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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Trabalhadores em cena:
experimentos antropológicos sobre o ofício do ator

Angela Domingos Peres

Rio de Janeiro
2018
Trabalhadores em cena:
experimentos antropológicos sobre o ofício do ator

Angela Domingos Peres

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisites necessários
à obtenção do título de Doutor em Antropologia.

Orientador: José Sérgio Leite Lopes

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018

ii
Domingos, Angela
Trabalhadores em cena: experimentos antropológicos sobre o ofício do ator./ Angela
Domingos Peres. Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional/ PPGAS, 2018
xii, p.315
Orientador: José Sérgio Leite Lopes
Tese (doutorado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, 2015.
Referências Bibliográficas: pp. 313


1. Atores 2.Antropologia do trabalho. 3. Condições de Trabalho. 4. Experiência 5.


Escrita 6. Trabalho sobre si. I. Leite Lopes, José Sérgio. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III.
Trabalhadores em cena: experimentos antropológicos sobre o ofício do ator.

iii
Trabalhadores em cena:
experimentos antropológicos sobre o ofício do ator

Angela Domingos Peres


Orientador: José Sérgio Leite Lopes

Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia.

Aprovada por:

______________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes,
Presidente da Banca PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

______________________________________
Profa. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_____________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

______________________________________
Profa. Dra. Marta Cioccari,
PPGCS/UFFRJ

______________________________________
Profa. Dra. Tatiana Sicilliano
PUC- Rio

______________________________________
Dra. Isis Ribeiro Martins (suplente)

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018

iv
A todos aqueles que anseiam tomar consciência dos conceitos que
encarnam, para que assim, possam escolher o texto a vivificar.

v
Agradecimentos

Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) por fornecer as condições


materiais para que minha existência enquanto pesquisadora fosse viabilizada. De todas as
políticas de redução das desigualdades no Brasil, as bolsas de pesquisa e outras formas de apoio
ao ensino e ao acesso à educação, cumpriram na última década um importante papel na
sociedade. Desde 2005, quando fazia parte de um cursinho comunitário e nos acorrentamos em
frente à Faculdade de Direito da USP pedindo cotas nas universidades públicas, até o fim da
escrita dessa tese, acompanhei diversos amigos serem os primeiros de suas famílias a obterem
o diploma de curso superior. Quando vejo atualmente padrões estéticos serem abalados, a
discussão sobre “lugar de fala” na academia e nas letras de rap, e o intense fluxo entre
discussões da academia e das militâncias se intensificar, reconheço que são elementos fruto da
entrada de pobres e negros nas universidades. Apesar da perspectiva presentificada de fim
desses investimentos para a redução das desigualdades educacionais, agradeço pelo que foi.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
(PPGAS-MN), a todo seu corpo docente e aos funcionários. Agradeço ao professor Gilberto
Velho (in memorian), por me inspirar mesmo antes e depois de nosso convívio, por me
apresentar outras formas de ver ambientes tão caros a mim e por me ensinar a observar de perto.
Agradeço ao professor José Sergio Leite Lopes pelo apoio na caminhada e compreensão quanto
ao tipo de envolvimento com o universo acadêmico que eu desejava alimentar. Agradeço aos
professores Luiz Fernando Dias Duarte, Marta Cioccari e John Commeford pelas disciplinas
oferecidas no Museu Nacional que tanto contribuíram para essa tese. Ao Luiz Fernando e
Marta, agradeço ainda a contribuição na qualificação e o aceite para compor a Banca. Agradeço
também à Adriana de Resende Barreto Vianna, Tatiana Sicilliano e Ísis Ribeiro Martins o
pronto aceite para a composição da Banca.
Tatiana Sicilliano e Ísis Ribeiro Martins fazem parte também de um outro grupo de
agradecimentos, os orientandos do professor Gilberto. Minha Gratidão a elas e à Carolina de
Oliveira Nogueira, à Raquel Sant’Ana, ao Caio Gonçalves Dias e à Silvia Monnerat que fizeram
parte de um rico ambiente de troca e me mostraram a existência de um ambiente saudável para
o pensar. Além deles, agradeço à Julia O’Donnell e à Karina Kuschnir pelos esforços em nos
manter unidas mesmo sem o prof. Gilberto nos observando tão de perto.
Agradeço aos amigos e professores que fiz num tempo mais distante, porém não menos
importante, que foi o da graduação. Agradeço à profa. Lúcia Arrais Morales, que me ensinou a

vi
andar na antropologia. Através dos ensinamentos dela constituí o gosto por essa forma de pensar
o mundo e as ferramentas base, que utilizo até hoje. Agradeço por sua leitura atenta das quase
mil paginas de relatórios de campo e transcrições das entrevistas dessa pesquisa. Agradeço ao
tempo, atenção e pensamento nas horas que passamos no telefone meses a fio. Lúcia lutou com
sua amizade para que eu não corresse de braços abertos para o palco desistindo do projeto de
doutoramento. Essas palavras de agradecimento não dão conta de agradecer realmente sua
contribuição para esse trabalho. Obrigada ao Márcio Adriano de Paula, meu amigo desde o
primeiro dia de aula na graduação e atual colega de doutoramento. Além da troca de reflexões
antropológicas, Marcio e eu lembramos um ao outro de todo o esforço que fizemos para dar
conta de sermos acadêmicos numa academia que não foi criada para nos receber. Se por um
lado somos sempre os únicos negros da sala de aula, passamos também a ser os únicos mestres
e agora doutores de nossos círculos familiares, de amizade e de militância. Em muitos
momentos só ele via o que eu via. Agradeço à Jacqueline Jaceguai e à Janaína Carvalho pela
amizade que não tem nome. Quando me vejo nos olhos delas, me sinto mais forte.
Agradeço aos amigos e parceiros de arte que não faz sentido nomear aqui, quebrando o
anonimato das entrevistas. Agradeço aos professores e colegas da faculdade de Artes Cênicas.
Agradeço a todos os profissionais com quem trabalhei enquanto atriz, especialmente àqueles
da última série, a primeira que protagonizei. Como disse minha professora, preparadora vocal
e amiga Rose Gonçalves, foi minha pós-graduação como atriz. Obrigada Rose, por todo o seu
carinho, paciência e maestria na sua arte de ensinar o ator. Ela sempre tinha uma solução para
questões de diversas ordens, simplesmente alguém que ama o ser humano e está aberta a ouvir,
no sentido mais poético que esse verbo pode assumir.
Agradeço algumas amizades na arte que não estão nesta pesquisa e, portanto, podem ser
mencionadas. Ao Bernardo de Assis, pelas trocas nos exercícios de formação – você foi meu
parceiro mais potente –, por acreditar em mim e na minha arte e por me ensinar o real
significado de essência. Ao Luiz Antônio Pilar pelas conversas que interseccionavam artes
cênicas, academia e militância. Tem conversas que ou acontecem com aquela pessoa, ou não
acontecem, nesse caso é assim. Quem mais teria interesse em tudo isso junto? Também
agradeço ao Anderson Jesus pelas trocas no universo do audiovisual e conversas sobre relações
de trabalho nesse campo. A alguns parceiros de arte como Fúlvio Munhoz e Marllem pela
generosidade irrestrita na troca. A música dele, a dança dela e a minha cena, nossa união criativa
criou uma obra delicada e potente, de onde só transbordou amor. Ao Alexandre Cumino, que
por amar a arte, edificou conosco essa obra.

vii
Obrigada aos novos parceiros de caminhada que olham para o mesmo horizonte que eu
e que anseiam realizar nesse mundo, feitos próximos aos que eu sempre intentei realizar:
Rovier, Qiah e Marcos Reis. Ao Marcos em especial pela proporção gigantesca de troca em
diversos níveis de arte. Que as sementes dessa caminhada conjunta germinem até onde os olhos
ainda não alcançam.
Agradeço aos 19 entrevistados dessa pesquisa. Vocês me ajudaram muito mais do que
podem calcular. Não se trata apenas da tese. Trata-se de um pensar sobre a profissão que não
teria sido possível sem a contribuição valiosa de vocês. E pensar a profissão, significa pensar a
mim mesma no mundo. As elaborações feitas através do material que vocês me proporcionaram
agora fazem parte de mim, da minha constituição.
Agradeço a Nilton Cesar Ferreira Marcondes pela parceria de vida que durante quase
todos os anos de pesquisa se fez presente. Sua contribuição para esta pesquisa é imensurável,
seu apoio, seu afeto e seu cuidado. Meu amor à história que vivemos e a tudo o que ela
representou.
Obrigada à minha mãe Iraci Domingos pelo exemplo de força e trabalho. Pelo amor,
generosidade e compreensão com o qual recebeu a notícia de que eu mudaria de carreira
profissional e me dedicaria à arte. Obrigada à minha cunhada Daniela Vazquez pelo apoio e à
minha irmã Luiza Domingos Peres pelo amor sempre presente. Seu apoio e admiração sempre
estiveram ali para me lembrarem de quem eu sou. Iraci e Luiza estão em todo o que eu faço,
nossa tríade de amor nos enaltece reciprocamente e cada marca deixada no mundo por uma de
nós, nos conterá a todas de algum modo.

viii
RESUMO

A presente tese investiga o ofício do ator através das concepções que este porta sobre a profissão
e sobre as condições necessárias para realiza-la. O Rio de Janeiro, chamado de Hollywood
brasileira foi o lugar onde a pesquisa se desenvolveu. Através de uma amostra por rede de
interação, realizamos entrevistas extensas com 19 atores que originou quase mil páginas de
transcrições. A pesquisa ser realizada por uma atriz que pesquisa sua própria rede de interação
trouxe especificidades para a reflexão metodológica da pesquisa. Lidar com a instabilidade
profissional e estabelecer os próprios parâmetros para o que considera condições de trabalho
são desafios vividos diariamente por esses indivíduos. O modo com o qual o ator compreende
a constituição do ser implicará diretamente no modo como desenvolve seu fazer cênico. Esta
pesquisa visa fornecer elementos para que atores tenham mais ferramentas para elaborar seu
fazer e posicionar-se diante das suas relações de trabalho. Além disso, visa fornecer elementos
para que não-atores pensem os atores e pensem a si mesmos nos movimentos de aproximações
e distanciamentos possíveis ao se comparar outras realidades profissionais.

Palavras-chave: Atores, Antropologia do trabalho, Condições de trabalho, Experiência, Escrita,


Trabalho sobre si.

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018

ix
ABSTRACT

The presente thesis researchs the actor’s work through the conceptions that he has about the
profession and the necessary conditions to realize it. Rio de Janeiro, called the Brazilian
Hollywood, was the place where research developed. Through a sample by interaction network,
we conducted extensive interviews with 19 actors that originated almost one thousand pages of
transcriptions. The research being performed by an actress who researchs her own interaction
network, brought specificities to the methodological reflection of the research. Dealing with
professional instability and setting their own parameters for what they consider working
conditions are daily challenges faced by these individuals. The way which the actor understands
the constitution of being will directly imply how he develops his scenic doing. This research
aims to provide elements so that actors have more tools to elaborate their doing and to position
themselves in their working relations. Moreover, it aims to provide elements for non-actors to
think the actors and to think to themselves in the movements of possible approximations and
distances when comparing other professional realities.

Keywords: Actors, Anthropology of Work, Working Conditions, Experience, Writing, Work


on self.

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018

x
SUMÁRIO

Introdução ....................................................................................................................p.1
O Oceano Antropológico .............................................................................................. p.4
Caminhando para a pesquisa ......................................................................................... p.11
Os 12 trabalhos, exceto para alguns............................................................................... p.13
O dia depois de Amanhã, ou de que lado estou? ........................................................... p.15
Da muralha à ponte: comunicação como matéria-prima ............................................... p.17
A trilha pensada no mapa possível ................................................................................. p.19

Parte I – “O mais fácil é a música”............................................................................p.24

Capítulo 1 – Instabilidade: Configurações sobre a organização do trabalho ........p.26


1.1 Liberdade e desapego .............................................................................................. p.29
1.2 E quando o dia 10 chegar? ...................................................................................... p.35
1.3 Prefiro passar dificuldade sozinho .......................................................................... p.48
1.4 Saídas para ficar ...................................................................................................... p.55
1.4.1 Diversificar o campo ......................................................................................... p.56
1.4.2 Diversificar a função ......................................................................................... p.77

Capítulo 2 – Condições de trabalho ......................................................................... p.89


2.1 Vidas em jogo ........................................................................................................ p.94
2.2 Explode coração: trabalho e amor ......................................................................... p.108
2.2.1 Tentei pagar minhas contas com amor e não aceitaram ..................................... p.115
2.3 Laços de Família: o tempo das relações ................................................................ p.136
2.3.1 Nem olha na tua cara .......................................................................................... p.151
2.3.2 Prometo ser bom professional nas boas e nas más energias ............................... p.162

Parte II – O Verbo .................................................................................................... p.177

Capítulo 3 – A questão da experiência ................................................................... p.178


3.1 Experiência: o trabalho sobre si ........................................................................... p.180
3.2 Os relatos de Stanislavski ..................................................................................... p.186

xi
3.3 A Ética ................................................................................................................... p.194
3.4 Quem sou eu para não sentir? ............................................................................... p.208
3.5 Eu pintor, eu pincel, eu obra de arte: a experiência e sua totalidade .................... p.216

Capítulo 4 – (In)consistências do Ser ....................................................................... p.250


4.1 Trabalho e método ................................................................................................. p.250
4.1.1 A herança do método .......................................................................................... p.268
4.2 OFF/ON: A poética do Ser .................................................................................... p.277
4.2.1 Um banho ou um copo de cerveja ...................................................................... p.279
4.2.2 “Aí é um prazer que você jamais vai conseguir traduzir” .................................. p.289

Considerações Finais.................................................................................................. p.307

Referências Bibliográficas ......................................................................................... p.313

xii
Introdução

“Eu segurei minhas lágrimas,


pois não queria demonstrar a emoção,
Já que estava ali só pra observar
e aprender um pouco mais sobre a percepção.
Eles dizem que é impossível encontrar o amor
sem perder a razão,
Mas pra quem tem pensamento forte,
o impossível é só questão de opinião.
E disso os loucos sabem.”
(Chorão e Thiago Castanho)

Olhar para o que está além do intencionalmente apresentado pode ser considerado uma
tarefa antropológica. Estou na coxia e dali começo a transformar em capítulos o que se inicia
com o fechar das cortinas. Teço a antropologia com o figurino que rasgou, com a lantejoula
caída no chão do palco e com os inúmeros lenços com restos de maquiagem esquecidos na
bancada do camarim. Esses restos são o meu começo numa investigação que anseia conhecer
aquele escondido atrás de outro alguém. O mito do palhaço que na verdade é triste acompanha
esse universo da cena. Como o ator vê o seu trabalho para além das perguntas da imprensa sobre
curiosidades picantes da sua personagem? Como o ator enuncia seu processo de criação? Como
gostaria de ser remunerado? E como compreende sua profissão? Essas são algumas das
perguntas que motivaram esta pesquisa.
O que nos leva a querer conhecer é um mistério. Tem pessoas que podem usar carros a
vida inteira e não se interessar sobre qualquer elemento de funcionamento do mesmo. Tem
pessoas que se casam e não tem curiosidade em saber como foi o dia do parceiro. É
perfeitamente possível viver sem curiosidade ou interesse em qualquer coisa para além de si
mesmo. Mas é impossível fazer antropologia sem essa curiosidade. O filósofo francês Michel
Foucault, em História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres (1984), apresenta na sua introdução
o motivo pelo qual realizou a pesquisa contida no livro. Segundo Foucault, a curiosidade foi o
motivo que o impulsionou. Porém não se trata de qualquer curiosidade, mas:
[…] a única espécie de curiosidade que vale a pena ser perseguida com
um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que
convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que
vale a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos
conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível o
descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a
questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e

1
perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a
olhar ou a refletir. (FOUCAULT. 1984. p.15).

A curiosidade que me levou a estudar atores produziu muitos descaminhos tanto para a
antropologia quanto para a arte que produzo. A escrita desta tese refletirá esse perder-se ao qual
a pesquisadora se permitiu. E já que cada pesquisa é sempre única, assumir essa unicidade que
possibilitou-me voltar para contar sobre a vida que existe do lado de lá. Dentre os descaminhos
que percorri a mudança de projeto acadêmico foi a mais importante para este trabalho. Se
inicialmente estava apegada a objetivos como o alargamento dos horizontes científicos,
atualmente espero que o conhecimento ajude a produzir abalos, abrindo fissuras nos modos
estabelecidos de pensar – o que no fundo, pode querer dizer a mesma coisa de antes, mas aqui
a mera mudança de palavras produz alguma diferença. Talvez apenas a pretensão de querer ser
mais uma a colonizar a lua com a bandeira de um novo conceito ter sido deixada de lado, para
pensar sobre o que dizem esses atores acerca de suas vidas, já tenha sido um descaminho e
tanto.
Não olhar pela fresta da cortina (como um observador externo poderia fazer), mas estar
na coxia com os atores (agindo com e como eles) traz algumas implicações para a pesquisa.
Tudo o que eu posso escrever antropologicamente sobre atores será ao mesmo tempo uma
traição e uma heresia. As análises que antropólogos fazem sobre nativos, sujeitos pesquisados,
atores sociais, indivíduos investigados, informantes, seja lá que nome se escolha, são
interpretações de um modo de pensar e viver a partir de um ponto de vista externo – na grande
parte das vezes. Ocorre que o sentimento de traição é recorrente nessa relação, principalmente
quando – depois de meses ou anos de convivência por vezes muito próxima – o pesquisado
entende-se como amigo do pesquisador. As dificuldades éticas do trabalho antropológico,
encarna na categoria amigo uma encruzilhada no que tange à relação necessária para a produção
dos dados, um nó metodológico. Caso o pesquisador sinta-se amigo dos pesquisados durante o
trabalho de campo, ele conta com o período de escrita para lembrar-se do real caráter da relação.
Já os pesquisados, podem dar-se conta disso apenas com a leitura do trabalho pronto, ou por
darem-se conta de que alguém tão presente pode desaparecer e nunca mais voltar – ou quando
voltar lhes parecer estranho.
Quando o pesquisador estuda sua própria sociedade ou seu próprio grupo esse
sentimento de traição pode se intensificar por diversos fatores, um deles é que depois de
produzir a análise, o antropólogo continua a conviver com quem foi objeto da sua investigação.
Outro fator é que, diferentemente dos processos psicoterápicos ou psicanalíticos, quem é
analisado não pediu para estar em tal posição. Mesmo trabalhando com entrevistas formais e

2
termos de consentimento assinados, muitos desconhecem a antropologia e se permitem ser
entrevistados ou conviver com o pesquisador sem ter total conhecimento sobre o tipo de análise
a que estarão sujeitos.
Outra variável sobre o sentimento de traição que os pesquisados podem sentir, diz
respeito a um indício de não compartilhamento de uma visão de mundo. Ao descrevermos uma
visão de mundo estamos revelando que mecanismos operam na sua sustentação. Isso, de algum
modo, faz com que tais mecanismos deixem de operar de modo naturalizado em quem refletiu
sobre eles – caso porte a mesma visão de mundo. Trata-se de um processo de desnaturalização.
E caso o pesquisador compartilhe uma identidade com os pesquisados, seu pertencimento pode
ser questionado por empreender tal processo. Nesta última variável podemos incluir a possível
confusão entre análise e crítica. Ao sentir-se criticado, no sentido de uma atribuição de valor
moral quando lê uma análise sobre si, o indivíduo pesquisado pode interpretar o texto como o
rompimento de uma relação de amizade e sentir-se objetificado.
Dito sobre a traição, vamos à heresia. Nos cursos de artes cênicas que frequentei, era
comum que o fazer do ator fosse tomado como algo ligado ao campo do divino. Dionísio, ou
Os Deuses do Teatro são usualmente evocados seja para nos fazer temer por atitudes
irresponsáveis, seja para abençoar uma apresentação. A dimensão divina conferida a este fazer
torna a análise de alguns valores como um ato profano. Este ato proferido por alguém que se
identifica igualmente como ator pode ser um agravante herético. É como se a atmosfera de
mistério que envolve o fazer do ator não pudesse ser revelada – ou refletida. A investigação que
sustenta esta tese trata-se de um investimento em dar-se conta dos valores que embasam certa
visão de mundo sobre a realidade e, de certa forma, revelar o mistério. Não posso dizer que tal
visão de mundo seja compartilhada por todos os atores do Brasil, nem mesmo do Rio de Janeiro.
Trata-se de gerar uma reflexão sobre os valores que embasam a visão de mundo sobre o trabalho
dos 19 atores que compõe o universo investigado.
A intenção desta tese não é ter uma amostra representativa de atores para que o leitor
saiba o que todos os atores pensam. Até por compartilhar dessa identidade profissional com os
indivíduos pesquisados, vê-los em blocos ou como um coletivo coerente está distante das
minhas possibilidades investigativas e anseios epistemológicos. A proposta metodologia aqui
é: compreender como os indivíduos pesquisados enunciam seu fazer profissional e que
elementos das relações sociais colaboram para a sustentação dessa visão de mundo. Para além
da heresia ou traição que possa vir à cabeça dos meus colegas atores ao ler esta tese, e por outro
lado, para além da frustração que ler uma pesquisa antropológica sobre apenas 20 indivíduos
(afinal sou eu também indivíduo que a compõe) possa gerar, ainda assim, espero produzir

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abalos sobre os modos estabelecidos de pensar o ator e sobre os modos estabelecidos de pensar
do ator. Além disso, espero que este ato reflexivo traga a liberdade de escolha para todos nós
que “naturalmente” encarnamos conceitos que um dia foram forjados, sem nos darmos conta
de que poderíamos encarnar qualquer outro, já que todos eles sempre são construções.

O Oceano Antropológico

Desde que optei pela antropologia como modo de pensar a realidade que me cerca, tenho
convicção de que o cerne da nossa prática científica está tanto nas contribuições metodológicas
e epistemológicas – como proposições de modos de pensar a realidade – como no acúmulo de
informações sobre a diversidade (de modos de pensar e agir) através da qual o humano se faz
culturalmente. Nas palavras de Clifford Geertz, o que define o empreendimento etnográfico é
“o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para a ‘descrição
densa’(...)”(1978, p.15). Quando Geertz propõe que a cultura é um contexto, dentro do qual
acontecimentos, comportamentos, instituições ou processos podem ser descritos de forma
inteligível (com densidade), sugere que cultura opere como ferramenta para inteligibilidade e
não como um objeto “dado”. Tanto é assim que o autor afirma: “o que chamamos de ‘nossos
dados’ são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas” (idem).
Escolher um campo de pesquisa e pensar um objeto de estudo são possíveis para o
antropólogo a partir das referências de sua própria cultura. Ter como ponto de partida que a
etnografia se define por um tipo de esforço intelectual, leva-nos a considerar que, caso não haja
esse esforço, é possível se deslocar para o outro lado do mundo e continuar com convicções
inabaladas, com hipóteses não testadas ou com teorias impraticáveis. É exatamente por isso que
as páginas de considerações metodológicas, no caso da Antropologia, não devem ser apenas
uma tarefa protocolar da introdução de uma pesquisa. Os caminhos da pesquisa, a escolha do
campo, a constituição do objeto e como o pesquisador dedicou-se a investiga-lo são partes que
compõem a própria pesquisa e não curiosidades complementares.
Considerando que o conhecimento antropológico se desenvolveu a partir de expedições
para terras distantes e que conceitos como alteridade e estranhamento são importantes para a
constituição desse campo de conhecimento, cabe apresentarmos as especificidades de uma
pesquisa na própria cidade, e principalmente, com um grupo no qual o pesquisador faz parte.
Ao desenvolvermos uma pesquisa em nossa própria sociedade estamos sujeitos a dificuldades
específicas e uma delas trata-se da confusão entre o conhecido e o familiar. A aparente

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impressão de que o familiar seja conhecido e as consequências dessa indiferenciação para o
conhecimento antropológico foi discutida por Gilberto Velho em Observando o Familiar:
Assim, em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza com os
cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição
aos indivíduos. Isto, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista
e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as regras
que estão por detrás dessas interações, dando continuidade ao sistema. Logo,
sendo o pesquisador membro da sociedade, coloca-se inevitavelmente, a
questão de seu lugar e de suas possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo
e poder “pôr-se no lugar do outro” (VELHO. 1978. p.40).

Estar familiarizado, portanto, não significa que se conhece o ponto de vista do


pesquisado e nem as estruturas que sustentam essa visão. A questão metodológica apontada por
Velho é de extrema relevância para esta pesquisa, já que por vezes o pesquisado e eu
compartilhávamos, por exemplo, um mesmo vocabulário. Mas será que aquelas palavras
significavam o mesmo para nós? Ao investigar as categorias nativas de uma entrevista, acabei
me dando conta dessa importância em diferenciar familiar e conhecido. Assim, pude aos poucos
deixar de pressupor que sabia o que estavam falando.
Mesmo que o pesquisador compartilhe um pertencimento com seus pesquisados, a
posição que cada um ocupa nunca será totalmente igual a do outro. Por isso, dar-se conta do
lugar social de alguém requer o exercício constante de dar-se conta do próprio lugar social. No
texto O desafio da proximidade (2003), Gilberto Velho afirma que o multipertencimento é um
dos elementos que possibilitam ao antropólogo pesquisar o próprio grupo, já que na sociedade
moderno-contemporânea os indivíduos não pertencem exclusivamente a um único grupo. Nesse
sentido, essa posição decorrente do multipertencimento ajuda a estranhar o ponto de vista de
outros membros do grupo pesquisado. Gênero, classe social, cidade de origem, bairro que mora,
faixa etária, grupo étnico-racial e a própria trajetória de cada um dentro da profissão posicionam
cada entrevistado num lugar específico e diferente da pesquisadora, mesmo que
compartilhemos um pertencimento profissional.
A chave do multipertencimento possibilitava tomar as formulações dos pesquisados de
modo mais distanciado. Afinal, que diferenças poderiam haver entre as concepções de um
homem e uma mulher sobre a profissão, ou de um branco e um negro, ou de alguém com 20
anos de profissão e alguém com 2 anos de profissão. Foi através de uma atenção conferida a
essas diferenças que uma noção mais ampla que qualificava a fala de cada indivíduo da pesquisa
pode emergir. A partir do ponto em que conferi atenção ao multipertencimento e às
características específicas de cada sujeito pesquisado as diferenças no modo como

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compreendem a profissão puderam emergir, e como uma reação derivada, as semelhanças
também puderam ser vistas.
Ao fazermos as escolhas sobre quem escolheremos para entrevistar, que perguntas fazer,
como transcrever aquelas pausas ou hesitações, é preciso reconhecer que tudo isso são escolhas
que terão impactos nos resultados da pesquisa. Ocorre que sempre temos que fazer escolhas.
Sobre essas escolhas, no texto O desafio da proximidade, Gilberto Velho diz o seguinte:

Não há fórmulas nem receitas, e sim tentativas de armar estratégias e planos


de investigação que evitem esquematismos empobrecedores. Assim, cada
pesquisador deve buscar suas trilhas próprias a partir do repertório de mapas
possíveis. (VELHO. 2003. p18)

Os mapas possíveis desta pesquisadora levaram ao resultado a seguir. Acredito que


essas escolhas não nos levam a ver mais ou menos coisas, e sim como vemos e o que vemos.
Em antropologia é muito difícil delimitarmos até que ponto a pesquisa se trata do grupo que o
antropólogo foi pesquisar e até que ponto se trata da visão de mundo daquele(s) informante(s)
privilegiado(s) com quem o antropólogo conviveu. Até que ponto essa tese é sobre Os atores,
ou sobre a Marina ou o Levy? Por outro lado, podemos questionar para que e para quem
interessa que Marina seja vista como as atrizes? Por que é tão importante que no final,
cheguemos a uma fórmula?
Sempre que tentamos precisar um ponto onde algo começou precisamos ter uma dose
de inventividade. Quando comecei a gostar de artes? Quando passei a me interessar pela
encenação? Não tenho essas respostas. Poderia escolher uma situação e alça-la como a anedota
de “onde tudo começou”. Mas, prefiro seguir esse fluxo nem sempre contínuo das escolhas que
entendo como relevantes para a compreensão da delimitação do objeto e opções metodológicas.
Trata-se menos de uma explicação sobre causas ou por quês e mais uma compreensão do
percurso, aceitando inclusive que percursos não precisam necessariamente de começo nem fim.
Durante o mestrado estava decidida a pesquisar a questão do projeto de vida para jovens
que cresceram em abrigos governamentais, os antigos “orfanatos”. Depois de uma primeira ida
a campo, ao conversar sobre os impactos da reunião com a assistente social, o professor Gilberto
Velho quis saber sobre minha família, especificamente sobre meus pais. Eu contei que havia
crescido com os cuidados de minha mãe e a ausência de meu pai. Ele quis saber se eu já havia
feito psicanálise ou psicoterapia e eu disse que não. Ele disse que então, seria melhor que eu
repensasse se teria condições de lidar com o objeto que escolhi. Para mim foi um choque porque
eu nunca tinha me visto como uma órfã. Mas ele estava certo. Compreendi que eu ser órfã tanto
quanto os pesquisados não era o problema, o problema era eu não ter isso elaborado. A esta

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altura eu estava fazendo um curso livre de interpretação. Já havia feito outros cursos também
pequenos e me considerava uma aprendiz da arte de interpretar. E assim, sugeri que esse meu
“campo de interesse” (como eu o tinha até então) fosse também meu objeto de estudo, o que
foi muito bem acolhido pelo professor Gilberto.
Durante o mestrado pesquisei no interior de um curso de interpretação para tv e cinema.
Fiz o curso e entrevistei alunos e professor. Tratava-se de pensar prioritariamente sobre projetos
e escolhas para um grupo de alunos que aspiravam ser atores de televisão, independentemente
de já considerarem-se atores ou não. Nesse processo a questão da identificação com os
pesquisados foi algo menos presente do que na tese de doutorado. Um dos motivos foi meu
crescente desinteresse pelo trabalho em televisão e a crescente vontade em trabalhar com teatro.
Durante o segundo ano de mestrado eu estava cursando bacharelado em artes cênicas e isso
teve grande impacto sobre a identidade de atriz que eu passava a assumir. Além disso, comecei
um namoro com um ator que trabalhava naquele momento exclusivamente em televisão e isso
me fazia olhar para aqueles dois polos (aspirantes e contratado) como grupos muito diferentes
do meu, que eram meus amigos “estudantes de teatro”.
Durante o doutorado tranquei a graduação em artes cênicas e não retornei. Os anos de
doutorado foram de constantes crises identitárias. Elas estiveram presentes durante cada fase
da tese. A questão direcionada a mim durante a defesa da dissertação de mestrado, se eu seria
mais antropóloga ou mais atriz me perseguiu como um fantasma. A divisão entre o racional e
o sensível me fazia pensar que eu deveria escolher entre uma e outra e que tais caminhos eram
excludentes. Nesse sentido, cada análise que eu tentava fazer sobre as falas dos indivíduos
pesquisados, me fazia sentir mais distante da minha identidade de atriz. O caminho de saída
desse labirinto foi a psicanálise. Dois fatores me levaram à busca terapêutica como apoio para
concluir a pesquisa. Um deles foi a conversa com o professor Gilberto e o que ele dizia sobre a
importância de elaborar o vivido. Outro fator foram algumas leituras realizadas no curso de
etnografias e intersubjetividades, ministrado pela profa. Marta Cioccari.
Um dos autores estudados no curso foi Georges Devereux, um antropólogo húngaro
com formação também em psicanálise que trouxe contribuições na reflexão sobre a importância
do pesquisador pensar a si próprio na produção de conhecimento nas ciências do
comportamento, incluindo a etnografia como uma delas. Em seu livro
De l'angoisse a la méthode dans les sciences du comportement1 ([1967]1980) o autor indica as
possíveis formas psicanalíticas de objetivação da angústia do observador através de uma

1
Pode ser traduzido como “Da agonia ao método nas ciências do comportamento”.

7
investigação de suas causas, demonstrando com isso que tal objetivação pode constituir-se em
um método nas ciências do comportamento. Para Devereux é importante a constituição de um
método que sistematize modos de trabalhar com o material de angústia do pesquisador.
Desconsiderar a própria subjetividade no processo etnográfico é para ele um erro. O autor
aponta que etnógrafos poderiam aprender com psicanalistas que elaborar formas eficazes e
sistemáticas de objetivação da própria subjetividade pode auxiliar no processo de pesquisa.
Uma autora que discute a importância de pensarmos a subjetividade do pesquisador é
Hortense Powdermaker. A autora analisa no livro Strange and Friend (1966) o quanto a
disposição subjetiva do pesquisador afeta a etnografia, principalmente se não forem
conscientes. Nesta obra ela produz uma reflexão sobre suas diferentes experiências de pesquisa
etnográfica, sendo que em uma delas ela assume ter odiado. Sobre isso Powdermaker diz que
“...não há razão pela qual um antropólogo não possa estudar uma sociedade da qual odeie,
contanto que ele esteja consciente de seus sentimentos no momento, e seja capaz de lidar com
eles” (POWDERMAKER, 1966, p. 225, minha tradução). No caso mencionado ela assume ter
enfrentado problemas para realizar a pesquisa justamente porque seu ódio era contido e não
totalmente consciente. Era preciso compreender a natureza da sua disposição subjetiva, no caso,
a odiar.
A busca pela natureza de um sentimento vivenciado no campo de pesquisa, a fim de
objetivá-lo, pode ser de fundamental importância para o resultado da pesquisa. Outro livro que
operou como um marco para o modo como escolhi desenvolver a tese foi Le mots, le sort, la
mort, de Jeanne Favret-Saada. A antropóloga pesquisou sobre a feitiçaria no Bocage francês e
desenvolveu uma reflexão sobre a noção de afeto. Em artigos posteriores que a pesquisadora
conta como escreveu a obra sobre feitiçaria e a importância em não negar ou ignorar os afetos
aos quais o antropólogo está sujeito durante a pesquisa. Para o tema da pesquisa que desenvolvi,
considerar a noção de afeto proposta pela autora foi tarefa metodológica central. Favret-Saada
compartilhou com seus pesquisados de vivências no interior da feitiçaria e no artigo Ser afetado
([1990] 2005) a pesquisadora narra sua dificuldade em transformar vivências em material de
pesquisa.
Uma das situações que vivia no campo era praticamente inenarrável:
era tão complexa que desafiava a rememoração, e de todos os modos,
afetava-me demais. Trata-se das sessões de desenfeitiçamento a que
assistia, seja como enfeitiçada (minha vida pessoal estava passando
pelo crivo e eu era instada a modificá-la), seja como testemunha dos
clientes, mas também de terapeuta (eu era constantemente instada a
intervir bruscamente). No começo tomei muitas notas depois de chegar
em casa, mas era muito mais para acalmar a angústia de ter-me
pessoalmente engajada. Uma vez que aceitei ocupar o lugar que me

8
tinha sido designado nas sessões, praticamente não tomei mais notas:
tudo se passava muito depressa, deixava-as correr sem pôr-me questões,
e, da primeira até a última sessão não tinha compreendido praticamente
nada do que tinha acontecido. Mas registrei discretamente umas trinta
sessões das aproximadamente duzentas a que assisti para constituir um
material sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde. (FAVRET-SAADA.
[1990] 2005. p.158).

Ocupar um lugar no sistema nativo além do lugar de pesquisador implica ver-se de um


modo analítico, intenso e, por vezes, constrangedor. Essas leituras de Favret-Saada que já
estavam em mim foi a estrela em alto mar capaz de me fazer achar o caminho de volta à praia,
já que por muitos momentos não me via mais como antropóloga. A escolha por realizar
entrevistas com o uso de gravador foi pensada para que algum material consistente me trouxesse
um terreno que pudesse trabalhar depois. Essas leituras e a escolha pelas entrevistas
antecipavam problemas que eu poderia ter, mas que ainda não vislumbrava. Favret-Saada
aponta que ao fazer parte do sistema nativo o pesquisador sai da chave da empatia, trata-se do
lugar em que se é afetado pelas mesmas forças que afetam os nativos.
Depois de finalizadas as entrevistas, enquanto elaborava relatórios que seriam a base
para a escrita da tese vivi uma fase de grande dificuldade para escrever. Havia saído do Rio de
Janeiro e voltado a morar em São Paulo. Todas as minhas relações artísticas estavam no Rio
(exceto meu namorado) e fiquei meses sem produzir nada artisticamente. Estava com sintomas
depressivos e a rotina fazia-me sentir como uma acadêmica que nunca mais sentiria o prazer de
estar em cena. Mesmo concordando com os autores mencionados acima, até esse momento
ainda não havia procurado ajuda para lidar com os afetos que a pesquisa me causava. Consegui
escrever na medida em que tive instrumentos para objetivar as forças que me afetam e que, por
vezes, são as mesmas forças que afetam os entrevistados desta tese. Favret-Saada diz que
produzir uma etnografia deixando-se afetar envolve operações “estendidas no tempo e
separadas uma das outras: no momento em que somos mais afetados não podemos narrar a
experiência; no momento em que a narramos não podemos compreendê-la. O tempo da análise
virá mais tarde” (idem, p.160). Para conseguir escrever sobre ter sido “pega” pela feitiçaria, a
autora precisou de formas de objetivação e uma delas foi a distância temporal.
O tempo da análise implica uma decantação do material para novas linhas de
compreensão possam emergir. Em 2006 foi a primeira vez que li uma etnografia em que o
pesquisador se dispôs a sentir em seu próprio corpo o que seus pesquisados sentiam. Em
“Corpo e alma” (2002), Loïc Wacquant treina boxe, chegando a lutar em competições, para
fazer uma etnografia sobre lutadores de boxe. Segundo o autor no prefácio à edição brasileira

9
de 2002, o objeto de estudo fez com que as questões metodológicas se tornassem estas, e não o
contrário.

É a necessidade de compreender e dominar plenamente uma


experiência transformadora que eu não desejara nem previra, e que por
muito tempo permaneceu confusa e obscura para mim, que me levou a
tematizar a necessidade de uma sociologia não somente do corpo, no
sentido de objeto (o inglês fala of the body) mas também a partir do
próprio corpo como instrumento de investigação e vetor de
conhecimento (from the body). (WACQUANT. 2002. p.12).

Podemos notar uma semelhança com o que diz Favret-Saada sobre a necessidade de
gerar uma compreensão sobre o que ocorreu consigo. A “confusão” durante a vivência da
pesquisa de campo aponta a congruência entre os processos experimentados por ambos. Outro
elemento semelhante é a diferenciação entre o tempo da experiência no campo e depois o tempo
da construção de um entendimento sobre o vivido. Não se trata apenas de uma escolha de
método de pesquisa de campo. A metodologia proposta pelas etnografias de Favret-Saada e de
Loïc Wacquant deve ser relacionada a um universo epistemológico que possibilite ao
pesquisador operar com ferramentas cognitivas, produzindo um entendimento sobre o vivido.
A não pretensão da tradução faz com que os relatos não sejam mais importantes do que a função
etnográfica de gerar algum tipo de compreensão sobre uma dada experiência. Nesse sentido, a
articulação que Favret-Saada faz entre objeto de estudo, método de pesquisa e escrita
etnográfica pode ser tomada como modelo para estudos que trilhem um caminho semelhante.

Em entrevista realizada por Susana Durão para a Revista Etnográfica2, o Wacquant diz
que ao contrário da tradição americana em que diz-se aos estudantes “Don’t go native”, na
tradição francesa admite-se uma imersão radical, e menciona a etnografia Les mots, La mort,
les sorts como referência. Para Wacquant o problema não está na imersão, mas na
epistemologia que deve acompanhar esta escolha: “go native”, mas “go native armed”. Segundo
o autor, o pesquisador deve estar equipado com os instrumentos teórico-metodológicos e com
as problemáticas da disciplina para ser capaz de: “depois de ter passado pela prova iniciática,
objetivar a experiência e construir um objeto”; “deixar-se ingenuamente envolver e construir
por ele” (pelo objeto); e depois “voltar como sociólogo” (Durão; Wacquant. 2008). Wacquant
diz que em “Corpo e alma” apresenta uma radicalização empírica e metodológica da teoria do
habitus de Bourdieu.

Por um lado, abro a “caixa negra” do habitus pugilístico, escalpelizando


a produção e a junção das categorias cognitivas, das destrezas corporais
e dos desejos que, combinados, definem a competência e a apetência
2
Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, vol 12 (2), 2008

10
próprias do jogador de boxe. Por outro, desenvolvo o habitus como
dispositivo metodológico, quer dizer que me coloco na situação de
adquirir, pela prática, em tempo real, as disposições do pugilista, a fim
de elucidar o magnetismo próprio ao cosmos pugilístico. O método põe,
pois, à prova a teoria da ação que anima a análise segundo um
dispositivo de pesquisa recursivo e reflexivo. (DURÃO;
WACQUANT, 2008).

Loïc Wacquant propõe em sua etnografia, pesquisar o habitus através do habitus. No


caso de Favret-Saada não se tratou apenas de ser uma antropóloga-desenfeitiçadora, como no
caso de Wacquant não apenas um sociólogo-pugilista. Ambos conseguiram criar um modo de
comunicar etnograficamente em que o objeto interfere na escrita. Trata-se de encontrar uma via
epistemológica que auxilie o pesquisador no seu caminho de volta da experiência para a
compreensão da mesma, porém acolhendo o vivido. Se por um lado a divisão que fazemos entre
objeto e metodologia é útil para o pensamento científico, devemos tomar cuidado para não
vermos um e outra como isolados. A influência recíproca entre o como vemos e o quê vemos
deve estar sempre no horizonte desse universo discursivo em que a etnografia se situa. A
proposta de Favret-Saada em “reabilitar a sensibilidade” ([1990] 2005) do antropólogo trata-
se, portanto, não apenas de um modo de vivenciar a pesquisa no campo, mas também em como
elaborar essa experiência e como comunica-la na redação do texto.

Para encerrar essa navegação, cabe revelar que aquela curiosidade mencionada por
Foucault foi a grande motivação para continuar a elaborar a tese. Essa disposição em conhecer
arriscando e querendo produzir descaminhos e abalar certezas está para além das identidades
profissionais que eu venha a me enquadrar. É algo anterior, que estará presente no livro ou na
cena, onde quer que minha vida ainda pulse.

Caminhando para a pesquisa

Pesquisei durante o mestrado no interior de um curso para atores e durante o doutorado


fiz a passagem para estudar o exercício da profissão. A despeito da linearidade aparente, essa
passagem se deu de modo tortuoso e imprevisto. A pesquisa da dissertação de mestrado
consistiu em compreender como aspirantes à carreira de atores de televisão conduziam seus
esforços a fim de conquistarem o posto desejado. Através das categorias visão de mundo e estilo
de vida, identifiquei modos de agir entre os aspirantes que frequentavam um determinado curso
livre de interpretação para TV que relacionavam-se com modos de pensar sobre a carreira. A
hipótese era de que, de acordo com a visão que o aspirante tinha sobre as possibilidades de
entrada para a carreira de ator de televisão, ele conduziria as escolhas de seu cotidiano (seu
11
estilo de vida) no sentido reforçar os elementos vistos por ele como valorados positivamente
para o ingresso.
O início do exercício profissional como atriz não se deu de modo tranquilo. Pelo menos,
não do modo como as escolas podem fazer parecer quando nos matriculamos em um curso.
Além de alguns cursos livres, iniciei uma graduação em Artes Cênicas. Por motivos financeiros
e pelo cansaço, tranquei minha matrícula no meio do curso. A essa altura, estava no segundo
semestre do doutorado. Devido aos trabalhos que havia feito anteriormente ao mestrado, com
publicidade em São Paulo, consegui o registro permanente de atriz, no sindicato (SATED) do
Rio de Janeiro – através de avaliação do currículo e entrevista. A partir desse momento começa
a minha busca por trabalhos como atriz, não para a pesquisa.
O projeto de doutorado tratava-se de uma investigação sobre as éticas profissionais do
ator transmitidas pelos professores de teatro. Logo que iniciei o doutorado essa ideia foi
abandonada porque eu estava interessada mais no trabalho do ator in loco do que na formação
para o trabalho. Resolvi investigar sobre a produção de teatro musical, que desde 2011 colocava
o Brasil em terceiro lugar no mundo em número de produções, abaixo apenas dos Estados
Unidos e Inglaterra. Meu interesse era investigar como essas produções aconteciam, quais os
agentes necessários para sua realização, a relação entre eles e a diversidade entre essas
produções. A delimitação desse objeto foi nitidamente inspirada pela minha leitura de Art
Worlds, de Howard Becker.
Durante o final do meu mestrado, quando fazia um teste para publicidade em São Paulo,
conheci um ator e começamos a namorar. Moramos juntos por quase 4 anos em Vargem
Grande, Rio de Janeiro, e depois por alguns meses em Pinheiros, São Paulo. Minha passagem
para o interesse em estudar o exercício da profissão de ator foi principalmente através da
proximidade com o universo de trabalho dele. Ele era contratado de uma emissora de televisão
há 8 anos e tinha cerca de 20 anos de profissão. No prédio em que morávamos, que é pequeno
porque naquela região não se pode construir prédios com mais de 6 andares, moravam 3
funcionários da empresa, todos amigos próximos. De 2014 a 2016 todos foram demitidos da
empresa, inclusive meu companheiro na época. Ao ir à padaria, ao mercado, andar de bicicleta,
ir à cachoeira, praia, andar com o cachorro na rua, sempre encontrava alguém da empresa,
principalmente da produção e equipe técnica. Os atores moram preferencialmente mais
próximos da praia.
A pesquisa com os musicais me deixava livre para não viver minha vida conjugal
pensando em pesquisa. As coisas estariam magnificamente separadas para a tranquilidade da
pesquisadora. Ao terminar as disciplinas no doutorado, fiquei sabendo que um amigo do meu

12
companheiro estava abrindo uma produtora de espetáculos de teatro musical e que tinha
acabado de conseguir os direitos para produzir um espetáculo musical. Eu pedi para fazer
alguma coisa na produção que me possibilitasse fazer a pesquisa. Esse homem, que eu chamarei
de Fábio, disse que precisava de alguém para fazer o making of do processo. Marcamos uma
reunião para acertar isso.
Em junho de 2014 essa reunião aconteceu no espaço da produtora, na Vila Mariana, em
São Paulo. Ali eu percebi quem detinha a autoridade sobre a produtora não era Fábio, e sim seu
filho Carlos. Este disse que eu era bonita e perguntou se eu estava interessada em ser
apresentadora do making of para o canal que eles criariam na internet para a produtora. Disse
também que não haveria remuneração, porque eles estavam começando. Eu disse que sim,
aceitaria. Mas perguntei se poderia observar a produção do musical para a minha pesquisa de
doutorado. Carlos não gostou, perguntou sobre o quê era a pesquisa e o que é antropologia. Eu
expliquei e disse que como não receberia pelo trabalho era justo que eu pudesse fazer dali meu
campo de pesquisa, já que para pesquisar eu recebo. Mas o que pareceu ser decisivo para o
aceite dele foi quando eu disse que a antropologia não está preocupada em julgar as pessoas em
relação às suas ações e seus discursos, mas em compreender como as coisas funcionam, porque
agem e enunciam daquele modo. Desse modo, ingressei no campo: uma produção de teatro
musical.

Os 12 trabalhos, exceto para alguns

Em julho e agosto fiz entrevistas com o artista responsável pelo cenário e com parte dos
familiares do biografado pelo musical. Em outubro, Carlos me chamou para fazer as gravações
sobre as audições. O primeiro dia das audições contou com 600 candidatos que já haviam sido
pré-selecionados pelo currículo. Ao todo foram mais de 2.000 currículos recebidos. Estava
marcado para começar às 9 horas da manha, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Cheguei
às 8:45h e a fila na calçada já estava dobrando o quarteirão (considerando que os quarteirões
de um bairro de fábricas desativadas são gigantes) e as pessoas reclamando que o sol estava
escaldante. O lugar foi cedido por um dos patrocinadores. Minha irmã foi me ajudar como
operadora de câmera, nós organizamos o equipamento na sala da produção voltamos para a rua
para entrevistar alguns candidatos. Não deu certo, o sol estava muito forte e não fomos bem
recebidas pelos candidatos.
Avaliamos que seria melhor fazer as primeiras entrevistas com os membros da banca de
seleção para saber a expectativa deles para esse dia de teste e depois dos testes conversar com

13
os candidatos (no caso, acabamos conversando apenas com os aprovados daquela fase, que
eram os que se dispunham a falar). O modo como os candidatos foram tratados pela produção
e pelo diretor (Carlos) causaram-me grande incômodo. Muitos não sabiam que deveriam levar
uma música para apresentar e decoravam alguma letra no celular enquanto esperavam na fila.
O diretor dizia “como vêm para um teste de musical e não traz uma música?”. Por outro lado,
ficava cada vez mais nítido para mim que as condições para a realização das audições não foram
bem divulgadas entre os candidatos. E pior, alguns pareciam ter informações que outros não
tinham. Ao receber a informação de que passaram para a próxima fase eles eram informados
de que a fase seguinte, relativa à dança, ocorreria no dia seguinte. Aparentemente todos foram
surpreendidos por esta informação. Muitos vinham de outras cidades e alguns desses dormiram
na rodoviária.
Durante o segundo dia, percebi que estava sendo vista pelos candidatos como alguém
que fazia parte da produção. Na contramão, os membros da produção, principalmente o diretor,
tentavam esconder de mim tudo o que não estava dando certo. Mas alguns elementos como
piadas machistas sobre as candidatas e as latas de cerveja que estavam bebendo eram
inescapáveis à minha percepção. O profissional mais engajado nesse segundo dia era o
coreógrafo. Das 14h Às 22h ele dançou quase ininterruptamente, transmitindo as coreografias
para os candidatos. Ele, assim como alguns candidatos passaram mal por causa do calor
excessivo, o lugar estava sem ar condicionado, sendo que o coreógrafo ainda teve câimbras.
Ali, no mesmo dia, houve uma segunda fase a partir das 18 horas. Muitos foram
dispensados uns porque não fariam parte do trabalho e outros porque seriam testados apenas
quanto à interpretação para os papéis de personagens da peça e não disputariam as vagas do
corpo de baile/coro. Carlos me avisou que eu não poderia faltar no terceiro dia, que era o dia
de avaliação dos candidatos VIP’s. Eu disse que não havia entendido. E ele me explicou que
alguns candidatos que não poderiam ser misturados com os demais, ou que não puderam estar
nos dias anteriores, (e, como eu entendi, que fossem amigos deles) seriam avaliados quando a
canto e dança nesse terceiro dia. Quando eu vi os atores e dançarinos desse dia, entendi que o
critério de distinção estava relacionado a um tipo de fama atrelado à televisão.
No último dia, VIP’s e não VIP’s fizeram o teste de interpretação com textos que lhes
foram entregues naquele momento para serem decorados. Foi um dia dramático, principalmente
para aqueles que haviam realizado os dois primeiros dias de testes. Os VIP’s tinham uma sala
separada para eles com ventiladores. Durante o dia tive oportunidade de conversar melhor com
os candidatos, mostrando que eu não fazia parte da produtora pudemos conversar mais sobre a
seleção. No final dos testes, já anoitecido, Carlos e filho do biografado pelo musical (que

14
acompanhava as audições) chamaram seis candidatos e contaram a eles que seriam os
personagens da banda. O momento foi de muita alegria para eles. Eu filmei e tire as fotos do
momento. Depois todos os outros candidatos foram enfileirados na parede e uma junta dos
avaliadores conversava em voz baixa ali na frente deles. Alguns nomes eram ditos e o candidato
deveria destacar-se à frente. Eu achei horrível o modo como aquilo estava sendo feito e não
conseguia olhar para eles. Por fim, uns choraram de alegria e outros de decepção. E Carlos
avisou-lhes para que no dia seguinte estivessem lá para uma reunião onde seria transmitida a
eles a agenda de trabalho.

O dia depois de Amanhã, ou de que lado estou?

Esse dia seguinte ao resultado foi decisivo para os rumos da pesquisa. Chegamos para
a reunião em clima de descontração. Eu queria entrevistar os selecionados para saber como eles
se sentiam agora. A reunião com o elenco começou e Carlos disse que o diretor musical, o
maestro, iria ouvi-los cantar, um a um, para que uma classificação das vozes fosse melhor
elaborada. Ele disse:
Hoje nós vamos ouvi-los para fazer uma brincadeira. Nós vamos realmente
distribuir os personagens entre o elenco e o que vocês sabem, até segunda
instância, é que fazem parte do elenco do musical. A não ser que vejamos
alguma coisa muito errada hoje. A gente quer ver quem é o substituto de quem
e até onde a gente pode chegar com a formação desse elenco. Eu não estou
pedindo para vocês se assustarem. Não é uma des-seleção, não é isso, é mais
‘estejam preparados para tudo’. A gente vai tentar alinhar mais essa questão
do elenco. Não cortem os pulsos, está tudo certo e daqui a pouco a gente
começa.

Alguns ficaram preocupados, outros nem tanto. Alguns se aqueciam, outros cantavam
baixinho, até que foi se formando uma roda que cantava uma música do grupo a ser interpretado.
Eu cantava com eles quando Carlos voltou à sala de ensaio onde estávamos e disse que era
melhor todo mundo levar aquilo a serio. Eu fui para fora e fiquei sozinha pensando sobre ter
que aguentar a estupidez do Carlos. Eu pensava que era em prol da pesquisa, porque se eu não
estivesse ali como antropóloga, já o teria xingado e saído pra nunca mais voltar. Aos poucos os
selecionados foram ouvidos pelo maestro e ao fim, todos foram dispensados, sem aquela
conversa sobre agenda.
Os diretores (coreógrafo, diretor musical e diretor geral), além do produtor e do filho do
biografado se reuniram a portas fechadas. Lá fora soube pela equipe de produção que o
conteúdo da reunião era: O diretor musical sentiu-se traído por eles terem decidido o elenco no

15
dia anterior, sem a presença dele. Ele queria alterar 10 membros do elenco. Sua justificativa
para não estar presente no dia anterior era que ele precisava de outros trabalhos já que a verba
do patrocínio só entraria em janeiro de 2015 e ele ainda não recebia nada. E sua justificativa
para realizar a alteração no elenco é que eles não escolheram no corpo de baile/coro,
dançarinos/atores que cantassem suficientemente bem para que pudessem trabalhar com as
substituições necessárias. Ele queria demitir 10 pessoas que acabavam de comemorar suas
contratações.
Um elemento importante sobre esse tipo de produção – o teatro musical – é justamente
a junção entre a dança, canto e interpretação. Ocorre que desde as primeiras entrevistas que fiz
com esses diretores antes das seleções se iniciarem, ficaram latentes as divergências com as
quais cada um comunicava a importância de sua área. O coreógrafo chamava os membros do
elenco que não eram os personagens principais de corpo de baile. Já o diretor musical chamava-
os de coro. Na entrevista, o coreógrafo disse que há musicais em que isso é muito bem definido
previamente. Segundo ele há musicais em que o “carro-chefe” é a dança e outros em que é o
canto. Mas que há um outro tipo de musicais em que há um equilíbrio entre essas especialidades,
como seria o caso deste.
Esses profissionais disputavam candidato a candidato para que as vagas fossem
destinadas a quem eles desejavam. Isso evidencia um problema na formação desses
profissionais, já que a despeito do número de produções de teatro musical no Brasil, o número
de escolas que oferecem essa formação nas 3 especialidades é escasso.
De qualquer modo, o argumento do diretor musical baseava-se na necessidade de
substitutos dos protagonistas (stand in) para que uma temporada fosse possível. Eu esperei a
reunião terminar por 3 horas. Algumas vezes eram ouvidos gritos que vinham da sala.
Considerei aquela situação tão absurda que, enquanto esperava lá fora pensei sobre meus
colegas atores que seriam demitidos. Naquele dia, quando eu os entrevistei conversamos sobre
a história deles, sobre como aquele papel seria importante para suas carreiras. Em uma das
entrevistas acabamos nos emocionando, o entrevistado e eu, quando ele falava da sua história
como uma luta contra dificuldades e falava do seu filho recém-nascido que estava longe dele.
Ali eu vi que não seria ético como atriz eu fechar os olhos para essa violência e continuar apenas
observando para a minha pesquisa. Decidi assumir meu posicionamento e fazer o que
considerava certo. Saí da produtora sem esperar o fim da reunião e nunca mais voltei. Nunca
mais falei com nenhum deles. Meu companheiro foi sozinho à estreia da peça em abril de 2015.
Acompanhei pela mídia os sucessos e fracassos da peça. Eu nunca soube quantos foram
demitidos naquele dia.

16
Da muralha à ponte: comunicação como matéria-prima antropológica

O acontecimento final desse primeiro campo da minha pesquisa mostrou-me a


dificuldade e talvez inviabilidade que seria eu pesquisar com os diversos agentes que compõem
uma produção como o teatro musical. Isso porque eu me encontro situada em um dos lados.
Naquele campo eu não estava trabalhando como atriz, mas ser atriz trouxe-me imposições éticas
das quais eu não poderia me furtar. A partir disso, vi a necessidade de redefinir meu objeto de
pesquisa. Primeiramente decidi ampliar o campo, observando as artes cênicas para além do
teatro musical. Pensei em que minha posição poderia contribuir para o exercício etnográfico.
Escolhi pesquisar o trabalho do ator a partir do que este tem a dizer sobre o ofício. Nesse
sentido, meu pertencimento poderia possibilitar um adensamento de questões que fossem de
interesse não apenas do ponto de vista antropológico, mas também de interesse desses
trabalhadores. Além disso, a possível empatia entre pares talvez abrisse espaço para uma
qualidade distinta de dados.
Elaborando um roteiro para entrevista, ficou nítido que meu interesse estava no processo
de trabalho: como um ator se prepara para trabalhar? Como ele trabalha? E como ele se desliga
do trabalho? Minha hipótese é de que atores se preparam para exercer seu ofício tanto ao nível
das relações com os demais agentes de produção quanto no nível do trabalho sobre si mesmo.
E foi assim que em janeiro de 2015 elaborei meu roteiro de entrevistas.
Já que havia assumido os riscos de fazer uma pesquisa sobre o trabalho do ator a partir
do que atores têm a dizer, fui para o extremo oposto das magníficas fronteiras que havia
estabelecido separando minha vida privada da pesquisa, e comecei a pesquisa pela minha rede
e a do meu companheiro. Assumi que as demissões dos nossos amigos, as depressões dos
amigos atores que não conseguem trabalhos, meus trabalhos como atriz, as performances em
redes sociais, as conversas, as festas, os encontros, tudo isso seria passível de observação. O
critério para não seguir apenas a minha rede de contatos com atores (colegas e amigos) era a
variedade com relação à idade e gênero. Ao todo entrevistei 19 atores: sendo 7 apresentados
diretamente pelo meu companheiro (alguns que eu já considerava também parte da minha rede
pela extensão do convívio), 5 conheci através dele indiretamente (amigos de amigos), 5 que eu
conhecia diretamente e 2 indiretamente (amigos de amigos meus). A duração de cada entrevista
variou entre 30 minutos e 3 horas e meia. As idades variaram entre 26 e 68 anos. Outra variação
que busquei abranger foi quanto às áreas de trabalho, sabendo que algumas áreas ainda assim
não seriam abrangidas. Foram entrevistados atores que trabalham preferencialmente na

17
televisão, outros preferencialmente em teatro, outros preferencialmente em dublagem, muitos
trabalham também em cinema, alguns também com publicidade, como professores de teatro,
diretores e produtores. Todos eles, quando perguntados sobre a profissão enunciaram ator ou
atriz, mesmo que acrescentem outras categorias. Os atores entrevistados moram (ou moravam
naquele momento) no Rio de Janeiro, mesmo que algumas entrevistas tenham sido realizadas
fora da cidade. Em termos de origem natal, são oriundos de diversas partes do Brasil,
principalmente outras cidades do estado do Rio de Janeiro e São Paulo, mas também Goiás,
Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio grande Sul, Paraná e Rio grande do Norte. Todos os
entrevistados terão aqui nomes fictícios e os nomes de empresas, como emissoras de televisão
ou de diretores, foram substituídos por letras como x, y ou z.
Trabalhar com entrevistas impõe certas limitações à prática etnográfica, mas por outro
lado, cada entrevista pode ser considerada uma ida a campo no sentido mais amplo do termo.
O tipo de comunicação que ocorreu durante as entrevistas pode ser descrito por pelo menos 3
eixos: o eixo do conteúdo discursivo (o quê foi dito); o eixo do discurso que se refere à forma,
como ritmo, pausas, repetições, auto-correções (como foi dito); e o eixo da comunicação não
verbal, notadas principalmente através das expressões faciais e do olhar (o feito).
Na verdade, o olho no olho talvez merecesse um capítulo à parte. Durante as entrevistas,
principalmente com os atores mais velhos, a comunicação pelo olhar poderia ser demorada e
intensa. Isso foi algo que exercitei durante as aulas de teatro em que ficávamos olhando nos
olhos de um colega durante muito tempo, sem rir, sem gesticular, apenas olhar nos olhos. Esses
exercícios foram muito úteis durante algumas entrevistas em que, depois de alguma fala que
era considerada importante pelo entrevistado, ficávamos em silêncio durante o tempo que fosse
necessário até que ele aprovasse a minha qualidade de escuta através do olho no olho e
continuasse a falar. Em uma das entrevistas, depois de permanecermos muito tempo olhando
nos olhos e em silêncio, o entrevistado disse estar arrepiado e a entrevista mudou de qualidade
a partir dali. De entrevistadora passei a ser colega, instalando-se um tom de conversa
confidencial. Nessa interação os olhos nos olhos foram um tipo de teste para avaliar não apenas
a seriedade da escuta, mas o tipo de pertencimento da entrevistadora no universo da
“sensibilidade de artista”. Mas em outras foi apenas a busca por uma cumplicidade do
interlocutor, menos como um teste e mais como uma confirmação de que eu estava do lado
deles. De todo modo, esses momentos das entrevistas agiram sempre como indicativo não
apenas de um pertencimento à classe (ser atriz), mas como engajamento a um modo de ser
(artista) que valoriza outros canais de comunicação que não apenas o verbal.

18
No eixo do conteúdo discursivo, percebi também que o distanciamento inicial de alguns
entrevistados foi se quebrando com o decorrer das perguntas. É como se o tipo de pergunta que
ouviam os lembrasse que só alguém de dentro poderia perguntá-lo aquilo. Um dos
entrevistados, com cinquenta anos de carreia, disse no dia seguinte à entrevista que aquela havia
sido a melhor entrevista que já fizeram com ele. E que durante a terapia que ele fizera naquele
dia, a entrevista tinha sido o tema da sessão. Disse que ficou mexido e que havia sido muito
bom para ele. De fato, alguns entrevistados (principalmente os mais velhos) agradeceram-me
muito pelo momento. Alguns entrevistados choraram durante a entrevista, outros saíram com
expressões de confusos, alguns pareciam querer acertar as respostas e buscavam na minha
reação o gabarito das questões, ou seja, cada entrevista pode ser tomada como um universo
diferente.
Além das entrevistas assisti a todas as peças teatrais de entrevistados que estavam em
cartaz, alguns filmes e participações em novelas. Não apenas porque estava acompanhando suas
publicações no Facebook, mas também porque eles me chamavam, davam o ingresso e
esperavam que eu fosse. Só não fui a uma peça, em que a entrevistada fazia uma personagem
pintada de preto. Penso que isso poderia gerar uma discussão sem volta, porque não me furtaria
a falar que discordo desse tipo de escolha estereotipada. Também dediquei esforços para ir a
festas onde os entrevistados estariam, principalmente as organizadas por eles. Outro elemento
que percebi foi a rede operando. Enquanto na pesquisa de mestrado eu reclamava para o prof.
Gilberto sobre amigos só indicarem amigos para os trabalhos e que isso gerava uma “panelinha
fechada”. E ele me respondia que isso era natural e que em todas as profissões acontece assim.
Nessa pesquisa pude olhar um pouco mais da borda da panela e ver como os atores ficam felizes
em poder indicar um amigo para um trabalho. Eu fui indicada por eles para filmes e vi operar
de perto o que hoje eu chamaria de uma rede de cooperação. A comunicação é matéria-prima
para a antropologia e a empatia do pesquisado com o pesquisador é tão importante quanto a
inversa. E se os nativos não quisessem falar com o antropólogo, se não o quisessem ali? Não é
necessário sermos bem quistos, mas a disposição para a interação é condição sine qua non para
a pesquisa. Mais do que algum tipo de identidade, a delimitação do novo objeto teve como
critério a possibilidade de comunicação, considerando a posição da pesquisadora no campo.

A trilha pensada no mapa possível

O universo das entrevistas revela uma diversidade entre os atores nos modos de
compreender a profissão e nos modos como enunciam seu exercício. Ao elaborar o roteiro de

19
entrevistas pensei que as questões sobre a organização social do trabalho do ator pudessem
revelar as diferenças entre os campos de trabalho (teatro, cinema, TV e dublagem). Além disso,
ao elaborar questões sobre condições de trabalho, imaginava tratar de tudo o que se pode
comprar ou quantificar: estrutura física, salário, horas de trabalho etc. Ocorre que durante as
entrevistas, as diferenças mostraram-se ligadas mais a outros fatores que não o campo de
trabalho, como as concepções sobre o processo de criação de personagem. E as condições de
trabalho mostraram-se ligadas a outras ordens que não apenas a material, como as questões de
ordem ética ou de conduta com relação aos colegas de trabalho.
Quando se elabora uma pergunta, sempre partimos de algum ponto, de pressupostos
que possuímos. Quando se responde uma pergunta, responde-se também com os próprios
pressupostos. Mas, caso o entrevistado esteja aberto para o novo, a pergunta pode abalar suas
concepções no sentido de fazê-lo olhar a partir de um outro lugar, ou mesmo dar-se conta da
posição que suas concepções o coloca. Igualmente o entrevistador, caso esteja aberto para o
novo, pode ter suas concepções abaladas e a fala do entrevistado pode trazer um outro sentido
para a compreensão de uma questão, pode iluminar áreas não visualizadas anteriormente e,
inclusive, deslocar seus pressupostos iniciais. Esses abalos, de algum modo, obrigam esses
sujeitos a reelaborarem suas experiências, fazendo com que ao final da experiência de entrevista
ambos saiam transformados.
Através da elaboração de uma metodologia para lidar com as entrevistas, as condições
para a emergência do indivíduo pesquisado passam a emergir. A posição de entrevistado pode
se referir a muitas situações e disposições distintas, como ser candidato a uma vaga de emprego,
participar de uma matéria jornalística, de um talk show, de uma pesquisa de opinião etc. Mas o
que é o entrevistado para esta tese? Depois de uma experiência de entrevista, o entrevistado
disse-me “Espero que você tenha muito carinho com esse material”. Foi uma experiência de
grande potência emocional pela seriedade com que o entrevistado conduziu a situação. Ele
parecia, depois de cada pergunta, sempre querer buscar o que houvesse de mais profundo e
significativo dentre suas vivências para compartilhar comigo. Outra característica de sua fala
era o esforço em relacionar suas vivências com a estrutura econômica e o modo como o sistema
produtivo é organizado. Além disso, ele se emocionou durante a entrevista. Esses são alguns
elementos que contextualizam seu pedido sobre minha relação com os dados.
Trouxe essa situação para mostrar as dimensões envolvidas no status dado à fala do
interlocutor, como as vivências que o sujeito mobilizou durante sua fala, as elaborações que faz
sobre a sociedade (a teoria nativa) e as próprias emoções vivenciadas durante a entrevista. Ou
seja, respeitar o discurso nativo envolve mais do que um cuidado na edição do conteúdo

20
transcrito para a forma de citações. Envolve um respeito pelo sentido que cada entrevistado
confere ao vivido e ao atual. Para isso, é preciso considerar a experiência da entrevista como
um todo. E para que essa metodologia não se torne uma fórmula vazia, é preciso encontrar um
modo de explorar esse todo tomando ele próprio como ponto de partida.
No livro O jornalista e o assassino ([1990] 2011), Janet Malcolm inicia sua discussão
tratando como um entrevistado pode sentir-se traído com o resultado da publicação:
A catástrofe, para aquele que é tema do escrito, não é uma simples questão de
um retrato pouco lisonjeiro, ou de uma apresentação errônea das suas
opiniões; o que dói, o que envenena e algumas vezes o leva a extremos de
desejo de vingança é o engano de que foi vítima. Ao ler o artigo ou livro em
questão, ele tem de enfrentar o fato de que o jornalista – que parecia tão
amigável e solidário, tão interessado em entendê-lo plenamente, tão
notavelmente sintonizado com seu modo de ver as coisas – nunca teve a menor
intenção de colaborar com ele na sua história, mas pretendia, o tempo todo,
escrever sua própria história. (MALCOLM. 2011. p.11).

Há muitas diferenças no trabalho do jornalista em relação ao trabalho do antropólogo.


Essa discussão, porém, apresentada por Malcolm, se faz útil para pensarmos a prática
etnográfica no campo da escrita. Ao contar para colegas sobre o tempo que eu estava
demorando para transcrever as entrevistas – durante aquelas conversas habituais de “Oi, tudo
bem? Como anda sua pesquisa?” – disseram-me para que não transcrevesse tudo. “Escute e
transcreva apenas o que vai usar”. Talvez antes desse campo de pesquisa para essa tese, tais
comentários não me parecessem tão estranhos. Mas agora, depois de pensar a importância de
tomar cada entrevista como um todo para que o entrevistado realmente exista textual e
conceitualmente, vi os riscos que esse caminho da seleção de trechos da entrevista pode
implicar.
Relacionando com o pensamento de Malcolm, poso dizer que os riscos de contarmos a
nossa história – e talvez nem sequer compreender a história do pesquisado – é um risco não
apenas para minar a potência de inovação do trabalho científico, mas também para reafirmar as
relações de poder tal como estão. Quando pesquisadores dizem que os dados falam, ou que um
sentido inesperado emerge dos dados, estão tratando dessa postura de abrir-se para o outro, e
consequentemente, para a possibilidade do novo. Método e objeto se fazem reciprocamente
num diálogo que o pesquisador desenvolve com o material. E mesmo que no final, tudo pareça
ter sido milimetricamente planejado, posso dizer que se perder nos dados é um desespero
prazeroso, porque no horizonte vemos a possibilidade de muitas outras histórias emergirem.
Desse modo, minhas tentativas de ouvir o material consistem em elaborar relatórios que
narram a qualidade da relação que tinha com o entrevistado (como o conheci, há quanto tempo,

21
alguma situação que considere representativa para indicar o tipo de relação que temos etc) e
como foi o contexto da entrevista. Nesse relatório acrescento a transcrição da entrevista com
suas palavras e os espaços entre elas, seus silêncios em forma de pausas. Além disso, no caso
de ter assistido a peças do entrevistado, incluo a descrição da situação e minha percepção sobre
a obra. Esse foi um primeiro momento do trabalho de análise: a construção dos relatórios.
Em seguida parti para a análise das transcrições que ocorreu principalmente em dois
eixos: 1) emergência de temas a serem aprofundados, que se transformaram nos capítulos e
tópicos desenvolvidos e 2) como as entrevistas me diziam que deveria trabalhar com elas e, por
isso, a escolha sobre apresentar os trechos das entrevistas de maneira diferente em cada parte
da tese. Nesse sentido, há um esforço para elaborar uma metodologia para lidar com essas
experiências de entrevistas que fosse geral, criando condições para relacioná-las, mas que por
outro lado, deixasse espaço para lidar com as especificidades internas a cada uma. Por exemplo,
o tom geral de cada entrevista traz diferenças no modo como o discurso pode ser lido. Há
entrevistas em que o entrevistado expressa uma disposição em denunciar mais frequente
durante a entrevista. Outro pode estar mais disposto a relatar. Outro se dispõe mais a teorizar.
Mas no interior de cada uma delas, esses tons também se alternam. Essas entrevistas podem ser
relacionadas? Penso que sim, e nisso consiste esse esforço metodológico: situar e relacionar.
Essa perspectiva tem como finalidade possibilitar investimentos teóricos do campo
antropológico como, por exemplo, investigar o significado de determinada categoria nativa.
Mas apesar de pertencerem a universos semelhantes como Ocidente, Brasil, sudeste, atores,
parte de uma mesma rede, não podemos pressupor que determinada categoria nativa não tenha
variações de significado entre os entrevistados. E mais ainda, em que medida essas possíveis
variações das ideias/valores desses trabalhadores podem dizer sobre os valores que organizam
o campo profissional? Ao tratar cada entrevista como um acontecimento único e cada
entrevistado como um universo específico a ser desvendado, tento produzir um estranhamento
com o que poderia parecer rotineiro aos meus olhos e não pressupor que eu “saiba” o que estão
falando. Isso ficou muito evidente na questão sobre a remuneração justa. O pagamento justo é
algo tão complexo de compreender quanto o que consideram como efeitos que a profissão
produz no ator.
Para considerar a variação no sentido atribuído a determinada categoria entre
entrevistados e também em relação ao sentido que o pesquisador atribui, tornou-se inviável a
separação de temas unicamente através de respostas a cada pergunta. Ou seja, é possível
encontrar um sentido para condições de trabalho numa resposta sobre qualquer uma das outras
perguntas, ou mesmo de forma difusa na entrevista. A divisão por respostas a cada questão teve

22
utilidade maior na parte II, em que privilegiamos o movimento interno dos pensamentos dos
entrevistados.
Além das entrevistas, como já foi dito utilizamos também o material da observação
direta que aparece na tese através de descrições ou de cenas ficcionalizadas. Além das
entrevistas e do material oriundo de observações, tratamos também uma parcela da bibliografia
como dados de campo. Tratam-se dos relatos de experiência (textos biográficos) de autores
indicados para a leitura nos cursos de artes cênicas que frequentei.
Na primeira parte da tese desenvolvemos uma discussão sobre aspectos das relações
sociais de trabalho. Através da metáfora utilizada por um amigo de que “O mais fácil é a
música”. No capítulo 1 investimos em alguns eixos de investigação para pensar a questão da
instabilidade profissional. No capítulo 2 investigamos o que os atores consideram enquanto
condições de trabalho. E cada item explorou um aspecto elencado pelos entrevistados enquanto
condições de trabalho, desde questões de ordem material como contar com alguma remuneração
pelo trabalho e também a segurança no trabalho, até aspectos da ordem das relações
interpessoais como “ter uma boa energia no trabalho”.
Na segunda parte produzimos uma escrita diferente da primeira parte. Como dito na
discussão metodológica, a natureza das questões investigadas se transforma e igualmente os
dados que se relacionam a elas são apresentados a partir de suas consistências e poéticas
próprias. No capítulo 3 desenvolvemos alguns eixos reflexivos que partes da seguinte questão:
quanto a centralidade da categoria experiência pode nos revelar sobre o modo de pensar dos
atores? No capítulo 4, partimos da premissa de que ao compreender de que o ator entende ser
feito temos mais ferramentas para analisarmos suas formas de pensar o próprio trabalho. As
formas de compreender o próprio Ser terão relação direta com as escolhas de modos ou métodos
de trabalho dos atores. Por fim, nesse capítulo propusemos que essa poética nos conduzisse
para uma tentativa de comunicação do indizível sobre o que “realmente acontece” no instante
em que o ator realiza a si mesmo através do trabalho. A hipótese dessa tese é que modos de
pensar conformam modos de realizar trabalho. Seja na esfera das relações interpessoais
necessárias à organização do trabalho, seja na execução do ofício em cena, os modos de pensar
conformam práticas. Indicamos enquanto conclusão da pesquisa que quanto maior o nível de
elaboração do indivíduo sobre as relações sociais de produção e sobre os conjuntos de técnicas
e métodos para se executar seu trabalho, mais autônomo diante as escolhas do ofício o ator será.

23
Parte I
“O Mais fácil é a música”

Sempre precisei de um pouco de atenção


Acho que não sei quem sou
Só sei do que não gosto
E destes dias tão estranhos
Fica a poeira se escondendo pelos cantos
Esse é o nosso mundo
O que é demais nunca é o bastante
E a primeira vez é sempre a última chance
Ninguém vê onde chegamos:
Os assassinos estão livres, nós não estamos
Vamos sair, mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas
Vamos lá, tudo bem - eu só quero me divertir
Esquecer dessa noite, ter um lugar legal pra ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
E esperamos que um dia
Nossas vidas possam se encontrar
Quando me vi tendo de viver
Comigo apenas e com o mundo
Você me veio como um sonho bom
E me assustei
Não sou perfeito
Eu não esqueço
A riqueza que nós temos
Ninguém consegue perceber
E de pensar nisso tudo, eu, homem feito
Tive medo e não consegui dormir
Vamos lá tudo bem - eu só quero me divertir
Esquecer dessa noite, ter um lugar legal pra ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
E mesmo assim
Não tenho pena de ninguém
(Teatro dos Vampiros. Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. 1991)

***

24
Certo dia um amigo contou que assistiu uma entrevista do rapper Emicida em que o
entrevistador perguntou para ele se era muito difícil compor música e como era o processo dele
para isso. Emicida teria respondido que de tudo o que ele vivia na carreira, o mais fácil era a
música. Com um tom de lenda nativa sobre o universo artístico esse amigo sorriu e completou:
seus maiores desafios serão fora de cena!

De fato, quando fazemos um trabalho, apenas uma parte dele é a produção de algo.
Muito do que fazemos no trabalho se refere às relações sociais envolvidas direta e indiretamente
nessa produção. Muito dessas relações se refere ao acesso aos postos de trabalho e outra grande
parte à relação com os demais agentes envolvidos na produção. Isso significa que nem sempre
o profissional mais bem-sucedido é aquele que executa melhor sua função produtiva. Por vezes,
relacionar-se bem tem tanta ou mais importância que a qualidade do trabalho executado e pode
determinar a posição do profissional na rede.

O que faremos nessa parte da tese é 1) traçar um mapa legível sobre a economia de
oferta de trabalho para atores a partir do modo como estes interpretam suas trajetórias
profissionais e; 2) elaborar uma análise sobre os elementos que compreendem enquanto
condições de trabalho. Ao abordarmos questões mais ligadas à organização social do trabalho,
é importante lembrar que os atores entrevistados compõem uma rede de contatos que parte da
pesquisadora. Isso significa que a amostra é diversa, porém dentro de certos limites, como
descrito na introdução. Poucos deles lidam com certos aspectos da profissão como a fama e
apenas um deles estava contratado há anos por uma emissora de televisão. Por isso, analisar o
contexto de trabalho a que esses indivíduos se referem não é analisar todo o contexto
profissional dos atores no Brasil. Mas o interesse em pensar esse grupo, deve-se principalmente
ao fato de que desde que iniciei meus estudos e trabalhos como atriz, tenho a percepção de que
esse grupo representa a maioria dos atores e, curiosamente, uma maioria que é invisibilizada
pela mídia. Os atores que têm voz nos meios de comunicação de massa para dizer o que é a
profissão estão inseridos de um determinado modo no sistema produtivo. Todos os outros
vivem a profissão e não podem dizer o que sentem sobre ela, e se dizem, ninguém os escuta.
Sendo assim, que se toque o terceiro sinal para que os atores ganhem a cena.

25
Capítulo 1
Instabilidade: Configurações sobre a organização do trabalho

Cena 1

FADE IN:

EXT. NOITE – AV IPIRANGA

Céu com brinquedo hélice de LED voando. Hélice desce aos poucos
e revela rosto de bebê de traços orientais no colo de seu pai.
Bebê encantado com o brinquedo. Pessoas passam. Lojas começam a
fechar. Som ao fundo de música ao vivo, pagode. Chão molhado de
chuva.

ANGELA caminha apressada para a escada do metro, mas nota alguém


que a observa. Reconhece DODÔ encostado num canto ao lado da
escada. Aproxima-se dele e o cumprimenta.

CAM APROXIMA
EXT. NOITE – AV IPIRANGA ENTRADA DO METRO

ANGELA
Oi, como é que você está?

DODÔ
Bem, e você? Só nos vimos nas redes né? Te
acompanho sempre no Instagram!

ANGELA
Poxa, eu também! Sempre curto você (ri). E
aí como estão as coisas?

DODÔ
Relativamemte bem. (Pausa) A agência quer
que eu tire a barba. O que eu vivi anos
atrás com o cabelo, agora que eles aceitam
black, eu tô vivendo com a barba. Você deve
viver isso também né? A sensação de que sua
imagem não é sua. Mas eu tô tentando
resistir e fazer o que me sinto bem.

ANGELA
Sim. É foda porque a gente já tem uma série
de inseguranças. Nesses últimos tempos
fiquei editada em três trabalhos e não
peguei nenhum. Aí eu fico pensando ‘Poxa,
será que é a cor do meu cabelo?’. Será que
é melhor pintar? E eu tô super precisando

26
de dinheiro. Então, a gente já tem essas
inseguranças naturalmente, imagina com a
agência pressionando... mas você tem que
fazer o que se sentir bem mesmo.

DODÔ
É, as vezes a gente entra numas encanações
que não tem nada a ver. Mas é isso, to
tentando me manter na posse de mim mesmo
(ri).

ANGELA
E você está em São Paulo?

DODÔ
Sim, extremo sul, lá no Capão como sempre.
E você?

ANGELA
Eu tô no Ipiranga.

DODÔ
Mas você estava no Rio, não estava?

ANGELA
Sim, fui filmar uma série que estreia ano
que vem.

DODÔ
E foi legal?

ANGELA
Foi bem legal. O ruim é a abstinência que
dá depois. Todo dia, 12 horas num set, uma
folga na semana... é um ritmo bem intenso.
E agora nada. Meses sem trabalho.

DODÔ
É, é foda né?

ANGELA
Sabe que dessa vez fiz varias amizades com
a equipe e acompanho eles no Instagram. Tá
todo mundo trabalhando. Eles saem de um
filme e entram em outro, impressionante.

DODÔ
É, a vida deles é assim, direto trabalho
atrás de trabalho.

ANGELA

27
E os atores é muito mais difícil. Poucos
dos que filmaram comigo já estão em outros
projetos.

DODÔ
É, mas por outro lado é isso que nos dá
liberdade né? Nosso trabalho tem essa
instabilidade, mas que a gente tem saber
usar isso a nosso favor.

Angela olha para Dodô sem entender. Permanece sem saber o que
dizer.

ANGELA
É né? Eu gastei todo o dinheiro da série e
agora tô sem nada. Mas aprendi a lição,
primeira e última vez que isso acontece.
Daqui pra frente vou guardar muito tudo o
que eu ganhar (riso).

DODÔ
(riso) É, a gente toma umas na cabeça, mas
aprende.

ANGELA
Outro dia eu estava editando um material de
uns trabalhos meus e te vi. Trabalhamos
juntos num comercial de shampoo em 2010.

DODÔ
Sério que você estava lá? Eu lembro desse
job!

ANGELA
Que a parede subia...

DODÔ
Sim! Nossa quanto tempo. (riso). E que
mundo pequeno né?

ANGELA
Sim, depois eu posto esse vídeo e te marco.
Aparecemos no mesmo quadro.

DODÔ
Marca sim!

ANGELA
Bom, eu vou indo. Bom te ver! Trazer
materialidade para as amizades virtuais
(riso)

28
Angela e Dodô se abraçam demoradamente.

DODÔ
Até mais. Beijo!

Angela desce pela escada rolante pelo lado esquerdo,


ultrapassando os que descem parados. Dodô permanece ao lado da
escada esperando alguém.
FADE OUT

Quando ocorreu a cena acima pensei sobre o “lado bom” que Dodô3 disse existir quanto
à instabilidade. Mesmo não compreendendo totalmente o que ele queria dizer com o termo
liberdade, ainda assim, eu senti ali que precisava repensar meu capítulo sobre instabilidade.
Naquele momento me veio à mente uma reflexão do Richard Sennett sobre características que
favoreciam a determinados indivíduos se adequarem ao novo modelo de capitalismo,
fragmentário e instável. A questão nesse caso era: algum indivíduo, com características
diferentes das minhas e da maioria dos entrevistados deve se sentir confortável com essa
configuração nas relações de trabalho; quais características individuais favorecem na
adequação a esse contexto que alguns chamam de instabilidade?; todos chamam assim essa
situação de trabalhos ocasionais? De volta aos dados percebi que uma das entrevistadas era o
exato contraponto para essa questão. O que eu tinha visto inicialmente como ausência de dados
na entrevista dela sobre instabilidade era exatamente um exemplo da visão de mundo que se
adequava com o mínimo de conflito ao modo como as relações de trabalho operam no universo
dos atores. Tentando sistematizar essa reflexão, este capítulo se dedica a pensar como atores
lidam com as ofertas de trabalho. Estabelecemos um contínuum entre os diferentes modos de
compreender a frequência das ofertas de trabalho desde os que consideram a instabilidade como
algo que inviabilizaria o próprio exercício da profissão a longo prazo até a sazonalidade vista
como algo benéfico para o exercício da profissão.

1.1 Liberdade e desapego

O termo instabilidade foi utilizado pelos entrevistados principalmente para se referirem


ao contexto de oportunidades de trabalho. As observações sobre a oferta de trabalhos

3
Não apenas os nomes dos entrevistados, mas também os nomes dos “personagens” que aparecem nas cenas
são fictícios.

29
apareceram ligadas à ideia de inconstância, sendo que a própria ideia de emprego é muito rara
nesse contexto. Por outro lado, o termo instabilidade também pode estar ligado a uma
característica do indivíduo que é vista como qualidade para os atores que é a coragem em sair
do que muitos chamam de “zona de conforto”. Nos cursos de teatro que frequentei muitos
professores cultivam através de seu discurso a habilidade em “se jogar”, em não se sentir
“seguro” ou “confortável”, sendo que todos esses elementos ligados à estabilidade são vistos
como prejudiciais para o desenvolvimento do aluno como ator.

Há diferenciações quanto ao comportamento na vida e o comportamento no palco. Mas


há também algumas ligações entre essas características valoradas como positivas. “Se jogar”
na vida é uma postura muitas vezes estimulada nesse meio e que corresponde ao modelo da
instabilidade de ofertas de trabalhos. O que o sistema traz em forma de escassez de ofertas de
trabalho, ou condições não propícias para o empregado num sistema em que o contingente à
espera de uma vaga é gigantesco, o paralelo individual é a atitude de “se jogar”, ou seja, não
avaliar muito as condições oferecidas e buscar com todas as suas forças preencher aquela vaga.
Ou, num movimento mais recente, a tentativa de criar sua própria “vaga” no mercado de
trabalho produzindo seu próprio produto artístico (peça ou filme).

Como está visível na situação descrita na cena que inicia este capítulo, não foi uma
tarefa fácil para mim buscar as falas que valorizassem o que eu estava lendo como instabilidade.
O interlocutor na entrada do metrô fez com que eu reconsiderasse algumas possibilidades e
buscasse compreender os momentos em que liberdade aparece nas entrevistas e qual o seu
contexto. No trecho a seguir a entrevistada elege a liberdade como o pior e o melhor efeito que
a profissão produz no ator:

- Quais os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?4


- Os melhores e os piores efeitos? (Pausa longa) Liberdade né? Os que... pro
bem e pro mal... acho que é o principal, a liberdade. A profissão do ator é...
muito livre. Você pode ser o que você quiser, em qualquer momento. E
também você pode se perder, sendo...qualquer coisa (risos)... que você não é!
(Viviane, 32 anos).

A ideia de liberdade na profissão é associada por Viviane a poder ser o que quiser em
qualquer momento. Há aqui um elemento de relação com as muitas possibilidades de
personagens a serem vivenciados, mas também há uma relação com a própria ideia de que não
há demandas pré-definidas para o trabalho do ator. Nesse sentido, a ideia de liberdade está

4
Em itálico estarão sempre as perguntas da pesquisadora.

30
bastante ligada à ideia de escolha. Atores escolhem os testes dos quais querem participar,
escolhem se aceitam determinado convite de trabalho e em última instância, escolhem se
querem produzir o próprio trabalho de maneira artesanal. Mas sempre que falamos de escolhas,
estamos lidando com um determinado campo de possibilidades vislumbrado pelo sujeito. Além
disso, a maior parte dessas escolhas empreendidas pelos atores dependem de outros agentes
dessa cadeia produtiva como produtores de elenco e diretores.

Viviane é uma atriz que se coloca como empreendedora e chegou a desenvolver trabalho
de coach para atores, instruindo-os a como gerir suas carreiras. Sua visão sobre a autonomia do
sujeito para criar as próprias condições de oferta de trabalho está no interior da lógica
individualista. Sua visão sobre esse tema pode ser melhor percebida no trecho a seguir, quando
perguntada sobre como ela lida com o fim de um projeto.

