de filantrópicas, vra humanismo ganhou novas aponta duas formas de huma-
enquanto que, de fato, elas le- dimensões com as obras dos nismo: o humanismo cristão,
vam à animalidade e não à hu- enciclopedistas e com o cienti- inspirado na antropologia em-
manidade (Brandão, 1990, p. ficismo. O filósofo inglês Schil- pírica, na antropologia cristã; e
300). Em verdade, o humanis- ler definiu o humanismo moder- o humanismo naturalista, no
mo foi um movimento cultural no como a “concepção de que qual distingue o humanismo
surgido na Europa durante a os problemas se limitam ao ser racionalista, o dialético – mate-
Renascença, que atribuiu impor- humano, esforçando-se para rialista –, o psicanalista, o beha-
tância fundamental ao homem, compreender um mundo de viorista, o biológico-evolucionis-
a seus interesses e aspirações experiência humana através ta, o neopositivista, o existen-
temporais. Os gregos distingui- dos recursos da humana inteli- cialista e o idealista, os quais,
am o humano do animal e do gência”. A essa conceituação se cada um a seu tempo, tiveram a
divino e, ao comparar o homem opuseram tanto o humanismo capacidade de formatar a cons-
com as divindades, davam ên- cristão, de Jacques Maritain, que ciência humana, transmigrando
fase a certos aspectos da natu- via no desenvolvimento de to- o homem para o centro do uni-
reza humana, como a mortali- das as virtualidades do homem verso, mesmo que, para as teo-
dade e a falibilidade. Eis por que a fonte do humanismo, como a rias cristãs, este continuasse
supervalorizavam os atributos doutrina do materialismo histó- sendo dependente de Deus.
divinos. rico, de Marx e Engels, para Teve o humanismo, em sua

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vertente principal, o condão valorização da humanidade en- ma; é justamente no aspecto


também, segundo Alain Re- quanto capacidade de autono- volitivo, na vontade livre e deli-
naut, de dimensionar uma li- mia, ambas constitutivas do berada, fundamentada no cam-
berdade diversa da anterior- humanismo moderno e condu- po racional e na livre escolha do
mente suposta, uma liberda- toras, ao longo de complexo pensamento, onde identifica-
de que se pressupunha de percurso, à afirmação do indi- mos a mais pura legitimidade,
fato, uma verdadeira autono- víduo enquanto princípio? Na que recepciona todo o aparelho
mia, pelo que leciona: “O ter- verdade o que define intrinse- normativo dando-lhe validade,
mo autonomia é de cunhagem camente a modernidade é, sem no sentido amplo da expressão;
grega. De fato, um certo nú- dúvida, a maneira como o ser ainda que tais normas vez ou
mero de textos faz referência humano nela é concebido e afir- outra venham a ser descumpri-
à autonomia quando trata da mado como fonte de suas repre- das ou violadas, tais fatos não
liberdade. Por vezes, ambas as sentações e de seus atos, seu lhe tolhem a força imanente que
expressões – liberdade (eleu- fundamento (subjectum, sujei- se lhe acompanha, ao contrário,
theria) e autonomia – encon- to) ou, ainda, seu autor: o ho- apenas realçam o papel da for-
tram-se expressamente asso- mem do humanismo é aquele ça da liberdade humana na exis-
ciadas para definir a condição que não concebe mais receber tência, mercê do livre-arbítrio,
de uma cidade não submissa normas e leis nem da natureza característica específica e exclu-
à dominação externa. das coisas, nem de Deus, mas siva do homem, único ser de
(...) Há forte tendência da que pretende fundá-las, ele pró- todas as espécies animais que
interpretação sugerindo conclu- prio, a partir de sua razão e de pode exercer a tarefa de pen-
sões de matizes diferentes, sua vontade. Assim o direito sar e escolher, ponderando, di-
como estimar que a problemá- natural moderno será um direi- ferindo, descobrindo e eventu-
tica moderna da liberdade es- to subjetivo criado e definido almente, criando valores. No en-
teja completamente contida no pela razão humana (racionalis- tanto a dificuldade persiste em
modelo grego, no qual a idéia mo jurídico) ou pela vontade adequar a mais perfeita autono-
de autonomia estaria, desde já, humana (voluntarismo mia, ou a livre vontade huma-
sendo aplicada não só à cida- jurídico), e não mais um “direito na, dirigindo-a (voluntariamen-
de, mas também às pessoas. objetivo”, inscrito em qualquer te, para sermos pleonásticos)
Partindo dessa orientação con- ordem imanente ou transcen- para o bem comum, para que à
tinuísta, é forte a tentação de dente do mundo”. guisa da heteronomia, caracte-
considerar que a lógica interna De fato, o humanismo, não rística própria da regra de di-
da cultura grega já então resi- esgotado em suas primordiais reito, possa ela vir a ser alçada
dia numa exigência clara e as- delineações, protraiu-se até a à categoria de norma ética por
sumida de autonomia: durante modernidade, fincando-se na excelência, no sentido da felici-
quatro séculos de cultura helê- idade contemporânea; visto em dade do homem.
nica, o processo democrático sua incidência no direito, impor-
particularmente testemunhou ta em reconhecer a necessida- 4 A PESSOA
tal exigência. de de um consenso, algo que HUMANA E O DIREITO
(...) O que supõem, efetiva- dê mais do que a eficácia tão NATURAL
mente, essa concepção e essa decantada pelos puristas à nor- Conquanto se possa afirmar