- E quando termina um projeto, como uma temporada ou qualquer projeto na


tv, como é pra você a coisa da personagem?
- Meio que tenho um luto, né, inicial. De você se desapegar daquela, daquela
coisa que fez parte da sua vida por tanto tempo. Mas é uma página virada!
Porque quando eu entro num projeto e ele começou de verdade, eu já tô
pensando no próximo (riso). Eu já meio que vou num processo de desapegar
no meio do processo. Porque eu sei quando ele vai acabar e já sei que que o
próximo vai começar. Tem que ser assim, nossa vida não pode ter essa parada.
De terminar um projeto e você ainda não saber o que você vai fazer. Porque
eu tenho uma característica de atriz empreendedora. Então, eu me ponho a
fazer coisas a todo momento. Então agora eu to fazendo uma série pra tv, eu
já to pensando na próxima peça que eu vou fazer, na reunião do próximo
espetáculo que vai demorar pra vir. Mas eu já tô vendo isso, fazer várias coisas
ao mesmo tempo e entender que você sempre vai precisar fazer várias coisas
ao mesmo tempo. Que é outra cagada do ator que entra no psicologismo, que
ele se... ele foca numa única coisa e aí ele não consegue dar conta de fazer
outras. Essa coisa acaba e ele fica mal por isso, porque fez tão parte da vida
dele, que ele não consegue se soltar daquilo. E é a diferença do ator bem
sucedido e do ator que tá sempre pobre.
- Entendi.
- Porque a gente tem que ganhar dinheiro nessa vida, né?
- Sim, faz parte também (riso).
- Ser um pouco capitalista também, né? Não adianta você viver no mundo da
ilusão, porque daí você vai ser artista, mas vai tá sempre pobre!
(Viviane, 32 anos)

O desapego e a habilidade em lidar com vários projetos simultaneamente são


características que, segundo a atriz, facilitariam o ator ser bem-sucedido no atual contexto
profissional – compreendendo que sucesso, na sua fala, está em oposição à pobreza. Para
Viviane é inerente à profissão fazer várias coisas ao mesmo tempo e que focar numa única coisa
seria um erro. Para ela, esse comportamento de gerenciar grande rotatividade de projetos está
ligado ao sucesso financeiro e este é o critério definidor para se propor a agir segundo este
31
modus operandi. Em nenhum momento a atriz diz que tais atitudes estão ligadas a um melhor
desempenho como ator dentro do seu trabalho, mas sim que estão ligadas à uma oposição ao
papel social de ser um “ator pobre”.

Quando pensei em estudar atores, estava mais interessada em saber como cada um
produz a sua arte do que em falar sobre as relações de trabalho no capitalismo atual. Mas com
a formação que tenho em Ciências Sociais e com o modo através do qual me reconheço como
antropóloga, assim que ouvi as palavras de Viviane na entrevista pensei “terei que pensar sobre
isso”. E apesar de ter negligenciado esse dado durante a análise, o encontro com Dodô me fez
ver que há atores que sentem-se confortáveis ao lidar com o tema da instabilidade. As visões
de mundo apresentadas aqui produzem efeitos reais sobre a vida dos sujeitos e a variedade
dessas visões sobre as ofertas de trabalho nesse campo profissional têm grande impacto na
própria identidade desses sujeitos enquanto atores, assim como nas suas relações sociais.

Richard Sennett, em A cultura do novo capitalismo (2008), analisa as implicações que


a fragmentação das grandes instituições trouxeram para seus trabalhadores. O autor disse
encontrar na maior parte dos trabalhadores um sentimento de pesar frente o aumento das
desigualdades econômicas e da instabilidade social resultantes desse processo. Porém, o autor
analisa que alguns trabalhadores com certas características eram capazes de ascenderem
socialmente valendo-se desse processo fragmentário. Sobre essas características o autor diz
que:

Só um certo tipo de ser humano é capaz de prosperar em situações instáveis e


fragmentárias. Este homem ou mulher ideal tem de enfrentar três desafios.
O primeiro diz respeito ao tempo: como cuidar das relações de curto prazo, e
de si mesmo, e ao mesmo tempo estar sempre migrando de uma tarefa para
outra, de um emprego para outro, de um lugar para outro. Quando as
instituições já não proporcionam um contexto de longo prazo, o indivíduo
pode ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida, e mesmo a se
virar sem um sentimento constante de si mesmo.
O segundo desafio diz respeito ao talento: como desenvolver novas
capacidades, como descobrir capacidades potenciais, à medida que vão
mudando as exigências da realidade. Em termos práticos, na economia
moderna a vida útil de muitas capacitações é curta; na tecnologia e nas
ciências, assim como em formas mais avançadas de manufatura, os
trabalhadores precisam atualmente se reciclar a cada período de oito ou doze
anos. O talento também é uma questão de cultura. A ordem social que vem
surgindo milita contra o ideal do artesanato, de aprender a fazer apenas uma
coisa, compromisso que frequentemente pode revelar-se economicamente
destrutivo. No lugar do artesanato, a cultura moderna propõe um conceito de
meritocracia que antes abre espaço para as habilidades potenciais do que para
as realizações passadas.
Disto decorre o terceiro desafio, que vem a ser uma questão de abrir mão,
permitir que o passado fique para traz. A responsável por uma empresa

32
dinâmica declarou recentemente que ninguém tem o emprego garantido em
sua organização e, particularmente, que os serviços prestados não significam
garantia de perenidade para nenhum empregado. Como reagir a semelhante
afirmativa de maneira positiva? Para isso, é necessário um traço de caráter
específico, uma personalidade disposta a descartar-se das experiências já
vivenciadas. É uma personalidade que mais se assemelha ao consumidor
sempre ávido de novidades, descartando bens antigos, embora ainda
perfeitamente capazes de ser úteis, que a do proprietário muito zeloso daquilo
que possui. (SENNETT. 2008. p.13-4).

Os três elementos que Sennett aponta como importantes para que o indivíduo prospere
no contexto do capitalismo em que a fragmentação e instabilidade são traços marcantes, estão
presentes na fala de Viviane. O primeiro deles, que diz respeito ao tempo e à capacidade de
migrar de uma tarefa para outra é o mais evidente deles que encontramos na fala da atriz.
Quando ela diz que ao chegar no meio de um projeto ela já está envolvida com outro ou outros
projetos parte exatamente dessa premissa que no atual contexto de organização social do
trabalho é “burrice” primeiro terminar um projeto para depois iniciar o desenvolvimento de
outro. A habilidade em focar apenas em um projeto é vista como um mal a ser combatido a fim
de prosperar. Segundo Viviane “Tem que ser assim, nossa vida não pode ter essa parada. De
terminar um projeto e você ainda não saber o que você vai fazer”.

No caso do cinema e de alguns projetos na televisão o ator só verá o resultado do seu


trabalho meses ou até anos depois de terminadas as gravações. Esse é outro elemento que
implica uma postura nomeada como desapego do produto do seu trabalho. Depois que as
filmagens terminaram, está nas mãos dos editores, montadores e diretores o restante do trabalho
que não é mais da alçada do ator. Mas o que Viviane aponta é mais grave do que o desapego
em querer assistir o produto do próprio trabalho. Refere-se a, enquanto ainda se trabalha,
dedicar atenção a outros projetos que podem estar operando quando aquele findar. Essa relação
com o tempo futuro em detrimento do presente é o que Sennett chama de relações de curto
prazo.

Por um lado, pode parecer simples adotar uma atitude de menor envolvimento ou apego
com o trabalho e as relações que o permeiam para que o trânsito de um projeto para outro torne-
se mais simples. Mas na prática, seres humanos tendem a desenvolver laços afetivos com outros
seres humanos com os quais convivem e é comum ouvir que se formam “famílias” durante
esses projetos. A questão que Sennett coloca sobre esse tema dá uma dimensão mais tangível
para a discussão: “como cuidar das relações de curto prazo, e de si mesmo, e ao mesmo tempo
estar sempre migrando de uma tarefa para outra, de um emprego para outro, de um lugar para

33
outro”. Dos 19 atores entrevistados, 12 eram solteiros. A questão de se constituir uma família
é um tema delicado nesse contexto em que a migração de um trabalho para outro e de um lugar
para outro de acordo com o trabalho são constitutivas do campo.

Tenho um amigo que mora no Rio de Janeiro e que passou 6 meses em Manaus fazendo
uma série para televisão, sem direito a passagens aéreas para visitar a família nesse período
porque a produção tinha recursos limitados. Ele teve diversos problemas com sinal de celular e
internet, o que dificultou bastante a comunicação com amigos e família. Quase como um
antropólogo no campo e a incomunicabilidade que alguns campos produzem, estava esse meu
amigo como ator. Alguns entrevistados contaram sobre a sensação boa de viajar pelo Brasil
com uma peça de teatro, conhecer diversas capitais e não ter que lidar com rotina. Mas ao
mesmo tempo dizem que determinadas condições de trabalho nessas viagens eles não
enfrentariam mais. A questão aqui é: como desenvolver relações de longa duração num
contexto que possibilita apenas relações de curta duração? E ainda assim, como cuidar dessas
relações de curto prazo? Como ter uma boa relação com pessoas com as quais se passa 12 horas
por dia e em situação de viagem pode-se dividir o mesmo quarto de hotel, que você pode nunca
ter visto antes e que talvez nunca mais verá? Em que medida o ator deve despender energia para
criar laços que não necessariamente vigorarão depois do fim do trabalho? Em que medida a
postura do desapego às relações pessoais pode favorecer o indivíduo enquanto ator?

O segundo elemento é o talento e a adequação às exigências que se transformam. Esse


elemento se relaciona com a ideia da Viviane de que é importante que o indivíduo não perca
seu tempo se dedicando a fazer apenas uma coisa bem-feita e dedique-se a várias tarefas.
Habilidades potenciais aqui tem mais valor do que realizações passadas. Isso está em pleno
acordo com o primeiro elemento de dedicar-se a novos projetos mesmo estando em outro
porque a realização passada nunca será mais importante do que o potencial da que está por vir.
O que está por vir sim está mais ligado à ideia de talento segundo essa visão. O que está sendo
desenvolvido agora, muito em breve será passado e nada poderá dizer sobre as habilidades
potenciais do sujeito.

Segundo Viviane o projeto que acaba “é uma página virada”, o que está em consonância
com o que Sennett analisou sobre os feitos passados. E as potencialidades a serem
desenvolvidas pelos próximos projetos são muito mais interessantes do que os feitos realizados
ou mesmo do que as possibilidades do presente. O que nota-se no discurso dela é que o próprio
presente é antigo e não pode oferecer nada além. Nas palavras da atriz “quando eu entro num

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projeto e ele começou de verdade, eu já tô pensando no próximo”. Todo o foco de interesse do
que é possível ser desenvolvido está á frente, no porvir.

O terceiro elemento, que também está em relação direta ao segundo, Sennett chamou de
abrir mão, ou permitir que o passado fique para traz. Trata-se do estímulo a “uma
personalidade disposta a descartar-se das experiências já vivenciadas”. Atualmente, o regime
de contratação predominante entre atores é o contrato por trabalho/obra. Isso significa que após
o fim de cada trabalho, o ator vê-se desempregado buscando uma nova inserção em outra ou na
mesma empresa, seja ela uma emissora ou uma produtora. Esperar que a empresa contratante
seja grata aos “serviços prestados” de modo a sentir-se obrigada a ofertar uma nova vaga é uma
expectativa dificilmente realizável nesse contexto de relações de trabalho. A atitude esperada
do indivíduo aqui é a do que parte sem olhar para traz, nem para o trabalho que fez nem para
as relações que cultivou, ávido pela próxima novidade – como o autor bem compara à postura
do consumidor. Esse trabalhador em contexto fragmentário e instável deve consumir seu
trabalho como quem desapega do celular antigo pelo novo.

A análise da fala da Viviane à luz das ideias de Richard Sennett é uma tentativa de
compreender que características o indivíduo poderia portar que o ajudariam a “prosperar”
mesmo em um contexto de fragmentação e instabilidade. Tanto o autor mencionado quanto a
fala da atriz entrevistada sinalizam para um mesmo conjunto de atitudes, que não nos cabe
arbitrar se são boas ou ruins, se fariam realmente um ator mais rico ou não. Trata-se apenas de
uma análise sobre a causa de incômodos ou sobre a ausência desses incômodos frente a
determinado contexto profissional. A seguir analisaremos visões de mundo que diferem da
visão “empreendedora” de Viviane, para assim compreendermos a pluralidade possível no
interior desse universo que são os atores profissionais no Rio de Janeiro.

1.2 E quando o dia 10 chegar?

Para muitos, a instabilidade pode ser lida como insegurança ou incerteza. A fala de
Viviane é um exemplo – o único que encontrei nas entrevistas realizadas – de que é possível
um indivíduo sentir-se confortável diante dessa configuração. Existem atores que desenvolvem
projetos simultaneamente – quase todos na verdade – e que “desapeguem” rapidamente de
projetos vivenciados, não se trata aqui de um maniqueísmo sobre ou agir sem apego e
nominando tal contexto de liberdade, ou ficar preso ao passado e nunca conseguir desenvolver

35
projetos de maneira simultânea. Se olharmos a vida de uns e outros desses atores entrevistados,
não existem grandes diferenças quanto ao estilo de vida. A diferença aqui refere-se mais ao
modo como são vistas as situações relacionadas ao trabalho e à inconstância de suas ofertas.
Alguns, como Viviane, se sentem mais confortáveis nesse contexto, outros elaboram críticas ao
modelo atual de relações de trabalho e sentem-se desconfortáveis com ele. Sobre essa
“adequação” ou não ao modelo fragmentário e instável do capitalismo atual, Richard Sennet
diz o seguinte:

Uma individualidade voltada para o curto prazo, preocupada com habilidades


potenciais e disposta a abrir mão das experiências passadas só pode ser
encontrada – para colocar as coisas em termos simpáticos – em seres humanos
nada comuns. A maioria das pessoas não é assim, precisando de uma narrativa
contínua em suas vidas, orgulhando-se de sua capacitação em algo específico
e valorizando as experiências por que passou. Desse modo, o ideal cultural
necessário nas novas instituições faz mal a muitos que nelas vivem.
(SENNETT. 2008. p14-5).

Durante a pesquisa, muitos itens que eu visualizava como questões separadas


mostraram-se de tal modo entranhadas que dificultou a divisão dos capítulos. As questões
ligadas à instabilidade profissional apareceram em temas que variam desde condições de
trabalho, ou o que eles compreendiam como condições para trabalhar, até temas como família
e vocação. Neste item tentaremos explorar o que Sennett aponta na fala acima a partir da
seguinte questão: Em que medida esse ideal cultural necessário nas novas instituições faz mal
aos atores que entrevistei? Aprofundando em temas específicos, sempre ligados aos efeitos que
a instabilidade profissional causa na vida do ator, tentaremos apresentar alguns aspectos que
podem responder a essa pergunta.

Não saber se conseguirá pagar as contas do próximo mês é a imagem mais latente
quando eu perguntava sobre os piores efeitos que a profissão pode produzir no ator. Em segundo
lugar para essa pergunta apareceu o possível deslumbramento que a posição de “celebridade”
pode trazer. Quando elaborei um roteiro de questões não imaginava que haveria uma
recorrência tão grande de respostas no mesmo sentido para nenhuma das questões, ainda mais
essa que me parecia tão ampla: melhores e piores efeitos que a profissão produz no ator. Isso
me levou a compreender que grande parte dos atores veem a instabilidade financeira como o
pior aspecto com o qual o ator lida na sua vida profissional. As ordens de implicações desse
tema são muitas, sendo que alguns creditam a isso a causa do suicídio de certos colegas de
profissão. Nesse contexto, o “Plano B”, ou seja, uma segunda carreira profissional aparece
sempre à espreita.

36
Quais são os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?
(Pausa) Que horror, eu sei o pior o melhor eu não sei. O pior efeito eu acho
que é de você não saber se vai dar certo nunca. Porque você tá sempre
contando dinheiro, tá sempre com medo da conta e tá sempre pensando “Se
esse ano não der certo, ano que vem eu vou fazer não sei o quê”. Eu tenho...
não é nem uma amiga, uma menina que fez teatro comigo quando eu era muito
nova e aí eu encontrei com ela na PUC quando eu fazia jornalismo, porque eu
resolvi fazer jornalismo porque teatro não iria me levar a lugar nenhum, e ela
tava lá também. E ela era super garota teatro, a família dela tinha muito
dinheiro e eu achei que ela fosse conseguir. Aí eu falei... eu falei com ela,
perguntei pra ela “Amandinha o que é que você está fazendo aqui? Cadê os
projetos, cadê...” e ela é magra, bonita... “cadê televisão?” Ela falou assim “Ai
Marina, eu amo teatro, mas o teatro não me ama de volta. Então eu saí”. E eu
acho que é bem isso. Assim, eu sei que é horroroso isso, é super pessimista,
mas eu concordo com ela. O teatro não ama de volta. Acho que ama de vez
em quando, sabe? Porque, talvez a melhor coisa seja que pela dificuldade, é
tão difícil, é tão difícil... mas também como qualquer outra profissão... quando
dá certo, você fica muito feliz. Então, a gente ganhou o fomento agora, cara
eu saí berrando pela casa. Uma mulher de 29 anos berrando pela casa. Liguei
pra todo mundo, contei pra todo mundo. E pô é... ganhar um edital faz parte
do nosso trabalho, mas foi ganhar na loteria. Isso também é bom. A gente... o
prazer de ver as pessoas saírem comentando do espetáculo, não comentando
se é bom ou ruim, mas comentando sobre, é muito legal. É muito legal o
retorno das pessoas. Ah, sentar na mesa do bar e as pessoas estarem
comentando “ah eu acho que é isso, eu acho que é aquilo”. E você só ficar
ouvindo é muito bacana. Mas é... o Lucas acha um absurdo dizer que é difícil.
Porque todas as profissões são difíceis. Mas eu digo, cara, é muito difícil. É
muito difícil. É muito difícil ter 29 anos e ter que ser sustentada pela sua mãe.
E ganhar um edital e não saber se ano que vem vai dar. Ah, tem dinheiro pra
sair de casa agora, e ano que vem? Se não tiver edital ano que vem? O que
você faz? Você volta pra casa? Bate lá e fala “Oi mãe, voltei”. Eu acho que a
dificuldade é essa de sempre pensar em “ah, então amanhã... se não der certo
até terça-feira, quarta eu volto a ser jornalista”. Eu acho que todo mundo que
faz teatro tem, todo mundo que faz teatro e tem uma segunda profissão pensa
isso. Todo mundo que faz teatro e não tem uma segunda profissão pensa
“Então ano que vem eu vou vender livro na Travessa, eu vou trabalhar no
Outback”, sabe? Então, isso é muito... essa insegurança com você mesmo é
muito chata. (Marina, 29 anos).

Marina aponta que a insegurança é um grande fator de dificuldade. A decisão de se


desligar da mãe e ir morar com o namorado era uma questão para ela naquele momento. Venceu
o edital e tinha a possibilidade de sair da casa da mãe. Mas como seria se no ano seguinte não
vencesse o próximo edital. Como seria se outros projetos artísticos não dessem certo? Não havia
garantia nenhuma para Marina. A própria carreira profissional não é vista de forma linear como
uma escadaria de cargos a serem conquistados. E como lidar com isso? Ao mesmo tempo que
coloca suas inquietações sobre essa insegurança, Marina se coloca como contraponto à amiga
que era “super garota teatro” e que não conseguiu suportar tais inseguranças, mudando de

37
carreira profissional. Esse modo de articulação do discurso foi frequente nas entrevistas. Ao
mesmo tempo em que é feita a crítica sobre a instabilidade ou insegurança na profissão, há algo
que os faz ficar e enfrentar essas incertezas e isso os coloca, de certa maneira, numa posição
heroica.

É, existe um equívoco do que é ser ator e o que é ser celebridade. Ator é o que
eu faço. O ator é o que eu faço. É trabalhar, é pensar no dia seguinte, no mês
seguinte, se eu vou ter dinheiro. No Brasil é assim, por mais tempo que você
esteja. Porque eu já tô trabalhando há... dia 10 pagamento, o mês que vem é
contas pra pagar e não sei o quê pra fazer. Então, você... entendeu? Eu não
sou celebridade, eu vivo do meu ofício. Eu faço o meu ofício. Eu sei o meu
ofício. Eu sei que ele é difícil. Eu sei que ele é difícil. Muitas vezes puts... eu
de vez em quando eu... paralelamente eu fui assessor político, do x, que
também é um ator. Aí eu falo assim... é diferente. Porque quando você tem
salário certo todo mês... e eu sou um cara econômico, apesar de gostar de
tomar um bom vinho e tal, mas eu sou um cara muito econômico. Então,
quando você está sem esse salário, aí entra o desafio, né? Porra, agora você
tem que correr. Você não tem aquele salário certo. Agora você tem que fazer.
Agora você tem que mostrar que você é sua empresa. Então, isso é um desafio.
A gente mata... o pessoal fala “A gente mata um leão por dia”. Não, você mata
três. É de manhã, de tarde, de noite e de madrugada, de vez em quando. Se
submeter de vez em quando a ouvir um produtor te chamar pra te oferecer
uma porcaria. E ou dizer sim ou dizer não. Muitas vezes você tem que dizer
não, a maioria das vezes você tem que dizer não. E algumas vezes você tem
que dar a sorte, dizer sim... foi o que aconteceu agora, nessa última novela. E
já estar correndo, porque dinheiro acaba. Esse é que é o problema, dinheiro
acaba. A gente... infelizmente existe essa coisa de dinheiro que você precisa
pra fazer as coisas, senão... é o telefone que não pode parar de tocar. E tem
que estar pago. (Sílvio, 55 anos)

Sílvio elabora expressões que poderiam coloca-lo próximo à fala de Viviane. Quando
ele diz “você tem que mostrar que você é sua empresa”, ou que ele fez um trabalho e já tinha
que estar correndo atrás de outro porque o dinheiro acaba, ou que o telefone não pode parar de
tocar, tudo isso aponta para o mesmo contexto de urgência em conseguir novos trabalhos que
Viviane apontava. Ocorre que o posicionamento de Sílvio quanto a esse contexto que ele
identifica não é valorado positivamente em sua fala. Um dos elementos que sinaliza para isso é
quando ele diz que “ouvir um produtor te chamar pra oferecer uma porcaria” e associa isso às
possibilidades reduzidas de escolha, ou seja, de responder sim ou responder não. Se a oferta é
uma porcaria porque diria sim? Porque, como ele diz, o dinheiro acaba. Ou seja, num contexto
em que é preciso estar sempre trabalhando, nem sempre é possível escolher os trabalhos que se
faz e às vezes é preciso aceitar algo que se considera uma “porcaria”.

A questão da escolha dos papéis a que se é convidado a fazer está diretamente


relacionada à questão financeira. Atores que têm uma segunda carreira que é conciliável com a
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de ator, ou seja, que desenvolvam trabalhos que não o impeçam de atuar teriam mais facilidade
para fazer essas escolhas por não estarem tão necessitados de dinheiro. Atores que possuem
uma rede de apoio financeiro como familiares que o ajudem com o sustento e as contas a serem
pagas, ou que já obtiveram bastante dinheiro através da profissão, também teriam mais
condições para fazer essas escolhas. Em situações, por exemplo, em que uma peça de teatro é
montada sem nenhum tipo de patrocínio e a única remuneração será a bilheteria do espetáculo
quando estiver em cartaz, para trabalhar durante os meses de ensaio sem ganhar nada o ator
deve se enquadrar num dos casos mencionados. Nesse sentido, o grupo econômico do qual o
ator pertence interfere como um dos elementos para que a tal “paciência” por se esperar um
novo trabalho ou mesmo suas possibilidades de “empreender” por si mesmo, já que para
empreender é preciso algum capital, exista ou não.

Em outro trecho da entrevista Sílvio aprofunda nesse tema da escolha dos trabalhos em
relação às restrições econômicas:

- Muitas vezes eu peguei papel... na inexperiência, pegava porque eu precisava


trabalhar. E me enganei muito com isso. Ah, pegar papel só pra dizer que tá
trabalhando. É melhor você ficar desempregado fazendo outra coisa e pegar
um papel legal na hora certa, do que ficar pegando só pra... Isso me atrapalhou
muito na televisão. Me atrapalhou muito na televisão porque eu precisava
pagar meu aluguel, comer, comprar minhas manutenções de vida diária.
Então, precisava trabalhar. E muitas vezes por conta disso eu me queimei.
Porque eu... até digo isso por alguns diretores. Eu tinha que ter... mas eu
precisava trabalhar, eu não tenho...
- Sim. Sim.
- Ninguém me banca, sou eu que me banco. Então eu me queimei, acho que
me queimei, me atrapalhou. Não queimei, não é isso. Eu atrapalhei muito a
minha carreira por conta de... em televisão, em televisão. Por aceitar qualquer
papel pra fazer.
- Entendi.
- Até que um dia eu briguei. Porque tinha uma época assim, que só me
chamavam pra fazer policial. Aí eu falei ‘Pô, não vou mais fazer policial, não
vou fazer’. Aí falei ‘queimei’. Tô falando na linguagem da emissora x. Até
porque só tem a emissora x, e hoje tem a y, mas a que mais tem trabalho ainda
que chama pra trabalhar é a emissora x. Aí falei ‘Agora fechei as portas’. Mas
aí um diretor sacou... que também era ator, e falou ‘Não, vou te dar um papel’.
Aí eu comecei... mas isso já tem muitos anos atrás. (Sílvio, 55 anos)

Alguns nomeiam a atitude de dizer não para trabalhos considerados “menores”, ou


“ruins” como se valorizar. Um ator que se valoriza, em tese, não aceita qualquer trabalho. Mas
para que essa possibilidade de escolha realmente opere, esse ator precisa ter uma margem
financeira na qual possa se sustentar para que a recusa não lhe traga o ônus da privação de bens
e serviços não apenas necessários para sua subsistência, mas também para a busca de novas

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oportunidades. Sílvio atribui à inexperiência o fato de ter aceitado qualquer papel. Como
alternativa ele aponta que seria melhor ter procurado um trabalho fora da área a fim de se
sustentar do que fazer qualquer papel como ator. Como vimos na citação anterior, uma das
alternativas atuais que ele encontrou para isso é o trabalho de assessor político.

De acordo com a sua visão, o sistema não vê com bons olhos o ator que aceita qualquer
papel. Para ele, isso é “se queimar”. Mas ironicamente, depois que se aceitou muitas vezes,
caso recuse, o ator pode “se queimar” igualmente, como ele disse ter ocorrido com ele na
emissora x, que só o aceitou novamente e para um trabalho maior porque um diretor que o
conhecia resolveu chama-lo para trabalhar. Essas dinâmicas sobre convites para trabalhos ou
mesmo sobre ser convidado para fazer um teste de um bom papel são muito complexas e sutis.
Se um produtor de elenco se chatear com uma recusa do ator pode nunca mais chama-lo para
trabalhar. Por outro lado, a aceitação de qualquer oferta pode fazê-lo parecer um ator que não
se valoriza. Mas cabe a nós, nessa compreensão que considera que a sociedade de um modo
mais amplo atravessa essas relações profissionais, apontarmos para os elementos de estrutura
social que podem contribuir para essa encruzilhada que o ator muitas vezes pode se encontrar.

Uma coisa já sabemos, para o indivíduo que não possui uma rede familiar que o ampare
financeiramente ou um trabalho que lhe proporcione sustento sem atrapalhar sua carreira de
ator, é mais difícil manejar essa demanda por recusa de trabalhos menores a fim da auto-
valorização. Certo dia fui assistir uma peça chamada A Cabala do Dinheiro. Logo no início da
peça a personagem, que é uma atriz, conta que resolveu se dedicar ao estudo do livro homônimo
à peça quando foi sacar dinheiro no caixa eletrônico e leu a mensagem “saldo insuficiente”. Ela
prossegue dizendo que é comum acontecer isso e todos ali no teatro em algum momento devem
ter lido essa mensagem no caixa eletrônico. Então ela corrige, dizendo que seria comum se ela
não estivesse tentando sacar 10 reais. Ela prossegue então com algumas reflexões sobre a vida
de atriz, sobre as incertezas quanto ao próximo teste, ao próximo trabalho e ao próximo cachê.
A personagem repete para seu namorado na narrativa diversas vezes que ele não liga, mas
alguém tem que pensar no dia 10 que está chegando e nas contas que devem ser pagas. Eu me
identifiquei tremendamente com aquela personagem. Vivi situações de tentativa frustrada de
sacar 10 reais. Algum dinheiro é preciso ter pelo menos para a condução até o próximo teste.
Testes de publicidade em São Paulo pagam 80 reais de cachê-teste para o profissional que
apresente a cópia do registro trabalhista na carteira de trabalho, o chamado DRT. Mas testes de
cinema e televisão não pagam nada. E na verdade, sobre esses últimos testes, a ideia é que você
sinta-se honrado por ter sido chamado para um teste de cinema ou televisão. Aquela

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personagem angustiada e quase sufocada com a proximidade do dia 10 era eu naquele momento.
E nessas fases de seca, a ideia de desenvolver trabalhos em outras áreas, como apontou Marina,
sempre retornam. Como eu aguardo sem saber quando o próximo trabalho vai aparecer?
Morando com a minha mãe que sustenta a casa e faz com meu dia 10 não seja tão desesperador
assim. Não faço compras a prazo, uso o cartão de crédito apenas quando não há nenhuma outra
alternativa, poupo o máximo que consigo de tudo o que recebo e com 31 anos começo a pensar
na possibilidade de não ter filhos, principalmente se o companheiro com que eu estiver for ator
também.

Loïc Wacquant, em sua pesquisa sobre o boxe (2002) escreve que por mais que as
academias de boxe estejam concentradas nos guetos norte americanos, é uma ilusão pensar que
são os mais pobres dos guetos que conseguem se profissionalizar no esporte. Penso que sua
observação sobre o esporte no contexto americano pode ser uma fonte de comparação para
pensarmos sobre quem pode dedicar-se à arte no Brasil. Por isso transcrevo por inteiro esse
parágrafo do autor:
É preciso, no entanto, sublinhar que, contrariamente a uma imagem bastante
difundida, vinda do mito indígena do “boxeador que tem fome” [hungry
fighter], e periodicamente reavivada pela atenção seletiva da mídia para os
representantes mais exóticos da profissão – tal como o campeão de todas as
categorias Mike Tyson -, os boxeadores não são geralmente recrutados entre
as frações mais deserdadas do subproletariado do gueto, mas sim no interior
das franjas da classe operária local, nas bordas da integração socioeconômica
estável. Essa (auto)seleção que tende a excluir os mais excluídos, não se opera
sob o efeito de uma penúria de recursos monetários, mas pela mediação das
disposições morais e corporais acessíveis a essas duas frações da população
afro-americana. Na verdade, não existe, propriamente falando, barreira
material direta para a participação: a inscrição no clube monta a 10 dólares
por ano (60 francos na época), o custo da licença Amateur Boxing Federation
(cuja a aquisição é obrigatória por razões jurídicas) é de 12 dólares (72
francos) e a totalidade do material necessário ao treinamento é graciosamente
fornecida pelo clube – somente as bandagens [hand-wraps] e os protetores
bucais [mouth-piece] devem ser comprados pelo pugilista em uma loja
especializada, por uma soma global inferior a 50 francos. É pelo viés das
inclinações e dos hábitos exigidos pela prática pugilística que os jovens saídos
de famílias mais despossuídas são eliminados: tornar-se pugilista exige, de
fato, uma regularidade de vida, um sentido de disciplina, um ascetismo físico
e mental que não pode se desenvolver em condições sociais e econômicas
marcadas pela instabilidade crônica e pela desorganização temporal. Abaixo
de um determinado limiar de estabilidade pessoal e familiar objetiva, torna-se
altamente improvável adquirir os meios corporais e morais indispensáveis
para amadurecer com sucesso nesse esporte.
(WACQUANT. 2002. p.61-2)

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Wacquant aponta para o fato de que Mike Tyson é uma exceção e não a regra. O mais
comum é que boxeadores venham da classe operária, que é estável, e não do subproletariado.
Para ele as disposições morais e físicas do boxeador são mais facilmente desenvolvidas por
jovens com famílias que pregam disciplina, ascetismo e que possuem regularidade em suas
vidas. No caso dos atores, considero igualmente que para as camadas do que ele chama de
subproletariado, seja quase impossível manter-se como ator profissional. Mas nesse caso, os
motivos são distintos da disciplina, ascetismo e regularidade do boxeador. Aqui, trata-se mais
das condições materiais de existência que a família pode proporcionar do que de seus valores
morais. Justamente pela marcante instabilidade financeira que a profissão de ator proporciona
para o indivíduo, quanto mais estável economicamente for a sua rede familiar mais próxima,
mais chances ele tem de se manter na profissão sem precisar se dedicar a outro trabalho.

Outro elemento comum com a descrição de Wacquant é o que ele chamou de “atenção
seletiva da mídia para os representantes mais exóticos da profissão”. Ao narrar a vida de atores
como guerreiros que venceram enormes batalhas para chegarem onde estão, a mídia deixa de
mostrar as redes de apoio e as facilidades que muitos atores tiveram. Não quero dizer aqui que
na vida de alguns só houveram facilidades. Todos têm pedras no caminho. Ocorre que ao dar
ênfase às dificuldades para construir uma narrativa heroica, a mídia deixa de mostrar elementos
que são constituidores dessas trajetórias. Imaginem se ao entrevistar um ator o repórter ou
apresentador fizesse a seguinte pergunta: “E no início da sua carreira, como você lidava com o
dia 10? Você fazia algum bico, tinha outra profissão ou sua família pagava suas contas”? Talvez
como Tyson, o ator que consiga avançar na profissão e ascender socialmente, vindo da extrema
pobreza e sem o apoio de ninguém, seja muito mais uma exceção do que uma regra.

Mas mesmo que os aspectos morais descritos por Wacquant não sejam tão definidores
para a inserção profissional dos atores, outros como vestimenta, modo de falar e a própria rede
de amizades é um elemento ligado à classe social de origem que exclui os mais pobres. Para
alcançar alguns círculos que podem fazer o ator avançar na profissão, principalmente no campo
da televisão, deter um capital simbólico que o aproxime ou que o identifique como um membro
da classe dominante pode ser importante. No Rio de Janeiro isso é muito evidente com as
histórias entre atores, ou entre atores e diretores, sobre terem frequentado o mesmo colégio
tradicional, o mesmo posto da praia, a mesma quadra de tênis ou campo de golfe, sobre as
famílias se conhecerem mesmo antes de eles nascerem. Comparando com as redes descritas por
Gilberto Velho em Nobres e Anjos (2008), vejo que esse modo de organização social dos
“nobres” cariocas continua a operar de modo muito semelhante ainda hoje. Caso o

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pertencimento da pesquisadora lhe permitisse um acesso amplo e irrestrito a esses círculos,
como no caso da mencionada etnografia de Velho, muito provavelmente a instabilidade nem
seria um tema, já que meus amigos atores teriam outras questões sobre a profissão. Mas como
escuto as histórias desses de fora – quando escuto – e as histórias daqueles de dentro da minha
própria rede, vamos continuar a falar do dia 10.

As divisões entre os grupos socioeconômicos se retroalimentam para reproduzir a


estrutura vigente. Podemos pensar aqui as estruturas de uma forma mais ampla para além da
econômica, e então quem seriam os privilegiados caso quisessem ser atores – com alta
remuneração financeira – no Brasil? Moradores do Rio de Janeiro, e talvez São Paulo, brancos
(já que a esmagadora maioria dos papéis são para personagens brancos), oriundos de famílias
das camadas médias ou altas e que já possuíssem relação prévia com ocupantes de postos
importantes dentro da estrutura produtiva de arte no país. No capitalismo, a despeito do mito
do indivíduo que vence barreiras e ascende socialmente, que acontece, mas não é a regra, no
geral é essa estrutura que tende a ser reproduzida. Esses privilegiados tendem a ocupar os cargos
de atores com maior remuneração e prestígio no interior da estrutura produtiva.

Na sua análise sobre o caráter que acompanha esse Novo Capitalismo, Richard Sennett
conta sobre a pesquisa de seu colega Michael Laskaway com duas gerações de funcionários de
grandes instituições. Nessa pesquisa Laskaway investiga sobre as ambições desses funcionários
e descobre que o grupo pesquisado na década de 1970 pensava em termos de ganhos
estratégicos a longo prazo, e que o grupo atual de jovens (em 2004) pensava em termos de
perspectivas imediatas. O grupo mais antigo era capaz de verbalizar suas metas e definir suas
eventuais gratificações, sendo que o grupo pesquisado em 2004 tinha dificuldades em encontrar
uma linguagem que fosse ao encontro de seus impulsos e tinha desejos mais amorfos. Sennett
analisa a referida pesquisa apontando que as instituições se configuravam nos anos de 1970 de
uma maneira que abarcasse o modelo das narrativas estratégicas, sendo que na atualidade o
modelo institucional era outro. Segundo o autor, atualmente, o modelo seria fluido, voltado para
o presente, com o foco mais na possibilidade que no progresso. Mas o ponto principal dessa
análise que evoco para lançar luz na nossa discussão é sobre o trecho a seguir, em que o autor
faz uma distinção sobre esse comportamento atual para as diferentes classes sociais:

Aqui, a classe é tudo. Uma pessoa de origem privilegiada pode se dar ao luxo
da confusão estratégica, o que não acontece com um filho das massas.
Oportunidades casuais podem oferecer-se ao filho do privilégio em virtude do
meio familiar e das redes educacionais; o privilégio diminui a necessidade de
traçar estratégias. Redes humanas amplas e fortes permitem que aqueles que

43
estão no alto da escala lidem com o presente; as redes constituem uma rede de
segurança que diminui a necessidade de planejamento estratégico de longo
prazo. Assim é que a nova elite não precisa tanto da ética de gratificação
postergada, pois pode contar com contatos e um senso de integração graças às
densas redes de que dispõe, qualquer que seja a empresa ou organização que
se trabalhe. A massa, no entanto, dispõe de uma rede mais rala de contatos e
apoios informais, permanecendo, portanto, mais dependente das instituições.
(SENNETT. 2008. p.76).

Esse trecho do pensamento de Sennett sobre a que classe serve esse novo modo de
pensar que acompanha esse novo modelo de instituição no capitalismo dialoga com a fala de
Sílvio sobre dizer não às emissoras de televisão quando a oferta não o agrada. Os profissionais
oriundos da elite contam com uma rede de apoio que o permite recusar uma oferta de trabalho
que não seja interessante. E aqui vemos que não se trata apenas de apoio financeiro que a família
pode proporcionar, mas também porque a rede o assegura de que outras propostas virão. No
caso de um profissional oriundo das “massas” – colocando nos termos que o autor apresenta –
a negativa para um trabalho pode comprometer não apenas o seu sustento, mas a sua rede
também não lhe garantira uma outra possibilidade de trabalho no futuro. Nesse sentido podemos
pensar que os sentimentos de insegurança e incerteza descritos por alguns entrevistados como
sendo o pior elemento da profissão de ator são sentidos de forma mais aguda por atores oriundos
das camadas populares.

Segundo Sennett, “quanto mais baixo estivermos na escala da organização e mais rala
for a nossa rede, mais precisaremos do pensamento estratégico para sobreviver, e o pensamento
estratégico exige um mapa social legível” (SENNETT. 2008. p76-7). Essa talvez seja a
motivação mais sincera de elaboração dessa tese: eu precisava de um mapa. Esse mapa pode
ser útil para que atores compreendam que muitas vezes a escassez de ofertas de trabalho pode
não estar relacionada apenas com a qualidade do seu trabalho; que a falta de amigos no ambiente
de trabalho pode não estar relacionada com ser uma pessoa legal ou não; que os pensamentos
de desistência não necessariamente signifiquem fraqueza e que a persistência de outros não
necessariamente é sinônimo de força. Talvez esse mapa mostre para muitos atores que os pontos
de partida de cada um importam sim no momento em que se disputa uma mesma vaga. Mas
mais do que enxergar o que existe para julgar o quanto disso tudo é justo ou não, penso que
essa ideia de Sennett sobre a necessidade do pensamento estratégico para a sobrevivência pode
nos alertar sobre as armadilhas que pensar segundo os modelos institucionais atuais pode trazer
para atores que não possuem uma densa rede de proteção.

44
Há diversos contornos que essa manifestação das estruturas sociais pode adquirir nas
relações cotidianas no sentido da reprodução do status quo. Wacquant nos aponta para a
necessidade de uma disciplina, de ascetismo e de regularidade que exclui os mais pobres do
boxe profissional. Ele chama de uma “(auto)seleção que exclui os mais excluídos”. Ninguém
vai impedir um rapaz do gueto de se profissionalizar no boxe. Mas os problemas que esses
“mais excluídos” enfrentarão no dia-a-dia para realizar seu treinamento com regularidade, se
alimentar e descansar da maneira correta, financiar viagens de competição e mesmo não aceitar
as ofertas de compra de luta (como o autor conta na etnografia), serão muito maiores do que
para outros atletas.

No Brasil, um dos modos de reprodução das desigualdades é o racismo. O padrão


estético instituído facilita o acesso de membros da elite a postos de trabalho, principalmente
quando a aparência é considerada como um dos capitais sociais para ocupar o cargo. No caso
dos atores essa discussão daria uma outra tese. Mas aqui, pretendo apontar apenas para mais
um modo de reprodução da estrutura social, mostrando que o acesso às vagas de trabalho é
desigual. Dois dos entrevistados falaram sobre os papéis oferecidos a atores negros e sobre o
padrão estético da classe dominante:

O Henrique, tadinho, ator negro que sofre. Porque ator negro, se você não bota
que o médico é negro, o médico jamais será negro, né? Porque negro é... o
guarda, ou é o empregado, ou é o borracheiro ou é o escravo da novela. Assim,
se tem advogado, mas não tá escrito do lado que tem que ser negro, não é
negro. Se é médico, mas não tem do lado escrito, não é negro. Se é o dono da
empresa, não está escrito do lado que é negro, não será negro jamais! É a
estupidez que a gente vive nesse país. (Victor, 53 anos)

Na emissora x é só gente linda matando, gente linda morrendo, gente linda


sequestrando, gente linda sendo sequestrada. Não tem um filho da puta feio.
E o brasileiro não é lindo. Quando é que... o brasileiro não é lindo. Lindo é
italiano, brasileiro não é lindo. (Victor, 53 anos)

Acredito que o meu perfil, por ser bem comum para o Brasil, eu tenho um
perfil bem brasileiro mesmo, é... mas eu não sou valorizado. O Brasil, ele tem
como perfil comercial, é loiro, do olho verde, do olho azul. É um perfil
europeu, não é um perfil brasileiro. Isso me deixa muito triste também. Prova
disso, eu sempre fiz papéis que são bem, bem (pausa) estereotipados. Para o
meu perfil é bandido ou policial. Então eu acho que eu sou mal utilizado no
mercado. (Eduardo, 45 anos)

No primeiro trecho Victor se compadece do amigo que é negro e explica que se o autor
não coloca ao lado da descrição do personagem que ele quer um ator negro, os responsáveis
por procurar um ator para aquele papel, que são os produtores de elenco, sempre buscarão um
45
ator branco. Esse é um exemplo de como um privilégio se institui. Não se vê que o privilégio
acontece porque é “natural”, como se sempre tivesse sido assim. Então, reproduz-se a estrutura
sem perceber que a vaga para o papel sempre será de ator branco, exceto haja especificação
contrária ou o papel seja de um escravo, criminoso ou empregada. Nessa área, o problema não
está em fazer um personagem que seja das classes populares e sim que, usualmente, isso é
sinônimo de que ele não tem relevância para a trama, principalmente quando falamos de
teledramaturgia. No cinema isso ocorre de modo diferente e o protagonismo de personagens de
classes populares é mais comum, assim como no teatro. Mas como a discussão desse capítulo
é instabilidade financeira, o principal contraponto de estabilidade e boa remuneração para atores
é o trabalho em televisão, e por isso tantas referencias a esse universo.

No segundo trecho Victor ao mesmo tempo que critica a falta de representatividade da


população brasileira no audiovisual produzido no país, também critica a estética do brasileiro
dizendo que lindo é italiano. Na verdade, essa segunda fala é um exemplo de como se institui
um padrão de beleza. Se o perfil italiano é vendido pelos meios de comunicação de massa, e o
principal deles é a televisão, como sendo o mais bonito, é o que a maior parte dos consumidores
desse tipo de entretenimento vai pensar, inclusive o ator que trabalha na produção desse veículo.
E são desses modos que a estrutura se retroalimenta. A classe dominante diz que é linda, as
demais classes consumem o gosto da classe dominante como sendo o padrão a ser atingido e
assim, ela permanece legitimada na posição de mais bela pelo padrão instituído.

Por fim, o trecho da fala do Eduardo nos mostra as implicações concretas, para a vida
de um ator que não se sente enquadrado no que ele chamou de “perfil europeu”. Eduardo diz
que é “mal utilizado no mercado” por causa de sua aparência de “brasileiro”. Se por um lado é
ampla a gama de aparências que tanto Eduardo quanto Victor chamaram de aparência ou perfil
de brasileiro, por outro a nítida oposição que eles fizeram ao perfil “italiano” ou “europeu”,
descrevendo inclusive cor de olhos, nos faz compreender a que tipo de estética eles estão se
referindo. O que aponto com essa discussão é que o contexto profissional para atores é
fragmentário e instável tanto quanto as empresas tecnológicas estudadas por Sennett no Novo
Capitalismo. Mas não podemos deixar de ressaltar que essa instabilidade é vivenciada de
diferentes formas e em diferentes níveis de acordo com as características pessoais e de acordo
com a posição na estrutura social que o indivíduo ocupa.

Se inicialmente fizemos distinções quanto à variedade de visões de mundo que se


sentissem mais ou menos confortáveis com o contexto de instabilidade, estamos agora
distinguindo os indivíduos em termos de posições na estrutura social. Eduardo, que disse acima

46
ser chamado para papéis de bandido ou policial, respondeu que seu maior desafio como ator é
a sobrevivência. Vejamos este trecho de sua entrevista:

- Quais os principais desafios ou dificuldades que o ator pode ter com ele
mesmo?
- Ah, a sobrevivência. Hoje em dia, a condição do país hoje não é brincadeira.
Estamos passando por uma crise muito acentuada agora. Isso eu digo final de
2014, né? Ou o próprio ano de 2014 até agora, esse início de 2015, todos nós
estamos vendo um país em total desespero.
- Recessão.
- Uma palavra bacana, uma super recessão. (Pausa) Nós, como atores não tão
conhecidos, ou da primeira linha... que é o que eu tinha comentado antes, é...
esse... que nós definimos por letras. É o ator A, B, C, D... deve ir até o F, até
o Z provavelmente (risos). Mas digamos que eu estou ali no D... C pra D na
verdade. É um ator quase que do mercado, porém ele ainda não fez um
trabalho que é um divisor de águas, que o coloque de uma maneira mais
confortável na questão financeira. Então, o meu maior desafio, que eu estou
te falando, que eu falo por mim hoje, é essa questão financeira. Então, você
tem que vender o almoço pra jantar. Para manter o trabalho e um sonho ainda
de fazer uma história muito bacana e bonita como artista e ator nesse país que
é o Brasil. (Eduardo, ator, 45 anos)

O sonho a que Eduardo se refere é sobreviver do seu trabalho como ator de uma maneira
“confortável”. A expressão “vender o almoço para jantar”, ou “para comprar a janta” apareceu
em algumas das entrevistas. Como ator não de “primeira linha”, é preciso o tempo todo,
enquanto estiver nessa zona classificatória descrita por ele, pensar na sobrevivência. Essa
incerteza sobre o “jantar” ou sobre o dia 10, é vivenciada por Eduardo, por Sílvio, por Marina
e por muitos outros atores que tem 10, 20, 30 anos de profissão e que não se beneficiam do
sistema do estrelato. O modo como o sistema capitalista está organizado nos faz crer que
qualquer garoto com a habilidade do Neymar, será uma estrela do futebol mundial, assim como
que qualquer jovem ator que seja bom no que faz se tornará rico e famoso. O que não é mostrado
pela grande mídia é a regra, a grande massa de atores que trabalham por décadas na profissão
e que nunca estão seguros sobre as contas a serem pagas no mês seguinte. Para cada dezena que
se beneficia do sistema de estrelato, existem centenas e talvez milhares que são explorados pela
outra face do mesmo sistema. As implicações que elementos de distinção como o racismo
operam na reprodução da estrutura, são as engrenagens constitutivas da máquina que faz operar
o sistema. O sistema capitalista e a estrutura produtiva de arte e entretenimento no Brasil são
uma coisa só. As exceções mantêm o mito da autodeterminação vivo, mas qualquer pesquisa
que se detenha na maioria revelará que ser ator no Brasil não é muito mais pensar em como
pagar o aluguel do que escolher qual mansão comprar.

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Em maior ou em menor medida quase todos os atores que entrevistei esboçam
preocupações sobre o pagamento de contas, principalmente aluguel, e de onde virá o próximo
trabalho. A incerteza financeira é vista por muitos como um elemento constitutivo da profissão
de ator, como observamos nas falas de Sílvio ou de Marina. Sobre isso, Edgar contou que
assistiu um programa de televisão cujo entrevistado era o ator Ari Fontoura. Edgar contou que
o entrevistador perguntou para ele ‘O que é ser ator’? E sobre a resposta de Ari, narrou da
seguinte forma:

- E aí ele fala ‘Ser ator é você esquecer as contas pra pagar no final do mês’.
Ele foi muito objetivo.
- Caramba.
- E olha que é o Ari Fontoura, vamos combinar, ele tem meio século de
atividade profissional. A gente pode considerar ele bem sucedido, porque ele
transita em todos os meios profissionais, teatro, cinema, TV, locução,
entendeu? Publicidade, ele tá em todos os meios profissionais. E ele dizer isso
é impressionante, né?
- É.
- É impressionante!
(Edgar, 60 anos)

1.3 Prefiro passar dificuldade sozinho

Se para muitos a instabilidade e seus sinônimos, como incerteza e insegurança, são


constitutivos da profissão, algumas escolhas poderiam tornar a relação entre vida e profissão
mais favorável para o indivíduo. Neste item nos dedicaremos a compreender algumas possíveis
estratégias apresentadas pelos entrevistados para lidar com a instabilidade da profissão.
Lembro-me que a entrevista de Sílvio foi uma das mais impactantes pra mim nesse sentido. Até
aquele dia eu pensava que a estabilidade profissional era uma questão de tempo, que ao avançar
na profissão, com mais experiência nesse campo, o ator poderia contar com uma estabilidade
financeira. Mesmo já tendo feito outras entrevistas, ninguém falou sobre a questão de se
constituir uma família tendo uma profissão com condições instáveis do modo como Sílvio
falou. Lembro-me que no exato momento em que eu ouvia essas palavras uma outra dimensão
sobre o tema abriu-se para mim de um modo totalmente novo. Meu caminho de volta para casa
foi pensando exatamente sobre esse trecho. Será que eu teria que escolher entre a vontade de
ser mãe e a profissão de atriz? Que escolhas de vida no sentido de constituir uma família
poderiam me afastar do trabalho de atriz?

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- Mas também no meio de felicidades teve algumas infelicidades. Que foi abrir
mão de relacionamento, de uma mulher que... por exemplo, meu primeiro
casamento foi com uma mulher muito mais velha. Casamento que eu digo de
morar junto.
- Sim.
- Ela era mais velha que eu, se apaixonou, eu me apaixonei, um garoto com
vinte e poucos anos. Mas assim, a minha prioridade era a minha profissão.
Então, ‘Ah, por que você chega tarde? Por que tá ensaiando e não sei o que,
não sei o que e não sei o que’. Acabou ali. Eu tinha priorizado o ator. E outras
eu acabei porque... desempregado! ‘Aí Deus, eu adoro fulana e fulana quer
viajar, quer ir hoje não sei pra onde e eu tô sem dinheiro’. Aí eu preferia
acabar. Eu acabei vários relacionamentos de paixão porque... eu fiquei com
vergonha de dizer que.... de dizer não. Eu dizia assim ‘Olha, eu tô apertado,
sem muito dinheiro’. A pessoa queria ir pra... ‘Ah, vamos passar o final de
semana em Buenos Aires’? Entendeu?
- Sim.
- Então, isso foram algumas coisas que a profissão também causa. Pra mim.
Porque ou você... eu prefiro passar dificuldade sozinho do que com outra
pessoa.
- Ahã.
- Então, são essas coisas assim, eu prefiro ficar duro sozinho do que ter,
imagina? Eu fico vendo meus amigos de profissão com esposa, filhos,
desesperados porque estão sem dinheiro. Então, eu não convivo com essa
coisa, entendeu?
(Sílvio, 55 anos)

Sílvio optou por viver sozinho, ao invés de constituir uma família nuclear para que o
peso da instabilidade não o fizesse desistir da profissão. Quando ele diz que “priorizou o ator”,
está afirmando simultaneamente que deixou em segundo plano o marido ou o companheiro que
pudesse acompanhar a esposa ou namorada em suas viagens. Segundo o ator, ele acabou “vários
relacionamentos de paixão” porque estava “desempregado” e porque teve vergonha em dizer
que não tinha dinheiro. Há uma questão de gênero aqui que atravessa a situação, já que dizer
para uma mulher que não tem dinheiro para acompanha-la é para ele um ele um elemento que
o inferioriza, produzindo o sentimento de vergonha. A mesma situação vivida por uma mulher
que estivesse sem dinheiro, talvez fosse moralmente mais aceitável numa visão semelhante.
Mas a questão principal aqui se refere aos efeitos que essa sua visão produziu em sua vida num
contexto de instabilidade que a profissão proporciona.

A palavra “desempregado” foi pouquíssimas vezes utilizada nas entrevistas. Isso porque
o momento de espera entre um trabalho e outro usualmente é visto como uma fase de espera
que terá fim mais cedo ou mais tarde. A própria ideia de que quando se está trabalhando o ator
faz parte de um projeto em detrimento de estar empregado é a mais comum nesse meio. Quando
se referem a contratos mais duradouros (contados em anos) na televisão os atores ainda assim
utilizam mais a expressão contratados do que empregados. Mas no trecho transcrito acima, a
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fala de Sílvio evoca o termo desemprego e isso se deve ao contexto relacional. Ele explica para
mim como ele se sentia em relação aos relacionamentos amorosos que ele terminou porque não
se sentia suficientemente empregado ou de posses financeiras suficientes para continuar. Isso
nos mostra que mesmo o ator usualmente não se sentindo desempregado nos momentos de
espera por um novo trabalho, há situações sociais que podem fazê-lo sentir assim. Por fim, a
comparação com os colegas que ficam “desesperados” porque precisam de dinheiro e têm uma
família para sustentar é evocada a fim de legitimar suas escolhas. Por ter feito as escolhas que
fez, ele diz não conviver com esse desespero.

Howard Becker, em sua pesquisa com músicos de jazz ([1963] 2008), mostra como pode
ser difícil para o músico conviver com indivíduos que tenham um ethos diferente do seu,
principalmente quando trata-se de uma relação próxima como um casamento. Para o autor
O ethos da profissão fomenta uma admiração pelo comportamento espontâneo
e individualista e um desdém pelas regras da sociedade em geral. É de se
esperar que os membros de uma ocupação como essa tenham problemas de
conflito quando entrarem em contato mais próximo com essa sociedade.
(BECKER. [1963] 2008. p.123).

Quando Sílvio fala sobre sua escolha em ficar sozinho, ele nos mostra que diante das
condições que a profissão apresenta para ele, prefere não se relacionar com indivíduos que
possam fazê-lo deixar a profissão. “Priorizar o ator”, como ele diz, em detrimento das relações
pessoais como os “relacionamentos de paixão” não é uma escolha fácil ou sem sofrimento.
Tanto que o ator aponta estes como sendo os momentos de infelicidade que a profissão o
proporcionou. Mas diferentemente do contexto que Becker analisa, essa escolha talvez se refira
menos a uma diferença de ethos entre os indivíduos e mais às obrigações que constituir uma
família podem acarretar e consequentemente afastar o ator dessa profissão que é instável. Trata-
se mais das implicações que um projeto de longo prazo e que pressupõe certa estabilidade, que
é constituir uma família, podem acarretar na vida de um profissional que trabalha com algo cuja
a oferta é instável e a remuneração imprevisível. Faço essa ressalva porque já vi relações entre
atores não suportarem a instabilidade assim como relações entre atores e não atores. Nesse
sentido, voltamos à questão de Sennett sobre cuidar de relações de curto prazo. Quais as
dificuldades que profissionais dessa área tem para desenvolverem relações de longo prazo e em
que medida essas dificuldades se devem ao próprio trabalho?

Mas mesmo devendo-se a uma causa parcialmente diferente, a posição de escolha entre
trabalho artístico e família que os músicos de jazz - na pesquisa de Becker - e que os atores -
na minha pesquisa – se encontram, é muito parecida. O autor mostra como o casamento pode

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se tornar uma “luta permanente” em torno da interrupção da carreira do músico pela busca por
um emprego estável. Um de seus entrevistados diz o seguinte:

Cara, a minha mulher é uma garota excelente, mas não há mais jeito de
ficarmos juntos, não enquanto eu estiver trabalhando como músico. Nenhum
jeito, nenhum jeito mesmo. Logo que nos casamos, era ótimo. Eu estava
trabalhando na cidade, ganhando uma boa grana, todo mundo estava feliz.
Mas quando esse trabalho acabou, fiquei sem nada. Então recebi uma oferta
pra viajar. Bem, que diabo, eu precisava do dinheiro, aceitei. Sally disse:
“Não, quero você na cidade, comigo.” Ela preferia que eu fosse trabalhar
numa fábrica! Bom, foi uma grande merda. Então, fui embora com a banda
Que diabo, gosto demais da profissão. Não vou abrir mão dela por Sally ou
por qualquer outra mulher.
(Trecho de entrevista in: BECKER. [1963] 2008. p.126).

As semelhanças entre o discurso do músico e do ator são grandes. Ambos gostavam de


suas mulheres e o fim das relações não ocorreu pela ausência de vontade em ficar na relação.
A questão era se amavam mais a mulher ou a profissão e nos dois casos a profissão venceu.
Quando Sílvio fala “Eu priorizei o ator” e quando o entrevistado de Becker diz “gosto demais
da profissão. Não vou abrir mão dela por Sally ou por qualquer outra mulher” podemos pensar
sobre a importância que cada papel social tem para os indivíduos ouvidos. O papel de marido
para ambos é secundário e o de ator e músico prioritário. No momento em que a coexistência
desses papéis torna-se inconciliável, o indivíduo opta por aquele que sua constituição moral
aponta como o mais importante para sua identidade. Qual desses papéis esse indivíduo
conseguiria viver sem?

Na minha pesquisa, como entrevistei atores em exercício nenhuma entrevista me


mostrou um contraponto sobre esse aspecto, ou seja, alguém que tenha se visto nesse ponto de
escolha e tenha decidido deixar de ser ator. Mas a iminência dessa escolha, como apontou a fala
de Marina no início do capítulo, pode ocorrer em diversos momentos durante a vida do ator.
Na pesquisa de Becker, ele ouve um músico que está prestes a tomar a decisão de deixar de ser
músico:

Não, não tenho trabalhado muito. Acho que vou pegar um maldito emprego
diurno. Você sabe, quando você é casado é um pouco diferente. Antes era
diferente. Eu trabalhava, não trabalhava, dava no mesmo. Se precisava de
dinheiro pedia cinco emprestados a minha mãe. Agora aquelas contas
simplesmente não esperam. Quando você é casado, tem de estar sempre
trabalhando, ou não dá conta do recado.
(Trecho de entrevista in: BECKER. [1963] 2008. p126).

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Essa fala está em consonância com o que Sílvio diz sobre seus amigos de profissão
casados e com filhos. A pressão para a busca por um emprego estável é bem maior quando se
sustenta uma família. As mulheres que entrevistei têm entre 29 e 40 anos. Nenhuma delas têm
filhos e todas, exceto Marina, são solteiras. Talvez esse seja um dos elementos que contribuíram
para que o tema da instabilidade tenha aparecido de forma mais contundente na entrevista de
Marina. Durante a fase em que fiz as entrevistas para a tese, Marina morava com o namorado
na casa da mãe dela e depois de alguns meses eles se mudaram para um apartamento que a mãe
dela alugava para terceiros e que resolveu destinar ao casal. Mesmo sem pagar aluguel, Marina
se preocupava em conseguir pagar as contas e não ter que voltar a morar com a mãe. Nesse
sentido ela dizia que “filho nem pensar”.

Edgar contou que abriu uma empresa de produções artísticas com colegas atores e que
o motivo de terem desistido da empresa foi a dificuldade em conciliar o estilo de vida dos sócios
que casaram e tiveram filhos, com a instabilidade da remuneração financeira:
- Então, eu não só era ator, como eu produzia teatro, com as pessoas que são
donas dessa escola, a gente tinha uma empresa... de produções artísticas.
- Olha!
- Chegamos a fazer bastante coisa. Mas o dinheiro que a gente ganhava num
trabalho, investia no seguinte. Aí, depois de anos, as pessoas começam a casar
e ter filho, não dá mais... pra ficar trabalhando a fundo perdido, entendeu?
- Sim.
(Edgar, 60 anos)

A dificuldade em conciliar um projeto de família que se baseia na regularidade, com um


projeto profissional que tem a instabilidade como uma das características mais marcantes faz
com que muitos desistam de um ou de outro projeto. Outras estratégias, como a diversificação
que será discutida no próximo item, tornam possível a conciliação entre esses projetos. No caso
dos entrevistados com filhos, a principal alternativa para a busca de uma estabilidade maior
apontada por eles é o ensino, ou seja, a carreira de professores. Ainda assim, um dos
entrevistados que tem 2 filhos se mantém prioritariamente da profissão de ator. Abaixo faço
uma longa transcrição sobre como esse ator elabora sua estratégia para lidar com esses 2
projetos (o familiar e o profissional). Trata-se de uma explanação de sua visão de mundo sobre
o aspecto financeiro.

- Na sua trajetória, você considera ter sido remunerado de forma justa?


- Justíssima! Justíssima! (Pausa). É óbvio que se você se compara a um ator
de televisão, você fala ‘Pô, que merda, porra, o cara ganha pra caralho e eu tô
aqui fazendo teatro e não ganho nada. Dou a minha aulinha, aula também que
não dá nada, só paga as contas e tal. Não consigo comprar um carro, não

52
consigo comprar nada’. Mas quem disse que esse é o pagamento real? Esse é
o pagamento... daqui da terra. Porque o pagamento real é outro, não é? Eu levo
por esse lado, porque se eu fosse levar pelo dinheiro eu tava louco! Já tinha
me jogado... já vi ator se suicidar! O Flávio Cláudio, teu marido conhece,
conheceu, sabe quem é. Flávio Cláudio era da emissora x, jovem ator,
excelente ator... fez um trabalho maravilhoso que era... uma minissérie, pô
famosíssima a minissérie na época. Não vou lembrar agora. E ele tava no
elenco, ele arrebentou e tal. A emissora x não aproveitou o elenco, fez que
nem fizeram agora na emissora y, falou ‘Ó, obrigado pelo trabalho, até a
próxima’. Mandou embora. Normal. Normal. Ninguém é obrigado a te
contratar eternamente. Ele não aceitou isso. Pulou do quinto andar de um
prédio e se matou. Com 28 anos.
- Caramba.
- Tinha uma carreira linda pela frente. Linda. Devia ter... era 4 ou 5 anos mais
velho que eu. Devia estar agora com 45, 44. Devia estar arrebentando, com
certeza. Mas achou injusto o que fizeram com ele. E eu vou te falar da minha
realidade. A minha realidade, assim, eu tive 3 contratos com a televisão a
minha vida inteira. 2 na emissora x e 1 na emissora y. E obviamente passei
por dificuldades financeiras nesses 25 anos, 24 anos, em alguns momentos. E
minha família me ajudou da forma que pôde. Ou com dinheiro, ou com
compras, ou só com colo (riso). Mas, ajudou. Foi fundamental. Então, o
pagamento é às vezes você entender que não tem pagamento. Que o que tem
são os livros, são os filmes, são as peças. E esse é o pagamento que você vai
dar... pro próximo. O que você recebe é o que você vai dar. O dinheiro, ele é
efêmero. Ele entra aqui, você faz as compras, você paga não sei o que e ele já
foi embora. Ele entrou, você comprou um carro, comprou um apartamento,
ele foi embora. Aí você vai morrer amanhã. Você não vai levar a conta
bancária contigo pro céu ou pro inferno, pra onde você for, pro plano espiritual
que você for. (Pausa) Não existe inferno, o inferno é aqui (riso). Então, então
eu acho assim, cada um recebe... aqui na Terra, com o seu trabalho, de acordo
com o que merece. Se eu fosse achar que eu tenho que receber os 100 mil reais
que o... fulano de tal recebe, porque eu sou do cabelo enroladinho que nem
ele... eu ia ficar louco. Eu ia me jogar. Então, eu não penso por esse lado.
Assim, nesse sentido de dinheiro, eu sempre fui muito... cético. Sempre fui
muito, muito, muito certinho, assim, sabe? Eu quando vou fechar um contrato
eu logo digo, eu falo ‘Olha eu não vou te extorquir, eu não quero o teu dinheiro
todo. Eu quero só o que eu acho que é digno pelo meu trabalho. E o que é
digno é isso aqui. Aqui são as minhas contas, dá isso aqui no final do mês. E
eu preciso ter uma sobra pra poder sobreviver. Se não eu vou ficar todo mês
no vermelho, certo?’, ‘Certo’. ‘Então, isso tá bom pra você? Tá bom pra você?
Tá bom pra mim, tá bom pra você, então, fechou.’. Eu não quero 5 vezes mais
que isso. Porque tem gente que pede. ‘Só 10? Não, quero 50! Não tem 50 não?
Tchau!’. E fica 3 anos sem trabalhar. Porque ninguém chama, porque o cara
‘Ah, o cara vai querer 50, não chama não’. Aí fala assim pra mim ‘A gente
não tem...’, ‘Tem quanto?, ‘Posso pagar no máximo 15!’, ‘Tá, mas bota a nota
fiscal, bota mais 10% do empresário, bota mais a escola do meu filho 1700,
dos dois filhos. Dá pra ser assim?’. Você entende? Tem... tem que saber
negociar. E tem que saber não ser olho grande. Porque, igual a você tem mais
55 querendo trabalhar.
- Ahã.
- Tu diz não, tu volta pro final da fila.
(Ricardo, 40 anos)

53
Ricardo diz que não consegue comprar um carro e não consegue comprar nada, mas que
esse não é um objetivo dele. Ele mostra uma visão desapegada de bens materiais e mais ligada
à espiritualidade. Ele diz que a matéria é efêmera e o que realmente importa é outra coisa. Essa
visão facilita lidar com as expectativas frustradas dos que estão à sua volta com relação ao
dinheiro. E desse modo ele se coloca em oposição ao ator que se matou, segundo ele, devido à
demissão que ocorreu mesmo ele tendo feito um bom trabalho. Ricardo sinaliza que caso fosse
alguém preocupado com a remuneração e com bens materiais, já teria se matado como o colega.
Então, sua estratégia é não recusar trabalho e negociar o necessário para o pagamento de contas
como a escola dos filhos e um pouco mais para sua sobrevivência. Além disso, segundo ele não
ganha dinheiro com aulas, mas paga contas. O que deve indicar que recebe pouco pelo serviço,
mas é algo que o ajuda a se manter. No sentido da negociação ele se compara aos atores que
pedem um cachê muito alto e que recusam trabalho fiando muito tempo sem trabalhar, e no seu
caso, aceita e negocia as melhores condições para contratante e contratado.

A falta de reconhecimento da empresa, expressa pelo caso do colega Fábio, e a


dificuldade em se traçar uma estratégia de longo prazo, pelo modelo de contratação que ele
mostra já ter vivido são ambos elementos que já desenvolvemos anteriormente na discussão
desenvolvida por Sennett. Trata-se de um modelo utilizado no Novo Capitalismo descrito por
Sennett. Quando falamos em instabilidade, tratamos de aspectos como não saber quanto se deve
cobrar, quando virá o próximo trabalho, a possibilidade de demissão ou não renovação do
contrato a despeito dos bons serviços prestados, a falta de vínculos com as empresas
contratantes, a falta de garantias trabalhistas, a impossibilidade em fazer projetos a longo prazo
etc.

Depois da fase de entrevistas e durante a fase de escrita da tese, acompanhei uma


polêmica entre Ricardo e sua ex-esposa nas redes sociais sobre o pagamento de pensão. Ele
assumiu não estar conseguindo honrar com o compromisso da pensão e buscava o apoio dos
amigos que compreendem o quanto a profissão de ator é instável. Nos comentários algumas
pessoas mostravam-se compreensivas, mas algumas colegas atrizes foram enfáticas em dizer
que nem a ex-esposa nem os filhos tinham culpa pelos percalços da profissão e que o correto
era ele “se virar” e pagar a pensão. Aqui também percebemos que as “redes de proteção” da
classe social mencionada por Sennett fariam diferença no resultado da situação enfrentada. Esse
acontecimento demonstra que a visão desapegada da matéria e mais espiritualizada que o ator
tem pode ajuda-lo a lidar de uma forma mais leve e com menos culpa sobre uma eventual

54
impossibilidade em pagar contas relacionadas à família. Mas essa visão não muda o fato de que
as contas continuam esperando serem pagas.

Algo que dificulta os indivíduos que se dedicam a essa profissão traçarem estratégias a
longo prazo é também o conjunto de ideias que sustenta o sistema de estrelato. A esperança de
que a qualquer momento a fama baterá á sua porta e que tudo pode mudar, alimenta a aceitação
a essa forma instável como a profissão se impõe. No final é como se tudo se resumisse a uma
aposta. Todos estão no jogo, a imensa maioria perdendo ou ganhando muito pouco, sendo que
alguns levam a mesa toda para casa. Enquanto uns não têm como pagar a pensão dos filhos e
nem sequer vislumbra a possibilidade de comprar um carro ou uma casa, outros poucos
compram mansões, barcos e carros importados. Quando Ricardo diz que comprar casa e carro
faz parte da efemeridade do dinheiro e que nada disso se leva depois da morte, ele está
elaborando uma explicação para si que o coloque no mesmo nível dos colegas que conquistaram
essa estabilidade financeira. Afinal, se não é isso que importa, ele não precisa se matar e pode
continuar a conviver com os outros atores de igual para igual. Essa lógica sistêmica é opressora
para a maioria. Para além dos julgamentos morais que podem advir da descrição da situação
que Ricardo vive, pretendo mostrar como esses indivíduos que optam ou não por constituir uma
família nesse contexto de instabilidade lidam com suas escolhas. Vemos, portanto, quais as
visões de mundo que embasam as possíveis decisões diante dessa encruzilhada que é um projeto
de longo prazo, como uma família, num contexto profissional que possibilita apenas relações e
projetos de curto prazo.

1.4 Saídas para ficar

No item anterior mencionei como as redes de apoio podem ajudar o indivíduo a manter-
se na profissão de ator e como os compromissos com outros projetos podem dificultar essa
permanência. Neste item discutiremos uma outra escolha apontada pelos entrevistados como
forma de minimizar os impactos da instabilidade profissional, trata-se da diversificação. Como
diversificação compreendemos aqui tanto os indivíduos que exercem outras funções, além da
função de ator, dentro do mesmo campo profissional (que se tornam diretores, assistentes de
direção, produtores, produtores de elenco, professores de teatro, iluminadores, operadores de
câmera etc), como também indivíduos que optam em exercer a mesma função de ator em

55
diferentes campos de trabalho (como animadores de festas, contadores de histórias, atores em
propagandas publicitárias etc).

Nesse sentido, o que compreendemos como campo de trabalho do ator tem uma fronteira
muito tênue já que trabalhos que podem fazer parte do campo para alguns, para outros não
fazem, porque não o vislumbram dentro do campo de possibilidades que a profissão de ator é
para ele. O exemplo das propagandas publicitárias é um desses trabalhos que se encontra no
limiar. Ninguém sonha em ser o melhor ator de publicidade do Brasil, mas sonha em ganhar
prêmio de teatro, cinema ou televisão. Apesar de já ter acontecido, é muito raro um ator tornar-
se conhecido por estrelar uma campanha publicitária. Trata-se de um lugar onde não está
depositado o reconhecimento da classe artística nem do público sobre o trabalho do ator, que
está ali numa linha tênue com o trabalho do modelo.

1.4.1 Diversificar o campo

Eu fui modelo antes de tornar-me atriz. Não de passarelas, mas principalmente de


comerciais de tv. E foi gostando desse universo dos sets de filmagens de comerciais que me
interessei em buscar a formação de atriz. Justamente pela minha trajetória, hoje como atriz não
tenho muitos conflitos morais em fazer uma campanha publicitária, exceto se for uma
campanha política para um partido que eu não votaria. Mas não é assim com outros atores. Um
ator que trabalha exclusivamente no teatro procurou-me certa vez para conversar sobre esse
tema. Trata-se da cena a seguir:

Cena 2

FADE IN:

EXT. NOITE – RUA AUGUSTA

Detalhe de pés caminhando na calçada. Grande quantidade de pés


e variedade de calçados.

INT. NOITE – CANTINA ITALIANA

Câmera sobre as escadas do restaurante encontra um mural com


diversos cartazes de peças de teatro. Ao fundo a mesa de TONY e
ANGELA ganha o foco. Eles parecem conversar de forma alegre.

56
CAM APROXIMA

ANGELA
Ah, mas isso acontece em todo lugar, todo
mundo já passou uma vergonha desse tipo
(riso). Eu mesma consigo ser péssima em
lembrar de nomes e de fisionomias. As duas
coisas juntas! Imagina?

TONY
É... (riso). Preta...

ANGELA
Hã?

TONY
Precisava te perguntar uma coisa. Tô sem
saber como lidar com uma questão.

ANGELA
Pode falar, se eu puder ajudar...

TONY
Me chamaram pra fazer um teste de
publicidade e eu não sei se eu vou.

ANGELA
Como assim?

TONY
É, falaram que é pro meu perfil, que tem
uma coisa meio alternativa na campanha. É
para cerveja.

ANGELA
Ah, eu sei qual é. É segunda-feira o teste,
né? Também me chamaram.

TONY
E você vai?

ANGELA
Sim. Ano passado eu filmei uma campanha pra
eles também.

TONY
Ah é, e como foi?

ANGELA

57
Ah, legal. Normal ué. Eles estão com uma
proposta de falar sobre diversidade que tá
bem interessante. Você vai ver, segunda
estarão lá todos os pretos e pretas do
rolê. Vai trombar com vários conhecidos
(riso).

TONY
E o teste, como é normalmente?

ANGELA
Ah, tem a parte de praxe que é ‘vira pra um
lado, volta, vira pro outro, volta, agora
sorriso, agora sorriso maior’. E depois
disso normalmente tem um “acting”, uma ação
pra você fazer. Como a lei mudou, em
comercial de cerveja você não pode mais
beber ou fingir que tá bebendo. Então eles
criam uma situação em que a cerveja
aparece, uma roda de amigos conversando,
uma paquera, uma festa. Aí você faz esse
“acting” que o diretor pedir. Normalmente é
alegre, feliz. Às vezes tem roteiro com
alguma fala pra decorar e às vezes não. Mas
quase sempre o roteiro vem na hora porque
são poucas falas.

TONY
Saquei.

ANGELA
Ajudei?

TONY
Sim. Sim.

ANGELA
(Pausa). Tem outra coisa, né? Fala, o que
você quer saber?

TONY
É que eu não sei se acho certo usar minha
arte pra vender um produto. Como é que você
lida com isso?

Angela respira profundamente e parece pensar o que falar.

ANGELA
Olha Tony, quando eu dava aula de
sociologia eu ficava encanada com isso.
Tipo, ‘Ah, e se meus alunos me verem no

58
comercial de cerveja?’. Ser professor tem
essa parada de ser um exemplo, ainda mais
pra adolescente. Também tinha conflitos com
relação ao nu. Tipo, como será se eu tiver
que ficar nua num trabalho na tv ou no
cinema e meu aluno assistir aquilo. Eu não
resolvi esse dilema. A verdade é que como
eu parei de dar aulas e estou decidida a
priorizar minha carreira de atriz, fugi
dessa questão... não preciso mais lidar com
ela.

TONY
Na verdade, o que eu penso é mais com
relação ao sistema. Eu penso minha arte
como uma forma de combater esse sistema
desigual e opressor que a gente vive. E
fazer um comercial é como se eu estivesse
me vendendo, pegando o que eu tenho de mais
precioso que é a minha arte para servir ao
sistema.

ANGELA
Entendi.

TONY
E com um agravante. É cerveja. Poxa, na
minha peça eu mostro como o alcoolismo é
uma parada social que mata nossa gente nas
periferias e agora chegar lá... você
entende Preta?

ANGELA
Sim. É, nesse caso só você pode decidir.

TONY
É, eu queria saber o que você pensa para
ter um contraponto, sabe? Poxa, você é
cientista social... deve ter pensado sobre
essas coisas também, e ao mesmo tempo eu
sei que você trabalha com isso, então...

ANGELA
Tony, eu tô com 31 anos. Minha mãe já se
aposentou e ainda trabalha, trabalha duro.
Ela tá cansada. Com vinte e poucos eu me
dava ao luxo de pensar que não tem nada
mais capitalista do que a publicidade e que
servir a ela seria algo ruim. Talvez, se eu
tivesse um pai rico que me bancasse eu
ainda me manteria com essa integridade de

59
não me vender ao sistema. Mas hoje, cheguei
à conclusão de que posso habitar essas
brechas que o sistema tem de outro modo,
ganhando o dinheiro dele e fazendo algo
melhor pro mundo. Na primeira temporada da
série que eu fiz agora, a personagem é uma
modelo que faz uma campanha de cerveja e
com o dinheiro paga a clínica de
reabilitação para o pai alcóolatra.
Coincidentemente ou não eu também tinha um
pai alcóolatra. Esse é o capitalismo e suas
contradições. Há vários modos de ser anti-
sistêmico, mas pra todos eles a gente
precisa estar de barriga cheia.

TONY
É, imagina, nunca julguei ninguém por isso.
Senão nem estaria pensando nessa
possibilidade e trocando essa ideia com
você. Eu estou bem mais aberto agora a
outras possibilidades da profissão, se
fosse antes eu nem ia pensar no assunto...
Mas é que eu tô me mantendo bem com a peça.
Tô morando na casa dos meus pais de novo,
sem aluguel pra me preocupar. Acho que não
estou tão necessitado assim pra aceitar.

ANGELA
Se você não precisa, então não faça, só pra
se sentir mal depois. Até porque a
militância também pode te cobrar e se você
não estiver tranquilo com essa decisão,
essas críticas podem doer. Mas a verdade é
que nenhum deles paga suas contas. Então,
se um dia mudar de ideia, não se culpe
também.

TONY
É, acho que agora não é o momento.

ANGELA
Sim, e também você não precisa tomar uma
decisão agora pro resto da sua vida. Deixa
as coisas rolarem. Aproveita esse sucesso
da sua peça.

TONY
Agora vamos deixar esse papo chato pra lá
(riso).

ANGELA

60
Tá certo, conta como foi a viagem com a
peça...

CAM afasta enquanto Tony conta animadamente sobre a viagem.

FADE OUT

Desde o primeiro curso de atuação que fiz em 2010, muitos dos meus colegas de turma
não se dedicam mais à arte e exercem outras profissões. Nem todos desistiram porque
precisavam de estabilidade financeira. Um dos meus colegas de curso no Rio voltou para a
região sul para administrar a rede de postos de combustíveis da família, e como ele há outros
que contrariamente à ideia de “necessidade” financeira, desistem de ser ator por uma pressão
da família para administrar os negócios de sua propriedade ou mesmo para conseguir uma
profissão com uma remuneração que garanta uma manutenção no padrão de vida da família.

Dos colegas que ficaram na arte, alguns exercem prioritariamente outras funções dentro
do universo artístico como produtores, produtores de elenco, diretores, assistentes de direção,
operadores de câmera ou iluminadores. Apesar de compor o mesmo meio profissional, essas
funções possuem uma dinâmica diferente e a frequência de trabalhos pode ser bem maior, o
que gera uma maior estabilidade financeira. Eventualmente, esses colegas são chamados para
atuar. O problema aqui é começar a ser mais conhecido no meio como produtor ou iluminador
do que como ator. Como trata-se da mesma rede de profissionais, isso pode gerar uma escassez
ainda maior de trabalhos como ator. Se a nova função é bem quista pelo ator tanto quanto atuar,
isso não será um problema. Mas se a função era um “quebra-galho”, ou um “bico” para suportar
a espera por trabalhos como ator, exercer apenas essa nova função pode causar frustração.

Já os que ficaram e trabalham apenas como ator ou atriz, o fazem em diversos campos
de atuação e isso também pode ser considerado diversificação. Teatro, cinema e teledramaturgia
são considerados os principais espaços de reconhecimento para o trabalho do ator, sendo que o
teatro é o principal deles para o reconhecimento no interior da classe. O trabalho de dublagem
é executado apenas por atores com registro profissional e muitos vivem apenas do exercício do
ofício nesse meio. Mas para muitos a dublagem é um modo de diversificar e a categoria de
“dublador”, que é mais usualmente utilizada do que “ator de voz” corrobora para essa
compreensão, assim como a pouca valorização do trabalho nesse campo por colegas atores.
Atuar em campanhas publicitárias também é visto como um modo de diversificar e o ator que

61
se dedica apenas ao trabalho em publicidade pode nunca adquirir reconhecimento dos seus
pares. Dentre as possibilidades de diversificar também existem trabalhos como animadores de
festa, contadores de histórias ou ações publicitárias de rua, em que o ator se veste de algum
personagem conhecido para abordar o público. A mais opção frequente na fala doa atores
entrevistados é ser professor de teatro. Talvez porque seja a mais estável dentre todas essas
opções mencionadas.

Por fim, a terceira “saída para ficar” pelo viés da diversificação seria o trabalho com
qualquer outra coisa fora do campo artístico, mas que não conflitasse com o trabalho de ator.
Essa opção vai desde fazer doces para vender até ser sócio de um bar ou restaurante. Na maioria
das vezes, essa possibilidade está mais ligada ao trabalho autônomo ou como empresário do
que como funcionário, já que se o trabalho como ator chamar, não serão todos os chefes que
compreenderão um atraso na filmagem por exemplo. Ainda assim, durante a faculdade muitos
colegas trabalhavam em hostels, eram barman ou vendedores de lojas. Mas entre os
entrevistados, que já exercem a profissão, nenhum se dedicava a esse tipo de diversificação
como funcionários, apenas como empresários.

Ainda sobre o exemplo da publicidade que a cena acima desenvolve, percebemos que
um trabalho que pode ser considerado como parte da profissão por um ator, por outro pode
representar uma quebra com seus valores. De maneira semelhante muitos atores recusam fazer
trabalhos em teledramaturgia por considera-la entretenimento e não arte. Há peças e filmes que
também são considerados por muitos como entretenimento, mas não o teatro ou o cinema como
um todo. E nas escolas a transmissão de que o teatro é o lugar por excelência da arte do ator
mantém essa divisão classificatória. Na relação com o público isso difere, os atores de
teledramaturgia têm muito mais reconhecimento do público, o que acarreta em maiores salários
e fama. Há elementos semelhantes com o que nos mostra H. Becker sobre os músicos de jazz.
No caso da pesquisa com os músicos, Becker nos mostra que eles precisam fazer uma escolha
entre o “sucesso convencional e seus padrões artísticos”. Isso porque o músico de jazz lida com
dois padrões que se opõem, ou seja, é impossível para esse músico atender aos padrões da sua
família e amigos que querem vê-lo famoso e ao mesmo tempo ser respeitado e admirado como
músico pelos seus pares.

Os músicos acham que a música que vale a pena tocar é o que chamam de
“jazz”, termo que pode ser parcialmente definido como aquela música
produzida sem referencia às demandas de outsiders. No entanto, eles têm de
suportar a incessante interferência no que tocam por parte de patrões e do
público. O problema mais árduo na carreira do músico médio, como iremos

62
ver é a necessidade de escolher entre sucesso convencional e seus padrões
artísticos. Para alcançar sucesso, ele sente necessidade de se “tornar
comercial”, isto é, tocar de acordo com os desejos dos não músicos para quem
trabalha; ao fazê-lo sacrifica o respeito de outros músicos e, assim, na maioria
dos casos, seu auto-respeito. Se continuar fiel a seus padrões, estará em geral
condenado ao fracasso na sociedade mais ampla. [...]
(BECKER. 2008. p.92).

O dilema de Tony na cena acima sobre fazer ou não o teste para a propaganda
publicitária tem a ver com as semelhanças entre o contexto desta pesquisa e o contexto da
pesquisa de Becker. A diferença é que ao fazer comerciais de televisão o ator pode ganhar
dinheiro, mas não ficará famoso, como o músico comercial. O que, diferentemente, acontecerá
caso ele faça teledramaturgia. No caso das novelas, que é a maior parte da teledramaturgia,
sendo que as séries são transmitidas em grande medida pelas emissoras de canais pagos, com
um público bem menor, o ator se “tornará comercial”, como no caso do músico, porém com a
ressalva de que não necessariamente o trabalho do ator será visto como não arte pelos colegas.
Essa classificação sobre a qualidade do trabalho do ator dentro do próprio meio envolve
critérios que não abordaremos nessa pesquisa, mas alguns deles dizem respeito aos trabalhos
fora da televisão, ou mesmo às possibilidades consideradas mais artísticas que alguns diretores
e alguns autores permitem aos atores nos trabalhos televisivos. Dentro das novelas, como é
popularmente conhecida a teledramaturgia, há personagens ou núcleos de personagens
considerados mais artísticos e outros mais com fins de entretenimento. E todas essas divisões
influenciam na classificação de “comercial” ou não que o ator pode ter ao se dedicar a trabalhos
televisivos. Apesar de considerar a televisão como o meio mais “comercial” dentre as
possibilidades de trabalho para o ator, há também teatros considerados mais comerciais que
outros, como peças de comédia conhecidas como “pastelão” que tem como objetivo entreter e
não necessariamente causar reflexão.

Apesar de todas as possíveis complexificações com relação ao trabalho do ator em


televisão, a publicidade é o meio que mais unanimemente é considerado “comercial”, tanto pelo
não desenvolvimento de personagens em que o trabalho de criação artística possa ser visto,
quanto pelo objetivo primordial do trabalho: vender. A conversa com Tony mostra como ele,
assim como o músico de jazz, se mantém fiel aos seus padrões, mesmo que isso implique contar
com menos dinheiro. Por outro lado, a conversa também revela como eu estou na classificação
“mais comercial” em relação ao Tony, tanto pela publicidade quanto pelos trabalhos em
televisão, mesmo não sendo famosa. Na conversa fica nítido que o dinheiro não é uma
prioridade para ele e que ele compreende sua arte como uma forma de lutar contra o sistema
63
capitalista. Nesse sentido, tudo o que for comercial, não apenas a publicidade, mas produções
de entretenimento como as telenovelas podem agredir seu padrão artístico. No caso de Tony, o
padrão da sociedade mais ampla é oposto ao seu. E como ele, outros atores que fazem um teatro
engajado politicamente se negam a pensar a televisão como um possível campo de trabalho. O
conflito na cena descrita se dá principalmente porque nenhum dos dois está totalmente resolvido
com sua escolha. Eu que escolhi a via comercial, e digo ter deixado de pensar no assunto quando
parei de lecionar, o que não necessariamente teria eliminado os conflitos éticos. No caso de
Tony, alguma motivação não dita o levou a considerar a proposta de ir ao teste e ter puxado
esse assunto para a conversa. Como ele mesmo disse, se estivesse tão distante dessa
possibilidade, nem a teria considerado como uma possibilidade para ele. E assim, durante a
trajetória, os atores fazem diversas escolhas que o aproximam ou o afastam desse padrão
comercial.

Ao conversar com um amigo, que coincidentemente estudou na mesma escola de teatro


que o Tony, ele disse que a formação “de esquerda” o afastou de muitas possibilidades
profissionais que hoje ele se arrepende de ter desprezado. Ele fez recentemente uma novela na
emissora y e disse que foi uma das melhores experiências que teve como ator. Mas para Tony,
que além de uma formação teatral “de esquerda”, milita em movimentos sociais, a possibilidade
do trabalho em televisão é algo muito distante. Além de ir bem com a peça de teatro que ele
mesmo escreveu, dirigiu e atua, Tony dá aulas e como mostrou a cena, ele atualmente mora na
casa dos pais, o que torna mais possível sua recusa ao padrão comercial.

Dentre os entrevistados, muitos disseram fazer publicidade como forma de diversificar


sua fonte de renda. Um outro exemplo de que se dedicar a esse trabalho pode não ser algo tão
tranquilo para o ator está na fala de Viviane quando perguntei a ela que tipo de personagens ela
recusaria fazer:

- Em que condições você recusaria um papel?


- Eu recuso muitos papeis! E aí... às vezes me oferecem muita grana. Porque,
por exemplo, na publicidade, eu não faço nada que tenha que comer carne,
que eu não como. Que eu sou super defensora dos animais. Não faço nada que
eu tenha que beber bebida alcoólica. Na publicidade! Se eu tiver que fazer no
teatro ou no cinema, eu vou fazer uma coisa bebendo um chá, tudo bem. Mas
na publicidade eu não quero me responsabilizar em, eu, Viviane, estar
vendendo uma coisa que vá... é uma marca, e que eu vou me responsabilizar
por aquela marca com milhões de brasileiros que vão assistir meu produto e
eu tô colocando minha cara ali, pra depois um moleque de quinze anos encher
a cara e fazer uma merda por minha causa.
- Ahã.
- Então eu não faço bebida alcoólica, porque acredito muito nessa coisa do
karma, de ação e reação. E me oferecem direto cachês super altos pra fazer.

64
“Ah, porque você não faz?”. Não faço. E carne, em geral. Então comercial de
fast-food... Que a galera come lá hambúrguer, não sei o quê, eu não faço!
Varejo, no geral, pra publicidade assim, eu não faço também. Porque, por
causa dessas coisas assim, queima muito o filme né?
- Ahã.
- É o tipo de trabalho que eu não aceito. Agora pra tv e cinema... e teatro assim,
não tem muito essa coisa de “Ah eu não vou aceitar determinada coisa”. Tem
que ver se vale a pena ou não né? Se for um papel muito pequeno que não vai
te mudar nada a vida, às vezes não é legal fazer também, porque senão todo
mundo vai te contar só como aquele papel pequeno. Então... Hoje em teatro
eu não faço mais papel pequeno. Eu tento produzir pra tentar fazer um
protagonista, entendeu? Agora... claro que depende do caso. Há casos e casos.
Às vezes é uma oportunidade de trabalhar com determinado diretor e é legal
você fazer um papel pequeno pra você ter aquela chance de experiência na
vida. Cada caso é um caso. Tem que ser tudo repensado, assim. Mas a gente
tem que ter o cuidado de escolher o que faz, sim.
- Entendi, certo. É, uma vez eu recusei uma de política. Eu falei “Não, eu
nunca votaria nessa pessoa, não vou nem no teste”. E política paga muito.
- É. Não... é. Campanha política é uma coisa complicada porque é um cachê
muito alto! E assim, tem amigos meus que fizeram e mudaram a vida deles
também. Tem que ver ne? Porque já me ofereceram campanha política...
- Não, se eu votasse na pessoa...
- Mas assim... Já me ofereceram campanha política pra fazer de Natal, de
Goiás, gente que eu nem conheço, nem sei se a pessoa presta ou se não presta.
Mas eu parto do princípio que nenhum presta, todo mundo vai roubar. Mas aí
depende muito da necessidade financeira do momento, cara.
- É de cada um também.
- Que às vezes eu penso, tipo... tá, fazer a campanha desse cara vai ser
contradizente com tudo que eu acabei de falar, entendeu? Mas putz, às vezes
é muito dinheiro!
- Muita grana, né?
- Que eu paro e penso se eu, com esse dinheiro, não conseguiria fazer muita
arte e passar toda uma mensagem diferente pra muita gente e conseguir tocar
muita gente. O que eu poderia fazer com isso, entendeu? Não gastar com
carrão e... besteira, entendeu? Mas como que eu poderia investir isso de uma
maneira a levar conhecimento, fazer um projeto cultural interessante que eu
pudesse fazer uma coisa muito mais interessante que aquele político tá
fazendo. Às vezes... é... tudo é um caso, entendeu? Mas assim, me expor pra
presidente, alguma coisa assim que vai aparecer muito e que queima muito o
filme, eu não sei se eu teria coragem. Não faria, talvez. A não ser que eu...
tipo... acredite e vote naquela pessoa que... acho que não é o caso. Hoje em
dia não tem ninguém que eu acredite e queira muito votar.
(Viviane, 32 anos)

O movimento da fala de Viviane nos mostra a complexidade do tema. Se antes vimos


dois indivíduos em posições diferentes com relação ao tema – Tony e eu –, aqui vemos que um
mesmo indivíduo pode ter ideias divergentes com relação ao mesmo tema. Isso porque os
critérios pelos quais não se faria uma publicidade podem ser muito distintos de indivíduo para
indivíduo. No caso de Viviane, seu engajamento com questões ambientais e de saúde pode ser
muito mais importante do que questões de ordem político-partidárias. O que é diferente para

65
mim. Nesse sentido, é possível ver que cada ator se orienta no que tange a publicidade de acordo
com seus próprios critérios.

Quando Viviane diz que no teatro, tv e cinema ela só recusaria um personagem caso
fosse muito pequeno, ela nos apresenta um sistema classificatório que hierarquiza os campos
de atuação do ator. E ao diversificar, o ator deve estar atento à essas hierarquias para não “se
queimar” no seu meio profissional. Sobre esse sistema, todos os entrevistados concordam que
teatro é o lugar por excelência do ator, onde ele pode criar com mais liberdade e tem mais
controle sobre o resultado do próprio trabalho. O cinema viria depois como tão artístico quanto,
porém com menor liberdade de criação e controle sobre o produto do trabalho. Em seguida viria
a televisão, onde o trabalho artístico ocorreria esporadicamente, os processos seriam mais
mecânicos com pouquíssima liberdade de criação e nenhum controle sobre o resultado do
trabalho. Depois desses três campos de atuação viriam o que estamos chamando aqui de
diversificações, ou seja, campos de trabalho que não são vistos como os campos por excelência
do ator.

Dois dos meus entrevistados dedicam-se atualmente exclusivamente ao trabalho com


dublagem, mas durante a entrevista foi frequente evocarem os trabalhos já feitos em teatro. A
dublagem trata-se de um trabalho que não pode ser executado por um não-ator. Ainda assim, é
um trabalho visto como não artístico e mecânico por muitos. As dificuldades técnicas e toda a
competência em expressar um conjunto de emoções através da voz são minimizados frente à
importância que é dada à imagem e ao olhar para o reconhecimento do trabalho do ator frente
aos pares. Através desses dois entrevistados percebi como acontece quando o que é visto como
diversificação por uns é o principal meio de trabalho para outros. Como a estabilidade
financeira não acompanha o reconhecimento interno da classe, assim como na pesquisa de
Becker, os dois entrevistados que se dedicam à dublagem pareceram ser os mais estáveis
financeiramente e quanto à frequência de trabalho, porém os menos reconhecidos no interior
do próprio circulo de atores.

A publicidade é vista como um trabalho que não tem nada de artístico e pior, serve aos
interesses daquilo que se opõe à arte, o sistema capitalista, ou no mínimo, à sociedade de
consumo. As campanhas publicitárias com texto só podem ser feitas por atores. Já as que não
possuem texto podem ser feitas também por modelos. A linha nesse caso entre atores e modelos
é muito tênue, o que causa um desprestígio para atores. Fora do sistema de estrelato da televisão,
a publicidade costuma ser o trabalho que mais bem paga atores tanto pela diária de trabalho
quanto pelo direito de uso de imagem. Ocorre que estes trabalhos são esporádicos e a

66
instabilidade dessa oferta faz com que o ator não possa contar com esse rendimento de forma
sistemática.

A dublagem é mais regular e estável, mas isso exige do ator certa disponibilidade que
muitas vezes torna o trabalho em televisão ou em teatro inviável. Isso porque quando se assume
um personagem para dublar em uma série, por exemplo, a carga horaria de trabalho e a
disponibilidade para cumpri-la deve ser maior. Já as rotinas de trabalhos na televisão, no cinema
ou para os ensaios de uma peça também exigem disponibilidade total de horários. Disso implica
que quanto mais o ator se dedica a um nicho, mais difícil é conciliar com outro. Entre televisão,
cinema e teatro os atores tratam como projetos contados em meses. Ex: esses dois meses estou
fazendo uma peça, mas nos próximos 3 meses vou me dedicar a um filme. Na dublagem, porém,
esse afastamento por alguns meses para se dedicar a outro nicho não é visto como normal e o
ator pode ficar conhecido como “alguém com quem não se pode contar”. Por isso, a estabilidade
da dublagem pode ser algo bom para quem busca uma forma de remuneração mais estável, mas
por outro lado, não pode ser visto como um modo de diversificar que interaja de forma
harmônica com os outros nichos de trabalho. Dos atores que conheci que os principais nichos
de trabalho eram a televisão e o teatro, no meio da dublagem eram vistos apenas como
dubladores esporádicos ou de papéis pequenos na dublagem.

Nessa discussão mostramos que nem sempre é tranquila em termos morais, de padrões
artísticos, ou mesmo em termos de adesão e comprometimento a busca por essa diversificação,
por outro lado, há a trajetória de atores que buscam com afinco essas alternativas. Muitos atores
não fazem dublagem porque dizem não conseguir entrar nesse meio, por ser muito fechado. Na
publicidade também, é preciso que a agência em que o ator está cadastrado acredite no seu
trabalho e lhe indique para os testes, além de ter um bom material fotográfico e em vídeo. Um
dos entrevistados contou sobre seu processo de busca por trabalhos no campo da publicidade.
Quando chegou ao Rio de Janeiro para trabalhar como ator ele conseguiu bolsa de estudos em
cursos em troca da ajuda com serviços gerais da escola e para se manter vendia doces num
tabuleiro na porta de teatros e baladas da cidade.

- E me conta da publicidade? Como é que foi pra você achar uma agência
então que, que você pudesse...
- Hum... então... tô tomando o restinho do seu suco, até porque eu gosto... a
sobra diz muita coisa.
- Imagina, mas tá bom mesmo.
- Tá ótimo! É... (pausa) 2009 quando eu cheguei, eu fiz alguns trabalhos
internos, como eu te falei. Alguém me convidava pra fazer alguma coisa,
porque me via trabalhando em alguma coisa. Mas uns trabalhinhos nada

67
demais. É... assim, é esse nível que eu vou te falar de trabalho publicitário. E
aí... a primeira agência que eu fiz um trabalho... nacional foi a Agência x.
Mandei fotos, como sempre, mandava pra todas e ligava “Pô, nada do meu
perfil? Não sei o que”. E olha, vou te falar, o que mais me chateava era fazer
foto, book o tempo inteiro pra tá mostrando minha cara nova, tatata...
- Entendi.
- Isso me, me perturbava porque eu não tinha dinheiro pra fazer isso. E aí eu
mandava os piores materiais que você possa imaginar (risos). Não é à toa,
acho que, eu passei muito tempo sem fazer mesmo. Daí que eu não tinha
alguém que dissesse “Olha, vamos fazer um book aqui profissional com roupa
assim, que é assim que funciona”. Não tinha isso pra mim. Então eu mandava
o que tinha. Passava na favela, tirava uma foto dentro de estúdio velho e
mandava uma coisa qualquer... não sei se foi por isso também, mas enfim.
Teve um momento que era pra ser. E quando foi em 2012, 2013 eu fiz o
primeiro trabalho nacional. Eu fui pra São Paulo gravar, gravei. Fiz, ficou um
ano no ar.
- Olha só.
- E durante esse um ano, não peguei mais nenhum trabalho publicitário. Eu
acho que é por causa do tempo de veiculação (riso). Enfim. Mas, quando foi
em 2014 nossa, aí eu arrebentei. Fiz mais de dez filmes publicitários. Aí
peguei Guaraná, peguei cerveja... fiz três comerciais, um atrás do outro da
cerveja. E agora, final, eu tô pegando da empresa de telefonia. Fiz um agora.
- Aí você ficou com essa agência mesmo?
- Não, aí são várias agências que eu trabalho.
- Ah entendi.
- Ou seja, depois que eu fiz o primeiro trabalho... aí as coisas foram abrindo
né?! Porque tipo assim, as agências já te olham diferente. “Ah, o cara passou”.
É, porque o mercado funciona assim, né?
- Sim.
- Somos um produto na prateleira, esse aqui vende, esse aqui não vende, esse
aqui vende, esse aqui não vende. Quem é que vende mais, quem é o mais
bonito... aquele vende porque é um artista, o cara é bom ator. É simples. Tanto
cinema, televisão... por isso que eu adoro alguns projetos independentes
porque a galera entra porque são artistas mesmo de alma, tão ali. E outros não.
Pessoas que estão sendo vendidas. Normal, faz parte do mercado. Não sou
contra isso não. Mas eu sou muito a favor de quem entra e quem é artista
mesmo. Então, aí... é... o pessoal começou a me olhar com outros olhos... e fui
fazendo os trabalhos, começaram a me chamar, umas agências começaram a
me chamar, voltaram a me chamar, quando eu fui ver... quatro agências me
chamando no mesmo, mesmo trabalho. O mesmo comercial. Aí eu dizia
“Olha, a agência tal já me chamou”. “Ah tá Vinícius, quando tiver a
oportunidade, a gente chama de novo”. E assim foi vindo, e assim é. Hoje eu
tô sendo disputado nessa área, de publicidade. Graças a Deus, graças aos
trabalhos que vieram lá de trás.
- Sim.
- Foi o percurso, né?
(Vinícius, 30 anos)

Vinícius conta que buscou a área da publicidade com certo empenho. Diz que demorou
para compreender como eram as fotos necessárias para que a agência o chamasse para os testes,
no caso o “book” fotográfico que é feito num determinado padrão e que requer um investimento
financeiro. Segundo Vinícius ele não sabia como era esse padrão do material fotográfico e

68
também não tinha dinheiro para fazê-lo. Mas depois de um primeiro aceite ele foi conseguindo
se enquadrar no padrão necessário para buscar esses trabalhos, mesmo tendo demorado mais
de um ano até conseguir o segundo trabalho. Notamos que em comparação com a fala de
Viviane sobre publicidade, Vinícius não diferencia a publicidade do cinema e da televisão. Para
ele, esse aspecto da “venda” está presente em todos esses meios, exceto nos projetos
independentes, onde ele diz que “a galera entra porque são artistas mesmo de alma”. Nesse
sentido, Vinícius não está preocupado se o comercial é de cerveja ou telefonia. Ele considera
normal esse aspecto da “venda” e diz que nós atores somos um produto na prateleira. Ou seja,
fora dos projetos independentes, onde a proposta é artística, estamos sempre nos vendendo.

Durante o desenvolvimento dessa pesquisa acompanhei o processo de montagem da


peça de Vinícius. Um monologo que ele mesmo produziu com a ajuda de amigos da Companhia
que ele faz parte. Ele mesmo financiou a maior parte do projeto com recursos advindo
principalmente da publicidade. Desse modo, ele entrou na cena teatral carioca e passou a ser
conhecido por alguns produtores de elenco e diretores. Depois disso, eu o vi fazendo uma
participação em uma novela. O caminho que ele percorreu para realizar um projeto que ele
idealizou no teatro, ou seja, um projeto independente, teve relação direta com o que ele chamou
de se vender. Mas o diferencial entre a posição de Vinícius e a de Viviane, de Tony e a minha
não se refere ao destino do dinheiro e sim à tranquilidade com a qual Vinícius encara isso que
ele chama de venda. Ele encara como normal se sentir como um produto na prateleira e
considera inclusive que se a disputa por esse produto aumenta, o interesse por compra-lo
também aumenta e ele se beneficia disso.

Desde que conheci Vinícius já o vi em campanhas de quase todos os segmentos.


Supermercados, telefonia, cerveja, política, encanamentos, enfim, o fato é que sua visão prática
sobre o tema se insere num contexto de migração em que ele não pode contar com redes de
apoio no Rio de Janeiro. Os dilemas morais sobre associar sua imagem ou não a certos
segmentos de produtos que os outros três atores mencionados nessa discussão têm não seriam
úteis no contexto de Vinícius, podendo inclusive trazer consequências graves para sua
subsistência. Além de garantir as condições materiais de existência durante certo período,
Vinícius conseguiu produzir um espetáculo teatral para si mesmo através dos recursos da
publicidade. Esse modo de diversificar sua fonte de rendimento que não apenas o teatro, cinema
ou televisão, possibilitou que ele tivesse uma maior estabilidade financeira, pudesse deixar de
trabalhar como vendedor ambulante e tivesse um espetáculo montado para mostrar sua
competência como ator num trabalho que ele considerasse realmente artístico. Por não ter

69
constituída uma rede profissional prévia na cidade, talvez a oportunidade para protagonizar uma
peça de teatro demorasse para ele anos de trabalhos e cultivo de interações.

Além de Vinícius, outro entrevistado também fez uso da publicidade para galgar novos
postos de trabalho em outras áreas. Enquanto Vinícius utilizou o dinheiro que a publicidade lhe
rendeu para se afirmar através do teatro, Ricardo utilizou a campanha publicitária como
material de divulgação de suas habilidades como ator para conseguir trabalho em televisão.
Segue sua própria descrição de como isso se deu:

- Aí, calma. Passei. Passei, fiz o comercial, ganhei o dinheiro e tal. Todo
mundo comemorou ‘Pô, o cara pegou o comercial, que maneiro e não sei o
quê’. Só que aí veio o inesperado. Eu não sabia que isso existia na época, não
sei se existe até hoje, na época existia. A associação de críticos de propaganda
do Brasil, tem uma associação de críticos de propaganda e tal... premiavam os
melhores atores. Em 3 categorias... é, categoria ouro, categoria prata e
categoria bronze.
- Hã?
- Eu ganhei o prêmio. Categoria bronze, como melhor ator de publicidade, 94,
95.
- Caramba.
- Eu não esperava isso. Óbvio, fiz o comercial e nem... moleque, tava vivendo,
tava viajando, curtindo, fazendo teatro, namorando e tal, tava nem aí.
Telefonema ‘Ricardo, você tá indicado pro prêmio tal, a entrega vai ser dia tal
e tal, no lugar tal, você tem que ir’. Eu digo ‘Tá bom’. Aí fui, botei uma
roupinha, fui sozinho. Já tinha 18 anos, ia completar 18 anos, aí fui. Cheguei
lá ‘E os concorrentes são...’. Aí passa no telão o meu comercial, o outro, o
outro, o outro. ‘E os vencedores são fulano de tal ouro, fulano de tal prata e
Ricardo bronze’. Eu não acreditei, a perna tremia, eu chorava... eu peguei o
prêmio, e isso me gerou outros trabalhos, porque eu botei isso no currículo.
Porque eu peguei esse comercial e esse comercial era meu cartão de visitas.
Aí eu fui na Emissora x, aí eu fui na Emissora t (que não existe mais), aí fui
nas produtoras de cinema. Foi aí que começou minha vida. Antes disso eu era
só um ator de teatro. Eu era só um ator medíocre de teatro. Aí começou, eu vi
que eu poderia ser alguma coisa, que eu tinha um caminho a percorrer. Que
eu poderia ser bom de comédia, porque era uma cena de comédia. Que eu
poderia pegar... sei lá, ser bom de comédia e tal. E comecei a reproduzir esse
comercial, que nem a gente faz hoje com dvd.
- Sim, fazer cópia.
- Você pega um e faz cópia e tal. Eu comecei a fazer cópia, cópia, cópia, cópia.
Saía de casa com um bolo assim na mochila, passava de porta em... ia lá em
Botafogo, no Humaitá, no Jardim Botânico, nas produtoras que eu conhecia,
que eu peguei endereço com o diretor meu amigo e tal, com a galera que já
fazia, de cinema e tal. E fui deixando. E foi isso que foi me gerando trabalhos,
testes e tal, indicações pra outras coisas. E... e foi isso que me gerou emprego
na Emissora x, no ano seguinte. No mesmo esquema, tava tendo um teste, eu
não fui chamado, eu peguei o dvd, bati na porta do teste e falei ‘Pô, eu não fui
chamado, mas eu trouxe aqui um material pra vocês olharem, pô, é um
minutinho de comercial. É um minutinho, foi premiado, ganhei prêmio e tal,
dá uma olhada’. Deixei, deixei meu telefone e fui embora. Não fiz o teste. O
cara botou ‘Ricardo, é você! Contrato de 6 meses’.
- Caramba. Que legal.

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- Aí, uma vez que você entra na televisão, obviamente, o Brasil inteiro te vê,
todo mundo te vê, todos os produtores, todo mundo te vê. Aí não parei mais.
Porque se eu não tivesse feito isso eu acho que eu teria ficado no teatro e hoje
em dia seria um... um ator de teatro só, que tava trabalhando ali na Escola x,
dando aula.
(Ricardo, 40 anos)

Depois de vencer o prêmio por causa do comercial, Ricardo diz que foi aí que a vida
dele começou. Que antes disso ele era apenas um ator medíocre de teatro e que depois ele
conseguiu ter autoconfiança para buscar uma oportunidade em novelas de televisão, que se
concretizou com seu primeiro contrato. Segundo Ricardo, ele nem havia sido chamado para o
teste do personagem para a emissora x. Mesmo assim, ele levou uma cópia do seu comercial e
conseguiu ser contratado para aquele personagem por 6 meses, mesmo sem ter feito o teste,
apenas através do comercial. Esse contrato de 6 meses na televisão, segundo ele foi o modo
através do qual os diretores e produtores de todo o Brasil passaram a conhecer seu trabalho. E
que depois disso, não parou mais.

Através do caso de Ricardo, vemos como a publicidade pode ser encarada de modos
muito diferentes pelos atores. Se por um lado alguns consideram que esse tipo de trabalho pode
“queimá-los”, por outro há atores que enxergam esse trabalho como algo benéfico que pode
impulsionar sua carreira como ator, seja através dos recursos financeiros que ele possibilita ou
mesmo através da visibilidade que ele pode proporcionar. Há especificidades aqui no que tange
ao tipo de comercial. Como disse anteriormente, comerciais com texto são melhor considerados
por serem feitos apenas por atores e não por modelos. Ainda assim, esse exemplo nos revela o
quão complexo pode ser esse sistema de classificações e que para muitos atores “ser comercial”
não necessariamente é algo ruim. A visão de Ricardo sobre ser vistos por todos os produtores
e diretores do Brasil através da novela, mostra como ele buscava esse posto de trabalho e como
ele enxerga esse campo “comercial” como algo bom de acordo com seu objetivo de tornar-se
conhecido por quem pode lhe oferecer mais oportunidades de trabalho.

Sobre a afirmação de Vinícius de sentir-se um produto, outros entrevistados sinalizaram


no mesmo sentido de diferentes modos. A diferença entre oferecer um serviço e sentir-se um
produto é tênue dependendo do contexto profissional em que o ator está inserido. Durante os
testes e trabalhos que fiz como modelo em comerciais essa sensação de ser um produto era
muito evidente. Certa vez fui gravar um comercial para um produto de cabelo e o diretor quando
me viu surtou porque meu cabelo não estava como no teste. Eu disse que a equipe dele havia
me dito “no dia do trabalho, lave o cabelo e não passe nenhum creme”. Eu apenas obedeci. Foi

71
a maior confusão porque ninguém queria assumir a responsabilidade, mas eu apenas segui
ordens. Eu disse a ele “Ou eu passo creme e meu cabelo fica daquele modo, ou eu não passo e
ele ficará diferente”, seguir as duas indicações ao mesmo tempo é impossível. Você deveria ter
avisado à sua equipe o que é que você queria”. Ele me mandou lavar a cabeça novamente,
passar o creme e ficar no sol secando, já que o cabelereiro disse que com secador não teria o
mesmo efeito. Eu fiquei por quase 4 horas exposta ao sol. E só depois fomos filmar. Até o final
do trabalho que durou 16 horas (sendo que a diária é de 12 horas) aquele diretor não sabia dizer
o meu nome. Não interessava isso a ele. Apesar do nervosismo com o desencontro de
informações que poderia ter sido evitado, eu sabia que para aqueles comerciais não importava
quem eu era, apenas a textura do meu cabelo, a cor da minha pele, o quão magra eu estivesse
ou os traços do meu rosto. A partir do momento que comecei a estudar artes cênicas deixei em
grande medida de me sentir um produto para me sentir uma prestadora de serviços. Meus cachês
passariam a estar relacionados não apenas à minha imagem, mas às minhas habilidades em
interpretar o que aqueles diretores quisessem. Em grande medida o tratamento nos sets de
filmagem, mesmo os de publicidade, mudou bastante. Há um esforço maior por parte da equipe
por saberem meu nome (apesar de muitas vezes me chamarem pelo nome da personagem). Mas
como Vinícius aponta de um modo mais radical em sua fala, quando ele diz que somos um
produto em todos esses meios que não os projetos independentes, é porque as relações
capitalistas desses modos de produção nos fazem sentir como tal, mesmo na condição de atores.
Dependendo do lugar da hierarquia que se ocupe em cada produção específica essa sensação
pode ser maior ou menor. O diretor da cena saber ou não o seu nome, é um desses indicativos
sobre o quão impessoal é aquela relação. Usualmente a equipe segue a linha que o diretor utiliza
para esse processo. Se o diretor não chama ninguém pelo nome, humilha, grita e expões a todos,
os que estão abaixo dele dificilmente farão algum esforço para agir de modo diferente.

Apesar de não ter trabalhado como modelo, Vinícius tem a percepção de que o ator é
“um produto na prateleira” não apenas na publicidade, mas de modo geral na televisão e no
cinema. Isso diz respeito ao quanto sua imagem pode vender não apenas de produtos anunciados
numa publicidade, mas quanto sua imagem vende do próprio produto televisivo ou
cinematográfico. A linha entre “imagem” e “trabalho” não pode ser traçada de forma simples.
Para o ator, sua “imagem” pode ser vista como um capital não apenas no que tange a beleza,
mas também se o veem como um “bom moço”, como alguém “competente”, “dedicado” ou
“sério”, tudo isso é levado em consideração quando se calcula um cachê publicitário de um ator
já conhecido. Para os desconhecidos contam mais os “tipos” que eles encarnam, como o

72
“simpático” ou “confiável” anônimo. Para as novelas e filmes, o público que um determinado
ator pode levar às salas de cinema, ou para acompanhar a novela é um capital que essa prestação
de serviço pode acumular ao produto final – novela ou filme. Nesse sentido, o ator já famoso –
também por isso – pode encontrar mais facilidades em ser convidado para outros trabalhos, já
que ele acumulará ao novo produto um capital que ele já detém (o público que o acompanha).
Quando Vinícius diz “esse aqui vende e esse aqui não vende” ele pode estar se referindo a
vários aspectos que não apenas a estética, o tipo e características que encarna ou mesmo o
público que acompanha o ator, de todo modo, estes são alguns dos elementos que podem estar
presentes nesse âmbito. Ainda dentro do tema da diversificação, Edgar nos fala sobre como
encara a visibilidade que a televisão proporciona e usa a expressão “estar na vitrine” para tal.
Segue o trecho de sua entrevista:

- Eu sempre tive voz. Eu sempre tentei fazer... entrar nesse mercado de


locução, por exemplo, mas aí era um mercado fechadinho. Era uma dúzia de
locutores que sempre ganhavam os testes. Aí eu cansei de perder teste pra
famoso x, pra famoso y, pra famoso z, sempre os mesmos, entendeu? Porque
as pessoas que tavam contratando o serviço, por agência, elas queriam vozes
conhecidas! Porque comercialmente... Então, esse esquema da emissora x é
assim, se você não ganha visibilidade na telinha, você não tá na vitrine, você
não tá na prateleira. Entendeu? Isso acaba afetando todos os outros mercados
profissionais. Impressionante!
- Olha só!
- Parece que é um castigo, uma punição! Entendeu? Quem mandou não se
submeter à emissora x de televisão? Não é que não quisesse fazer, entendeu?
A verdade é que eu sou de uma geração, engraçado, eu sou... eu meio que
bailei na curva, porque... tá todo mundo lá fazendo, tá todo mundo lá fazendo!
Entendeu? Essa geração (...), essa gente tá aí, ocupando o espaço no mercado.
E eu na verdade fui ficando num limbo porque não, eu acho que eu nunca tive
muito essa personalidade que eu acho que a tv exige, entendeu? Que eu acho
que é uma personalidade de... é, como é que eu diria? (riso) É uma
personalidade forte, entendeu? Competitiva, competitiva. Agressiva,
agressiva. Eu acho que eu sempre fui muito, fiquei muito rendido. Depois,
com a idade, cabeça branca, mudou tudo. Porque até a relação com eles, que
eu continuo até hoje.
- Ahã.
- Esse ano eu já fiz 3 participações, uma na novela das 9, outra na das 7, outra
na das 6. Mas assim, eu fiquei aquele cara, que ninguém conhece, um ilustre
desconhecido, sempre que pinta um personagem de cabeça branca, nenhum
ator mais conhecido vai querer fazer uma coisa rapidinha. Então, foi a saída
que eu encontrei pra mim. Eu fui pela... comendo pela beirada, e fui
aumentando o meu cachê. E aí eles me pagam bem por 1 dia de gravação. Se
eu gravo 2, eu ganho por dia, entendeu?
- Certo.
- Mantenho humilde dignidade, entendeu?
- Entendi.
- Mas já me alertaram lá, fiz 60. Eles falaram ‘Olha, agora você vai começar
a entrar numa faixa difícil porque a partir de 65 tem que pegar e levar em
casa’... Eu já consigo isso informalmente, mas não é sempre, não tenho esse

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direito, entendeu? ‘E além disso, o teu preço por dia está muito alto!’. Então,
acaba que você não consegue mais se encaixar nos orçamentos. De novela eu
ainda me encaixo, mas quando é programa especial, eu faço também, eles me
chamam, entendeu?
- Ahã. Sim.
- Programa da apresentadora tal, Programa y. O que tiver de figura, que
precisa de alguém desconhecido, sou eu que estou lá. Porque eles chamam, eu
atendo, eu funciono (riso), e isso já tem uma relação de mais de 30 anos. Mas
pra mim, comercialmente não é tão, não compensa tanto porque eu não to na
novela, não to na visibilidade, entendeu?
- Ahã.
- Mas por outro lado isso me deixa espaço pra fazer outras coisas. Então,
assim, eu acho que financeiramente eu não to tão bem, quanto as pessoas que
incluíram a TV como sua atividade principal. Porém, eu acho que eu tenho
mais liberdade de criação, eu acho que eu tenho mais escolha e eu acho que...
não sei, porque quando eu vou hoje em dia lá , eu faço um dia só de gravação,
eu caio de pára-quedas, entendeu? E aí eu aprendi a lidar, porque antes... é
uma máquina de triturar carne, entendeu? Você tem que ser resistente, porque
no início as pessoas passam por cima, pisam em você com a maior facilidade.
E você, mesmo que você gema alto, ninguém ouve, entendeu? Mas com a
idade e a cabeça branca, eu comecei a gemer mais alto quando me pisavam e
aí... aí começa a ser ouvido, entendeu?
(Edgar, 60 anos)

A fala de Edgar sobre a visibilidade que a televisão proporciona ao trabalho do ator


expande nossa percepção para o que chamei aqui de “imagem”, já que ele relaciona os trabalhos
de locução também a esse contexto em que atores que trabalham em televisão possuem uma
oferta maior de vagas. A voz que narra determinado comercial de banco por exemplo, caso seja
de um ator conhecido da televisão tem mais valor para a empresa. Edgar nesse sentido reclama
que, por não estar nessa “vitrine” que é a televisão, suas possibilidades de diversificação da
profissão são ainda mais limitadas. Segundo ele, essa “prateleira” que é a televisão afeta todos
os outros “mercados profissionais” em que o ator poderia encontrar trabalho.

Edgar fala do seu tipo de inserção na televisão como alguém que “bailou na curva” ou
que foi “comendo pelas beiradas”. Ele trabalha na televisão, mas em participações pequenas,
contadas em diárias, sem um contrato por projeto. Essas participações garantem uma
remuneração boa pelo dia de trabalho, porém com nenhuma visibilidade. Segundo Edgar, ele
continua um desconhecido para o público, o que não é interessante comercialmente. Vemos
aqui que o termo comercialmente está mais ligado à visibilidade que a televisão poderia
proporcionar. Para Edgar, apesar de não estar tão bem financeiramente quanto os amigos que
se dedicam principalmente à televisão, ele se vê em melhores condições artísticas, ou seja, com
mais possibilidades de criar artisticamente. Nesse trecho da entrevista, Edgar fala sobre vários
aspectos que já tocamos nesse item, inclusive quanto à ausência de respeito entre os

74
profissionais, o que ele chamou de “máquina de triturar carne”. Afinal, alguém que faz uma
participação só estará lá por um dia, todos os outros que já estão lá não precisam fazer o mínimo
esforço para tratar bem aquela pessoa que talvez nunca mais vejam depois. Por trabalhar há 30
anos nessa mesma posição dentro do campo da televisão, Edgar compreendeu que em
determinados momentos deve “gemer alto” para que não seja pisado.

Com o exemplo de Edgar também vemos outro aspecto do que Viviane dizia sobre
aceitar papéis pequenos e ficar conhecida por isso. Caso o ator “funcione” nessa posição, ele
pode continuar a fazer esses papéis pequenos eternamente, afinal o sistema precisa de alguém
para ocupar esses cargos, além disso, não há espaço para que todos cresçam na empresa e
tornem-se protagonistas. No caso de Sílvio, mostrado anteriormente, ele estava insatisfeito com
os personagens para os quais estava sendo chamado na televisão – pequenas participações como
policial. Já Edgar, mostra-se tranquilo com a posição que ocupa porque apresenta o contraponto
da maior liberdade de escolha que ele tem na sua profissão em relação aos colegas que estão
mais envolvidos com o trabalho em televisão. Para Edgar é um caminho através do qual ele
mantém a sua “humilde dignidade”. Seu único receio apresentado é o fato de seu cachê começar
a ficar alto para os padrões das participações, que é seu trabalho naquele contexto. Sílvio
também indicou o mesmo problema, que de acordo com as leis trabalhistas a cada período de
tempo a emissora tem que aumentar o que paga para cada ator pelo mesmo serviço, que são as
chamadas correções de acordo com as taxas de inflação. Disso implica que esses atores que têm
décadas de trabalho custem mais caro por cada diária e possam deixar de ser chamados e outros
que tenham a mesma idade, porém menos tempo de trabalho, passem a ser chamados em seus
lugares.

Um elemento importante apontado por Edgar é o que ele chamou de personalidade forte,
competitiva e agressiva, que segundo ele, seriam de pessoas mais aptas a trabalharem no
sistema produtivo da televisão. No início desse capítulo tratamos das características pessoais
que poderiam facilitar ou dificultar ao indivíduo enxergar a instabilidade como liberdade. No
capítulo sobre condições de trabalho poderemos explorar melhor esses elementos que Edgar
apontou sobre a relação entre personalidade e processos produtivos específicos com os quais o
ator tem de lidar caso queira trabalhar em determinado campo, como a televisão. Nesse item,
portanto, apresentamos algumas possibilidades de diversificação de campos de trabalho que o
ator encontra exercendo a mesma função, ou seja, atuando. As escolhas no sentido da
diversificação e o que cada ator enxerga enquanto campo de possibilidades para si varia não
apenas de um indivíduo para o outro, mas também de acordo com cada momento de sua

75
trajetória. Possibilidades que não eram vislumbradas no início da carreira podem passar a ser e
outras podem deixar de ser consideradas. Ocorre que o tema da diversificação quanto aos
campos de trabalho é uma constante para grande parte dos atores. E para finalizar a discussão
desse item trago a fala de Eduardo como um exemplo de elaboração acerca do que num
determinado momento da sua trajetória vislumbrou ou não enquanto possibilidade:

E aí eu vim morar com eles (com dois amigos no Rio de Janeiro) e eu dei
continuidade na dublagem aqui. Trabalhei na Dubladora x, na Dubladora y...
em algumas dubladoras aqui do... do Rio de Janeiro. Até com um... uma... um
volume bacana de trabalho. Eu estava sendo até bastante solicitado. E comecei
a sobreviver com esse trabalho de ator em dublagem. Mas também comecei a
fazer bastante participações... em novela. E aqui, no caso... Emissora x, porque
a Emissora y nem estava fazendo novela aqui nessa ocasião. Acho que não
estava nem fazendo novela, pra falar a verdade (risos). Então era a Emissora
x. E eu comecei a fazer boas participações e o... o mais forte mesmo era a
dublagem. E publicidade tinham poucos testes. Eu vi que a publicidade do Rio
de Janeiro era bem diferente... bem menos profissional do que em São Paulo,
isso me incomodou muito. Não existia cachê-teste, é... os cachês mais baixos
do que em São Paulo, me deixou bastante intrigado e decepcionado.
(Eduardo, 45 anos)

As diferenças que os atores consideram importantes entre Rio de Janeiro e São Paulo
também influenciam o que tange ao campo de possibilidades vislumbrado. Cerca de metade
dos entrevistados já moraram nas duas cidades e 3 deles mencionaram que trabalhavam com
publicidade em São Paulo e não conseguiram trabalhos nessa área quando passaram a morar no
Rio de Janeiro. Com relação ao teatro também, alguns entrevistados afirmaram ter maior
dificuldade para fazer peças de teatro no Rio de Janeiro do que em São Paulo. Em contrapartida
as experiências com televisão e cinema foram maiores ou mais frequentes quando estavam
morando no Rio de Janeiro. Nesse sentido, devemos considerar que além de maior ou menor
oferta real de vagas em cada campo de acordo com a cidade, há também a questão da
constituição das redes. A angústia de não ser chamado para participar de peças de teatro no Rio
de Janeiro é vivida com maior intensidade por quem não é natural dali. Por outro lado, os
migrantes demonstram uma disposição maior para empreender e “criar as próprias
oportunidades”.

A fala de Eduardo coloca num mesmo plano os trabalhos com dublagem, as


participações em novelas e a publicidade que ele gostaria de trabalhar, mas não conseguiu no
Rio de Janeiro. Isso demonstra que a diversificação de campos de trabalho é algo comum e
visto inclusive como necessário no interior da profissão. No item a seguir apresentaremos

76
algumas possibilidades de diversificação que o ator encontra para exercer uma função diferente,
que não atuar, porém sem sair do campo artístico.

1.4.2 Diversificar a função

Temas como aposentadoria são difíceis de serem abordados no contexto dos atores.
Enquanto elaborava o roteiro de questões pensei em incluir esse tema, mas logo percebi que
tocar nisso poderia causar uma indisposição nos entrevistados que comprometeria o restante
das respostas. Conversei sobre isso com uma amiga mais próxima (que é uma das
entrevistadas), fora do contexto de entrevista e ela me disse que “nós atores não esperamos nos
aposentar, queremos morrer trabalhando”. Essa parece ser a ótica através da qual a maioria dos
atores enxerga a falta de seguranças trabalhistas que os regimes de contratações nos impõem.
Pensamos que não precisaremos de garantias como carteira assinada a fim das devidas
comprovações quando quisermos no aposentar, não porque somos precarizados, mas porque
nunca vamos querer nos aposentar. É um modo reconfortante de pensar sobre a ausência de
garantias trabalhistas com as quais temos que lidar nessa profissão.

No que tange à busca por estabilidade financeira ou de oferta de trabalho, muitos atores
buscam realizar outras funções, que não a de ator, porém muitas vezes buscando ainda
permanecer no campo artístico. As funções que mais apareceram nas entrevistas, inclusive na
identificação inicial quando eu perguntava “Qual seu nome, idade e profissão”, foram as
funções de professor juntamente com a de diretor e a função de produtor. Todas sempre
acompanhadas da profissão de ator que era o critério para ser entrevistado. Dar aulas de teatro
é uma opção frequente entre os entrevistados que buscam alternativas para a instabilidade
financeira da profissão. Edgar é um dos entrevistados que lecionam desde jovem, ele inclusive
foi meu professor. No trecho a seguir ele narra uma transformação da conjuntura profissional
do ator, principalmente influenciada pelo fenômeno que foi o estabelecimento da televisão
como item central na sociabilidade e lazer de grande parte da população brasileira e pelo que o
próprio Edgar atribui como star system:

- E aí, a história engraçada é a seguinte, quando... eu tinha vergonha de dizer


que era ator porque tinha uma cobrança muito grande em relação a isso. No
Brasil, eu acho que até hoje é assim, quem avaliza a profissão de ator no
mercado, no mercado profissional, é a Emissora x de televisão. Então, quando
eu dizia que era ator, tinha um certo constrangimento porque as pessoas
falavam ‘Que novela que você fez?’. E eu até já tinha feito algumas coisinhas,

77
algumas participações, mas nunca tinha feito algo mais... de uma
continuidade, com regularidade, entendeu? E mais do que isso, enfim, quando
naquela época você comprava coisas, você tinha que fazer crediário,
entendeu?
- Sim.
- Comprar geladeira, fogão, fazer crediário. E pra fazer o crediário você tinha
que preencher uma ficha. E quando eu preenchia que era ator, existia sempre
uma saia justa, entendeu? Era um preconceito, uma insegurança de que não
teria como pagar, esse tipo de coisa. Que é uma prática social. Entendeu? Aí,
eu... como desde a escola de teatro eu tive também um professor de teatro da
educação, até fiz uma Licenciatura na Sorbonne de teatro da educação, por
causa dele, eu acho. Porque aí eu percebi a dificuldade do mercado e eu falei
‘Não, eu tenho que diversificar, tenho que diversificar’. Então, eu não só era
ator, como eu produzia teatro, com as pessoas que são donas da escola, a gente
tinha uma empresa...de produções artísticas. (...) Enfim, aí eu tive esse clique
‘Ah...’. Eu já trabalhava como professor! Já tinha trabalhado com várias faixas
etárias. Inclusive na PUC dei aula de encenação, numa época que tinha essa
cadeira no Departamento de Artes. E... e aí eu comecei a botar ‘professor’. Aí
mudou tudo.
- Ah entendi.
- Aí como professor era visto de outra maneira, entendeu? Mas você sabe que
nos anos 2000 a história mudou. Porque aí com a... cada vez mais esse glamour
da profissão, que a Emissora x acaba provocando, esse Star System, né? Esse
Star System.
- Exato.
-Acabou que... ator já tinha uma certa visibilidade social, existiam casos de
sucessos de pessoas jovens entendeu? Então, acabou sendo algo “promissor”.
Os pais tinham muito medo de que os filhos seguissem a carreira artística por
causa da instabilidade financeira, entendeu?
- Sim.
- E aí... foi o contrário, olha só que situação do Brasil, né? Aí, quando eu
colocava ‘professor’ nas fichas de cadastro e tal, ‘Profissão?’, ‘Professor’, as
pessoas me olhavam com compaixão. Tinham pena. Tinham uma certa dó.
- Olha!
- ‘Nossa você... ai coitado!’. Porque professor já tinha caído no desprestígio
absoluto, entendeu?
- Entendi. Como muda, né?
- Então, você vê como é que são as coisas. Aí eu comecei a botar ‘ator’
novamente. Porque aí já era mais velho e tal. Aí, não é que as pessoas tivessem
parado de perguntar, entendeu? Se eu já tinha feito... eu já tinha feito mais
coisas também. Mas de qualquer maneira, isso não ficou uma coisa tão séria.
Eu, pelo menos, como eu me mantive em atividade, aí eu aproveitei e... as
pessoas me perguntavam que novela que você fez, eu já respondia ‘Não, eu
sou ator de teatro!’.
- Sim.
- ‘Eu faço cinema’. Eu já tinha uma resposta pronta, que aí eu escapava dessa...
desse estigma! É um estigma! Entendeu?
- Sim.
- Quando você fala que é artista, tem uma certa desconfiança. No Brasil, eu
acho que artista ainda, de certa maneira, é sinônimo de vagabundo. Porque
tem, assim, uma vida de artista. As pessoas falam de vida de artista de uma
maneira irônica. ‘Ah, vida de artista...’. Mas aí na verda...
- Boêmio, né?
- É. Entendeu? Tem uma certa...
- Bon vivant.

78
- Exatamente. E aí quando vão ver qual é a realidade da vida de artista, que
realmente se profissionaliza. Porque no Brasil eu acho que o difícil não é a
profissionalização. O difícil é você se manter em atividade.
- É, na profissão. É, exercendo.
- Em forma, exercendo, pronto pra jogar, a qualquer momento você pode fazer
cinema, teatro, televisão. Dublagem, no início, foi um mercado que eu não
podia desprezar de jeito nenhum. Porque tinha... era uma relação de
pagamento por hora de trabalho. E ganhar dinheiro com a tua voz.
(Edgar, 60 anos)

Edgar fala sobre como a autoclassificação profissional para ele ao se apresentar nas
fichas cadastrais de crediário sofreu transformações. Devemos levar em consideração que o
julgamento do interlocutor no momento que se preenche uma ficha de crediário é decisivo para
se conseguir ou não efetivar a compra do objeto desejado. Ele conta que inicialmente buscava
a classificação que lhe parecia mais estável e com maiores garantias de que iria honrar o
compromisso financeiro, que era a função de professor. Além de parecer mais estável, essa
resposta o livrava do estranhamento que ser um ator e não ser famoso poderia causar nos seus
interlocutores. Depois ele sentiu-se constrangido com o sentimento de piedade gerado quando
ele se dizia professor e resolveu afirmar-se ator. Um diferencial que ele aponta sobre si mesmo
nesse aspecto é que à essa altura ele já havia se apropriado dessa identidade a ponto de que os
questionamentos sobre sua ausência de fama não abalassem sua autoconfiança. Segundo Edgar,
já tinha um conjunto de respostas prontas para quando fosse perguntado sobre seus trabalhos
na televisão. Na verdade, essa é uma queixa de muitos professores de teatro que tive. Eles
diziam que esses momentos de lidar com pessoas de fora do universo artístico era constrangedor
e que sempre tinham que explicar que atores não são apenas os que estão na televisão. Como
diz Edgar, isso chega a ser sentido por ele como um estigma.

Além da questão da autoclassificação profissional compreendemos o que Edgar


considera ser o momento em que ele enxergou a necessidade de diversificar suas fontes de
rendimento, depois de ter avaliado a instabilidade do mercado profissional. Inspirado por um
professor, ele viu que dar aulas poderia ser um bom caminho para isso, chegando a realizar uma
especialização na área de licenciatura na França. A relação com quem está fora do universo dos
atores é constante em sua fala. Ao tentar descrever o que os agentes externos compreendem por
vida de artista, em que artista é sinônimo de vagabundo, Edgar reafirma os desafios da profissão
ao dizer que o difícil não é se profissionalizar e sim, manter-se em atividade. Essa afirmação
sobre a dificuldade em manter-se na profissão está em oposição direta à ideia de vagabundo,
que ele diz ser o modo através do qual a sociedade enxerga os atores. A diferença entre estilos
de vida, por vezes torna difícil a relação entre atores e não atores. Numa palestra que assisti da

79
Fernanda Montenegro, ela dizia que os vizinhos os achavam uma família maluca porque
usualmente iam dormir quando estava amanhecendo e acordavam quando as pessoas estavam
indo almoçar. Enquanto os vizinhos os achavam “vagabundos” ela dizia que eles trabalhavam
muito todos os dias, mas a rotina do teatro implicava para eles um horário diferente do de seus
vizinhos. O trecho da entrevista acima indica também que a escolha através da qual o ator opta
em diversificar pode estar relacionada não apenas com a estabilidade financeira, mas também
com um aplacamento da demanda por corresponder às expectativas dos não artistas que o cerca.
Além de ter uma maior estabilidade financeira, ser professor pode trazer maior conforto para
as relações sociais que cercam o ator ao não ter que dar explicações maiores sobre os projetos
artísticos em que se está envolvido, ou por que não foi visto na televisão. Nesse sentido,
percebemos que as demandas que levam o indivíduo a diversificar funções podem ser de
diversas ordens, sendo que a financeira é uma delas, porém não a única.

Por fim, Edgar fala sobre a importância em diversificar, relacionando essa atitude à
possibilidade de permanecer “pronto pra jogar”. Nesse sentido, notamos uma elaboração do
entrevistado sobre as dificuldades que ele enxergou com relação à instabilidade da profissão,
as possibilidades que ele aceitou para si a fim de diminuir os impactos da instabilidade e, por
fim, a margem de liberdade criativa com a qual ele se enxerga em relação a outros colegas que
fizeram escolhas diferentes. Outro entrevistado também contou sobre sua “sacação” de que dar
aulas poderia ser um bom caminho para manter-se na profissão:

- Ah, eu fiz tudo. Motorista de taxi, garçom, qualquer coisa para pagar os
estudos. Depois que me formei comecei a trabalhar como ator, principalmente
de teatro. Participações em televisão, cinema, mas realmente eu fiz muito,
muito... teatro.
- Ahã (riso).
- E... dando aula!
- Ahhh.
- Então, essa foi uma grande, grande sacação. Porque eu continuei trabalhando
no teatro porque... a qualquer momento 2% da classe tá trabalhando e 98%
estão desempregados. Então, eu achei que dar aula era uma excelente
maneira... eu como... depois que eu descobri que eu adorava fazer, eu gosto
muito de dar aula. Então, quando os trabalhos de, de, de... de teatro e cinema
são pontuais, eu estou continuamente trabalhando no teatro. (riso).
(Marcos, 68 anos)

Para Marcos, dar aulas é um modo de estar diariamente em contato com o teatro, de um
modo contínuo e regular. Durante seus estudos trabalhou em funções fora do campo artístico,
mas depois de formado buscou rendimentos mais estáveis como professor. Segundo ele, a
qualquer momento 2% dos atores estão trabalhando e 98% estão desempregados. Essa sua

80
análise do mercado profissional, mais do que instabilidade, ele aponta para uma grande escassez
de oferta de vagas de trabalho, o que reforça a importância da sua escolha por dar aulas. Para
Marcos os trabalhos em cinema e teatro são pontuais e o que lhe garante o contato contínuo
com o trabalho no teatro são as aulas. Através das aulas, além de ensinar interpretação, Marcos
dirige as montagens dos alunos.

A relação que Marcos faz entre o imenso percentual de atores desempregados e a saída
encontrada por ele para continuar ativo na cena teatral é um indício de como os atores enxergam
a oferta de vagas para a função de ator. Na sua fala o trabalho como ator é entendido como
pontual, já o de professor é contínuo. Aqui ele não indicou que a importância está em ter
rendimentos regulares, mas sim, que através das aulas está continuamente trabalhando no teatro.
Percebemos aqui que, ao contrário do que pode parecer a diversificação pode não ser entendida
como uma alternativa que retira o ator da sua arte, mas como um modo de estar continuamente
dentro dela. Por isso as “saídas para ficar” são tão complexas. Uma função que pode ser vista
por um ator como uma opção insatisfatória que o priva de vivenciar sua arte plenamente, mas
importante para lhe garantir rendimentos mais estáveis; por outro ator pode ser vista como um
modo prazeroso e eficaz de vivenciar continuamente sua arte, além de poder contar com
rendimentos mais estáveis.

Seja lecionando ou em outras funções, o ator que não está no grupo de famosos
contemplados pelo sistema de estrelato usualmente dedica-se ao trabalho em mais de um campo
ou em mais de uma função. A visão de que a versatilidade é uma qualidade para o ator é bastante
difundida entre os entrevistados. A seguir está um trecho sobre esse assunto da entrevista com
Caio:

Então, estudei na escola de teatro de São Paulo 5 anos, 6 anos. Aí fiz umas
peças em São Paulo. Eu trabalhava com publicidade lá também. Fiz vários
comerciais e... mas o que eu destaco mesmo, assim... é a publicidade de São
Paulo e o teatro. Aqui no Rio eu faço muito mais televisão. O meu teatro que
eu fiz aqui no Rio de Janeiro... eu fiz... como ator, eu fiz 2 peças, que foi no
Theatro Municipal, que foram 2 óperas que eu fiz. E... no teatro normal eu
fiz... lembrando o meu flashback que eu tive em São Paulo, como eu trabalhei
na produção, essas coisas, e trabalhei aqui no Rio também na produção, uma
peça com texto do Tchécov, texto do Thécov que a gente viajou interior do
Rio. Tinha umas estrelas no elenco. No caso da profissão do ator, tem que
saber de tudo. No caso, como eu não tinha personagem pra mim no palco, eu
fui pra traz da câmera. Que aí isso eu acho o ator... como dizem vários
diretores, não, um, poucos... o ator moderno, ele tem que saber fazer de tudo
um pouco hoje em dia. Isso eu aprendi... 15 anos atrás... 15 anos foi anos 2000.
(Caio, 35 anos)

81
Caio conta um trecho de sua história em que percebemos tanto a diversificação quanto
aos campos de atuação quanto às funções. Além disso, quando ele diz que a peça que ele
produziu tinha umas “estrelas” no elenco e que não tinha lugar para ele no palco, ele se coloca
como um ator que não compartilha do estrelato e que, no caso de “estrelas” estarem em cena,
ele iria para traz das câmeras. Essa versatilidade de posições a serem ocupadas na estrutura é
uma das características do Novo Capitalismo descrito pelo já mencionado Richard Sennett. Nos
capítulos seguintes compreenderemos melhor como essa disponibilidade por ocupar outras
funções dentro da estrutura produtiva pode afetar negativamente as relações interpessoais no
trabalho – principalmente quando um ator ou alguém que gostaria de atuar está exercendo outra
função que interage diretamente com o ator do projeto – e a dificuldade em constituir uma
narrativa biográfica coerente, interferindo na própria identidade do indivíduo.

Apesar da produção ser vista quase como uma extensão da função de ator, no sentido
de que se um ator quer realizar um projeto que seja seu, é necessário que ele produza, uma das
entrevistadas que se considera também produtora sonha justamente com o dia em que ela possa
apenas atuar e tenha alguém que produza para ela. Um ator que viva unicamente do seu trabalho
como ator, sem precisar dirigir ou produzir é considerado bem-sucedido perante os demais. Na
fala de Marina esse aspecto é evidente:

- Ah... eu queria mesmo, de verdade, ter uma produtora, uma pessoa física
mesmo, ou uma produtora vinculada que pudesse resolver todos os problemas.
Condição ideal de trabalho seria entrar em edital sempre, ter espetáculo
vendido sempre, ter alguém que me ligasse e falasse assim “Marina, o ensaio
vai ser às 7 horas hoje”, aí eu chegasse no ensaio e tivesse água, fruta e alguém
me dirigindo. E depois você vai pra casa estudar o personagem e repetir,
repetir, pra no dia seguinte fazer tudo. E poder chegar no teatro com 2 horas
de antecedência e não precisar falar com ninguém e ficar lá se aquecendo
sozinha. Mas isso nunca vai acontecer. A não ser, assim, se eu tivesse voz
talvez eu virasse diva de musical e isso pudesse acontecer. Mas... não vai
acontecer. Então, eu só... no plano da realidade eu queria poder ganhar edital
ano sim ano não. Porque todo ano também já é um outro plano da magia. E aí
com isso dá pra fazer um espetáculo com edital e juntar dinheiro pra fazer um
sem edital e aí vender esse espetáculo. Pelo menos é o que eu estou prevendo
para agora.
- Nesse sentido você fala que o acúmulo de funções acaba sobrecarregando?
- É, sobrecarrega. Eu acho que eu nunca vou sair dele. Ninguém que tem uma
companhia, que faça uma coisa diferente, que viva de edital, consegue não
acumular funções, eu acho. Só se você faz parte dessas grandes produções. E
mesmo assim se você é ator de TV e tem alguém pra cuidar de você, você
também não tem pique, nem saco, nem saúde pra fazer TV e teatro. Então, eu
acho que mesmo ator de TV acumula função de “tem que fazer TV pra depois
fazer teatro”. Eu acho que não acumular função, poder viver só de atuar... eu

82
quero atuar em cinema, então você só vive pra atuar em cinema... isso seria
lindo. Mas não acho que seja possível.
(Marina, 29 anos)

Marina diz que como atriz, o ideal seria não precisar produzir nem dirigir os próprios
espetáculos e apenas atuar. E num outro plano, o ideal seria que atores não precisassem nem
diversificar o campo de atuação e pudessem trabalhar apenas no campo que escolhessem, como
o cinema, por exemplo. Ter a própria companhia para ela implica necessariamente em acumular
funções, seja dirigindo ou produzindo. Essa fala está dentro do tema condições de trabalho que
pergunto aos entrevistados, Marina aponta como condições ideais de trabalho o não acúmulo
de funções, ter alguém que agende os ensaios e apenas a comunique, alguém que compre o
lanche, alguém que esteja a frente da bilheteria, alguém que veja se está tudo certo com o teatro,
enfim, alguém que produza enquanto ela atua. O curioso sobre esse acúmulo de funções é que
para muitos entrevistados, isso é algo natural, visto inclusive como uma qualidade do ator. “Se
produzir” ou “produzir os próprios projetos” é uma atitude vista como empreendedora e não
conformista diante do mercado de trabalho instável. Nas falas a seguir os entrevistados apontam
a necessidade em buscar a diversificação de funções e o tipo de atitude que o ator deve ter nesse
sentido:

A gente tem que ser polivalente nos dias de hoje. Outra frase que eu costumo
dizer pra aluno: ator bom é ator que produz. (Pausa). É o que eu acho. Sempre
achei. Ator bom é ator que produz. Porque ator que senta do lado do telefone
e fica esperando alguém ligar... e o cara não liga e lamenta e lamenta e
lamenta, ator que lamenta vai a merda! Nem merece... é porque...
susceptibilidade pra essa profissão não combina. É a tal da casca, que eu acho
que ator tem que ter casca mesmo. Que nem o Capitão América, um escudo
protetor lá, mesmo, porque ralou e criou calo e você aguenta qualquer porrada,
entendeu? Porque é autônomo. Eu sou... quem não tem contrato com emissora
é autônomo. Eu sou autônomo, minha filha, há 33 anos de carreira eu sou
autônomo. Eu nunca tive um contrato de 5 anos. Os meus contratos são por
obra, com emissora. Ou com 2 meses, se for filme, um mês e meio ou um mês.
Uma peça de 3 meses. Então, eu rebolei muito, no bom sentido. Eu tive que
abrir uma guarda muito grande. Não adiantava ser só ator. Ser só ator não
bastava, na verdade. Que aí seria só um ator desempregado. Aprendi a dar aula
por conta de levantar outras possibilidades. Comecei a dublar, comecei a
escrever, comecei a dirigir. Aí você vai fazendo... aí você abre, aí você vai se
fortalecendo e abrindo um monte de possibilidade do que fazer. Muita gente
começa ator e não termina ator.
(Victor, 53 anos)

E no teatro também eu tive que diversificar. Não foi só dando aula, entendeu?
Eu passei a dirigir, eu passei a fazer assistência, eu passei a produzir, eu passei
a traduzir... Enfim, eu comecei a ter... eu tenho também como produtor

83
cultural, eu também tenho ido... porque aí tem fases de entressafras, que eu
me enfiava em projetos de... montar exposição, entendeu? De lançar livro, de
fazer outras coisas que tivessem possibilidade. Tem que se virar, né? Você
tem que jogar nas 11, entendeu? O teatro tem um pouco isso, cria essa coisa
de que você tem que saber um pouco de tudo, ‘Vai é palco’. Eu até já fui,
operei som em teatro. Luz é que eu acho que eu tenho medo de dar choque eu
não, eu não tenho muita intimidade com eletricidade. Então, iluminação eu
posso até palpitar, mas a execução não. Agora, as outras coisas, carregar
cenário, fazer figurino, adereço, já participei um pouquinho... não sou a
pessoa, a melhor pessoa, mas tenho noção de tudo o que envolve a produção
teatral. E aí passei a ganhar dinheiro com isso.
(Edgar, 60 anos)

Victor diz que a postura de reclamar e esperar o telefone tocar não é a postura de um
bom ator. Para ele um bom ator sabe diversificar, do contrário, como ele diz, se fosse só ator,
seria um ator desempregado. Por outro lado, o risco de ser tragado pela outra escolha está ali,
quando ele diz que “muita gente começa ator e não termina ator”. Trata-se de um exercício de
negociação constante entre diferentes demandas internas como conforto econômico,
estabilidade financeira, reconhecimento profissional, projetos de vida familiar, entre outras.
Victor tem 4 filhos e sua esposa também atriz (mãe dos 3 filhos mais novos) também trabalha
como produtora e assistente dele na escola em que leciona. Victor tem dezenas de novelas no
currículo, mas como ele mesmo disse, são contratos por obra. Ele é um ator conhecido, fez
diversos filmes e atua em muitas séries nos canais pagos de tv. Quando Victor fala que levantar
outras possibilidades o fortalece é porque ao invés de tirá-lo da trajetória como ator, esses outros
trabalhos como escritor, diretor ou professor, possibilitam que ele permaneça atuando. É o que
chamei de “saída para ficar”, justamente por serem possibilidades dúbias: podem afastar o ator
que passar a fazer apenas essa outra função (como um ator que se torna exclusivamente produtor
ou diretor), ou podem viabilizar que ele permaneça atuando e suporte os momentos de falta de
oferta de trabalho como ator.

Edgar fala que o ator tem que se virar nas fases de entressafras. A metáfora das safras é
bastante utilizada o meio, ou a metáfora da “seca”, como eu mesma já utilizei anteriormente. O
problema das “safras” nesse campo é que elas não obedecem às estações do ano e por mais que
se creia que um dia outra colheita virá, nunca se sabe ao certo quando ela virá e, no fundo,
desconfia-se se um dia ela virá. Por isso, tanto Victor quanto Edgar além de lecionar, falam em
outras opções como produzir. Produzir nessa área pode significar uma ampla gama de tarefas,
já que existe o produtor de elenco, produtor de set, produtor executivo entre outros, mas
comumente (principalmente no teatro e no cinema independente) se refere ao ato de viabilizar

84
um projeto artístico desde buscar patrocínio ou apoio até ir comprar elementos para montar o
cenário, o figurino e fazer tudo o que tiver que ser feito para o projeto se concretizar.

No ano de 2016 eu estava em dúvidas sobre as reais possibilidades que eu tinha em


continuar na profissão de atriz. Dúvidas que, segundo Marina, podem nos perseguir
semanalmente. Então eu escrevi uma peça performática e chamei alguns conhecidos para fazê-
la. Eu organizava os horários dos ensaios, preparava os lanches, fazia reuniões com a equipe
técnica e com o patrocinador, elaborei o material de divulgação, fui na Rua 25 de março
comprar os tecidos para os figurinos desenhados por mim e os objetos cênicos e, por fim, atuei
na peça que teve uma única apresentação. Todas essas realizações, exceto a atuação, podem ser
consideradas produção. Nos termos dos entrevistados acima, eu joguei nas 11 para não ser uma
atriz desempregada. Esse não foi um projeto rentável financeiramente, mas cumpriu seu papel
na retomada do projeto profissional se materializando numa realização artística da qual me
orgulhei.

Nesse sentido, podemos compreender que uma das possibilidades dessa diversificação,
é a realização de projetos próprios ou de colegas próximos, o que pode ser entendido também
através da ideia de produzir. No caso da Marina, que fez jornalismo na PUC, suas habilidades
com a escrita a ajudam a exercer a produção das peças da companhia que criou com o namorado.
Escrever um projeto artístico para ser contemplado por um edital estatal é uma conquista para
a sua carreira artística que sua outra formação foi capaz de ajudar, mesmo que – como
mostramos no início do capítulo – ela pense com certa frequência sobre dedicar-se ao
jornalismo. Ou seja, nesse caso também, a alternativa que poderia tirá-la do caminho de atriz,
é o que a ajuda a permanecer, no caso como uma produtora das próprias peças. Além da
produção, a qualidade de seu trabalho como autora da peça que atuou, produziu e dirigiu
também se relaciona com as habilidades desenvolvidas no jornalismo.

Quando Victor e Edgar falam da necessidade de diversificar e principalmente quando


eles falam sobre produzir apontam para um contexto profissional extrema instabilidade em que
ser um trabalhador “autônomo” não se refere apenas a um modo de contratação de serviços,
mas também à falta de regularidade com a qual as vagas de trabalho são ofertadas e a
necessidade, muitas vezes, de que atores literalmente inventem seu próprio trabalho. Autorar,
dirigir e produzir é muitas vezes um modo de criar a própria possibilidade de trabalho. No caso
da peça que montei, faltou para mim a experiência e a vontade em trabalhar como produtora
para que eu conseguisse vender o espetáculo já montado para teatros ou para buscar novos
patrocínios ou mesmo editais estatais. No caso de Marina é essa sua habilidade com produção

85
que mantém sua companhia ativa, atualmente ela inclusive se dedica a uma pós-graduação
ligada à área.

Um dos atores entrevistados contou que durante um período foi muito requisitado para
fazer trabalhos de comédia e que isso gerou um receio nele sobre não ser chamado para dramas.
Ele resolveu essa situação produzindo peças para atuar no que ele realmente tinha interesse.
Mas depois de entrar no assunto da produção, ele revela uma dimensão ainda mais profunda
sobre a necessidade de exercer essa função. No trecho a seguir, Sílvio conta sobre como
começou a produzir espetáculos para que ele pudesse atuar:

- Entendeu então, o que é que aconteceu? Eu, eu, eu... eu fiquei com medo de
ficar tachado como ator de... de comédia. Aí fui fazendo, fazendo os
espetáculos, fazendo dramas, fazendo... indo... morando no Rio e indo pra São
Paulo fazer teatro. Quando eu estava aqui no Rio que não tinha trabalho, que
não tinha nenhuma produção, nenhum convite, eu mesmo produzia alguma
coisa e começava a viajar... sozinho.
- Ah é?
- É. Pegava um espetáculo, um monólogo, ou com 3 atores e... essas cidades
que eu passei com o teatro de produção grande, eu ia pra... tinha os contatos,
ligava e falava ‘Tenho um espetáculo’. As pessoas levavam. Ou então levava
na periferia... nas periferias mais pobres possíveis eu levava, de graça. Só
pagava alguma coisa para o elenco, para o iluminador... Que era conseguido
por essas comunidades. Mas nunca assim... sempre eu digo, eu costumo usar
que eu comi pelas beiradas... um faz um sucesso, mas daqui a pouco... eu tô
em outro... eu tô em outra paralela, tô ali pelas beiras. Porque não dá pra ficar.
É como eu exercitei muito tempo e exercito, não é... se tiver que fazer hoje eu
vou fazer também. Não tenho nenhum problema. Nenhum problema pra mim,
entendeu? O problema todo é não ficar parado. Porque um ator é como um
datilógrafo, se ele para de bater ele perde o... ele fica duro.
- Cada dia parado é...
- É, fica duro.
- ... é um atraso, né?
- E é terrível a... como ator. Acho que pra qualquer profissional. Mas pro ator,
quando ele não tem, não tem o palco, ele não tem o retorno do público, aquilo
acaba, mata ele. Mata o homem, né? É terrível isso!
- É, é mesmo.
- É, pro ator. Acho que pra todo mundo, né? É que o ator, o ator é, é, é... o
artista em geral, ele precisa da plateia, dos aplausos... da galeria cheia.
(Sílvio, 55 anos)

Sílvio aponta inicialmente para a necessidade de produzir como forma de fazer papéis
dramáticos que ele queria. Mas logo a dimensão da necessidade em não ficar sem trabalho se
revela. Essa sensação que ele descreve parece ser a mesma que me motivou a criar o espetáculo
em 2016, uma necessidade em exercer a profissão que não necessariamente tem a ver com a
retribuição financeira. “O problema todo é ficar parado” é uma frase que pode resumir bem os

86
esforços que atores fazem para produzir espetáculos para que eles mesmos atuem sem garantias
nenhuma de retorno financeiro e, muitas vezes até com prejuízos.

Durante o primeiro semestre de 2016 eu me dedicava às transcrições das entrevistas que


realizei para essa pesquisa. Numa manhã em que transcrevia a entrevista de Edgar chegou num
determinado trecho em que ele contava sobre o suicídio de uma amiga que abalara todo o seu
grupo de amigos na sua juventude. Ele não falava sobre nada relacionado ao roteiro da
entrevista, apenas contava essa história para dizer sobre a importância de cumprirmos os ritos
de passagem e não os negligenciar, inclusive na carreira. Como achei aquele trecho todo muito
pesado parei a transcrição ali para fazer o almoço. Enquanto almoçava abri o facebook e na
timeline de uma amiga estava um post sobre o falecimento de uma amiga nossa com a qual
estudamos artes cênicas. Ela suicidou-se. Eu achei aquela coincidência muito estranha e fiquei
tentando encontrar alguma relação entre os fatos. Liguei para essa nossa amiga comum, que fez
o post, e tentei consolá-la. Não sei qual a fonte do sofrimento que a levou a isso, nem se havia
uma fonte externa, mas o que mais me impressionou foi a possibilidade concreta dessas mortes
para mim que estava vivendo sintomas de uma possível depressão. Nessa fase eu havia enviado
alguns currículos com o objetivo de lecionar antropologia em universidades. Estava desistindo
do trabalho como atriz por não encontrar os caminhos para exercê-lo. As poucas
participações/figurações que eu fiz no cinema haviam sido experiências que considerei
humilhantes e sem retorno nenhum em termos profissionais. No teatro nunca consegui saber de
nenhum teste e na televisão participei de apenas um teste em que só soube do resultado negativo
porque a novela começou descobri que não teria chance mais de ser chamada. Meu
companheiro na época, também ator, apoiava que eu buscasse exercer a antropologia como uma
alternativa. Quando eu dizia que não poderia conciliar as duas profissões, já que não é possível
deixar de dar uma aula porque se está num set de gravação, ele calava a fim de não opinar.

Essa situação gerou grande sofrimento em mim com sucessivas desistências que foram
desde a falta de cuidados com a aparência até a não vontade de sair de casa ou levantar da cama.
Cheguei a questionar o real sentido da vida caso não pudesse exercer a profissão de atriz. Foi
quando a morte da minha amiga de turma da escola de artes cênicas me deixou assustada sobre
mim mesma. Decidi começar a fazer terapia e com menos de um mês de análise aquelas
perguntas me levaram a pensar o que realmente eu poderia fazer para exercer o ofício de atriz
que dependesse de mim. Eu já havia realizado as entrevistas e sabia que quase todos os
entrevistados contaram sobre momentos da trajetória profissional em que produziram uma peça
ou um filme curta metragem para atuarem a fim de não ficarem parados, como diz Sílvio isso

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“mata o homem”. Foi então que comecei a escrever a peça performática mencionada acima.
Em três meses de trabalho de criação e ensaios apresentamos a peça para um público de 250
pessoas. Ali, mais do que reestabelecer a confiança sobre a qualidade do meu trabalho como
atriz, eu confirmei para mim uma escolha de vida. A contribuição financeira do público foi
espontânea e repartida entre os membros do trabalho depois da apresentação. A quantidade de
retorno financeiro do espetáculo não significou um problema nesse caso, assim como Silvio
descreve que não era para ele. Nos meses seguintes consegui alguns trabalhos em publicidade,
o papel de coadjuvante no episódio piloto de uma série de televisão paga e no ano seguinte fiz
um teste e fui aprovada para ser protagonista de uma série de televisão também para uma
emissora de tv a cabo.

As incertezas sobre o futuro permanecem já que a instabilidade é uma característica


desse contexto profissional, mas agora em outros termos porque já construí uma história que é
minha e que mesmo que o sistema fragmentário não reconheça, eu a detenho e posso acioná-la
para pensar sobre meu valor profissional a despeito da fartura ou escassez de ofertas de trabalho.
Apesar de ter produzido um espetáculo nesse momento da minha trajetória profissional, não me
considero uma produtora, nem considero benéfico para o ator o acúmulo de funções decorrente
da diversificação. Mas em detrimento das minhas escolhas profissionais, este capítulo foi
elaborado a partir da intenção de criar um mapa legível sobre o contexto do mercado de trabalho
para atores através das interpretações com as quais tive contato de colegas que vivenciam essa
realidade. Para finalizar esse capítulo, deixo o trecho de uma entrevista em que Levy fala sobre
como entende o sucesso na profissão:

- E aí eu estava te falando essa coisa do... sucesso né?


- Ah, verdade.
- Pra mim assim, é quando eu saio transformado. Porque de tudo isso o que
vale, o que vale, vale mesmo é o que fazer com isso tudo que eu vivencio na
minha profissão pra minha vida né? É... se não fosse tudo isso, eu teria pirado.
Se eu não tivesse esse espaço de criação, esse espaço que não tem rotina, esse
espaço que eu posso expressar opinião, eu teria pirado... mesmo. Então, isso
é necessário, mais do que tudo, cada vez mais. Você fala assim “E aí, quando
não tem?”. Quando não tem eu adoeço. Eu fico triste. Mas não é só porque eu
não tenho trabalho, porque a grana falta, ou porque... é porque é minha
substancia, é minha... é necessário para mim! Então, a minha profissão é... ela
me amadurece, ela me trouxe coisas lindas que eu não podia imaginar (...).
(Levy, 54 anos).

88
Capítulo 2
Condições de trabalho

Cena 3

FADE IN:

EXT. DIA – R. SENADOR VERGUEIRO

Luz do sol da manha atravessa folhas da árvore chapéu de sol.


Aos poucos ônibus e carros ganham o quadro. Pelo movimento não
tão intenso e a luz clara nota-se que é bem cedo. Mulher com
cabelos molhados entra em um carro, é CAROL.

CORTA PARA
INT. DIA – CARRO

VALDIR está na direção, com óculos escuros. Assim que Carol entra
no carro ele fecha os vidros e liga o ar condicionado. Carol
senta-se no banco de trás. Está carregada de coisas, bolsa,
sacola e blusa.

CAROL
Oi Valdir, Bom dia. Tudo bem com você?

VALDIR
Tudo sim, e você?

CAROL
Bem, fora o susto de ontem!

VALDIR
É, ontem foi um dia bem cheio né? Mas ficou
tudo bem!

CAROL
É, o Beto teve que tomar uma vacina pra
tétano, levou uns pontos e ontem a tarde
mesmo já tava filmando de novo. Quase não
acreditei.

VALDIR
É, acho que ele ficou com medo de trocarem
ele por outro ator(ri).

CAROL
Como assim? Impossível! A essa altura das
filmagens não tem como trocar o ator.

89
VALDIR
É, mas sabe que ator quando chega nessa
idade fica com medo de não ser mais
chamado. Era pra ele ter ido pra casa
depois daquele susto. Não falou que a
pressão dele tava alta quando chegou no
hospital?

CAROL
É, foi o que disseram.

VALDIR
Então, como é que deixam ele voltar pro set
depois disso?

CAROL
Sei lá! Só sei que ele voltou cheio de gás
pra fazer as cenas que faltaram.

VALDIR
É o que eu tô falando!

CAROL
Acho que o pior foi o ator que machucou ele
ficar se sentindo culpado depois, e meio
que todo mundo ficou culpando ele, dizendo
que tinha que calcular melhor os
movimentos.

VALDIR
Na verdade, eles tinham que ter dado uma
tesoura sem corte pro menino fazer a cena.

CAROL
Sim! Isso que eu fiquei mais chocada, como
que ninguém pensou que isso podia
acontecer?

VALDIR
É, mas passa né. É muita coisa, sempre
passa uma coisa ou outra.

CAROL
Nossa, mas uma tesoura com corte pra fazer
uma cena de ação na mão de um ator que nem
é dublê, não é qualquer coisa. As chances
de dar uma merda era grande.

VALDIR

90
Se eu te contar tudo que eu já vi nesses
anos como motorista de cinema... Aí que
você não vai querer pisar num set nunca
mais!

CAROL
Ah, ontem depois que aconteceu isso todo
mundo começou a contar suas histórias. A
Alice falou que uma conhecida dela foi
fazer uma cena na novela que usava pólvora.
Disse que ela tinha que jogar pólvora na
fogueira pra dar aquele efeito de que tava
incendiando mais. Aí num dos takes a menina
jogou a pólvora e acho que ela tava muito
perto do fogo e o fogo voltou e o saquinho
que tava com ela explodiu.

VALDIR
Caramba. Ela sobreviveu?

CAROL
Sim, mas disse que ela ficou marcada com
várias cicatrizes.

VALDIR
Deus é mais!

CAROL
A Alice falou que a menina continuou
contratada por 5 anos e teve o tratamento
pago pela emissora. Aí, como depois de 5
anos você não pode mais processar a
empresa, eles a demitiram e não continuaram
a pagar os tratamentos dela. Você acredita?

VALDIR
Ah, é empresa minha filha! Eles fazem tudo
calculado, você acha que produtor,
assistente de direção são teus amiguinhos?
São nada! É tudo interesse da empresa. O
que eu ia te contar é um que todo mundo
ficou sabendo, que tavam filmando ali nas
pedras do Leme e o mar veio e lambeu todo
mundo... foi câmera, foi ator, atriz,
maquiadora que tava perto também... tudo
pro meio das pedras no mar.

CAROL
Nossa, que perigo! Mas ficou todo mundo
bem?

91
VALDIR
E o desespero? Mas ficou. Teve gente que
quebrou braço, costela... ficaram tudo
machucado por causa das pedras, mas graças
a Deus ninguém morreu.

CAROL
É acho que as vezes o pessoal pensa muito
na imagem que vai ficar legal e esquece de
outras coisas.

VALDIR
Nem fala! Mas, como a gente já virou
amigo... vou te dar um conselho. Eu sei que
você tá começando a sua carreira e ainda
vai ser uma grande atriz e tudo o mais...
Se você vê que é arriscado, não aceita
fazer não. Vão falar que a atriz tá dando
chilique, que é fresca, que é estrela. “Ai,
a atriz se recusa a fazer” (imitando uma
mulher venenosa). Mas é assim mesmo. Depois
que acontece essas coisas fica todo mundo
com cara de bunda. Então, só tem você ali
pra proteger sua vida, mais ninguém. Tá
todo mundo pensando no filme, você tem que
pensar que aquele não é o último filme da
sua vida. Tem que estar bem pros outros!

CAROL
É mesmo né.

VALDIR
Claro! Olha eu já briguei tanto com
produtor e produtora nessa vida. Eu conheço
a situação de todos os morros desse Rio de
Janeiro. Se me mandam entrar em uma
localidade que a situação não tá favorável
eu não vou mesmo! Eu falo pra mandarem o
ator pegar um Uber ou um taxi. Eu que não
vou arriscar minha vida pra buscar ator ou
buscar equipe dentro de morro... As vezes
nem perto eu vou. Eles já nem me mandam
porque sabem que eu não vou.

CAROL
É, pra ir naquela locação na baixada pela
Brasil já é complicado às vezes. Lembra
aquele dia que tava parado porque teve
tiroteio? Era exército pra todo lado.

VALDIR

92
É, mas aí não tem jeito, tem que chegar...
quando o caminho é a avenida Brasil não tem
pra onde fugir. Agora me mandar pra zona da
guerra, com essa cara de policial
aposentado que eu tenho, só pra buscar
alguém... aí já é demais!

Carol olha pela janela. Silêncio. Ela começa a mexer numa sacola
de pano e tira uns papéis.

VALDIR
Você quer estudar né menina? Estuda aí que
eu vou ficar quieto tá.

CAROL
Imagina, tudo bem. Também gosto de
conversar. Mas vou aproveitar esse tempinho
antes de chegar pra terminar de decorar o
texto.

VALDIR
Faz isso, porque os melhores atores que a
gente vê tão sempre concentrado estudando.
Continua assim.

Olhar de Carol no texto rapidamente se perde e se fixa no


horizonte pela janela.

FADE OUT
***

Desde que pensei em pesquisar sobre a compreensão que atores têm acerca do próprio
trabalho, o tema condições de trabalho estava presente. Ocorre que durante a fase de entrevistas
comecei a compreender que, mesmo compartilhando de um pertencimento com meus
entrevistados, a minha formação em Ciências Sociais e a então pouca experiência como atriz
me faziam pensar condições de trabalho em termos muitas vezes distintos de meus
entrevistados. Se por um lado condições de trabalho pode estar relacionado a segurança no
trabalho, com sua ausência denunciada por situações em que a vida do trabalhador é posta em
risco, por outro lado os atores me ensinaram que, ao longo dos anos, ter boa convivência com
colegas de profissão e tempo para preparar o personagem podem ser considerados tão
importantes quanto a segurança para a realização do trabalho. Nesse sentido, condições pode
se referir aos elementos materiais de produção, mas não apenas. A materialidade das relações
também condiciona a produção dos atores.

93
Nos dois primeiros itens desse capítulo apresentarei as respostas que concordam com a
ideia inicial que eu portava sobre condições de trabalho, que se referem a segurança no trabalho
e remuneração. Já no último item apresento as possibilidades de ampliar o uso desse conceito
analítico de acordo com a concepção que os entrevistados portam sobre o que sejam as
condições ideais para desenvolverem seu trabalho, que se relacionam também ao tempo para
preparação e à qualidade das relações interpessoais no ambiente de trabalho.

2.1 Vidas em jogo

Em sua pesquisa sobre trabalhadores da usina de açúcar, José Sérgio Leite Lopes (1976)
explica sobre o que ele chamou de desemprego interiorizado dos operários. Segundo o autor
em seu livro O Vapor do Diabo: o trabalho dos operários do açúcar, por causa da situação de
superpopulação relativa que vivem, “os operários denotam seja explicitamente ao nível do
discurso, seja indiretamente através de sua prática cotidiana, de suas atitudes, o medo
interiorizado do desemprego” (LEITE LOPES. 1976. p.156). O contexto dos operários do
açúcar em muito se parece com os atores com os quais pesquisei. Além da semelhança quanto
às 12 horas de trabalho diário, a ameaça do desemprego iminente devido à grande oferta de
mão-de-obra para cada vaga de trabalho é um dos principais aspectos que unem essas
aparentemente tão distintas realidades. No trecho a seguir compreendemos em que esse
desemprego interiorizado pode afetar a pesquisa:

Esse desemprego interiorizado está embutido em atitudes aparentemente


contraditórias, como a atenuação do seu discurso sobre as más condições de
trabalho para melhor ressaltar a insuficiência do salario e, ainda mais, como a
estranha preferencia pela longa jornada de trabalho acompanhada da
desconfiança por uma redução da jornada de trabalho mesmo a salario igual.
Sem a compreensão desse desemprego interiorizado não se pode ver que por
traz do discurso sobre o salario, que parece ser a finalidade principal do
operário em seu trabalho, está a importância do caráter estável e seguro do seu
emprego, sem o qual todo o sofrimento no trabalho não teria sentido. [...]
(idem, p.156).

Para o pesquisador, considerar o desemprego interiorizado foi essencial para ampliar


sua compreensão sobre o modo como os operários lidavam com o tema do salario e da longa
jornada de trabalho. O discurso atenuado que ele ouvia nas entrevistas relacionado às condições
de trabalho poderia parecer contraditório, caso não considerasse o aspecto mais amplo de como
esses empregados se veem em relação ao contingente de desempregados. Conseguir perceber a

94
existência desse desemprego interiorizado, possibilitou ao pesquisador notar as nuances que o
discurso sobre o trabalho poderia adquirir. Na cena acima, quando o motorista fala para a atriz
que seu colega de trabalho voltou para o set de filmagem no mesmo dia em que sofreu um
acidente de trabalho pelo medo de ser substituído por outro ator, o motorista revela que essa
mesma lógica do medo do desemprego opera no contexto dos atores.

Considerei na minha pesquisa a possibilidade de que os dados das entrevistas também


pudessem estar atravessados por um sentimento análogo ao desemprego interiorizado. No
contexto dos atores, utilizar exatamente a mesma categoria de análise possa não ser tão rentável
no sentido de que a relação emprego/desemprego adquire aqui outros contornos. Ainda sim, a
ideia de que o contexto discursivo dos atores possa ter paralelos com o contexto dos
trabalhadores do açúcar na pesquisa de Leite Lopes nos é útil para compreender algumas
ausências de reivindicações e responsabilizações. Das diferenciações entre os contextos
mencionados estão: que os períodos em que o ator não trabalha, apenas em situações específicas
são considerados desemprego; e que quando se está trabalhando, o ator não se encontra
vivenciando um emprego de caráter estável e seguro. Das semelhanças estão: a sensação de que
há muitos outros habilitados para ocupar a mesma vaga de trabalho que se quer ou se está
ocupando; e uma atmosfera de que não se deve reclamar do trabalho, sendo que há “tanta gente
lá fora querendo estar no seu lugar”.

Nesse sentido, a jornada de trabalho de 12 horas (em áreas como a televisão, cinema e
publicidade), alimentação precária, horas de trabalho exaustivo em condições como sol forte
ou frio intenso, exposição a riscos de acidentes de trabalho, tudo isso parece ser em grande
medida relevado pelo fato maior de que deve estar grato por estar trabalhando. Durante as
entrevistas, quando eram perguntados sobre as piores condições de trabalho que tiveram,
poucos entrevistados responderam sobre questões ligadas à segurança no trabalho. Dois
entrevistados discorreram de forma mais detida sobre o assunto através dos relatos de situações,
que são os dados que trago a seguir:

- Quais foram as piores condições de trabalho que você já teve?


- (Pausa) É... (riso) as piores condições de trabalho? Eu acho que foram... hã...
ensaios em lugares quentes. É... ensaios rápidos pra estrear logo. Fiz uma peça
que eu fiz 15 dias de ensaio. Nossa, foi uma loucura. É... aceitar um filme...
é... sabendo o que vai fazer, mas chegando na hora e se surpreendendo com o
ambiente. Por exemplo, o Filme x, eu li o roteiro, eu sabia tudo. O Filme y
não, Filme y a gente não tinha o roteiro na mão, não deixavam a gente pegar
o roteiro. Ela dava a cena “A cena é assim, assim e assim, improvisem!”. A

95
gente improvisava e fazia a cena. Filme x, tinha uma cena de enchente, que
chovia... você viu?
- Sim.
- Que chovia lá e não sei o quê (...) e passava por uma água até aqui. Aquilo
foi feito num reservatório, no inverno, 12 graus. Foi uma coisa assim, inóspita.
Foi uma coisa assim... eu achei que fosse ter um infarto aquele dia. A gente
tinha que entrar na água, um frio da porra, entrar, tá aqui ‘Entra! Entra!...
Entra!’ (riso). E aí ‘Entra!’ e começa a tremer. Aí ‘Vamos fazer, vamos rodar.
Roda. Roda’. Roda 1, roda 2, roda 3, roda 4, na quinta você já estava ficando
roxo, com câimbra. Os lábios roxos e tal. E eu já assim, já tendo tonturas digo
‘Eu vou desmaiar eu vou desmaiar’, ‘Não, vai rodar agora’, ‘Eu vou
desmaiar’, ‘Corta!’. Aí tiravam a gente da água. Aí quando saiu da água é pior,
porque você pega o vento. A gente começou a tremer, eu e o outro ator.
Começou a tremer, se debater... de não segurar o queixo... e as pernas isso
aqui (fazendo o gestual). Frio, frio, frio, frio. Quem tava de roupa, quem tava
assim, um frio normal. Frio de São Paulo, você com roupa você atura. Mas
entra de bermuda, descalço, de camiseta, com uma chuva artificial e a água do
negócio geladaça e um vento de São Paulo, de um inverno geladaço. (Pausa).
Foi assim uma coisa que eu nunca achei que eu fosse passar. E aí deram
conhaque pra gente. Deram um copo de conhaque pra gente e mandaram a
gente de volta pra água pra fazer. Pra gente fazer. Eu lembro de terminar esse
dia com os pés todo assim, os dedos todos assim de câimbra. E... e os lábios e
tal. E quase tendo um... um, um... como é que é o nome que você fica no frio
e você...
- Hipotermia.
- Hipotermia. Quase tendo hipotermia, quase. Podia afetar o coração e morrer.
Foi Junkie. Mas aí depois... você viu o filme... o filme tá lindo (riso).
- Sim.
- Aí você fala, foi besteira, foi só um dia e tal, faço de novo.
(Ricardo, 40 anos)

Apesar de denunciar um modo de trabalho que o expôs a condições excessivamente


adversas, Ricardo não atribui o ocorrido a algum responsável e, por fim, afirma que faria
novamente para obter o resultado artístico final. Essa afirmação demonstra que ele não vê outro
modo para que aquilo pudesse ocorrer. Afinal, seria possível obter o mesmo resultado com um
reservatório de água aquecida, mas isso aumentaria os custos da produção. Então, mesmo
relatando um fato em que a sua saúde e de outro ator foram expostas para a realização da cena,
“o filme” é colocado como um ente impessoal responsável pelo ocorrido. O produto é
responsabilizado ao invés dos produtores. Em seu discurso, Ricardo não atribui a
responsabilidade ao diretor ou a algum produtor, e além disso, a causalidade com a qual ele
opera entre o ocorrido e o bom resultado estético da cena comunica ao ouvinte que não poderia
ter sido de outro modo.
Esse tipo de postura em que o ator reclama de alguma situação, mas não responsabiliza
algum agente em específico da produção ou não aponta para uma possível solução, com uma
atitude conformista no sentido de que não poderia ser diferente, foi recorrente no discurso dos

96
entrevistados. Há nesse sentido, um certo nível de resiliência em que fica subentendido a
aceitação de quaisquer condições para a realização do trabalho. Na sequência da fala acima
Ricardo descreve uma situação ainda pior vivenciada por ele durante as filmagens do “Filme
y”, onde parece que a própria divisão do trabalho no cinema favorece a não responsabilização
individual, mesmo que se busque por um responsável:

- Acho que no Filme y... É (pausa). Eu tava bem, eu tava bem relaxado. Mas,
a gente fez uma semana que foi muito pesada, uma semana de noturnas. Uma
semana inteira num morro. Que era aquela cena do baile funk, do início do
filme, aquilo durou 6 dias pra ser feito. Você vê rapidinho no filme, né?
- Ahã.
- Cena de 1 minuto e meio, durou 6 dias, a noite inteira, 6 da tarde à 6 da
manhã. No último dia eu queria ir embora, não tava aguentando mais. Que é
difícil trabalhar de madrugada, nêga.
- É né.
- Trocar o dia pela noite? Nossa senhora. Eu adoro quando diz assim ‘Olha,
vai fazer um filme, tem 1 noturna’ eu digo ‘Ah, que maravilha’. Adoro
trabalhar de dia. Eu já trabalhei a noite, quando era adolescente, já te falei isso,
com o meu pai no trailer. Mas eu era adolescente, tava descobrindo o mundo,
tava adorando aquele universo, tava vivenciando, virando homem ‘Daqui a 3
anos vou virar homem, vou fazer 18 e tal’. Tava ganhando uma voz, tava
crescendo os pelos e tal, tava virando homem. Tava descobrindo. Agora, já
homem (riso) eu prefiro trabalhar de dia. Então, no Filme y teve essa, esses 6
dias de noturna. Foram bem pesados. Que tinha que ficar com aquela roupa
de polícia e tal, com o coturno até aqui, aquelas botas pesadíssimas.
- Ahã.
- E a tensão que existia. Porque lá no morro tinha o tráfico de drogas ainda e...
essa história é real. E a gente estava um dia... eu, o ator 2, o ator 3... (...) enfim,
4 atores dentro do camburão e eu era um deles. Dentro do camburão, lá
embaixo do morro, no pé do morro. E a equipe lá em cima. A gente com um
radinho no carro e eles ‘Ok, vamos rodar, vocês ligam o carro agora, vocês
vão subir em 5 minutos, deixa o carro ligado, acende o farol’. A gente lá
embaixo. Daqui a pouco chega um cara com a pistola. (Demonstra alguém
com uma pistola em punho). A gente ‘Calma, calma, calma irmão!’. Tinha um
coletezinho verde escrito EQUIPE. A gente ‘Calma irmão, é da equipe, é da
equipe, é da equipe’. O cara ‘Vocês estão maluco rapaz, quase apaguei vocês
4 aqui agora!’.
- Caramba!
- Essa história é real. Aí a gente pegou o rádio. O cara ‘Ó, não faz mais isso
não, quando for faz...’. Esse cara, esse traficante, ele tava dormindo. Ele era
traficante da noite. Tinha os dois turnos né? O traficante que ficava durante o
dia, ia dormir. E o que ficava dormindo durante o dia acordava e ia trabalhar
a noite. Não avisaram pra esse cara que ia ter filmagem nesse dia. Ele não
sabia. Ele achou que era polícia. E ele ia dar tiro nos 4. Porque ele olhou, a
gente tava sem arma, aparentemente e aí ele falou ‘Moleza’. Sem arma,
parados, conversando, fumando cigarro dentro do camburão, conversando e
esperando o ok da produção pra subir. (Pausa) E ele chegou, botou a arma e a
gente ‘Não, calma irmão, a gente é da equipe, cinema, Filme y, Filme y irmão,
tá tranquilo, que é isso? Que é isso? Baixa essa arma’. O cara ‘Vocês estão
malucos, rapaz? Vocês... que é isso? Ninguém avisou, que porra é essa aqui?’
Aí ele pegou o rádio dele ‘Fulano, que porra é essa aqui os maluco aqui no

97
meu lado aqui, vou apagar heim!’. ‘Não, não, não apaga não, não apaga não
maluco, os caras do filme aí’. Aí ele ‘Ó...’. E puxou uma granada. Falou ‘Ó,
ia dar em vocês, ia puxar o pino e jogar aí dentro, mané. Próxima vez, avisa!’.
E foi embora. Nisso que ele foi embora a gente ficou amarelo, azul, verde...e
começou a tremer.
- Lógico.
- E passou um rádio, falou ‘Gente, desce aqui urgente, alguém da produção
porque o cara botou a arma na nossa cabeça!’. Aí desceu a equipe inteira, ‘O
que foi, o que foi, o que foi?’. ‘Porra como é que vocês não avisam, como é
que vocês não colocam uma equipe aqui a nossa volta aqui protegendo e
dizendo que não é!’. Agora não, a maioria dos morros estão pacificados e tal,
não tem esse perigo. Ou se tem a gente não sabe e tal. Mas, aparentemente
não tem. Mas na época, em 2006, quando foi feito o primeiro (filme y), não
tinha UPP, ou tava começando UPP, não tinha ainda... o morro do Leme, o
Chapéu Mangueira era só traficante, não tinha nada de PM. Então, os caras
andavam... A gente quase morreu. Se o cara dá um tiro em cada um, o cara
mata. Todo mundo sem colete, com a roupinha fake de polícia, roupinha de
tecidinho fininho e tal... morria.
- É.
- Então, foi uma semana tensa, ainda teve esse episódio que a gente ficou bem
cansado. Todo mundo.
- Ahã. Entendi. Caramba. É, emocionalmente, fisicamente, tudo, né?
- Exatamente.
(Ricardo, 40 anos)
Ricardo narra um evento-crise. Trata-se de um evento que, ao sair do planejado, revela
elementos da estrutura que não seriam revelados de outro modo. É quando a crise evidencia um
elemento estrutural que usualmente é negligenciado pelas relações cotidianas. No caso narrado
por Ricardo, fica evidente que a segurança no trabalho não foi uma prioridade na produção do
Filme y. O curioso é que sempre que ocorre algum tipo de acidente de trabalho com atores num
set de filmagem o comportamento dos que estão presentes é de que não imaginavam que aquilo
pudesse acontecer. A expressão “deu merda” é comum nesses casos. Mas há um cálculo para
esses riscos que tanto atores quanto equipe enfrentam no set. E também é frequente o uso da
“sorte” para não “dar merda”. Para esta pesquisa, que não entrevistou produtores é difícil
compreender que elementos são colocados na conta desse cálculo de risco. Ainda assim, alguns
desses elementos podem ser explorados pela perspectiva dos atores.