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que a dicotomia entre direito parte daquilo que se entende e do Direito, juntamente com o
natural e direito positivo esteja por ‘homem’, seja do ponto de mútuo condicionamento onto-
hoje “operacionalmente enfra- vista de sua ‘indeterminação’ lógico de ambos. Elas visam
quecida” (Ferraz Júnior, 1997, originária, seja na perspecti- suprimir pelo menos um possí-
p. 171), seja pelo fato de pre- va do que se considera como vel conflito metodológico entre
ceitos tidos por jurinaturalistas sendo a determinação essen- jusnaturalismo e positivismo
encontrarem-se efetivamente cial deste ser em seu sentido jurídico” (Van Acker, 1983,
positivados, sobretudo nas moral. O que leva a conside- p.67-78); sobre o mesmo tema
constituições (como ocorre por rar a humanidade um predica- dirá Bobbio que “a distinção
exemplo com o próprio princí- do histórico, dependente dos clássica na linguagem dos juris-
pio da dignidade da pessoa hu- diversos modos através dos tas da Europa continental é en-
mana, insculpido no art. 1º, III quais as diferentes institui- tre ‘direitos naturais’ e ‘direitos
da Constituição Federal) seja ções sócio-políticas concebe- positivos’. Da Inglaterra e dos
pelo fato de os direitos funda- ram o ser do homem no trans- Estados Unidos... chega-nos a
mentais encontrarem-se de cer- curso da história” (Rosenfield, distinção entre moral
ta forma, como afirma Tércio 1990, p. 132). rights e legal rights... o único
Sampaio Ferraz Júnior (1997, Muitos advogaram a tese, modo para nos entender é
p. 171), “trivializados”, por se elaborada pelo positivismo kel- reconhecer a comparabilidade
tornarem tão notórios que qua- seniano, que a moral encontra- entre as duas distinções, em
se deles não nos damos conta, va-se totalmente dissociada do função da qual ‘direitos morais’
o fato é que, para efeito de uma direito, não havendo que con- enquanto algo contraposto a
compreensão do fenômeno fundi-los, nem centrá-los num ‘direitos legais’ ocupa o mesmo
axiológico que alçou a pessoa mesmo eixo; contudo, outros espaço ocupado por ‘direitos
humana ao degrau máximo da estudiosos, críticos de tal visão naturais’ enquanto algo contra-
hierarquia de valores, temos compartimentada, como Van posto a ‘direitos positivos’. Tra-
que passar necessariamente Acker entendem, como nós, ta-se em ambos os casos de
por essa discussão, até porque que, partindo-se das premissas uma contraposição entre dois
ela, como veremos, pelo menos de que a moral não pode nem diversos sistemas normativos,
do ponto de vista histórico, fir- deve ser fundamento lógico do onde o que muda é o critério
mou-se como a base de susten- direito, de que a moral é uma de distinção. Na distinção en-
tação de todo o pináculo do condição ontológica necessária tre ‘moral right’ e ‘legal right’,
humanismo, e conseqüente- à existência do direito, e, reci- o critério é o fundamento; na
mente do valor atribuído pelo procamente, o Direito é uma distinção entre ‘direitos natu-
direito ao homem. condição ontológica para à exis- rais’ e ‘direitos positivos’, é a
Há quem participe como tência da Moral e por fim, de origem” (Bobbio, 1992, p. 7).
Reale da idéia de que o direito que a obrigação moral não é Ainda que atualmente possa-
natural é um produto histórico, fundamento suficiente nem ne- mos presenciar cenas freqüen-
assim como ocorre como a con- cessário à obrigação jurídica e tes de barbárie, típicas da Ida-
cepção de pessoa humana; vice-versa, “ilustram a mútua de Média, quando por exemplo,
“predicar a humanidade do autonomia ou independência cabeças são degoladas como
homem é uma operação que lógica e deontológica da Moral sinal de força e de poder, ou