Quando Ricardo diz “Como é que vocês não colocam uma equipe aqui a nossa volta
aqui protegendo e dizendo que não é!”, ele denuncia um erro daquele set de filmagem. Deixar
os atores sozinhos na entrada do morro, dentro de um camburão, vestidos de policiais sem
nenhum tipo de sinalização de que se tratava de uma filmagem foi um erro grave daquela
produção, que poderia ter custado a vida dos atores. Nesse caso, diferentemente do anterior ele
parece ter cobrado diretamente as pessoas responsáveis por pensar esse aspecto da produção.
Um elemento importante da fala de Ricardo é que as duas situações narradas são apresentadas

98
para a pesquisadora quando ele responde sobre quais foram suas piores condições de trabalho.
Nesse sentido, há uma reação direta que ele atribui às condições de trabalho e a ausência de
segurança no trabalho. Ou seja, tanto sua experiência de quase ser assassinado por um traficante
quanto a sensação de que seu coração ia parar por causa de uma hipotermia são descrições que
Ricardo faz sobre as piores condições de trabalho. Ele se considera politicamente de esquerda
e é possível que seu posicionamento político contribua para a constituição dessa visão
apresentada por ele, já que além dele, apenas um outro ator mencionou segurança no trabalho
ligado ao tema de condições de trabalho.

Numa filmagem de publicidade que trabalhei, eu conversei com um dos trabalhadores


da equipe e ele me disse que fazia a segurança. Eu disse, ‘Nossa, que legal a gente tem
segurança!’. Ele riu e respondeu ‘Não, os equipamentos têm segurança. Ator se cuida sozinho’.
Eu ri com ele da minha inocência sobre a distribuição dos recursos numa filmagem. O
equipamento de filmagem, principalmente câmera e lentes, têm um valor alto para as produções
brasileiras. Já no caso da equipe e elenco, os que trabalham no meio sabem que, se algo
acontecer e o trabalhador processar a produtora que realiza as filmagens pelo ocorrido, esse
trabalhador “se queima” e depois encontrará dificuldades para ser admitido em outros trabalhos,
mesmo que por produtoras diferentes. Nesse sentido, os conselhos correntes são: “esse meio é
um ovo”, ou “todo mundo se conhece”. Então, caso aconteça algum acidente de trabalho é
melhor “deixar pra lá”. Exceto em situações de morte, ou de sequelas definitivas que
impossibilitem o trabalho, tanto os trabalhadores da equipe técnica quanto o elenco,
dificilmente levam os casos de acidente de trabalho aos tribunais.

No caso descrito acima por Ricardo, não havia indicação nenhuma próxima ao
camburão que eles utilizavam, avisando de que se tratava de uma filmagem. Todos os recursos
de segurança estavam mais acima do morro, onde aconteceria a filmagem e onde estavam todos
os equipamentos. Durante os anos que morei no Rio de Janeiro ouvia com frequência a
expressão de que o Rio é a Hollywood brasileira. Mas algo que as produções cinematográficas
e televisivas têm de lidar é que essa seria uma Hollywood de terceiro mundo e em guerra civil.
Locações, transportes, equipamentos e as vidas dos trabalhadores devem ser pensadas sempre
em relação a um cálculo de guerra sobre zonas de conflito deflagrado, zonas de conflito
iminente ou zonas pacificadas. Alguns morros da cidade são conhecidos por serem os melhores
“set’s de filmagem” por serem pacificados, próximos de bairros onde se localizam a maioria
das produtoras e, dependendo da altura, terem vista para o mar. Então, essas pequenas decisões
sobre qual carro vai buscar qual ator, quantos se dividem para proteger o equipamento e quantos

99
ou quem cuida dos atores, tudo isso tem consequências que depois ilustrarão essas histórias
sobre tragédias ou quase tragédias em set’s de filmagem.

Uma das possibilidades de interpretação sobre perspectiva resiliente dos atores quanto
aos acidentes de trabalho são as implicações para a autoimagem em compreender-se como
menos valioso para a produção do que os equipamentos de filmagem. Nesse sentido, exceto
pela questão da remuneração, que apareceu de forma mais latente no tema condições de
trabalho, aspectos materiais como segurança no trabalho foram quase suprimidos do discurso
dos atores entrevistados. Outra possível causa para para essa supressão é o temor de que ao
revelar esse problema, o ator sofra retaliações no meio. Durante a fase de escrita dessa tese,
conversei sobre esse capítulo com um amigo com quem trabalhei e ele tentou enfaticamente me
convencer a desistir de escrever sobre isso. Na sua visão, eu “me queimaria” e nunca mais
conseguiria um trabalho como atriz. Eu disse que não daria nomes, que tentaria expor apenas
que há um problema sobre segurança no trabalho e que ninguém quer falar sobre isso. Ele
insistiu dizendo que não importava, que ninguém mais confiaria em mim por saberem que eu
poderia revelar essas ocorrências de set. Segundo ele “O que acontece no set, morre no set”. Eu
disse que pensaria sobre seus argumentos. Por um lado, pensei que antropólogos usualmente
são vistos como indivíduos que traem a confiança de seus informantes, justamente pelo pouco
conhecimento dos informantes sobre o que seja uma pesquisa antropológica. Mas muitos dados
dos quais tive acesso foram através da minha inserção no campo como atriz e não como
antropóloga. Nesse sentido, essa era uma questão ética com a qual eu teria que lidar. Por outro
lado, temi que esse amigo estivesse certo e que escrever sobre esse assunto pudesse ter impactos
sobre meu trabalho como atriz. A solução para esse conflito foi pensar a quem poderia interessar
o ocultamento dessas informações. Nesse sentido, os impactos positivos para meus colegas
atores que uma discussão aberta sobre o tema poderia trazer foi o motivo para manter a
discussão sobre segurança do trabalho na tese. E a menção sobre esse dilema durante a escrita
cabe aqui para apresentar ao leitor os contornos que o desemprego interiorizado mencionado
anteriormente podem adquirir no discurso dos entrevistados sobre condições do trabalho e no
meta-discurso que é este trabalho acadêmico.

Como mencionei, apenas dois entrevistados tocaram no tema de segurança no trabalho


ligando-o diretamente à ausência de condições de trabalho. Além de Ricardo, Edgar também
falou sobre o assunto. Segue o trecho da entrevista de Edgar:

100
- É, uma das minhas perguntas é essa, qual, na sua opinião, qual... o que tem
de melhor e de pior que a profissão traz pro ator? Os efeitos, assim, os
melhores e os piores.
- Caramba. (Pausa) O que traz de melhor e de pior?... Eu acho assim (pausa
longa). É, eu acho que o de melhor talvez seja essa comunhão com o outro,
né? Você tem uma ilusão de fazer parte da existência alheia, ser uma parte
importante da existência do outro. Isso, de alguma maneira dá sentido pra sua
própria existência. Agora, o que tem de ruim... é isso, é você estar submetido
a todas as adversidades... é uma exposição absoluta. Exposição absoluta. É
cristão jogado aos leões, entendeu? Por isso eu acho que você tem que ter uma
estrutura interna muito forte, uma estrutu... porque senão você sucumbe. Às
vezes pessoas talentosíssimas, né? Acabam... não aguentando o tranco.
Acabam não aguentando o tranco. Pela sensibilidade mesmo, acabam sendo
muito afetadas. Porque é essa exposição absoluta, entendeu? Você é atingido
de todos os lados, a própria atividade, ela é de uma instabilidade, de uma
insegurança. Então tudo afeta. É uma atividade... é miserável. O teatro é pobre,
ele tem uma mesquinharia. Ele tem uma mediocridade! E isso, aparece porque
justamente você consegue enxergar também a excelência, o brilhantismo, o
desapego, entendeu? É a virtude e o vício convivendo da forma mais extrema
possível, entendeu?
- Entendi.
- Então, você tem que estar pronto... vamos dizer... porque ninguém está
pronto!
- Sim.
- Ninguém tá preparado. As coisas só acontecem de maneira imprevisível e
inesperada! Como é que você vai estar pronto? Não vai, entendeu? (Pausa)
É... complicado isso. Assim... tem um momento também de sordidez que eu
vivi no teatro, que foi uma produção... em 82, já tem tempo. Era um elenco de
20. Um ator que tá aí, que foi da minha época de escola, já fiz outros trabalhos
com ele. E ele tá aí em cartaz, né? E... era uma cena que ele tinha que ficar
pendurado. Era um manicômio, todo mundo com camisa de força. É uma saga.
E aí ele era um personagem que tinha que ficar... ele entrava amarrado e ele
era erguido, ele ficava pendurado. E pra isso tinha que ter aquele, aquele... era
uma espécie de fraldão que passa na viri... pra suspender. Só que por questões
de produção isso nunca aparecia, nunca ficava pronto. No dia da estreia
chegou. Ele chegou antes pra poder experimentar, testar, subir, descer. E aí
fomos estrear. Só que quando chegou na... ele testou tudo, só que não no
tempo real da cena. Quando chegou a hora de fazer a cena, ele subiu, começou
o texto dele... só que (pausa) aquilo começou a rodar. Não ficou parado.
Porque ele tava paradinho ali... tinha ar condicionado, tinha outras variáveis
que não estavam presentes, quando ele fez separado antes.
- Entendi.
- E o tempo que ele ficava ali, ele não ficou o tempo... então teve uma hora
que começou a rodar, e aí começou a passar no pescoço dele. E aí, o público
começou a ver antes da gente, porque a gente estava todo mundo de camisa
de força, entendeu?
- Ahã.
- E era um grupo, e ele separado, né, pendurado. O público começou a se
preocupar, porque ele começou a rodar e começou a pressionar. O público
ficou incomodado. E aí a gente... teve um texto que ele tinha que dar e não
deu, porque ele já não estava conseguindo falar.
- Caramba!
- Foi uma sensação... foi... talvez um dos... eu já fui numa apresentação que
morreu um técnico, em Paris. Mas dessa vez aqui no Rio, teve um risco
iminente mesmo de sufocamento, sabe? A nossa sorte é que a gente foi... o

101
pessoal no bastidor começou a ficar desesperado... e a gente naquela época,
ainda muito ingênuo, não parou. Era motivo pra parar a porra da peça!
Entendeu?
- Ahã.
- Porque era o espetáculo da estreia, pra convidados, o teatro cheio, entendeu?
E aí ninguém quis parar. Mas aí a sorte é que tinha um ator, que tinha 2 metros
de altura e que estava nesse grupo. Então, o grupo foi se deslocando pra baixo
dele, pendurado. Esse ator alto levantou na ponta dos pés. E ele tocou com o
dedão no ombro desse ator mais alto, foi isso que parou de rodar. E a cena
chegou até o final. E aí desceram ele. Ele tava de camisa de força! Ele não
tinha nem como usar a mão.
- Gente!
- E aí quando ele desceu, tossia, tossia, tossia (tosse), ele já estava até mudando
de cor. Ele ia morrer sufocado. Mais questão de 1 minuto, 1 minuto e meio ele
ia morrer su-fo-ca-do.
- Nossa, que...
- E em Paris teve um técnico, uma máquina de fumaça gigante, que foi
eletrocutado. Eu só fiquei sabendo no intervalo porque eu conhecia a
administradora que era brasileira. E era uma estreia também. Tudo ingresso
vendido com 3 meses de antecedência... eles não avisaram a... o...
- O elenco?
- O elenco e fizeram a... a segunda parte. Era um espetáculo de 4 horas.
Fizeram 2, ele morreu na primeira parte, teve intervalo e aí resolveram fazer
as duas horas e só no final é que eles ficaram sabendo que tinha polícia e tudo,
tentaram reanimar e não conseguiram. Morreu eletrocutado.
- Nossa. (Pausa). É, isso de condições de trabalho é algo também que eu...
que eu to perguntando porque...
- É, a gente quando vai ficando mais exp... macaco velho não bota a mão em
cumbuca. Então, quando a gente é jovem, a gente se atira pras coisas...
- Se arrisca mais né?
- A gente não tem noção do perigo, né? Conforme a vida vai passando, você
vai vendo que você está sobrevivendo e muita gente já foi dessa pra melhor,
você começa a ficar mais cuidadoso, né?
- Entendi.
- E aí você começa a tentar desconstruir, desmontar essas situações, essas
ciladas profissionais também. Também porque tem uma coisa de que o ator, o
artista tem que estar sujeito a tudo, sabe?
- Ahã! É, essa coisa do disponível né?
- É! Isso aí é uma noção meio, meio...
- Deturpada.
- É. Meio perigosa! Você tem que ter uma margem de segurança. Não é todo
acrobata que vai trabalhar sem rede de proteção. Mas a sensação que eu tenho
no fato de ser ator, muitas vezes, que era a proposta daquele grupo bem... bem
radical, bem rígido, mas eu acho que é um pouco isso sim. Eu consigo
perceber isso. É a sensação de estar dançando na corda bamba à beira do
abismo. A imagem seria essa, a imagem do risco da cena, entendeu? Claro que
você numa temporada, você vai adquirindo... né? Mas numa estreia, que você
não sabe se vai conseguir chegar até o final, muitas vezes está usando o
figurino pela primeira vez. Aqueles tumultos de que fica tudo em cima da
hora, entendeu? Você está submetido a tudo isso. É uma cadeia que tudo
estoura na mão do ator, né?
- É, é mesmo.
- E aí, a sensação que eu tenho é estar dançando na corda bamba na beira do
abismo. É, essa coisa de você... ter rede de proteção, isso é uma consciência
que vem surgindo com o tempo. Entendeu? Você tem que ter um plano B. Por

102
exemplo, trabalhar com vidro e com fogo em cena é uma coisa que eu eliminei
da minha vida, porque eu já vi desastres horrorosos.
- Nossa.
- Entendeu? Gente que passa mal em cena. Gente que vomita em cena, gente
que... e aí como é que continua? Entendeu? Muitas vezes isso dá pra... O
Molière, ele morreu em cena!
- É.
- Tem essa história né? Então, assim, tem muita... é, os atores... tem um
patamar da dignidade, né?
- Sim.
- E da segu... da integridade física, não é da dignidade. Eu acho que são duas
coisas, a integridade física e a dignidade profissional. O que... Qual é o limite?
Qual é o limite, entendeu? Os espetáculos do Diretor x, tinha que fazer coco
em cena, tinha que se ejacular em cena, tinha que ser chupado em cena, tinha...
entendeu? Tem pessoas que se submetem e tem pessoas que não se submetem.
(Edgar, 60 anos)

Quando Edgar diz que o aspecto ruim da profissão é estar submetido à todas as
adversidades, ele denuncia uma estrutura produtiva que não protege ou se preocupa com os
trabalhadores e os expõe ao que ele chama de adversidades. Ele diz que o ator é “atingido de
todos os lados”, inclusive pela natureza instável e insegura da profissão, o que nos faz relacionar
este capítulo e ao anterior. Tanto a instabilidade das ofertas de trabalho quanto as condições
adversas com as quais os atores têm de lidar durante o trabalho são elementos de um mesmo
contexto, fundados na mesma estrutura produtiva. Compreendemos o que ele chama de
adversidade quando começa a narrar o momento de “sordidez” que ele presenciou. A descrição
do quase sufocamento do colega em cena nos traz a possiblidade de compreendermos suas
enunciações iniciais com base nas relações sociais. É a exemplificação do que ele chamou de
“exposição absoluta”. A fala de Edgar continua ainda considerando uma questão moral que
atravessa o trabalho do ator e que permite que esse nível de exploração/exposição aconteça de
forma frequente e seja visto com naturalidade pelos trabalhadores do meio artístico. Trata-se
da ideia de que – como disse Edgar – “o artista tem que estar sujeito a tudo”.

Durante a formação que tive em Artes Cênicas, as expressões “estar disponível” e “estar
entregue” foram utilizadas com uma frequência quase que diária. Há um trabalho que o ator faz
sobre si mesmo, seja no uso do seu corpo, ou no seu modo de pensar, que precisam ser
reelaborados para que ele construa artisticamente. As ideias de disponibilidade e entrega
servem a esse processo de deixar certos hábitos para viabilizar a construção do personagem.
Porém, já no ambiente de trabalho, essas noções são capturadas por um sistema de exploração
que espera que o ator aceite quaisquer condições de trabalho que lhe for apresentada. A estrutura
produtiva na qual o ator está inserido ressignifica essas noções utilizadas no treinamento do

103
ator para que no trabalho ele esteja disponível e entregue a quaisquer condições que lhe forem
apresentadas. Essa atitude que Edgar descreveu como “estar sujeito a tudo”. Nesse sentido,
produtores, assistentes de direção e diretores mobilizam um sistema de acusações em que frases
como “Você não está disponível a isso?”, ou “Você não está entregue?”, são utilizadas a fim de
submeter o ator a condições que muitas vezes representam risco a sua integridade física. Caso
o ator recuse, pode começar a ser visto como “menos artista”, ou pior ainda, como um
profissional que se acha “estrela” e quer ter privilégios em relação aos demais. Há, portanto,
uma economia moral que constrange atores que não queiram aceitar certas condições de
trabalho que lhe pareçam ruins. Além disso, outra estratégia utilizada nesse meio são as
histórias lendárias sobre atores muito admirados pela sua qualidade artística que, em certo
momento, aceitaram condições excessivamente adversas em prol do resultado de um trabalho,
como mergulhar numa piscina de gelo, lidar com cobras venenosas ou leões, fazer alguma cena
arriscada de ação sem dublê etc. Nesse caso, a expressão que Edgar utilizou de “cristão jogado
aos leões” pode ser pensada no seu sentido mais literal possível.

Edgar diz que com o tempo ele passou a exigir essa rede de proteção para andar na corda
bamba. Porque caso ele não exija, não haverá rede para protegê-lo. Ele disse não aceitar mais
trabalhar com vidro e fogo em cena por já ter visto muitos acidentes de trabalho. E um dos
elementos que considero tão grave quanto os próprios acidentes é o ator não vislumbrar alguém
a quem ele possa responsabilizar nesses casos. A estrutura produtiva de espetáculos, filmes e
séries é tão difusa e fragmentada que o ator muitas vezes não sabe a quem cobrar a
responsabilidade pela sua integridade caso ele aceite fazer uma cena que envolva risco físico.
De todas as situações de acidentes que presenciei como atriz, o ator é sempre colocado como o
responsável por manusear o elemento de risco de maneira errada, ou ter se precipitado no
momento da ação, ou ter jogado o vidro na direção errada e ter “causado o acidente”. Nesse
sentido, o ator é sempre o algoz e a vítima de condições que o colocam em risco, ao mesmo
tempo em que é recriminado em caso de recusa a essas condições. Trata-se de uma situação em
que não há uma saída em que o ator saia ileso. No caso de uma cena que envolve risco físico,
quase sempre, ou o ator enfrenta o risco a sua integridade física, ou sua reputação como um
bom ator (disponível e entregue) corre riscos de ser ferida.

Quando Edgar fala de “integridade física” e “dignidade profissional”, ele está apontado
para duas dimensões que envolvem essas situações que colocam em risco o ator. Trata-se da
dimensão da saúde física e da dimensão moral que envolvem essas situações de trabalho. O ator
trabalha contando histórias de outras vidas através daquele feixe tempo-espacial da sua própria

104
vida. Esse “empréstimo” de si para a existência de um ser fictício envolve sentir coisas que
talvez você não sentiria, fazer coisas com o seu corpo que talvez você não fizesse e falar coisas
que talvez você não falaria. Todas essas ações têm fronteiras muito específicas dependendo do
autor. Sabemos que nas peças de Nelson Rodrigues os atores terão que se beijar, simular o
início de relações sexuais e expressar sentimentos como tesão e formas de sedução, além dos
aspectos de violência física e assassinatos. Como esses aspectos serão trabalhados em cena,
cabe ao diretor decidir. Usualmente, o ator é apenas o profissional que realiza essas decisões,
como um operário que coloca as máquinas para funcionar. Ocorre que as máquinas são os
próprios corpos, com suas vozes e emoções. E nessas fabricações, cabe a esse operário decidir
os limites que os textos de autores e as decisões dos diretores em como contar esses textos
podem ter sobre si próprios.

A expressão “dignidade profissional” que Edgar utiliza vem acompanhada do exemplo


de um diretor que é conhecido por ter em suas peças interações de ordem sexual e escatológica
entre os atores e entre atores e público. Do modo como Edgar apresenta, entendemos que essa
proposta ultrapassa para ele o que considera ser os limites dessa “dignidade profissional” para
si. Edgar finaliza dizendo que “Tem pessoas que se submetem e tem pessoas que não se
submetem”. Ocorre que essa dimensão da escolha nem sempre é tão aberta. Como vimos na
fala de Ricardo, acontecem situações em que ele lê o roteiro e no momento da filmagem
descobre que a cena será realizada em situações adversas, ou ainda formas de filmar em que
nem acesso ao roteiro ele tem. Onde estaria a possibilidade de escolha nesses casos? Em que
medida os atores podem contar com a sinceridade dos produtores e assistentes de direção sobre
quais serão as condições no set naquela diária? Muitas dessas negociações sobre como será a
cena acontecem no exato momento em que o ator chega no set para fazer o ensaio já maquiado
e vestido para a cena. Ou seja, caso o ator não se sinta a vontade com o modo pelo qual a cena
foi pensada e peça uma mudança, causará transtornos para a produção que terá de fazer as
mudanças da cena que já está toda montada para ser filmada. É nesse contexto que a apropriação
das ideias de disponibilidade e entrega utilizadas por parte da produção para julgar o
comportamento dos atores constituem a economia moral que atribui classificações como atores
“gente boa”, “tranquilo”, “fechamento”, “topa tudo”, “o que precisar fazer ele faz”; ou por outro
lado atores “estrela”, “cheios de restrições”, “que fazem exigências”, “um saco”, “não pode
nada” etc. Evidentemente há nuances nesse sistema classificatório, já que esse não é o único
elemento através do qual um ator é considerado “gente boa” ou não pela produção. Mas, no que
tange ao tema de segurança no trabalho, é importante apontar para a existência de atribuições

105
classificatórias como essas. Do mesmo modo, um ator pode ser classificado como “estrela” por
outros motivos como a arrogância ao lidar com outros profissionais do campo. Mas, do mesmo
modo, sinalizo para a possibilidade dessa classificação para situações em que o ator esteja
apenas se negando a realizar uma tarefa de um modo que exponha sua integridade física ou sua
dignidade profissional – para usar os conceitos de Edgar.

Uma das diferenciações que podemos incluir nesse sistema é que, dependendo do nível
de fama ou status profissional que o ator tenha, suas possibilidades de escolha sobre como
realizar uma cena aumentam. Isso também depende de como o diretor reconhece ou não essa
fama ou status que o ator tem e também o nível de fama e status profissional que o próprio
diretor tem. Muitas cenas de nudez que são feitas por atores em início de carreira e são vistas
como obrigatórias através de frases de diretores como “é ator tem que fazer”, depois de mais
experientes ou mais famosos essas mesmas cenas muitas vezes são realizadas por dublês de
corpo, e os diretores consideram isso normal. Há, portanto um espaço para a negociação do que
Edgar chamou de integridade física e dignidade profissional, através dos níveis de fama em
que o ator adquire maior poder de fala no interior de uma produção e deixa de ser visto como
um operário anônimo a manusear sua máquina.

Grande parte das atrizes no Brasil lidam com a nudez no trabalho com frequência.
Algumas personagens exigem mais dessa tarefa, outras menos, alguns tios físicos são mais
requisitados para cenas desse teor, outros menos, mas tanto o audiovisual quanto as produções
teatrais, frequentemente contam com pelo menos uma cena de nu parcial. Apenas a questão da
nudez em cena poderia render uma tese inteira. O que trago aqui sobre esse aspecto não se trata
em atrelar diretamente exposição física a falta de condições de trabalho ou “dignidade
profissional”. Mas uma característica de algumas produções que, ao banalizar a nudez, exige
do ator uma disponibilidade e uma entrega de seu corpo nu em qualquer situação. Viviane
narrou a situação de um teste em que se sentiu constrangida por ter que interagir nua com um
ator numa situação de teste em que não houve um preparo anterior.

- Qual foi a personagem mais difícil pra você e por quê?


- Mais difícil. (Pausa). Foi na verdade um teste que eu fiz, que eu não passei.
Foi uma personagem pro filme x, quem pegou foi a atriz y, ela até ganhou
prêmio de atriz com esse personagem. Que era a personagem uma blogueira.
Esse filme é super forte, assim. E eu tive que fazer uma cena...não, eu fiz
vários testes e eu fiquei entre as finalistas. Ficou entre eu, a atriz y e a atriz z.
E assim, eu não tenho nada a ver com o perfil das duas, assim... (riso)
- Ahã.(riso)

106
- E aí a preparadora de elenco x que fez a preparação no final. É um estilo de
trabalho que eu não curto. É muito difícil pra mim, o trabalho dela. E eu tive
que fazer uma cena, um teste. Não era valendo, era pra um teste. Nua, onde
eu tinha acabado de sair de um bar, bêbada e drogada com uma pessoa. E aí
eu tinha que me estapear e transar ao mesmo tempo com esse cara. E a cena
era essa. E eu tinha que fazer o teste nua. E apresentar isso tudo. Então, foi
uma cena bem difícil. De fazer isso com um cara que eu nunca tinha visto na
minha vida, que tinha ido lá pra fazer a réplica comigo. E... não teve ensaio,
era valendo na hora. Eu até... acredito que eu fui super bem, mas... foi muito
difícil. Até porque eu sou uma pessoa super clean, não bebo, não uso drogas.
E assim, é nessa hora que a gente tem que...não tem...é o se né?
- Ahã.
- Se colocar. Da mesma forma que um cara faz um assassino e nun... nunca
matou ninguém. E a gente também se coloca e entra nessa vibe. Parece que
você realmente está drogada naquele momento, está bêbada naquele
momento, você tá sentindo aquilo tudo, tá batendo e sentindo prazer ao mesmo
tempo com aquela pessoa. E é tudo mentira, tudo uma farsa né? Mas é difícil
de fazer principalmente porque você tem que estar nua ali, né?
- Ahã.
- E se liberar pra uma equipe que você nunca viu na sua vida.
- Sim.
- Mas essa foi a cena mais difícil.
(Viviane 32 anos)

Quando Viviane conta sobre estar nua e fazer uma cena de sexo com briga como se
estivesse bêbada e drogada, ela trata de várias dificuldades. Mas a dificuldade mais mencionada
é justamente o estar nua e “se liberar pra uma equipe que você nunca viu na vida”. Ao fazer
um filme o ator passa um tempo (às vezes contado em meses) com aquela equipe de trabalho.
Em alguns casos viaja com aquela equipe, passeia por cidades, faz as refeições junto com
aquelas pessoas. Já no caso de um teste, como Viviane disse, ela nunca os viu na vida. Para os
que não imaginam como seja um set de filmagem posso descrever como um ambiente
majoritariamente masculino. Funções como operadores de câmera, foquista, assistentes de
câmera, produtores de set, eletricistas, maquinistas, platôs, técnico de som, microfonistas e
produtores de arte são quase sempre realizadas por homens. Nesse sentido, quando a atriz fala
em “se liberar para uma equipe que você nunca viu” é estar nua na frente de grande parte desses
trabalhadores. Nas cenas que envolvem nudez e sexo os diretores costumam reduzir a equipe
do set e os demais assistem pelo monitor. Das vezes em que realizei cenas desse teor sempre
trabalhamos com equipe reduzida e a atmosfera era de silêncio e concentração. Mas já ouvi
relato de atrizes sobre o ambiente do set não ser tão favorável assim, com brincadeiras ou piadas
sobre os corpos dos atores por parte da equipe ou do diretor. Nesse sentido, trata-se menos da
questão sobre ter ou não nudez, e mais sobre em que condições essas cenas serão realizadas. Se
é possível conhecer e conversar antes com o ator com o qual se fará a cena de sexo, como não

107
foi possível para Viviane, ou se há silêncio e respeito entre os não atores presentes no set para
a realização desse tipo de cena.

O ator ocupa um lugar no interior da estrutura produtiva em que suas possibilidades de


arbitrar sobre suas condições de trabalho são limitadas por aspectos de reconhecimento externo.
A exposição absoluta da qual falou Edgar é um elemento com o qual o ator tem de lidar e como
ele mesmo falou, pensar os limites que anseia estabelecer para si. Como o motorista alertou a
atriz na cena inicial desse capítulo, é preciso que ela avalie se as condições são possíveis ou
não para a realização do trabalho, e caso não sejam, negar – mesmo que isso acarrete acusações
que visem abalar sua reputação profissional. Nos casos de acidentes, a responsabilidade é
diluída por decisões que foram tomadas de forma fragmentada e o ator, que aceitou as
condições, é colocado como principal responsável – e muitas vezes incompetente – por ter agido
de modo a “causar” o acidente.

No interior da discussão sobre condições de trabalho, os temas de remuneração e


relações de trabalho foram muito mais recorrentes do que o tema de segurança no trabalho, com
o qual iniciamos essa discussão. Talvez pela possibilidade de retaliação aos que revelem os
“segredos de set”, ou talvez por considerar esses acontecimentos como fatos isolados e não
ligados ao modo como esse sistema produtivo está estruturado, o fato é que apenas Ricardo e
Edgar relacionaram diretamente os temas de segurança no trabalho com condições de trabalho.
Já nos item seguintes, abordaremos os temas mais frequentes nas respostas sobre condições de
trabalho.

2.2 Explode Coração: trabalho e amor


Amei certo as pessoas erradas.
Amei errado as pessoas certas.
Nunca fui bom em amar e ser amado…
amar me parece coisa de profissional
e não para amadores como eu.
(Sérgio Vaz)

Ser minimamente remunerado pelo trabalho é um tema que incluí neste capítulo sobre
condições de trabalho porque mesmo tendo uma pergunta específica no roteiro da entrevista
sobre a remuneração, ele apareceu de forma recorrente quando os entrevistados respondiam
sobre condições de trabalho. O tema da remuneração era abordado na resposta sobre condições

108
de trabalho principalmente quando os entrevistados narravam situações em que trabalharam de
graça. Por diversas vezes, não se tratava de uma reclamação quanto ao valor da remuneração e
sim quanto a existir alguma remuneração para o trabalho. Por isso, vamos explorar a ideia de
amor à arte no contexto da pesquisa e sua relação com as ideias de trabalho profissional x
trabalho amador.

Trabalhar com arte faz do ator mais trabalhador ou mais artista? Ou por que produzir
arte e trabalhar são vistas como tarefas distintas? A comum dissociação entre as categorias
trabalhador e artista é uma via de mão dupla para os profissionais que trabalham na área
artística. Por um lado, através do sistema de estrelato, possibilita que alguns recebam pela sua
força de trabalho e pelos produtos associados à sua imagem uma remuneração que poucas
profissões oferecem no capitalismo. Por outro lado, mantém na base da pirâmide profissional
uma massa de trabalhadores que vivenciam diariamente situações de super exploração da sua
mão de obra. As próprias divisões entre “elenco” e “equipe” no interior das produções reforça
essa ideia de que há uma diferença entre esses tipos de trabalhos que não está apenas no âmbito
da divisão de tarefas, diz respeito a uma ordem social que separa trabalho intelectual x trabalho
braçal, ou trabalho criativo x trabalho mecânico. Na verdade, essa é uma divisão que foi se
constituindo ao longo do tempo e não há um critério explícito que justifique o motivo pelo qual
operar uma câmera ou editar um filme seja considerado menos artístico do que decorar um texto
e interpretar uma personagem. Todos trabalham com arte, mas uns são vistos como artistas e
outros não. Dentro mesmo de uma função, como a de diretor, que muitas vezes é considerada
como artística, alguns profissionais são vistos pelos colegas como excessivamente técnico e
pouco artístico, ou criativo. Diretores de fotografia usualmente são vistos mais como técnicos,
mas alguns conquistam o status de artista. Mas mesmo com essas complexificações no interior
de algumas funções há funções que são vistas como exclusivamente artísticas, como a do ator
- que pode ser bem ou mal executada, mas que o profissional continuará a ser chamado pela
sociedade enquanto artista; e há funções que são vistas exclusivamente como técnicas ou
mecânicas, que são realizadas pelos membros da equipe.

Uma vez um operador de câmera me disse que por mais que eu fizesse amizade e
frequentasse os churrascos na casa de membros da equipe, eu ainda fazia parte da nobreza e
eles dos empregados que cuidam do castelo. Fiquei muito incomodada com aquela definição,
afinal, como mulher negra poucas vezes tinha sido colocada no grupo dos “nobres” por algum
motivo. Eu sabia que o cachê dele por aquele trabalho e o meu eram iguais em termos de valor,
porque já havíamos conversado sobre isso. Mas ele não falava de remuneração. Em termos das

109
relações sociais de trabalho eu sabia que a definição apresentada por ele tinha uma base
concreta. Fazia sentido no interior das relações de trabalho de uma produção para a televisão
no Rio de Janeiro. A atriz, com uma personagem importante dentro do projeto ocupa o lugar de
artista. Já a equipe é considerada como operariado, trabalha com arte, mas não carrega o título
de artista. Em situações de festas ou jantares presenciei situações em que pessoas que
independente de trabalharem na área artística ou não faziam elogios a atores utilizando
referencias a divindades e que os colocavam num “Olimpo”. Nobreza ou divindade, o artista é
empurrado para a esfera do humano diferenciado, no caso do nobre, ou mesmo do não-humano.
Considerar o artista um trabalhador pode ser visto, portanto, como um sacrilégio diante desse
sistema de classificações.

Para o artista que passa a ser reconhecido como nobre ou divino parece bom aceitar
essas classificações e usufruir do que os mortais têm para lhe oferecer. No Rio de Janeiro isso
é evidente quando um artista não fica na fila e “passa na frente” para ser atendido em algum
serviço, quando a ele não é cobrada a taxa de algum serviço (mesmo em casos em que não haja
permuta, que é quando o artista não paga o serviço ou produto, mas o divulga através de sua
imagem a partir de uma combinação prévia), enfim, quando a ele são oferecidas facilidades ou
preferencias que aos demais são vetadas. Mas o que desejo apontar aqui é que o mesmo pilar
que eleva alguns serve para oprimir os outros que não são reconhecidos como divinos pela sua
sociedade. Como o critério não é necessariamente o trabalho realizado e em muitos casos,
exalta-se um “algo a mais” que não se sabe ao certo o que é, alguns artistas estarão sempre
esmagados pela mesma coluna que sustenta a imagem de alguns outros artistas no Olimpo. Por
outro lado, acreditar que essa diferenciação trata-se de um título (como seria com um nobre) ou
uma qualidade essencial (no caso de um deus) e não como uma posição que se ocupa, muitas
vezes de forma temporária – já que se trata de um trabalho, pode representar um outro tipo de
tragédia. Enquanto uns são esmagados pela coluna de mármore que nunca vão acessar, outros,
caso acreditem na permanência e estabilidade sobre a coluna, podem ser empurrados dela sem
a ajuda de escada.

Esse modo de funcionamento do Star System, que chamamos aqui de sistema do


estrelato foi explicado na pesquisa de Maria Claudia Coelho, intitulada A experiência da fama.
Nesse livro a autora historiciza a lógica da fama no mundo moderno. No trecho a seguir a autora
cita pesquisas sobre os ídolos americanos e nos apresenta uma explicação sobre o lugar que os
atores ocupam atualmente.

110
MacDonald (1973), em um artigo de 1953, discute os resultados de uma
pesquisa feita por Leo Lowenthal sobre os ídolos populares norte-americanos,
na qual o autor identifica uma transição entre os primeiros anos desse século
e a década de 40. Enquanto no primeiro período os principais biografados
pelos meios de comunicação de massa eram os chamados homens de negócios
(os “ídolos da produção”), nos anos 40 estes cedem lugar aos artistas e atletas
(os “ídolos do consumo”). Atribuindo essa guinada ao desencanto provocado
pela percepção da fragilidade do sistema capitalista, desnudado pela quebra
da bolsa de 1929, Lowenthal assinala o efeito ao mesmo tempo confortador e
desorientador da idolatria aos vencedores no mundo do show business.
Enfatizando a importância do fator “sorte” (em detrimento do esforço
individual que caracteriza a figura do self made man), o star system estimula
o sonho de todos – sorte qualquer um pode ter – ao mesmo tempo em que
consola os fracassados – é a sorte, e não o talento ou o empenho, que contam.
(COELHO. 1999. p31).

Maria Claudia Coelho nos traz a explicação sobre quando os empresários industriais
deixaram de ter suas biografias como foco da mídia e os artistas passaram a ocupar esse lugar,
apoiados mais na lógica do consumo do que da produção. Talvez por isso, compreender como
as emissoras televisivas são financiadas através da publicidade e o lugar dos atores ocupam
nesse sistema seja esclarecedor não apenas para compreender o campo de trabalho dos atores,
mas também para compreender características que dizem respeito ao sistema capitalista atual
como um todo. Ao representar grandes marcas em propagandas, os astros do show business se
mostram enquanto consumidores. O que importa nessas vidas que são elevadas enquanto
diferenciais é o resultado da imagem do artista ou esportista ao utilizar determinado produto.
Como mostra a pesquisa indicada por Coelho, a partir dos anos de 1940 a idolatria aos grandes
industriais cede lugar à idolatria pela imagem dos artistas e esportistas. O lugar do cinema na
sociedade americana foi fundamental para esse processo. Atualmente no Brasil as telenovelas
e o futebol masculino ocupam os principais lugares de produção dessas celebridades, que terão
suas imagens largamente utilizada para o incentivo do consumo.

Acredito que o motivo pelo qual artistas e esportistas foram escolhidos enquanto “ídolos
do consumo” reside na questão da imagem – já que são trabalhos executados em público e para
o público -, e na ideia de unicidade do indivíduo – já que o trabalho artístico é visto como um
dos mais criativos, pessoais e intransferíveis de todos. Tanto na arte quanto no esporte os
produtos finais são a própria execução do trabalho, eles não podem ser elaborados
independentes da persona do trabalhador – caso seja executado por outro artista ou outro
esportista, o produto final será outro. Cada músico que executa a mesma sinfonia, com as
mesmas notas e com um mesmo instrumento, o faz de uma forma diferente. Essa esfera da
“diferença individual” não tangível, do que “é só dele”, atribui ao artista um tipo de valor que
111
poucas profissões no capitalismo são capazes de atribuir aos trabalhadores. Ao escolher um ator
para um papel, o produtor de elenco e o diretor optam por um dentre diversos atores com a
mesma aparência que poderiam executar aquele papel. Mas cada um daqueles atores vai
executar aquelas falas e aquelas ações de um modo particular. Ao executar isso, que é tão
próprio a si, em público e/ou para o público, o artista e o esportista encarnam um ideal de
“indivíduo único”, que por ser tão único deve ser conhecido por todos. E aqui que entra o fator
“sorte” evocado nas biografias sobre os famosos. Todos são únicos, mas apenas alguns serão
merecedores de tornarem-se conhecidos por todos os outros. Ao mesmo tempo em que o ídolo
é singular, porque o modo como ele faz seu trabalho e as características que ele reúne são apenas
dele, o sucesso que elege alguns ao acaso, poderia ser de qualquer um.

Há uma ambiguidade que o capitalismo expressa através da figura do ídolo no sistema


do estrelato que é: o artista pode acreditar que merece o sucesso porque só ele reúne aquelas
características e só ele executa aquele trabalho de determinada forma, mas esse sistema não
evoca apenas o mérito, atribuindo à sorte grande parte do seu critério de eleição, o que indica
que poderia ser qualquer um a ocupar aquele lugar. Isso faz com que o mérito se assente num
lugar frágil na visão que o profissional tem de si. Cada reforço discursivo acerca da “sorte” de
se ocupar aquele lugar, o ator – dependendo no nível de convicção que tem acerca da sua arte
– pode sentir-se uma fraude ao ocupar um lugar de sucesso e a sensação de nunca ser tão bom
quanto o lugar que lhe é dado pode lhe acompanhar. Não nos cabe nessa pesquisa dizermos se
é sorte ou mérito esse lugar ocupado da fama. Para este trabalho, interessa os modos de pensar
que sustentam as relações sociais em questão. Há uma linha tênue, portanto, para o ator que
acessa o lugar de fama: nem acreditar que a posição ocupada e inerente a si, nem desacreditar
do seu trabalho atribuindo a responsabilidade por ocupá-lo apenas à sorte. Ainda no trabalho
mencionado, Maria Claudia Coelho apresenta a ideia de Roberto Da Matta sobre os VIP’s e
como opera essa relação entre o singular e a massa anônima:

Qualquer uma das duas leituras possíveis pode encontrar reforço na noção de
predestinação. Desse modo, o sucesso (outra variante para o renome) aparece
como algo que não depende tanto de um empenho ou talento especial, mas do
acaso que elege alguns. Essa possibilidade de singularização, contudo, apoia-
se no pressuposto de uma igualdade anterior fundamental – “poderia ser
qualquer um”. É nesse sentido que Da Matta (1979) sugere que se pode
compreender a categoria americana das very important persons (vips). Em
uma sociedade baseada em pressupostos igualitários, a categoria vip aparece
como uma forma de diferenciar sem hierarquizar. Aos vips são conferidos
privilégios que jamais são demandados ou reificados em direitos garantidos,
mas sempre ofertados em sinal de reconhecimento àquele que se destaca.
Assim a sociedade igualitária recusa o estabelecimento de hierarquias fixas,

112
ao mesmo tempo em que se permite estabelecer diferenciações entre seus
membros em função de qualidades singulares a eles atribuídas. (idem, p 31/2).

A ideia de vip discutida por Da Matta, que Coelho retoma para compreender os
contornos que a ideia de fama tem nos tempos atuais é útil para compreendermos o contexto
desta tese. Apesar de não estarmos falando da sociedade norte-americana, e saber que a
sociedade carioca é mais apegada a títulos hierarquizantes como a própria ideia de “nobreza”,
há alguns elementos que convergem. Como atriz sempre considerei essa ideia de sorte
prejudicial à profissão por retirar a posição conquistada da esfera do mérito, da conquista
através do esforço profissional. Ocorre que por mais mérito que um profissional tenha, os
valores pagos aos que ocupam os lugares no topo do estrelato não dizem respeito ao trabalho
em si, mas a um valor relativo ao que sua imagem pode vender. Essa relação é parecida com o
capitalismo financeiro. O dinheiro comprado e vendido na bolsa de valores não tem mais uma
relação direta com a produção. A produção diz respeito a apenas uma parcela do valor das ações
de uma empresa. A imagem dessa empresa, a confiabilidade nela e no país sede, as associações
feitas, tudo isso interfere no valor. Nesse sentido, a virtualidade do dinheiro no capitalismo
financeiro tem relação com a imagem vendida por um famoso para as marcas. Disso implica
que, do mesmo modo que a produção no chão de uma fábrica e o valor das ações de sua empresa
não tem uma relação totalmente direta, o trabalho do ator e o valor de sua imagem no mercado
publicitário também não tem uma relação totalmente direta. Nem sempre são os melhores atores
que valem mais nesse mercado, há elementos como a beleza, a simpatia ou carisma, a rede de
relações, um sobrenome tradicional, e a sorte.

Vista pelo ângulo que Coelho apresenta através da explicação de DaMatta, a sorte pode
ser um elemento que possibilita ao ator dissociar parte das suas conquistas profissionais do seu
mérito enquanto trabalhador. Em outras palavras, acreditar um pouco na sorte pode salvar o
artista de se considerar mesmo uma “estrela”. Além de alertar o famoso sobre a natureza não
vitalícia de seu privilégio, a sorte indica também que nem todas as suas conquistas devem ser
lidas pela chave do reconhecimento. É como se a sorte mitificasse o objeto já mitificado e, com
isso, conferisse certa materialidade à primeira ilusão. Ou seja, ao tornar-se famoso, a imagem
do artista não representa mais, em termos de valores, ao resultado direto do seu trabalho. Os
milhões recebidos por um trabalho de publicidade não tem uma ligação apenas com a qualidade
de suas músicas ou de seu trabalho como ator. Por melhor que seja o melhor do mundo no
futebol, não há base concreta para acreditar que as centenas de milhões recebidas dizem respeito
apenas ao trabalho desenvolvido no campo de futebol. A construção da imagem do artista e do

113
esportista no sistema do estrelato se relaciona diretamente ao tipo de capitalismo que
vivenciamos atualmente, que precisa de imagens baseadas em histórias reais para alimentar o
mercado publicitário das marcas. Mas para os que insistem em considerar-se como
trabalhadores especiais que por um dia de trabalho podem ganhar milhões, o sistema – que se
baseia num princípio igualitário – alerta: “Você só está aí por sorte, poderia ser qualquer outro”.
É como se a segunda ilusão (da sorte) desfizesse parte da primeira (de ser um trabalhador que
pelo seu trabalho vale milhões). E assim, o sistema se reorganiza explorando as imagens que
precisam ser exploradas para interligar produção – consumo – capital financeiro, e garantindo
seus princípios de uma sociedade não hierarquizada.

Se o artista que passa a ocupar o lugar de fama acreditar que sua “nobreza” é um título
vitalício, pode amargurar uma série de frustrações. O cinema com frequência evoca a figura do
ex-ídolo que se recolhe à solidão do anonimato e tenta permanecer no lugar de fama, poder e
dinheiro que a ele era conferido anteriormente. Mas do mesmo modo, e com a mesma
velocidade que a sociedade do consumo muda seus gostos com relação aos produtos, mudam
também seus gostos com relação às celebridades que representam esses produtos. Ao contrário
do que a ideia de nobreza ou de divindade possam evocar, o vip ocupa um lugar passageiro,
que pelo próprio modo de funcionamento do sistema, espera-se que outro artista de destaque
ocupe aquele lugar “em breve”. Não apenas no meio artístico, mas o próprio público tem a
capacidade de regular o comportamento desses famosos através das historias contadas sobre
aristas que “viraram estrelas”, ou seja, passaram a se considerar pessoas diferentes das demais
e tratar mal atendentes, ou mesmo seus fãs, se recusando a tirar fotos ou interagir mesmo que
pelas redes sociais.

Por essa característica transitória da fama é difícil saber exatamente sobre a posição que
os entrevistados dessa tese se veem em relação ao reconhecimento social de sucesso. Como eu
os vejo, alguns já foram famosos, um deles ainda é, apesar de não tanto quanto foi na juventude,
e a grande maioria nunca experimentou essa posição de celebridade. Mas durante as entrevistas
esse era um tema delicado, ainda mais para se tratar com uma colega de profissão, já que dizia
respeito à expectativas e frustrações quanto a um tipo específico de reconhecimento do trabalho
do ator. Por mais que participar do sistema do estrelato seja algo muito diferente do que
trabalhar como ator, os atores que não participam desse sistema encontram dificuldades, tanto
de ordem financeira como de reconhecimento social, para continuarem seu trabalho. Como
abordamos no capítulo anterior essa falta de reconhecimento pode não ser importante desde que
não esteja presente no círculo familiar, especialmente nos que apoiam o ator financeiramente

114
e/ou no cônjuge. Quanto aos desafios financeiros que os atores que não fazem parte do estrelato
têm para lidar com os que contratam seu serviço, discutiremos de forma mais detida a seguir.

2.2.1 Tentei pagar minhas contas com amor e não aceitaram

Tanto pela dissociação entre as ideias de arte e trabalho, que atribui à criação artística
a sorte de se ter nascido com um dom ou uma genialidade, quanto por uma “prenda” que se
paga por se dedicar a uma profissão que – como numa loteria – por sorte, o profissional pode
acabar ganhando os milhões que quase nenhum outro profissional ganharia trabalhando
normalmente, o ator encontra dificuldades em ser remunerado pelo seu trabalho. Ao mesmo
tempo em que há uma glamourização da profissão do artista, há também o impacto que esse
glamour acarreta para os profissionais que não acessaram o estrelato. É como se todos os
profissionais da categoria tivessem que pagar através de privações e sacrifícios a existência da
possibilidade do estrelato para si, mesmo que nunca a acesse. Eu já ouvi sobre isso mais de uma
vez quando falava sobre difíceis condições de trabalho e meu interlocutor (não atores)
responderam “É, mas não tem o que reclamar né, porque se der certo, você vai ganhar em um
trabalho o que eu nunca vou ganhar minha vida toda”. A possibilidade do estrelato é colocada
como um pagamento em si, que por existir – enquanto possibilidade – justifica relações de
trabalho precárias.

No que tange às fronteiras entre o que usualmente se considera trabalho na nossa


sociedade e a criação artística, uma categoria é central para essa discussão: amor. Vista
enquanto dom, a criação artística é colocada como um presente de Deus que é apenas executado
pelo artista e, nesse caso, não há o que ser cobrado em termos financeiros. “Fazer por amor” ou
“fazer no amor” são expressões que circulam nesse meio profissional para se referir a um
trabalho que não terá pagamento, que é muito comum, apesar de vivermos no capitalismo.
Durante a realização dessa pesquisa houve nas redes sociais um movimento grande de artistas
com a hashtag #sóamornãopagaconta e outras variações dessa ideia, no sentido de reprimir a
busca por atores que trabalhassem de graça e afirmar que o trabalho do artista, como qualquer
outro, precisa ser remunerado. Amar o que faz não significa que só o amor já é uma
remuneração em si, já que isso não é o suficiente para o artista pagar suas contas e viver no
sistema econômico que vivemos. Por outro lado, as expressões “fazer só se tiver amor”, “Não

115
tinha amor envolvido”, “Era só por dinheiro”, sinalizam o extremo oposto que também não se
mostra interessante para os artistas, que é o trabalho onde não há o ingrediente afetivo e sua
única finalidade é pagar contas. Os polos amor x dinheiro operam aqui uma alquimia delicada
entre o sentido mesmo do que seja ser profissional (na sua oposição ao amador) e conseguir
viver da remuneração pelo seu trabalho como artista, sem precisar complementar sua renda com
outros trabalhos, como mostramos no capítulo anterior.

O trecho da entrevista abaixo mostra um pouco dessa dosagem que um dos entrevistados
sinaliza entre o polo do trabalho de graça (trabalho por amor) e o polo do trabalho só por
dinheiro (e sem amor), e como ele se coloca em relação a esse contexto.

- E quais foram as piores condições que você já trabalhou? 



- Olha, quando se inicia uma carreira você é obrigado a fazer cada coisa que
você desacredita depois. Você trabalha para ganhar nada, você trabalha para
ganhar quase nada, você trabalha para ganhar experiência. Tem coisas que
você aceita porque você está precisando de dinheiro, vai ganhar pouca coisa e
vai trabalhar muito. Tem coisas que você faz que você fala ‘Poxa, porque eu
fiz isso? Não tem nada a ver comigo’. Eu acho que a pior coisa é você ter que
fazer uma coisa que você não curte fazer. Que eu já tive que fazer. Então, por
exemplo, eu já fiz muita peça infantil de projeto escola. Onde (pausa)... o
produtor só visa ganhar dinheiro. Só. A visão é comercial, assim: ‘eu quero
vender os projetos, eu quero vender os projetos’. E aí tudo é feito de qualquer
jeito, sem um cuidado, sem carinho e sem amor à arte, entende? Claro, existem
companhias que fazem isso de forma linda e de forma pedagógica, com a
intenção de ir contar arte às crianças, enfim, mas a companhia que eu trabalhei
não era bem assim, pelo contrário. Nós éramos funcionários e descartáveis
ainda. Foi a pior coisa que eu fiz.
(Marcelo, 32 anos)

Marcelo sinaliza simultaneamente para as dificuldades em se trabalhar de graça ou por


pouco dinheiro e para as as dificuldades em se trabalhar para alguém que visa apenas o dinheiro
e não tem amor à arte. As duas polaridades apresentam-se como prejudiciais. Além disso, ele
aponta para o começo da carreira e diz que há trabalhos que nesse período se aceita fazer e que
“depois você desacredita”. Muitos entrevistados indicaram que esses trabalhos de graça ou
ganhando muito pouco são mais frequentes no início da carreira, apesar dos convites a esses
trabalhos continuem a acontecer, os atores se colocam como profissionais que passam a
escolher melhor e apenas aceitariam um trabalho assim no caso de uma amizade muito próxima
com quem convida. Há, nesse sentido, uma passagem de um período inicial da carreira que
apesar de não ser visto como trabalho amador, por muitas vezes o ator já possuir uma formação
ou certificação profissional, o trabalho por amor é muito frequente e a moeda de troca “adquirir
experiência” é bastante utilizada nesses casos. A partir de um determinado momento nas

116
trajetórias profissionais, os atores passam a recusar esses convites e ocupar o lugar de
profissional, no sentido de colocar um preço no seu trabalho e considerar que apenas o acúmulo
de experiência não é mais remuneração suficiente. Nesse sentido a relação entre as fases
amador x profissional adquire aqui um sentido específico. Não se trata apenas do momento em
que o ator passa a ter o registro profissional emitido pelo Ministério do Trabalho em mãos.
Trata-se, nesse caso, do momento em que o ator atribui um valor monetário ao seu trabalho e,
salvo raras exceções, trabalharia apenas mediante um determinado piso de remuneração.

O trecho da entrevista a seguir se refere exatamente ao momento em que uma das


entrevistadas estabelece que nunca mais trabalhará de graça. Apesar de já ter estabelecido isso
para si anteriormente e não cumprido, ela apresenta a experiência de ter sua própria companhia
e não permitir que ninguém trabalhe de graça para ela, mesmo que peçam por isso:

- E quais as piores condições de trabalho que você já teve? 



- Eu acho que todas as vezes que eu trabalhei de graça pra alguém que eu
admirava porque eu achei que fosse me dar know how da coisa. Porque de fato
você aprende muito. Mas as pessoas em teatro esquecem que elas já
começaram. Então, elas veem trabalho de graça como escravo. E aí porque
você admira muito alguém, você vai trabalhar pra essa pessoa, de repente você
se coloca como assistente de produção e de repente você é o produtor, você é
assistente de direção, você está corrigindo roteiro e quanto mais coisas você
se coloca pra fazer porque você é apaixonado, mais coisas a pessoa vai
pedindo pra você fazer e aí você está pagando para trabalhar. E eu acho pagar
pra trabalhar... assim, a pior coisa que existe. Eu já fiz isso várias vezes. E
com o Lucas lá na companhia, a gente tá fazendo um espetáculo que a gente
banca... e a gente tem isso, ninguém trabalha de graça. Ninguém. Acho que
ninguém nem por ajuda de custo trabalhou. A gente conseguiu pagar todo
mundo dignamente, dentro do dinheiro que a gente tem, e nunca a gente vai
pedir pra alguém trabalhar de graça. Mas nem que peçam “ah, eu quero
aprender com vocês...”. Não, não tem isso. De graça de jeito nenhum. Eu
passei por isso 3 vezes. A primeira eu tinha 19, a segunda eu tinha 26 e a
terceira 28. E desde os 19 que eu falo pra mim “não vou fazer isso de novo,
não vou fazer isso de novo”. Porque não tem dinheiro nem pra você pegar
ônibus. Mas agora eu aprendi de verdade. Nunca mais eu faço isso de novo,
porque a última vez foi bem traumática.
(Marina, 29 anos).

A atriz apresenta o argumento de que por ser “apaixonada” pelo trabalho, trabalhar de
graça vai se tornando um ato de “pagar pra trabalhar”, porque quem está convidando ao trabalho
atribui cada vez mais tarefas a quem “se ofereceu” para a função. E por sua vez, quem aceitou
o trabalho, ao se colocar como “apaixonado” justifica não colocar os limites da interação. Nos
casos mencionados ela trabalhou como assistente de produção e assistente de direção. As tarefas
a ela incumbidas aumentaram cada vez mais durante os trabalhos e ela acabou gastando
dinheiro para executá-las. Marina afirma que “pagar pra trabalhar é a pior coisa que existe”. No

117
capitalismo não faz sentido o ato de pagar para trabalhar, então, porque isso acontece? O que
mobiliza alguém a dispender os próprios recursos para custear um trabalho com o qual não terá
nenhum lucro financeiro?

De fato, o trabalho não remunerado parece uma grande idiotice do trabalhador que se
sujeita a ele que não pelo uso da força, cerceamento da liberdade ou endividamento – como nos
casos de escravidão. Mas para compreendermos o que leva os indivíduos a se colocarem na
situação de trabalho não remunerado, é preciso compreender o tipo de capital simbólico que
empresas de entretenimento e diretores da área detém, assim como o capital simbólico que
realizar alguns tipos de trabalhos – como protagonizar um filme, mesmo que curta-metragem –
podem acrescentar à carreira do ator. Marina, além de atriz é produtora, autora e diretora. Ao
trabalhar como assistente de direção de uma diretora que ela admirava, ela buscava adquirir o
que chamou de Know how para o seu trabalho de direção. Além do saber fazer, ela contaria
com algum reconhecimento do meio por já ter sido assistente de direção de uma diretora
renomada no meio teatral.

Em quase todas as profissões esse momento inicial da carreira de adquirir experiência é


reconhecidamente um momento em que se ganha pouco dinheiro. Seriam os estágios praticados
durante a formação. Ocorre que entre os atores, mesmo depois de concluída a formação, os
trabalhos sem remuneração financeira em troca de “experiência profissional” ou de “material
de divulgação do seu trabalho” perduram durante longos períodos, ou até que o ator se recuse
a fazê-los. No trecho a seguir, outra atriz conta sobre as expectativas quanto à remuneração e
as decepções vivenciadas com o trabalho sem remuneração.

- E quais são as piores condições que você já trabalhou? 



- As piores? Peraí... É as piores que eu já trabalhei foi sem... foi na época que
eu trabalhava com o Marcelo lá na comunidade que a gente trabalhava. Eu
tinha um projeto de dança e aí a gente dava aula de graça! E... era um terror.
Foi uma parte da minha vida assim que eu falo que se eu pudesse apagar e
fazer tudo de novo eu faria. Porque eu saí do musical que eu estava pra fazer
isso e aí não foi uma coisa legal. E eu não tinha dinheiro pra almoçar, não
tinha dinheiro pra pegar ônibus, eu não tinha dinheiro pra sair, se eu quisesse
tomar um café na rua eu não podia, porque eu não tinha dinheiro, porque eu
dava aula de graça e só fazia isso. Então, bem complicado. Assim, tinha dia
que tinha 60 crianças na sala e aí tipo, não tem o que fazer, você vai fazer o
quê? Tudo assim atropelado, sabe? A ONG também que tava ancorando a
gente não dava um apoio. E depois também eu comecei a trabalhar com essa
ONG de novo, num outro espaço, mas aí eles atrasavam salário. Então, às
vezes você ia lá e a porta estava fechada porque fechou naquele dia e ninguém
te avisou. Então você foi até lá... despendeu um tempo pra ir até lá, você podia
estar fazendo outra coisa... então, as piores condições foram essas. Foram a
pior das piores. Trabalhar de graça é osso.
(Lívia, 32 anos)
118
Ambas as atrizes afirmam que essas experiências de “trabalhar de graça” foram as piores
experiências de suas vidas. Apesar de serem funções dentro do universo artístico, os trabalhos
mencionados não foram como atrizes. Isso relaciona o tema da remuneração com a
diversificação mencionada no capítulo anterior. Os trechos transcritos dessas duas entrevistas
mostram que nas buscas por diversificação de funções, situações de trabalho não remunerado
também podem ser encontradas. A seguir, Edgar relata sobre os trabalhos como ator em que
não foi remunerado e o momento em que deixou de aceitar esse tipo de convite. Além disso,
Edgar compara a sua remuneração instável durante uma temporada de teatro em que ele recebe
uma porcentagem da bilheteria e a remuneração de técnicos de luz e som (que são atores
diversificando função e ex-alunos seus) e recebem salario fixo para trabalharem nessa mesma
temporada.

- O teatro hoje em dia é uma atividade... praticamente inviável, sabe? Mas é


impressionante a vitalidade, porque você vê aí a quantidade de espetáculos em
cartaz! Às vezes eu fico curioso assim, de alguém pegar uma pós-graduação
pra tentar estudar a ocupação das salas.
- Ahã. (riso).
- Por que é que essa gente toda está em cartaz? Essa gente vive de teatro?
Pegar esses guias aí, OFF e tal, tantos espetáculos em cartaz. Aí vai percorrer
as fichas técnicas pra saber. Porque por exemplo, ano passado, o espetáculo
que eu fiz, foi no espaço SESC. O operador de luz, ex-aluno meu aqui, ator,
um bom ator, mas ele tinha que também garantir uma diversificada pra poder
estar na área, ligado ao meio.
- Sim.
- O operador de som, a mesma situação, ex-aluno. Desenvolveu também outra
habilidade pra poder... os dois ganharam mais do que eu, entendeu? Como
ator do elenco.
- Olha só.
- Porque eles têm o mínimo garantido, entendeu?
- Entendi.
- E eu não, eu tô no risco. Eu tô no risco ali do que... só que eram 100 lugares,
entendeu? Por mais que você faça conta, não tem como... com a manutenção
do espetáculo, não tem como aquilo ser pago, entendeu? Então, os atores, os
atores acabam profissionalizando os técnicos. Porque são os atores que levam
o trabalho de arte, entendeu? Então, tudo isso, eu acho que coloca a gente
numa situação muito precária. O mercado no Brasil de arte não é profissional.
O mercado profissional mesmo é muito elitizado e o mercado de arte, ele é
semiprofissional. Mas pra não dizer amador, porque amador tem um sentido
pejorativo e na verdade, amador é quem ama fazer, entendeu? Quem faz por
amor, entendeu? E na verdade o mercado semiprofissional as pessoas fazem
pra terem também um retorno financeiro, entendeu? Eu já fiz muito trabalho
sem receber, como investimento, percebe? Mas agora eu, eu acho que já não
dá mais pra mim. Já cumpri a minha cota.
- Ahã.
- Então, agora por exemplo nas férias, teve um menino... não foi meu aluno,
mas conheceu muita gente daqui. E aí ele ganhou uma verb... ele é de cinema,
da Estácio eu acho. E aí ele ganhou uma verba do, do Fundo não sei de onde...
universitário, um desses fomentos pra fazer um curta. E aí ele me chamou e

119
falou ‘Olha, tenho 300 reais pra te pagar’. Eu fui! Eu vou, eu vou porque 300
reais eu vou ficar lá um dia, eu sei que é aquilo. Agora, ‘Vem cá quebra um
galho pra mim, faz...’, isso eu já cansei de receber convites assim. Muitas
vezes eu fiz pra ajudar, porque eu gostava, porque eu acreditava no projeto,
eu queria dar uma força pra pessoa. Mas agora... eu não faço mais. Eu
estabeleci esse, esse limite pra mim. Mas é uma coisa pessoal, uma medida
pessoal. Eu estabeleci na minha carreira, vamos dizer assim, se é que existe
isso, eu até duvido. As pessoas falam por carreira, carreira? Isso é uma
trajetória! Um percurso! Não é uma carreira, entendeu?
- Ahã.
- Porque eu sempre me sinto começando do zero. Se eu vou fazer uma peça,
eu me sinto começado do zero, percebe?
- Ahã
- E aí, assim, é... eu... chegou uma hora que eu pagava pra trab... eu comecei
pagando pra trabalhar. Aí depois teve uma hora que eu decidi ‘Agora, eu vou
trabalhar pra... pra não ter que pagar. Eu posso até não receber, mas não vou
pagar. Vou empatar’ (riso).
- Sim.
- Fiquei um tempo assim. Fiquei um tempo assim. Eu não ganhava, mas
também não pagava. Então, participava, fiquei empatado. Aí chegou uma hora
que eu falei ‘Não, agora chega, eu tenho que ganhar, alguma coisa eu tenho
que ganhar’. E a partir daí, não é que eu passei a viver de teatro, mas acabou
que o teatro virou uma das minhas fontes de renda, seja teatro, seja cinema,
seja televisão, seja... dublagem, seja locução, seja publicidade, seja... e a
educação que também era uma atividade que eu nunca deixei (pausa). Como
professor, eu trabalhei com todas as faixas etárias, do pré-escolar à terceira
idade. Tenho uma experiência ampla nesse sentido. Nunca deixei de fazer isso
porque eu gosto. E porque era uma fonte de renda que me trazia alguma
estabilidade. Nada me patrocinava integralmente. Eu tinha que ter, na verdade
uma junção de atividades.
(Edgar, 60 anos)

Edgar inicia relatando uma peça que ele apresentou no ano anterior da entrevista. Nessa
peça que ele atuava, ele diz que não tinha muito retorno financeiro porque a peça não se pagava.
E que os técnicos, ex-alunos seus, ganhavam mais que ele. E a partir desse ponto, de uma crítica
ao sistema artístico no Brasil, ele puxa uma linha temporal para descrever como ele compreende
as fases na sua trajetória profissional. Primeiro um momento em que ele pagava para trabalhar.
Nesses casos usualmente são produções em que os artistas se unem para montar alguma peça
com seus próprios recursos, sem nenhum tipo de apoio ou patrocínio. Depois ele conta que
trabalhava para “empatar”. Não ganhava, mas também não pagava para trabalhar. Para
descrever essa fase ele diz que “participava”. Quando atores participam e não recebem
remuneração quer dizer que aceitaram participar da produção de algum conhecido ou amigo
que foi realizada igualmente sem apoio ou patrocínio, nesses casos ele não está investindo seus
próprios recursos financeiros, apenas sua força de trabalho. E por fim, na última fase de sua
trajetória ele diz que passou a estabelecer o limite de ter que receber alguma remuneração

120
financeira pelo trabalho, mesmo que pequena. No caso do teatro que ele fez no ano anterior da
entrevista ele reclama ter sido pouca remuneração porque contava com a lotação do teatro, o
que deixa os atores sempre no risco de não receber – e em alguns casos tendo de arcar com o
custo da sala, caso o mínimo cobrado pelo teatro não seja pago com a bilheteria. Além disso,
por ter sido um teatro de apenas 100 lugares o que eles podiam ganhar era sempre pouco, já que
há um limite para o valor cobrado por um ingresso e caso o elenco seja grande, a porcentagem
de cada um é pequena. Esse risco que ele descreve continuar vivendo é, no entanto, a melhor
fase da trajetória por pertencer ao momento em que ele não aceita trabalhos sem remuneração.
Ou seja, nessa última fase há a remuneração, mesmo que ela seja pequena ou não garantida (no
caso de participação nos lucros), precisando ainda diversificar para complementar a renda.
Segundo Edgar, foi a partir desse último momento, quando ele estabeleceu o limite de ser
minimamente remunerado para aceitar um trabalho, que ele passou a se sustentar com os
trabalhos na arte, seja no teatro ou nos outros campos descritos.

Esse trecho da entrevista de Edgar combina elementos desta discussão com a do capítulo
anterior quando ele explica que mesmo exigindo ser pago, a pouca remuneração pelo trabalho
em uma das áreas faz com que ele busque complementar seus rendimentos em outras áreas. No
trecho que ele diz “Não, agora chega, eu tenho que ganhar, alguma coisa eu tenho que ganhar.
E a partir daí, não é que eu passei a viver de teatro, mas acabou que o teatro virou uma das
minhas fontes de renda”, ele comunica ao ouvinte que estabeleceu um novo patamar para si,
mas que esse último patamar é para que o teatro pudesse ser uma de suas fontes de renda, já
que ele afirma ser muito restrito o mercado profissional de teatro no Brasil. Segundo Edgar,
apenas os poucos que conseguem acessar esse mercado profissional poderiam viver apenas de
teatro, todos os outros vivenciam o que ele chamou de mercado semiprofissional e precisam
complementar sua renda seja exercendo outras funções – como os ex-alunos que ele mencionou
-, seja em outros campos de trabalho.

Outro elemento do discurso de Edgar é a recusa à ideia de carreira. E essa recusa pode
ser uma das chaves de compreensão para esse contexto de trabalho por amor x trabalho
remunerado. Para Everett Hughes “Um ofício é um grupo padronizado de deveres e privilégios
que recaem sobre uma pessoa numa determinada situação definida” (HUGHES. 1971. p132).
Os deveres e privilégios referentes a cada ofício ou profissão dizem respeito não apenas ao
modo como se executa o trabalho, mas a todas as consequências sociais de ser um trabalhador
de determinado ofício. Dentro de cada profissão há uma gama de padrões de conduta possíveis
ou aceitáveis. Para o ator iniciante – e talvez para artistas iniciantes de um modo mais geral –

121
que não aceite alguns convites para trabalhar sem receber remuneração financeira recaem as
acusações de “ser estrela”, de “ter o rei na barriga”, “quem ele pensa que é?”, “nem é conhecido
ainda e já tá recusando trabalho”. Tudo isso decorrente da ideia de que ao iniciar a carreira o
artista tem que ser um “servo da arte”, ou “do seu amor pela arte” e à essa altura o artista deve
estar feliz que o público queira ter contato com sua arte, mesmo que para isso não tenha uma
remuneração financeira. Já do ator experiente espera-se que ele saiba o preço do seu trabalho e
cobre por isso, tornando o artista ou sua obra, muitas vezes, inacessível para uma parcela
considerável de seu público. Do artesão ao pop star há uma gama de padrões de comportamento
que é regulada por um sistema de acusações em que estão envolvidos os colegas atores, colegas
de arte que executam outras funções e público em geral.

Dentre as fofocas de set estão as especulações sobre os valores dos cachês cobrados
pelos atores para fazer este ou aquele trabalho. Há também os diretores que se exaltam ao contar
que determinado ator ou atriz aceitou um cachê mais baixo do que normalmente exige porque
queria muito trabalhar com aquele diretor. Algumas produções que são vistas como “mais
artísticas” que outras podem atrair atores não pela remuneração financeira, mas pela
possibilidade de um reconhecimento maior das suas habilidades profissionais através daquele
produto artístico. Esse é o caso de grande parte do cinema brasileiro. Alguns trabalhos são
aceitos pelos atores por remunerações baixas ou nenhuma remuneração, porque muitas vezes
se acredita que esse trabalho pode atrair outras propostas de trabalho. Através de um filme bem
realizado, o ator conseguiria mostrar mais a respeito de suas habilidades artísticas.

Entre os atores é comum o uso de expressões sobre “como expor seu produto”. Alguns
filmes, considerados pela crítica como bons produtos artísticos, seriam boas oportunidades para
o ator de “expor seu produto numa vitrine mais valorizada”, ou mesmo “valorizar seu produto”,
acumulando a ele um novo status artístico. Por outro lado, alguns filmes realizados por
profissionais inexperientes são como “expor seu produto num pano esticado na calçada”, ou
seja, um modo de “desvalorizar seu produto” ou “se queimar”. Nesse sentido, apontamos que
para escolher participar ou não de um projeto, muitos elementos além da remuneração estão
envolvidos, como essa possibilidade de “se queimar” participando de produções consideradas
ruins pela crítica, pelos colegas e pelo público. Se o ator avalia essa possibilidade de perder o
capital simbólico atrelado ao “seu produto”, ele pode recusar o trabalho mesmo mediante
remuneração. Mas o que sinaliza a fala de Edgar é que, mesmo submetendo os cálculos sobre
aceitar um convite de trabalho ou não a todos esses critérios, há um momento em que o ator
estabelece seu mínimo no que tange à remuneração. No seu caso, ele estabeleceu que não

122
bastava “empatar” ou não ter que pagar para trabalhar, alguma coisa ele teria que receber de
cada trabalho. Esse foi seu mínimo estabelecido.

Diante das entrevistas com as quais trabalhei, considero que a fala de Edgar sinaliza
para um padrão sobre um ponto de virada na trajetória profissional dos atores. Por mais que
Edgar não queira atribuir uma visão de evolução a sua trajetória profissional que a ideia de
carreira poderia conter, considero que há passagens de um status a outro no interior da
profissão que é possível vislumbrar através de sua fala. No início da pesquisa, talvez por uma
visão mais estrita e formal que eu portava sobre pontos de virada e status profissional,
considerava que o momento da aquisição do registro profissional (DRT) pudesse ser o marco
mais relevante na trajetória dos atores. A passagem formal – e nesse caso legal – do amadorismo
para o profissionalismo é um momento importante. Mas, durante as entrevistas ficou nítido que
o momento em que se consegue ser remunerado pelo trabalho como ator, e – para os que
conseguem – o momento em que se consegue viver apenas da remuneração do trabalho como
ator parecem ser os marcos realmente relevantes nas trajetórias profissionais dos atores
entrevistados.

Ser pago pelo seu trabalho artístico seria o primeiro grande momento em que o ator se
vê socialmente reconhecido através da sua arte. Esse aspecto que envolve a dificuldade em ser
remunerado por esse tipo de trabalho revela algo sobre a relação que nossa sociedade tem com
a arte. O mesmo indivíduo consumidor que pode pagar um salario mínimo num ingresso de
show de um artista norte americano que se apresente no Brasil, consegue pedir para seu amigo
músico tocar de graça num evento de pequeno porte. Sobre o lastro histórico que temos com as
profissões Everett Hughes diz:

Um status nunca é particular ao indivíduo; ele é histórico. Uma pessoa, num


status e num ofício institucional, é identificada com um papel histórico. [...]
Todo ofício teve uma história, na qual o informal e único se tornou formal e
um tanto impessoal” (idem, p133).

Nesse sentido, ao tornar-se ator, o indivíduo deve lidar com toda a concepção que sua
sociedade porta sobre essa profissão. É impossível ser ator sem lidar com as ideias correntes
sobre o que é ser ator e com o próprio sistema de estrelato. Esses aspectos históricos terão
consequências não apenas no modo como esse indivíduo vai se relacionar com os demais na
sua sociedade, mas com o modo com o qual ele enxerga a si próprio. Uma sociedade que não
reconhece o valor artístico de determinada obra, e consequentemente não paga seu valor
monetário para o artista, colocará em questão a própria identidade desse artista enquanto

123
profissional. Ele terá dúvidas se é realmente um artista ou se é uma farsa, se não possui talento.
Ou mesmo que este artista tenha as bases de sua identidade artística bem fundamentadas e não
questione seu valor enquanto profissional, a falta de reconhecimento de sua sociedade traz,
além das implicações financeiras da ordem de sua subsistência, implicações para as pessoas o
cercam. Dificilmente um cônjuge, pais ou amigos mais próximos continuarão a acreditar no
valor da produção de determinado artista se sua sociedade não o reconhece. Infelizmente, não
são poucas as histórias sobre artistas que não foram reconhecidos pela sociedade de seu tempo
e que tempos depois foram reverenciados enquanto gênios. Em sua biografia sobre Mozart,
Norbert Elias apresenta a hipótese de que, apesar de saber seu valor enquanto artista, o não
reconhecimento pela sociedade de seu tempo trouxe sérias implicações para a vida de Mozart,
decorrendo disso sua morte prematura. Sobre o valor do reconhecimento social para Mozart,
Elias diz o seguinte:

É preciso indagar o que esta pessoa considerava ser a realização ou o vazio de


sua vida. Mozart tinha plena consciência de seu raro dom, e transmitiu-o tanto
quanto pôde. Boa parte da vida trabalhou incansavelmente. Seria temerário
afirmar que ele não tivesse consciência de que sua música passaria para a
posteridade. Mas não era o tipo de pessoa para quem a ideia de ser reconhecido
pelas gerações futuras trouxesse consolo pela falta de reconhecimento que
suportou nos últimos anos de vida, especialmente em sua cidade adotiva,
Viena. A fama póstuma significava relativamente pouco para ele, enquanto a
fama em vida significava tudo. Lutou por ela com plena consciência de seu
próprio valor. Necessitava, porém, da confirmação imediata desse valor,
especialmente por amigos e conhecidos. No fim da vida foi abandonado por
quase todos os que antes tinham sido seus amigos íntimos. A culpa não era só
deles – as coisas não eram tão simples assim. Mas não há dúvidas de que sua
solidão redobrou. Talvez ele tenha simplesmente desistido. (ELIAS. 1995.
p.10).

O valor da obra de um artista varia de acordo com o reconhecimento social que este
artista tem. Os elementos que possibilitam esse reconhecimento social variam de acordo com
cada cultura e de acordo com cada período histórico. É possível que um artista não faça sucesso
no seu lugar de origem e faça em outro, ou que ele esteja mais ligado a processos artísticos que
estão por vir do que os que existem no seu tempo, e disso decorrerá um reconhecimento futuro,
mas não durante a sua vida. No caso das artes plásticas e da música, o reconhecimento pós
morte de um artista é algo comum e sua obra persiste através dos suportes. No caso dos atores,
estes suportes são menos utilizados para o teatro. Já no cinema e televisão tais obras podem
persistir por gerações, mas o usual é que o reconhecimento, caso exista, se dê ainda em vida. O
valioso da proposta de Norbert Elias nessa obra sobre Mozart é sua tentativa de compreender o
ser humano existente no artista, recorrendo a sua obra na medida em que ela seja capaz de

124
iluminar nossa compreensão sobre a vida do seu autor. Essa dificuldade que o público tem de
compreender o ser humano que produz uma obra de arte deriva muito de uma mistificação
acerca dos processos de produção artística. Algo que se relaciona com o tema que discutimos
aqui na medida em que atribui a um talento nato do “gênio artista” uma obra que é fruto do seu
estudo, trabalho e treinamento. Através dessa recusa em reconhecer a ordem humana do
trabalho em arte e atribuir a um divino talento que magicamente opera materiais e os transforma
em obras acabadas, os membros da sociedade validam processos arbitrários de reconhecimento
e, consequentemente, de remuneração.

Durante a realização dessa pesquisa, um ator de 62 anos faleceu e em conversas


separadas que tive com 3 atores que o conheciam, todos afirmaram que a causa de sua morte
tinha sido a tristeza pela falta de reconhecimento e, consequentemente, de novos convites para
trabalhar. Uma atriz com quem conversei chegou a dar entrevistas para a imprensa dizendo que
o ator que falecera foi um grande ator mal aproveitado. Segundo a atriz, ele não teve o
reconhecimento que merecia e morreu de tristeza, ele estava recluso e deprimido com a falta de
oportunidades de trabalho. Lidar com a falta de reconhecimento social pelo seu trabalho é para
o artista um elemento de grande importância na constituição de sua identidade. As múltiplas
identidades sociais que os indivíduos vivenciam nas sociedades complexas têm variações
quanto ao peso dado a cada uma delas pelo indivíduo. Ser mãe, ser profissional, ser membro de
uma escola de samba, de uma comunidade religiosa, ser torcedor de um time de futebol ou
frequentador de uma academia de luta, cada uma dessas inserções pode em alguma medida ser
considerada como diferentes identidades sociais, mas cada uma delas tem ima importância
diferente para cada indivíduo. Para o artista profissional, muitas vezes a identidade de artista é
uma das, ou a mais importante identidade que ele porta socialmente. Segundo Elias,
compreender os anseios primordiais que alguém porta é o único caminho para compreender o
que confere sentido àquela existência.

Para se compreender alguém, é preciso conhecer os anseios primordiais que


este deseja satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas dependendo
da medida em que elas conseguem realizar tais aspirações. Mas os anseios não
são definidos antes de todas as experiências. Desde os primeiros anos de vida,
os desejos vão evoluindo, através do convívio com outras pessoas, e vão sendo
definidos, gradualmente ao longo dos anos, na forma determinada pelo curso
da vida; algumas vezes, porém, isto ocorre de repente associado a uma
experiência especialmente grave. Sem dúvida alguma, é comum não se ter
consciência do papel importante e determinante destes desejos. E nem sempre
cabe à pessoa decidir se seus desejos serão satisfeitos, ou até que ponto o
serão, já que eles sempre estão dirigidos para outros, para o meio social. (idem,
p 13).

125
Elias aponta a importância de compreender esses anseios primordiais que no caso de
Mozart se referiam à fama e ao amor correspondido. No seu caso as duas coisas tinham uma
relação muito direta já que, quanto menos sua sociedade lhe dava o reconhecimento artístico,
menos sua amada lhe valorizava. Observar a relação entre um artista e sua sociedade em termos
de reconhecimento de sua obra é uma importante via de compreensão para observarmos uma
trajetória artística e também para compreendermos como determinado sistema social organiza
o campo da arte. No Brasil, um ator que anseie primordialmente ter um amplo reconhecimento
e fama deverá buscar trabalhar na maior emissora de televisão do país. Um ator que deseje ser
reconhecido pelos seus pares e que não valorize o reconhecimento do grande público em termos
de fama, deverá se dedicar ao teatro e ao cinema, principalmente ao chamado circuito “cult”
desses campos. Um ator que anseie primordialmente pagar suas contas sem sair da profissão
pode se dedicar à publicidade ou à dublagem – o que não elimina as demais buscas, como a
televisão ou os grandes musicais de teatro. As escolhas dos atores em suas trajetórias são
respostas individuais dadas a um modo de organização social do campo artístico. Porém, nem
tudo é compreensível antes da experiência, o que faz com que alguns atores se arrependam de
escolhas feitas em seu passado. E como Elias diz, a própria conformação desses desejos vai
ocorrendo ao longo dos anos, de acordo com as experiências vividas.

É possível que um ator que não se interesse pelo aspecto fama durante sua formação
profissional, depois de alguns anos de trabalho, ao identificar a diferença de tratamento e
remuneração que é conferida aos “atores famosos” e aos “atores não famosos” transforme seus
desejos e anseie a fama. Ou um aspirante a ator que ao se dedicar a um curso de formação tome
contato e simpatize com determinadas correntes teatrais pode transformar sua aspiração por
fama em um anseio pelo reconhecimento dos pares quanto à qualidade do seu trabalho cênico.
O fato é que, dificilmente – não impossível, já que todo sistema social tem suas brechas – um
ator conseguirá ser famoso no Brasil sem se dedicar ao trabalho em televisão; e dificilmente –
novamente não impossível -, terá reconhecimento artístico de seus pares sem se dedicar, mesmo
que ocasionalmente, ao teatro ou ao cinema. Muitos atores oscilam entre diferentes tipos de
aspiração primordial, dependendo das experiências que vivenciam. Como Elias diz, “os desejos
vão evoluindo ao longo do tempo”. Apontamos nesse sentido quando discutimos o que leva o
ator a escolher diversificar seu trabalho. Agora, apresentamos um trecho de uma das entrevistas
que está ligado à ideia de diversificação, porém nos mostra como a questão da remuneração

126
pode interferir nessa escolha, mesmo contradizendo algum desejo mais profundo – o que pode
gerar um sentimento de frustração.

A intensidade da Companhia de teatro que eu tinha, que eu participava na


época era a mesma. ‘Quantas pessoas tem de público aí? Nossa só tem 4.
Vamos lá gente! Vamos lá!’. Porque a gente estava fazendo, a gente estava
fazendo porque a gente estava gostando. A gente fazia... hoje em dia você não
pode fazer teatro por amor porque ninguém vive só de amor na profissão.
Você tem que ter o seu ganha pão. Você tem que ter onde... uma fonte de
renda. Você não pode fazer, eu não posso fazer uma peça de teatro... trocar a
minha direção de dublagem, a minha dublagem, que eu pago as minhas contas,
todas elas, por uma peça de teatro por pouco. Adoraria fazer... no final de
semana... ‘Ah, não deu nada pra ninguém’. ‘Beleza. Valeu! Pelo menos a
companhia de vocês, valeu’. Pelo menos eu estava... é, é, é... interpretando no
teatro, pisando num palco. Entendeu? Que eu acho muito gostoso essa
preparação. Eu tenho saudade do teatro. Muita saudade do teatro. (Arthur, 47
anos)

A fala de Arthur sobre sua vontade em fazer teatro, como fazia na juventude mesmo que
tivesse apenas 4 pessoas no público para assisti-lo, demonstra um anseio artístico que não é
satisfeito. Ele diz que adoraria fazer, mesmo que não desse dinheiro algum, mas que isso não é
possível na prática. Ele não se vê numa posição de escolha entre o teatro e a dublagem porque
ele não vê como o teatro pagaria suas contas. Nesse sentido, sua fala deixa nítida uma oposição
entre algo que ele adoraria fazer enquanto ator – o teatro -, e o que ele realmente faz como ator
e diretor – a dublagem.

Qualquer trajetória biográfica que formos analisar é preciso inseri-la no seu contexto
social e a partir desse contexto compreender o que o indivíduo percebe enquanto possibilidades
ou dificuldades em ralação a realização desse desejo primordial. A fala de Arthur nos deixa
explícito o fato de que, caso ele se visse na posição de escolha no sentido de, por algum motivo
não precisar de dinheiro, ele escolheria fazer teatro. Norbert Elias apresenta o ponto de vista de
um sociólogo ao elaborar uma biografia. Segundo ele, o ofício do sociólogo nos torna capaz de
enxergar as pressões sociais que agem sobre o indivíduo:

O destino individual de Mozart, sua sina como ser humano único e, portanto,
como artista único, foi muito influenciado por sua situação social, pela
dependência do músico de sua época com relação à aristocracia da corte. Aqui
podemos ver como, a não ser que se domine o ofício do sociólogo, é difícil
elucidar o problema que os indivíduos encontram em suas vidas, não importa
quão incomparáveis sejam a personalidade ou realizações individuais – como
os biógrafos, por exemplo, tentam fazer. É preciso ser capaz de traçar um
quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo. Tal estudo não
é uma narrativa histórica, mas a elaboração de um modelo teórico verificável
da configuração que uma pessoa – neste caso, um artista do século XVIII –

127
formava em sua interdependência com outras figuras sociais da época. (idem
p18-9).

O modelo metodológico proposto por Elias para a pesquisa biográfica leva em


consideração aspectos individuais como os anseios primordiais mencionados anteriormente,
porém sempre os relacionando com as pressões sociais que o período histórico imputa ao
indivíduo. Mozart viveu em período de transição de diferentes modos de produção artística e
sofreu as consequências de escolher não se submeter aos ditames da sociedade de corte num
momento em que a posição do artista autônomo ainda era muito frágil. Parece óbvio
compreender uma trajetória profissional levando em consideração o modo como se organiza
socialmente a produção para a qual esse trabalhador se dedica. Mas quando falamos da
produção artística, essa relação tão direta entre trabalhador e modo de produção tende a tornar-
se opaca e pouco visível. Para Elias, ao contrário da literatura alemã no século XVIII que contou
para seu desenvolvimento com uma classe média que lesse em alemão, a música no momento
histórico de Mozart foi decisivamente influenciada pelo gosto cortesão. Segundo o autor:

O fato de Mozart depender materialmente da aristocracia de corte, quando ele


já tinha se constituído como artista autônomo que primariamente buscava
seguir o fluxo de sua própria imaginação e os ditames de sua própria
consciência artística, foi a principal razão de sua tragédia. (idem, p136).

A tragédia de Mozart fora a tragédia de muitos outros e ainda é a nossa atualmente. Ter
anseios que fogem ao modo como a estrutura produtiva da arte é organizada em sua sociedade
é um grande desafio ao artista. Ser patrocinado, ter um nobre que o financie, ou atualmente
discutir temas que as empresas se interessem em vincular seu nome, ou ter algum “ator famoso”
no elenco que justifique aquele patrocínio, podem ser consideradas as limitações de seu tempo
para o artista, mas de outro modo, também podem ser consideradas suas formas de viabilização.
A relação entre o trabalho artístico e suas formas de financiamento, remuneração e organização
da estrutura produtiva dizem respeito ao modo de organização da sociedade. Há diversas
discussões que tentam explicar a complexidade dos processos que envolvem a relação entre
arte e valor econômico. Alguns teóricos pensam a arte como anti-sistêmica, o que faria com
que o sistema político-econômico tentasse destruir as diversas formas de arte revolucionárias,
vanguardistas ou apenas reflexivas, incentivando apenas o entretenimento esvaziado de crítica,
que opere como um sedativo para a sociedade. Outras correntes teóricas veem que os gostos,
inclusive os gostos artísticos são vinculados à cultura de cada grupo econômico e que artistas
que satisfazem os gostos dos grupos dominantes receberão sempre muitos recursos financeiros
para seus trabalhos, enquanto os artistas que trabalham com cultura popular terão grandes
128
dificuldades para sobreviverem da sua arte. Atravessando tudo isso tem a relação entre mídia e
consumo, que se apropria da arte na criação de imagens vendáveis.

Não buscamos aqui definir o que é arte e o que é entretenimento, estabelecendo


fronteiras entre esses produtos e entre os profissionais que se dedicam a eles. O que
apresentamos enquanto discussão para esse item está mais atrelado a uma visão dos mundos
artísticos como redes de profissionais que trabalham a partir de determinado modo de produção,
e que as formas de organização desses modos de produção trazem implicações para as escolhas
individuais refletidas nas trajetórias. Nesse sentido, buscamos compreender como esses
indivíduos entrevistados na pesquisa pensam seu campo de possibilidades em relação às
condições de trabalho, nesse caso, vinculadas à possibilidade ou não de remuneração pelo seu
trabalho. Quando Arthur diz que gostaria de poder fazer mais teatro, mas que se dedica à
dublagem por receber uma remuneração maior, ou quando Edgar diz que seus antigos alunos
ganham mais como operadores de luz ou som no teatro do que ele como ator, estamos
evidenciando como esses indivíduos elaboram suas possibilidades de escolhas no interior desse
campo de trabalho.

Em 2014 no Brasil, das 67 milhões de casas existentes no país, 65,1 milhões – ou seja,
97,1% - tinham pelo menos um aparelho de televisão, segundo dados da PNAD (IBGE). Em
2016, a segunda emissora de maior audiência do país gastou cerca 650 mil reais por capítulo
em uma de suas novelas e entre 2013 e 2014 a emissora de maior audiência no país admitiu ter
gasto na realização de uma de suas novelas cerca de 800 mil reais por capítulo em uma de suas
novelas. A teledramaturgia nas emissoras abertas (com o sinal transmitido gratuitamente para
os televisores do país) tem como produto principal as novelas. Essas novelas veiculam de
segunda a sexta ou de segunda a sábado, dependendo da emissora e tem em média de 150 a 200
capítulos (mas esse número varia muito de acordo com o sucesso ou fracasso que o produto tem
com o público, podendo ser reduzida ou ampliada). Esses capítulos têm em média 40 minutos,
com intervalos comerciais. Isso significa que a televisão, tanto em termos de quantidade de
público e consequentemente possibilidade de fama, quanto em termos de concentração dos
recursos financeiros, é um o campo mais rentável para os atores. Enquanto a maioria dos atores
não famosos recebem usualmente cerca de um dígito de milhar de reais por comercial
publicitário, atores famosos recebem no mínimo dois dígitos de milhar e chegam à casa dos
milhões de reais por um comercial. Nesse sentido, por mais que o prestígio artístico entre os
pares atores e entre os críticos de arte esteja relacionado aos trabalhos no teatro e por vezes no
cinema, grande parte dos recursos que financiam a profissão estão ligadas ao maior locus de

129
visibilidade, que é a televisão, principalmente nas emissoras de tv aberta, que é onde se
concentra grande parte dos recursos publicitários do país.

Mas para conseguir uma colocação como ator nas emissoras televisivas há um percurso
a ser percorrido que nem sempre é nítido sobre os passos a serem dados, e nesse ponto voltamos
ao sistema do estrelato e a atribuição da sorte como elemento desencadeador. A televisão
funciona no Brasil como o cinema para os norte-americanos. É o lugar por excelência do
estrelato na nossa sociedade. Tanto é assim que o futebol, outro campo de trabalho que lida
com o estrelato, detêm partes consideráveis da programação diária das emissoras televisivas
que abordam não apenas as “notícias” de jogos, mas comentários mais detidos sobre
desempenhos, relações entre jogadores e técnicos, histórias de vida de jogadores que se
destacam, depoimentos de fãs e familiares e narrativas curiosas ou engraçadas sobre o jeito de
cada jogador. A fama desses esportistas é tecida dia a dia durante a programação televisiva.
Disso decorre a apropriação dessas “imagens” pelo mercado publicitário, que é quem alimenta
financeiramente as emissoras de televisão.

Durante a pesquisa de mestrado trabalhei com entrevistas de aspirantes a atores de


televisão para observar justamente qual a visão que eles tinham sobre a possível entrada na
carreira de ator de televisão. Quais eram os passos necessários a serem dados a fim de conseguir
essa inserção e sua permanência naquele campo profissional e como esses indivíduos
conformavam seu estilo de vida segundo essa ideia que tinham sobre o acesso a esse campo
profissional foi o principal eixo da pesquisa. Um dos entrevistados da atual pesquisa falou sobre
esse tema quando contou sobre uma pergunta enviada a ele por e-mail por uma jovem atriz:

Tinha um e-mail desse tamanho de uma pessoa que eu nem conheço, disse que
conhece um aluno meu. Ela estava desesperada. Veio do interior de Minas,
ela fez... um curso de cinema e televisão, agora tem o DRT. Ela tá desesperada
porque os produtores não estão batendo na porta dela (riso). Então, eu disse
“Olha, primeiro esquece televisão ou cinema... porque...”, não, eu não falei
esquece, porque infelizmente é só televisão e cinema que... que a gente ganha
dinheiro, no teatro não ganha dinheiro. Mas se você quer uma carreira, você
tem que ter uma base no teatro. Tem que ter. Eu conheço centenas de alunos
que fizeram uma novela e pronto, só! Então, o diretor de elenco lá na emissora
x quer saber que a pessoas existe fora da emissora x. Tem que existir fora da
emissora x, tem que ter uma idoneidade profissional que não depende da
emissora x. Porque as pessoas não querem pessoas que dependem delas. Elas
querem pessoas que elas precisam, não pessoas que precisam delas. Então, eu
disse “Você tem que fazer teatro. Tem que fazer teatro. Tem que fazer. Então,
você vai estar vivendo seu sonho, vai estar fazendo teatro”. Eu disse “Na
verdade, as pessoas fazem teatro não pra... fama ou dinheiro. Eles fazem
porque eles não conseguiram fazer outra coisa”. É verdade! Então, neste
nível... não tem nada pra reclamar. (Marcos, 68 anos).

130
Esse conselho de Marcos à jovem atriz que queria uma oportunidade de trabalho na
televisão é uma forma possível de enxergar o sistema produtivo. Considerar que a empresa
queira o profissional autônomo pelo produto que ele é capaz de realizar enquanto autônomo,
para aí sim, contratá-lo para a sua linha de produção. Ocorre que dentre os modos possíveis de
realizar o trabalho do ator de forma autônoma, o teatro é a mais possível. Filmes de baixo
orçamento, normalmente curta-metragem, também são uma alternativa, mas que além de
envolverem muitos profissionais para sua realização, não tem o mesmo status artístico do que
uma peça teatral. Por outro lado, há muitos atores que dedicam sua vida ao teatro e nem sempre
são chamados para trabalhar na televisão, principalmente nos papéis de maior destaque. Nesse
sentido, o conselho tem uma lógica consistente no que concerne ao reconhecimento que o ator
pode ter na sua trajetória enquanto artista autônomo, mas não resolve totalmente a equação para
a jovem atriz. Quando Marcos diz “Você vai estar vivendo o seu sonho, vai estar fazendo
teatro”, ele pressupõe que o sonho dela é trabalhar como atriz, sendo que o sonho pode ser
trabalhar como atriz na televisão. A despeito das questões morais que possam envolver a busca
pela fama, no Brasil, ser ator que trabalhe na televisão pode representar para o profissional
estabilidade financeira e melhores condições de trabalho como – dependendo da emissora – ter
carteira de trabalho assinada, assistência médica, motorista para o trabalho e um salario que
possibilite certo conforto. Por outro lado, quando ele diz sobre seus alunos que fizeram um
papel na televisão depois nunca mais trabalharam nesse veículo, ele alerta para o que discutimos
a respeito dos vips. Do mesmo jeito que a sorte escolhe um para acessar a fama, pode escolher
outro no momento seguinte e esquecer do anterior. Por isso, quando ele fala em existir fora das
emissoras televisivas, ele está se referindo a um tipo de constituição da trajetória que independe
da empresa. É uma forma de relações de trabalho que o trabalhador teve que se adequar a
desenvolver no atual capitalismo: o profissional precisa existir enquanto profissional para além
da empresa que ele trabalha. Nas palavras de Richard Sennett, o novo capitalismo idealiza uma
individualidade que no interior das condições dadas é capaz de prosperar “Essa pessoa
idealizada foge de toda forma de dependência, não se prende aos outros” (2008. p.48). Se antes
estava em jogo a ideologia de vestir a camisa da empresa, agora as empresas preferem os
profissionais que não se apeguem aos seus cargos e nem à própria empresa, que não criem
expectativas quanto ao futuro no interior da corporação, que sejam versáteis e conhecidos pelas
suas capacidades para além de estarem ou não contratados.

131
Em outro trecho da entrevista Marcos conta sobre a diferença entre as produções teatrais
que contam com poucos recursos financeiros para existir e as que contam com grandes
possibilidades de patrocínio:

- Em termos de produção... porque as pessoas reclamam muito sobre


produção. Eu acho que as pessoas... como realizar seus projetos... eu acho
que... tem uma dificuldade. Tem uma dificuldade. A última peça que eu dirigi
foi em 2010. Então, são 5 anos né? Eu não tenho projeto no horizonte. Mas
também eu acho que essa... eu vejo muito desequilíbrio entre as coisas. Um
musical podia ter (pausa) 500 mil de orçamento. O Violinista no Telhado era
8 milhões, o orçamento.
- Nossa.
- E a gente fez a peça em 2010 por (pausa longa) 20 mil! Então, eu acho que
essa questão tem que ser... não é pra dizer que não tem dinheiro pra fazer as
coisas, a questão é... eu não sei como verbalizar esse pensamento. Qual a
diferença entre uma peça que é 8 milhões e uma que é 20 mil? (Pausa) Tem
uma discrepância enorme entre essas duas visões do que é o teatro.
- É.
- Teatro você pode fazer com muito pouco. (Pausa). Mas também, se a gente
tivesse 100 mil ao invés de 20 mil teria sido mais confortável. Eu não ganhei
também, os atores não ganharam, então a gente fez sem ganhar. Teria sido
bom ter um salário. (riso).
- Sim.
- Fiz uma peça com 40 mil que a gente ganhou, ganhei um cachê bom. Então,
não tem muita diferença. Uma era 40 mil, a outra era 20. 40 mil a gente
ganhou. (Pausa longa) Então, obviamente a gente não faz esse trabalho pela...
ninguém faz teatro pela fama ou pelo dinheiro. Porque a gente faz o que tem
que fazer. (Marcos, 68 anos).

Marcos aponta para a necessidade de fazer teatro. Segundo ele essa necessidade não se
dá pela fama nem pelo dinheiro, apesar de apontar para a atriz no trecho anterior que este pode
ser um caminho que leve à fama. Mas, segundo sua visão nesse trecho, e de acordo com a
afirmação no trecho anterior em que ele diz “Então, você vai estar vivendo seu sonho, vai estar
fazendo teatro”, o teatro é a possibilidade que o ator tem de atuar sem depender do sistema de
estrelato. Mas ao trabalhar para essa arte, seria bom – como Marcos apresenta – que o artista
recebesse algum valor financeiro pelo seu trabalho. Sua descrição sobre o processo da peça de
2010 em que ele como diretor e os atores não receberam nada pela peça nos faz pensar: o que
levaria um trabalhador a trabalhar sem receber nada? Então, nesses trechos ele nos explica:
“ninguém faz teatro pela fama ou pelo dinheiro. Porque a gente faz o que tem que fazer”, ou
“Na verdade, as pessoas fazem teatro não pra... fama ou dinheiro. Eles fazem porque eles não
conseguiram fazer outra coisa”. Essa necessidade que leva Marcos a fazer teatro, mesmo sem
a existência de remuneração, diz respeito aos anseios primordiais que Elias menciona para
compreender a biografia de Mozart. Trata-se da necessidade de satisfazer um desejo da ordem

132
de sua realização enquanto artista. Fazer teatro para alguns significa alimentar sua identidade
primordial: ser artista. Nesses casos, muitos indivíduos não veem como uma escolha, fazer arte
está na ordem do “ter que” para sentir-se vivo. Se sua arte é reconhecida, remunerada, aclamada,
isso já são desejos de outras ordens. Mas para Marcos, “viver o sonho” é fazer teatro.

Na sua fala há também uma crítica com relação ao patrocínio dos projetos artísticos no
país. Se uma peça consegue ser patrocinada em 8 milhões e outra consegue apenas um
patrocínio de 20 mil, segundo ele há algo de errado que coloca essas visões sobre o que seja o
teatro em universos tão distintos. Segundo ele, se ao invés de 20 mil a peça tivesse 40 mil de
patrocínio, como uma outra que ele participou, eles teriam conseguido ser pagos. Essa
discrepância entre os valores de patrocínio diz respeito a diferentes formas de negócios, há
produtoras e companhias que fazem teatro de forma artesanal, outras de modo industrial e todas
elas coexistem no mesmo campo da arte brasileira. Além dos tipos de produção, está presente
nessas distinções a participação de atores famosos e atores não famosos. Durante a captação de
recursos com empresas é muito mais possível consegui-los se há atores famosos no elenco, pelo
capital que a imagem deles associada à marca, mesmo que através do espetáculo, pode render
à empresa. Nesse sentido, percebemos que a lógica do estrelato afeta não apenas os atores que
querem se dedicar ao trabalho em televisão, mas toda a classe de atores que de uma forma ou
de outra são implicados nesse sistema, seja para receber os louros da fama, seja para carregar
os espinhos do anonimato.

Como Elias afirma, “Para se compreender alguém, é preciso conhecer os anseios


primordiais que este deseja satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas dependendo
da medida em que elas conseguem realizar tais aspirações”. Para Marcos, no sentido de
satisfazer um anseio primordial, realizar uma peça de teatro mesmo que sem recursos é de
fundamental importância. Talvez fosse isso que ele desejasse comunicar à jovem atriz em sua
resposta ao e-mail dela. Talvez “fazer teatro” a leve ou não para o trabalho na televisão que ela
aspira, mas ele identifica que desse modo ela já estará vivendo o seu sonho de trabalhar como
atriz, mesmo que em outro campo. Ele aproximou a expectativa da atriz com o que ele
compreende enquanto desejo primordial para si que é: fazer arte porque tem que fazer, porque
não consegue fazer outra coisa. Ou seja, o teatro está para dar sentido à sua existência mais do
que pela necessidade de obter remuneração pelo seu trabalho. Como ele diz, seria ótimo receber,
ter um salario, mas se não tem, ele fará mesmo assim, porque trabalhar com arte no teatro está
na dimensão de dar sentido à sua existência.

133
Outro entrevistado apresentou uma ideia semelhante sobre o trabalho em teatro. Além
disso, ele expos sua concepção acerca do que ele considera ser o futuro do teatro com base
nessas ideias:

- O que é arte pra você?


- Pra mim assim, é quando eu saio transformado. Porque de tudo isso o que
vale, o que vale, vale mesmo é o que fazer com isso tudo que eu vivencio na
minha profissão pra minha vida né? É... se não fosse tudo isso, eu teria pirado.
Se eu não tivesse esse espaço de criação, esse espaço que não tem rotina, esse
espaço que eu posso expressar opinião, eu teria pirado... mesmo! Então, isso
é necessário, mais do que tudo, cada vez mais. Você fala assim “E aí, quando
não tem?”. Quando não tem eu adoeço. Eu fico triste. Mas não é só porque eu
não tenho trabalho, porque a grana falta, ou porque... é porque é minha
substancia, é minha... é necessário para mim! Então, a minha profissão é... ela
me amadurece, ela me trouxe coisas lindas que eu não podia imaginar, pessoas
que eu conheci, lugares que eu fui. Claro que ele traz uma ascensão social,
óbvia. Mas, principalmente o que ela abriu pra mim do que é o mundo. Te traz
uma coisa mais humanista, de compreensão do ser humano, das nuances... né?
Eu era muito rígido comigo, quando eu era muito novo. Minha poesia hoje eu
leio e falo “caraca”. É... ela me deu leveza, porque eu mantenho o lúdico na
minha vida, eu mantenho a criança, eu mantenho... um olhar diferente, um
olhar que eu posso... ter com a vida. E se é... cada vez é mais difícil exercer
esse oficio, por uma série de razões, no Brasil. Mas eu acho que a gente vai
caminhar para um tipo de coisa muito interessante, que eu conversei isso com
outro ator até. Que é um... um teatro de performance. Teatro de ator. Que você
vai buscar coisas pra você exercer o ator que há em você. Então, nisso pode
vir muita coisa bacana, né? Porque você vai ver gente no palco com
necessidade de estar no palco. Expressando sua forma de arte, até de uma
forma mais livre. O teatro mediano que a gente conhece e que faz, ele tende a
desaparecer. Você vai ter os musicais, você vai ter coisas patrocinadas, grupos
e algumas experiências. Mas esse teatro médio, ele tá muito difícil de ser
produzido. Fora o fato de que as pessoas descobriram o stand-up 60 anos
depois, que não é teatro, é outra coisa. E... num momento de crise de país
fica... vira supérfluo o teatro principalmente. E ele deixou de ser reflexivo, é
um teatro só de entretenimento. É... então através da performance o teatro vai
ser mais reflexivo, vai ser mais... acho que vem uma coisa interessante. (Levy,
54 anos).

Levy afirma que “teria pirado” se não fosse o trabalho como ator, que ele define
enquanto um espaço de criação, sem rotina e onde é possível expressar sua opinião. Quando ele
coloca, através de uma fala atribuída ao interlocutor, a possibilidade de não ter esse trabalho,
ele diz que adoece e fica triste. Nesse sentido, as dimensões que ele apresenta como sendo o
trabalho com arte são os desejos primordiais que ele aspira satisfazer, os elementos que dão
sentido à sua existência – tanto que a decadência física é colocada como consequência dessa
ausência. Levy falou sobre a tristeza e doença de forma não tão hipotética assim. Ele é
possivelmente o ator mais famoso dentre os entrevistados, apesar de não termos uma forma de
mesurar o nível de fama dos atores, ele é o ator que mais fez novelas em papéis principais dentre

134
os entrevistados dessa pesquisa. Sua fala é atravessada pela experiência de já ter vivido fases
de escassez de trabalhos em televisão, apesar de ter diversificado e ser também diretor de teatro
e professor. A entrevista ocorreu no período em que ele estava contratado de uma emissora de
televisão fazendo uma novela.

A possibilidade que ele coloca como sendo o futuro do teatro é justamente um teatro
“sustentado” pela necessidade do ator de estar em cena. O que ele chamou de “teatro do ator”,
existe menos para a diversão ou entretenimento do público e mais para a necessidade do próprio
artista em comunicar sua arte. Segundo ele seria um teatro performático e mais reflexivo. Nesse
sentido, esse “teatro do ator” questionaria não apenas o modo como a produção teatral está
estruturada hoje no Brasil, mas também questionaria o próprio texto teatral e o formato de
executá-lo. É curioso que quando descrevi meu processo pessoal de dúvidas sobre a minha
própria arte, contei que a saída que encontrei foi justamente autorar uma peça performática,
produzi-la e encená-la. E foi exatamente esse processo de construção e execução que trouxe um
novo valor para minha identidade enquanto atriz e alimentou um sentido existencial. A fala de
Marcos e de Levy apontam para essa necessidade do teatro de forma semelhante, apesar de
viverem realidades distintas em termos de posições no sistema do estrelado. Ocorre que Levy,
pela sua própria experiência, sabe que qualquer título que queiram lhe atribuir durante os
momentos de fama não é vitalício. Ele estabelece o seu chão no fazer artístico que não
necessariamente depende das emissoras de televisão, porque ele sabe que caso falte trabalho,
ele se sentirá esvaziado de sentido existencial. O futuro do teatro para Levy está relacionado ao
próprio sentido da arte, quem mais sente sua necessidade seria quem tem as condições
existenciais de leva-la adiante.

Para os entrevistados que consideram o teatro o lugar por excelência da expressão


artística do ator, quando estão diante de produções não remuneradas há uma série de elementos
levados em consideração para o aceite ou a recusa. Como mostramos pode haver um momento
em que o profissional decida não mais trabalhar de graça. Mas isso não é linear, se passar um
longo período sem fazer teatro e a próxima proposta que lhe chegue for sem remuneração, é
possível que haja um aceite devido a “necessidade” em fazê-lo. Por outro lado, como no caso
de Arthur, há os que decidem não se dedicar mais ao teatro e priorizar “pagar as contas”. O que
desejamos apontar com a discussão desse item é que a possibilidade de trabalhar sem nenhuma
remuneração financeira é colocada por parte dos atores entrevistados como as piores condições
de trabalho já vivenciadas. Nesse sentido, exploramos as causas que podem levar os atores ao
aceite ou a recusa desses trabalhos e as pressões sociais que envolvem essa escolha.

135
2.3 Laços de Família: o tempo das relações

Sexo verbal não faz meu estilo


Palavras são erros e os erros são seus
Não quero lembrar que eu erro também
Um dia pretendo tentar descobrir
Porque é mais forte quem sabe mentir
Não quero lembrar que eu minto também
Eu sei
Eu sei
Feche a porta do seu quarto
Porque se toca o telefone pode ser alguém
Com quem você quer falar por horas e horas e horas
A noite acabou, talvez tenhamos que fugir sem você
Mas não, não vá agora, quero honras e promessas
Lembranças e histórias
Somos pássaro novo longe do ninho
Eu sei
Eu sei
(Eu Sei. Renato Russo)

Cena 4

FADE IN:

INT. NOITE – CORREDORES DO HOTEL

CRIS e BIA andam apressadamente em direção ao elevador. Bia toca


o botão para chamar o elevador.

BIA
Tá tudo pronto lá, eles só estão esperando
você.

CRIS
Tá certo, mas você viu que eu estava pela
maquiagem.

Elas entram no elevador.


CORTA PARA
INT. NOITE - ELEVADOR

Carol se olha no espelho e ajeita detalhes do cabelo.

BIA
É, mas é que eles tão me cobrando você e
ela tinha falado pelo rádio que já tinha
terminado a maquiagem. Então parece que sou

136
eu que me perdi pelo hotel e não te entrego
no set. Eita elevador lento!

CRIS
Tranquilo, já estamos chegando. Quando
chegarmos eu falo que estávamos pela make
ainda, por isso atrasamos.

CORTA PARA
INT. NOITE – SUITE NA COBERTURA DO HOTEL

Cris e Bia entram apressadas na suíte do hotel. Assim que


atravessam a porta param e começam a andar devagar. Pulam fios
e desviam dos refletores.

VITOR (Platô)
Olha a atriz no set! Cuidado!

HENRIQUE (Diretor)
Oi, você está aqui? Nós já estamos
terminando de arrumar a luz tá ok? Ô Bia,
vê um lugar pra Cris esperar aqui que não
atrapalhe o pessoal.

CORTA PARA
EXT. NOITE – TERRAÇO NA COBERTURA DO HOTEL

Cris cumprimenta a distância a equipe. Estão ali cerca de 10


homens e uma mulher. Bia leva Cris até uma cadeira vazia no
espaço do video assist no terraço da suíte e Cris se senta para
esperar. Henrique puxa uma cadeira e senta-se ao seu lado.

HENRIQUE
Bom, é a última cena do dia porque a gente
precisava esperar que a luz caísse
totalmente. E só agora que caiu que podemos
fazer os últimos ajustes na montagem da
luz. Não sei se você entendeu, mas a gente
mudou um pouco o roteiro e será uma
externa. Não muda nada, o que você ia fazer
dentro do quarto vai fazer aqui nesse
terraço. Vamos aproveitar essa vista do Rio
de Janeiro, entendeu? Bom, você acabou de
levar um fora, tá mal pra caramba, fudida,
sua família tá mal também, não restou mais
nada pra vc. Você bebeu pra caramba, tomou
uns remédios. Vamos fazer uma opção com
cigarro e uma sem, pra ver no vídeo qual
fica melhor, tá certo?

CRIS

137
Tá sim!

HENRIQUE
A Bia falou que você fuma, tá tranquilo pra
você?

CRIS
Eu não fumo, mas eu sei fumar. Tá tranquilo
sim.

HENRIQUE
Então tá ótimo. É uma cena que fecha o
episódio, então a gente vai fazer a mais para
ter na edição, caso precise. Mas a priori
ela é curta. Vamos fazer sem captação de
áudio, até porque não ia dar pra usar com
essa ventania toda, e você não é maluca de
ficar falando sozinha. Vai ter uma
musiquinha de fundo na cena, entendeu? Nem
ambiência acho que não vai precisar. Então,
se for preciso, vou te passando as instruções
no meio da cena e você continua, não para.

VITOR
Chefe, iluminação tá ok!

HENRIQUE
Opa! Vamos lá. Agora eles precisam
enquadrar com você na marca.

CRIS
Vamos!

HENRIQUE
Você vai sair de dentro do quarto e vem até
essa mureta com a bebida e o cigarro na mão.
Você para aqui. Já fica parada aí na marca
para eles ajustarem o enquadramento enquanto
eu falo o resto. Aí você vai olhar naquela
direção e chorar. Fica aí pensando e chorando
que a gente vai fazer umas opções. Primeiro
a gente vai fazer esse aberto da chegada,
então não precisa chorar muito pra não
precisar refazer a maquiagem. Aí depois no
fechado você dá tudo. Aí chora pra valer
mesmo, sua vida tá uma merda. Vamos fazer?

EDUARDO (Foquista)
Ela pode ficar só ali na marca inicial pra
marcar o foco?

138
Cris vai até a marca inicial na passagem do quarto para o
terraço. Ela fecha os olhos e começa a respirar profundamente.

CORTA PARA
EXT. NOITE – TERRAÇO NA COBERTURA DO HOTEL

Luzes da cidade brilham ao longe. Foco alterna para o rosto de


Cris. Ela chora e fuma.

HENRIQUE
Corta! Valeu. Fim do dia pessoal!

Bia vai até Cris com uma caixa de lenços de papel.

BIA
Você quer um lenço.

CRIS
Eu aceito, obrigada.

Cris continua chorando enquanto enxuga o rosto. Respira


profundamente. Começa a parar de chorar.

BIA
Então, vamos lá pro camarim, que a gente
tem que entregar o quarto correndo. Já
passamos do horário combinado aqui com o
hotel.

Cris sorri e começa a caminhar em direção a porta enquanto se


despede da equipe de um modo geral. Bia segue atrás dela
indicando certa pressa.
CORTA PARA

INT. NOITE – ELEVADOR DO HOTEL

Cris, já sem maquiagem e com sua própria roupa entra no elevador.


Henrique já está nele e sorri para ela.

CRIS
E aí Henrique, o que você está achando? Se
tiver alguma coisa que eu possa melhorar
você me fala.

HENRIQUE
É, não tá bom não. Tá uma merda!

Cris sorri sem graça.

CRIS

139
Poxa Henrique, você tá brincando ou tá
falando sério? Se for brincadeira não faz
isso comigo porque eu sou virginiana. Desse
jeito eu não durmo.

HENRIQUE
Eu não estou brincando. Tô falando sério! Tá
uma merda, mas nada que uma boa edição e uma
pós não resolvam depois. Mas são os primeiros
dias, depois acho que você melhora um
pouco... pelo menos eu espero!

Porta do elevador se abre.

CRIS
Tá certo. Boa noite Henrique!

Cris sai do elevador e caminha até o carro.


CAM APROX

Cris para ao lado do carro pensativa e com a respiração


acelerada. Seus olhos estão marejados.

FADE OUT

***

Durante a realização das entrevistas uma resposta sobre condições de trabalho que
apareceu de forma recorrente entre os entrevistados me surpreendeu. Tratava-se das relações
interpessoais no ambiente de trabalho, principalmente com os diretores, mas não apenas. Além
das relações entre os indivíduos no trabalho, o tempo para a preparação também foi muito
elencado como importante para as condições de trabalho. Ocorre que por diversas vezes que o
elemento tempo apareceu, sua intersecção com a atenção que o diretor conferia ou não à cena
desse ator também foi mencionada. Disso decorre que foi difícil a separação entre os temas
tempo e relações interpessoais em diferentes itens. Por isso, decidimos trata-los em conjunto
nesse item, começando justamente pela relação que essas duas categorias podem ter.

A cena trazida para iniciar a discussão, logo de início complexifica uma compreensão
inicial que tive a partir das entrevistas: se o diretor dedica tempo para preparar a sua cena, é
porque ele gosta de você, ou pelo menos te tratará bem. Depois, percebi que essa equação não
é linear. Na cena construída acima, o diretor dedica bastante tempo para trabalhar a cena com
a atriz, mas fora do set age com desprezo com ela. Muitas falas dos entrevistados somavam as
duas coisas: pouco tempo e atenção do diretor para trabalhar a cena com ele/ela e desprezo por

140
parte do diretor na relação interpessoal. A cena mostra que essas atitudes podem aparecer
juntas, mas também podem aparecer separadamente. Pode acontecer de o diretor ter que
trabalhar com alguém do elenco que ele não goste do trabalho, porque sua primeira ou segunda
opções não estavam disponíveis para a data do trabalho, não aceitaram o cachê ou vários outros
motivos. Esse pode ser um dos motivos para que uma cena como a escrita acima ocorra na
realidade. Em termos de relações de poder, uma interação profissional desse tipo coloca em
bases instáveis o trabalho da atriz. Todas as suas cenas serão executadas tendo em vista que o
melhor que ela faça, nunca será bom para esse diretor. O que daí pode acarretar não apenas sua
eliminação desse projeto, mas também “queimar-se” no meio da produção televisiva e dificultar
sua entrada em outros projetos futuros.

A forma de capitalismo que vivenciamos atualmente espera do trabalhador um alto grau


de independência e desapego com relação à empresa que o contrata. Ocorre que essa não
dependência com relação à empresa leva o ator a depender mais da sua rede de contatos para
que os trabalhos surjam. Segundo Richard Sennett:

Seria equivocado equiparar o medo da dependência a puro e simples


individualismo. No mundo dos negócios é necessária uma densa rede de
contatos sociais para prosperar; um dos motivos pelos quais as cidades globais
vão tomando forma é precisamente o fato de proporcionarem um terreno local
para a formação dessas redes de contatos pessoais. As pessoas que estão
ligadas a organizações apenas pelo computador, trabalhando em casa ou
atuando em campo por conta própria, tendem a ficar marginalizadas, perdendo
os contatos informais.
O medo da dependência fala da preocupação com a perda do autocontrole, e,
em termos mais psicológicos, do sentimento de vergonha por submeter-se aos
outros. Uma das grandes ironias do modelo da nova economia é que, ao livra-
se da jaula de ferro, ele serviu apenas para reinstituir esses traumas sociais e
emocionais numa nova forma institucional. (SENNETT. 2008. p.48/9).

A relação entre atores e diretores pode ser compreendida nesse contexto apresentado
por Sennett em que as redes de contatos pessoais são de grande importância para que o ator
consiga futuros trabalhos – sendo importante para isso que o diretor goste do trabalho do ator e
se dedique a interagir com ele no sentido de dar oportunidade para que um contato seja
estabelecido -, mas por outro lado que coloca o ator numa posição delicada de não depender da
empresa, mas depender do diretor para conseguir futuros trabalhos. Esse “sentimento de
vergonha por submeter-se aos outros” é uma constante na trajetória de atores que não tem
estabelecido um alto fluxo de convites para trabalhar. A dependência de diretores, autores e
produtores de elenco deixa o ator numa posição em que uma ausência de “Bom dia” por parte
daqueles é motivo para preocupações e desgastes emocionais. No caso de colegas atores a

141
importância do “Bom dia” depende do grau de proximidade que este tem com os que estão
acima na hierarquia, ou da possibilidade que ele tem de te atrapalhar em cena. Nesse sentido, é
importante notar que o produto do trabalho de atores e diretores é a cena, seja no palco ou no
set. Mas a teia de relações que envolve a fabricação desse produto interfere de modo direto no
seu resultado. Por isso, muitas vezes as “boas relações” são evocadas nas falas dos entrevistados
não apenas em referencia aos possíveis convites de futuros trabalhos, mas também no sentido
de garantir uma qualidade para o produto do trabalho, ou seja, uma “boa cena”.

Na cena escrita acima também é possível perceber as diferentes ordens de pressão com
as quais os diferentes profissionais lidam num set de filmagem. A assistente de direção que
precisa organizar tudo no tempo que exigem dela, a maquiadora que mentiu no rádio sobre não
estar atrasada com o preparo da atriz, o platô que está atento a tudo o que acontece no set, o
fotografo e os câmeras com a luz e os enquadramentos, o foquista com as marcas da atriz para
deixar o foco preparado e o diretor que através da atriz busca a intenção correta para a cena. A
atriz, por sua vez deve concentrar-se nas marcas de posições que devem ser executadas no
tempo certo, para não sair do enquadramento e do foco marcados, e realizar a ação preenchida
com a emoção indicada pelo diretor. Ao realizar tanto as marcações quanto as ações preenchidas
das emoções combinadas com o diretor, a atriz esperava ter realizado bem o seu trabalho. Mas
há elementos de gosto quando se trabalha com estética que fazem com que atores que cumprem
tais requisitos básicos agradem ou não. Nessa cena, a atriz não atende ao gosto do diretor. Além
disso, compreender quais são as emoções indicadas pelo diretor é sempre um desafio. O choro
pedido por ele é o resultado físico de um pensamento, no caso “o cara que eu quero não me
quer, minha família está cheia de problemas e minha vida é uma merda”. Cada indivíduo pode
pensar essas coisas e reagir – com choro – de um modo diferente. Um choro de indignação
porque no fundo a pessoa acha que deveria estar vivendo uma vida melhor do que aquela, um
choro de desistência porque tudo isso que está dando errado é fruto de uma vida toda errada,
um choro de tristeza com esperança porque apesar de tudo isso espera das a volta por cima,
enfim, há muitos modos de se realizar a mesma cena, com o mesmo ato de chorar. Compreender
e executar o tipo de intenção que o ato emocionado porta para o diretor é um dos grandes
desafios do ator no set.

Para compreendermos as relações num set de filmagem, outro elemento que é


importante destacar é que num projeto de cinema ou televisão todos esses profissionais, exceto
o ator, trabalham juntos de 5 a 6 vezes por semana por 12 horas diárias. Exceto no caso dos
protagonistas ou atores que participam dos núcleos principais de uma série ou novela,

142
dificilmente o ator passará as 12 horas da diária, quase todos os dias da semana no ambiente de
filmagem. Disso implica que a qualidade da rede de relações estabelecida entre os profissionais
que trabalham no set quase nunca é alcançada pelo ator. As reuniões no bar no fim da diária
que antecede a folga – ou no fim de qualquer diária dependendo da galera -, os churrascos na
folga, a vida vivida fora do set entre os trabalhadores dificilmente é compartilhada com atores.
Por isso, filmes, séries e novelas em que equipe e elenco viajam para as filmagens são vistas
como oportunidades ímpares pelos atores no sentido da interação. Além do elemento físico
sobre a não presença constante no set o ator também tem que lidar com a divisão mencionada
anteriormente quando abordamos o sistema do estrelato, sendo visto como um profissional
diferente da equipe. Estabelecendo-se muitas vezes, entre uns e outros, uma fronteira.

Apesar do ideal de coletividade que a formação de ator muitas vezes propõe durante os
cursos de artes cênicas, a prática profissional é muitas vezes solitária. No teatro, apesar das
possíveis brigas e divergências, o tipo de trabalho executado – dependendo do tamanho da
produção – é menos compartimentalizado, o que não apenas possibilita, mas muitas vezes exige
do ator uma disposição para o trabalho coletivo. No cinema e na televisão essa lógica se
transforma e o ator deve estar preparado para essa mudança de modo de trabalho. A lógica
empresarial que institui o modo de produção televisivo, demanda do ator um ethos em que o
valor se concentra mais na individualidade do que na coletividade.

Richard Sennett, no primeiro capítulo de A corrosão do caráter (2012) conta sobre ter
encontrado num aeroporto Rico, filho de um de seus entrevistados numa pesquisa de 25 anos
atrás sobre trabalhadores nos Estados Unidos chamada The Hidden Injuries of Class. Sennett
compara nesse capítulo como Enrico (seu entrevistado de mais e duas décadas atrás) e Rico
(filho de seu entrevistado) veem as relações de trabalho e como o tempo é pensado de modo
diferente por eles. Essa análise pode colaborar para a nossa compreensão sobre as relações num
set de filmagem e sobre como os atores estabelecem seus laços com os demais profissionais.
No período em que Enrico foi entrevistado, sua geração pensava o tempo de modo linear “ano
após ano trabalhando em empregos que raras vezes variavam de um dia para o outro”
(SENNETT, 2012, p.14). Nessa forma de lidar com o tempo, Enrico e sua esposa tinham
conquistas cumulativas, aumentando a poupança e fazendo melhorias na casa. Além de linear,
o tempo era visto como previsível. Sennett diz que Enrico, apesar de ter apenas 40 anos na
ocasião da pesquisa, sabia exatamente quando ia se aposentar e o pecúlio que teria. Segundo o
autor “Tempo é o único recurso que os que estão no fundo da sociedade têm de graça” (idem)
e que para acumular tempo, os trabalhadores como Enrico precisavam de uma estrutura

143
burocrática que racionalizava o uso do tempo. Nessa estrutura, se o trabalhador tivesse
autodisciplina conseguiria acumular. A vida para Enrico tinha sentido numa narrativa linear.
“O faxineiro sentia que se tornava autor de sua vida, e, embora fosse um homem inferior na
escala social, essa narrativa lhe dava um senso de respeito próprio” (idem). Nesse sentido,
podemos perceber através da análise de Sennett que o modo como os trabalhadores se
relacionam com o tempo tem ligação não apenas com as relações de trabalho, mas com uma
forma de organizar e dar sentido para a própria vida.

Uma das motivações de Enrico para o uso disciplinado de seu tempo era o sonho
americano da mobilidade ascendente para os filhos. Graças ao encontro no aeroporto o
pesquisador viu que seu entrevistado obtivera sucesso na empreitada. Mas o modo com o qual
Rico lida com o trabalho é muito diferente do modo como o pai lidava. Para o filho era preciso
manter-se aberto às mudanças e correr riscos. E aqui, nessa análise sobre Rico e o seu trabalho
como consultor tecnológico nos Estados Unidos, as similaridades com os atores estudados
nessa pesquisa se mostram presentes. Sennett conta que “depois da formatura, em quatorze
anos de trabalho, Rico se mudara quatro vezes” (idem, p.17). Nos últimos sete anos morei em
São Paulo, Rio de Janeiro e depois novamente em São Paulo. Quando programava a última
mudança para São Paulo um amigo que trabalha no meio artístico, mas de outra geração que a
minha, atualmente está com 56 anos, me disse que eu não deveria mudar tanto de cidade. Ele
disse que as pessoas não confiam em estabelecer laços com quem está sempre mudando e que
esse era um dos motivos de eu não conseguir amigos para montar uma companhia de teatro ou
fazer amizade com produtores de elenco que pudessem me chamar para trabalhos na tv ou
cinema. Eu respondi que não estava em nenhuma companhia porque estava fazendo o mestrado
e depois o doutorado e que produtores de elenco não ligam para onde você mora, quando
querem você num trabalho, te chamam onde você estiver. Apesar de ter sido reativa ao conselho
dele hoje entendo que há elementos que correspondem à realidade em ambas as posições, ocorre
que os modos de enxergar a realidade para essas duas gerações são distintos. Enquanto estava
morando em São Paulo, fui chamada para fazer um trabalho no Rio de Janeiro como atriz
através de uma agência de atores que sou cadastrada em São Paulo. Morando no Rio de Janeiro,
talvez não tivesse acesso ao teste através do qual consegui esse trabalho. Para realiza-lo morei
9 semanas no Rio de Janeiro com as despesas de hospedagem pagas pela produção e depois
voltei pra São Paulo. Nessa experiência conheci atores que sempre moraram no Rio de Janeiro
e não pensam em sair de lá, mas também conheci atores que se dedicam mais a teatro musical
ou a cinema e apesar de morarem no Rio, passam meses morando em São Paulo dependendo

144
do trabalho. Também conheci atores que passam parte da semana em uma dessas cidades e
parte em outra, dependendo de gravações para tv e cinema ou de temporadas de teatro. E durante
conversas com alguns desses atores percebi que o eixo Rio – São Paulo é visto como quase “um
único lugar” onde os atores devem morar, sem se apegarem demais a um desses lugares,
usufruindo do melhor artisticamente que cada lugar oferece. O perfil de redes sociais desses
atores, como o Instagram, muitas vezes coloca as duas cidades como residência. A escolha de
um desses lugares como um “porto-seguro” para o qual se deve voltar com certa frequência é
mais usual entre os atores que têm filhos e precisam lidar com elementos de rotina que são
próprios da educação infantil na nossa sociedade. Quando percebi a forma com a qual esses
atores com quem trabalhei lidavam com a questão do deslocamento nessas duas cidades,
percebi que aquele amigo tinha uma visão sobre a forma de cultivar laços que não condiziam
com as condições atuais sobre as quais a profissão de ator se assenta. Observei que quando
esses atores, com quem trabalhei durante essas filmagens, se encontram, costumam perguntar
“Onde você está? Onde você está morando?”. “Você está aqui ou está em São Paulo?”. Essas
falas expressam nitidamente a existência de um fluxo de trabalhadores, mesmo que de modo
temporário. O verbo estar passa a ser mais utilizado do que o verbo ser para se referir à
habitação. Além disso, ao ver como os colegas se colocavam nesse fluxo, passei a não temer
tanto estabelecer vínculos de amizades por saber que “vou embora logo”, já que enquanto
horizonte, a possibilidade do retorno é sempre iminente e os laços podem ser mantidos mesmo
que à distância. Depois do fim das gravações no Rio, já reencontrei em São Paulo com colegas
desse projeto que estavam fazendo peças ou filmavam outros projetos na cidade. Uma das
atrizes que viajava toda semana durante as gravações da série ao falar do seu cansaço com as
viagens me disse “É querida, moramos mesmo é na ponte aérea”.

Mas todas essas mudanças podem gerar no indivíduo esse elemento mencionado acima:
o medo de perder o controle sobre as próprias vidas. Segundo Sennett, o medo de Rico estava
diretamente ligado ao controle do tempo. Quando Rico abriu sua própria empresa de consultoria
ele tornou-se mais suscetível ao tempo de seus clientes. Sobre Rico, Sennett diz que “Para
arranjar serviço, tornou-se subserviente aos horários de pessoas que não estão de maneira
alguma obrigadas a lhe corresponder” (idem, p.18). Essa dependência maior da rede de relações
mostra que a liberdade institucional não representa uma liberdade irrestrita. O autor mostra que
quanto menos rígida é a estrutura na qual os trabalhadores se encontram, mais têm que negociar
no interior das relações, já que muita coisa não está definida previamente. Sobre o trabalho de
Rico, o autor diz que

145
O consultor em geral tem de correr de um lado para o outro em resposta aos
mutáveis caprichos ou ideias daqueles que pagam; Rico não tem um papel fixo
que lhe permita dizer aos outros: “É isso que eu faço, é por isso que sou
responsável”. (SENNETT. 2012. p.18).

Tanto a dependência maior das redes de relações quanto a indefinição exata das
atribuições da função do profissional tornam as relações interpessoais de trabalho um campo
de amplas e tênues negociações. A importância de simpatia e antipatias, por exemplo, nesse
contexto é muito maior do que no contexto das instituições mais rígidas. Segundo o autor o
lema do novo capitalismo de que “não há longo prazo” é central para essas novas relações.
Sobre isso ele menciona a fala de um executivo de uma grande empresa que diz sobre o dever
que eles – altos executivos de tecnologia – têm de promover o conceito de que a força de
trabalho é contingente “embora a maioria dos trabalhadores contingentes estejam dentro de
nossas paredes. ‘Empregos’ está sendo substituído por ‘projetos’ e ‘campos de trabalho’”
(idem, p.22). A ideia de que não há longo prazo se pauta principalmente pelo o que os “gurus
da administração” chamam de “capital impaciente”, baseado no desejo do rápido retorno. Trata-
se da visão de que o mercado de modo geral é motivado pelo consumo, o que torna tudo mais
dinâmico e suscetível a mudanças. Nesse sentido os contratos, assim como os investimentos
têm prazos menores e empregos temporários passaram a ser os que mais crescem. Sennett diz
que “Uma mudança na moderna estrutura institucional acompanhou o trabalho a curto prazo,
por contrato ou episódico. As empresas buscaram eliminar camadas da burocracia, tornar-se
organizações mais planas e flexíveis” (idem, p.23). Disso decorre que a antiga organização
piramidal passa a ser uma organização em redes. Essas implicações organizacionais que se
ligam ao trabalho a curto prazo é exatamente o que os atores constantemente lidam em seus
trabalhos. As negociações com os demais profissionais são constantes, a dependência da rede
de relações é muito maior do que no antigo formato em que os atores eram contratados por
décadas de uma mesma emissora e as tarefas nem sempre são definidas previamente, como
vimos no item sobre segurança no trabalho. Como Sennett afirma, nesse formato “a rede
redefine constantemente a sua estrutura” (idem, p.23). Essa redefinição constante se dá em ato,
enquanto as relações acontecem. Talvez por isso, o elemento mais mencionado no item
condições de trabalho tenha sido as “boas relações de trabalho”.

Essa discussão sobre essas características e valor das relações de trabalho para o
capitalismo atualmente é de fundamental importância para que o leitor compreenda as falas dos
entrevistados dessa pesquisa quando se referem ao bom convívio no set ou na coxia. As “boas

146
energias” são, na verdade, o terreno necessário para a manutenção da própria existência nesse
sistema que torna o ator tão dependente da rede de relações interpessoais. As diferenças entre
o diretor, o colega ou o amigo podem ser cruciais nesse sistema e saber manejá-lo pode garantir
ao ator o acesso a oportunidades profissionais que de outro modo fossem impossíveis, ou no
mínimo, dificultadas.

Durante a minha pesquisa de mestrado, quando entrevistei profissionais que eram


aspirantes a atores de televisão o termo “panelinha” apareceu de forma recorrente para se referir
aos diretores e produtores de elenco que sempre chamavam os mesmos atores para os trabalhos
que surgiam. Nessa pesquisa de doutorado esse termo quase não apareceu. Ao entrevistar atores
que se dedicam há anos ou décadas à profissão, por mais que não estejam no foco principal do
sistema do estrelato, esses profissionais se veem como parte de alguma rede, mesmo que se
entendam fora de outras. O termo “panelinha” parece ser usado por quem se entende
completamente fora. Nesse sentido, alguns atores da pesquisa atual falaram sobre a “panelinha”
da televisão ou das grandes produções teatrais, mas em nenhuma das entrevistas falou-se sobre
a “panelinha” do teatro de um modo geral. Quando mencionavam essas redes das quais não
tinham acesso os atores eram bem específicos em mencionar qual das redes não estava ao seu
alcance. Por outro lado, sempre se colocaram como parte de alguma, que é o que possibilita a
sua manutenção na profissão de ator.

Ocorre que vista de fora uma “panelinha” parece coesa e sólida, o que vista de dentro
pode revelar complexas tramas e emaranhados que não são nem sólidos nem coesos. Através
das redes sociais e suas postagens diárias conseguimos perceber com mais nitidez quem são os
atores realmente amigos de outros atores, de autores, de diretores e de produtores de elenco que
frequentam suas casas, participam de reuniões familiares, ou pelo menos se encontram
casualmente num restaurante ou café para “matar as saudades” quando não estão trabalhando
juntos. É curioso perceber que é justamente quando não estão trabalhando juntos que isso se
torna nítido. Porque enquanto trabalham juntos, todos parecem amigos de infância. Assim que
comecei a trabalhar em ambiente de sets de filmagem, primeiramente na publicidade pensava
que todos eram muito aigos uns dos outros e que só eu não conhecia ninguém. Depois, ao longo
do tempo, percebi que principalmente na publicidade que nem a equipe é a mesma dia após dia,
que os profissionais desenvolvem certa habilidade para se lembrarem de pessoas com quem
trabalharam apenas por um dia mesmo que seja há anos atrás. Através dessa memória das 12
horas que passaram juntos alguma vez acessam as histórias compartilhadas naquele dia sobre
família, gostos etc. E assim, o clima de intimidade pode ser acessado novamente no caso de um

147
reencontro. Ou seja, aprendi que “Oi, você tá nesse trabalho! Que maravilha! Quanto tempo!”,
pode representar apenas um pensamento “Nossa, lembro que te conheço, não lembro de onde
nem qual o seu nome. Mas vamos lá, vamos trabalhar juntos novamente!”. Isso não quer dizer
falsidade, mas apenas que o indivíduo cria formas para lidar com essas mudanças quase que
diárias.

Sennett diz que o princípio do “não há longo prazo” corrói a confiança a lealdade e o
compromisso mútuo. Ele diz que em geral, as experiências mais profundas de confiança são
mais informais “como quando as pessoas aprendem em quem podem confiar ou com quem
podem contar ao receberem uma tarefa difícil ou impossível. Esses laços sociais levam tempo
para surgir, enraizando-se devagar nas fendas e brechas das instituições” (idem, p.24). Para um
ator que vai fazer um filme publicitário de uma ou duas diárias é fácil saber que, por mais
cordial que sejam as relações no set, ele não fará (ou dificilmente fará) amigos em quem possa
confiar tão rapidamente e que as conversas durante as longas horas de espera para filmar as
suas cenas devem girar mais em torno de assuntos genéricos sobre situações vividas, gostos,
opiniões que não lhe comprometam. Nas novelas gravadas por uma emissora, em que o ator é
contratado da emissora ou trabalha contratado por obra, mas usualmente com a mesma equipe,
as relações podem ser mais facilmente intensificadas e os laços sociais de confiança que Sennett
menciona podem existir. Mas há uma grande faixa de meio termo entre essas duas situações,
que é onde se encontram os entrevistados dessa pesquisa, de atores que fazem participações por
vezes maiores que uma diária, que são contratados por obra mas em emissoras diferentes, que
fazem séries televisivas que não produzidas pelas emissoras e sim por produtoras contratadas
(nesses caso os profissionais envolvidos não são funcionários da emissora e sim da produtora
de audiovisual), os que dublam ocasionalmente, os que fazem teatro ocasionalmente, enfim
todos os casos relacionados à diversificação que tratamos no capítulo anterior. Para esse grupo
de atores é mais tênue perceber as possibilidades ou não do estabelecimento de laços de
confiança. Sobre essa relação entre confiança e institucionalidade Sennett diz:

O esquema do curto prazo das instituições modernas limita o amadurecimento


da confiança informal. Uma violação particularmente flagrante do
compromisso mútuo muitas vezes ocorre quando empresas são vendidas pela
primeira vez. Nas empresas que estão começando, exigem-se longas horas e e
intenso esforço de todos; quando a empresa abre o capital – quer dizer, oferece
ações publicamente negociadas – os fundadores podem vender e pegar o
dinheiro, deixando atrás os empregados de níveis inferiores. Se uma
organização, nova ou velha, opera como uma estrutura de rede flexível,
frouxa, e não com um rígido comando de cima para baixo, a rede também
pode afrouxar os laços sociais. O sociólogo Mark Granovetter diz que as redes
institucionais modernas se caracterizam pela “força dos laços fracos”, com o

148
que quer dizer, em parte, que as formas passageiras de associação são mais
úteis às pessoas que as de longo prazo, e em parte que fortes laços sociais
como lealdade deixaram de ser atraentes. Esses laços fracos se concretizam
no trabalho de equipe, em que a equipe passa de tarefa em tarefa e muda de
pessoal no meio do caminho. (SENNETT. 2012. p.24-5).

Ao mencionar Granovetter e “a força dos laços fracos” o autor possibilita nossa


compreensão desse contexto profissional através do ponto de vista do indivíduo que vivencia
essas relações e não pelo julgamento de base moral que alguém baseado nas relações de longo
prazo pudesse ter. Elementos que poderiam ser considerados como falsidade, no caso do
exemplo colocado sobre uma aparente intimidade que não confere com o cotidiano vivenciado
por aqueles indivíduos, é também uma forma de se proteger dentro desse modelo no qual as
instituições se organizam. Caso o indivíduo insista em estabelecer laços fortes na estrutura de
rede flexível baseada no tempo de curto prazo, terá de arcar com uma série de consequências
que podem advir dessa atitude.

Durante a realização dessa pesquisa presenciei um processo de reorganização produtiva


do setor de teledramaturgia de uma das maiores emissoras televisão do Brasil. No pequeno
prédio em que eu morava no Rio de Janeiro, perto da emissora, parte dos meus vizinhos eram
funcionários dessa emissora. Trabalhavam com produção, engenharia de som e engenharia de
luz. Todos foram demitidos. Eram nossos amigos porque meu companheiro na época era ator
contratado dessa emissora há 9 anos. Outros amigos da mesma empresa que moravam no
mesmo bairro também foram demitidos. Nos 3 anos que morei ali vi todos esses trabalhadores,
alguns casados entre si, saírem da estabilidade de cerca de 15 anos de contratação para o
desemprego. Meu companheiro na época também não teve seu contrato renovado com a
empresa. Alguns tentaram oferecer seu trabalho no mercado de forma autônoma, outros abriram
suas próprias produtoras de audiovisual, outros mudaram de ramo e abriram empresas em outras
áreas voltadas ao serviço, como o setor alimentício e alguns foram contratados pela produtora
que passou a prestar serviços para a emissora na produção de teledramaturgia. Esses últimos
foram os que menos tiveram suas rotinas alteradas. Depois, voltando a morar em São Paulo e
com os trabalhos que passei a realizar como atriz, percebi que entre os atores há quase uma
década os atores identificam essa mudança no sistema de contratações, que antes eram
contratados como funcionários de uma emissora e que atualmente são contratados apenas por
obra. O quadro de atores com contratos contado em anos, e com mais de 5 anos no contrato, é
cada vez mais raro entre as emissoras. As obras terceirizadas pelas emissoras e realizadas pelas
produtoras de audiovisual deixam o ator num fluxo onde tudo é cada vez mais negociável.

149
Como mencionei anteriormente sobre o ator, entre a polaridade do filme publicitário em
que é difícil lembrarmos o nome dos indivíduos com quem trabalhamos durante uma ou duas
diárias e as amizades com os vínculos fora do trabalho estabelecidos pelos profissionais que
trabalham juntos por anos na mesma empresa, há uma faixa de situações intermediárias que
complexificam essa reflexão sobre os laços. Na segunda ou terceira, das nove semanas em que
estava no Rio de Janeiro trabalhando numa série de televisão, minha preparadora vocal que fora
minha professora de voz durante minha formação em artes cênicas me perguntou “Angela, tem
alguém lá em quem você possa confiar?”. Segundo ela, por não ter minha família por perto
(moram em São Paulo), seria importante identificar alguém em quem eu pudesse confiar, tanto
para conversar mais abertamente quanto para ouvir opiniões sobre o trabalho e sobre as relações
que estavam se estabelecendo no set. Também para verificar se minhas impressões sobre
grosserias ou outros limites nas relações interpessoais eram apenas ruídos de diferenças
culturais entre Rio e São Paulo ou se realmente eu deveria estabelecer outros limites para as
interações. De todo modo, quando ela me deu esse conselho eu estava vivendo tudo aquilo de
modo muito naturalizado. Senti simpatias e antipatias como considerava normal. Mas depois
do comentário dessa professora que me conheceu quando começava os estudos para tornar-me
atriz, passei a enxergar as possibilidades de laços de confiança de um modo diferente. Num
trabalho de nove semanas é difícil pensar que é possível confiar profundamente em alguém.
Mas considerando que eu era a protagonista da série e que passava 12 horas por dia com aqueles
indivíduos e que quase todos os dias depois do set bebíamos umas duas cervejas no bar juntos,
as nove semanas parecem multiplicáveis por 10. Por outro lado, já ouvi histórias de pessoas que
se decepcionaram enormemente e tiveram problemas em suas carreiras por confiarem em
pessoas erradas, que depois distorceram histórias contadas ou mesmo revelaram confidências
de atores para outros membros da equipe. Nesse sentido, diante da fala da minha professora, eu
me deparei com a realidade na qual eu já me encontrava: não deveria confiar em ninguém
porque não havia tempo para conhecer os indivíduos a fim de saber em qual poderia confiar,
mas deveria confiar em alguém porque seria importante para atravessar o labirinto emocional
que aquelas relações profissionais nas quais nunca estive tão intensamente apresentava para
mim. Nesse processo observei como os atores conseguem fazer amizades sem realmente se
enredar em tramas de confiança. Trata-se de uma habilidade para, mesmo simpatizando com
alguém, cuidar sobre os temas que se fala, principalmente sobre quem se fala. Percebi que
quando um ator começava a falar mal de alguém, algumas pessoas saíam do camarim quase
sem ser notado. Isso porque mesmo sem ser o autor da fala, estar no ambiente daquele tipo de
conversa pode queimar o ouvinte. Nesses casos é muito comum, inclusive, o ouvinte ser

150
“confundido” com o autor da maledicência ou da fofoca. Além disso, cuidar para que as
conversas sejam agradáveis e que, mesmo que sejam compartilhadas experiências e opiniões
consideradas pessoais, que ao menos não sejam comprometedoras. Nesse sentido, há uma
medida que os atores mais experientes que observei utilizam para se relacionar e de certa forma
“fazer amizades” sem estar implicado necessariamente num sistema de confiança profunda.
Essa experiência se relaciona com a “força dos laços fracos”, que ao mesmo tempo que
possibilita a relação, não demanda do indivíduo um alto desgaste para cuidar que essa relação
não o fragilize. Sobre isso Sennett ainda diz que “O distanciamento e a cooperatividade
superficial são uma blindagem melhor para lidar com as atuais realidades que o comportamento
baseado em valores de lealdade e serviço” (idem, p.25). O autor diz isso sobre o modo como os
indivíduos são aconselhados a agir em relação às empresas que trabalham, mas penso que é
perfeitamente aplicável ao relacionamento entre os profissionais no caso dos atores. Com essa
análise não dizemos aqui que é bom ou ruim o estabelecimento de “laços fracos”, mas que há
um determinado contexto profissional e que indivíduos podem se mover desta ou daquela
forma. Mais tarde, compreendi que caso estivesse eu fortalecida como os outros atores que
estavam na sua própria cidade, com suas famílias, que lidavam com aquele trabalho já há algum
tempo e para os quais tudo aquilo era normal, eu não precisaria de alguém para confiar e todos
os laços poderiam ser fracos que estaria protegida, ou blindada, como sugere o autor. Mas,
como a professora identificou, todos esses elementos que me fragilizavam ali, sendo o principal
deles a falta de experiência como uma atriz que fazia um papel tão importante para o projeto,
fizeram com que a confiança em alguém viabilizasse outras condições. Nesse caso, mesmo que
alguma decepção ocorresse depois, talvez não houvesse escolha. E como pude perceber depois,
eu já estava mesmo confiando sem me dar conta de que o estava fazendo.

2.3.1 Nem olha na tua cara

Existem profissionais que estão mais próximos dos atores pelo tipo do trabalho que
executam como maquiadores, cabeleireiros, figurinistas e camareiros, que além de prepararem
o ator lidando com seus corpos, costumam presenciar e compartilhar das longas esperas destes
até o momento em que são chamados para fazer a cena. Mas existem profissionais que estão
mais próximos ao ator pela classificação social atribuída a sua função e pela interferência que
seu trabalho terá no trabalho do ator, que é o caso do diretor e de seus assistentes. Já fiz cenas
em que eu achava que a personagem estaria muito nervosa, quase explodindo e o diretor pediu

151
que ela estivesse tranquilamente cínica, quase blasé. Esse é o tipo de indicação que não está
expresso no roteiro. Quando o público em geral assiste a cena, pensa que a interpretação é toda
de responsabilidade do ator, sendo que aquela cena pode ter sido objeto de debate entre ator e
diretor e o resultado pode ter sido a visão do diretor sobre a cena. Menciono esses elementos
para mostrar a fragilidade da posição do ator em relação ao produto do seu trabalho, que
dependendo do tamanho do seu personagem e da fama que possui, é mais frágil ainda. Os laços
que consegue estabelecer são sempre mais fracos que os da equipe entre si e seu isolamento
posicional o torna ainda mais vulnerável à figura do diretor, que também detém grande poder
sobre o produto do seu trabalho. Em uma das entrevistas, quando perguntei sobre condições de
trabalho ideais para um ator ele respondeu da seguinte maneira:

- Quais são as condições ideais de trabalho pra você?


- É... o que eu prego muito. Bom humor pra começar. Eu não tenho mais
preparo físico, nunca tive talento e não tenho mais saco, e posso me dar a esse
luxo de não trabalhar com gente grossa. (Pausa). Com gente que trabalha
diminuindo ou ridicularizando os outros. Eu acho... isso é o oposto do que eu
faço como professor. (Victor, 53 anos).

Os diretores não ocupam a função de professor, exceto em montagens de peças em


escolas de teatro ou workshops, onde o professor de interpretação ocupa também a posição de
diretor de uma peça ou cena. Victor aproximou essas funções justamente porque ele dirige peças
da escola de interpretação onde ele leciona. Mas no campo profissional de trabalho, o ator lida
com alguns “modelos” de diretores. O mais tradicional deles (pelo menos em televisão), que
cada vez mais vêm sendo chamado pela equipe e atores de old school, e até mesmo demodê, é
o modelo do diretor grosso, que grita, xinga e humilha qualquer um dentro e fora do set. Por
outro lado, já conversei com diretores que reclamam da “carência” de atores que acham que
para trabalhar junto é preciso ser super amigo e da “hipersensibilidade” de atores com quem
não se poderia fazer qualquer indicação sem causar algum tipo de “trauma”. Mesmo sabendo
que existem nuances na posição ocupada pelos diretores e que muitos já não se identificam com
o modelo do diretor grosso, o que desejamos mostrar a partir dessa discussão e da compreensão
ampliada das falas dos atores entrevistados é a posição social ocupada pelo ator e as pressões e
vulnerabilidades inerentes a essa posição em relação ao diretor.

Outro entrevistado descreve como ele se sente em relação aos diretores nos dos
diferentes campos de trabalho. Há 12 anos ele não faz teatro e seu trabalho atual é integralmente
como diretor e ator de dublagem. Ele é perguntado sobre seus personagens mais marcantes e

152
sobre como constrói seus personagens e sua resposta traz elementos através dos quais podemos
compreender melhor as relações sociais envolvidas nos diferentes campos de trabalho:

- Cada uma (personagem)... é, eu não sei, talvez eu mesmo contribua com isso
porque eu sou uma pessoa muito intensa. Ou é ou não é! Igual, to falando,
‘Ah, o teatro, é um Big Brother, ou todo mundo se dá muito bem ou todo
mundo se dá mal’. Eu não sei, é a forma que eu penso, talvez não seja assim
com algumas outras companhias, não sei, talvez as pessoas sejam mais
burocráticas. Não sei se combina burocracia com, com... arte, né? Então, a
pessoa tem que ser é... visceral, senão, eu acho que não rola. (...) Essa coisa
do teatro, um dos fatores que deixa você apaixonado pelo teatro é essa
construção, mas em conjunto, que tem no ensaio. É... eu tenho ciência,
algumas pessoas já me falaram que hoje em dia as pessoas não ensaiam mais.
Faz um ensaiozinho de uma semana, duas semanas e vambora. Cara, eu ficava
duas seman... dois meses, três meses ensaiando, na nossa época. Até a coisa
realmente ficar redondinha, até você encontrar o personagem. Então, quer
dizer... o diretor tá ali, nem sempre ele enxerga... né, isso acontece muito, o
personagem da mesma forma que você... Então, tem que ter uma interação,
tem que ter uma conversa, tem que ter o tal do laboratório, tem que descobrir
junto, você tem que agradar o diretor, afinal o espetáculo é dirigido por ele,
né? E quem nunca ouviu a frase, a célebre frase ‘Vamo estrear? Vamos. Agora
o espetáculo é de vocês! Tô lá..’. O diretor tá lá mas como mero espectador.
Enquanto a gente tava ensaiando era linha dura. (...) Você tem que ensaiar,
não dá pra você... não é só saber o texto.
- Não.
- Não é decorar o texto. É aquela coisa de tornar o personagem orgânico. E
você... se misturar com ele, né?
- Sim.
- Eu fiz Um bonde chamado desejo, era um espetáculo tenso. E eu fiz, eu fazia
o “Mitch” também de vez em quando, que era o amigo do Kowalsky, que
gostava da Blanche também. E o Mitch era muito sentimental. E tinha cenas
ali que ele se sentia humilhado e tal... você saía de cena e era difícil de largar
aquilo ali, entendeu? Tinha que ter sempre alguém ali do lado pra ‘Pô, e aí? E
aí, beleza? Legal?’, pra você meio que despertar. Você sai meio transtornado,
assim. Acho que essa, esse é o grande lance. Você realmente vive o
personagem ali. Não é só você usar a técnica e dar o texto, entendeu?
- Ahã.
- Já é uma coisa que a televisão não te dá. A televisão me assustou muito das
pontinhas que eu fiz... eu acho que sei lá, de umas 7, 8 pontinhas que eu fiz,
só umas 2 ou 3 eu fui dirigido. (Pausa) As outras não. ‘Você é o delegado?’
(falando mais alto). Nem olha pra tua cara. ‘Você fica pra lá, você vem pra
cá... dá o texto aí! Isso, agora você. Sai. Isso”. Então, é, é é, isso pro ator, né?
É... isso é muito ruim. Eu me senti mal em algumas, em algumas participações
que eu fiz. Mas a televisão é assim, é muito rápido, não têm tempo pra perder
com você. ‘Você é o cara que vai vir aqui e vai falar que a mulher tá presa?’
‘É’. ‘Então tá, vai, fala. Entra aqui. Marca ele. Não, não, aqui não, vai pra lá.
Isso, aí. Aqui. Dá o texto, tá. Tá bom, tá, pode ir’. ‘Você agora...’ Ai pega o
ator que é o... que tem o papel mais importante e tal. Mas (pausa) é... aí você
não tem nem tempo de construir nem desconstruir.
- Ahã.
- Você sai, muitas das vezes, frustrado. Fala ‘Nossa, que porcaria que eu fiz!’
(riso). Aí depois você assiste na televisão e fala ‘É...’ (tom de lamentação).
Ninguém te conhece mesmo. A pessoa te viu por dez segundos, quinze
segundos. Ela não tem nem como te avaliar.

153
- Sim.
- Diferente do teatro. No teatro o cara pode ir lá te ver 3 vezes por semana, 4
vezes por semana. Hoje em dia acho que não tem mais isso, né? É sábado e
domingo. Eu sou da época do quinta a domingo, que já é um pouco tardio,
porque tinha gente que fazia...
- de terça a domingo.
- ... de terça a domingo. Então a folga era segunda, né? Isso quando tinha 2
sessões no sábado, 2 no domingo.
(Augusto, 47 anos)

O teatro é colocado de forma unânime entre os entrevistados como sendo o campo de


maior autonomia artística para o ator. Como Augusto aponta, por mais que haja uma negociação
entre o ator e o diretor durante os ensaios, no momento da apresentação o diretor é apenas um
espectador e o controle sobre o produto (a peça) está nas mãos do ator. Nesse sentido, mesmo
se dedicando à dublagem, os exemplos que Augusto utiliza para falar sobre a possibilidade de
criação dos personagens são o teatro e a televisão, como polos diametralmente opostos e a
relação com diretores é colocada como central para essa polarização. Não se trata de querer ou
não a interferência do diretor no produto do trabalho, mas de considerar como deve ser essa
interação entre ator e diretor para que a potência profissional do ator possa se realizar na cena.
Augusto coloca nesses polos do fazer teatro e do fazer uma “pontinha” na televisão, espaços
em que de um lado o diretor estabelece uma relação de trabalho intensa com o ator e no
momento certo lhe dá autonomia, e do outro lado uma relação rápida e sem profundidade em
que o diretor não dirige o ator e “nem olha na tua cara”.

Através desse trecho da entrevista de Augusto é possível perceber uma ligação direta
entre o tempo de preparação e as relações interpessoais, que estiveram presentes de forma
associada em diversas respostas sobre condições de trabalho. Os dois temas estão interligados
na medida em que o modo de produção mais acelerado, que é a televisão, favorece a relação
apressada e sem profundidade entre os profissionais. Há narrativas de relações desastrosas com
diretores em todos os campos de trabalho. Porém a indiferença e a falta de interação
profissional, no caso, não ser dirigido em cena, é relatada com frequência no campo da produção
televisiva. Pelo modo como essa produção é estruturada, muitas vezes os diretores se
preocupam em dirigir de forma mais detida os atores que fazem os personagens principais e de
forma gradativa dirigem menos os coadjuvantes, o elenco de apoio, as participações, e não
dirigem figuração que fica a cargo de algum dos assistentes de direção ou do próprio fiscal de
figuração. Ou seja, a fala de Augusto não indica que diretores em televisão não dirigem, mas

154
indica que para participações como as que ele realizou, de 10 ou 15 segundos de aparição como
ele disse, muitos diretores não o dirigem.

Quando Augusto fala que não tem como o público avaliar seu trabalho naquele curto
tempo de aparição, ele também está se referindo à sua dificuldade como trabalhador em
executar um bom trabalho naquele curto espaço de tempo tanto para a preparação quanto para
a própria execução da cena. Numa conversa com um membro da equipe durante uma reunião
no bar após o set eu disse que achava curioso atores com muito mais experiência que eu
parecerem bem mais inseguros durante as filmagens de suas participações. Ele me respondeu
dizendo que era natural eles estarem inseguros por estarem fazendo apenas uma participação.
Ele disse “O ator entra ali e tem que dar tudo de si naqueles minutinhos. Não tem tempo de
ficar errando. E depois não tem chance de mostrar em outra cena que é um bom ator, se a
participação dele é só para aquela cena. É toda a reputação da pessoa que tá em jogo numa
tacada só”. Além dessa pressão por ter que mostrar que é bom numa única cena, ou em algumas
poucas cenas, o ator que faz a participação não constituiu relações com os demais profissionais
com quem vai trabalhar naquela cena. Esse mesmo colega da equipe continuou me dizendo “O
cara chega lá, não conhece ninguém, não sabe nem o nome de ninguém ali, se tem alguém rindo
ele nem sabe se a piada é com ele ou não. Por mais foda que a pessoa seja e por mais tempo
como ator que tenha nunca é tranquilo cair de paraquedas assim num trabalho”. Pra finalizar
ele me perguntou se eu me lembrava do primeiro dia de filmagem com eles. Ele disse que para
a participação é como se fosse sempre o primeiro dia. Ele estava certo. Na primeira cena do
primeiro dia daquele projeto meu corpo inteiro tremia. Eu não conseguia nem andar de uma
forma natural com medo de cair daquele salto de tanto que tremia, quem dirá dizer o texto de
uma forma natural. Estava tensa com as marcas, com as pessoas, com a roupa, o cabelo, a
maquiagem, a bolsa de um lado, o celular da personagem de outro, o microfone que não podia
aparecer, o texto que não podia esquecer, a marca certa no momento certo. Cada passo ou cada
movimento da cabeça dependendo do enquadramento deveriam ser milimetricamente
reproduzidos na hora do “ação” como foi feito no ensaio. Cada erro poderia comprometer todo
o cronograma de filmagens que já estava atrasado porque o tempo estava aberto e depois ficou
nublado, precisando de mais tempo para acertar novamente a luz. Se a no meio de tudo isso
tiverem que ficar voltado por causa da atriz, um clima de reclamação e impaciência começa a
se instaurar. Enfim, ele estava certo, por melhor ator que o profissional seja, uma participação
é sempre um desafio justamente pela sua rapidez na realização e inconsistência na trama (tanto
ficcional quanto de relações reais). Débora é uma das entrevistadas que trabalha como atriz

155
principalmente no teatro e na televisão (em pequenas participações). Através da fala dela vemos
um modo de compreender essa posição da participação a partir do indivíduo que a ocupa. A
atriz relaciona o sucesso ou não de seu desempenho ao tempo que tem para se preparar:

- Quais são as condições ideais que você gostaria de ter pra realizar o seu
trabalho?
- Tempo! O tempo é uma preciosidade assim incrível que a gente pode ter,
porque nos dias de hoje a gente não tem tempo né? Tudo é muito corrido. É
tudo... é... às vezes você não tem tempo de, de, de, de curtir sua família direito
de, de estar com seus amigos como você gostaria. Então eu acho que quando
você tem tempo pra realizar alguma coisa e você consegue administrar o seu
tempo eu acho que você consegue chegar onde você quer.
Porque muitas
vezes a gente assume muitas coisas e eu sou muito assim eu assumo muitas
coisas eu faço edição, eu faço produção, eu sou atriz, eu sou apresentadora, eu
sou tradutora, sou e eu às vezes faço muitas coisas e, e, e é eu tô sempre me
controlando nessa coisa de me administrar o tempo. Eu acho que é isso o
tempo. É, mas tipo acho que é isso mesmo é o tempo, você ás vezes você não
tem tempo suficiente a um tempo hábil pra concretizar alguma coisa. E ai você
sempre fica com aquela coisa ai poderia ter feito melhor.
- Entendi.
- A gente sempre tem um pouco disso.
- Às vezes ser chamado também muito, muito...
- De ultima hora.
- De ultima hora.
- Ah isso é uma coisa, por exemplo, é quando você tá fazendo uma obra tanto
no teatro quanto na TV você tá fazendo essa obra então você tá do início ao
fim. Mas quando você é chamado pra fazer uma participação e eu já fiz muitas
participações, você cai meio que de paraquedas ali na obra, porque nem,
muitas vezes você nem tá com tempo pra assistir, não tá acompanhando o
trabalho. E você tem esse convite, se vai fazer só uma participação ali então
acho que é um pouco meio isso você né? Você fica meio sem ferramentas
então você... tenta o máximo que você consegue né?
- Naquilo.
- Naquilo! Porque às vezes se tem o risco de ficar fora do tom... da novela, por
exemplo. A novela tem todo um tom e você entra e tá fora do tom né? Então
isso é bem delicado. Essa coisa de ser chamada assim, de ultima hora. Mas eu
acho que eu, eu sempre fiz direitinho, eu acho. (risos).
(Débora, 40 anos)

Débora fala nesse trecho da entrevista tanto sobre a forma como organiza seu próprio
tempo de acordo com as tarefas que se propõe a fazer quanto sobre fazer uma personagem numa
participação em que teve pouco tempo para se preparar. Através da discussão que apresentamos
com a obra de Richard Sennett é possível compreender que não são coisas tão distintas, afinal
para o profissional autônomo que organiza seu tempo de acordo com as necessidades dos
clientes a autonomia para organizar seu próprio tempo é bastante limitada em todos esses
aspectos, inclusive sobre o tempo que “resta” para compartilhar com a família. Essa fala de
Débora também nos leva a relacionar a questão do tempo com a da diversificação que

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abordamos no capítulo anterior. Ao diversificar, o ator lida com demandas temporais de
diversas ordens, e mesmo que se refira apenas a função de ator, a simultaneidade de projetos
(como peças, gravações de novelas ou filmagens para cinema) exigem do profissional uma
habilidade maior no manejo do tempo. Mesmo que o calendário de presença no trabalho não
coincida e o ator consiga trabalhar em projetos simultâneos, cada diretor de cada projeto vai
exigir os resultados para o seu produto.

Para que o leitor compreenda o que Débora quis dizer sobre o preparo, cabe mencionar
que é uma parte demorada e cansativa do trabalho do ator. Quanto maior é o personagem no
sentido da importância para a trama que constitui o projeto, mais os demais profissionais
envolvidos devem apoiar e viabilizar a preparação do ator. Uma grande parte é feita em coletivo
com a equipe de caracterização, coach ou preparadores de elenco, diretores e assistentes de
direção que previamente já indicam o tom de algumas cenas principais e o tom do projeto como
um todo (se querem mais humor, mais drama, se é um drama com leveza ou se é um humor
mais seco, feito no formato da ironia). Outra parte da preparação é feita pelo próprio ator na
solidão de seu modo de criar. Sobre essa segunda preparação cada ator tem seus próprios
caminhos como método, mas todos devem chegar no set com o texto decorado e algum tipo de
compreensão sobre o que aquela cena representa para a trama como um todo. Para que o leitor
compreenda a questão do texto decorado enquanto preocupação do ator em relação ao tempo,
cito o exemplo da minha rotina durante as filmagens para essa série. Alguns atores têm mais
facilidade e decoram textos mais rapidamente e outros demoram mais. Mas também descobri
que como todo treinamento, nossa mente vai se adaptando aquela demanda de trabalho e passa
a exigir menos tempo para decorar os textos das cenas. Inicialmente nesse projeto, em uma
diária que fosse das 6h da manhã até as 18h e eu estivesse escalada para a diária inteira, eu
chegaria em casa por volta das 19h, tomaria um banho e estudaria as cenas do dia seguinte até
as 23h, quando eu dormia. Com o passar dos dias eu já me permitia passar no bar no fim das
filmagens com a equipe e estudava das 21h às 23h, ou acordava duas horas antes no dia seguinte
para estudar as cenas. De todo modo, o texto exige do ator um trabalho que é feito em casa no
horário alternativo ao do set. Esse tempo era o meu, para a quantidade de cenas que eu tinha
para fazer por dia e para que eu me sentisse segura quando chegasse no set. Percebi que outros
atores agem cada um a seu modo. Alguns decoram enquanto maquiam e se vestem, decoram
no carro no caminho para o set, decoram enquanto esperam para a próxima cena. Durante o
projeto, conforme fui adquirindo confiança no meu trabalho, algumas cenas que eu via como
mais simples de serem feitas eu deixava para decorar a caminho do set ou no horário do almoço.

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Ocorre que de todo o tempo de preparação que se tem para começar o trabalho e depois ao
vivenciar o personagem diariamente, se tem um acúmulo daquela experiência que torna o
trabalho do ator menos demorado e trabalhoso para as cenas seguintes. Esse acúmulo possibilita
que mesmo que o número de cenas aumente diariamente, o tempo para prepara-las diminua.
Além disso, o que a Débora disse sobre o “tom” da obra passa a ser território conhecido pelo
ator e as indicações de direção passam a ser sobre aspectos mais detalhistas do contorno das
emoções e ações que vão preencher a cena até então apenas escrita para a cena vivida.

Esse é o acúmulo e a preparação que um ator chamado para uma participação


usualmente não tem. No caso das séries as participações são escolhidas com certa antecedência,
mas no caso das novelas é comum que o ator tenha poucos dias ou apenas uma noite para se
preparar. Como Débora mencionou, caso o ator não esteja acompanhando a obra pela televisão
ou busque ver alguns capítulos pela internet, dificilmente ele saberá que tom deve dar à cena
que lhe foi enviada para decorar. Somado a isso a dificuldade em encontrar diretores que dirijam
participações em novelas, o ator que faz esse papel tem grandes chances de sair frustrado com
seu desempenho profissional. Eduardo, outro ator entrevistado para esta pesquisa, também
conta sobre como se sente ao fazer participações em televisão como resposta à pergunta sobre
quais são as piores condições de trabalho que já teve:

- Eu vou ser bem honesto pra você, tem muitas, muitas vezes eu fiquei
desamparado no set, sabe? Sem nenhum pingo de cuidado, de respeito, num...
não tô nem numa situação de desabafo, eu tô falando... porque o set é muito
corrido, eles têm vários atores... é... de primeira escala, na verdade, de
primeira linha, que eu poderia falar, é... com salários exorbitantes, então, esse
profissional no set, ele causa muita comoção da equipe, porque o cuidado é
todo, ele não pode machucar, ele não pode se estressar, ele não pode pegar o
ar condicionado frio e... eu entendo. No meu caso pode tudo (risos) você pode
esperar horas, você pode pegar o ar condicionado frio, você ...
- Fica com fome.
- Você fica com fome, você come depois, você fica sem carro pra voltar.
Então, eu vejo essa desigualdade. Mas claro que é uma hierarquia. Mas, é... a
gente tem que saber levar isso de uma forma saudável, profissional e com
paciência. Porque quem gosta acaba se submetendo e entendendo cada
condição, cada... cada tratamento é um tratamento. Então, eu vejo dessa
forma, assim.
- Bom, e quais as são as condições ideais de trabalho que você gostaria de
ter?
(Pausa) Como eu tinha te falado anteriormente Ana... Angela, (pausa) o que
acontece às vezes é essa falta de cuidado que eles têm com os atores menos
renomados. Então o que é que acontece, você cria sim é... de chegar mais
próximo da sua gravação, por exemplo. Você vai gravar 5 da tarde, eles pedem
para você chegar meio-dia. Você entendeu? Aí demora pra te falar do almoço.
É... e a remuneração. Essa também é fundamental. A gente quer sim salário
mais digno, porque tem sim uma... (pausa). Como várias vezes, agora quanto
mais participação você faz, mais você depara com essa situação. Eu gravando

158
com um ator, que vale 500 mil reais pra emissora e eu ganhando 500... reais.
Eu acho que é uma diferença extremamente brutal. É, às vezes eu falo até mais
que esse ator. É, tive que ter mais trabalho pra elaborar, como eu falei
anteriormente, eu não tenho um coach, não tenho quem me prepare, não tenho
nem quem me dirija. Eles não falam nem da onde vem meu personagem,
mesmo porque também ele nem nome tem. Esse cuidado que hoje eu, eu, eu...
eu hoje fico muito decepcionado ainda por passar por esses problemas. E acho
que deveria ser mais bem remunerado e mais bem cuidado. 


Eduardo relata situações que ele entende enquanto problemáticas para os atores que
fazem participações. Através da fala dele podemos aprofundar certos aspectos que
apresentamos acima e ainda compreender os contornos emocionais que essa situação pode
causar para o indivíduo. Eduardo se sente desvalorizado porque se sente um profissional igual
ao outro, mas com salários e cuidados muito diferenciados. O que ele chama de cuidado ou
tratamento tem a ver tanto com aspectos que dizem respeito ao produto de seu trabalho, ou seja,
que ele gostaria de ser preparado para a cena e dirigido em cena; quanto para aspectos das
relações com os outros profissionais fora da cena, que é poder se alimentar no mesmo momento
que os demais, não precisar chegar tantas horas antes sem necessidade e ter uma remuneração
mais próxima de seus colegas. Quando Eduardo diz que teve mais trabalho para elaborar ele se
refere a não lhe serem dadas as mesmas condições para preparar seu personagem como deram
ao outro ator. Ele não teve coach, não se sentiu dirigido e ninguém disse para ele quem era seu
personagem. Ele entra, executa a função que seu personagem deve executar, diz o texto e vai
embora. Aquele personagem pode voltar novamente ou pode nunca mais aparecer na novela.
Essa “aparição” não teve as mesmas condições de trabalho que as “aparições constantes” dos
atores que tem personagens fixos na trama. Daí deriva a decepção desses atores ao se verem
depois na televisão representando mal.

Durante conversas em separado com um diretor de fotografia e com um operador de


câmera, ambos me disseram que em projetos que a qualidade artística é prioridade (em
detrimento de economias feitas no aluguel de locações e logísticas) costuma-se não começar as
filmagens pelas primeiras cenas do filme ou da série. Eles disseram que elas são as cenas mais
importantes e devem estar perfeitas. Mas que os atores, normalmente ainda não estão
“aquecidos” ou totalmente “dentro” do personagem. Além disso, falaram sobre o entrosamento
da equipe que acontece depois de alguns dias do início. Eles disseram que quando essas cenas
são filmadas alguns dias ou semanas depois do início do projeto a qualidade artística fica muito
melhor. No que tange ao ator, se eles consideram que mesmo os atores mais experientes e com
grandes personagens melhoram durante o projeto, o que dizer sobre as participações? Que é
preciso compreender esse contexto e as condições de trabalho inerentes a ele para não precipitar
159
críticas que tomem o todo por aquela pequena parte. Ou seja, dificilmente um ator mostrará seu
melhor desempenho nesse tipo de trabalho. Para não se sentir frustrado, caso aceite esse
trabalho, o ator deve ter em vista essas condições para manejá-las de acordo com suas
possibilidades ou mesmo para aceita-las sem questionar seu valor como profissional. No caso
das telenovelas, realizar participações parece um ciclo vicioso: quanto menos valor os
produtores para o ator, chamando-o para fazer apenas participações, menos valor o público o
dará, porque a eles chega um produto no qual esse ator teve menos possibilidades de um bom
desempenho pelos motivos já mencionados, e por fim, há a cruel possibilidade de que o próprio
ator comece a questionar seu valor enquanto profissional, se sentindo um ator ruim.

Em conversa com um ator que não foi entrevistado nessa pesquisa, eu contei a ele que
fiz um teste para uma série e que não fui chamada. Mas que naquele momento, que as filmagens
já iriam começar, eles me convidaram para fazer uma participação. Quando eu abri o anexo do
e-mail com as duas cenas em que essa participação apareceria, vi que se tratava de uma
participação pequena, como os segundos mencionados por um entrevistado aqui. Eu disse que
estava inclinada a recusar, mas que gostaria muito de trabalhar com o diretor daquela série e
estava com medo de “me queimar” ao recusar. Ele disse que se a participação era muito pequena
esse diretor é que tinha que ter vergonha de me chamar para isso, e que se eu aceitasse talvez
eu fosse lá, filmasse a cena e ele nem olharia na minha cara, justamente por não dirigirem
participações pequenas. Por fim ele disse que independente do que eu escolhesse, ele não me
julgaria, mas que uma vez ele ouviu um amigo dizer uma coisa que nunca esqueceu e ele tentava
aplicar isso em sua vida. O amigo dissera “Eu prefiro varrer chão do que vender minha arte a
preço de banana”. Nesse caso não estávamos falando de valor financeiro, até porque com o
convite não veio escrito nenhum valor de cachê, eu descobriria caso me interessasse pela
proposta e começasse a negociar. Mas o argumento que meu amigo utilizou que me convenceu
foi “Ele nem vai olhar na sua cara”. De todas as situações que já vivi e já presenciei nesses 8
anos desde que iniciei minha trajetória artística, a única coisa que quase me fez desistir da
profissão motivada pela raiva foram situações de indiferença em que agiam como se eu fosse
um ser humano inferior. Dessas experiências eu decidi algumas vezes (assim como a
entrevistada que decidiu não trabalhar mais de graça e voltou a fazê-lo) que recusaria trabalhos
que pudessem me expor a situações de desprezo ou humilhação (e que me fizessem questionar
meu valor enquanto atriz) mesmo que demorasse para ter algum trabalho. E que como
alternativa a esse sistema escreveria minhas próprias peças que poderiam ser realizadas na rua,
se fosse preciso. Elementos da personalidade, assim como Elias analisou sobre elementos da

160
personalidade de Mozart, fazem com que os indivíduos se posicionem de diferentes modos no
interior de um mesmo sistema. Meu duelo em permanecer no campo artístico passa não apenas
pela questão do sustento econômico, mas também por esse aspecto da minha constituição moral.
Esse amigo, que se parece em vários aspectos comigo em termos de personalidade, me lembrou
dos critérios que eu já havia estabelecido para mim pelas poucas experiências traumáticas que
vivenciei nesse sentido e pelas muitas que já vi acontecer próximo a mim. Ou seja, mesmo sem
ter certeza se no final estou dificultando ou não minha trajetória como atriz, recusei o convite
por conhecer meus limites morais.