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povos, nações inteiras são sub- na e do humanismo moderno; todas as virtudes e defeitos ine-
metidas ao flagelo do genocí- é que este em seu repertório de rentes à alma humana, conta-
dio e da destruição, como ve- ideários propugna, entre outras minando o ordenamento, por
mos em Timor Leste, em Ruan- faces, a de um conjunto de re- vezes, como diria Hart, com as
da, ou ainda em qualquer cen- gras que centram o homem e a inerentes “patologias do sistema
tro urbano cosmopolita (sendo essência humana como vetor da jurídico” (Hart, 1980, p. 146).
up to date, cabe mencionar a aplicação de toda e qualquer
hecatombe das FEBEM de São regra de direito legítima, ou CONCLUSÃO
Paulo) pessoas sendo descarta- como afirma Basave del Valle, Os direitos fundamentais da
das, como produtos supérfluos, vendo na pessoa humana a pe- pessoa humana representam
portanto absolutamente pres- dra de toque do direito natural: uma conquista da humanidade
cindíveis dentro de uma socie- “o problema fundamental é o de em seu perpétuo devir. A hos-
dade de mercado, no que nos determinar a essência e estru- pitalidade universal, da qual nos
apóia Hannah Arendt, sob a lei- tura do homem em sua integri- fala Kant, não é apenas um ide-
tura de Celso Lafer: “Em verda- dade e unidade. O fazer do ho- al platônico a ser alcançado,
de, depreende-se da análise mem interessa-nos, sobretudo mas uma realidade possível e
arendtiana a persistência de porque nos leva ao seu ser, ao atingível. A conscientização da
uma situação-limite que exige sentido de sua existência – in- existência de tais direitos deve
um pensar sobre o conhecer, dividual, histórica e social – a preceder quaisquer formas de
que não pode ter como pressu- sua relação com a realidade úl- instrumentalização, sob pena
posto a razoabilidade do mun- tima, metafísica, ao seu ponto de se criar todo um arcabouço
do para qualquer um, seja ele no cosmo” (Del Valle, 1975, p. jurídico com escopo tutelar e
quem for, pois seres humanos, 23). não se alcançar a declinação da
em número crescente, correm É ainda o direito natural, a justiça, mercê da inexistência
o risco de se tornarem supér- base do direito positivo, como de incorporação subjetiva dos
fluos e descartáveis em termos sustenta Francisco Puy: “O di- preceitos éticos que devem
estritamente utilitários” (Lafer, reito natural é o fundamento do anteceder a elaboração da pró-
1988, p. 113), mesmo assim Direito em sentido objetivo - pria norma jurídica.
deflui a necessidade de, dentro fundamento de toda lei jurídica Todavia, criada a regra de
de uma sociedade que se pres- - e em sentido subjetivo, fun- proteção dos direitos funda-
supõe civilizada ou que intenta damento de toda faculdade ou mentais, cumpre a ela exercer
atingir a maioridade no estágio exigência jurídica” (Puy, 1974, um papel pedagógico, didático,
próximo do evoluir humano, a p. 645-647), afinal, como diria no sentido da irradiação destes
tutela da pessoa, individual ou Paulo Dourado de Gusmão, mesmos direitos como facultas
coletivamente considerada, ou “seja qual for a natureza que se agendi, dada a existência de
ainda sob a forma dos direitos dê ao direito, uma coisa é cer- fato e de direito da norma agen-
difusos que se lhe dependam. ta: é obra humana ” (Gusmão, di. Nesse diapasão, ao
Nesse diapasão o direito na- 1966, p. 45), no que vale dizer Estado, em todas as formas de
tural parece nos ser extrema- que a criação recebe ao certo a expressão do poder, cumpre
mente atual e benéfico para a carga hereditária, mesmo um importante papel a ser
compreensão da pessoa huma- genética de seu criador, com desempenhado, bem como à

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coletividade. cia como regras de conteúdo recepção de todos e quaisquer