Para diferenciar certos aspectos dessas posições possíveis entre os atores, trago as falas
a seguir. Duas das entrevistadas desenvolvem falas sobre a relação com diretores que não
contribuíram para seus processos como atriz naquelas situações das experiências narradas:

- Quais foram as piores condições de trabalho que você já teve?


- Ah eu acho assim, condições tipo sempre assim, mesmo quando não tem
produção tu tá ali né? Pelo processo de um trabalho que tu acredita. Só que
sempre quando tu é desrespeitado no teu oficio, enfim, quando tu não tem é
assim pra onde correr assim, meio digamos que tu fez um baita de um trabalho,
tu vai divulgar, tu é desrespeitado até por divulgar.
Tu tem que sentir meio
que pedinte pra divulgar um trabalho, pra te divulgar, porque tu é a ferramenta
de trabalho né? Nós somos. Então eu acho um meio desrespeitoso quando
pessoas que precisam de atores desrespeitam os próprios. E eles precisam da
gente. E não é só a gente que precisa deles. Então, eu me sinto desvalorizada
em relação a isso. E... eu ia falar... quando não tem verba. Mas quando não
tem verba a gente junta amigos, enfim, faz alguma coisa e... É, desrespeitada.
Eu acho que é isso. (...) Quando eu fiz uma, eu acho que foi o segundo capitulo
da novela “q”, eu me senti agredida quando o diretor pegou e deu um esporro
assim, sabe? Na maquiadora por minha, não por minha causa, mas que ela não
deveria ter botado rímel, enfim. Uma coisa desnecessária que breca, a gente
trabalha com, com emoção, com sentimentos. Te breca, sabe? Como atriz, um
trabalho que poderia ser maravilhoso, por uma... um autoritarismo do diretor.
Enfim, isso me sinto desrespeitada mesmo sendo com a outra pessoa. Tipo
vergonha alheia.
- Sim.
- Respeito alheio, enfim, sabe?
- Sim e o clima né?
- Porra, uma coisa que não precisa. Tudo hoje, antigamente o pai educava, ou
a mãe, os pais educavam os filhos dando chinelada, batendo. E hoje em dia a
gente evoluiu muito nisso, a gente vê, não adianta algumas coisas e que é pior.
Então a mesma coisa, vários diretores, eu acho que tem que ter a noção que tu
tem que ser um líder em qualquer coisa. Tu não tem que ser um autoritário.
Um autocrático, entendeu? É e isso eu me sinto desrespeitada. É, ainda bem
que eu não sofri muito assim, muito com isso, mas eu vejo muitas pessoas
também contando história, tipo assim disso, que é foda! assim né?
(Bárbara, 35 anos)

161
- Quais os principais desafios ou dificuldades que um ator pode ter com ele
mesmo? Durante o processo de trabalho?
- Eu acho que o principal desafio é o processo em si, do ensaio. Porque nada
começa bom. Todo ator tem o ego muito grande. Todo ator quer acertar, quer
ganhar prêmio e o processo de ensaio é sempre muito doloroso. Porque
começa muito ruim e você vai achando que não vai dar em lugar nenhum. E
aí se você tem um diretor que não tem sensibilidade, ele te convence de que
não vai dar em lugar nenhum. E aí ele te compara com a outra pessoa. E você
se compara com o outro ator que está num processo melhor do que o seu ou
diferente de você, ou porque é mais cabeça fresca do que você. Pelo menos
pra mim o processo de ensaio sempre foi bastante complicado. Eu lembro que
com 15 anos eu fiz um palhaço na escola de teatro que o diretor falava “tá
ruim, tá ruim, tá ruim”. No dia do ensaio geral ele falou “tá uma merda”. E eu
não consegui curtir. Depois, eu até consegui... eu pensei “ah, vou imitar meu
pai, porque não imitar meu pai”. Eu podia ter pensado nisso muito antes se eu
não estivesse tão estressada. Mas é porque tem muito diretor que não tem
sensibilidade. Tá ruim, tá ruim, foda-se. Ele não te dá, não te dá nenhuma luz,
não diz porque que tá ruim, não diz que talvez se pudesse fazer alguma coisa,
não manda assistir nada, não dá referência.
(Marina, 29 anos)

Tanto Marina quanto Bárbara descrevem situações em que as grosserias dos diretores
atrapalharam seus processos criativos e interferiram negativamente no produto de seus
trabalhos. Ambos os casos são diferentes do “não olhar na cara” mencionado anteriormente
pelos atores que fizeram participações. Essas reclamações falam sobre diretores ruins ou
grossos e não sobre a ausência de interação, que combinam mais com a fala de Victor, no início
desse subitem e com a situação vivida por Cris na cena do início do item. Nesse sentido
percebemos que, seja pela ausência seja pela interferência negativa, o diretor tem grande
influência sobre o trabalho do ator. Por esses aspectos, os atores consideram a relação com os
diretores como elemento fundamental para a existência de boas condições de trabalho.

2.3.2 Prometo ser profissional nas boas e nas más energias

Eu seguro a minha mão na sua,


Eu uno o meu coração ao seu,
Para que juntos possamos fazer
aquilo que eu não posso, não quero e nem vou fazer sozinho:
Teatro! Merda!
(Oração do Teatro, autor desconhecido)

Durante as entrevistas, o diretor foi o mais mencionado enquanto responsável pelas boas
condições de trabalho do ator no que tange a relações interpessoais. Mas não foi o único a ser
mencionado. Os demais profissionais do set e os outros atores foram também indicados

162
enquanto responsáveis sobre esse aspecto tanto para a preparação quanto para a execução da
cena. As características de cada função dentro de um set de filmagem são muitos distintas. Para
cenas com uma carga dramática maior é necessário que os atores contem com silêncio no set
bem antes da cena começar a ser rodada. Cenas de sexo também são consideradas mais
delicadas de serem realizadas e costumam exigir silêncio e outros cuidados na preparação do
set. Mas no geral, e dependendo do diretor que comanda a equipe, o set não é um lugar
silencioso no entre-cenas. Isso dificulta em grande parte o trabalho do ator, que é o único que
precisa “concentrar-se” antes da cena rodar. Alguns atores não precisam de tempo para
concentrar-se e mudam do riso da piada com o microfonista para seriedade da cena em fração
de segundos. Mas a grande maioria dos atores que entrevistei, os atores com quem estudei e
com quem trabalhei, preferem concentrar-se momentos antes da cena. Um dos professores com
quem tive aula dizia que o palco sempre é reflexo do camarim e da coxia. Se está todo mundo
lá dentro desconcentrado, conversando e rindo, a peça nunca poderá ser boa no palco. Nesse
sentido, alguns entrevistados afirmam que boas condições de trabalho seriam ter a possibilidade
de concentrar-se.

- Quais são as condições ideais que você gostaria de ter para realizar o seu
trabalho? 

- As condições ideais? Além de... enfim, se eu aceitar o trabalho é porque
realmente é uma coisa bacana. Agora as condições ideais pra gente... é ter um
bom lugar pra ficar, pra descansar, pra você poder estudar, se possível um
assistente de direção ou um coach da história toda, do trabalho ou do filme
que possa chegar ali e bater um texto com você e independente se tem o ator,
que eu acho bacana estar trabalhando isso antes de você chegar no set. Ah... e
todo mundo estar muito ligado nisso e respeitar esse tempo do ator, essa
calma. Às vezes eu acho que as pessoas falarem num... digamos num tom
ambiente, sem grito, sem exigência, eu acho que se o... é isso, bom dia, boa
tarde, boa noite, deixa... te traz um clima pra você chegar e trabalhar bem. Se
você chegar com alguém exigindo, mandando você correr, falando que você
está atrasado, ou você chegar num set já atrasado, mesmo você no seu horário
é muito chato.
(Henrique, 42 anos)

Essa cordialidade que Henrique afirma constituir um ambiente mais adequado para que
o ator desenvolva seu trabalho é o mesmo que Bárbara afirmou quando contou a história sobre
os gritos do diretor com a maquiadora. O ator trabalha com emoções o tempo inteiro enquanto
estiver em cena. Para que essas emoções sejam como ele planeja e como o diretor lhe indicou,
é preciso que o ambiente não lhe provoque emoções outras. Isso que Bárbara quis dizer sobre
o diretor a ter atrapalhado ao dar uma bronca na maquiadora. Seu estado emocional foi alterado
por aquela situação, tornando mais difícil com que ela executasse a emoção que a cena lhe

163
demandava. Essas ideias sobre as emoções no trabalho do ator não é uma máxima, já que
existem diversas correntes teóricas que abordam de modos distintos o “material” sobre o qual
o ator cria. Nem todos afirmam que esse material sejam as emoções. Na verdade, nem essa tese
afirma isso. Mas, através das entrevistas, identificamos que há atores que consideram
importante estar num ambiente propício para que seja possível certo nível de concentração da
atenção, além de uma não interferência emocional que pode vir através de brigas, discussões
ou gritos que nem precisam ser direcionados ao ator para que cumpra um papel destrutivo na
sua criação.
A fala de Henrique diz sobre “respeitar esse tempo do ator”. É curioso ele chamar essas
condições ambientes de tempo, porque estão todos trabalhando de forma sincronizada para que
a gravação da cena aconteça em determinado horário. Mas a forma como cada um sente esse
tempo de preparação é diferente. No set sempre há muita pressa. Os trabalhadores da equipe
estão sempre apressados para instalar um rebatedor de luz, para mudar a lente da câmera, para
posicionar melhor o boom ou a caixinha do microfone que caiu da roupa do ator. Mas o ator
que saiu do camarim e já está no set esperando para rodar sua cena precisa ignorar todo esse
caos a sua volta e se concentrar na intenção da cena. É como se apesar de coexistirem
espacialmente, atores e equipe estivessem em dimensões diferenciadas, podendo até se
atravessar sem necessariamente interagir. Enquanto os atores repassam o texto ou concentram-
se sozinhos é comum o técnico de áudio estar ali passando o fio do microfone por debaixo da
roupa dos atores e grudando o microfone lapela com adesivo no corpo do ator, havendo
interação física, mas não necessariamente algum tipo de conversa que tire a atenção do ator da
cena, que para ele começa antes de ser gravada. Entre os takes filmados, maquiadores e
figurinistas costumam retocar maquiagem ou acertar a posição das roupas e nesse momento
devem fazê-los com o mínimo de interferência na concentração do ator. Ocorre que apesar de
compartilharem o mesmo espaço, trata-se de temporalidades distintas. É preciso que antes de
ouvir o “ação”, o ator de alguma forma já habite a ficção. Essas interferências, caso sejam
grandes, trazem o ator de volta para o plano da realidade e aquela “realidade construída” que é
a ficção deixa de ser habitada e é necessário um novo movimento de concentração para voltar
a habitá-la. Quando o público assiste a ficção acabada num produto, com os filtros de cores,
com a trilha sonora e a masterização de áudio, ele é absorvido pelo ambiente ficcional. Mas no
set de filmagem a maioria dos profissionais não estão habitando essa ficção. Quando operadores
de câmera ou outros técnicos no set conseguem se emocionar durante a feitura da cena quer
dizer que foi de uma potencia incomum, porque usualmente eles estão concentrados em outros
aspectos de ordem igualmente importantes mas que não se refere à ficcionalidade.

164
Uma vez, fiz uma cena de uma relação sexual em que percebi o quanto é importante que
a equipe colabore para a manutenção desse “clima” ficcional. Nessa cena a concentração
exigida não era tanto pela carga emocional da cena porque não seriam filmados nossos olhares.
Tratava-se mais de executar os movimentos da forma indicada pelo diretor, saber exatamente
o que o diretor pensava sobre aquela relação para a trama, se seria mais carinhosa ou mais
quente. Essas cenas são sempre delicadas para as atrizes porque envolvem uma série de
julgamentos morais, além de ter a exposição do corpo ser maior do que a exposição do corpo
do homem. Soma-se a isso os set’s serem compostos quase exclusivamente por homens
heterossexuais. No caso dessa cena, o ator com quem contracenei era muito cuidadoso e
educado, sempre que a cena cortava ele cobria meu corpo até que a cena recomeçasse a ser
gravada e não ficava conversando – o que atrapalharia a concentração para o próximo take. O
problema nesse dia foi de um membro da equipe de maquiagem. Em todos os cortes, quando
ela estava retocando a minha maquiagem falava como o ator com quem eu contracenava era
lindo e como ela queria estar no meu lugar. Dizia ironicamente “Ô vida difícil heim!”, “Um
trabalho desse eu não ia querer mais nada da vida”. Eu tentava ignorar os comentários e
continuar concentrada na situação da cena, mas ela insistia na interação perguntando se o beijo
era bom. Por fim, ela fez um comentário que me irritou muito e eu tive que pedir para ela calar-
se. Como meu rosto estava muito avermelhado por causa do atrito que a barba do ator através
do beijo causou no meu rosto, ela começou a conversar com a assistente de maquiagem –
enquanto me retocavam – sobre como deveria ser fazer a maquiagem de filmes pornográficos.
Elas começaram a rir falando sobre isso. Mesmo que não fosse uma conversa com a finalidade
de me atrapalhar, aqueles comentários me tiraram totalmente da cena. Eu pedi que elas
calassem, porque eu estava com dificuldades em me concentrar. Sabia o risco que eu estava
correndo em ser chamada de “estrela” e a possibilidade de no dia seguinte todos estarem falando
que a “atriz deu pití”. Mas eu tive que reconhecer meu limite e optar por ter mínimas condições
de continuar a realizar a cena, ou continuar querida por todos porque não reclamo de nada.
Nitidamente ela não gostou quando pedi silêncio e o resultado dessa equação não é possível
saber, afinal quando não somos bem falados o último a saber somos nós. Mas essas experiências
me fizeram pensar em outros termos a “fama” que certos colegas têm no interior da profissão.
Muitas vezes a “arrogância” ou o “não fala com ninguém”, pode ser resultado de
temporalidades distintas no ambiente de trabalho. Por vezes, depois de um dia de muita tensão
que exigia muita concentração pela característica das cenas daquele dia, quando terminava o
dia de filmagem eu relaxava e queria conversar, me distrair e todo mundo da equipe queria
guardar logo as coisas para ir embora o mais rápido possível e chegar em casa. E eu era a única

165
animada chamando as pessoas para irem ao bar. Aquele era meu momento de descontração
depois de um dia em que muitas vezes eles queriam conversar e eu queria ficar em silêncio para
a próxima cena. Sobre esse ambiente do set como elemento das condições de trabalho, um dos
entrevistados falou:

- Quais são as condições ideais que você gostaria de ter pra realizar o seu
trabalho?
- (Pausa) Condições ideais? É... (pausa) um bom roteiro. Um bom roteiro é
tudo na tua vida. Tempo pra desenvolver. E... e um bom ambiente. Porque
tem, tem filmes que você chega e tá uma loucura o ambiente. Tá um frenesi,
uma feira livre, um shopping lotado, uma praia lotada de verão. Não funciona.
Não funciona pro ator e pra atriz. Tem que ter um ambiente de trabalho, tem
que ter o tempo necessário pra se preparar, tem que ter, óbvio, um bom roteiro
pra você ficar apaixonado por aquela história e querer contar aquilo com a
maior verdade do mundo. Porque se for um roteiro meia bomba e você... vai
fazer, acreditando que lá ele vai se potencializar, porque tem uma boa
fotografia, porque tem um bom figurinista, porque tem um bom diretor, e
chega lá o ambiente tá do caralho (imitando ruídos)... perdido todo mundo
avoado, as pessoas estão avoadas, estão perdidas, todo mundo batendo
cabeça... você não concentra, você não foca, você acaba pegando aquela
energia também, acaba batendo cabeça também. Então, eu acredito que seja
isso. Assim, a premissa é um bom roteiro. E depois... que te dê uma preparação
e que te dê um bom ambiente de trabalho. Não é exigir que tenha uma mesa
de frutas com água mineral, água de coco, nada disso. É o contrário disso. É
mesmo o cuidado com o ator, que é um espaço pra ensaiar, que é o teu tempo
pra fazer tua coisa, tua preparação, tem uma salinha ali que você pode entrar
ali e se preparar e tal. E um bom roteiro. É isso.
- Sim. Você acha que às vezes os outros agentes da produç... desse trabalho
produtivo, eles não entendem essa especificidade do ator?
- Hã... muitas vezes eles têm um olhar mesmo... de quem tá preparando um
produto pra vender, pro mercado, né? Que o mais importante é como vai ficar
aquele produto. Isso não importa se quem está ali é o Ricardo, se quem tá ali
é o Fábio Assunção, se quem tá ali é o Selton Mello. Não importa, o que
importa é como vai ficar a fotografia, a cor do figurino, se o ator dá conta do
recado. E isso basta. E ele está muito interessado em quantos bilhetes vai
vender. Então... mas tem também produtores que são o contrário, que... que
vem falar com você, que vem te dar o maior carinho, o maior apoio e vem
falar e vem dizer que, que você foi escolhido para aquele papel porque você é
isso, é aquilo e aquilo. Aí os caras botam você no eixo, te colocam no filme
junto com ele. Porque tem muito cara que fala assim ‘O filme é meu, vocês
são contratados, quem manda aqui sou eu’. Mal ouvem o ator, mal ouvem a
sensibilidade, o coração e alma que essas pessoas têm. Porque têm e a gente
lida com isso. O ator, o artista lida com isso, o tempo inteiro. É sangue, é vida.
O cara tá vivo, o cara tá... o cara tá, o coração tá pulsando e o cara tá
emprestando essas emoções. E essas emoções, elas vão te cobrar depois... do
teu físico e da tua cabeça. Então, quando você encontra um produtor que está
alinhado contigo, pensando artisticamente junto contigo... é uma coisa. É bom
pra caramba. Quando você chega no set e o cara não tá nem aí, nem te olha
‘Oi tudo bom? E... já gastou tudo isso?’. Só vê o cara falando de dinheiro, só
vê o cara falando que tá ruim, que não tá gostando, que tá gastando muito.
Você fala ‘Pô, o cara só quer vender, o cara não tá nem aí pro trabalho, o cara
não tá nem aí pra ti, né? O cara...’. Então, há uma dificuldade, mas cabe ao

166
ator também se fechar e não deixar que isso atrapalhe o seu trabalho,
obviamente. É óbvio que... os mais experientes, os produtores mais
experientes já têm essa levada, de saber lidar com essa equipe, com gastos e
tal, com orçamento. E também saber lidar com ator. (falando baixo) Falar com
calma, falar com amor e tal, chegar... como o diretor, como o Selton faz ‘Tudo
bem?’, fala aqui baixinho e conversa vê o que está acontecendo, ‘Tudo bem
com seus filhos? Tá? Vai arrebentar na cena hoje que eu sei’. Sabe? O cara
deixa você ‘Ahhh’ (fazendo expressão de encantado). O cara deixa você num
lugar...confortável. É bom quando isso acontece, do contrário é difícil, mas
cabe ao ator não se deixar contaminar.
- Certo.
- Eu no início tomei umas porradas porque eu me envolvia. Eu via alguma
coisa de alguém tratando mal e eu dizia ‘Tratou você mal por que?’, ‘Por isso
e por isso aí’, ‘Não faz isso não, vai com calma, tá? Não faz assim, o cara
trabalha, o cara tá com problema. Falou com ele?’. E eu novinho, os caras
assim ‘O que é que esse menino tá dizendo?’. Porque eu sempre... o ator eu
acho, que sempre trabalha muito com o coração, né?
- Ahã.
- Tá no set e tá preocupado com o cara do cafezinho ao diretor geral. Eu não
tô só lidando com o diretor ‘Eu sou amigo do diretor, foda-se vocês aí, o
diretor é meu amigo’. Não é o caso. Eu acho que o ator, o artista mesmo, que
tem alma e coração ele acaba se envolvendo com todo mundo e acaba
comprando a briga de todo mundo, pro bem ou pro mal.
(Ricardo, 40 anos)

Ricardo fala sobre diversos elementos que mencionamos aqui tanto em relação à
necessidade de um set que possibilite certo silêncio e calma para os atores quanto na relação
com diretores que sejam tranquilos e atenciosos com o ator, como ele cita o Selton no trabalho
enquanto diretor e sua ação de “falar com calma, falar com amor”. A presença do amor aparece
aqui de modo diferente ao da ideia de pagamento pelo trabalho. Trata-se de como falar com o
ator, justamente pelo trabalho com as emoções que ele menciona. Segundo Ricardo “o ator
trabalha muito com o coração” e por isso o modo de falar entre os profissionais do set, a calma
e o silêncio importam mais para esse profissional. O produtor (no caso o produtor executivo)
que pode ser o dono do projeto ou representar esse “cliente” aparece aqui como alguém que
pode atrapalhar ou ajudar o ator a se sentir mais parte do projeto. Segundo Ricardo há os
produtores que se interessam apenas pelos números, outros compreendem que por mais que seu
trabalho seja de cunho administrativo, trata-se de arte e a ideia de que precise haver humanidade
nas relações é evocada. Para o entrevistado os produtores deveriam estar mais atentos a ouvir a
sensibilidade, a alma e o coração que essas pessoas – os atores – têm.
Um elemento que Ricardo afirma em sua fala que cabe ao ator não deixar que um
ambiente de trabalho não favorável o atrapalhe. Ele diz que o ator não pode se deixar
contaminar. Desde que iniciei os estudos de artes cênicas pratico exercícios de alongamento
antes das cenas. No cinema e tv esses alongamentos nem se referem tanto ao risco de distensões

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musculares como no teatro, mas são um modo de concentrar-se no próprio corpo, prestar
atenção na sua pele, nas suas articulações, na sua respiração e começar a deixar o ambiente do
set em outro plano de atenção, fazendo um trocadilho com o campo, deixando-o em segundo
plano. Algumas praticas de meditação que trabalham o foco da atenção também são úteis nesses
momentos. Como Ricardo diz sobre lidar com esse ambiente caber ao ator, pude reparar durante
os trabalhos como alguns atores lidam com essa separação de esferas. Alguns vão para o set
ouvindo música através do fone de ouvido conectado ao celular, outros fecham os olhos e
parecem estar dormindo sentados enquanto esperam no set, outros ficam mais sérios como
forma de comunicar que naquele momento não quer conversar pois há uma cena difícil pela
frente. Sobre se renovar para que algum acontecimento ruim do set não interfira no restante do
seu dia de trabalho há os desabafos no camarim (normalmente cuidando para que o microfone
colado ao corpo não esteja ligado), há choros no banheiro, há saídas pra fumar um cigarro, há
meditações e há fones de ouvido.
Muitas das brigas no set têm o tempo como elemento central, quando erros acontecem
em momentos em que não se há tempo para errar. Pode parecer que o erro é o elemento central,
mas é curioso perceber que quando há tempo sobrando – algo que é muito raro mas acontece –
erros podem acontecer diversas vezes que é difícil originar uma briga. Mas quando não tem
tempo – o que é o usual – parece que quase nem precisa haver algum erro, o jeito de se pedir
alguma coisa de um modo que pareça grosseiro pode ser motivo para uma grande desavença.
Por isso, quando Ricardo fala sobre “saber se fechar” para não deixar que isso atrapalhe seu
trabalho ele está falando sobre um modo de se compreender profissional. Ele sabe quais seriam
as condições ideais para realizar seu trabalho, mas se não as tiver, ele conseguirá realiza-lo.
Sobre essa característica do trabalho do ator de depender de um ambiente emocional estável
para realizar seu trabalho, mas por outro lado não ficar refém dessa condição ideal outro ator
entrevistado disse o seguinte:

- Como é que você escolhe o projeto que você vai se envolver ou não? Assim,
o que você olha prioritariamente quando te convidam para alguma coisa?
- Olha, normalmente quando eu sou chamado... eu sempre sou chamado por
amigos né? Pessoas que já conhecem o meu trabalho. Aí quando você chega,
você vê as pessoas, você vê energia das pessoas dentro do projeto você... me
leva muito. Eu levo muito em conta isso.
- Entendi.
- Às vezes você até pega coisas... já peguei textos bem fraquinhos, mas era tão
boa a energia das pessoas que... que eu fiquei fazendo. Agora, muitas vezes
você vai pelo profissionalismo, pelo o que vão te pagar. Você é um
profissional! Aí você vai... vão te pagar um dinheiro razoavelmente... um
salário razoável. O trabalho pode ser que não seja o melhor, mas você precisa
trabalhar. E eu vou lá fazer. Mas eu tenho sorte de sempre fazer bons textos.

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- Ai, que bom.
- Quer dizer, é muito de intuição, muito de intuição. Porque muitas vezes você
vai para um espetáculo e você acaba brigando, discutindo, as pessoas estão
com a energia negativa. Não. Eu tenho sorte de ter feito espetáculos nos
últimos anos... saio com amigos pra tudo quanto é lado. Você cria amizades.
Você não tem nenhum... porque também é isso, você brigou, teve algum
problema, ah, na hora, você não deixa pra amanhã nem pra... é na hora. Põe
ali, acabou, morreu ali. E tal tal, entendeu? No mundo artístico rola muito ah,
neguinho briga e entra em cena pra fazer um show ou pra... todo mudo puto
já brigou e não sei o quê. E aí não vai fluir. E o barato do teatro é quando você
tá... a coxia é mais importante, quando a coxia tá legal, o resultado é... é
fantástico! É assim que eu... agora é claro que eu tô (pausa) sempre se rolar...
produções, grandes produções, ensaios pagos, salários... porra não penso duas
vezes, não penso duas vezes. Até porque... eu preciso estar trabalhando. Eu
preciso estar trabalhando. Porque eu não posso ficar esperando o figura A, B,
C de produção de elenco me ligar, entendeu? Não posso esperar.
(Sílvio, 55 anos)

Sílvio mostra através de sua fala que há um cálculo sobre aceitar trabalhos que leva em
conta por um lado o ambiente de amizade e boas energias e por outro as produções que lhe
interessem a remuneração. Nesse sentido ele afirma que seu profissionalismo está em, apesar
de preferir trabalhar em ambiente de amizade, ele se dispões em trabalhar independente da
qualidade das relações interpessoais. Ele credita à sorte ter feito bons textos, porque não
estabelece isso como critério de escolha e à intuição por trabalhar em produções em que ele sai
“com amigos pra tudo quanto é lado” ao contrário do ambiente em que as pessoas estão com
energia negativa. Levy, outro ator entrevistado também fala sobre sua habilidade em lidar com
relações de trabalho que dificultam seu fazer. Mas no seu caso, não credita o sucesso nessas
interações a elementos fora de si e sim a sua habilidade em conseguir trabalhar também em
condições adversas.

- E quais as piores condições que você já trabalhou?


- Ah, sempre com gente mau caráter.
- Desde o começo?
- Sempre com gente mau caráter. Essas são as piores condições. Porque aí a
gente vai estar... numa outra frequência. Eu vou ter que estar defendido, eu
vou ter que dar 3 porradas por dia, eu vou ter que pô... entrar numa, numa...
historinha que não é a que proponho pra mim. Eu só quero ir lá, representar,
ganhar meu dinheiro e voltar pra casa. Eu não... Mas aí você tem que entrar
numa outra frequência, aí é... devastador! Essas são as piores condições. A
condição de estrutura, porra, eu vivi todas as piores. Eu vivenciei a emissora
x, fui pra emissora z, na época a gente gravava num galpão de papel, que tinha
fabricas de... umas revistas lá. Então, a gente grava num galpão de papel, sem
isolamento acústico, sem refrigeração, roupas alugadas da Itália que eram de
veludo de verdade, lã de verdade e porra, sem condição nenhuma de nada.
Refletor preso com arame. E meia dúzia de refletores. Ou seja, não é isso que
faz uma novela. Aí você assiste essa novela e fala “Puta que pariu!”. Quando
passou nos Estados Unidos, grandes atores que estiveram com protagonista
falavam “Caraca, como é que vocês fazem aquilo?”. Né? (Pausa). Não é

169
estrutura. Gravei em todas elas. Pô, a emissora t, a primeira vez que fui pra
emissora t, porra (riso) era risível a estrutura que a gente tinha. Aí você vê
tava lá... não é isso! Isso é o de menos. Não é... Agora quando você tá com
gente mau caráter é uma merda. É... a vida lamentavelmente me deu um
grande conhecimento da grande putaria que existe. Eu sei, conheço toda ela,
então... Eu, nesse momento eu tô toureando um. Que é risível. Mas, pô, tem
todo um resto que é tão bom, que ele não vai conseguir nunca. Ele vai se foder
todo dia! Todo dia! Até o momento que eu vou torcer para que ele mude a
frequência, e que ele volte a entrar no jogo. Pô, se ele não entrar... A televisão
te dá isso. Eu sou capaz de interpretar da mesma forma com um ator em cena
comigo, eu fiz isso uma vez na emissora x, ou com uma tapadeira. Não tem
problema! A televisão te dá, se você conseguir, aprender, uma capacidade de
não depender do outro. Quando você tem o contracenar, é tudo aquilo que a
gente conversou. Quando não tem... Eu tava fazendo uma novela, isso no
inicio, eu novinho, porra... coração aberto, né? Aí tava fazendo o lado do cara,
eu aqui dando tudo pra ele. Aí, veio pro meu lado e ele fez a cena assim,
olhando pra baixo. Eu parei, diretor f dirigindo, eu falei “Diretor, o seguinte,
tira o cara aqui, ele tá cansado, bota uma tapadeira aqui que pô... manda o cara
descansar”. O cara “O que é que foi?”. Eu disse “Não tô falando contigo...
Bota uma tapadeira”. Ele falou “Velho...”, eu falei “É o seguinte, te encho de
porrada, não é contigo... Bota uma tapadeira”. Naquela época eu era nervoso,
hoje eu sou um doce de coco.
- (riso)
- A televisão te dá essa capacidade.
- Ahã.
- Que usei uma vez de uma forma muito louca, eu tinha gravado uma cena
com a roupa errada. Era com dois atores que já faleceram. E... e aí eles tinham
ido embora. Aí quando nego sacou isso e tal. Aí quando eles viram, como eu
tinha entrado, eu não estava em nenhum geral junto com eles, em nenhuma
cena, em nenhum momento eu tava junto com eles, sempre separado. Eu
regravei a cena sozinho. Regravei a cena sozinho, a minha parte. Depois nego
colou. Então, te dá essa capacidade, também do... enfim.
(Levy, 54 anos)

O modo como Levy fala da relação com colegas atores amplia nossa percepção sobre
as relações interpessoais enquanto condições de trabalho. Não se trata apenas dos diretores,
nem apenas dos outros profissionais do set, esse ambiente propício para se fazer uma cena na
visar do ator pode ser “atrapalhado” também por um outro ator. Nesse trecho ele cita duas
situações vivenciadas por ele para dizer que é possível que o ator em televisão treine para não
depender seu trabalho da relação com o outro ator. Há alguns mitos dentro da profissão sobre
atores hollywoodianos que filmam apenas “o seu lado” das cenas e depois o ator coadjuvante
ou elenco de apoio contracena com um substituto do ator que tenha as costas e cabelos parecidos
(caso apareçam as costas) ou contracenam mesmo com o vazio ou um boneco (no caso de não
aparecerem as costas do principal). No cinema, em que as cenas são filmadas separadamente
primeiro um “lado”, ou seja, primeiro um ator, depois outro e depois o plano geral, caso tenha
essa compartimentalização entre atores pode ocorrer com mais frequência. Atualmente na
televisão brasileira as gravações acontecem com câmeras simultâneas no que é chamado de

170
eixo “x”. A câmera A capta as imagens de um lado do diálogo, a câmera B outro “lado” e uma
terceira câmera costuma ficar no centro captando o plano geral com todos os atores no
enquadramento. Isso faz com que em poucas repetições a cena já esteja boa para ser enviada
para a edição, possibilitando que mais cenas sejam gravadas por dia. No cinema brasileiro não
há um padrão tão instituído como há em Hollywood, variando muito de acordo com o método
de trabalho do diretor. Nas séries brasileiras também, costuma-se trabalhar mais com o padrão
televisivo, mas não exatamente igual. Muitas vezes opta-se por fazer o plano aberto
separadamente, até para explorar outras possibilidades da fotografia que nas gravações de
novelas em estúdio não é a prioridade. Nas séries brasileiras tem-se, portanto, utilizado uma
linguagem intermediária entre o cinema e a televisão. Isso para dizer que a situação de colocar
uma tapadeira no lugar do ator que não estava disposto a trocar com Levy, dificilmente
aconteceria na televisão dos dias de hoje pelo modo de produção atual. Mas a falta de atenção
do colega é algo nada difícil de acontecer.
Nas gravações externas é sempre uma surpresa para o ator como as câmeras estarão
posicionadas a dinâmica da gravação. Durante uma gravação externa que realizei o diretor
decidiu fazer primeiro o “lado” do ator, depois o meu “lado” e por fim um plano geral com os
dois em quadro. Quando estavam gravando o meu lado o ator estava ali mas não estava
aparecendo na câmera. Ele começou a olhar o celular enquanto eu estava falando minha parte
do texto para ele. Aquilo me pegou tão de surpresa que minha intenção da cena acabou
mudando. Percebi o que ocorreu e pedi para fazer novamente, agora consciente de que não teria
retorno do outro ator e estava contracenando sozinha. Eu precisava olhar para ele com carinho
porque no final daquela cena trocaríamos um beijo. Já consciente das condições ambientais
refiz a cena com o máximo que eu conseguia naquele momento. Aquele dia em casa pensei
sobre como o exercício da profissão deve se basear em treinamentos como esse que estão muito
distantes da oração do teatro que aprendi no curso de artes cênicas. As questões dessa tese, que
foram levantadas através da fala dos atores entrevistados que tem anos de vida profissional, não
são ensinadas no currículo escolar do ator. A cooperação que os atores devem ter entre si
enquanto ideal não é discutida no lugar do “E quando não acontece?”. Quando não acontece,
atores sem experiência usualmente não sabem como lidar.
Durante uma das montagens de peça na escola de teatro um dos atores havia brigado
comigo. Depois de uma discussão não nos falávamos mais. No final da peça o personagem dele
dava um tapa na cara da minha personagem. Ensaiamos o tapa, que não deveria ser de verdade.
Era um movimento muito sincronizado para parecer real. Nos últimos ensaios ele acertou meu
rosto. Eu chamei o diretor para conversar e explicar que ele estava utilizando a cena para

171
descontar sua raiva real em mim. O diretor conversou com nós dois, mas não teve jeito. Em
cena voltei a apanhar de verdade. Nesse sentido, a escola me preparou porque as relações que
acontecem ali, para além do discurso dos professores, podem ser encontradas no mercado
profissional. O duelo que Levy dizia enfrentar no seu atual trabalho se refere a situações assim,
quando atores não simpatizam ou mesmo brigam por alguma situação específica e precisam
continuar contracenando juntos. Para ele essas são as piores condições de trabalho que podem
existir. Se referem às condições em que a troca entre os atores não está afinada, seja pela
indiferença de uma das partes ou pela antipatia de ambas, que substitui a lógica da cooperação
pela lógica da defesa e ataque.
Em termos sociais, tanto o comportamento de Sílvio que diz sair dos trabalhos com
“amigos para tudo quanto é lado” – em que relações mais superficiais são consideradas por ele
enquanto amizade -, quanto a lógica de Levy – quando combativa -, são exemplos das relações
de curto prazo que Richard Sennett menciona em sua pesquisa. São relações propiciadas por
esse contexto e que garantem a sobrevivência dos indivíduos nele. Um dos dilemas que Sennett
percebe ser enfrentado por Rico é sobre os valores que ele deseja transmitir como pai. Ele deseja
transmitir para a família valores como o compromisso mútuo enquanto exerce valor opostos no
ambiente profissional. Essa situação enfrentada por Rico tem relação com as questões
desenvolvidas nesse item:

O comportamento que traz o sucesso ou mesmo apenas a sobrevivência no


trabalho, portanto, pouco dá a Rico para oferecer como modelo paterno. Na
verdade, para esse casal moderno, o problema é exatamente o contrário: como
podem eles evitar que as relações familiares sucumbam ao comportamento a
curto prazo, ao espírito de reunião, e acima de tudo à fraqueza da lealdade e
do compromisso mútuo e o sendo de objetivo. Todas essas são virtudes de
longo prazo.
Esse conflito entre família e trabalho impõe algumas questões sobre a própria
experiência adulta. Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa
sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis?
Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de história de vida
numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova
economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de
lugar em lugar, de emprego em emprego. Se eu fosse explicar mais
amplamente o dilema de Rico, diria que o capitalismo de curto prazo corrói o
caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres
humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade
sustentável. (SENNETT. 2012. p.27).

Lidar com relações de curto prazo no ambiente de trabalho é importante para que o ator
“sobreviva” trabalhando, como demonstramos no decorrer desse item. Ocorre que,
diferentemente de Rico, a contradição enfrentada pelo ator está no campo do próprio trabalho.

172
Para atuar, de acordo com as condições ideais de trabalho que os atores compreendem para si,
é preciso um ambiente emocionalmente estável e relações sociais harmônicas que favoreçam
sua criação artística. Essas “qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros”
mencionadas por Sennett são fundamentais para que a cena seja realizada na sua potencia
máxima. Nesse sentido, o conflito trabalho x família que Rico enfrenta, é vivido pelos atores
no próprio trabalho: trabalho cooperativo x trabalho não cooperativo (e em alguns casos
competitivo). Ou seja, se por um lado não se importar com a indiferença de colegas de trabalho,
ou aprender se concentrar e realizar uma boa cena apesar de um ambiente de relações sociais
hostis é importante para manter-se como um profissional competente, por outro lado, cultivar
“qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros” é importante para habitar a
atmosfera de troca que construir uma ficção a partir de sua própria existência implica. Como
Levy explica, quando os atores estão na mesma frequência é melhor. Melhor porque a
frequência da ficção, mesmo que não seja habitada pelos demais profissionais do set, se estiver
habitada pelos atores de forma harmônica, é como uma música bem executada. A criação estará
fortalecida e ao invés de pensar em se defender, o ator pode aprofundar ainda mais sua criação.
Depois dessa análise, é curioso perceber como é recorrente o uso do termo família
quando atores se referem a um bom grupo de trabalho em entrevistas dadas à imprensa.
“Formamos uma família” pode ser ouvido quando atores falam sobre uma novela que está
acabando, sobre uma companhia de teatro, ou sobre colegas e outros profissionais que
trabalham juntos com frequência. O lugar da família é evocado para marcar que, apesar do
trabalho lidar com relações de curto prazo, é possível instituir relações de longo prazo, ou pelo
menos tê-las enquanto horizonte. Nesse sentido, nem todo amor – como evocado na fala de
Sílvio ou nas postagens de redes sociais que outros atores, e mesmo eu, compartilhamos sobre
colegas de trabalho – é superficial ou falso. Muitas vezes, quando se termina um trabalho
espera-se levar certos amores (seja qual for a ordem de amor) adiante. O que muitas vezes não
acontece. Mas isso não significa que os indivíduos não tenham vivenciado aquela amizade de
forma plena. Sobre isso há inclusive piadas rimadas como “amor de filmagem termina na
montagem”. Esses podem ser os “Laços de Família” ressignificados. Enquanto trabalham
juntos esses laços são profundos e intensos e depois que o trabalho termina as relações são
reorganizadas. Mas sim, algumas delas podem perdurar e atravessarem a ponte do curto prazo
para o longo prazo.
Podemos compreender através dos elementos apresentados as bases sociais para que,
mesmo que pareça românticos ou inocentes, atores insistam em projetar laços familiares e
expectativas de relações de longo prazo no ambiente de trabalho. Isso o ajudará tanto o

173
fortalecimento das redes de relações que podem lhe possibilitar convites para trabalhos futuros,
quanto é importante para a constituição de um ambiente emocionalmente favorável para a
realização das cenas. Por outro lado, as medidas com relação a não confiar excessivamente a
ponto de que uma traição de confiança não lhe exponha profissionalmente é uma alquimia
delicada. Pelo o que me pareceu através das entrevistas e de minhas próprias vivencias, cada
um vai criando essa medida para as relações através da própria experiência, através de erros e
acertos. Dois atores entrevistados descrevem como seriam as condições ideais de trabalho e
unem as ideias apresentadas sobre remuneração do item anterior à ideia de cooperação que
apresentamos agora:

- Quais as condições ideais que você gostaria de ter para fazer o seu
trabalho? 

- Nossa! Aí pegou. Então, ideal, assim... (pausa) Pra não falar... ideal de
profissão pra mim nesse exato momento, é um momento que eu tô passando,
é ter um bom salário. Isso pra mim é o primordial. Porque se você faz um
trabalho e você tá preocupada que você precisa pagar não sei o que, que você
precisa não sei o que lá, que você não tem dinheiro pra almoçar, que você não
tem dinheiro pra ir e voltar, aí como é que fica? Aí fica difícil. Eu acho que o
ideal seria um bom salário, não um bom salário tipo ‘ah, eu sou milionária!’,
mas um salário pra você poder viver daquilo, né? E eu acho que o ideal
também é sempre estar com um grupo bom. Um grupo bom que eu digo,
assim, pessoas que são sinceras, são transparentes com você em cena, fora de
cena, um grupo que seja organizado, um grupo que leve as coisas a sério,
mesmo sem dinheiro. A gente lá na (...), na produtora que a gente está... a
gente é meio assim. A gente trabalha nesse sentido. Então, a gente tenta
manter o local de trabalho como um local de... de amizade também. Em muitos
locais isso é quase impossível, claro, porque tem pessoas de vários lugares.
Mas eu acho que o ideal é você... além de ter um salário legal, é você também
se prestar a ser esse tipo de pessoa, sincera, transparente, estar sempre disposto
a ajudar, disposto a fazer a sua parte e mais um pouco. Então, eu acho que pro
ator isso é... isso é bem importante, assim. Acho que é isso.
(Lívia, 32 anos)

- Quais são as condições ideias que você imagina para o seu trabalho, pra
você fazer bem o seu trabalho? 

- A princípio, um bom relacionamento com o diretor. É importantíssimo.
Honestidade no trabalho, sinceridade é primordial. Ter uma equipe boa.
Elenco e produção, porque eu acho que já partindo dali de dentro você já
trabalha feliz e contente, satisfeito com as coisas. É muito ruim quando tem
picuinha no elenco, as pessoas não se gostam. Isso é ruim. Acontece, você tem
que aprender a lidar... enfim, isso na vida, em qualquer profissão. Mas é muito
bom quando você trabalha com um elenco que é bacana. É outro clima pra se
trabalhar. (Pausa) Trabalhar em um bom teatro é muito importante (Pausa)...
com um cachê bom. De preferência com cachê fixo, e isso você só vai ter com
patrocínio. Então, eu acho que as condições é: uma boa equipe, um bom
relacionamento, um cachê fixo bom, um teatro bom, figurino bom, cenário

174
bom... acho que é o que todo ator quer, na verdade. Acho que é o sonho de
todo ator.
(Marcelo, 32 anos)

Os atores que mencionam as boas relações de trabalho como um dos elementos das
condições de trabalho sempre se implicam na fala seja para dizer como isolar seu trabalho de
situações como discussões que sejam interferências para sua criação, seja para dizer como ele
próprio trabalha na criação desse ambiente mais favorável. Um dos professores que tive durante
a formação de atriz disse em aula que um bom ator é sempre uma boa pessoa. Nesse sentido, o
professor concorda com Sennett quando este diz as qualidades de caráter ligam os seres
humanos uns aos outros. Tanto Marcelo quanto Lívia pensam no mesmo sentido, que para o
ator o “clima” para trabalhar é muito importante, com um “elenco bacana”, com “pessoas
sinceras”. No exemplo que mencionei sobre minha própria experiência de formação contei
sobre um ator que me agrediu em cena, sendo que havíamos brigado fora de cena. Mas imagino
ser pior ainda fazer cenas de beijos ou relações amorosas com quem se tenha uma péssima
relação fora de cena. Durante uma refeição em que estávamos Henrique, Levy e eu, Levy
reclamava sobre uma fofoca em que um membro da equipe teria falado que ele (Levy) era uma
pessoa falsa. Eu não levei o relato a sério e respondi “Ah, fala pra ele que você é ator”, e dei
risada. Levy olhou sério para mim e respondeu “Justamente por ser ator é que eu sou tão sincero
e que a sinceridade pra mim é um valor tão importante”. Fiquei muda. Mas essa situação
acompanhou minhas reflexões por longo tempo. A questão da verdade perpassa todo o trabalho
do ator. Quanto mais “verdade” o público enxergar no trabalho, melhor ator você é. Os custos
dessa verdade são altos no sentido do desgaste emocional que a profissão causa. Mas é consenso
que “fazer de conta” não é para atores profissionais, estes fazem “à vera”. Choram sem cristais
chineses, brigam, riem, gritam, amam, tudo com limites éticos, mas com verdade. Nesse
sentido, a fala de Marcelo e Lívia sobre ter companheiros de trabalho sinceros e o
posicionamento de Levy sobre minha displicência com relação ao tema são importantes
marcadores desse valor. Um valor inerente à relações de longo prazo e a outros traços de caráter
ligados a ele.
Talvez seja exatamente a vontade ou a necessidade de se ligar a algo estável e seguro
que faça com que esses atores busquem a sinceridade como o oásis no meio do deserto. Quando
minha professora disse “Você tem alguém em quem confiar?”, ela estava me perguntando isso:
você tem um oásis de sinceridade com quem você possa conversar francamente sobre o
trabalho? Levy estava certo, tanto em cena quanto fora dela, os atores necessitam da
sinceridade. Mas as letrinhas desse rótulo que quase não se enxerga é que trata-se de uma
175
sinceridade consciente. Não que seu oposto seja a falsidade, mas talvez apenas silêncios ou
afastamentos a fim da auto-preservação. Quando falamos de relações falamos sempre de vias
de mão dupla. Essa forma de capitalismo, como Sennett diz “’Não há mais longo prazo’
desorienta a ação a longo prazo, afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a
vontade do comportamento” (SENNETT. 2012. p.33). Ser sincero implica um laço de
compromisso. Exceto o laço que o artista tem com a sua arte de realiza-la com sinceridade, esta
virtude só pode ser praticada sem ruídos se feita reciprocamente, através de um laço de
confiança. O que nos leva a compreender que os atores mencionados nos últimos trechos
apresentador buscam estabelecer laços de longo prazo, a fim de trabalharem no modelo
cooperativo.
A coexistência desses modelos dissonantes não se resolve. São formas de lidar com o
trabalho que o ator enfrenta a cada novo projeto. Mapear as relações o mais rapidamente
possível para não se frustrar ou “se ferrar”, saber as possibilidades de laços de amizade ou
apenas coleguismo e por fim, talvez proteger-se (caso necessário) dos que não desejam seu
coleguismo e podem ignorá-lo ou atrapalhá-lo, pode ser importante para reconhecer onde deve
manejar cada um dos modelos. Essa análise pode parecer fria vinda de uma atriz, mas é o risco
que corro ao ser antropóloga do meu próprio grupo: assistir um filme no qual tenho um papel e
elaborar uma crítica sobre ele. Durante a escrita diariamente penso sobre erros que cometi como
atriz, confianças traídas, escolhas mal feitas, frustrações de expectativas no trabalho,
humilhações ou brigas desnecessárias. Penso que se houvesse escrito essa tese não teria feito
metade das coisas que fiz – que nem foram tão graves, mas que evitariam o desgaste do
percurso. Mas tenho de considerar a possibilidade de que talvez, se eu não tivesse vivido o que
vivi, não veria grande parte do que consegui ver nessas entrevistas e esta tese não seria esta,
seria outra. Nesse momento, recolho-me ao lugar frio da escrita analítica sabendo que a
qualquer momento outras memórias voltarão e aquecerão novamente essas linhas.

176
Parte II
O Verbo
A vida na hora

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.


Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça


devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,


mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,


inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes


ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isso é justo — pergunto


(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida


feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.

(SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas, 2011)

177
Capítulo 3
A questão da experiência

Foi hoje o nosso primeiro ensaio. Cheguei muito antes da hora. O assistente de
direção sugeriu que marcássemos as nossas cenas e dispuséssemos os apetrechos.
Felizmente Paulo concordou com tudo que sugeri, pois só se interessa pelos aspectos
interiores de Iago. Para mim, o ambiente exterior era importantíssimo: tinha de
recordar-me de meu quarto. Sem esse ambiente eu não poderia recapturar a
inspiração. Entretanto, por mais que eu me esforçasse por me convencer de que
estava em meu quarto, meus esforços não me persuadiam. Apenas interferiam na
minha atuação.
Paulo já decorara todo o seu papel; mas eu tinha de procurar as minhas falas no livro,
ou então me contentar com aproximações. Para meu espanto, as palavras não me
auxiliavam. Na verdade atrapalhavam, de modo que eu preferi dispensá-las de todo,
ou reduzi-as pela metade. Não só as palavras mas também os pensamentos do poeta
me eram estranhos. Até mesmo a ação, como foi delineada, tendia a tolher-me aquela
liberdade que sentira em meu quarto.
Pior ainda, não reconhecia minha própria voz. E depois, nem o cenário, nem o plano
que eu havia fixado em casa se harmonizavam com a atuação de Paulo. Por exemplo,
como eu poderia encaixar numa cena relativamente calma entre Otelo e Iago, aqueles
clarões de dentes e aquelas viradas de olhos que me integrariam no papel? E, apesar
disso, não podia desvencilhar-me nem das minhas ideias fixas de como representar
aquela natureza pra mim selvagem nem sequer do cenário que preparara. A razão,
talvez, é que eu não tinha nada para pôr no lugar dessas coisas. Lera o texto do papel
isoladamente, representara isoladamente o personagem, sem relacioná-lo. As
palavras interferiam na atuação, e esta nas palavras.
Trabalhando hoje em casa refiz o caminho antigo, sem nada encontrar de novo. Por
que repito sem parar as mesmas cenas e os mesmos métodos? Por que a minha
atuação de ontem é exatamente igual à de hoje e à de amanhã? Será que a minha
imaginação secou e que não tenho material de reserva? Por que meu trabalho corria
tão facilmente a princípio e depois estacava num determinado ponto? Enquanto assim
refletia, umas pessoas se reuniram para o chá na sala ao lado. A fim de não lhes
despertar a atenção, tive de transferir minha atividade para outro canto do quarto e
dizer as minhas falas o mais baixo possível para que não me ouvissem. Com surpresa,
constatei que essas pequenas modificações transformaram o meu estado de alma.
Descobri um segredo: não permanecer muito tempo no mesmo ponto, repetindo
sempre o que já se tornou por demais familiar.
(STANISLAVSKI, [1936] 2010, p.29 – 31)

178
Desde que iniciei os estudos na área de artes cênicas, o modo como o conhecimento era
transmitido intrigou-me. As principais indicações bibliográficas dos professores em aula eram
de textos em forma de relatos de experiências. Tratam-se de relatos biográficos que enfatizam
experiências profissionais. Inicialmente pensava ser aquela a característica de um autor
específico. Porém, ao ler outros autores identifiquei que havia um padrão nessa área do
conhecimento, pelo menos no que tange às indicações dos cursos que frequentei. Tentando
desnaturalizar as categorias que envolvem essa escolha no modo de transmissão de um
conhecimento profissional percebi que experiência se tratava de uma categoria central para
compreender as relações sociais que envolvem o uso desses textos.

Os caminhos que dizem respeito à arte de encenar, na visão de grande parte dos atores com
quem pesquisei e com quem convivo, possui técnicas, porém transcendem a elas. O trabalho do
ator se desenvolve em diversos planos simultâneos, como se os aspectos do ‘eu’ individual se
desdobrassem. Quando atuamos, trabalhamos simultaneamente o físico, o raciocínio, a emoção,
habilidades mais específicas como saber lidar com o inesperado, lidar com níveis diferentes de
cooperação entre colegas e níveis diferentes de exigência. Todos esses aspectos integrados – e
outros não mencionados – fazem com que a ideia de técnica tenha que ser considerada de forma
ampla nesse campo, correndo o risco de não abarcar aspectos importantes da profissão. Por isso
os “manuais” de atuação acabam muitas vezes sendo biográficos, já que ao reunir tantos
aspectos distintos o indivíduo acaba evocando o todo do que chamamos de “vida”.

Os relatos de experiência operam, nesse sentido, como uma tentativa de capturar o que
extrapola à teorização sobre a técnica vista apenas através de um desses aspectos. As narrativas
de experiências profissionais tentam dar conta de abarcar os aspectos técnicos de diversas
ordens e sua aplicação, sendo que sua produção torna possível para nós a reformulação da
relação entre teoria e prática. Podemos considerar que tais relatos são práticas teorizáveis para
os que elaboraram e teorias praticáveis para os que leem. Ocorre que muitos desses autores
preferem manter a divisão entre uma e outra e – mesmo estando na posição de quem escreve –
apresentam-se ao lado da prática e, por vezes, contrários à teoria. Nesses casos, ressaltamos que
eles se referem enquanto teoria à possibilidades de racionalização da prática do ator, ou seja,
quando as teorias são desenvolvidas no nível da compreensão de determinado processo de
trabalho e não na aplicação real dele – operando com a oposição teoria x prática. Esse capítulo
dedica-se a aprofundar essas possibilidades de compreender um tipo de conhecimento
profissional e suas implicações no modo como os sujeitos organizam sua própria existência. A
hipótese desse capítulo é que nesse campo há uma tradição de teorias da prática, possíveis

179
através da linguagem experiencial, que englobam esses vários aspectos (físico, mental,
emocional, social etc) que o ator trabalha simultaneamente em seu ofício.

3.1 Experiência: o trabalho sobre si

“Fazer teatro, montar peças não é exatamente a coisa mais


difícil do mundo. Autorar, sim, é difícil. Mas o “pensar” o
teatro, isso é mais difícil ainda”.
(THOMAS, G. Prefácio, in: BROOK, P. 2015, p.11).

No primeiro semestre de 2013, como parte do curso de Artes Cênicas, especificamente na


cadeira de interpretação, estudei sobre o diretor de teatro Jerzy Grotowski. Nascido na Polônia
(viveu de 1933 a 1999), sobreviveu à Segunda Guerra Mundial refugiado com a mãe numa
fazenda. Em 1955 formou-se em interpretação em Cracóvia e foi para Moscou estudar direção.
Depois continuou seus estudos de direção na Polônia. Grotowski criou o Teatro Laboratório em
1959 em Opole e em 1965 transferiu-o para Wroclaw (ambas na Polônia), onde o grupo foi
nomeado como Instituto de Pesquisa Teatral. Grotowski e seu Instituto tornaram-se
mundialmente conhecidos, tendo como principais montagens os espetáculos O príncipe
Constante, Apocalypsis Cum Figuris e Acropolis5. Seu livro Towards a poor theatre, traduzido
para o português como Para um teatro pobre, foi publicado em 1968 e traduzido em persa,
alemão, italiano, francês, espanhol, português e servo-croata, muitas delas ainda no final da
década de 60 e início dos anos 70 do século passado. O Teatro Laboratório colocou a pesquisa
como elemento intrínseco à produção teatral. Os espetáculos eram construídos através de anos
de elaboração que envolvia todo o grupo. No prefácio do livro Para um teatro pobre, de
Grotowski, Peter Brook6 diz:

[...]Até onde sei, ninguém mais no mundo, desde Stanislavski, tem


investigado a natureza do trabalho do ator, seu fenômeno, seu significado, a
natureza e a ciência dos seus processos mentais, físicos e emocionais tão
profunda e completamente quanto Grotowski. (BROOK, P. Prefácio, in:
GROTOWSKI, 2011, p.9).

5
Algumas dessas montagens encontram-se disponíveis no YouTube, através do trabalho de centros de
reconstrução da imagem. O Príncipe Constante, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=UtST2tTN4iA (acessado em 16/01/2017). Acropolis, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0vuoPyTCSv4 (acessado em 16/01/2017)
6
Peter Brook, nascido em Londres em 1925, diretor de teatro e cinema conhecido mundialmente é também
considerado um dos mais importantes teóricos de teatro da atualidade.

180
Neste prefácio Peter Brook sinaliza para a importância de Grotowski nessa investigação
do trabalho do ator considerando “seus processos mentais, físicos e emocionais” (2011, p.9).
Há uma compreensão entre esses autores de que o trabalho do ator não pode ocorrer apenas em
um desses níveis e que por isso, o trabalho sobre si abrange uma completude que dê conta de
todos esses níveis. Ainda no trecho citado Brook afirma a importância de Stanislavski para essa
visão e para a forma de desenvolver estudos de um modo tão profundo e completo. Ainda nesse
prefácio Brook conta sobre a experiência de duas semanas em que Grotowski desenvolveu um
trabalho com ele e os atores de sua Cia em Londres. Brook conta que Grotowski provocou
choques nos atores, mas que o trabalho ali desenvolvido não pode ser descrito já que a confiança
implica que segredos não sejam revelados. Outro motivo para a não descrição do trabalho,
segundo Brook, é por sua característica essencialmente não verbal. “Verbalizar é complicar e
até destruir exercícios que são claros e simples quando indicados por um gesto e executados
pela mente e pelo corpo, como uma coisa só” (idem). Vemos que para o autor verbalizar é
executar um tipo específico de racionalização distante de processos mentais que
acompanhariam o corpo. É como se ao invés de opor mente e corpo ele trabalhasse aqui com a
oposição fala x gesto ou fala x ato.

Para Peter Brook, o mais impressionante é que pessoas vivem esses choques num
trabalho diário no Teatro Laboratório de Grotowski. Não apenas por um período de quinze dias
como foi o trabalho de Grotowski com Brook e seus atores em Londres, mas durante uma vida
inteira. E que essa proposta não é apenas a escolha de um modo de encenar, mas de um estilo
de vida.

O choque de ver que em algum lugar do mundo atuar é uma arte de dedicação
absoluta, monástica e total. A conhecida frase de Artaud “cruel para mim
mesmo” é genuinamente, um estilo de vida completo, em algum lugar, pelo
menos para uma dúzia de pessoas. (idem. p10).

Brook sinaliza a relação entre o modo de executar um trabalho e um estilo de vida


justamente pela estrutura de trabalho de Grotowski. Esse emaranhado de aspectos físicos,
emocionais e mentais é o o que Grotowski trabalha com seus atores e para desenvolver o ofício
dessa maneira eles dedicam todos os dias a esse trabalho sobre si mesmos. Para Grotowski, o
cerne da arte teatral é a técnica pessoal e cênica do ator. Ele rearticula o modo como a
modernidade separa e opõe vida profissional x vida pessoal. Considero que tal rearticulação,
apesar de não eliminar essa divisão, faz operar uma dialética específica que de diferentes formas
podemos perceber não apenas em Grotowski, mas também em outros autores da área. No caso

181
de Jerzy Grotowski sua metodologia implica trabalhar um tipo de “amadurecimento” no ator,
mais do que ensiná-lo algo. Nas palavras do autor:

(...) Não queremos ensinar um kit de habilidades ao ator ou oferecer-lhe uma


“caixa de truques”. O nosso método não é dedutivo a partir de um conjunto de
habilidades. Nele tudo se concentra no “amadurecimento” do ator que se
expressa através de uma tensão levada ao extremo, de um completo desnudar-
se, da exposição da própria intimidade – e tudo isso sem nenhum traço de
egoísmo ou deslumbramento. O ator se entrega como se fosse um presente.
Isso é a técnica do “transe”, a integração total da mente do ator com seus
atributos corporais. Essa integração emerge das camadas mais íntimas do ser
e do instinto, brotando uma espécie de transfiguração.
No nosso teatro a formação de atores não é uma questão de ensinar algo, mas
de tentar eliminar de seu organismo a resistência a esse processo psíquico,
acabando, assim, com o lapso de tempo entre impulso interior e reação
exterior de tal modo que o impulso já se transforma numa reação exterior. O
impulso e a ação acontecem simultaneamente: o corpo desaparece, arde e o
expectador assiste apenas a uma série de impulsos visíveis. Nossa formação
torna-se então uma via negativa – não um agrupamento de habilidades, mas
uma erradicação de bloqueios. (Grotowski. 2011. p13).

Esse trabalho sobre si mesmo que consiste na erradicação de bloqueios é o


“amadurecimento” do ator e a verdade da atuação nesse teatro é o livre trânsito do impulso até
sua manifestação em ação. A atitude de “desnudar-se e expor a própria intimidade” é
exatamente no que consiste a erradicação dos bloqueios, já que esses bloqueios seriam as
mediações sociais que colocamos para controlar ou impedir os impulsos. Nesse sentido, uma
ideia de sinceridade consigo mesmo é imprescindível para o ator desse teatro e também por isso
Brook compara esses atores a monges. O diretor que ocupa o papel indicado por Grotowski é
alguém que auxilia o ator na erradicação dos bloqueios a fim de que impulso e ação se realizem
sem interferência. A colaboração entre ambos exige que haja confiança já que as indicações do
diretor sempre serão “pessoais”. Tal sistema de trabalho que não separa o ‘eu pessoal’ do ‘eu
profissional’, torna a relação entre vida e obra imbrincadas. Em seu teatro para ser um ator
melhor é preciso tomar uma consciência de si em diversos níveis e trabalhar sobre as próprias
características a fim de eliminar os bloqueios que impedem a realização dos impulsos primeiros
em ação.

Durante o trabalho que vivenciei com a professora que seguia a proposta deixada por
Grotowski, os alunos sabíamos que uma falta por motivo de doença era vista como resistência
(a doença era vista como resistência), assim como as dificuldades para executar os exercícios.
Ou seja, não havia “justificativas” para as ausências. Era comum ela identificar a natureza dessa
resistência com algum aspecto da vida do aluno que ele não estava enxergando ou não estava
disposto a transformar e disso decorria por parte de alguns dos alunos braços e pernas cruzados

182
em negação ou lágrimas de aceitação por outros decorrentes do diagnóstico. Os alunos que não
identificavam o caminho através do qual a professora enxergava tais aspectos da vida, como
através de um exercício cênico, a chamavam de bruxa. Essa situação vivenciada durante o curso
de artes cênicas possibilitou-me qualificar a passagem anterior escrita por Peter Brook sobre o
trabalho com Grotowski e seus atores. Para ser um ator de acordo com a perspectiva de
Grotowski é preciso essa dedicação monástica e absoluta que Brook descreve e para isso é
preciso haver uma confiança de que a transformação fomentada pelo diretor está na mesma
direção que o ator deseja para si. Por isso o grau de colaboração de diretores que adotam essa
perspectiva com seus atores dura décadas ou mesmo a vida inteira.

Grotowski teve colaboradores como Eugênio Barba, Ryszard Cieslak e nos últimos anos
de sua vida Thomas Richards. Na disciplina de interpretação que cursei, um dos livros indicados
para leitura foi Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas ([1993] 2012), de Thomas
Richards7. Richards começou seu aprendizado com Grotowski em 1985, primeiramente como
ator e depois como diretor. Em 1996 Grotowski decidiu mudar o nome de seu grupo de trabalho
de Workcenter of Jerzy Grotowski para Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards,
o que expressava o tipo de colaboração entre ambos. Atualmente Thomas Richards é o diretor
artístico do Workcenter. O livro mencionado traz relatos de Richards sobre os três primeiros
anos de sua trajetória de aprendizado com Grotowski.

Neste mesmo semestre em que estudei sobre Grotowski no curso de artes cênicas,
ocorreu no SESC (Serviço Social do Comércio), na unidade da Consolação, em São Paulo, uma
Ocupação do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, com espetáculos, oficinas
e palestras. Dessa programação pude assistir ao filme Action in Aya Irini exibido por Thomas
Richards e Mario Biagini (diretor associado do Workcenter), seguido por uma conversa com
ambos e também assisti à apresentação do espetáculo The living room. Fui a São Paulo,
participar desse evento junto com outros colegas do curso de artes cênicas, incentivada pela
professora de interpretação.

A apresentação do filme Action in Aya Irini foi o primeiro momento em que vimos
pessoalmente Thomas Richards. Sua postura capturou minha atenção. Nas aulas de
interpretação que tive, alguns professores chamariam isso de presença que reflete um propósito.
Essa impressão não era por acaso, já que Grotowski e diretores que trabalham a partir de ideias

7
Thomas Richards (nascido em 1962) se graduou música e estudos teatrais pela Universidade de Yale (EUA) fez
mestrado em Arte, Música e Espetáculo na Universidade de Bolonha (ITA) e doutorado em Artes, Teatro e
Estudos da Dança na Universidade de Paris VIII.

183
deixadas por ele consideram que o corpo do ator em cena deve expressar uma qualidade
diferente da qualidade que expressamos no dia a dia. Algo relacionado a tônus muscular, forças,
tensões, extensões e terminações. Eugênio Barba, chama isso de utilização extra cotidiana do
corpo. Thomas Richards parecia não precisar de um personagem para se sentir um ator em cena
e isso reverberou na compreensão que eu portava até então sobre a arte de encenar. Afinal, estar
na frente de uma plateia para comentar o vídeo de um espetáculo não era necessariamente estar
em cena, ou era? De todo modo, seu corpo refletia que a sua ação ali, portava um sentido para
além do ordinário.

Até então, meu treinamento para tornar-me atriz consistia em um preparo para o
momento em que estivesse em cena. Mas nessa ocasião, minhas definições sobre estar ou não
estar em cena foram abaladas apenas pela qualidade da presença de Richards. Foi a primeira
vez em que a reflexão sobre a possibilidade de um treinamento que extrapolasse o momento da
cena e a intenção de manifestar ser atriz pudesse perpassar todo o cotidiano me atingiu. Ao ver
Thomas Richards e assistir à peça, decidi voltar à leitura de Trabalhar com Grotowski sobre as
ações físicas, agora com a finalidade de pensar antropologicamente este livro em relação ao
que vi. Ao enxergar sua postura, seu modo de falar e olhar, pude compreender aquelas leituras
sobre o processo de trabalho que eles desenvolvem no Teatro Laboratório a partir de uma outra
perspectiva. Antes, compreendia o “estilo de vida” ao qual Brook se referia como algo
relacionado à rotina de trabalho. Um grupo de atores composto por indivíduos de diversas partes
do mundo se juntam em torno de um trabalho e vivem dedicando seus dias a esse trabalho.
Depois de assistir ao Thomas Richards compreendi que outros aspectos podem compor o que
Brook chamou de “estilo de vida” e eles estão relacionados ao modo como o indivíduo se coloca
na relação com o mundo. Aspectos que vão desde o jeito de olhar, até a coluna ereta, a
respiração profunda, a seriedade ou o sorriso delicado, a escuta e o modo de falar.

Compreendi, ao perceber sua postura no espaço, que o trabalho proposto por Grotowski
era impossível ser restrito apenas ao palco. Se para encenar segundo sua proposição é preciso
transformar a si, o ator terá o resultado desse trabalho acompanhando-o onde quer que vá.
Depois da apresentação do espetáculo The living room pude conversar brevemente com
Richards e a impressão sobre sua presença fora de cena se confirmou para mim. Desse modo,
podemos ampliar nossa compreensão sobre a teoria existente nessa bibliografia que reúne
relatos de experiência de atores. Se eliminar certas resistências é um trabalho que o ator deve
fazer sobre si mesmo para ser um ator melhor, o processo vivenciado por esses atores/autores
pode inspirar os atores/leitores a se dedicarem a realizar o mesmo processo sobre si mesmos –

184
ou, processos semelhantes, já que o trabalho sobre si assume características próprias a cada
indivíduo. Cabe ressaltar que grande parte desses atores que escrevem sobre suas experiências
o fazem depois de tornarem-se diretores, o que se relaciona com uma necessidade de ensinar
aos seus atores através do caminho que percorreram.

Pouco tempo depois desse encontro com Richards e os atores do Teatro Laboratório li
uma poesia que parecia se encaixar perfeitamente àquela ocasião:

Há pessoas que pertencem a um lugar


- também aqueles que têm o seu predileto.
Outros não gostam nem mesmo do lhes destinado
Alguns viajam para lugares distantes, exóticos, complicados
- há também os utópicos
Às vezes, encontro aqueles que se afastam ou se aproximam de si mesmo
Hoje conheci alguém que afirma ser ele mesmo o seu lugar.
(Tomasz Lychowski, Asas, p.54).

A qualidade da presença de Richards me trouxe a sensação de ter conhecido alguém que


afirmava ser ele mesmo o seu lugar. Como já pude afirmar num trabalho destinado à disciplina
do professor Luiz Fernando Dias Duarte, o impacto da presença de Richards para a minha
compreensão de arte foi semelhante ao que vivenciei assistindo às aulas do professor Gilberto
Velho e convivendo com ele. Além de ouvir ao que seus alunos diziam e qualificar essas falas
muito rapidamente conferindo respostas precisas em diversos níveis de discurso, ele parecia
saber muitas outras dimensões do que acontecia na sua sala de aula, como se as interações
produzissem laços visíveis apenas aos seus olhos. No curso de orientandos, sua insistência para
desenvolvermos amizades entre nós fora do ambiente acadêmico era porque ele sabia, que a
generosidade e a possibilidade de contribuir ao ouvir uma pergunta ou uma leitura de um
colega, seria infinitamente maior se nossos laços de amizade fossem reais. Sua compreensão
sobre as possibilidades de colaboração para a construção do pensamento científico foram um
bálsamo pra mim que pensava que a academia era uma selva de cada um por si – e pior, de um
devorando o outro.

Aponto com essa descrição para a possibilidade de enxergarmos os métodos nos “seres”.
A compreensão do professor Gilberto Velho sobre a forma coletiva de se produzir o pensamento
acadêmico o fazia ser uma pessoa agradável e divertida com quem podíamos almoçar ou jantar
depois de uma reunião, sabendo que aquele momento de descontração contribuiria para a
criação daquele “laço invisível” no qual a teia de pensamento se tecia. Com relação à presença
plena e consciente de si, ter cursado o Museu Nacional, possibilitou-me ver muitos professores
com essa maestria na forma de manejar o pensamento dos autores e dos alunos de forma a
185
aprofundar reflexões realmente potentes. Talvez a “experiência” de conviver, mesmo que
brevemente, com o prof Velho em outras esferas tenha me possibilitado ver a relação que essa
maestria em sala de aula poderia ter com modo com o qual se vive. Quando um aluno fazia
considerações sobre a colocação de um colega, ele sabia se eram considerações que visavam
contribuir ou se visavam diminuir o pensamento do outro, a fim de afirmar a si mesmo, seja por
uma insegurança de si ou por um “não gostar” de um colega. Tivemos a oportunidade de
conversar sobre isso depois de uma situação-crise em que um aluno chorou ao ser “detido” por
ele quando realizava esse movimento de “destruição” sobre uma colega. Naquele momento, o
professor agiu para manter as condições de trabalho que ele considerava importantes no seu
lugar de troca, que era a sala de aula, quando identificou a intenção destrutiva na fala do aluno.
Sinalizou para a arrogância da fala, que devia ser deixada de lado a fim de que a troca sobre o
pensamento tivesse lugar.

Ainda durante o mestrado não consegui enxergar o lugar que esse aprendizado, além da
sensação de ter meu pensamento protegido em seu ambiente, poderia ter para mim. Durante a
escrita dessa tese compreendi que esse elemento da sua transmissão era vital para a realização
do empreendimento final do doutoramento. Para escrever era preciso que eu afirmasse ser eu
mesma o meu lugar. Trocas são bem-vindas, mas antes de mais nada, é preciso saber que a
articulação do pensamento de autores e das entrevistas é um pensamento meu, que tem tanta
legitimidade quanto qualquer outro. Essa afirmação do próprio lugar, para uma mulher, negra,
oriunda das camadas populares é pressuposto para a escrita que desenvolvi. Identificar os laços
que movem os humanos em suas falas, em seus olhares, em seus silêncios, foi fundamental para
o trabalho. Do mesmo modo, é possível enxergar num ator e diretor como Richards que ele vê
além do que eu estava conseguindo ver. Não falo aqui de nada “espiritual” no sentido místico
que a palavra pode conter, mas de enxergar as relações sociais em cada ato do trabalho. O que
é visível aos olhos, depende do que os olhos estão dispostos a enxergar.

3.2 Os Relatos de Stanislavski

A perspectiva apresentada acima atrela vida e obra de modo quase indissociável.


Podemos tomar isto como um indicativo da razão pela qual os relatos sobre processos de
aprendizagem são comuns no universo das indicações bibliográficas dos cursos de artes cênicas.
Há uma tradição de escritos no formato de relatos pelo menos desde Constantin Stanislavski

186
com Minha vida na arte, publicado nos EUA em 19238. O russo Constantin Stanislavski (1863-
1938) foi ator, diretor e teórico das artes cênicas. Em 1897, Stanislavski e Vladímir
Niemiróvitch-Dântchenco fundam o Teatro de Arte de Moscou. As encenações dirigidas por
Stanislavski são um marco para o teatro ocidental e transformaram o teatro do século XX. Suas
teorias sobre a arte da encenação foram constituidoras da base de formação dos maiores
encenadores ocidentais do século XX e ainda hoje são leitura obrigatória nos cursos de artes
cênicas.

Em seu livro Minha vida na arte, Stanislavski narra sua trajetória na arte de encenar,
articulando os acontecimentos e os ensinamentos que tirou deles. O autor, ao invés de
apresentar fórmulas acabadas de como um ator deve fazer o seu trabalho, conta suas
experiências de vida e as conclusões às quais chegou a partir dessas experiências. A seguir
transcrevemos um trecho dessa obra em que Stanislavski fala sobre a importância do uso da
voz e do “saber falar” para o ator. Ele conta sobre como estava enredado nas reflexões sobre
esse tema, quando foi assistir a um concerto de um quarteto de cordas que lhe possibilitou uma
síntese sobre o tema. Ele acabara de sair de uma apresentação da qual havia se sentido um
fracasso principalmente pelo mau uso da voz ao declamar um texto poético. Segundo o autor,
a musicalidade usual utilizada para falar textos versados era repulsiva. Para ele, as
declamadoras de concertos que leem versos trágicos de forma terna o põem fora de si. Mas,
para o autor, há outro modo de declamar tais versos que é de forma simples, vigorosa e nobre.
Para ele, esta segunda maneira poucos conseguiam (somente os melhores do mundo) e apenas
por alguns instantes, para depois desaparecer por trás do grosso véu do habitual pathos teatral.
Seu descontentamento com a própria atuação foi originado por essas observações.

[...] Precisamente era esse discurso nobre e simples que eu desejava dominar.
Nele sentir a verdadeira musicalidade, o ritmo sustentado e de acordo com o
policromo, e o desenho interior do pensamento e do sentimento, transmitido
serena e tranquilamente. Com meu ouvido interior, ouvia o discurso musical
dos versos sem poder captar suas bases.
Nem bem começava a pronunciar em voz alta os versos de Púskin, todos os
hábitos acumulados durante os anos que se fizeram carne em mim, saíam até
a superfície em tropa. Para salvar-me deles acentuava forçosamente o
significado das palavras, a essência das frases, sem esquecer as pausas dos
versos, nos lugares correspondentes. Mas, como resultado, obtinha em vez de
versos uma prosa sisuda e pesada. Me atormentava, no desejo de chegar a
compreender o que soprava meu ouvido interior..., mas infrutiferamente. [...]
Depois desse espetáculo começaram de novo as vacilações, talvez as mais
profundas de todas as experimentadas por mim. Me parecia que toda a minha
vida havia sido em vão, infrutífera, posto que havia seguido um caminho falso
na arte.

8
Uma segunda versão do texto revisada pelo autor foi publicada na Rússia em 1926.

187
No decorrer desse período assisti, por obra do acaso, ao concerto de um dos
nossos quartetos de cordas mais famosos.
Que felicidade é ter a sua disposição compassos, silêncios, um metrônomo,
um diapasão, uma harmonização, contraponto, exercícios elaborados para o
desenvolvimento da técnica, uma terminologia que salienta esta ou outra
representação artística, ou os conceitos das sensações criadoras, e das
vivencias! Há muito está reconhecida na música a necessidade dessa
terminologia. Existem ali bases legítimas nas quais alguém pode se apoiar
para não fazer as coisas de qualquer forma, senão como devem ser. As
casualidades não podem jamais aparecer na qualidade de fundamento, e há
que reconhecer que, sem bases, não pode haver arte autêntica, senão uma
espécie de diletantismo, coisa de aficionados. Há uma absoluta necessidade
de bases em nossa arte e, em particular, na arte de pronunciar e ler os versos9.
(STANISLAVSKI, 2013. P.292-3).

Nesse trecho vemos que o autor parte de uma inquietação vivenciada decorrente do que
ele considerou um fracasso de sua atuação com um texto versado para elaborar teoricamente a
exigência de bases comuns para esse campo de atuação. Depois desse trecho ele elabora uma
proposta de diálogo entre a música e o “saber falar” dos atores para que utilizemos mais do que
apenas algumas notas musicais nos nossos instrumentos. Segundo o autor tentamos expressar
os sentimentos mais complexos por meio de cinco ou seis notas que utilizamos do nosso registro
vocal ao falar. Para ele, seria o mesmo que tentar executar a nona sinfonia de Beethoven em
uma balalaica.

Esse modo de organizar o conhecimento a ser transmitido traz para o ator que lê a
dimensão empírica que esse tipo de conhecimento porta. Tentando relacionar o que indicamos
sobre os aspectos que podem envolver a arte do ator, vemos através desse trecho que o autor
fala sobre seus sentimentos, sobre modo de executar uma ação através do corpo e também fala
sobre reflexões com um grau de elaboração. Todos esses aspectos compõem esse conhecimento
que visa ressoar no indivíduo que o lê não apenas no plano da compreensão lógica, mas também
despertando sentimentos, por exemplo.

Na tese “Minha vida na arte de Konstantin Stanislavski: os caminhos de uma poética


teatral”10, Cristiane Layher Takeda afirma sobre o livro:

[...] Minha vida na arte é mais do que um simples relato de sua experiência
teatral. Podemos encontrar nesse texto autobiográfico os princípios que regem
sua atividade artística, seu modus operandi, seu “espírito”, sua visão de
mundo, ou ainda, experiências, pensamentos, contatos, influências que foram
formando e lapidando o sujeito artístico, o ser criador Konstantin
Stanislavski. Encontramos, assim, na autobiografia, a formação e o

9
Tradução livre.
10
Tese de doutoramento defendida na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo em 2008.

188
desenvolvimento da sensibilidade artística voltada para o mundo do teatro.
(TAKEDA, 2008, p.12).

Ao narrar suas experiências, Stanislavski comunica ao leitor os elementos que


fundamentam o seu modo de ser artista. Em seus escritos, técnica e ética são tidas como
aspectos que compõem um mesmo fazer. Como lidar com os desafios da cena, como lidar com
os colegas de trabalho, como ouvir as indicações do diretor e segui-las, tudo isso está descrito
através da narrativa das experiências vividas e operam como um guia, para que seus alunos
compreendam seu modo de trabalho, que nomeou de sistema. Como Takeda afirma, neste livro
estão “os princípios que regem sua atividade artística”. Estes princípios são transmitidos
através da narrativa dos acontecimentos de uma trajetória.

Stanislavski apontou para a necessidade do ator em zelar por sua postura na vida, no
sentido de uma ética. E o modo como desenvolveu sua escrita cumpriu grande efeito para essa
proposta, já que seu modelo autobiográfico aciona esse mecanismo. Adriane Gomes fala sobre
essa relação entre trabalho e vida na obra de Stanislavski:

O trabalho era desenvolvido com uma postura ética até então desconhecida no
meio teatral, o que gerou uma grande unidade e essencialmente um admirável
trabalho em equipe. [...] E, para o desenvolvimento do trabalho teatral são
necessários princípios que rejam não só a arte, mas antes de tudo a vida. A
observação e compreensão das situações cotidianas de nós mesmos e de nossa
relação com o meio e com os outros indivíduos já será um começo para o
processo de criação. A partir desta proposta, podemos observar que a arte
teatral passa a ganhar uma nova abrangência, em que o verdadeiro sentido
artístico e estético está aliado, diretamente, a vida, e o grande desafio do artista
é o de compreender os movimentos da vida e dar uma significação a esta
através da arte. Isto significa que as propostas não visavam simplesmente à
construção externa do fazer artístico. A busca exterior deve ser evitada como
justificativa das carências, deve-se buscar a originalidade dos pensamentos
e dos sentimentos de sua personalidade [Stanislavsky, 1986, p.90]. (Gomes.
2008. p14)

Gomes nos mostra que o trabalho de Stanislavki unia ética e estética, fazendo com que
o ator do seu teatro repensasse a forma como desenvolvia sua relação com o mundo. O trabalho
em equipe que a autora aponta, tratava-se de uma disposição que esse ator deveria ter para o
trabalho colaborativo. Durante o curso de artes cênicas que fiz mais de um professor indicou a
leitura do texto sobre ética de Stanislavski. E quando alguma briga surgia durante a montagem
de uma peça eles tornavam a dizer “Vocês precisam reler a ética”. Esse trabalho sobre si mesmo
a fim de aperfeiçoar uma constituição moral que beneficie o trabalho coletivo que é pressuposto

189
para o teatro é visto como essencial para aqueles que seguem o pensamento dos autores
mencionados que articulam vida e arte como um único amálgama.

A seguir transcrevemos um trecho desse texto que circulou em forma de manuscrito no


meio teatral. Nesse trecho, é evidente a relação entre vida pessoal e vida profissional, ou
simplesmente vida e trabalho, que Stanislavski faz:

A estória escandalosa de um ator do nosso teatro, e a severa reprovação com


a pena que seria licenciada em caso de rescindir em um comportamento assim
inadmissível, suscitou muita bulha e consequentemente muita fofoca na
escola. Conceda-me, por favor – se opôs Govorkov – A direção não tem o
direito de misturar na vida privada de um artista! Imploramos a Arkadj
Nicolaievch que nos iluminasse sobre este problema e ele nos disse o
seguinte:
- Não lhes parece insensato com uma mão construir algo e com a
outra destruir algo que se construiu? Pois bem, a maior parte dos atores se
comporta assim. Em cena se esforçam para fazer uma impressão bela,
artística. Mas apenas descem do palco, fazem tudo para desiludir os
espectadores, como se quisessem fazer uma piada com que lhes admirou um
momento antes. Não posso nunca esquecer o golpe amargo de um famoso ator
hóspede. Não direi seu nome para não ofuscar a lembrança.
Vi um espetáculo
inesquecível. A impressão foi de tal modo desconcertante que não pude voltar
logo para casa sozinho. Devia absolutamente falar ainda da experiência que
tinha acabado de ter no teatro. Andei então com um amigo a um restaurante
enquanto nos enlevávamos nas lembranças, com nossa grande comoção no
local entrou ele, o nosso gênio. Não pudemos nos conte e nos precipitamos a
ele para exprimir-lhe nossa admiração. O artista nos convidou para jantar
numa saleta separada, e ali se embebedou, lentamente diante dos nossos olhos,
até reduzir-se ao estado de uma besta. Vem fora a sua marca de homem e de
ator, escondida sob uma fachada brilhante e lhe saíram fora sob forma de
gabação desgostosa, o seu egoísmo mesquinho, as intrigas, as bisbilhotices e
os outros atributos de um mesquinho. E, para terminar, se recusou a pagar o
vinho que ele mesmo tinha bebido. Nos foi preciso muito tempo antes de
terminarmos de saldar a conta daquela despesa não programada. E como
recompensa nos coube acompanhar até o hotel o ídolo, transformado em besta,
que arrotava e blasfemava, no qual no hotel não queriam deixá-lo entrar
naquele estado indecente. Coloquem juntas as impressões boas e aquelas más
que vocês receberam de um gênio, e procurem ver quanto é a
soma!
Aproximadamente tanto quanto um arroto de uma espumante – disse
Sustov fazendo uma piada.
Cuidem para não acontecer também a vocês algo
do gênero quando se tornarem atores famosos – concluiu Torzov.
Só quando
está na intimidade da sua casa, num estreito cerco de amigos, o artista pode
despir-se, porque o seu papel não termina no fechar das cortinas, também na
vida é obrigado a ser portador e mediador de beleza. Caso contrário, com uma
mão constrói algo e com a outra destrói. Devem entender tudo isso ao fim dos
primeiros anos que servirem a arte, devem se preparar para esta missão. Se
eduquem para a dignidade, ética e disciplina necessárias a quem opera para a
comunidade e porta ao mundo a beleza, a grandeza e a nobreza! (Stanislavski,
Ética, item XIX, 1980)

O conhecimento que o autor apresenta poderia apenas dizer sobre a dignidade, ética e
disciplina pelas quais ele entende que o ator deve se portar. Mas descrição de uma polêmica na

190
escola e a descrição que um dos personagens faz sobre uma situação vivida conferem carne ao
conhecimento transmitido. Em outros termos, conferem experiência à teoria. Seu livro A
preparação do ator é o mais comum de ser encontrado nas bibliografias de cursos de artes
cênicas brasileiros. Nesse livro há uma sistematização maior das vivências distribuídas por
temas a serem trabalhados no ator iniciante. Este é o primeiro livro de uma trilogia que contém
os assuntos a serem abordados em seu sistema. Stanislavski fundou não apenas um novo estilo
de encenação, fundou um estilo de escrita que se relaciona diretamente com a visão de mundo
desse novo ator ocidental que atravessa o século XX e que continua a ressoar nos atores do
século XXI. Para concordar ou para se opor a ele, todos os entrevistados dessa tese
mencionaram Stanislavski em suas falas. Além disso, mesmo os autores que são lidos como
opostos a ele, escrevem de modo muito semelhante. No trecho a seguir, do primeiro capítulo
do livro A preparação do ator, é evidente que o modo da escrita de Stanislavski é composto
por uma dimensão que evoca sentidos e sentimentos. Trata-se de uma forma de delinear a
experiência que prepara o ator para o trabalho:

É hoje o dia da prova de atuação. Pensei que poderia prever exatamente o que
aconteceria. Senti-me cheio da máxima indiferença até que entrei no meu
camarim. Mas, uma vez lá dentro, o coração disparou e eu quase tive um
enjoo.
No palco, a primeira coisa que me perturbou foi a extraordinária solenidade,
o silêncio e a ordem que ali reinavam. Passando da escuridão dos bastidores
para a plena iluminação da ribalta, das gambiarras, dos refletores, senti que
estava cego. O brilho era tão intenso que parecia formar uma cortina de luz
entre mim e a plateia. Senti-me protegido contra o público e, por um momento,
respirei livremente, mas meus olhos logo se habituaram à luz, pude enxergar
no escuro e tanto o temor quanto a atração do público pareceram-me mais
fortes do que nunca. Estava disposto a me virar pelo avesso, a dar-lhes tudo o
que tinha e, entretanto, dentro de mim, nunca me sentira tão vazio. O esforço
para espremer mais emoção do que eu possuía e a incapacidade de fazer o
impossível encheram-me de um temor que petrificava minhas mãos e meu
rosto. Todas as minhas forças gastavam-se em esforços infrutíferos e inaturais.
Minha garganta contraiu-se e todos os sons pareciam subir para uma nota
aguda. Minhas mãos, meus pés, meus gestos, minha fala tornaram-se, todos,
violentos. Senti vergonha de cada palavra, de cada gesto. (Stanislavski, A
preparação do ator, 2010, p 35-6)

Esse modo de relatar o vivido, com ênfase em aspectos sensíveis da experiência, ressoa
no ethos e visão de mundo dos atores que leem esses escritos e dos professores que baseiam
seus ensinamentos nessa leitura. Tanto o verbo sentir que aparece de forma recorrente, quanto
os advérbios de estado ou as partes do corpo evocadas como mãos, olhos, rosto, pés ou garganta
compõem uma cena descrita pela via das sensações. Trata-se aqui de relatar uma situação

191
através da experiência do sujeito que narra. Nesse sentido, o modo como atores escrevem pode
nos ajudar a compreender o lugar que a experiência tem para a profissão.

O campo antropológico também viveu uma valorização da categoria experiência


durante o século XX que modificou igualmente seu modo de escrita. Assim que percebi o
quanto Stanislavski era mencionado nos cursos de artes cênicas pensei “Stanislavski deve ser
para as artes cênicas como Malinowski é para a antropologia”. Mas as semelhanças entre ambos
são muito mais profundas do que eu poderia imaginar inicialmente. São autores que registraram,
cada um no seu campo de trabalho, a passagem para uma visão de mundo em que o valor está
no indivíduo e na sua experiência. A “obra fundadora” Os argonautas do Pacífico Ocidental,
de Malinowski, marca um novo modo de fazer antropologia e de comunicar
antropologicamente.

Na obra A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX, James


Clifford analisa a escrita de Malinowski e a compara com Joseph Conrad. A fronteira entre
ficção e realidade ainda é uma questão para a nossa sociedade e dependendo do modo como a
parcialidade de um ponto de vista é apresentada (já que a parcialidade em si é inerente a
qualquer ponto de vista), muitas vezes é tida como ficcionalização. Quanto mais aspectos do
sentir forem manifestados na escrita, mais ficcional o escrito tende a ser classificado. James
Clifford chama a atenção para o desenvolvimento de uma nova “subjetividade etnográfica” no
início do século XX. E ao mesmo tempo em que essa “subjetividade” é constituída, ela ajuda a
constituir os domínios do conhecimento antropológico. Segundo Clifford:

Ao profissionalizar o trabalho de campo, a antropologia transformou uma


situação amplamente difundida num método científico. O conhecimento
etnográfico não podia ser propriedade de qualquer discurso ou disciplina; a
condição de descentramento num mundo de distintos sistemas e significados,
uma situação de estar na cultura e ao mesmo tempo olhar a cultura, permeia a
arte e a escrita do século XX. Nietzsche anunciou claramente a nova atitude
em seu famoso fragmento “on truth and lie in a extra-moral sense” ao
perguntar: “O que é a verdade portanto? Um batalhão móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que
foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após
longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias (apud
Kaufman, 1954, p. 46). Nietzsche talvez mais do que Taylor, foi o principal
inventor da ideia relativista de cultura (...). (Clifford, 2008, p. 94).

A ciência constitui-se nesse campo de disputa e o processo de estabelecer essa


“subjetividade etnográfica” emergente no início do século XX como o lugar de fala da
antropologia, colaborou para que a obra de Malinowski fosse vista como um marco fundador.

192
James Clifford assinala que a maior diferença textual entre Malinowski e Conrad é em relação
à verdade representacional. Segundo o autor:

Conrad assume uma posição irônica com relação à verdade representacional,


uma atitude apenas implícita na escrita de Malinowski. O autor de Os
argonautas se dedica a construir ficções culturais realistas, enquanto Conrad,
embora comprometido de forma semelhante com isso, representa a atividade
como a prática contextualmente limitada de contar histórias. (idem, p.102).

Quando comecei a ler Stanislavski estava preocupada com a verdade. Eu queria saber
se era uma obra de ficção, se era uma biografia ou se era um livro teórico. Os professores
respondiam cada um à sua maneira. Alguns diziam “É biográfica, ele viveu isso”, então eu
queria saber como ele poderia lembrar de tantos diálogos, será que ele tinha um caderno de
campo? Outros me disseram “O personagem principal é seu alter-ego, então é uma ficção auto-
biográfica”, ou “Ele criou essas passagens inspirado em vivências suas para poder dar aula, é
um livro didático romanceado”. Ou seja, antes de descobrir essa resposta (caso ela exista),
minha pergunta se transformou e consegui começar a enxergar que o trabalho em arte é
diferente do trabalho em ciência. A questão da verdade é uma questão para a ciência e não para
a arte. Até então eu estava lendo esses livros como antropóloga e não como atriz. Vi que para
os atores importava mais o que estava sendo transmitido através dos relatos de experiências do
que quais foram suas condições de produção. Em outro nível, talvez nem o relato em si tenha
importância e sim as possibilidades de aplicação daquele conteúdo.

Discípulos de Stanislavski como Vasili Toporkov e Sônia Moore também publicaram


relatos. Atualmente discípulos de discípulos de Stanislavski publicam livros de relatos e este
formato de escrita sobre encenar também é publicado por discípulos de outros mestres, de outras
“correntes” da tradição teatral ocidental. O termo “correntes” aparece aqui entre aspas porque
as similaridades e diferenciações entre os grandes encenadores ocidentais do século XX são
objeto de polêmicas no meio e não tão facilmente delimitadas as fronteiras. Estas, muitas vezes
são desmentidas pelos próprios artistas ou por seus alunos mais próximos, que muitas vezes
preferem ressaltar as influências que as dissonâncias.

As formas de compreender os escritos sobre a arte de encenar – que podem ser


considerados como teorias teatrais, desde que tenhamos no horizonte as especificidades da
categoria teoria nesse caso, devem ser analisadas tendo em vista o contexto ao qual determinada
leitura serve. Um professor de interpretação com quem tive aula chegou no Brasil nos anos de
1970, disse que a forma como Stanislavski foi lido aqui tem muito a ver com um tipo de
oposição que o meio teatral fazia à ditadura militar através de uma ênfase no trabalho corporal

193
do ator e de um ethos hedonista. Muitos nesse período associaram Stanislavski a uma arte mais
racionalizada, por causa de seu “método”. Essa associação o colocava num território tido como
reacionário da arte, pelo menos para alguns. Atualmente, algumas oposições à sua teoria têm
sido revistas e a publicação de relatos de discípulos têm cumprido papel central nesse processo.

Mas como poderia o autor que escreveu as linhas transcritas anteriormente sobre aquelas
sensações que teve ao subir num palco e não conseguir se expressar ser anti-hedonista? Como
é possível, mesmo escrevendo a partir de experiências, ser considerado um autor que privilegia
apenas aspectos da racionalidade técnica? É interessante perceber que, mesmo elaborando um
método e escrevendo sobre aspectos considerados técnicos da profissão do ator, Stanislavski
escreveu de um modo que faz sentido para os atores ainda hoje. Esse modo privilegia o sensível
e articula-se à visão de mundo e ao ethos dos atores ainda atualmente. Por esse motivo, seus
escritos perduraram e continuam exercendo a função de clássicos até os dias de hoje.

A dimensão do sensível ser tão importante para o ator faz com que a experiência de já
se ter passado por algo seja vista como um capital. Isso pode aparecer em diversas situações,
uma delas diz respeito à ideia de que ao acúmulo de experiências na vida – e não
necessariamente na vida em cena – faz do individuo um ator melhor; a outra diz respeito à ideia
de que um diretor que não atua ou nunca foi ator, não tem mecanismos suficientes para dirigir
bem um ator. Essas duas ideias que tem a valorização da experiência como principal norteador
trazem implicações para o modo como os atores orientam suas vidas, muitas vezes no sentido
de buscar uma variedade de experiências, e no modo como desenvolvem suas relações de
trabalho, no caso com diretores que passaram ou não passaram pela experiência de atuar.

3.3 A Ética

Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato:


o ressuscitar dos mortos das cenas de batalha,
o ajeitar das perucas e dos trajes,
a faca arrancada do peito,
a corda tirada do pescoço,
o perfilar-se entre os vivos
de frente para o público.

As reverências individuais e coletivas:


a mão pálida sobre o peito ferido,
as mesuras da suicida
o acenar da cabeça cortada.

As reverências em pares:
a fúria dá o braço à brandura,

194
a vítima lança um olhar doce ao carrasco,
o rebelde caminha sem rancor ao lado do tirano.

O pisar na eternidade com a ponta da botina dourada.


A moral varrida com a aba do chapéu.
A incorrigível disposição de amanhã começar de novo.

A entrada em fileira dos que morreram muito antes,


nos atos três e quatro, ou nos entreatos.
A volta milagrosa dos que sumiram sem vestígios.

Pensar que, pacientes, esperavam nos bastidores


sem tirar os trajes,
sem remover a maquiagem,
me comove mais que as tiradas da tragédia.

Mas o mais sublime é o baixar da cortina


e o que ainda se avista pela fresta:
aqui uma mão se estende para pegar as flores,
acolá outra apanha a espada caída.
Por fim uma terceira mão, invisível,
cumpre o seu dever:
me aperta a garganta.

(Impressões do teatro. SZYMBORSKA. 2011).

A tragédia é composta por cinco atos. Na poesia, Wislawa Szymborska sinaliza para
seus leitores uma sensibilidade em olhar para o que está além do intencionalmente apresentado
enquanto peça. Para alguém que assiste enquanto público, o momento em que a cena é desfeita
são os agradecimentos. De forma detalhista a autora descreve como esse momento pode ser
visto como um ato à parte. Em tempos em que muitos saem do teatro antes dos agradecimentos
terminarem, ou que as salas de cinema cortam os créditos do filme para não atrasar a próxima
sessão, observar e escrever sobre esse “sexto ato” da tragédia é um gesto de desnaturalização.

O filósofo francês Michel Foucault, em História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres


(1984), apresenta na sua introdução, como já citado na introdução desta tese, o motivo pelo
qual realizou a pesquisa contida no livro. Segundo Foucault, a curiosidade foi o motivo que o
impulsionou. Porém não se trata de qualquer curiosidade, mas:
[…] a única espécie de curiosidade que vale a pena ser perseguida com
um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que
convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que
vale a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos
conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível o
descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a
questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e
perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a
olhar ou a refletir. (Foucault, 1984, p. 15).

195
A reflexão de Foucault sobre a curiosidade para ilumina a raiz do pensamento da autora
da poesia acima. A curiosidade que ela demonstra com os elementos evocados na poesia não
são da ordem de uma curiosidade de colecionador, mas da curiosidade que nos separa de nós
mesmos, que produz descaminhos. Diferenciados no modo de comunicar, Szymborska e
Foucault se assemelham na motivação. Como produto final do trabalho em teatro, a encenação
omite diversos elementos do seu processo de produção. Para ser capaz de enxergar por detrás
do pano, é necessário um olhar que acompanhe o cotidiano de trabalho e desconstrua a cena
para pensar os atores. As possíveis moralidades do trabalho do ator envolvem relações
cotidianas de trabalho que se ligam a diferentes tradições nas artes cênicas. Cada tradição
propõe um modo ético de vivenciar a profissão. Porém, para além das variações, essas tradições
apontam num mesmo sentido, qual seja o da colaboração entre os atores e o de colocar-se a
serviço de algo maior do que si mesmo - a Arte.

A compreensão de ética profissional do ator de teatro contemporâneo no Ocidente parte


de um ponto que podemos perceber no texto "Ética" de Stanislavski, já citado no item anterior:
como lidar com a relação entre as esferas pública e privada, ou profissional e pessoal na criação
artística. Nesse sentido, ética profissional e ética pessoal são vistas de modo relacional.
Atualmente, como consequência dessa compreensão, a ideia do que seja um trabalho ético é
evocada como critério de julgamento de ações entre companheiros de trabalho, funcionando
como referência de um modo certo de fazer e também de ser. A relação entre o fazer e o ser,
como veremos, é fundamental para a construção de si enquanto ator, no interior desta
perspectiva.
Durante o curso de Antropologia das Moralidades, tive contato com um texto que me
fez refletir sobre a relação entre as moralidades do pesquisador e do pesquisado, já que o esforço
para que eu conseguisse enxergar essas moralidades no meu campo de pesquisa era grande,
devido meu pertencimento. Trata-se do Capítulo VI do livro Elementos de Organização Social
([1951] 1974), de Raymond Firth (1901-2002), intitulado Padrões Morais e Organização
Social. Firth foi discípulo de Bronislaw Malinowski e é um dos mais importantes representantes
do pensamento antropológico social britânico. O autor narra o que chama de "experiência
pessoal", referente ao aspecto moral de dar. Segundo Firth, enquanto estava na ilha isolada de
Tikopia, na Polinésia, dependia da cooperação da população local para obter informação e
orientação. O autor diz que algumas informações eram dadas "graciosamente", outras, porém -
como as religiosas - eram objeto de reserva. Nesse processo o autor deparou-se com a avidez
da população local por bens materiais e teve sua expectativa quanto a uma amizade

196
desinteressada frustrada, sentindo-se irritado e exausto (FIRTH, [1951] 1974, p. 212). Quando
o único homem do local a quem ele julgou desinteressado frustrou igualmente suas
expectativas, Firth passou a questionar a si próprio:

Quais eram essa amizade e essa bondade desinteressada que eu


esperava encontrar? Por que, na verdade, essas pessoas deveriam
prestar-me serviços, um perfeito estranho, sem receber nada em troca?
Por que se contentavam em deixar que eu decidisse com que
recompensá-los ao invés de expressar suas próprias ideias sobre o que
gostariam de ganhar? Em nossa sociedade europeia até onde podemos
dizer que existe desinteresse? Até onde não empregamos esse termo
para designar um item imponderável de toda uma série de serviços e
obrigações interligados? [...] (idem, p. 213).

As perguntas seguem e a desnaturalização que o autor faz de sua reação possibilita uma
mudança de suas atitudes morais - "Não mais me indignava" (idem, p. 214). Desse modo, foi
possível que Firth percebesse os dois sistemas de reciprocidade - o dos habitantes de Tikopia e
o europeu. O autor destaca também, a dificuldade que o pesquisador enfrenta na produção
antropológica sobre padrões morais. Isso porque mesmo estando teoricamente preparado, "é
somente vivendo pessoalmente uma experiência que se pode avaliar tudo o que ela envolve"
(idem). O sentimento de frustração vivenciado por Firth partiu de uma expectativa moral
existente por causa de sua formação cultural. Esse abalo, porém, serviu não apenas para que ele
compreendesse um aspecto do padrão moral de Tikopia, mas também a ideia de amizade
desinteressada existente em seu próprio padrão moral.

O pesquisador deve saber que para pensar um outro padrão moral, deverá lidar com o
seu próprio. Para Firth, a diferença entre os padrões possui raízes profundas, o que confere
dificuldades específicas a esse processo de compreensão. Segundo o autor, "mesmo quando se
está preparado para elas, leva-se algum tempo para compreender que o seu julgamento é
ditado culturalmente e que ele não é simplesmente um ponto de vista livre e objetivo" (idem).
Depois dessa mudança de atitude moral vivenciada pelo pesquisador, adotar o padrão moral
local foi para ele agradável e simples. E assim uma vivência aparentemente desastrosa no
campo de pesquisa, pode tornar-se a via iluminadora pela qual será possível compreender um
determinado padrão.

Essa análise de Firth contribui para uma reflexão sobre as emoções que podem envolver
um julgamento moral e a dificuldade para o pesquisador de relativizar seu próprio padrão moral,
afinal, as frustações de expectativas vividas por ele até que a síntese cognitiva sobre os
diferentes padrões morais fosse realizada devem ter provocado sentimentos como raiva ou

197
tristeza. E para isso, por mais que estejamos teoricamente informados sobre as diferenças entre
os padrões morais, a compreensão segundo o autor, é efetiva através da experiência.

Outro ponto que podemos pensar a partir da análise de Firth refere-se à convivência. A
base para a experiência que possibilitou sua compreensão foi a convivência com a população
de Tikopia. A decepção que o pesquisador vivenciou com o único homem que ele julgava
desinteressado, a quem provavelmente ele já nutria algum tipo de sentimento de amizade, gerou
para ele uma experiência radical, uma decepção generalizada. Olhar de perto é pressuposto para
que possamos gerar algum grau de compreensão sobre aspectos morais. E viver com é um
aspecto importante dessa proximidade.

Dada a característica dessa pesquisa, teria alguns relatos próprios sobre conflitos “nos
bastidores” que poderia ser exemplo para aprofundarmos sobre as implicações das relações
morais no trabalho do ator. Mas, como os relatos de Stanislavski operam nesse item como
objeto de investigação, além de fornecer elementos para o leitor que desconheça esses textos
qualificar melhor a fala dos entrevistados a seguir, elencamos um trecho de Ética sobre esse
“sexto ato” que se inicia antes mesmo da peça:

Torzov se dirige a nós: “Imagine que você veio ao teatro para


representar um papel importante. O espetáculo começa daqui a meia
hora. Na vida particular você tem muitas preocupações e
aborrecimentos. Em casa aconteceu alguma coisa. Um ladrão acabou
de roubar o teu casaco e o paletó novo. Neste momento você tem mais
uma preocupação: assim que entrou no camarim você se deu conta de
que tinha deixado em casa a chave da gaveta aonde guarda o dinheiro.
Para que ninguém roube! E amanhã vence o aluguel! Você não pode
deixar passar a data porque as tuas relações com a proprietária são
muito tensas.
E depois, tem ainda uma carta de casa – teu pai está doente. Isto te
angustia muito: antes de tudo porque você o ama, e depois, porque viria
a faltar a ajuda material, se lhe acontecesse alguma coisa – o teu salário
no teatro é baixo.
 Mas a coisa mais desagradável são as relações ruins
que você tem com teus colegas e com a direção do teatro. Os teus
colegas não perdem uma ocasião para debochar de você e se permitem
fazer brincadeiras desagradáveis durante o espetáculo: seja omitindo de
propósito uma fala, seja mudando inesperadamente as marcações, seja,
durante a sessão, sussurrando alguma coisa ofensiva ou indecente. E
além do mais você é tímido, e fica inseguro. Mas é exatamente isso que
querem os teus colegas, e é este o divertimento deles. Um pouco por
tédio, um pouco para se divertir.
Reflita atentamente sobre aquilo que acabei de contar e julgue se é fácil,
nesta situação, se concentrar o quanto é necessário para o trabalho
criativo em cena.
 Estamos todos naturalmente de acordo que é uma
tarefa difícil, sobretudo por causa do pouco tempo que sobra antes do
espetáculo.
- Se pelo menos estivéssemos prontos a tempo com a maquiagem e o

198
figurino!
 - Não se preocupem com isto – nos tranqüiliza
Torzov.
 Com sua mão de expert o ator arruma na cabeça a peruca e se
maquia. Os gestos vão sozinhos, mecanicamente, e você nem se dá
conta de que está pronto.
 Você tem apenas o tempo de se precipitar
em cena no último segundo. A cortina se levanta e você ainda está sem
fôlego. A tua língua diz o texto da primeira cena pela força do hábito,
como um papagaio. Depois, recuperado o fôlego, você pode pensar na
“sensação de si em cena”.
 Você acha que eu estou brincando e sendo
irônico? Claro que não. É preciso admitir que na vida teatral nos
deparamos freqüentemente com um comportamento assim, anormal,
diante dos nossos deveres artísticos. Assim concluiu Arcadj Nicolaevic.
Depois de uma breve pausa acrescentou:
 - Agora vou apresentar um
quadro diferente: ficam as circunstâncias da vida pessoal, isto é, os
problemas familiares, a doença do teu pai, e o resto; mas no teatro te
espera alguma coisa totalmente diferente: todos os membros da família
dos atores acreditam naquilo que se diz no meu livro A minha vida na
arte. Lá se diz que nós atores somos pessoas de sorte, porque neste
mundo desmedido o destino nos concedeu algumas centenas de metros
cúbicos: o nosso teatro, no qual podemos criar a nossa própria vida
artística, especial, magnífica que transcorre na sua maior parte em uma
atmosfera criativa, nos sonhos e na realização cênica deles, no trabalho
artístico coletivo, em comunhão constante com o gênio de Shakespeare,
Pushkin, Gogol, Molière e outros.
Não basta isso para fazer um maravilhoso pedaço de mundo? É claro,
então, qual destas duas variantes nos agrada... Não estão claros no
entanto, os meios para a sua realização.
São muito simples. Protejam o seu teatro antes de tudo que é negativo,
e aparecerão as condições favoráveis ao trabalho e à sensibilidade
cênica de que precisa.
 Não se pode entrar no teatro com os sapatos
sujos. Tirem fora a poeira e a sujeira antes de entrar. Entretanto deixem
fora os sapatos e todas as pequenas preocupações, as brigas, as questões
que tornam a tua vida difícil e te distraem da arte.
Limpe a garganta antes de entrar no teatro. Depois que entrou você não
pode mais cuspir pelos cantos.
 Mas os atores, na maior parte dos
casos, transferem de todas as partes para o teatro cada mesquinharia,
implicâncias, intrigas, calúnias, inveja, egoísmo mesquinho. O
resultado é, não um templo de arte, mas uma lixeira, uma escarradeira,
um chiqueiro. Você não acha que tudo isso é humano e inevitável?
Sucesso, glória, competição, inveja – intervem Govorkov, em defesa da
normalidade dos teatros.
 - É preciso arrancar tudo isto da alma, até as
raízes – disse Torzov ainda mais energicamente. - Mas é possível? –
replicou de novo Govorkov.
 - Bem. Suponhamos que seja impossível
se liberar completamente da mesquinhez cotidiana da vida. Mas,
seguramente, é possível esquece-la por um certo período de tempo,
deixar-se distrair por alguma coisa de interessante. É preciso querer
isto, decididamente e conscientemente.
 - É cedo para dizer. – duvidou
Gorvokov.
 - Se até isto é superior às tuas forças, então, por favor, volte
a viver entre as discórdias domésticas, mas sozinho, e sem atrapalhar a
alma dos outros!
 - Isto é ainda mais difícil. Cada um gostaria de dividir
com os outros as suas preocupações, aliviar a alma. Os debatedores não
conseguiam chegar a um acordo.
 - De uma vez por todas é preciso
entender que é falta de educação lavar a roupa suja diante de todos, que
desta maneira parece falta de controle, falta de respeito em relação ao
próximo, o egoísmo, a indisciplina e os maus hábitos... De uma vez por
todas é preciso deixar de lado a auto comiseração e o desprezo por si.

199
Em sociedade é preciso sorrir, como fazem os americanos. A eles não
agradam os rostos amargos. Chore e sofra em casa, ou quando estiver
sozinho. Com os outros, esteja de bom humor, alegre e simpático. Neste
ponto é preciso exercitar o auto-controle. (STANISLAVSKI. Ética,
item I, 1980)

Durante as peças montadas na formação de artes cênicas muitas foram as brigas, fofocas,
paqueras, namoros, ciúmes, intrigas, amizades etc, que vi se desenrolarem. Por vezes
percebíamos que a cena continha mais do que esforço criativo e que as relações entre os atores
estavam “em cena”. Lidar com as relações entre os colegas e criar a partir dessas relações é um
desafio para o ator. Durante uma das aulas de interpretação alguns alunos discutiram entre si e
a professora marcou uma prova oral sobre o texto Ética, de Stanislavski. O texto Ética foi
indicado para leitura pelos professores desde o primeiro semestre de curso e sempre que algum
aluno reclamava da convivência com os colegas (como a falta de cooperação nos ensaios) os
professores voltavam a sugerir que relêssemos este texto. A professora que dirigiu esta
montagem nos enviou por e-mail uma tradução desse texto que ela própria fez da versão em
italiano, presente no livro "Stanislavisij: L'attore creativo". O texto fazia parte da bibliografia
obrigatória para a prova que seria dada no final do semestre, mas foi acionado antecipadamente
num momento de crise. Os momentos de crise aumentavam conforme a tensão com a
proximidade da estreia aumentava. Diversas vezes, ao saber de divergências entre os alunos os
professores diziam "Vocês já leram a Ética? Precisam ler de novo!". Mas, por que esse texto é
tão evocado no processo de formação como o que vivenciei?

A tradução do texto Ética, de Stanislavski fornecida pela professora tem pouco mais de
18 páginas. Como nota introdutória a tradutora explica o subtítulo "Obra inacabada",
informando ao leitor que se trata de um texto encontrado sob a forma de manuscrito, sobre o
qual Stanislavski se dedicou no final da vida. Na primeira página consta os vinte itens nos quais
o texto é subdividido. O primeiro item, intitulado "Vida privada e vida no trabalho: ordem,
disciplina, ética - base para a criação artística" exprime a ideia central do texto através da
narrativa de uma aula. Os demais itens tratam de aspectos mais específicos do trabalho no
teatro, como esferas dentro da proposta inicial, dentre eles sobre a autoridade do diretor; sobre
a dedicação nos ensaios; sobre a necessidade de exercícios cotidianos e de uma plena ocupação
do tempo etc.

Esse trecho inicial do texto, através do modo como o autor levanta o problema, dialoga
com as experiências concretas de um ator-leitor. Questões familiares e com os colegas de
trabalho são variáveis possíveis para qualquer profissional. O que o autor mostra é que

200
problemas na vida o ator sempre terá, a questão é como os problemas da vida podem ser
separados do trabalho no palco. O autor menciona os americanos para dizer que em sociedade,
é preciso sorrir. Ele diz para chorar e sofrer em casa, sozinho; com os outros deve-se estar de
bom humor. Através de Torzov o autor diz que isto é uma questão de autocontrole, e o princípio
para alcançá-lo seria pensar mais nos outros e menos em si próprio e cuidar da atmosfera
comum e do trabalho comum (idem, p. 3).

Este autocontrole em prol do trabalho comum de que fala Stanislavski é exatamente o


que os professores gostariam de transmitir com a leitura deste texto. Interessante que, se por
um lado há uma exigência da separação entre a "vida no trabalho" e a "vida pessoal", por outro
o autor diz que atores devem se comportar de maneira ética também na vida pessoal. No item
responsabilidade do artista na vida privada, o autor afirma que "Só quando está na intimidade
da sua casa, num estreito círculo de amigos, o artista pode despir-se, porque o seu papel não
termina com o fechar das cortinas - também na vida é obrigado a ser portador e mediador de
beleza" (idem, p. 18). Neste item, já mencionado anteriormente, o autor usa o exemplo de um
ator que fez de forma magnífica seu papel no palco, mas depois destruiu aquela bela impressão
ao mostrar-se desprezível fora do palco. Esta afirmação pode demonstrar que o ator permanece
em sua vida no trabalho sempre que estiver em público, mesmo fora de cena. E que a dimensão
conhecida como vida pessoal deve ser entendida em termos específicos no caso da profissão do
ator, ou seja, apenas na “intimidade de sua casa e um estreito círculo de amigos”.

Outro elemento de autocontrole é possível ser compreendido através da visão do autor


de vida no trabalho. Nela há uma subdivisão entre as relações de trabalho fora de cena e
trabalho em cena ou trabalho criativo. Para Stanislavski as relações de trabalho fora de cena
não devem interferir no trabalho criativo em cena. As relações com colegas, diretor e
administração do teatro devem ser esquecidas quando o ator entra em cena. Para o autor a vida
cênica do personagem depende desse esquecimento consciente do ator. Esta separação da vida
cotidiana do ator – mesmo que no trabalho – e da vida em cena é tema que atravessa a questão
ética. Trazer para o palco a continuidade com a vida cotidiana é considerado por ele um ultraje
à arte e autores herdeiros de Stanislavski, como Grotowski e Eugênio Barba se valerão da ideia
de sagrado para reafirmar a necessidade de uma atitude não cotidiana no palco. Há, portanto,
nesse trecho dois elementos de autocontrole que podemos extrair como síntese: a ética do ator
fora de cena, porém em público e no próprio ambiente de trabalho; e a ética do ator em cena,
ao isolar o trabalho criativo dos problemas da vida.

Em A ética protestante e o espírito do capitalismo ([1920] 2013), Max Weber mostra

201
como uma ética cotidiana, no caso a ética protestante, pode ser definidora de um modo de vida
que vai para além do mundo religioso. Weber estava menos interessado na ética teórica e oficial
da disciplina eclesiástica, da cura das almas e da pregação, e mais interessado em "rastrear
[aqueles] estímulos psicológicos [criados pela fé religiosa e pela prática de um viver religioso]
que davam a direção da conduta da vida e mantinham o indivíduo ligado nela" (WEBER,
[1920] 2013, p. 89). Weber propôs através de sua obra, a análise de uma ética através do sentido
que ela confere às praticas cotidianas. Partindo desse modo de compreender a ética, podemos
pensar em que medida os dois elementos que selecionamos do texto de Stanislavski - um
referente à vida pública e outro referente ao trabalho cênico - podem indicar uma direção da
conduta da vida.

Maria Cláudia Coelho, em sua pesquisa A experiência da fama: individualismo e


comunicação das massas (1999), analisa de que modo os atores dividem o seu eu, e essa análise
se relaciona com a ideia proposta por Stanislavski acima. Para a autora, o cerne dos conflitos
na relação ídolo-fã é “a dualidade entre sua imagem pública – o verdadeiro alvo do assédio – e
sua vivencia subjetiva – que dita a reação muitas vezes de repúdio e afastamento por parte do
ídolo” (p.136). Nesse sentido, como veremos adiante sobre as afirmações acerca do ator
“perder-se de si mesmo”, o ator pode deve estabelecer suas fronteiras de eu não apenas com
relação aos personagens, mas também com sua imagem pública. Segundo a autora:

A experiência da fama, contudo, não se expressa apenas na relação com


o fã, mas afeta potencialmente a própria imagem de si do sujeito
famoso. Submetido a um bombardeio incessante de imagens de si
mesmo – fotos em revistas, cenas televisivas, matérias jornalísticas e
cartas de fãs – o indivíduo famoso defronta-se com um problema de
construção do self. Se conforme sugere uma leitura interacionista da
experiência individual, a imagem que o individuo tem de si é um
composto das impressões que supões suscitar nos outros, a experiência
da fama pode ser entendida como radicalização dramática de um traço
intrínseco da constituição do indivíduo. Nesse sentido, a proliferação
de imagens do eu propiciada pela fama leva o individuo a isso
suscetível a proteger-se, em um processo que lembra a atitude blasé
descrita por Simmel. (COELHO, 1999, p.136).

Essa percepção sobre os processos de constituição do eu do ator, seja por causa das
implicações que a fama lhe traz, seja por causa das suas relações na esfera publica que são
compreendidas como parte do trabalho, mesmo que não se esteja no ambiente de trabalho e
mesmo que não seja famoso (como na fala de Stanislavski), são um norteador para
compreendermos a importância que a discussão sobre ética tem para o ofício. Para Coelho, o

202
ator divide seu self entre o sujeito psicológico, a imagem pública e o personagem. O
agravamento dessa divisão, segundo a autora, se dá no indivíduo famoso decorrente das muitas
imagens públicas que são construídas por quem o vê. Quando Stanislavski diz a seus atores
“chore e sofra em casa, ou quando estiver sozinho. Com os outros, esteja de bom humor, alegre
e simpático. Neste ponto é preciso exercitar o auto-controle”, ele está indicando ao ator que seu
ambiente de trabalho faz parte da esfera pública e que em público é preciso auto-controle.

Parece obvio dizermos a um trabalhador que seu ambiente de trabalho faz parte da esfera
pública. Mas quando se trata de encenar, a ideia de que um “público” assistirá o resultado
daquele trabalho, faz com que os bastidores pareçam algo de uma ordem excessivamente
privada. Como mencionamos em capítulos anteriores, situações como viajar para fazer um
filme, ou gravar uma novela por meses com longas jornadas de trabalho, viajar com uma peça
de teatro, compartilhando quarto de hotel com colegas, todos esses contextos fazem parecer que
os trabalhadores estão “em família”. Isso sem mencionar a intimidade que se tem ao fazer cenas
que envolvam relações amorosas e sexuais. Mas na prática, essa confusão entre as esferas de
público e privado dificultam com que o ator maneje as próprias relações como condições de
trabalho (como desenvolvido no capítulo 2) e como elemento ético na constituição de si
enquanto profissional.

O modo de produção teatral produz concorrência entre colegas de trabalho. A obra fruto
do trabalho só é visível através do trabalhador. Isso faz com que os atores que aparecem mais
no decorrer de uma peça tenham quantitativamente mais oportunidades de mostrar ao público
seu trabalho. Nesse sentido, a divisão dos papéis entre os membros do elenco é objeto de
conflitos concorrenciais. Salários, distribuição de figurinos e mesmo a atenção do diretor nos
ensaios são outras medidas de disputa no interior desse processo produtivo. O ocultamento ou
dissipação desses conflitos através de um autocontrole - seja em cena seja em público fora do
palco - faz parte de uma conduta considerada ética, nos termos propostos por Stanislavski. O
trabalhador que adere a essa ética omite ou “limpa-se” dos conflitos que compõem o processo
produtivo teatral em prol da produção de uma arte ligada à ideia de assepsia ou santidade. No
trecho a seguir, Stanislavski desenvolve ainda mais essa ideia de “atmosfera limpa”:

Tendo em vista que a tua primeira aparição no palco está próxima,


gostaria de explicar como o ator deve se preparar.
Deve fazer nascer
em si o sentido de si em cena.
Qualquer um que ofusque o nosso
paraíso terrestre – isto é: a vida no teatro – deve ser afastado ou
neutralizado. E nós mesmos devemos nos esforçar para trazer para o
teatro de toda parte, só os sentimentos positivos, confirmativos e
alegres. Aqui tudo deve sorrir porque nos ocupamos daquilo que mais

203
amamos. É necessário que estejam convictos não só os atores mas
também a administração com seu escritório, a oficina, etc. A
administração deve ter bem claro que o teatro não é um depósito de
mercadorias, uma loja ou um banco onde as pessoas estão prontas a se
esganar mutuamente pelo lucro. Até o último contador, todos devem
ser artistas e compreenderem a natureza da causa que servem. Dirá-se:
mas como se faz com o balanço? E com o ativo, o passivo, e com os
pagamentos?
Sei por experiência própria e sustento que o aspecto
material do teatro melhora apenas com uma atmosfera limpa. Esta
chega aos espectadores, os atrai, os purifica e faz nascer a necessidade
do ar no teatro. Você não pode imaginar como o espectador percebe
tudo que acontece atrás da cortina fechada! Desordem, barulho,
falatório e um contínuo bater durante o intervalo e o caos no palco se
transmitem aos espectadores e pesam sobre o espetáculo. E vice-versa:
ordem, disciplina e calma, no palco e atrás da cortina fechada, dão
leveza ao espetáculo.
Alguém contestará: “Como fazemos com os
ciúmes dos atores, as suas intrigas, com a sua obsessão de obter certos
papéis e com o sucesso excepcional de alguns?” A isto posso responder:
intrigantes e invejosos devem ser afastados sem piedade do teatro.
Os
atores sem papel também. Aos atores que não se contentam com a
dimensão dos seus papéis deve se dizer que não existem papéis
pequenos, só atores pequenos.
Quem não ama o teatro deve ir embora.
(idem).

A omissão de procedimentos é uma prática comum em diversas profissões na


modernidade. Ocorre que a peça de teatro tem a especificidade de ser sempre um produto em
processo. Mesmo com todos os ensaios realizados antes da estreia, a peça enquanto obra
acontece enquanto é apresentada. Essa especificidade traz uma exigência adicional para o ator,
qual seja a de um autocontrole permanente. Nesse sentido, as coxias, como Stanislavski
sinaliza, fazem parte da obra e podem ser percebidas pelo público. Interessante que esse
exercício de autocontrole colocado no campo da ética, é visto pelo autor como uma pré-
condição para que o trabalho tido como criativo aconteça. Então, o trabalho de ser outra pessoa
em cena pode acontecer depois de "esquecidos" os acontecimentos existentes até que se chegue
à cena. O que é tido como fundamental para o trabalho do ator, o que é considerado seu aspecto
criativo - a cena - é, na verdade o último elemento de todo um processo vivenciado pelo ator
no interior desse modo de produção.

Atrelar a ética de uma esfera da vida – como a religiosa – ao modo de conduta da vida que é
útil a um sistema econômico-social é a questão central que Weber desenvolve em A ética
protestante e o espírito do capitalismo ([1920] 2004). No capítulo Ascese e capitalismo (Ascese
e espírito capitalista na edição de 1920) o autor analisa alguns textos que ele considera
representantes dessa ética. Nesses textos a ascese aparece contra a ambição de ganho em bens

204
temporais e o motivo desse valor encontra sentido na concepção de tempo e trabalho cultivada
igualmente pelo capitalismo. Weber afirma que o ócio oriundo do gozo da riqueza, o descanso
sobre a posse, são moralmente condenáveis porque trazem consigo um relaxamento que é
reprovável. Segundo o autor:

A perda de tempo é, assim, o primeiro e em princípio o mais grave de


todos os pecados. Nosso tempo de vida é infinitamente curto e precioso
para “consolidar” a própria vocação. Perder tempo com “conversa
mole”, com luxo, mesmo com sono além do necessário à saúde – seis,
no máximo oito horas – é absolutamente condenável em termos morais.
Ainda não se diz aí, como em Franklin, que “tempo é dinheiro”, mas a
máxima vale em certa medida em sentido espiritual: o tempo é
infinitamente valioso porque cada hora perdida é trabalho subtraído ao
serviço da glória de Deus. (Weber, [1920] 2004, p. 143/4).

Servir à glória de Deus é trabalhar duro na sua vocação profissional. A relação entre a
utilização do tempo e o trabalho na vocação é lida de forma moralizada pelo texto religioso e
indica um modo de conduta para a vida do fiel. Essa conduta está orientada para o mesmo
sentido dos valores capitalistas em que o tempo é contado através do trabalho, o tempo útil.
Assim, o desperdício de tempo, lido como um pecado pela moral asceta, é igualmente uma
atitude repreensível pela visão de mundo capitalista. Se pensarmos a cena como o produto final
do trabalho em teatro, o que o texto da Ética pede ao ator é para preservar esse produto das
interferências que o processo pode causar nele. Esse “pedido” chega ao ator no texto
principalmente através do ato de isolar o trabalho criativo dos problemas da vida, e também
pelo ato de não destruir a impressão que a cena causou no público ao mostrar-se de outro modo
na sua conduta. Ou seja, não se deve contaminar a cena no momento em que ela acontece com
elementos externos a ela (mesmo que relativos ao processo de produção até que se chegue nela);
nem tampouco depois que ela acontece, com atitudes em público que desconstruam a impressão
que a cena causou. Mas se fizermos um exercício semelhante ao que Weber executa quando
compara a ética da ascese com o espírito do capitalismo, poderemos encontrar alguns motivos
no mundo social pelos quais, na Ética os atores devem agir desta maneira determinada.

A cena acabada, sem que um ator mude o texto para que o outro se perca, sem uma
atitude inesperada de um ator para surpreender o outro e fazê-lo rir, sem um figurino amassado
porque a mãe do ator saiu e ele não sabia passar roupa, ou seja, sem interferências dos atores
nos personagens, é a cena que o diretor espera apresentar ao público. Já o público, ao mesmo
tempo que espera ver a cena sem interferências, excita-se quando descobre uma. Essa forma de
apresentar o resultado do trabalho está no interior de uma concepção moderna em que o

205
acabado deve omitir a construção, mas não apenas. Está inserida também numa visão de que
para se extrair o máximo do processo criativo é preciso estabelecer certas condições de partida,
ou, condições pré-criativas.

Bruno Latour, em Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade


afora (2000) apresenta a ideia de caixa-preta para pensar a “ciência pronta” – parte dessa ideia
de moderna de acabado – que é apresentada à sociedade. Segundo Latour, “a expressão caixa-
preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela
complexo demais. Em seu lugar desenha-se uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso
saber nada, senão o que nela entra e o que dela sai” (Latour, 2000, p. 14). Para o autor o acabado
- mais especificamente no caso em que ele estudou: a ciência acabada - é apresentado pelos
cientistas como uma caixa-preta, da qual os “de fora” nada precisam saber sobre seu processo
de construção. Sobre esse processo o autor afirma:

Incerteza, trabalho, decisões, concorrência, controvérsias, é isso o que


vemos quando fazemos um flashback das caixas-pretas certinhas, frias,
indubitáveis para o seu passado recente. Se tomarmos duas imagens,
uma das caixas-pretas e outra das controvérsias em aberto, veremos que
são absolutamente diferentes. São tão diferentes quanto as duas faces,
uma vivaz e outra severa, de Jano bifronte. (idem, p. 16).

Latour propõe entrar no mundo da ciência pela porta de trás, a da ciência em construção,
e não pela porta grandiosa da ciência acabada. É por esse caminho que o autor trilha uma
antropologia da ciência. Se seguirmos o mesmo caminho para pensar uma antropologia da arte
cênica, a cena seria a porta grandiosa, da arte acabada, e a coxia, os camarins, os bastidores, a
sala de ensaio, as conversas no bar, seriam a porta de trás, a da arte em construção. A intenção
em comparar o exercício de Weber e o de Latour é mostrar que determinados modos de enxergar
o trabalho são fruto de processos sociais mais amplos. A relação entre ética protestante e
capitalismo e a relação entre “trabalho acabado” e “trabalho em construção” são dois exemplos
de como a reflexão sobre trabalho e ética pode ser uma via fértil de se pensar relações sociais.

A conduta moral indicada para o ator em público – tanto em cena quanto fora dela – é
chamada por Stanislavski de autocontrole. A ideia do controle de si é evocada de modo
disciplinar, no sentido de estabelecer os limites entre o desejável (feito por quem controla a si)
e o indesejável (feito por quem não controla a si). A reflexão que proponho aqui não se preocupa
em fazer um juízo de valor sobre a conduta moral proposta pelo texto Ética, mas problematizar
o seu uso como balizador da conduta de estudantes de artes cênicas atualmente. Michel
Foucault, em História da sexualidade 2: o uso dos prazeres (1984), propõe um estudo de

206
moralidades dos comportamentos. Para isso o autor faz uma distinção que pode contribuir para
a reflexão que fazemos aqui. Trata-se da diferenciação entre regra e conduta:

[…] Com efeito, uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta
que se pode medir a essa regra. Mas, outra coisa ainda é a maneira pela
qual é necessário “conduzir-se” – isto é, a maneira pela qual se deve
constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos
elementos prescritivos que constituem o código. Dado um código de
ação, e para um determinado tipo de ações (que se pode definir por seu
grau de conformidade ou de divergência em relação a esse código),
existem diferentes maneiras de “se conduzir” moralmente, diferentes
maneiras para o indivíduo que age, de operar não simplesmente como
agente, mas sim como sujeito moral dessa ação. Seja um código de
prescrições sexuais que determina para os dois cônjuges uma fidelidade
conjugal estrita e simétrica, assim como a permanência de uma vontade
procriadora; mesmo nesse quadro tão rigoroso, haverá várias maneiras
de praticar essa austeridade, várias maneiras de “ser fiel”. Essas
diferenças podem dizer respeito a vários pontos. (Foucault, 1984, p.
34).

A análise do autor não é feita somente a partir do código de conduta, mas a partir do
modo como os sujeitos se conduzem em relação ao código. Foucault aponta, com isso, para
uma dimensão das relações sociais que enxerga o processo a partir do modo como o sujeito se
constitui em relação ao código. Num estudo sobre fidelidade conjugal, como o autor sugere,
observaríamos as ações consideradas constituidoras do “ser fiel”. Então, a questão seria: que
práticas constituem um sujeito moral em relação a determinado código? No caso de uma
formação em artes cênicas, que práticas constituiriam a mim ou aos meus colegas de trabalho
como atores éticos em relação ao texto “Ética”, de Stanislavski?

De algum modo, todos os alunos das duas turmas que frequentei no curso de artes
cênicas conheceram o texto mencionado. Mesmo os alunos que não leram o texto, lidavam com
as interpretações dos colegas sobre ele e com os conselhos dos professores, que o citavam. Se
pensarmos no sentido metodológico proposto por Foucault para a investigação sobre o sujeito
moral, pensaremos sobre quais foram os modos de se conduzir moralmente em relação aos
elementos prescritivos. Nas falas dos entrevistados que transcreveremos ainda nesse capítulo,
é possível perceber em alguns casos essas dimensões de um “código” e de como se posicionam
no nível do discurso em relação e ele. Ocorre que, justamente por se tratar de moralidade, as
histórias sobre infrações ao código de conduta que se acredita seguir dificilmente ocorrem em
primeira pessoa. Usualmente percebemos a moralidade operando quando conta-se histórias
sobre terceiros.

Para qualificar os dados dessa pesquisa é preciso que o leitor saiba que nem todos os

207
atores entrevistados eram meus amigos próximos. Apesar de fazerem parte da minha rede de
relações, alguns eu vira poucas vezes, e outros eram mais próximos. Isso traz diferença no que
cada entrevistado se permitia dizer sobre terceiros, ainda mais se através da chave do
julgamento moral. Uma pesquisa que se dedicasse exclusivamente a pensar a moralidade entre
os atores, caso se desenvolvesse no Rio de Janeiro, teria como um dos principais locus de
investigação o bar. É no bar, depois dos ensaios, gravações, vésperas de folga, após o teatro etc,
que os atores falam dos colegas de trabalho. A sociabilidade do bar, associada à fluidez da
conversa que os aditivos alcoólicos possibilitam, é o lugar onde mais conseguimos saber a
opiniões que cada um tem sobre os demais.

Além do bar ou restaurantes, as reuniões para beber na casa de alguém são as situações
onde ocorre com maior profusão os julgamentos morais feitos de outros colegas do elenco –
principalmente quando eles não estão presentes. Aí também as fronteiras entre o público e o
privado são tênues e é comum alguém se arrepender de falar algo para alguém “que não
deveria”. O que se fala sussurrando no intervalo de um ensaio, pode ser ouvido em alto e bom
tom no bar. Ainda sobre esse tema, é importante mencionar que o conhecimento público (no
caso, ser famoso) dramatiza as vivências do sujeito moral. Julian Pitt-Rivers, em Honour and
Social Status, afirma que “Honra, no entanto, só é irrevogavelmente comprometida por atitudes
expressas na presença de testemunhas” (Pitt- Rivers, 1974, p. 27). O autor aponta para a
importância da publicização da ofensa como elemento agravante, sendo que no caso da fama,
essa publicização de informações privadas pode ocorrer através de quase todas as pessoas com
as quais se relaciona, considerando que certas informações sobre famosos valem retorno
financeiro para quem as fornece à mídia.

3.4 Quem sou eu pra não sentir?

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda


Gira, a entreter a razão,

208
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

(Autopsicografia, de Fernando Pessoa)

Durante as aulas da disciplina de interpretação do curso que descrevi anteriormente nos


foi proposto um exercício a ser apresentado. Tratava-se de executarmos e observarmos a
execução de colegas das partituras de ações físicas. Cada aluno elaborou sozinho sua partitura
de aproximadamente um minuto. Ela consistia em agir, em outros termos, fazer algo. Esse fazer
“qualquer coisa” que à primeira vista pode parecer simples, no palco é o grande desafio do ator.
A ação orgânica – que é o que se buscava – é o oposto do querer mostrar/demonstrar (para o
público) que está fazendo algo. Esse fazer também não se trata de cumprir atividades, mas deve
possuir uma qualidade que revele características situacionais através do modo como se age. Ou
seja, o público deve conseguir enxergar se o personagem é um homem ou uma mulher, se é
idoso ou criança, independente do gênero ou idade do ator. Se o personagem está lavando louça
no frio, isso deve ser visível ao público mesmo que não se tenha louças ou pia no palco e mesmo
que o cenário não indique neve. A forma como o ator executa a ação do personagem deve ser
capaz de transmitir informações contextuais ao público independente do auxílio de figurino ou
cenário.

Cada um de nós apresentou a partitura em aula para a professora. Todos os outros


alunos e a assistente da professora também observavam a apresentação. Depois a professora
indicava alterações e o aluno repetia a partitura com as alterações. O processo poderia se repetir
por algumas vezes até que a professora estivesse satisfeita com o resultado. Depois, a
professora, a assistente e os colegas analisavam o trabalho apresentado. A associação dos
exercícios em sala de aula com a leitura da bibliografia indicada, trouxe uma compreensão mais
ampla sobre o quê a professora nos pedia para realizar. Dois dos livros indicados para o curso
eram Para um teatro pobre, de Jerzy Grotowski (organizado por Eugenio Barba) e o já
mencionado Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas, de Thomas Richards. Ao avançar
na leitura, o universo da proposta de arte elaborada por Grotowski tornou-se mais familiar e a
própria proposta de executarmos partituras de ações físicas tornou-se mais compreensível. As
leituras funcionavam como uma forma de enunciar o tipo de fazer ao qual estávamos nos
dedicando.

O efeito, porém, que a leitura de Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas teve
para mim e para colegas com quem conversei ia além de uma compreensão sobre sua proposta

209
de teatro. Ocorreu uma identificação entre as experiências que estávamos vivenciando e as
experiências descritas por Richards. Interessante também que essa identificação não ocorria
apenas no plano do acontecimento, mas também das reações a eles – os medos, angústias,
resistências, desistências, esforços e cansaços. Cada aluno poderia citar algum trecho desse
livro como se fosse de autoria própria tamanha a identificação com ele. Em uma das aulas
conversamos sobre as leituras do curso e este livro foi o mais mencionado, sempre enquanto
objeto de uma associação com a própria experiência no processo de aprendizagem.

A escrita em forma de relato posiciona o leitor/aluno ao lado do autor, ou mesmo – de


certa forma-, no lugar dele. O texto fornece ferramentas para que o leitor/aluno elabore seu
próprio processo de aprendizagem através da experiência de um outro. Essa via de transmissão
de conhecimento pode ser mais eficaz no processo de aprendizagem de artes cênicas do que em
outras áreas do conhecimento devido ao estatuto que a prática e a experiência têm nesse campo,
assim como a valorização do sentir. Logo no início do livro Trabalhar com Grotowski sobre as
ações físicas, Richards aponta para a importância que Grotowski atribui à prática no
aprendizado do ofício do ator.

Grotowski sabe que aprender alguma coisa significa conquistá-la na prática.


É preciso aprender “fazendo” e não por meio da memorização de ideias e
teorias. As teorias só eram usadas em nosso trabalho quando podiam resolver
um problema prático que se apresentava. O trabalho com Grotowski não tinha
nada a ver com uma escola onde aprendemos as lições mecanicamente. Tenho
certeza de que ele estava tentando ensinar não somente à minha cabeça, mas
a todo o meu ser. (RICHARDS. 2012. p.1).

A forma como Richards descreve o trabalho com Grotowski nesse trecho opõe teoria e
prática, situando a si e seu professor no campo da segunda. Para ele ideias e teorias estão
atreladas à memorização e a uma atitude mecânica. Essa concepção do que seja teoria é um dos
elementos que sustentam o relato de experiência ser a forma por excelência de transmissão das
teorias nativas - sem que sejam vistas como teorias. A prática aqui está atrelada ao corpo e ao
sentir, em oposição à mente e ao raciocínio teórico.

A perspectiva de aprender fazendo está intimamente relacionada com esse modelo de


escrita. Os relatos apresentam-se como uma forma de aprender lições que se coloca em oposição
ao “aprender lições mecanicamente” mencionado por Richards. Isso significa que o aluno de
teatro aprende na prática (na sua própria prática) e aprende através da prática de outro (relatos).
Mas esses relatos não são apenas descrições de acontecimentos, como um diário, mas contém

210
em si elaborações mediadas por concepções sobre ofício. Se o pensarmos enquanto teoria, esse
material didático baseado em relatos coloca em questão a própria divisão entre teoria e prática.

Classificar um livro que se baseie em relatos como este que discutimos aqui pode não
ser uma tarefa simples. Afinal, trata-se de uma autobiografia, de teoria teatral, de um livro
didático pedagógico, ciência ou literatura? Esta descontinuidade entre o modo como o
conhecimento científico é organizado na nossa sociedade e o modo como a arte cênica pensa a
si própria pode ser um elemento revelador dos limites classificatórios do nosso conhecimento
e também das limitações que a própria oposição entre teoria e prática podem trazer para o
desenvolvimento do conhecimento.

Aponto para a questão da divisão entre teoria e prática com a finalidade de colocar em
evidência a importância que a categoria de prática tem para as artes cênicas e em que medida
esta categoria se constitui não apenas por si, mas em oposição à de teoria. Uma das implicações
que essa divisão e oposição acarreta é que as elaborações conceituais dessa arte sejam vistas
como elaborações sobre a prática, nas palavras de Richards “As teorias só eram usadas em
nosso trabalho quando podiam resolver um problema prático que se apresentava” – e desse
modo também são apresentadas as teorias no seu livro.

Essa discussão sobre o modo como o conhecimento é transmitido e como a escrita


ocorre nessa área relaciona-se com o modo de escrita dessa tese. Quando um pesquisador busca
compreender um objeto, as características desse objeto trarão implicações ao método. Apesar
de parecer muito abstrata essa relação, veremos a quão direta ela é. Atores lidam com o discurso
do que aqui chamo de relato de experiência através da fala de professores, diretores, autores e
de colegas. Quando entrevistei atores para essa tese, esse foi o modo de discurso predominante.
Por isso, compreender a importância do relato de experiência para as artes cênicas, cumpre
aqui não apenas um papel elucidativo quanto ao contexto do objeto, mas também um papel
metodológico, de explicar a qualidade do material constituído com as entrevistas.

Além das entrevistas, os relatórios de campo também colocam a experiência num lugar
privilegiado, já que vivi como atriz todo o período da pesquisa. Por esse motivo, cabe
diferenciar como o grupo entrevistado entende o conceito de experiência no interior da teoria
nativa e como eu, como antropóloga e atriz considerei minha própria “experiência” na
elaboração dessa teoria antropológica. Quando descrevi o impacto que perceber a presença de
Thomas Richards teve para minha compreensão sobre a preparação do ator não se restringir
apenas ao palco, abro a possibilidade de incluir aspectos sensoriais no processo de elaboração

211
dessas reflexões. Nesse sentido, conseguimos visualizar as linhas que atravessam objeto e
método nessa pesquisa.

Por outro lado, cabe lembrar sobre o que Peter Brook afirmou acerca dos processos que
não podem ser descritos. Tomar esses relatos de experiência como material de observação é útil
no sentido em que lidamos com entrevistas nessa pesquisa. Mas do mesmo modo que há
elementos que fogem da entrevista formal, há elementos que fogem da escrita, quando se trata
de narrar esses processos de aprendizado. Há elementos nessa arte que compõem o campo do
indizível, e quanto a esses nos contentaremos apenas com as aproximações. Eugênio Barba
desenvolve uma reflexão sobre a escrita de teorias sobre o teatro e a contradição inerente entre
o teatro e sua escrita:

As palavras estáveis possuem a fragilidade da sua estabilidade. Para cada


afirmação clara existe um equívoco.
No trabalho, certas palavras iluminam como relâmpagos n’água. Quando
escritas, mudam perigosamente a sua natureza. A escritura desenrola a meada
que se torna mais linear e menos verídica. A experiência, em vez disso, é
contiguidade de ações, de perspectivas simultâneas. Quando agimos, estamos
contemporaneamente presentes em diversos níveis de organização.
Os que constituíram seus teatros sem pedras nem tijolos e que depois
escreveram sobre seus teatros geraram muitos equívocos. As suas palavras
tinham a intenção de ser pontes entre a prática e a teoria, entre a experiência
e a memória, entre os atores e os espectadores, entre eles e seus herdeiros. Mas
não eram pontes, eram canoas.
As leves canoas lutam contra a corrente, atravessam o rio, podem alcançar a
outra margem, mas nunca se pode ter certeza de como acolherão e usarão a
sua carga. Escrevemos com o desejo da precisão de um artesão e relemos,
incredulamente, nossos textos já distantes das tensões que o geraram.
(BARBA. 2009. p.214).

Através do trecho de A Canoa de Papel, de Eugênio Barba, percebemos a relação


delicada entre ação e palavra que existe na produção de “teorias sobre o teatro”. O que um
diretor fala para seu ator enquanto dirige poderia ser o mesmo que os atores leem de diretores
que escrevem sobre teatro, mas Barba sinaliza que essa relação não é assim tão direta pela
natureza que a experiência e a ação presente têm para essa arte. As palavras que acontecem no
momento presente da ação não são as mesmas quando escritas. Ainda assim, das possibilidades
que a escrita apresenta, os relatos de experiências são os que mais se aproximam do modus
operandi dos atores.

Outro aspecto que pode fazer do relato um importante modo de comunicar concepções sobre
o ofício do ator para alunos de artes cênicas – além da dimensão prática já discutida – é a vida
emocional presente nesse tipo de texto. A escrita através da memória revela os sentimentos

212
vivenciados, o que confere uma característica própria ao tipo de identificação sentida pelos
alunos/leitores. Durante a leitura do livro de Thomas Richards no curso de artes cênicas
conversamos entre os alunos da turma sobre as decepções que Richards viveu. Um colega disse:
“Se o Thomas Richards sentiu isso, quem sou eu pra não sentir”. Um dos relatos de Richards
em que podemos observar essa característica de sua escrita é quando ele descreve uma
apresentação de um exercício que ele fez durante um workshop de dois meses com Grotowski.
Depois da sua apresentação nada foi dito e no intervalo da aula ocorreu a seguinte situação:

Descemos até a cozinha para fazer uma pausa, e naquele momento convenci-
me novamente do meu triunfo. Enquanto preparava meu lanche eu estava
radiante de satisfação. E foi nesse momento que Grotowski chegou. Ele estava
vindo na minha direção, sorrindo, e “Oh, devo ter ido bem”, pensei. “Ele está
vindo... na minha direção? Sim! Ele está vindo”. E com um grande sorriso ele
disse: “Aquilo foi horrível! Foi inacreditavelmente horrível! Acho que nunca
tinha visto algo tão ruim”, e foi embora. Enquanto falava ele ficava rindo o
tempo todo, parecia estar a beira de uma gargalhada. Fiquei devastado. Meu
ego nunca tinha recebido um golpe desses. Eu não podia entender. Fiquei
completamente deprimido. (RICHARDS. 2012. p.43).

Richards diz que depois dessa situação seu ego estava tão machucado que abandonou o
workshop depois do primeiro mês. Esse trecho revela os aspectos emocionais envolvidos num
determinado acontecimento de sua carreira. Há um grau de coragem em escrever sobre si
revelando tais aspectos ao leitor. Heloísa Seixas, em seu livro O lugar escuro: uma história de
senilidade e loucura (2007) conta sobre o processo de adoecimento de sua mãe com Alzheimer.
A autora revela aspectos afetivos da sua relação com a mãe que são da esfera do confessional,
como se a obra fossem cartas e como se nós, leitores dessas cartas, fôssemos seus melhores
amigos. É uma obra rica do ponto de vista da abertura que a autora tem para revelar-se ao leitor.

Academicamente muitas vezes deixamos de lado aspectos emocionais da pesquisa por


não os considerar dados. Na literatura há a categoria “ficcional” através da qual os escritores
podem se sentir mais protegidos e confessar suas realidades sem serem responsabilizados. A
autobiografia, nesse sentido, é a forma que menos protege o escritor. Seixas fala em seu livro
que escrever a salvou da loucura, não por exercitar o cérebro como muitos recomendam para
evitar o Alzheimer, mas pelo poder libertador que a escrita possui. Depois de descrever todos
os passos da doença da mãe a autora faz uma comparação entre a atitude frente ao mundo de
sua mãe e a sua própria através das figuras do louco e do escritor:

É assim a caminhada de minha mãe pela região de sombras. Em sua percepção


caótica, o tempo é relativo às avessas, é o tempo dos loucos. A realidade é
anárquica. E a ausência de regras, o fim de qualquer censura, talvez facilite o
contato com o desconhecido, as adivinhações. A confissão de segredos.

213
Os escritores são um pouco assim, também. Como as crianças e os loucos,
adivinhamos coisas, ou dizemos o que talvez devêssemos esconder. Faz parte
do ofício de escrever – essa loucura que às vezes é capaz de curar. (SEIXAS.
2007. p.131).

As situações em que Seixas e Richards estão envolvidos são radicalmente distintas, mas
há algo comum no modo como ambos escrevem. Esse modo diz sobre uma compreensão que
portam sobre o que seja indivíduo, que tem como um dos centros de valor a vida emocional.
Thomas Richards fala que seu ego recebeu um golpe e Seixas escreveu como epígrafe do livro
“O escritor é um condenado cuja alma é exposta em praça pública como o corpo de um
traidor”. Esses autores utilizam em seus relatos biográficos aspectos do ‘eu’ que fazem parte,
de diferentes formas, dessa visão de mundo psicologizada que considera a vida emocional como
importante dimensão da constituição individual. Nesse sentido, podemos observar que no
interior dessa visão de mundo é muito difícil produzir um relato sobre si sem falar de seus
sentimentos em relação aos acontecimentos. Richards diz que ficou devastado, ou deprimido.
Isso faz com que o leitor não apenas saiba o que aconteceu, mas como o “narrador” dessa
história vivenciou aquela situação. Através dessa dimensão do ‘eu’ revelada no texto a
experiência (no sentido de um vivido que privilegia sensações e sentimentos) do narrador é
compartilhada com o leitor.

O antropólogo Gilberto Velho em Nobres e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia


constrói uma metodologia que considera na análise as características cognitivas e também as
afetivas. O autor faz uma crítica à tradição sociológica que omitiu a esfera afetiva da pesquisa
sobre a vida social, conferindo-a como tarefa apenas às ciências do comportamento. Segundo
o autor, “ao lidar com situações concretas de trabalho de pesquisa na tradição antropológica
pode ficar aguda a necessidade de estudar a vida afetiva dos grupos estudados, sob pena de
deixar de perceber aspectos cruciais do seu comportamento social”. (VELHO. 2008. p.61).

Esta obra é a publicação da tese de doutoramento de Velho defendida em 1975. A


preocupação em captar também os aspectos afetivos do grupo estudado acompanhou Velho em
sua trajetória acadêmica. Seu livro Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração é
representativo nesse sentido. Ele analisa entrevistas realizadas com alguns indivíduos sobre
temas como posicionamento político, paixão, separação, entre outros. A compreensão do autor
dos aspectos afetivos na pesquisa sobre a vida social nos indica a relevância dessa discussão
para nossa análise. Enquanto pesquisadores, é desejável que estejamos atentos para o que o
pesquisado considera relevante para sua existência. O aspecto da vida emocional presente no

214
texto de Thomas Richards mobilizou minha atenção para análise não apenas por estar ali, no
livro, mas também pela recepção que meus colegas e eu tivemos desse aspecto de seu texto.

Durante uma montagem de peça no curso de artes cênicas em que lemos o livro de
Thomas Richards, consideramos que muitos “egos” foram golpeados. Muitos de nós pensamos
em desistir, ficamos “deprimidos”, quase todos os dias dessa aula alguém chorava ou “passava
mal”. As decepções de Richards mostravam-nos que aquilo que sentíamos fazia parte da
trajetória de um ator para aquele tipo de trabalho. Por tratar-se de um trabalho sobre si, não
apenas nosso tônus muscular deveria ser trabalhado, mas nossas emoções também. Colegas que
falavam com voz aguda eram convidados a “crescerem” e “tornarem-se mulheres ou homens
adultos que se apropriassem inclusive de sua sexualidade independente da orientação sexual”.
Colegas muito vaidosos eram convidados a se desconectar da beleza para explorar a arte através
de outras ferramentas. Colegas que não se comprometiam eram convidados a
responsabilidades. E tudo isso acontecia no círculo de cadeiras da aula onde todos olhavam a
todos.

Nesse curso, durante a montagem da peça a diretora exigiu de mim principalmente que
eu me descomprometesse com a vaidade. Por quatro meses usava o cabelo preso em coque,
deixei as sobrancelhas crescerem e ensaiei o papel de um monge que durante toda a peça não
mostrava o rosto. O manto com um grande capuz era o que desenhava o corpo do meu
personagem encurvado pela idade. A voz firme e ao mesmo tempo cansada, acompanhada da
curvatura do corpo era a expressão através da qual o público perceberia minha arte. Para mim
foi libertador perceber que a minha atuação não estava relacionada ao meu rosto, ao meu olhar,
que ela poderia estar em mim de um modo mais profundo com reverberações onde quer que eu
quisesse manifestar. Mas essa compreensão foi um resultado final de um processo de grande
incômodo e não porque eu quisesse estar linda no palco, mas porque aquela estética na vida me
causava sofrimento. Deixar a sobrancelha crescer e ficar andando assim pelo Rio de Janeiro foi
uma verdadeira tortura. Cada pessoa que conversava comigo me dava a sensação que ela só
olhava para minha sobrancelha grossa e desajeitada. Aos poucos, acolhi aquela escolha estética
que eu mesma colocara para mim (a diretora nunca havia pedido aquilo) e passei a me sentir
uma atriz mais comprometida com meu trabalho. As sobrancelhas e o cabelo serviam de
metáfora para uma atitude mais ampla que foi exercitada e que dizia respeito a colocar-se a
serviço da história a ser contada no teatro. Colocar o corpo e sua imagem, a voz, o suor, a saliva,
o amor, a gratidão, todas as emoções e os pensamentos a serviço da cena. Vencido o desafio eu
me senti mais forte para a relação com o personagem. Buscar o corpo que indicava sua idade,

215
a voz masculina e cansada foi mais fácil depois do exercício da não vaidade. E por fim, mais
do que um personagem bem desenhado, conquistei um sentido profissional mais consistente.

Essa proposta de trabalho para o ator busca por transformar o indivíduo como um todo.
Se o objetivo é eliminar os bloqueios que restringem os impulsos, o ator desse teatro todos os
dias trabalha sobre aspectos de si que costumavam mediar sua relação com o mundo. Um dia
eu entrei na sala antes da aula e uma aluna estava chorando muito com o livro nas mãos. Nos
olhamos com um olhar de cumplicidade e nada foi dito. Em outra conversa com uma amiga da
turma, ela disse que não estava aguentando mais, mas ponderou “parece que é assim mesmo,
né?”, fazendo referência ao livro. Esse aspecto afetivo do relato de Richards faz com que ele
seja visto pelo leitor como um indivíduo da mesma natureza daquele que o lê. Não se trata de
uma identificação apenas em nível profissional, mas sim ontológica. Ou, num nível que
compreende o profissional enquanto ontológico. Como disse meu colega, “Se o Thomas
Richards sentiu isso, quem sou eu pra não sentir”.

Considerando o estatuto que a experiência tem nesse contexto, partimos da análise dos
relatos enquanto bibliografia para enxergarmos suas influências nas falas dos entrevistados.
Dentro do tema da experiência como via para o trabalho sobre si mesmo, pensei dois aspectos
que mostrariam as possibilidades de reflexividade do ator sobre a relação que estabelece com
o seu fazer. Os aspectos salientados são: 1) sobre o trabalho sobre si mesmos, e 2) sobre a
natureza desse trabalho e 3) que dimensões do eu podem ser consideradas através das falas.
Para desenvolver a investigação sobre esses aspectos fiz as seguintes perguntas: “- Qual a
dificuldade ou desafio que um ator pode ter com ele mesmo?”; e “Quais os melhores e os piores
efeitos que a profissão produz no ator?”. As respostas que puderam ser utilizadas estão a seguir.

3.5 Eu pintor, eu pincel, eu obra de arte: a experiência e sua totalidade

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:


"Navegar é preciso; viver não é preciso"11.
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,

11
[Nota de SF "Navigare necesse; vivere non est necesse" - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48
aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de
Pompeu]

216
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Navegar é preciso. Fernando Pessoa.

***

Henrique (42 anos)

− Quais os principais desafios ou dificuldades que o ator pode ter com ele mesmo? Aí
não uma questão de estrutura, mas...
− Ah, alguns desafios pessoais. Por exemplo, nessa novela... eu vou falar um pouco de
mim, mas vou citar mais pessoas que tiveram realmente problemas. Alguns atores
tiveram alguns problemas, como o ator x, porque a gente tinha que... por exemplo, atirar,
andar a cavalo, sotaque e depois você tinha que juntar. Você faz tudo isso separado no
laboratório, mas depois você tinha que juntar tudo isso. E eu duvido que alguém tenha
ensaiado com os cavalos, por exemplo, dar tiro. Então a gente tinha que depois de tudo
isso separado, juntou-se tudo: a roupa, uma espingarda pesada, o cavalo, subir no
cavalo, cavalgar e atirar cavalgando. Então, a grande dificuldade às vezes da gente é
essa corporal também, de executar tudo o que eles pedem pra fazer, e ao mesmo tempo
você tem que pensar no seu trabalho, literalmente também, que é estudar em casa o seu
texto e chegar com ele pronto. E chegando lá, mais dois diretores de ação te levando pra
outro caminho e tal. Então, eu graças a Deus não tive grandes dificuldades pessoais
nesse sentido. Em 98 eu era um ator iniciante, eu até pegava, vestia a roupa, eu ficava
no meio do mato correndo pra lá e pra cá, pra ter uma certa vivência. Mas muita gente
se machucou com cavalo, quebrou o braço, colocou platina e tal. Então a grande
dificuldade às vezes, também, não sei... de alguns atores é não falar a verdade de que
“isso eu não sei fazer”, “isso eu não consigo”. Então, eu já vi muitas vezes, o ator mente
dizendo que sabe... até dirigir. Agora nem tanto, mas talvez ainda exista. Mas eu lembro
que há algum tempo atrás as pessoas falavam que dirigiam e muitas vezes chegavam lá
e não dirigiam. Não conseguiam andar com o carro, porque as pessoas falavam “ah não,
é só colocar o carro ali pra frente, só colocar a primeira e sair”. E não é tão simples.
Então acho que muitas vezes a gente peca ou é uma dificuldade nossa de... de se enganar.
Eu particularmente, quando eu me enganei, eu pelo menos fui pra casa e treinei antes,
que era plantar bananeira e deu certo. É e talvez, falando do meu início, mais do meu
início... uma dificuldade também era trabalhar com atores que você já via trabalhando
há vinte anos, na sua frente assim. Que por um lado eram exemplos, ou alguns eram
seus ídolos e tal. Então, acho que isso também, é... se você não estiver preparado isso te
incomoda, no bom sentido. Assim, te incomoda de você ficar nervoso e não conseguir
fazer. São coisas que podem te atrapalhar ou dificultar a sua vida.

217
− Quais são, na sua opinião, os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no
ator?
− Os piores é a arrogância, a soberba, é achar que pode fazer as coisas primeiro que os
outros, que não precisa pegar fila, que não precisa pagar, que é melhor que os outros,
esquece que enfim... você não vai escrever mas... que caga igual, essas coisas. Mas eu
acho que basta, eu acho que o pior é isso... não tem... ah, e outra que eu acho, esquecer
que escolheu uma profissão pública e destratar, muitos destratam o seu fã, que é aquele
que liga a televisão para assistir. Então, muitos é esquecer a sua origem. Eu falei do pior
né? Ah e é o pior e o melhor? O melhor é você se conhecer, se auto conhecer, você saber
seus limites, você pode saber controlar um pouco mais as suas emoções, você respeitar
mais o outro, você olhar pro outro e pensar que ele pode estar com alguns problemas,
que você não sabe a profissão dele, como é que foi o dia dele... porque eu trabalho com
tanta gente, então cada um tem uma função que pelo menos isso me faz pensar isso.
Culturalmente te enriquece bastante, que além de você ler muito texto, às vezes você é
obrigado a ler alguns livros, que eu já fiz isso, pra compor alguns personagens, por
exemplo. “Crime e castigo” do Dostoiévski eu li pra compor um personagem, enfim.
Então tem esse lado do aprendizado que é muito bacana. E claro que, sem hipocrisia se
você for um pouquinho bem sucedido você vai pagar as suas contas. Isso é fato.

***

Marina (29 anos)

− Quais os principais desafios ou dificuldades que um ator pode ter com ele mesmo?
Durante o processo de trabalho?
− Eu acho que o principal desafio é o processo em si, do ensaio. Porque nada começa
bom. Todo ator tem o ego muito grande. Todo ator quer acertar, quer ganhar prêmio e
o processo de ensaio é sempre muito doloroso. Porque começa muito ruim e você vai
achando que não vai dar em lugar nenhum. E aí se você tem um diretor que não tem
sensibilidade, ele te convence de que não vai dar em lugar nenhum. E aí ele te compara
com a outra pessoa. E você se compara com o outro ator que está num processo melhor
do que o seu ou diferente de você, ou porque é mais cabeça fresca do que você. Pelo
menos pra mim o processo de ensaio sempre foi bastante complicado. Eu sempre tive
essa necessidade doentia de acertar. E que não existe, em nenhuma profissão, muito
menos em teatro. Porque não dá... assim, eu trabalho com o Lucas e o Lucas tem muita
dificuldade de errar em cena. E cada vez que ele faz que eu falo que não está bom12, ele
fica puto com ele e... é porque... eu também, mas eu acho que menos. Eu discuto mais
com ele porque eu não concordo com as coisas que ele fala. E também é uma maneira
de resistência. Mas eu vejo isso pra ele é... Já é um processo que é doloroso e se você
acha que você tem que acertar fica mais doloroso ainda. (...) Eu acho que o pior é o
processo. É você achar que você é um merda. E todo mundo passa por essa fase do
processo, de achar que você é um merda. Não devia existir isso. Devia pensar que “ah,
tá ruim agora, mas vai acertar, vai dar um jeito”. Essa foi a frase que eu mais falei agora
nesse final do ano pro Lucas “vai dar um jeito, Lucas vai dar um jeito, calma. Vai dar
jeito. Fica tranquilo, a gente vai acertar”. Porque é isso, as soluções vêm, se você ficar
tranquilo. Se você ficar noiado, não.
12
Nesse espetáculo que Marina e Lucas (seu namorado) estão em cartaz eles dirigiram um ao outro.

218
− E você acha que a nóia então é muito por causa da vaidade?
− Acho. Acho que a vaidade e a cobrança pelo acerto da sociedade. Porque a gente desde
pequeno aprende, na escola você não pode errar, você não pode ser nem mediano, você
tem que ser primeiro de turma senão os professores não sabem nem seu nome. E não
pode errar em casa. E não pode errar no cursinho. E não pode errar, não pode errar, não
pode errar. E na hora que você vai fazer um improviso pra começar o trabalho, você
quer improvisar certo. Mas improviso é erro, gente. Então, assim, eu não acho que é
uma coisa só da vaidade não. Mas tem a coisa da vaidade. Tem a coisa da competição.
Que você tá num processo que tem alguém e esse alguém consegue chegar num lugar
que você considera melhor que o seu, você entra na paranoia. Pelo menos eu entro na
paranoia. E não pode ser assim, senão é insano.
− Quais são os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?
− (Pausa) Que horror, eu sei o pior o melhor eu não sei. O pior efeito eu acho que é de
você não saber se vai dar certo nunca. Porque você tá sempre contando dinheiro, tá
sempre com medo da conta e tá sempre pensando ‘Se esse ano não der certo, ano que
vem eu vou fazer não sei o quê’. Eu tenho... não é nem uma amiga, uma menina que fez
teatro comigo quando eu era muito nova e aí eu encontrei com ela na PUC quando eu
fazia jornalismo, porque eu resolvi fazer jornalismo porque teatro não iria me levar a
lugar nenhum, e ela tava lá também. E ela era super garota teatro, a família dela tinha
muito dinheiro e eu achei que ela fosse conseguir. Aí eu falei... eu falei com ela,
perguntei pra ela ‘Claudinha o que é que você está fazendo aqui? Cadê os projetos,
cadê...’ e ela é magra, bonita, cadê televisão? Ela falou assim ‘Ai Helena, eu amo teatro,
mas o teatro não me ama de volta. Então eu saí.’ E eu acho que é bem isso. Assim, eu
sei que é horroroso isso, é super pessimista, mas eu concordo com ela. O teatro não ama
de volta. Acho que ama de vez em quando, sabe? Porque, talvez a melhor coisa seja que
pela dificuldade, é tão difícil, é tão difícil... mas também como qualquer outra
profissão... quando dá certo, você fica muito feliz. Então, a gente ganhou o fomento
agora, cara eu saí berrando pela casa. Uma mulher de 29 anos berrando pela casa. Liguei
pra todo mundo, contei pra todo mundo. E pô é... ganhar um edital faz parte do nosso
trabalho, mas foi ganhar na loteria. Isso também é bom. A gente... o prazer de ver as
pessoas saírem comentando do espetáculo, não comentando se é bom ou ruim, mas
comentando sobre, é muito legal. É muito legal o retorno das pessoas. Ah, sentar na
mesa do bar e as pessoas estarem comentando ‘ah eu acho que é isso, eu acho que é
aquilo’. E você só ficar ouvindo é muito bacana. Mas é... o Lucas acha um absurdo dizer
que é difícil. Porque todas as profissões são difíceis. Mas eu digo, cara, é muito difícil.
É muito difícil. É muito difícil ter 29 anos e ter que ser sustentada pela sua mãe. E
ganhar um edital e não saber se ano que vem, se der. Ah, tem dinheiro pra sair de casa
agora, e ano que vem? Se não tiver edital ano que vem? O que você faz? Você volta pra
casa? Bate lá e fala ‘Oi mãe, voltei’. Eu acho que a dificuldade é essa de sempre pensar
em ‘ ah, então amanhã... se não der certo até terça-feira, quarta eu volto a ser jornalista’.
Eu acho que todo mundo que faz teatro tem, todo mundo que faz teatro e tem uma
segunda profissão pensa isso. Todo mundo que faz teatro e não tem uma segunda
profissão pensa ‘Então ano que vem eu vou vender livro na Travessa, eu vou trabalhar
no Outback’, sabe? Então, isso é muito... essa insegurança com você mesmo é muito
chata.

***

219
Lívia (32 anos)

− Quais os principais desafios ou dificuldades que você... que um ator... que você pensa
que um ator pode ter com ele mesmo.
− Nossa, desafio ou dificuldade? (Pausa) Eu acho... (Pausa) Eu acho que é ser... primeiro
muito crítico com ele mesmo, muito exigente, assim. E eu acho que a pior coisa é você
achar que você sabe tudo, que você tá pronto e não precisa de ninguém pra te falar é...
não precisa nem ser um diretor, ou até colega de trabalho, ou até pessoas que vêm assistir
o seu trabalho e vêm te dar um feedback. Eu acho que o ator tem que estar sempre pronto
pra escutar a crítica seja da onde ela estiver vindo. Desde o maior até aquele lá que foi
assistir porque ganhou um convite e não seio o quê e não sabe nada de teatro. Eu acho
que o ator tem que ter ao mesmo tempo um senso crítico com ele mesmo também, é...
e ter um espírito de humildade, sabe? Eu acho que hoje em dia isso é bem difícil, com
a mídia e tudo o mais... a pessoa as vezes passa do anônimo pra fama e já quer achar
que sabe tudo, que estudou e não sei o quê e tal. E o desafio é continuar sempre
estudando. Não parar nunca de estudar, de correr atrás daquilo que te interessa e que
você tem que saber. Acho que é isso. Estou tentando ser objetiva.

***

Marcelo (32 anos)

− Quais os principais desafios ou dificuldades que um ator pode ter com ele mesmo?
− O ego é uma coisa complicada pra um ator. (Pausa) eu acho que o maior desafio é você
ter um bom relacionamento com os colegas de trabalho, sempre. Porque ator é muito
egocêntrico e muito sensível. Qualquer coisa é motivo pra que se tenha rixas e coisas
do tipo. E o nosso meio é um ovo. Você sempre cruza com pessoas que você já
trabalhou, com pessoas que conhecem pessoas que você já trabalhou. Enfim, sempre
você vai cruzar com pessoas conhecidas. E se você se queimar... já era. As pessoas te
queimam. E ator é assim, porque ator é competitivo, ator quer eliminar todo mundo da
frente. Então, eu acho que ter um bom relacionamento é difícil, porque você encontra
pessoas muito difíceis de se lidar, muito difíceis de se lidar. E aí se você faz a coisa com
paixão, você quer defender a causa. Aí você quer enfrentar e dizer ‘não é assim que se
faz’. Enfim, lidar com ser humano já é difícil, lidar com artista então... é complicado, é
de uma sensibilidade fora do sério. Eu acho que essa é a primeira dificuldade. E aí...
porque tem você também, você tem que lidar com o seu ego, você tem que lidar diante
das pessoas que já tem o ego inflado. Então como é essa briga de egos e você começar
a baixar um pouquinho a sua bola... ‘sabe, não, calma, não é assim, eu preciso dar uma
segurada, rever, vamos relevar’... isso é muito difícil. Acho que é uma grande
dificuldade. E também nunca você pode estar satisfeito com o que você está fazendo,
nunca, nunca. Sempre você tem que melhorar, porque você tem o quê melhorar, sempre.
Ninguém, ninguém chegou à perfeição ainda. Mas eu acho que é isso, é isso. Você se
vencer, você nunca estar contente. Porque se você achar que já está foda, tá ok, você vai
se tornando um artista medíocre. E vem uma leva de gente que estuda, que se permite
crescer e vai te atropelando, vai te atropelando.

220
− E quais são os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?
− Uhmmm. Os melhores... eu acho que é a realização pessoal. Eu acho que em qualquer
profissão, quando você faz aquilo que você ama, você pode estar ganhando pouco, você
pode... não sei o que for, mas você volta pra casa com uma paz interior e uma felicidade
indizível. Eu acho que o teatro enobrece o ser humano. Um ser humano que assiste ao
teatro, ele enobrece o ser humano. E eu acho que no ator o efeito é duplicado. Porque...
porque você... a base de uma construção de personagem é a observação do próximo. E
você observar o próximo te engrandece. Claro, observar o próximo com o cuidado que
tem que ser observado. Observando o ser humano e a natureza sem preconceitos. E eu
acho que te enobrece duplicado. Esses são os benefícios, o efeito benéfico pro ator.
Agora, maléficos... prejudicial... eu não sei, eu acho que muito mais se você tiver uma
carreira frustrada. Eu acho que causa danos até psicológicos se você tiver uma carreira
frustrada. E é uma carreira que é fácil de se frustrar. Eu acho que a frustração, a
frustração na profissão, eu acho que essa sim pode causar danos. Como em qualquer
outra profissão, na verdade.

***

Eduardo (45 anos)

⎯ Quais os principais desafios ou dificuldades que o ator pode ter com ele mesmo?
⎯ Ah, a sobrevivência. Hoje em dia a... a condição do país hoje não é brincadeira. Estamos
passando por uma crise muito acentuada agora. Isso eu digo final de 2014, né? Ou o
próprio ano de 2014 até agora, esse início de 2015, todos nós estamos vendo um país
em... total desespero.
⎯ Recessão.
⎯ Uma palavra bacana, uma super recessão. (Pausa) Nós, como atores não tão conhecidos,
ou da primeira linha... que é o que eu tinha comentado antes, da, é... esse... que nós
definimos por letras. É o ator A, B, C, D... deve ir até o F, até o Z provavelmente (risos).
Mas digamos que eu estou ali no... no D... C pra B na verdade. É um ator quase que do
mercado, porém ele ainda não fez um trabalho que é um divisor de águas, que o coloque
de uma maneira mais confortável na questão financeira. Então, o meu maior desafio,
que eu estou te falando, que eu falo por mim hoje, é essa questão financeira. Então, você
tem que vender o almoço pra jantar. Para manter o trabalho e um sonho ainda de fazer
uma história muito bacana e bonita como artista e ator nesse país que é o Brasil.
⎯ (Pausa) Ah... Quais podem ser os melhores e os piores efeitos que a profissão pode ter
no ator?
⎯ (Pausa) Ah, eu só vejo mais qualidades mesmo. Porque... hoje em dia, em vários
seguimentos profissionais... é... os diretores das empresas aconselham os profissionais,
seja ele vendedor, advogado, engenheiro, principalmente esses profissionais que
trabalham com palestras, trabalham com público, que façam um curso de ator. Por quê?
Porque eu só vejo benefícios. Você fala melhor, você tem uma compreensão maior da
humanidade, você... você quando reconhecido, você ganha um presente sentimental é...
sem preço. Quando alguém na rua vira e fala assim “pô, adorei o seu trabalho, eu adorei
ver a sua cena. Adorei ver sua peça. Eu ouvi a sua voz”... Eu já fui reconhecido na rua
pela voz! É... achei que isso fosse impossível de acontecer. Eu estava num supermercado
e eu tava pagando, perguntei pra caixa quanto era e a senhora falou “Nossa, você faz o

221
todo mundo odeia o Chris?”. Eu falei “faço”. Ela falou “Eu reconheci a tua voz”. Eu
fiquei chocado e muito feliz. Então, eu só vejo a maior parte benefícios. Porque o que
eu te falei anteriormente, a resposta anterior é a parte negativa, que eu acho que ainda é
o pouco reconhecimento, é o Brasil que ainda é muito anti-profissional ainda, com essas
questões. Porque nós temos o sindicato, o SATED. Ele pouco olha por nós, ou luta por
nós. É uma... é uma entidade que é feita pra, pra, pra proteger o ator, e nada faz. Essa é
a dificuldade mesmo.

***

Victor (53 anos)

⎯ Na sua opinião quais os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?
⎯ Uma pergunta delicadíssima. Os melhores? Eu vou falar. Tudo depende do
aproveitamento do sujeito pra tudo que lhe chega. É a filosofia do meio copo d’água.
Pode virar sofrimento porque é só meio e pode virar uma alegria porque tem meio.
⎯ Sim.
⎯ Porque é tudo muito ilusório. Assim, todas as nossas conquistas, é tudo muito ilusório.
Essa profissão o cara dorme desconhecido e acorda famoso, de não poder entrar em
shopping. São coisas brutais que acontecem pro bem ou pro mal. Mas é... se você tem
qualquer despreparo, vira um calo, vira uma dor na coluna, vira uma fisgada em algum
lugar, entendeu? Porque... é muito dourado. É tudo muito céu de diamante. É tudo uma
coisa grandiosa. Pode ser! E você pode se deslumbrar por uma bobagem. Porque isso é
uma bobagem. Isso é uma estupidez. Isso é uma babaquice. Porque daqui a 50 anos nada
disso vai vigorar. O que vai vigorar pra você daqui a 50 anos é o que você fez hoje,
filho. Que você como ator, se você contribuiu bonito, daqui a 50 anos você vai estar em
algum carimbinho de algum registro você... vai estar, porque você foi importante pro
mundo. Agora os atores que se deleitam de tudo o que a profissão ilusoriamente oferece
e dorme... dorme no colo disso, esses tão fudidos e mal pagos. Porque leram a cartilha,
trabalharam na cartilha errada, entendeu? E... certamente serão pessoas frustradas e
deprimidas e desequilibradas mentalmente. Você mexe muito com o emocional. E o
emocional precisa ser bem regido, porque senão ele entra num ponto fraco teu que tu
não resgata mais porra nenhuma depois, se não tiver força pra reconquistar, entendeu?
Então, assim, é muito dúbio quando eu falo se fortalecer, é muito dúbio. Porque a mesma
coisa, a mesma receita que fortalece um pode enfraquecer o outro que está do lado.
Então, é muito individual, assim, é... é a forma como você se... eu diria que o que rege,
minha gata, é a humildade. Porque isso... as tuas pretensões... gigantescas, elas são
abafadas. É o... você vira o passarinho apagando o incêndio, que é nobre igual. É nobre
igual um avião jogando água pra apagar o fogo na floresta. É nobre igual. Só que o
passarinho não apaga o incêndio se todos os outros passarinhos não fizerem a mesma
coisa, entendeu? Eu vejo muita grandeza na minha profissão, vejo mesmo, porque...
principalmente porque você uma hora acaba ficando famoso, se tudo lhe ajudar. E se
você reverte o fato de ser ouvido por muita gente, isso ser uma coisa boa pro mundo,
você reverter isso pra melhorar o mundo que você vive, pra melhorar as pessoas que
estão próximas, você já está, já é positivo, pra mim já valeu a pena ter nascido.

***

222
Sílvio (55 anos)

⎯ Quais as principais dificuldades que você acha que o ator pode ter com ele mesmo?
Assim, quais os problemas que ele mesmo pode criar pro próprio trabalho?
⎯ A insegurança. Um ator inseguro, ele... qualquer profissão, né? Mas um ator inseguro,
ele, ele nunca vai... essa eu acho que... pra mim! Pra outra pessoa, pra um outro
profissional talvez não. Mas a insegurança eu acho que é... é terrível. É terrível a
insegurança. Insegurança, você passa a (pausa) antigamente eu não conseguia fazer nada
e sair e falar assim ‘E aí ficou bom?’. Hoje em dia, não é... eu vou perguntar depois, eu
vou saber de outra forma. Não aquela coisa desesperada que antigamente a gente tinha
de sair ‘E aí? Fiz bem? Fiz bem? Não? Não sei o quê’. Uma vez eu brinquei com uma
atriz amiga minha na televisão, eu passei no corredor, eu tava de bom astral, eu falei
‘Vem cá, vai gravar com esse figurino? É isso mesmo?’. Aí ela ‘Por quê? Por quê?’. Eu
quis mexer um pouco com a coisa da vaidade feminina. E aí fui pro café. E aí de repente
me chamam na sala do figurino ‘O que é que houve?’. A figurinista me chamou. ‘Ah,
porque fulana de tal tá chorando!’. Eu falei ‘Eu fiz uma... uma confusão, uma
brincadeira, uma piada! Ela não entendeu’. Entendeu? Ela tava nervosa porque estava
achando-se feia. Eu tive que ir lá e falar ‘Porra, você não aprendeu ainda’, entendeu?
Então, isso é insegurança. Então, se você é com insegurança, você... você... essa pra
mim é... é o pior, o principal, a insegurança.
⎯ Eu tive aula com o... não sei se você conhece, o professor x?
⎯ Eu já ouvi falar, eu não conheço.
⎯ E... e ele falava assim ‘Então tá, vocês decoraram o texto? Agora vão decorar mais
algumas vezes!’ (riso).
⎯ Claro.
⎯ Porque assim, ‘Ah decorei, acabei de decorar’, não! Porque essa questão da
insegurança, na hora vai dar errado. Se tem uma chance de dar errado, vai dar errado.
⎯ Se você não tremer, se você não tremer... é, teve uma... todo dia, não der aquele amargo
na boca, desconfie! Teve uma atriz, eu não lembro quem era, francesa, muito conhecida,
que ela ia estrear uma peça e o jornalista veio entrevistar ela no... duas horas antes da
peça, fazer uma entrevista, era ela e uma atriz nova que estava estreando. E essa atriz
falou assim... a nova, falou ‘Você está tranquila?’, ‘Tô tranquila e tal, to tranquila’. Ele
fez a entrevista com uma atriz e foi fazer com essa atriz que eu não lembro quem foi...
aí tava no camarim entrevistando ‘E aí, você está nervosa?’, ‘Ah, muito nervosa, a boca
seca e não sei o quê’. ‘Mas espera aí, não estou entendendo, você está há tantos anos na
profissão!’. Aí ela chega e fala assim ‘Na hora que ela virar atriz, ela vai...’. Então eu
acho que esse, esse nervosismo tem que ter, essa adrenalina se não tiver, desconfia que
tem alguma coisa errada, entendeu? Porque não é fácil. Não é fácil.
⎯ Sim. (riso). Quais são, na sua opinião, os melhores e os piores efeitos que a profissão
causa no ator?
⎯ Os melhores?
⎯ É.
⎯ Os melhores. (Pausa longa). Os melhores eu acredito que seja... os melhores eu acredito
que seja... a aprendizagem. A aprendizagem, o aprend... o aprendiz, né? De você a cada
dia que passa se descobrir mais como ser humano. Isso é (pausa). As experiências que
você adquire, durante, durante... na vida. Você leva o que você aprende na vida pro
palco. Você leva pro palco. E vice-versa também. Momentos que você tem que estar...