Ao Legislativo cumpre proce- moral ou ético, desprovido de direitos fundamentais que te-
der à incorporação dos textos obrigatoriedade. nham por precisa objetividade a
de gênese internacional no or- O plano adequado para a tutela da dignidade da pessoa
denamento jurídico pátrio (au- incorporação de tais direitos é humana, tal como ocorre com
xiliado neste mister pelo Exe- a constituição; ela, como ápice nosso art. 5º, § 2º da constitui-
cutivo), bem como legisferar, do sistema e do ordenamento ção federal; recomenda-se tam-
criando regras de índole cons- jurídico, apresenta-se como es- bém, além da correspectiva pe-
titucional ou infraconstitucio- pécie normativa moldada para trificação, o reconhecimento de
nal, viabilizadoras do exercício o recebimento de tal comando, sua auto-aplicabilidade, tal como
de tais direitos e punitivas-edu- recomendando-se ainda a petri- igualmente prevê a nossa Lei
cativas da violação dos mes- ficação dos direitos fundamen- Maior em seu art. 5º, parágrafo
mos; ao Executivo importa cum- tais, como medida saudável, primeiro, justamente para que o
prir tais normas com exatidão apta a torná-los infensos à sa- seu exercício independa de in-
e exemplaridade, fiscalizar o nha modificadora ou extintiva junções ou da edição de instru-
seu cumprimento, e reportar-se destes mesmos direitos, em mentos normativos infraconsti-
quanto a hipóteses de sua vio- face do poder constituinte tucionais.
lação; já ao Judiciário, declina- reformador. Como alertou Hannah Arendt,
se a responsabilidade de pro- Os direitos fundamentais re- a diversidade humana em si já é
nunciar-se quanto à regra juri- presentam ainda parte do míni- um obstáculo para a criação de
discizada, punindo e educando mo irredutível, ao qual regras perfeitas e voltadas para
os violadores de tais direitos Loewenstein se reporta, no que um interesse geral; contudo é
com a imparcialidade que lhe quer dizer que toda Carta deve preciso encontrar um consenso
deve ser imanente; à coletivida- prevê-los, posto matéria indis- naquilo que precisa ser objeti-
de, por sua vez, destinatária pensável e de índole absoluta- vamente tutelado, e sob a ins-
que é da norma de proteção, mente constitucional; a impos- piração kantiana, pensamos
impõe-se o dever de conhecê- sibilidade da enunciação de um que este não pode ser outro
la, incorporá-la e exigir sua fiel rol completo de direitos da pes- valor, outro bem-interesse que
observância. soa humana taxativo, que esgo- não a dignidade da pessoa
A própria história da huma- tasse todas as hipóteses obri- humana.
nidade demonstrou que a soci- gatórias de tutela, se nos apre- A dignidade, valor-fonte de
edade fica por demais fragiliza- senta impossível e inviável, interpretação e de aplicação da
da quando os súditos de deter- dada a própria dinâmica da norma jurídica, na expressão
minado Estado não encontram aventura humana, a qual está realiana, supera todos os de-
uma regra de proteção da pes- sempre pronta a nos surpreen- mais valores, tomando-se como
soa humana, no que reconhe- der com uma nova geração de possível falar-se numa hierar-
cemos ser imprescindível que se direitos de determinada espé- quia axiológica; esta dignidade
proceda à juridiscização dos cie ou categoria. representa o consenso e como
preceitos de Direitos Humanos, Recomenda-se assim a criação tal imprescinde ser tutelada,
não bastando, para tanto, o sim- de um dispositivo constitucional sendo que o instrumento para
ples enunciado de sua existên- que albergue a possibilidade de tanto mais eficaz e democráti-

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co é a norma jurídica, como dis- co, fato este que desperta, na prática de crimes e contraven-
semos, na espécie constitucio- Ciência do Direito, reclamo de ções de toda ordem.
nal; para tanto impõe-se que grande atualidade. Os ideais do humanismo,
esta seja elaborada no exato li- De outro lado, e a par das igualmente apregoados pelo
mite da manifestação volitiva dificuldades inerentes à sínte- direito natural, e por diversas
tutelar, guardados aí os interes- se de um material de tão gran- vezes juridiscizados no direito
ses pessoais, econômicos, po- de vulto, ficamos por demais positivo não lograram ainda (e
líticos, ou quaisquer outros, que impressionados com o fruto, pelo visto não terão o condão
não os da própria pessoa. com o produto de nossas refle- de fazê-lo) salvar a humanida-
Os direitos fundamentais xões, as quais nos inspiraram a de dos riscos e perigos propor-
devem assim ser estabelecidos reafirmar que Miguel Reale teve cionados por ela mesma, mer-
com independência, para que se um toque de genialidade, algo cê das características intrínse-
garanta sua imunidade do porte de uma revelação, ao cas, múltiplas, plúrimas e vari-
perante o Estado e até mesmo propugnar a pessoa humana áveis da própria essência e na-
diante das maiorias, presentes como valor-fonte do edifício do tureza humana, como são a
que se encontram e atuantes Direito, do qual se destaca mutabilidade, a dissonância
numa ordem democrática; esta como o ápice da estrutura hie- cultural, filosófica, lingüística,
proteção a mais permitirá reco- rárquica axiológica, seja sob o ideológica e religiosa, naquilo
nhecer a necessidade de tute- aspecto objetivo, seja sob o que recebeu a feliz síntese de
la, casuisticamente, não porque prisma metafísico. Hannah Arendt, a permanente
o destinatário pertence a este Contudo, mesmo a humani- imprevisibilidade de nossa es-
ou aquele grupo (disseminado dade encontrando-se às portas pécie; mesmo assim, prossegui-
em meio aos fatores reais de de um consenso, e entendendo mos, vendo no Direito, e na Fi-
poder dos quais nos fala Lassa- mais do que nunca a necessi- losofia que se lhe imanta, ins-
le), mas somente pelo fato de dade de uma hospitalidade uni- trumentos absolutamente im-
pertencer ao gênero humano, e versal como nos diria Kant, ain- prescindíveis na correção das
portanto ser titular da expres- da assim nos encontramos in- distorções e desvios que nos
são de maior relevo entre to- seguros, e freqüentemente ex- separam da perfeição que pre-
dos os demais bens jurídicos: postos a espetáculos hediondos tendemos utopicamente al-
a dignidade do ser, simples- de barbárie e de destruição, os cançar.
mente, pelo fato de ser e de quais nos colocam lado a lado
existir. com os piores algozes da Idade
Outrossim, temos por certo Média; campeiam no mundo a
que o presente trabalho, face a fome e os genocídios, os homi-
sua simplicidade, não nos ofe- cídios por razões vis, e daqueles
rece possibilidade de dissertar que se espera o exemplo, dos lí-
sobre tema tão profundo qual deres e governantes dos mais
seja o da dignidade da pessoa diversos Estados, verifica-se,
humana sob o ângulo axiológi- com reiterado cometimento, a R

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NOTAS
1 É o que dispõe o art. 1º, III da Cons- os poderes da Terra, posição igual mais conveniente para realizar-lhe
tituição da República Federativa do e separada, a que lhe dão direito as a segurança e a felicidade ” (grifo
Brasil de 1988: leis da natureza e as do Deus da nosso).
“A República Federativa do Brasil, natureza, o respeito digno às opi-
3 Em recente pronunciamento à rede
formada pela união indissolúvel dos niões dos homens exige que se
Estados e Municípios e do Distrito declarem as causas que os levam CNN, o economista Galbraith afir-
Federal, constitui-se em Estado De- a essa separação. mou que o conceito de globalização
mocrático de Direito e tem como Que a fim de assegurar esses direi- é “apenas um neologismo para mais
fundamentos: tos, governos são instituídos entre uma forma de os Estados Unidos
III – a dignidade da pessoa humana; os homens, derivando seus justos continuarem se enriquecendo à
2 poderes do consentimento dos go- custa da exploração dos países em
É o que dispõe o preâmbulo da Cons-
tituição dos Estados Unidos da Amé- vernados; que, sempre que qualquer desenvolvimento”. Essa afirmação
rica, constante da Declaração da forma de governo se torne destruti- vinda, nada mais nada menos, do
Independência: va de tais fins, cabe ao povo o direi- que da boca do idealizador do new
“Quando, no curso dos acontecimen- to de alterá-la ou aboli-la e instituir deal, o grande plano de recupera-
tos humanos, se torna necessário novo governo, baseando-se em tais ção econômica implementado no
um povo dissolver laço políticos que princípios e organizando-lhe os governo de Roosevelt, soa no míni-
o ligavam a outro, e assumir, entre poderes pela forma que lhe pareça mo extremamente interessante.

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