223
em algum lugar, sei lá, e você tem que trazer um personagem. Uma vez eu tive que
trazer um personagem meu pro supermercado, entendeu? Mas é... depois eu até lhe digo.
⎯ Ahã.
⎯ É... eu acho que é isso aí... você trazer as tuas experiências de vida. Agora, os piores
(pausa). Os piores é, entre aspas, essa ilusão que as pessoas vivem, alguns. Ah... essa
coisa de celebridade, essa... de que... sabe, que tem muito aqui dentro. Neguinho liga
pra paparazzo pra dizer que está em shopping pra sair em revista. Isso você nunca vai
me ver como ator... até porque eu já nem tenho mais idade pra isso. Isso aí é... pra essa
galerinha de 25, 30 anos que quer mesmo é aparecer de qualquer jeito. Eu acho que isso
é o pior. Não é, não tá sendo uma resposta muito boa para o que você me perguntou,
não? É que minha cabeça deu uma viajada.
⎯ Ahã.
⎯ A melhor é você trazer a sua experiência de vida. São as experiências que você traz de
vida pra cá, de uma esfera pra outra. E a pior é essa coisa da televisão, essa ilusão que
a televisão causa. Porque isso é tud... a televisão, ela é descartável. (...) Então, é... eu
não tenho essa ilusão. Eu acho que o, o, o que traz o pró é a experiência, os amigos, as
trocas de ideias e o ruim é essa ilusão que tá aí. Que não é mais, não é mais o teatro que
eu aprendi a fazer, entendeu?
⎯ Entendi.
⎯ Antigamente ninguém queria que filho fosse fazer teatro, como jogar futebol, entendeu?
Então hoje em dia virou isso. Pra mim é o pior da, da profissão.

***

Ricardo (40 anos)

⎯ Nossa. É... na sua opinião, quais os principais desafios que o ator pode ter com ele
mesmo?
⎯ (Pausa) Entendi. Pergunta difícil.
⎯ Desafios ou dificuldades, assim, que ele pode ter com ele mesmo.
⎯ Pergunta difícil, mas, eu vou te responder pela minha ótica que é assim... as minhas
dificuldades foram... no início da carreira... os desafios... é... me enquadrar dentro de
um, de um patamar que já existe, sempre existiu, que é os caras que estudaram teatro
em faculdade, que fizeram oficinas, cursos e tal muitos anos e tal têm uma preparação
muito boa e chegam num lugar e arrebentam. E eu não tinha preparação nenhuma. Era
um ator que tava começando a estudar, a ler e a fazer ao mesmo tempo. Não tive uma
preparação de 4 anos antes pra chegar lá e fazer. Tava lendo e fazendo, lendo e fazendo,
lendo e fazendo, lendo e fazendo. Então, eu tinha algumas dificuldades físicas,
corporais, era bem criticado pelos, pelos preparadores dos espetáculos. Que sempre, as
peças sempre têm um preparador, sempre tem um cara de corpo e uma... uma mulher
ou um cara de voz enfim, sempre tem a dupla de voz e de corpo, sempre. E eu era
criticado por ter o corpo muito duro. Eu não era esportista, diferente do meu irmão. Eu
não gostava de esporte nenhum, gostava só de bicicleta ou jogar bola, era o meu esporte.
Então, eu tinha o corpo bem duro e tinha... meu sotaque ainda... a gente morou em Natal,
então, essa história do sotaque, era criticado por isso ‘Você tem sotaque, tem que tirar’.
Eu dizia ‘Mas que sotaque, rapaz? Eu tenho sotaque aonde? (fazendo um sotaque).
⎯ Ahã.

224
⎯ Eu tinha sotaque, só que eu mesmo não achava porque no meu convívio... meu pai
nordestino, minha mãe nordestina, meus irmãos, a gente tinha morado lá, minha família
de lá... é a língua portuguesa (riso). Então, é... os desafios foram... entender que existia
isso, esse nível de patamar, de excelência, dessas pessoas que se preparavam em
faculdade e tal, e oficinas, em estudos, e até lá fora, iam pra França, pros Estados Unidos
e voltavam pra cá e voltavam com outra cabeça, com outra voz, com outro corpo. Porque
você muda. Você muda. Não tem como, você muda. E aí, passei a correr atrás de fazer
coisas por fora dos trabalhos, pra poder me aprimorar mais rápido.
⎯ Entendi.
⎯ E as dificuldades que eu tinha, porque eu não tinha dinheiro, nunca tive. Não tenho até
hoje, nunca tive carro, nunca tive casa lálalá e moro de aluguel até hoje. Mas também
não quero ser rico, sempre falo isso. Eu quero mesmo é poder exercer a profissão. Então,
as dificuldades que eu tinha era... como pagar essas pessoas, que poderiam me
aprimorar, me lapidar, pra eu poder chegar nesse lugar. Então, como eu não tinha, eu
tive que ter a cara-de-pau a vida inteira de chegar e pedir. Então, a minha contraproposta
era... é... ‘Queria que você me desse aula de voz e tal tal tal, to precisando, precisando
melhorar a minha articulação, tô precisando melhorar o meu diafragma, ter um, uma
potência maior de respiração, de ar, poder falar mais tempo sem respirar, poder cantar
uma música sem respirar e tal, como fazem as grandes pessoas, como fazem os grandes
atores. Mas eu não tenho dinheiro! Mas a minha contraproposta é: eu varro o chão, eu
abro a sala, eu fecho a sala, eu pinto, eu... opero o som, eu... eu te ajudo a carregar as
coisas, eu te ajudo, eu te ajudo no que puder ajudar, no que você deixar eu ajudar’.
Então, eu fui ganhando assim a vida. É... nessa troca. Dizendo ‘Olha, hoje eu sou teu
aluno, mas amanhã eu posso ser teu assistente e... eu quero’. O fato de eu querer e o fato
de eu ser sincero, de abrir meu coração e de contar as minhas histórias e... as pessoas
abriram as portas pra mim. E foi aí que eu fui melhorando, porque se eu ficasse naquele
estágio que eu estava em 92, 93, 94 eu ia, eu ia ser um ator medíocre. Eu era um ator
medíocre. Eu fui me tornando bom com a ajuda das pessoas. Eu fui melhorando e
entendendo com a ajuda delas. E elas cobravam caro. Elas cobram caro. (Pausa) E eu
tive a cara de pau de fazer isso de, de, de dizer ‘Olha, eu quero fazer, mas não tenho
dinheiro, você me ajuda? E eu fico aí, faço tudo o que você quiser, faço as inscrições,
eu tomo conta, eu atendo telefone, eu varro o chão, faço... limpo o banheiro’, não tenho
o menor problema com isso, nunca tive, sempre ajudei em casa. Aí pronto, as pessoas
foram abrindo as portas pra mim, eu fui me tornando quem eu sou hoje...
⎯ Nossa.
⎯ E... hoje em dia é o contrário, as pessoas vêm me pedir oportunidade de trabalho, mas
não têm e não sei o quê. Aí eu digo ‘Pô, que legal cara, que bom. Você é igual a mim,
lá no passado. Tá, entra aí vai, vamos fazer. Sabe varrer um chão? Sabe limpar uma
privada? Sabe limpar um vidro? Então vem!’.
⎯ Olha só. É... quais são os melhores e os piores efeitos da profissão no ator?
⎯ Os melhores e os piores efeitos?
⎯ Efeitos!
⎯ Na profissão?
⎯ Que a profissão produz no ator.
⎯ É (pausa longa). Vamos lá. Os piores e os melhores que a profissão (pausa) no ator,
deixa eu ver. (Pausa). As melhores? Vou começar pelas melhores. (tosse). As melhores
é que você... no meu ponto de vista, eu acho, tô só falando aqui do que eu acho. Não
sou nenhum teórico nesse sentido nem nunca li nenhum livro sobre isso, essa pergunta
que você tá me dizendo. Mas eu acho que é... os melhore... você passa a enxergar o
mundo de uma maneira mais humana. Você passa a... a entender melhor a alma humana,
225
a tua própria alma e os teus próprios defeitos e entender que isso faz parte. E... e você
passa a ter, com isso, mais amor ao teu, ao teu, ao teu semelhante. Independente de raça,
de cor, de rico, se é pobre, se mora na rua, se mora numa mansão, se tem carro ou não.
O amor é o mesmo. Porque a arte, ela só é possível, na minha opinião, se você...
realmente mostra o seu coração. Deixa se ver. Não tem artista que não deixa se ver e
que dá certo.
⎯ Ahã.
⎯ Não tem. Geralmente as pessoas tem que se deixar ver, tem que abrir, tem que mesmo
se deixar, se desprender. Então, eu acho que o lado bom da coisa é que você expande a
tua mente. De uma forma que nenhuma outra profissão te dá. Quando eu falo o artista,
eu digo em todos os níveis de arte. O pintor, o artista plástico, o diretor, o maestro, o
cantor, o instrumentista, o diretor de cena, o coreógrafo, o bailarino, a atriz, enfim, todo
tipo de artista. Se quer, ama e foca (pausa) tu não para de expandir tua cabeça, tua alma
e teu coração. Tu não para. E com isso tu não para de transbordar amor, o tempo inteiro.
Os efeitos negativos, que a tendência... e há muito, é que muita gente confunde os
personagens. Leva o personagem pra cama e... no bom sentido da palavra, leva o
personagem pra vida. E... e acaba se influenciando com as coisas negativas. Alcoolismo,
droga, é... é... (pausa) embrutecer a alma, né? Porque você perde a essência. Se você cai
pra esse lado, você perde a essência. O ego infla e você vira uma celebridade, você deixa
de ser um artista. Com isso você perde muito, porque você se fecha. Você não está
aberto. Você vai dizer que o Chaplin é maravilhoso, mas você vai dizer que o cara que
faz Zorra Total não é. E eu não acho isso.
⎯ Ahã.
⎯ Porque eu tenho um coração generoso, eu acho. E porque também não me envolvi tanto,
em excesso, com álcool e drogas. Obviamente que eu bebo um pouquinho. Obviamente
que fumo um pouquinho. Obviamente que eu já experimentei algumas drogas na vida,
óbvio. A gente tem que passar por isso pra ganhar experiência, pra vivencia, pra
entender até que ponto a gente pode se envolver com aquilo ou não e quais são os
perigos que isso tem na vida, no decorrer da vida. Porque tem perigos, obviamente que
tem. Então, há os 2 tipos. O tipo que... o bem. O cara que foca isso pra ensinar, transmitir
um ensinamento, estudar, fazer pós, se dedicar, escrever coisas, deixar livros pra vida,
deixar filmes pra vida, deixar peças pra vida. Deixar um legado. Há outros que
esquecem esse caminho, que é o lado negativo. Que vão pra o imediatismo. Beber,
fumar, cheirar, sair, não se alimentar, virar um ególatra, virar um ‘Eu sou’, não ‘Nós
somos’. ‘Eu sou, eu tenho, eu posso, porque eu sou foda, porque o filme é meu, o
personagem, eu que faço o filme’. Aí é o perigo. Aí é o perigo. E o cara se perde. Pode
prestar atenção, essas pessoas aqui, elas estão numa curva e... somem. E essas pessoas
aqui estão numa curva e... ascendem.
⎯ Nossa, legal.
⎯ É o meu ponto de vista. É o que eu vejo. É o que eu tenho visto nos últimos 25 anos.

***

Lucas (26 anos)

⎯ Quais são as principais dificuldades ou desafios que o ator pode ter com ele mesmo?

226
⎯ Mas ai a gente vai falar de, mas ai... Você tá querendo dizer a minha visão do geral ou
a minha visão sobre o oficio?
⎯ O que o ator pode ter com ele mesmo assim... é sobre o oficio, como ele pode atrapalhar
a si próprio?
⎯ Ah sim, tendo preguiça. Acho que falta de disciplina, acho que falta de respeito com ele
mesmo com o outro, falta de respeito com o público, acho que falta de preparo, falta de
curiosidade, fiz em tópicos né? Não, que fa... eu acho que se sabota achando que o
público é burro.
⎯ (Risos) Bastante.
⎯ É que eu acho que se sabota não se colocando a prova, eu acho que se sabota não
tentando fazer algo, tipo porque eu acho que tem que tentar fazer algo extraordinário.
⎯ Ahã.
⎯ Pode sair bom, pode não ser extraordinário, mas tem que tentar, eu acho que tem que
tentar. Eu acho que se sabota não buscando a outra performance, eu acho que se sabota
achando que o público não entende o que é a outra performance. Você pode ser um
ótimo charlatão, mas não, acho que é isso, o... como é que é? O ator é um, é um atleta
de sentimento, não sei... eu não sei se é essa frase, mas é isso. A profissão do ator é
dominar os sentimento das pessoas, eu acho que se sabota quando ele não se coloca pra
fazer isso. Eu acho que é isso, eu acho que se... eu acho que se sabota não tentando ser
lógico. Nem todo mundo... existe poucas coisas extraordinárias, mas eu acho que tem
que ter coisas muito boas. E você só cons... e é isso e eu acho que é menos ego. Acho
que se sabota tendo... acho que o que atrapalha é o ego. Não ego no sen... não quero
dizer ‘eu quero no meu trabalho ser reconhecido por isso’, quero dizer ego no sentido
de ‘eu, o meu cpf é mais importante do que o cnpj do espetáculo’.
⎯ Sim.
⎯ Eu acho que são é eu acho que, é eu acho que é isso, acho que, acho que se eu ficar
falando mais eu vou repetir mais do que eu já falei.
⎯ Ahã. E quais são os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?
⎯ Os melhores e os piores efeitos no ator é eu acho que a angustia é ruim, a angustia de,
de não saber se vai dar certo, de não saber se o que você tá propondo vai ser bom, de
não saber... é de não saber nada. E eu acho que os bons é quando você, eu acho que é
quando tá fazendo. Acho que sentimento é bom é quando você tá fazendo. Porque é
uma coisa que eu conversava com a Marina, não era tão... não é... não faltando com
respeito com as pessoas, mas não era legal conversar do espetáculo depois. Era legal
fazer.
⎯ Ahã.
⎯ Eu não quero que digam que eu tenho um puta domínio do que eu to fazendo, eu não
quero que digam que eu tenho referências e essas referências estão no meu trabalho, eu
não quero ouvir que ‘ah, nossa você sei lá’, embora não esteja... ‘que trabalho de corpo
maravilhoso!’ Aí dá vontade de perguntar o que que é trabalho de corpo? Não tem... eu
não gosto de... eu não acho legal. Tinha dia que eu falava ‘não quero sair’. E assim me
irrita, me irrita e... não é que me irrita a pessoa que está ali, me irrita esse momento.
⎯ A situação.
⎯ Porque não é aí que... não é isso que eu tô afim.
⎯ Que você busca, é.
⎯ É ai que eu acho que... é uma coisa, não é um, não é um tesão. É isso, eu represento
você interpreta. Você público interpreta que eu represento. Porque é isso e não sou eu
que tô inventando. Mas tipo, aqui tá o público, aqui tá você, aqui tá o que você
representa. Entre você e o público tem uma coisa que não é você que é da força da

227
dramaturgia, que é a força do teu movimento, que é a beleza da tua voz em função de
uma dramaturgia ou de um objetivo.
⎯ Ahã.
⎯ Mas essa coisa que tá no meio vai embora quando vira pessoal sabe? E eu acho que o
tesão é essa coisa.
⎯ Manter ela mais.
⎯ O tesão que eu... a alegria que eu... eu acho que a coisa ruim de ser ator é de não estar
trabalhando como ator.
⎯ Ahã.
⎯ E eu não, e eu não sou a pess... eu não gosto de lidar com as pessoas. Eu tô querendo
dizer, aqui tá super agradável, mas eu tô queren... eu... eu não me importo com a
obrigação social. Não, eu acho um sa... eu tô achando um saco trabalhar com eles, mas
a hora que eu tô fazendo eu tô inteiro. Eu acho que todas as coisas ruins estão em não
executar o trabalho de ator, que é a angustia da vida se você vai ter dinheiro pra pagar
sua conta, eu morava num quartinho então cara aqui não tá dando mais pra morar e essa
coisa a gente vai morar com gente dentro, vai a gente vai ter que pegar transito pra
voltar, mas é a nossa casinha, mas já ao mesmo tempo tem conta e essas são as angu...
acho que angustia de uma vida normal. Basicamente isso, não fazer o trabalho é uma
tristeza e a alegria é no momento de fazer.
⎯ Ahã.
⎯ Eu acho que é isso. Porque problema de saúde todo mundo tem, problema psicológico
todo mundo tem. Então, tipo, o médico tem problema... o meu irmão é engenheiro de
produção, ele tem problema profissional, pessoal, igual. Eu não acho que a gente seja
diferente. Mas a grande... eu acho que o grande... eu acho que a gente tem a sorte de
descobrir muito novo o que a gente escolheu. E a gente ama o que faz e além de amar a
gente é apaixonado. Então, tanto o amor quanto a paixão estão no mesmo lugar. Então,
eu acho que a gente coloca tanto amor nesse lugar que nutre, o fazer nutre a gente, a
alegria que... É, eu acho que é isso. E tudo que vem de pedra a gente tem que buscar
devolver em flor né? Pelo menos a gente tem que tentar. Toda pedra que vem tem que
transformar em flor. Tem flor que nasce em baixo de merda então sei lá é um... é quase
um trabalho espiritual.

***

Bárbara (35 anos)

⎯ Quais as principais dificuldades que um ator pode ter com ele mesmo?
⎯ Ahã, com ele mesmo? Eu acho assim, com ele mesmo, não questão de se bancar, nada,
com uma... eu acho que uma coisa do ator é ter uma vida estabilizada pra conseguir
criar, pra conseguir ter material pra pesquisar...Ter acesso a muitas coisas sem o
dinheiro também é complicado.
⎯ Ahã.
⎯ Eu acho que também é o bloqueio, ele tem em algumas coisas de... de exercitar algumas
coisas, enfim. É...
⎯ Coisas do tipo, como assim?
⎯ De fazer tipo, uma amiga minha, ela não consegue se emocionar em cena. Eu não
acredito que alguém não consegue se emocio... é, é ela falou assim pra mim: “Marcela,

228
eu não consigo chorar”. Mas eu falo pra ela: “Chorar é se emocionar? Não. Tu pode
chorar e tu não e tu não emocionar o outro”, né?
⎯ Sim.
⎯ Eu acho que às vezes o ator ele quer... ele quer chorar, se emocionar e não... e não tá
preocupado em emocionar quem tá lá assistindo, né? Então acho que uma dificuldade
que algumas atrizes, atores, enfim... tem é de perceber como emocionar o outro e não
só, “Ah, olha, to emocionada”.
⎯ Ahã.
⎯ E até de se... de conseguir se emocionar. Porque se a atriz ou o ator não conseguir se
emocionar, ele não tá! Se precisa da emoção, ele não tá na história. Não é... não é
verídico ali. Eu não tô falando de chorar, tô falando de emoção.
⎯ Sim.
⎯ Às vezes, porque é muito mais interessante a pessoa nem derramar uma lágrima e ficar
tensa do que chorar a né?
⎯ É.
⎯ Então, acho que quando lida sempre com emoção mais forte, eu acho que pode ser
alguma das dificuldades das pessoas. Tanto pro positivo, quanto pro negativo, né? Em
qualquer tipo de emoção.
⎯ Como assim pro positivo ou pro negativo?
⎯ Não, pro positivo tem pessoas que não conseguem de repente até um, às vezes teste de
comercial. ‘Ahã pô tem que sorrir né?’ A pessoa se trava.
⎯ Ah tá.
⎯ Então tanto pros dois lados.
⎯ Entendi.
⎯ A emoção pros dois lados, né?
⎯ Entendi.
⎯ Porque quando se... quando o ator se breca, muitas vezes ele não consegue se emocionar
e emocionar o próximo.
⎯ E você acha que isso tem a ver com, com bloqueios pessoais, assim?
⎯ Eu acho que tem a ver com bloqueios pessoais que daí a pessoa também... pode ser por
bloqueios pessoais e pode ser pelo mau entendimento, né? Do que se tá fazendo.
⎯ Ahã.
⎯ Mas as pessoas que tipo assim, são excelentes atrizes, já fizeram muitas coisas e pra
algumas coisas não conseguem fazer. Então, pode ser sim um bloqueio pessoal e outras
que pode ser também por conseguir se jogar de alma pra aquele projeto, entender, né?
E emocionar o outro.
⎯ Quais os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?
⎯ Eu acho que os melhores é assim tu poder vivenciar várias pessoas que tu, que tu não é.
Então assim, tu se descobrir, eu acho que tu se descobre como atriz, por vivenciar outros
personagens. Outra profissão não daria isso, né?
⎯ Ahã.
⎯ Pra gente, uma coisa ruim é que tem alguns métodos, né? Até antigamente o Stanislavski
falou que não era assim, enfim, que é usar muito de uma... de coisas tuas digamos, “Ah,
eu tô triste no personagem”. A personagem é depressiva e tu vai fazer isso durante muito
tempo. É tu se deixar influenciar por isso e acabar triste. Acabar como em vários
filmes... até aquela... aquele filme que é terror, como é que é? Esqueci o nome agora,
enfim, se deixar influenciar tanto por aquilo e absorver tanto. Eu acho que acaba se
prejudicando, né?
⎯ Ahã. E você já viu bastante?
229
⎯ Já vi...?
⎯ Isso acontecer?
⎯ Assim, eu acho que todo mundo quando acaba um personagem tu fica com um pouco
daquele personagem durante um tempo assim, é eu digo às vezes até mesmo na forma
de falar, na alguns trejeitos, tudo. Já vi muitas histórias assim acontecendo com filmes.
Esse meu amigo que tá fazendo... assim, ele bota uma carga muito grande que ele pode
se boicotar assim como pessoa né? No pessoal dele, ele tá fazendo uma cena excelente,
ele tá usando as ferramentas que ele acha legal, a técnica que ele acha pra atuação...
⎯ Ahã.
⎯ Mas ele pode se prejudicar também. Então assim, tipo já vi algumas pessoas que levam
pra esse outro lado e que não se des... não deixa, não faz alguma outra coisa pra sair
também daquilo. Até que, acho que também foi, não sei, acho que algumas pessoas
quando fazem isso e são crianças, novela mesmo, tem uma terapeuta... porque eles não,
não sabem da técnica exatamente como sai, como entra. Então, pra criança, eu acho que
sempre, acho que eles usam... é comum, usarem sempre um terapeuta. Porque novela
existe pessoa, criança de tipo 3 anos trabalhando, 4, 5, 6 anos...
⎯ Sim.
⎯ E que é. Precisa muito disso, porque não tem aquele estudo que a gente tem, enfim, né?
⎯ É.
⎯ E das técnicas, como sair, como não entrar ou entrar dessa forma, ou sair dessa forma,
então.
⎯ É. É, se com técnica já é difícil né?
⎯ Imagina...
⎯ E ainda numa fase de formação da personalidade, tudo isso.
⎯ Ahã. Isso eu acho perigoso, então sempre tem que ter uma... alguém ali, né?
⎯ É mesmo.
***

Marcos (68 anos)

⎯ Quais as principais dificuldades que um ator pode ter com ele mesmo?
⎯ Tecnicamente tem duas, e as pessoas têm um ou têm o outro. Porque o... (pausa longa).
Não sei que... tem pessoas são muito... tem muita vontade própria, né? E elas sabem se
impor numa situação, sua vontade. Elas são mais ativas, digamos. E tem outras pessoas
que são mais contemplativas, elas são mais... não é exatamente contemplativos, elas são
mais vulneráveis, elas são mais... sensíveis, digamos. Então, eu vejo que quando as
pessoas começam a fazer teatro, elas frequentemente demonstram uma... uma qualidade
ou outra, um talento ou outro. Uma pessoa que está muito sensível tem mais recu... tem
mais contato com suas próprias emoções, né? Então, esse lado da vivencia é mais fácil
pra elas. Enquanto que as pessoas que são mais... que mandam melhor em cena, esse
lado de vulnerabilidade é mais difícil. Então, eu diria que... as pessoas que são mais
sensíveis têm que trabalhar o lado de se impor. E a pessoa que manda bem tem que
trabalhar o lado de receber melhor. Essas são as duas dificuldades principais no palco.
⎯ Entendi. E quais os melhores e piores efeitos da profissão no ator?
⎯ (Pausa) Pra ser ator você tem que ter uma quantia de vaidade, né? Você tem que achar
que as pessoas querem olhar pra você. Que era uma coisa que eu não tinha, eu não tinha.
Eu era muito... hã... (pausa) não era recatado, mas eu não era uma pessoa exuberante,

230
não era. Tinha que, tinha que virar isso pra ir pro palco. Mas, eu acho que às vezes essa
vaidade pode virar uma coisa muito muito feia. Você pode ver em cena uma pessoa que
tá... isso é uma, isso é uma dificuldade. Pode ser uma qualidade se fosse numa medida
certa, mas se ficar exagerado pode ficar uma coisa feia. Eu tô falando tecnicamente,
sobre... você sabe, porque tem problemas de vida, né? É uma vida muito... é uma vida
muito... Eu estava casado, no outro casamento, e minha mulher não aguentava ver... me
ver fazer uma cena de sexo.
⎯ Ah é?
⎯ Beijo, paquera, não aguentava. E ela trabalhava na televisão, ela era uma escritora que
escrevia programas de televisão. Então, ela tava no meio. Não era leiga. Então, essas
são dificuldades que às vezes as... os próprios parentes não entendam que... onde acaba
o ator e onde começa o personagem, né?
⎯ Sim.
⎯ Aí tive uma briga federal uma noite com ela. Terrível. Ela assistiu uma peça em que eu
tinha uma cena que acabava o Ato num abraço muito sensual e tinha muito texto, eu
tava falando, falando, falando. E neste abraço eu tinha inspirado um cabelo da menina,
que, que entrou na minha garganta. E eu estava simplesmente sofrendo, agonias, quase
não conseguindo falar por causa desse cabelo. E quando acabou o Ato eu me arranquei
fora, para que... ela tinha o cabelo muito longo. E minha mulher depois disse... ela disse
“Você estava muito envolvido naquela cena!” (riso). Ela achou que era paixão, era
sofrimento. Paixão e sofrimento são a mesma coisa, não é?
⎯ É, entendi.
⎯ (Pausa longa) Você sabe que... a plateia tem, tem um... um mito sobre o teatro, que
intriga muito a plateia, o público, que é aquela coisa do ator se transformando em
personagem. Todo o meta-teatro trabalha esse, esse... gosto que as pessoas têm pra ver
uma pessoa um momento sendo um ator... aquele quadro de... A Falha Nossa do Vídeo
Show, onde as pessoas fazem erros. É muito engraçado assistir, porque você vê uma
pessoa tentando fazer a cena e não conseguindo, não é? O personagem, o ator, o
personagem, o ator. E, e, e... tem muitos filmes, aquele Cisne...
⎯ Negro.
⎯ Negro. Hã... BirdMan, e tem outro que é muito, muito... Então, essa... alquimia que
acontece quando o ator deixa de ser ele mesmo para ser um personagem, a plateia, o
público acha isso fascinante. E, e... bem, eu acho isso fascinante como ator. Eu acho
que essa... reencarnação que acontece, eu acho um processo fascinante. Mas eu acho
que as pessoas não entendem muito isso. Isso cria na mitologia uma, uma... uma
desconfiança que a pessoa está... porque sempre nesses... nesses filmes que tratam isso...
vira uma coisa patológica, né? A relação do ator com o personagem vira uma coisa
patológica. Então...
⎯ (riso)
⎯ Sei lá.
⎯ Essa visão do público e... e ao mesmo tempo do senso comum de uma expectativa que
essas fronteiras se diluam entre um e outro, como que é isso? Você como professor,
como você vê isso nos alunos? Porque a gente chega com o senso comum... chega...
⎯ Eu acho para o aluno (pausa longa) o, o, o... isso é muito difícil explicar. Quer dizer, na
aula, eu explico isso a cada aula. E eu consigo de forma cumulativa durante várias,
várias, várias, várias aulas, começar... a ter uma comunicação sobre isso. Hã... (pausa)
é aquela coisa dos polos opostos da personagem e do ator. A maioria de alunos começam
tentando atingir uma vivencia diretamente. Elas acham que se eles conseguissem sentir
a personagem, tudo vai fluir a partir disso. Então, eles tentam... se envolver nas emoções

231
de imediato. Isso é o primeiro, primeira coisa. Isso não é possível! Então, a pessoa não
conseguindo... realmente sentir, ele começa a representar uma emoção, que não é
verdade. E, e provavelmente fica satisfeito com isso. Então, o professor tem que dizer
“Não, isso não é verdade, isso é uma mentira”. (Riso). Porque a vivência cênica é uma
consequência, não é um ponto de partida. Então, o grande problema no início é mudar
essa perspectiva do papel. Mas eu vejo, eu vejo atores com anos e anos e anos de
experiência fazendo os mesmos erros, especialmente no início do processo. Ao longo
do processo eles começam... um caminho incerto, a se achar em cena. Mas a... começa
demonstrando, começa... tentando se emocionar, né?
⎯ Entendi. E ao mesmo tempo, você já viu alunos de repente fazendo algum personagem
e mudando seu próprio comportamento?
⎯ (Pausa) Tipo Cisne Negro? (riso)
⎯ É. (riso). Por estar imbuído dessas ideias do senso comum.
⎯ Não. Eu acho que você tem que ter... se o papel foi criado corretamente, você não se...
você não se confunde não, com a sua própria vida não. Eu acho que se o... o Stanislavski
tinha, que ele no início começou a trabalhar as emoções, memória emotiva. Parou de
fazer isso porque ele considerou que não era totalmente artístico. Porque as pessoas...
justamente porque as pessoas podiam perder a objetividade. Ficar tão envolvido nas
emoções que elas perdem a distância artística. E minha professora disse que tinha, eu
nunca li isso em nenhum lugar, isso é só que ela falou pra mim, que tinham internações,
atores que realmente.. tipo, aquele que tomou ácido e nunca voltou? Ficaram... depois
do espetáculo não conseguiram voltar ao normal. Teve que ser internado durante uns
tempos pra... Isso obviamente não é arte, isso é patologia. Mas se você trabalha com
ação e não com as emoções, isso não vai acontecer.

***

Débora (40 anos)

⎯ Quais as principais dificuldades que um ator pode ter com ele mesmo?
⎯ As dificuldades?
⎯ É.
⎯ Você diz na...
⎯ Ou coisas da própria personalidade ou...
⎯ Ah sim.
⎯ Que o próprio ator de algum modo se sabota profissionalmente.
⎯ Bom eu acho que duas coisas é primeiro se você tem uma personalidade forte é você
lidar com a sua própria personalidade para conviver nesse meio. Todo meio é tem as
suas dificuldades, mas o meio artístico é uma coisa mais exposta é uma coisa mais
pública, uma coisa mais jogada. Então, você saber lidar é aquela coisa que eu tinha te
falado antes de você saber lidar com cada pessoa, cada personalidade. Nem sempre você
vai ter pessoas queridas trabalhando com você e você tem que ter esse jogo de cintura,
digamos assim.
⎯ Sim.
⎯ E muitas vezes se tem que engolir muitas coisas, entendeu? Tem que ter essa sabedoria,
saber o momento certo de falar ou se calar então são duas coisas assim que... que eu
acho que a gente tem que ter. Principalmente se você tem uma personalidade mais forte
como eu tenho... uma personalidade muito forte. Eu sou muito... eu sou muito líder, eu
sou muito... sou muito guerreira eu corri muito atrás das coisas desde muito nova. Sei
232
muito bem o que eu quero. Então, eu tenho essa coisa de liderar muita gente, sabe? É,
eu sempre tô envolvida com muita gente, sempre levando muita gente pras coisas.
⎯ Ahã.
⎯ Isso é minha personalidade então muitas vezes essa personalidade tem que ser abafada
para eu receber outras coisas, né? No meu dia-a-dia então eu acho que isso é um desafio
sempre. É... e você falou da coisa da gente se sabotar, então, eu acho que o ser humano
em si não só o ator tem uma leve tendência, uma leve não, uma boa tendência de se
sabotar nas coisas né? Eu, há três anos atrás, eu fiz um curso chamado “treinamento de
líderes” que é um, um curso de liderança. Ele é todo voltado na programação
neurolinguística e ele trabalha suas quatro emoções: a tristeza, a raiva, só uma positiva
a alegria, a única positiva. Aí o resto é tristeza, raiva e medo, então você aprende a
trabalhar a suas emoções negativas e exaltar a sua positiva que é a alegria e você aprende
que você começa enxergar que você não se engana mais.
⎯ Hum.
⎯ Pelo menos com esse curso ficou muito visível coisa que eu me sabotava, diz que a
gente tem essa tendência a... a se enganar, a se sabotar e depois que eu fiz esse curso foi
assim maravilhoso, foi incrível porque eu não me engano mais, eu posso enganar
qualquer pessoa, mas eu não consigo me enganar mais.
⎯ Olha.
⎯ Então, por exemplo, se eu quero ter um corpo bonito, eu quero estar com o corpo pronto,
com corpo de trabalho tonificado, pronto pra um teste, pronto pra qualquer situação eu
tenho que me dedicar a isso, então minha alimentação tem que ser certa, as minhas
atividades físicas tem que ser com frequência, essas coisas então se... isso é só um
exemplo.
⎯ Sim.
⎯ Então, eu sei o que eu preciso para atingir aquele objetivo se eu não fizer eu não to
enganando ninguém eu tô me enganando, a mim mesma. Então, eu acho que essa coisa
de você se sabotar é muito, muito complicado porque você se atrapalha. Então, quando
você descobre... pra mim esse curso foi essencial porque me mostrou onde. Eu acho que
tudo você pode, desde que você realmente queira e se dedique para aquilo.
⎯ Ahã.
⎯ Então não tem essa, você começa entender que você vai chegar onde você quiser se
você realmente quiser. Tem coisas que você acha que quer e não quer. Então, você tem
que saber se escutar também, tem que entender que é importante a gente saber se
entender, se ouvir, ouvir esse próprio eu. Porque às vezes você acha que quer aquilo,
mas na verdade você quer aquilo por causa de outras coisas, não porque você realmente
quer aquilo.
⎯ Hum.
⎯ Então poder se... não sei se eu fui muito...
⎯ Sim... não.
⎯ Abrangente, mas eu acho que se...
⎯ Mas foi legal.
⎯ Na verdade, são essas duas coisas: você lidar com a sua personalidade e você aprender
a não se sabotar. Acho que isso é o mais é delicado da profissão.
⎯ Ahã. E quais os melhores e os piores efeitos que a profissão pode produzir no ator?
⎯ É eu acho que o melhor é quando você se, você se joga em um desafio, por exemplo, eu
começo um trabalho novo agora né? Eu vou fazer Toda donzela tem um pai que é uma
fera do Gláucio Gill o clássico da comedia e eu fa... eu tenho uma personagem é

233
Florisbela uma personagem de, de, ela tem só duas entradas é um presente, personagem
é muito bacana, mas ela não é uma personagem tão grande.
⎯ Ah.
⎯ Mas só que eu faço a produção executiva da peça e eu sou stand de das outras duas
atrizes.
⎯ Ahã.
⎯ Então, assim, é um desafio, né? É um desafio então qual é... a melhor e pior... a sua
pergunta, qual é a melhor e pior sensação que um ator pode, pode trazer? Essa é a
pergunta né? Então, assim, eu acho que a melhor sensação é quando você tem os
desafios e você se joga neles e você da o melhor de si e você tem um resultado positivo,
essa é a melhor sensação porque você foi, você correu atrás, você concretizou, você
realizou. Isso não tem, eu acho que não tem e não tem sensação melhor. De... ok
consegui é isso ai e isso te capacita pra outras coisas. É como se você fosse subindo seus
degraus da vida, assim né? E eu acho que a pior é quando você nem se arrisca, você dá
pra trás e ai vem aquela coisa de se sabotar. Porque você fica dando desculpa pra você
mesmo e não se entrega como deveria. Ou quando você se joga no desafio, mas você
para no meio do caminho e isso gera uma frustração e tudo que você fizer, nesse curso
a gente aprende muito sobre o sucesso, o que que é o sucesso? É o contrario do fracasso.
O sucesso é gostoso a gente ouvir e é muito ruim a gente ouvir fracasso. Mas o fracasso
é o contrario do sucesso. Então, tudo que você fizer pela metade você vai ter fracasso.
Então, você só vai ter sucesso se você concluir todas as etapas e sentir. Eu acho que o
pior de tudo é o fracasso de você não conseguir concluir alguma coisa, não porque você
não conseguiu, mas sim porque você não se entregou completamente na sua capacidade
pra fazer.
⎯ Sim.
⎯ E o melhor é quando você tem sucesso naquilo que você tem a realização. Eu acho que
isso é o melhor e o pior do ator.
⎯ Ahã.
⎯ Ou em qualquer profissão né?
⎯ Sim.
⎯ Mas isso é o que grita mais assim, na gente quando você obtém o sucesso. Eu digo não...
não o sucesso público, mas o sucesso seu, pessoal...
⎯ Ahã.
⎯ De realização... daquilo que você se propôs a fazer. Eu acho que isso te dá muita força
pra outros desafios e você vai sempre vendo que você é capaz sim quando você quer.
Então, é um passinho de cada vez né?
⎯ Sim.
⎯ Uma construção sem fim.

***

Viviane (32 anos)

⎯ Quais as principais dificuldades que o ator pode ter com ele mesmo?
⎯ (Pausa) Inconstância. O ator é sempre muito inconstante. E eu acho que isso é o mais
difícil. Desorganização. Muitos atores são desorganizados e isso torna a vida deles um
caos. Principalmente a vida financeira. Porque a gente tem trabalho e às vezes, não tem.
234
Se o cara ficar nessa vida esperando o trabalho aparecer, ele se ferra. E se quando o
trabalho entra, ele gasta todo o dinheiro e não guarda pra esperar um tempo que ele vai
ficar sem o trabalho, ele tá ferrado também. Então, ser mal organizado e essa
instabilidade, você levar pra sua vida emocional em todos os sentidos, é muito difícil.
O ator, ele tem que ter um plano B, de profissão, de tudo pra poder se manter sem
depender da profissão. Profissão tem que ser a arte dele, tem que ser o que vai ser de
melhor, é o foco principal dele. Mas tem que ter um plano B a todo momento que vai
fazer com que o financeiro se movimente né?
⎯ Entendi.
⎯ Senão a ansiedade corrói ali e o cara nem consegue ir bem nos testes, porque tá
precisando tanto do teste quando ele vai, que ele não consegue se concentrar no ponto
de ir bem e passar.
⎯ Quais os melhores e os piores efeitos que a profissão produz no ator?
⎯ Os melhores e os piores efeitos? (Pausa longa). Liberdade né? Os que... pro bem e pro
mal... acho que é o principal, a liberdade.
⎯ Ahã.
⎯ A profissão do ator é... muito livre. Você pode ser o que você quiser, em qualquer
momento. E também você pode se perder, sendo...qualquer coisa (risos)... que você não
é! Então acho que isso é uma coisa muito boa, você ser livre, pra você ser um milhão
de coisas. E é muito ruim. O problema é lidar com o ego, com isso tudo. É um excesso
de liberdade, que, às vezes pode virar libertinagem... pra muitos casos. Às vezes, as
pessoas entram pra uma vida errada também. E...(pausa) o ego é uma coisa muito chata
de lidar, porque ele não é bom nem ruim, ele tem que se... estar no meio termo. A gente
tem que acessar ele de uma forma consciente. Tipo... você não pode se desfazer do seu
ego, senão você não vai fazer as coisas bem feitas o suficiente. Mas também, se você
ficar com o ego muito inflado, pra trabalhar não funciona. Você vai só se queimar e não
vai dar certo. Então, não é... a gente aceita... lida com críticas o tempo inteiro. Com
pessoas que não gostam do nosso trabalho. E tem que aceitar essas críticas, tem que
aceitar sugestões de melhora da melhor forma possível.
⎯ Ahã.
⎯ E lidar com inveja, com olho gordo... Isso tudo que tem né? Existe.
⎯ Sim.
⎯ Não tem como porque, sempre uma pessoa que é... que tá bem na vida, que tá bem
realizada e que consegue fazer as coisas, lida com isso. A gente tá o tempo inteiro sendo
testado. E em teste você tem uma concorrência direta de pessoas que tem o mesmo
patamar, às vezes, de experiência que você... e perfil. E, onde todas mereciam às vezes
passar. Todas estão precisando da mesma forma como você e às vezes você pega. E é
difícil lidar com o ego também. E com essa coisa de criação de personagem, lidar com
a liberdade de uma forma boa e também de uma forma ruim, que às vezes as pessoas se
perdem com o excesso dessa liberdade.

***

Vinícius (30 anos)

⎯ Quais as dificuldades que você acha que um ator pode ter com ele mesmo?
⎯ (Pausa) O medo. (Pausa) O medo pode ser uma faca de dois gumes. Tanto pode ser
positivo, como negativo. Se souber usar, é uma grande arma.
⎯ É?

235
⎯ (Pausa) Aí vai ficar... em segredo pra mim (risos).
⎯ Ahã.
⎯ Enfim, é o medo. O medo é... é ótimo. Dizem que não é, mas é bom, é bom pra caramba.
Adoro... ir fazer alguma coisa com um certo receio... um certo respeito, sabe? Você tem
que respeitar o que você está fazendo. Então acho que isso aí é o... o lado... é um desafio,
pra mim. É isso.
⎯ Hã... quais os melhores e os piores efeitos da profissão no ator?
⎯ Quais os piores...?
⎯ E os melhores, efeitos, que a profissão produz no ator.
⎯ Tá. (riso) Eu vou pela parte financeira (risos). Piores efeitos é que você... quando se
trata de um, de um artista que realmente quer viver da arte... você sofre isso né, essa
questão financeira é latente na classe.
⎯ Ahã.
⎯ Muita gente sofre com isso, eu sofro, conheço um monte de amigos. É... fora isso,
também, é a questão de você se desligar um pouco da família. Você viaja, nem sempre
está no mesmo lugar. É... você, meio que vive um... (pausa) um outro universo, sabe,
que você tem que se adaptar. Eu acho que o ator, ele é muito solitário.
⎯ Ahã.
⎯ Eu acho que o ator é muito solitário. E... tem outras coisas boas, também, maravilhosas
da profissão. Que eu acho que hoje em dia... tô vendo isso... é minha evolução...
espiritual. Eu acho que eu tô muito mais evoluído espiritualmente, tô muito mais
reunindo as minhas coisinhas, meu universo, trazendo mais pra mim. E eu vou te falar
que todo esse processo de espiritualidade, processo de desenvolvimento como pessoa,
como ator, como ser humano, eu devo muito ao Ricardo, é o meu mestre. É o cara que...
pô, vou na casa dele e o cara tem livros de poesia, sempre tem um CD do Vinicius de
Moraes, tem alguma coisa... enfim... tem Cartola, tem Leminski... o cara tá sempre
recheado de artistas. E... quando você tá do lado de coisas boas, você só vai ter... eu
acho que o lado bom meu... eu acho que, nem digo que foi, que é uma coisa que é pro
ator. Eu digo que é para o ser humano. Você tem que saber como artista onde você tá
pisando, com quem você se envolve, sabe?! Então, tá meu pé aqui, nesse curso aqui,
que só tem gente querendo aparecer na televisão, só tem gente querendo isso, aquilo,
sair em fotinho com artista, não sei o que, não sei mais o que lá. Eu acho que esse
universo é um outro universo (pausa). Totalmente, é... no meu ponto de vista... é (pausa)
sem verdade, sem energia, sem amor.
⎯ Ahã.
⎯ Tá me entendendo? Eu acho que... o lado bom mesmo é você se aproximar de pessoas
que te coloque um novo conceito sobre o que é arte... o que é fazer aquilo com verdade,
com amor, reverenciar, sabe? É como as religiões. A minha profissão é uma religião, eu
sigo ela... a todo vapor. Só eu sei... o quanto eu sou feliz e o quanto eu sofro com ela.

***

Levy (54 anos)

⎯ Quais as dificuldades que um ator pode ter com ele mesmo?


⎯ Ah, a primeira armadilha é essa da vaidade! Essa é a básica. Segunda armadilha...
(expira profundamente) querer ser aceito. O ator quer ser aceito sempre. Quer ser... é...
236
o aplauso é só um resultado de uma aceitação. É... ele se fragiliza de forma absoluta
quando ele é um ator de verdade, para que aconteça a mágica, né?
⎯ Ahã.
⎯ Mas ele precisa ser aceito. Dói muuuito quando as pessoas não gostam, né?
⎯ Ahã.
⎯ Você tem que ter muita maturidade... com a critica formal e com a critica... das outras
pessoas, do publico. Eu por exemplo, a ‘crítica x’ me criticou de várias maneiras. Me
elogiou, me detonou... aí teve um dia que encontrei com ela eu falei “Por que você fez
aquilo comigo?”. Ela falou “Levy, você tava péssimo”. (riso). E é genial isso! Isso não
me abate. Porra, é uma opinião, né? Como ela uma vez fez uma critica geral pra varias
pessoas do elenco, colocou todo mundo no mesmo bolo dizendo que tava correto. Aí eu
falei com ela, falei ”Correto não, me detona ou me elogia, correto não”.
⎯ (riso)
⎯ (riso) Aí teve... numa dessas vezes, acho que foi nessa que ela me detonou, que ela...
nem foi uma detonada tão grave, mas ela falou assim, que eu tava perdido em cena. E a
‘crítica x’ era um símbolo muito forte, que as pessoas execravam, mas ficavam super
vaidosos quando ela elogiava.
⎯ Sim.
⎯ Então ela era um, um... emblemática! Eu particularmente gostava dela. Achava ela uma
pessoa com humor. E ela foi muito gentil sempre quando nós estivemos juntos. Era uma
mulher muito culta. Mas sei que ela massacrou muitas pessoas e muitas pessoas se
sentiram muito ofendidas por ela. É claro que eu discordo de muita coisa... a forma
como ela escreveu, muita coisa, óbvio. Mas no trato pessoal era muito simpática. Mas
aí um dia ela disse que eu tava perdido em cena. Aí eu cheguei no teatro as pessoas
todas estavam assim... tipo, como é que eu tinha ficado? Porra, aí quando eu entrei em
cena, eu tinha levado uma bússola. Eu levei uma bússola e entrei em cena com a bussola
assim (demonstra). Neguinho não acreditou. Porra, eu tinha que me divertir com aquilo.
Se eu tô perdido deixa eu tentar me achar. Nego rindo pra tudo que é lado ali. Uma atriz
não acreditava que eu pudesse ter humor em relação àquilo. Cara, claro! É a opinião de
uma pessoa. Tem pessoas que me interessam muito a crítica, mesmo que seja negativa,
porque eu sei que serão criticas construtivas. Existiu um naipe de críticos principalmente
em São Paulo, que eles eram fantásticos, que eles eram críticos que participavam do
teatro. Hoje tem uma... uma coisa no critico que ele não cumprimenta o ator. Ele vai ao
teatro e ele não fala com o elenco. Esses caras, eles iam durante o ensaio, iam na estreia
e iam depois da estreia. E faziam críticas, não assim “Achei isso”. E ele falava “Achei
isso”, mas como ele... ele tinha participado do processo e ele era um cara que fazia parte
do teatro, ele te dava caminhos. Então, eram críticos... primeiro com uma base é, é... de
conhecimento, intelectual e cultural muito grande. Mas ele fazia parte do processo do...
do espetáculo. Então, essa armadilha do ser aceito é muito delicada. Tem pessoas que
recebem uma critica e desmoronam. Tem pessoas que pô... se a plateia não reagiu
naquele dia da mesma forma, ele desmorona. Então, essa, essa... é uma... dificuldade. A
outra dificuldade é concreta, quer dizer, dentro de um mercado de trabalho que não
existe, como é que você sobrevive? Primeiro, como é que você entra? E depois, como
você sobrevive?
⎯ Sim.
⎯ Um mercado que é cada vez mais limitado e que ele objetivamente não existe. Quando
eu comecei minha carreira, a gente conhecia todo mundo que tava começando. Num
determinado momento centenas, milhares de pessoas começaram a ter o mesmo sonho.
Legítimo, seja ele qual for. Eu sempre acho que tem três tipos de cara: o fazedor, o ator
e o artista. O fazedor, faz teatro, faz televisão, faz cinema. O ator é um cara que tem
237
embasamento das suas ferramentas, conhece técnica teatral, tem cultura teatral e exerce
a sua profissão a partir disso. E o artista, que tendo tudo isso, ele emite opinião através
do seu trabalho. Esse, é o que a gente sempre sonha em trazer pra vida. Então, tem a
dificuldade objetiva. Se você pegar, que você tem como mercado aquele que te emprega
como trabalhador, pessoa física, você só tem a ‘emissora x’. Se você somar as pessoas
que são contratas lá, ou as que estão trabalhando efetivamente nesse momento... pô, é
desse tamanhinho (gesto de pouco). Vamos somar o resto, o que tem na ‘emissora y’, o
que tem na ‘emissora z’... e nos programas que tem em torno da novela... isso é mais ou
menos o que a ‘escola x do Rio’ coloca no mercado todo ano. Uma escola! Fora todas
as outras pessoas que vêm de outras profissões agregadas, ou de outros estados pro eixo
Rio-São Paulo. Quer dizer, esse mercado não existe! Então, essa é uma dificuldade
básica grande. Não só porque ela é de sobrevivência, mas porque ela aborta sonhos! Vai
abortar 99% dos sonhos.
⎯ Sim.
⎯ Ah... outra dificuldade, é você ter condições mínimas pro exercício da sua profissão. E
isso exige você ter acesso às informações, se abastecer delas, poder aplicar. (pausa)
Mais isso. Mais isso.
⎯ Ahã. Certo. E quais seriam os melhores e os piores efeitos que a profissão pode produzir
no ator?
⎯ Hã... os piores é ele achar que ele é. Quando ele acha que ele é, tá fodido. Ele nunca é.
Aí quando ele acha que é, acabou. Tá liquidado. (Pausa). Ele ter que ser dinâmico, ele
que ser estudioso, ele tem que se superar, ele tem que... ele tem que investir muito na
sua capacitação. Senão ele será só raso. A mesma coisa. Ele não terá evoluído nunca. E
cada personagem te traz possibilidades de.. de evoluir. Mas fora isso você tem que fazer
um trabalho intenso com você. Porque é, é, é... tem um coisa na profissão, tem umas
pessoas que assim, eles terão uma carreira super bacana, porque a vida propôs assim.
(Pausa). Independente daquilo que eles investiram neles próprios. Mas, a maioria se
constrói com muito suor, com muita ralação. Você pega o cara como ‘o ator tal’, ele é
capaz de ler 5 livros por semana! E ele não precisa provar mais nada pra ninguém. A
conta bancaria dele e o prestígio que ele tem profissional... você... pra você ter uma
ideia, um menino que... que passou um tempo lá em Hollywood, ele me contou histórias
incríveis. Uma delas, ele contou que tava nessa... me contou que ele tava na locação
com o Jack Nicholson. Aí tinha uma filmagem, assim, sei lá, 6 da manhã, pra pegar luz
e tal, numa casa. E o Jack Nicholson chegou lá, e ele não ia filmar. Aí diz que ele chegou,
chegou pro diretor e falou “Diretor, você liga se der um pulo lá na cozinha?”, era uma
casa e tal. “Não”. Ele foi, ficou lá um tempo, depois voltou, agradeceu e foi embora. Aí
o filme estreou e tal... e num jantar, desses depois da estreia, o diretor lembrando disso
falou “Deixa eu te perguntar uma coisa que sempre quis... o que você foi fazer lá?”. Aí
ele falou assim “Não, eu tinha uma cena que eu falava de alguma coisa que acontecia
na cozinha, eu precisava conhecer aquela cozinha”. Um cara que recebe 30 milhões de
dólares por filme, há 50 anos ele é... um monstro! Esse cara precisava provar o quê?
Esse cara precisa? Não! Mas ele tá no jogo! Ele é de verdade um ator. Aí a gente entende
porque ele é o Jack Nicholson. Você pega a Meryl Streep, nada pode ser um exemplo
de uma atriz, cara, ela vai de A à Z. O repertorio dela como atriz é um negócio absurdo.
Ela tem mestrado em artes cênicas! Ela não é pelo poder do Espírito Santo. E nunca vai
ser pelo poder do Espírito Santo. Aí você fala “Mas fulano nunca leu nada, nunca fez
nada e é protagonista...”. bicho, isso é um cara! Isso é a história dele. Mas se você pegar
90% é ralação, é estudo, é pancadaria. Né?
⎯ Sim.
⎯ Então, eu acho que a maior cilada é essa, ai você falou do... você tinha dois...

238
⎯ Dos melhores efeitos que a profissão pode fazer no ator.
⎯ Você se tornar uma pessoa melhor, mais humana. Pô, você pode tocar em tantos
compartimentos seus, em tanto que você é que você pô... começa a exercitar sua
tolerância com o outro. Porra, se você vai falar de vidas, de pessoas, você pode se tornar
uma pessoa melhor através de sua profissão. Ou muito pior! É uma opção, né? O teatro...
e isso quando você dá aula é, é... é muito interessante, quando você dirige. O teatro
desperta em você o que você tem de melhor e o que tem de pior. Ele faz... aflorar. Mas
não é com limites, não. É o que você tem de melhor e o que você tem de pior. A televisão
não, a televisão não vai fazer aflorar muita coisa em você. Mas o teatro? E isso é muito
espantoso! Porra, é assim...
⎯ Como diretor, você já viu os dois processos?
⎯ E como professor! Você fala “Caraca”. Você desperta o que tem de melhor e o que tem
de pior nas pessoas. Não tem jeito. E vem numa, numa, numa intensidade muito, muito...
muito grande. Eu acho que isso, a melhor coisa que pode acontecer é você se transformar
numa pessoa melhor.

***

Os trechos apresentados no item acima incluem grande parte dos entrevistados. As duas
principais perguntas evocadas nesses trechos são: 1) Quais as dificuldades ou desafios que o
ator pode ter com ele mesmo? E 2) Quais os melhores e os piores efeitos que a profissão produz
no ator. A ideia que motivou a elaboração dessas perguntas partiu de uma compreensão da
pesquisadora de que o ator trabalha sobre si mesmo para executar seu ofício. Que é ele próprio
artesão e arte, sujeito trabalhador e objeto fruto do trabalho. Além disso, ele é a principal
ferramenta que pode transformar a si a fim de “elaborar”, “criar” ou “construir” um
personagem. Nesse sentido, o ator estaria ativo enquanto aquele que faz, aquilo/aquele através
do qual se faz e aquilo/aquele que é feito.

No sentido de buscar compreender alguns aspectos que da relação criador/criatura que


o ator tem consigo, elaborei essas perguntas que visam pensar como o trabalho pode atravessar
esse “sujeito-objeto de si”. Em que medida as características do ator interferem no seu processo
de trabalho e em que medida o trabalho reverbera nesse “sujeito-objeto de si”? Através das
respostas, consegui perceber porque os autores de artes cênicas, ao escreverem sobre suas
experiências, evocam aspectos das relações sociais usualmente relatando comportamentos que
fazem parte de um grupo moralizado de ações, classificadas enquanto ética. As relações com
os colegas de trabalho é uma das expressões de como o ator se relaciona com o mundo. Essa
relação com o mundo constitui o aspecto social seu ser que é também matéria, ferramenta e
obra de sua arte. Nesse sentido, de acordo com algumas correntes de pensamento dessa arte,
não exige-se apenas que o trabalhador execute um trabalho, do ator é esperado que desenvolva

239
suas habilidades ou elimine seus bloqueios a fim de ser um bom material para si mesmo. Espera-
se que tenha uma autoconsciência ou auto-percepção desenvolvidos – ou pelo menos não seja
reativo ao diretor – a fim de ser uma boa ferramenta para transformar a si mesmo. Tudo isso
para que por fim, consiga produzir uma obra de qualidade.

Diante dos aspectos evocados tanto pelos autores já mencionados nessa pesquisa, quanto
pelos atores transcritos acima, cabe pensarmos que esse trabalhador pode considerar relevantes
aspectos seus de diversas ordens, a partir de uma compreensão de indivíduo que suporte as
esferas bio-psico-sociais. Na antropologia, desde Marcel Mauss, as pesquisas que consideram
essas esferas como interligadas e interdependentes se fizeram possíveis. A literatura cujo objeto
de estudo envolve experiências e praticas, se liga em grande parte a essa tradição de
pensamento. Segundo as ideias de Marcel Mauss, o ato tradicional eficaz, e para ele a tradição
é o elemento humano de transmissão que nos diferencia dos animais, se compreendido pelo
autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, pode ser compreendido como
técnicas corporais.

Desde o início deste capítulo apresentamos a questão sobre como, autores da área das
artes cênicas dão conta de teorizar, ou publicar suas reflexões sobre a prática de forma a torna-
las expansíveis a seus círculos de contato e para que, ao mesmo tempo, não percam suas
características mais essenciais. Nesse sentido, como uma meta reflexão, apresento os desafios
para pensarmos as falas dos entrevistados em relação às suas práticas. Ao considerar os aspectos
bio-psico-sociais dos atores, abrimos a possibilidade de compreender os elementos
mencionados por eles acima sem fronteiras rígidas, por exemplo, entre ética e estética. Formas
de lidar com as relações sociais, expressão de movimentos físicos e emoções ou estados
subjetivos estão nesse tema imbricados numa complexa trama. O tema da vaidade, por exemplo,
apareceu nas respostas de forma recorrente, porém a partir de diversos fios condutores. A
vaidade foi considerada um bloqueio porque: dificulta ao ator reconhecer os próprios limites e
foi associada à arrogância e soberba; faz com que o ator não queira errar, sendo que o erro deve
ser compreendido como parte do processo; impede o ator de aprender porque o torna reativo às
críticas e sem humildade; é associada à ideia de ego que aparece como uma dificuldade na
relação com colegas; é associada à ideia de ilusão que a fama traz, transformando o artista
apenas numa celebridade; é associada à inveja, que é faz com que o indivíduo pense que aquele
posto que um colega ocupa deveria ser seu; dificulta a compreensão sobre a impossibilidade de
“ser aceito” por todos; dificulta reconhecer o nível de preparo e/ou dedicação que o outro dedica

240
ao trabalho, e, por fim; faz o ator pensar que “já é”, ou seja, que já está pronto e não tem mais
nada a aprender.

Percebemos que o tema da vaidade percorre pelo menos um dos elementos de quase
todas as respostas apresentadas sobre esse item. Isso talvez ocorra pelo aspecto mencionado
como “positivo” da vaidade que Marcos apresentou: o ator deve gostar de se expor para um
público, essa característica é uma qualidade que facilita o trabalho do ator. Ele diz que o ator
deve ser alguém “exuberante”, que acredita que as outras pessoas querem olhar para ele. Como
consequência dessa reflexão ele diz que o ator deve ter uma quantia de vaidade, e que essa era
uma dificuldade sua. De modo mais amplo, várias características foram apresentadas como
elementos que devem estar presentes, porém temperados. Seriam qualidades que, se bem
administradas seriam boas e se destemperadas seriam ruins ou perigosas. A vaidade foi
apresentada por quase todos como negativa e apenas Marcos mencionou sua polaridade
positiva. Já o medo foi apresentado por dois entrevistados como necessário, porém com a
presença das polaridades a ser administradas. Pode ser uma quantidade de medo, que sentido
enquanto insegurança pode travar a ação, ou que pode ser sentido enquanto um nervosismo de
alerta, para uma ação mais atenta e com maior vitalidade. Sobre o medo, especificamente, o
ator e diretor Yoshi Oida faz uma análise em que também considera essa polaridade:

Um medo extremo é um problema, pois nos deixa completamente impotentes.


Dificilmente podemos nos mexer, quanto mais atuar bem. Para quem sofre
disso e não consegue administrar seu medo, talvez seja melhor desistir do
teatro e achar uma profissão menos “perigosa”. Mas acho que, na realidade, o
medo está muito próximo da excitação. Algumas pessoas dizem que se não
sentirmos medo atuaremos melhor. Eu não concordo. Tenho visto muitos
atores que nunca se sentem nervosos, porém se tornam incrivelmente tedioso:
a interpretação parece mecânica e não há energia no palco. Outros atores, tão
dominados pelo medo que mal conseguem chegar a subir no palco, são
absolutamente fascinantes. Eles prendem completamente a nossa atenção. O
medo não é necessariamente um elemento negativo. Precisamos lidar com o
medo, embora tenhamos de suportar muitas dores no estômago. (OIDA. 2007.
p 135).

Outros dois elementos que apareceram nessas respostas como ações ou qualidades que
não tinham uma polaridade interna, mas que polarizavam com outras qualidades: a
“personalidade forte”, a liderança ou o “saber se impor” que se opõe à sensibilidade ou ao
“saber receber”; e o “saber ser” ou “poder ser” várias pessoas, mas sabendo que não se é outra
pessoa, que se opõe à patologia de pensar que se é outra pessoa.

Todos esses elementos que foram apresentados tanto como portadores de polaridades
internas a si, como os que apresentam elementos externos enquanto opositores, podem ser
241
compreendidos enquanto elementos que envolvem diversas esferas do indivíduo. Alguns
elementos presentes nessas falas, como a instabilidade financeira, serão deixados de lado nessa
análise para privilegiarmos a reflexão sobre os aspectos que envolvem qualidades e habilidades
desses indivíduos trabalhadores a fim de aprofundar na discussão proposta. O tema vaidade,
por exemplo, foi dito por Marcos que é feio ver um ator excessivamente vaidoso em cena. Nesse
sentido, por mais que os aspectos que envolvem relações sociais tenham sido privilegiados nas
respostas, esta ideia de Marcos nos aponta para uma possibilidade de implicação física ou
psicológica da vaidade. Pensei em algum exemplo que permitisse compreendermos como essa
“feiura” que ele evoca pode se manifestar no palco e lembrei de algumas situações. Algumas
delas dizem respeito à vontade de estar sempre “bonito” em cena, mesmo que o personagem ou
a situação que o personagem vivencia peça outra atitude diante da própria imagem. No primeiro
semestre do primeiro curso para atores que realizei, a turma foi convidada a assistir o ensaio
geral de uma peça de outra turma, que naquela ocasião estava se formando atores profissionais.
Era uma peça elaborada a partir de vários trechos de peças de Nelson Rodrigues. Eu cheguei a
esse universo sem muito conhecimento sobre teatro, então para mim aqueles trechos recortados
de peças diferentes não faziam muito sentido, mesmo assim estava muito interessada em
aprender tudo o que pudesse. Num determinado momento da peça uma personagem é
assassinada. Ela recebe uma facada na barriga e cai desfalecida. Assim que caiu, seu vestido
que era curto subiu. Ela teve uma reação imediata de descer a saia do vestido com a mão e
continuou deitada. Depois que o ensaio terminou o diretor gritava “Como é possível alguém
voltar do mundo dos mortos só pra não deixar a calcinha aparecer?”, “Como alguém ressuscita
para abaixar a saia?”, “Vocês não entenderam nada de teatro. Não fazem ideia do que é arte.
Vocês só querem ficar bonitinhos aqui em cima pra um produtor de elenco ver vocês e dar um
papel na tv”. “Como é possível alguém se formar ator cometendo um erro tão primário! É muita
vaidade que não deixa vocês enxergarem o quanto são ridículos!” Por fim ele avisou que os
Deuses do teatro protegem aquele espaço sagrado e que qualquer um que estivesse ali por
vaidade, para querer apenas aparecer ao invés de devotar a si mesmo para a arte, estaria
correndo sérios riscos de ser desmascarado em público como acabara de acontecer. Esse
acontecimento me marcou. Ao mesmo tempo em que me sentia solidária à garota, conseguia
compreender a raiva do diretor. Ela estragou a peça, pareceu uma piada que depois não era mais
possível se concentrar na história. Guardei o ocorrido como uma lição prática sobre a vaidade.

Outros elementos já mencionados que foram apresentados nas respostas como


associados à vaidade, como o medo de errar, querer ser aceito pelos críticos, ou a inveja do

242
trabalho do colega, tudo isso pode ter reações físicas e psíquicas como essa que acabamos de
descrever. Por vezes, alguns personagens da peça se parecem muito não porque eles realmente
se pareçam, mas porque alguns atores podem estar com medo de errar arriscando algo próprio
e prefiram repetir algo que alguém já fez e que ele entende que deu certo. Nesse sentido, para
o autor autorar a sua obra há um caminho bem particular. As lições nessa arte atravessam o ser
do ator nas suas esferas bio-psico-sociais. As dores no estômago que Yoshi Oida menciona na
citação anterior são um exemplo dessa interligação entre as esferas. É preciso lidar com o medo
quando se está no palco. Suor, contração muscular e dores no estômago são alguns dos
elementos que essa emoção nos gera. Mas o medo é do ator e o personagem pode estar tranquilo
e sereno, como fazer isso? Assim como a bailarina sorri suavemente enquanto tem vontade de
gritar de dor porque a bolha no seu pé acabou de estourar, aí está um dos elementos de maestria
dos artistas em cena.

Essas perguntas e as duas subsequentes do roteiro de questões exigiram que os atores


alterassem um pouco o movimento de relatos para que compartilhassem algumas elaborações
que possuem sobre o ofício. Inicialmente, em reação a algumas das perguntas pensei em tom
de julgamento “Como pode um ator se considerar um artista se não tem uma elaboração mínima
sobre ‘O que é arte’ ou ‘Qual a matéria do trabalho do ator’, que eram as duas últimas perguntas
do roteiro de entrevistas e as quais os entrevistados mais desviavam, desconversavam ou diziam
não saber. Aos poucos, minha indignação foi dando lugar àquela curiosidade que vale a pena
ser perseguida com um pouco de obstinação, como diz Foucault. Por qual razão os cursos de
formação de atores não se debruçam sobre o objeto arte? De que maneira esse grupo de
profissionais integra um campo do qual não vê como necessário saber a definição ou genealogia
do conceito que nomeia o campo? Por que pouco importa teoricamente para a maioria dos atores
entrevistados a matéria do seu trabalho e o significado de arte? Mas apesar de identificar
algumas indefinições, devo indicar que o empenho desses entrevistados para responder às
questões apresentadas foi um grande mérito.

Nos trechos das respostas acima, identificamos que, apesar da variação de faixa etária,
há um grupo de questões comuns acerca da própria subjetividade enquanto profissional que
envolve temas como vaidade (que consideramos um tema onde contém afirmações sobre: ego,
ilusão com a fama, necessidade de reconhecimento, falta de humildade, não saber aprender, não
conseguir lidar com o público, não lidar com a crítica, inveja etc), medo, liderança,
sensibilidade ou como lidar com a instabilidade. Em todo a material bibliográfico que já tive
acesso sobre artes cênicas, os autores indicam que é importante uma tomada de consciência

243
sobre os atos praticados em cena. Que enquanto profissionais, não podemos esperar que
consigamos operar nosso ofício de forma “intuitiva”. Através dessas entrevistas, percebi que
muitos de meus colegas estão atentos para certas posturas profissionais ou certas emoções com
as quais lidam no exercício da profissão como elementos a serem utilizados com consciência.
Encontrar essa “dosagem” para o medo ou para a vaidade como mencionei anteriormente é um
exemplo disso. A consciência de dificuldades a serem superadas para desenvolverem o trabalho
de melhor maneira ou mais facilmente é um indicativo de um movimento reflexivo sobre o
fazer. A característica dos elementos evocados nas respostas é também um indicativo de uma
totalidade na qual devemos compreender o ator. Desse modo, atentamos não apenas para a
experiência como uma categoria que sinaliza o estatuto que a prática tem na profissão, mas
também para a totalidade desse lugar de experiência. A experiência total é, portanto, objeto de
reflexão para compreendermos a visão de mundo dos atores sobre a profissão e também
ferramenta metodológica para investigarmos suas falas. Marcel Mauss, em seus textos sobre a
relação entre a psicologia e a antropologia diz sobre essa ideia de totalidade dos fenômenos
investigáveis:

Com efeito, em nossa ciência, em sociologia, quase nunca ou nunca


encontramos, exceto em matéria de literatura ou de ciências puras, o homem
dividido em faculdades. Lidamos sempre com seu corpo, com sua mentalidade
por inteiro, dados de maneira simultânea e imediata. No fundo, tudo aqui se
mistura, corpo, alma, sociedade. Não são mais fatos especiais dessa ou
daquela parte da mentalidade, são fatos de uma ordem muito complexa, a mais
complexa imaginável, que nos interessam. É o que chamo de fenômenos de
totalidade, dos quais participam não apenas o grupo, mas também, por ele,
todas as personalidades, todos os indivíduos em sua integridade moral, social,
mental e, sobretudo, corporal e material. (MAUSS. 2003. p.336).

Os elementos apontados pelos atores como dificuldades que eles podem ter consigo
mesmos no exercício da profissão podem ser classificados, na maioria das vezes, como
fenômenos de totalidade. A forma como os dados foram apresentados deu-se por uma escolha
que privilegia a coerência interna de cada discurso, mesmo que isso trouxesse dificuldades ao
leitor para enxergar as conexões entre as falas. Ainda sobre o modo de lidar com dados que
carregam essa especificidade, Gilberto Velho diz em sua obra subjetividade e sociedade:

(...) sendo as diferenças entre os grupos sociais, com fronteiras mais ou menos
claras, detectáveis num plano mais tipicamente sociológico, quando chegamos
ao nível individual passamos a um terreno forçosamente inter ou
transdisciplinar.
A pesquisa de tradição antropológica, pelo próprio fato de lidar diretamente
com indivíduos, obriga o investigador, por razões científicas e morais, a
enfrentar esse quadro. Percebe-se a complexidade da rede de significados ao
nível da biografia, suas contradições e seus conflitos. Voltando a Firth, a
performance e o desempenho individuais e as interações são constituintes da
244
organização social. É importante assinalar que um indivíduo, em momentos e
contextos específicos, pode apresentar comportamentos e atitudes
classificáveis como novos ou modernos e, em outros, apresentar-se a uma
visão de mundo dita tradicional. Isso pode ser evidente quando distinguimos
domínios, podendo, por exemplo, constatar que no terreno do trabalho o
desempenho pode ser moderno e nas relações familiares. Mas, sobretudo no
domínio da moral, fica nítida a variação, a tensão e heterogeneidade.
(VELHO. 1986. p 54).

Gilberto Velho aponta para um elemento importante a ser considerado nas entrevistas.
Um mesmo indivíduo entrevistado pode ter posicionamentos que variam entre modernos ou
tradicionais. O autor aponta para essas variações segundo terrenos da vida como trabalho e
família, mas indica que no domínio da moral, essa variação fica ainda mais nítida. De acordo
com os trechos das entrevistas apresentados no item anterior, percebemos que diversos aspectos
elencados sobre o trabalho do ator podem ser compreendidos como parte de um conjunto de
atitudes classificável enquanto moral. O mesmo ator que julga a atitude de uma colega que se
mostrou insegura diante seu comentário sobre o figurino dela, contou a história sobre se estar
nervoso antes de entrar em cena. Segundo essa história, mesmo depois de muitos anos de
trabalho, o ator deve estar nervoso antes de entrar em cena, e quando não está, é porque ainda
não sabe o que é ser ator. Talvez essa aparente contradição diga respeito à atitude de temperar
essas emoções, como sugeri enquanto hipótese de leitura. Ainda assim, trouxe o pensamento
de Gilberto para apontar que quando lidamos com indivíduos na produção de dados, com
histórias de vida, entrevistas lonas e densas, nem sempre devemos buscar a coerência dessas
falas. Pode haver uma descontinuidade ou tensão interna à própria fala daquele indivíduo e não
necessariamente em relação a outros.

A entrevista de Vinícius que foi uma das mais difíceis para mim de serem realizadas.
Além de atrasar cerca de uma hora, ele foi o único que assumiu uma postura declarada de duelo
comigo. Ele estava em cartaz com uma peça em que seu personagem sofria de uma doença
psíquica. Ele me contou que escolheu realizar a peça porque se viu naquela história e durante a
entrevista comportou-se de modo que eu acreditasse que ele tinha realmente aquela patologia.
Quando perguntei sobre as dificuldades ou desafios que o ator pode ter com ele mesmo, ele me
respondeu que era o medo. Que o medo poderia ser bom ou ruim e que não falaria mais sobre
aquilo, que manteria em segredo. Naquele momento, ele já havia tentado me deixar com medo
por algumas vezes e o discurso veio no sentido de reforçar aquela ação. Como estávamos num
lugar público, eu respondia com um tom de que não importasse o que ele pudesse fazer ali, eu
não estaria com medo. Ao dizer sobre o medo “Se souber usar, é uma grande arma”, Vinícius
o faz com os olhos arregalados, olhando no fundo dos meus olhos. Durante a entrevista ele

245
chegou a tomar da mesa o copo de suco que eu bebia e começou a beber, além de falar
excessivamente alto com o garçom chamando a atenção de quem estivesse à nossa volta. Não
tenho elementos para saber se ele estava sob efeito de alguma substância. Mas além de mostrar
que achava “normais” os sintomas apresentados por ele, eu entrei no seu jogo/duelo e olhava
no fundo de seus olhos quase sem piscar. Isso manteve um certo senso de dignidade nele, como
se eu fosse uma jogadora à sua altura e por isso, apesar de esboçar vontade em ir embora em
diversos momentos, resolveu ficar e responder.

Ocorre que apesar da resposta misteriosa coerente com a sua atitude diante da pesquisa,
ele estava com vontade de responder àquela pergunta, como acabou fazendo mesmo depois de
dizer que não diria mais sobre aquilo. O tema da loucura entre trabalhadores das artes cênicas
daria uma pesquisa a parte. O estímulo a um ethos hedonista é associado a um flerte com as
fronteiras da “loucura”. Nesse sentido, um ator como Vinícius pode entender a si enquanto um
revolucionário ou vanguardista ao apresentar-se assim para seu interlocutor. Na sua pesquisa
Da vida nervosa nas classes trabalhadoras, Luis Fernando Dias Duarte mostra como o conceito
moderno de pessoa vai se desenvolvendo tendo como eixo uma realidade emocional ou
psicológica. A discussão na nossa pesquisa entre os atores sobre “saber sentir” – mais atrelada
ao aspecto emocional - ou “saber quem se é” – mais atrelada a um psicologismo – está
intimamente ligada à compreensão que se tem de indivíduo nesse contexto. Segundo as
reflexões de Dias Duarte:

O tema do “psicologismo” ou da “psicologização” tem sido uma das vias mais


bem exploradas de conhecimento da nova concepção de Pessoa, pelo motivo
obvio de se constituir ao mesmo tempo no seu mais alto corolário e na sua
mais abstrata ordem de legitimação. (Dias Duarte, 1986, p 57).

Apesar de não aprofundarmos no tema da “loucura” para os atores ou na patologização


do “achar que é outra pessoa”, é preciso indicar que o trânsito nesse tema é frequente tanto por
fazerem parte de uma sociedade que psicologiza os indivíduos – e dependendo do grupo sócio-
economico desse ator isso adquire contornos específicos – quanto porque o exercício da
profissão carrega muitas vezes (e como mostramos isso pode variar de acordo com o tipo de
formação do ator) o trabalho com emoções, e a emoção está intimamente relacionada ao
discurso psicologizante. No capítulo seguinte, essa discussão retornará, já que ela diz sobre a
compreensão que esses indivíduos têm de si. Mas o exemplo da situação de entrevista com
Vinícius foi mobilizado com a intenção de qualificar o discurso desse indivíduo. Os dados que
ele apresenta com a sua fala são importantes e coincidem com a fala de Sílvio e com a citação
de Oida. Os dados adicionais fornecidos sobre as condições da entrevista possibilitam ao leitor

246
o exercício que proposto: como seria a vaidade em situação? Através dessa descrição é possível
perceber – pelo menos a parte comunicável disso – como seria o medo em situação. Ali, o ator,
mesmo estando fora do palco, manejava o medo como ele mesmo apontou, “como uma arma”
para se defender da antropóloga. Palavra e ato, naquele momento, se fizeram uno, e isso, como
veremos no capítulo seguinte, tem relação co o próprio método do ator.

A liberdade é um tema que foi abordado por Viviane também a partir da ótica da
temperança. Para ela, é bom poder ser livre para ser quem se quiser ser, mas deve ser temperada
para não se transformar em libertinagem ou que se esqueça quem se é. Nesse sentido, vemos
que há uma moralidade da regulação que condena os excessos. Ela também fala do ego
(enquanto vaidade) e de uma necessidade de uso consciente do ego. Foi curioso ler depois a
entrevista de Viviane e sua fala sobre a liberdade e lembrar que ela ditou o tempo da entrevista.
Primeiramente, a chegar no seu apartamento ela queria mudar o dia da entrevista porque estava
muito ocupada naquele dia. Eu insisti que fizéssemos mesmo assim e ela aceitou, mas se
colocou como alguém “livre” o suficiente para dizer quando cada resposta estava encerrada e
pedindo a próxima. Pode ser apenas uma coincidência e não a “liberdade” em situação, como
no caso do medo, descrito anteriormente. Mas também existe a possibilidade de considerarmos
que os aspectos elencados pelos atores nessas perguntas de ordem mais subjetivas, sejam
justamente os principais aspectos que eles tentam lidar na profissão (e na vida) de modo
consciente com eles.

Um último aspecto que elencamos para a análise das respostas do item anterior são as
imagens evocadas no sentido da afirmação do que é dito. A ex-mulher que não compreendia
como o ator pode fazer cenas de envolvimento emocional, sem estar envolvido, o ator que não
tinha humildade para reconhecer que não sabia andar à cavalo, todas essas histórias, contadas
para afirmar os valores comunicados sobre a relação entre o ator e sua profissão, acabam
fazendo parte de um arcabouço de imagens que reforçam a convicção do ator sobre seu próprio
valor. Como os valores nessa profissão acabam orientando grande parte do que se torna o
método de trabalho desse profissional, a falta de parâmetros instituídos para o seu fazer, exige
desses indivíduos que estabeleçam para si, através dos meios que conseguirem, seus próprios
parâmetros. Essa é uma outra possibilidade de leitura sobre o lugar da experiência nessas
narrativas de transmissão de conhecimento.

Não é por acaso que o discurso religioso está tão associado ao ofício. Além da
sacralidade estar associada à arte em geral por não se encaixar de forma linear no jogo
“necessidade – produção – consumo” do capitalismo, já que a “necessidade da arte” é

247
totalmente questionável, o sagrado também encontra lugar no sentido da não racionalização.
Os verbos sentir, viver e experimentar são muito mais usados do que o pensar. Por diversas
vezes no trabalho como ator nos deparamos com processos não dizíveis, com ordens para não
pensar ou não racionalizar e “apenas sinta”. Sinta a chuva no seu corpo (quando não há chuva
nenhuma), sinta que sua mão quer lhe falar alguma coisa (quando sua companheira de cena
nem é sua mãe e nem faz cara de que quer dizer nada, isso quando há alguém ali para você
imaginar que é sua mãe). Nesse sentido, apresento a possibilidade de que esses relatos de
experiência, assim como os exemplos dados pelos entrevistados operem não apenas como uma
via mais próxima do empírico para a transmissão do conhecimento, mas também como um
modo de criar uma realidade imagética através da qual os valores transmitidos possam ser
assentados. Clifford Geertz, no capítulo “ ‘Ethos’, visão de mundo e símbolos sagrados” do
livro A interpretação das culturas, apresenta essa ideia sobre a imaginação humana constituir
uma base fatual para um conjunto de valores, por exemplo, religioso:

A força de uma religião ao apoiar os valores sociais repousa, pois, na


capacidade dos seus símbolos de formularem o mundo no qual esses valores,
bem como as forças que se opõem à sua compreensão, são ingredientes
fundamentais. Ela representa o poder da imaginação humana de construir uma
imagem da realidade na qual, para citar Max Weber, “os acontecimentos não
estão apenas lá e acontecem, mas têm um significado e acontecem por causa
desse significado”. A necessidade de tal fundamento metafísico para os
valores parece variar bastante em intensidade de cultura para cultura e de
indivíduo para indivíduo, mas a tendência de desejar alguma espécie de base
fatual para o compromisso de cada um parece praticamente universal – o mero
convencimento satisfaz muito poucas pessoas, em qualquer cultura. Por mais
que seu papel possa diferir em vária épocas, para diferentes indivíduos em
diferentes culturas, a religião, fundindo o ethos e a visão de mundo, dá ao
conjunto de valores sociais aquilo que eles talvez mais precisam para serem
coercivos: uma aparência de objetividade. Nos rituais sagrados e nos mitos,
os valores são retratados não como preferências subjetivas, mas como
condições de vida impostas, implícitas num mundo, com uma estrutura
particular. (GEERTZ. 2008. p148-9).

Os fatos que acontecem no universo mítico como um modo de trazer uma imagem ao
valor codificado podem existir através da mesma lógica que não explica para o ator porque o
“ego inflado” é ruim, mas conta histórias de pessoas que “se deram mal” por isso. Não quero
dizer aqui que, por acessarem a transmissão do conhecimento através da experiência, não haja
nesse contexto explicações racionalizadas. Elas existem. Mas o risco de que a experiência seja
tomada pelo viés mítico que a torna pilar de um valor é grande. Por isso, um segundo nível
dessa consciência sobre a temperança dos elementos que devem ser controlados, seria a
consciência sobre a necessidade ou não da existência dos próprios elementos ditos como
essenciais em alguma medida (como o medo ou a vaidade, por exemplo). A transmissão pela

248
via da experiência tem esse “lado”, de ser tomada como verdade justamente por ser experiência.
Ela dificilmente é vista como uma elaboração sobre o vivido que poderia ter sido elaborada de
forma completamente diferente.

Por fim, cabe pensar que o próprio teatro foi criado em diversas culturas no interior
desse universo sagrado justamente para “encarnar os mitos” e trazer uma imagem (já não no
plano da imaginação) para ancorar valores. Textos sagrados de diversas culturas são escritos
em forma de diálogos e narrando situações. As religiões parecem saber muito bem a força que
a imagem, seja encarnada no teatro seja através da linguagem narrativa dos textos sagrados,
tem na fixação dos valores aos fiéis. A arte cênica, por sua vez, sempre que não pensa a si
própria encarna o próprio mito para o qual foi criada. Ela dá a base fatual (dá vida às imagens
que antes eram da ordem da imaginação) para valores não questionados, fortalecendo-os. Nesse
sentido, compreendendo o lugar que os rituais sagrados e os mitos cumprem no sentido dessa
transmissão de valores coercitivos, as imagens que as artes cênicas produzem em diferentes
meios podem ser mais do que “influenciadoras”, elas “mostram” através da experiência (um
filme é capaz de despertar diversas emoções em quem o assiste, ou mesmo fazê-lo chegar a
conclusões sobre diferentes temas) que determinados valores tem base fatual. O expectador
assiste ao mito que não acontece apenas lá, ele tem um significado e acontece por causa desse
significado. Esse significado extrapola da tela ou do palco para as vidas dos indivíduos de uma
cultura com a força de verdade porque aconteceu. Mesmo que tenha acontecido no plano
ficcional (ou mítico), quando acontece em imagens, simplesmente acontece.

Esse é o grande poder do ato de encenar - criar imagens – e o seu grande algoz. Essas
últimas reflexões apontam para o risco de que o ator se enrede nas próprias imagens criadas
sobre a profissão, encarnando um mito de si mesmo sem refletir se são aqueles os valores que
deseja dar vida fatual. Como disse Gerald Thomas no prefácio ao Peter Brook (2015) transcrito
no início desse capítulo “Fazer teatro, montar peças não é exatamente a coisa mais difícil do
mundo. Autorar, sim, é difícil. Mas o “pensar” o teatro, isso é mais difícil ainda”.

249
Capítulo 4
(In)consistências do Ser

Não sei quantas almas tenho.


Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
(Não sei quantas almas tenho. Fernando Pessoa. 1993)

4.1 Trabalho e método

“No princípio era o verbo”.


(João 1:1)

O teatro é o lugar por excelência do ato, da ação, do agir. As unidades de uma peça são
chamadas de Atos. Artaud (2006) diz que o teatro é poesia para os sentidos, assim como existem
as poesias escritas para a linguagem. Para o autor, a linguagem física e concreta só é
verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que expressa escapam à linguagem
articulada (idem). Antonin Artaud é conhecido por enfatizar os aspectos concretos da
linguagem cênica do ator. Mas para pensar antropologicamente o campo e as construções que
o envolve é interessante começar a discussão de método por uma proposta que se coloca como

250
alternativa à hegemônica, mas que em algo está contida nela. Entre as técnicas que exploram
mais o “ambiente psicológico” dos personagens e as técnicas que privilegiam o “ambiente
físico” do ator, está justamente a ação.

Em inglês, o verbo utilizado usualmente para se referir ao que chamamos de atuação,


interpretação ou representação é o to play. Angela Leite Lopes, em seu artigo O ator e a
interpretação (2000), fala como a tradução de to play para o português interpretar, no caso do
trabalho de atuação pode se tornar “um aspecto quase pernicioso no processo de evolução da
linguagem cênica contemporânea” (p.73). Isso porque atrela um trabalho que em outros idiomas
é indicado como mais atrelado à esfera da ação, às esferas mais subjetivas – o que indica o
verbo interpretar. Nesse artigo, a autora propõe que vejamos o naturalismo como um estilo e
uma técnica que expressa um modo de pensar determinado, que apesar de ter-se tornado
hegemônico na nossa cultura, não é o único (p.70). Sobre estarmos enredados com o verbo
utilizado para descrever esse tipo de produção artística, a autora diz que “interpretar é o ato de
conferir sentido numa acepção psicológica e subjetiva, inserindo-se assim plenamente no
esquema de significação idealista que o encenador perpetua, às vezes à sua revelia” (p.72).
Nesse sentido, o modo como traduzimos a ação do ator para a linguagem escrita e falada já nos
indica um tipo de viés sobre a percepção que nossa cultura tem acerca desse trabalho.

Se conseguirmos ver além do que o idioma nos sugere, é possível perceber que a
sugestão da autora sobre trabalhar o ator fora dos parâmetros da subjetividade, é possível e
enriqueceria nossa percepção sobre um modo de fazer que, colocado de forma hegemônica,
parece o único existente. Partindo dessa reflexão sobre a linguagem cênica contemporânea, a
discussão que a autora apresenta nos útil também para desnaturalizar as falas dos entrevistados
dessa pesquisa sobre seus processos de trabalho. Como os atores que trabalham no Rio de
Janeiro (locus principal da pesquisa) compreendem o seu fazer em relação a essa hegemonia no
modo de pensar a interpretação? E de que maneira percebemos esse esquema de significação
idealista que, privilegiando a subjetividade e o discurso psicologizante, trata ator e personagem
como seres subjetivos antes de qualquer outra leitura? Apresento esses questionamentos, ainda
no interior de uma antropologia do trabalho, no sentido de investigar em que medida esses
trabalhadores se veem utilizando algum tipo de método de trabalho e em que medida creditam
a possibilidade de utilização de um método para seu trabalho aos pensadores, pesquisadores,
diretores e atores que vieram antes deles próprios.

Esses questionamentos ganharam consistência durante a pesquisa ao perceber que há


variações quanto à ênfase dada à subjetividade e ao corpo. É como se entre o pensamento e o

251
gesto – ou acima, englobando-os –, estivesse a ação. Os caminhos para a realização do ato e a
forma final que se deseja dar a ele são muito diversificados, mas quando se trata do trabalho do
ator em cena, todas essas estéticas e técnicas concordam sobre a essência do fazer: o verbo vivo
é a única forma de fazer um texto escrito ou pensado chegar a um público através do ator. Há
formas de desenvolver o trabalho que ancoram a criação do ator numa pesquisa psicológica,
explorando criar uma subjetividade própria para o personagem. Pavis escreve sobre os atores
que seguem esse modelo:

Muitas vezes o ator procura se identificar com seu papel: mil pequenas
artimanhas lhe servem para se convencer de que ele é essa personagem da qual
lhe fala o texto e que ele deve incarnar aos olhos do mundo externo. Finge
crer que sua personagem é uma totalidade, um ser semelhante aos da
realidade, quando, de fato, ela é composta apenas de parcos indícios que ele e
o espectador devem completar e suplementar de maneira a produzir uma
ilusão de pessoa. (PAVIS. 2008. p.56).

Muitas vezes, como aponta Pavis, o ator coloca como condição para seu trabalho o
desenvolvimento de uma crença nessa persona virtual. Essa seria uma forma de realizar o
trabalho que pode coincidir com visões de mundo em que o valor está assentado na
subjetividade dos indivíduos. Nesse sentido, lembramos que os atores são seres sociais
imbuídos de uma cultura e que as respectivas visões de mundo farão toda a diferença nas
escolhas de como realizar seu ofício, até porque, como veremos, muitas escolhas sobre o como
fazer nessa profissão não são totalmente conscientes, no sentido de terem sido previamente
objetos de elaboração pelos profissionais. Nas entrevistas a seguir o leitor poderá perceber que
os atores com 54 anos ou mais, que viveram os anos 70 do século passado já desempenhando a
profissão, têm uma visão menos psicologizante e enfatizam menos a subjetividade nos seus
processos criativos. Mesmo que algum deles se considere trabalhando sobre os cânones de
Stanislavski, isso ocorre baseado nas pesquisas que o autor deixou sobre as ações físicas, e não
nas investigações sobre a psique humana. Já os atores que começaram a trabalhar enquanto tal
a partir dos anos de 1980 até o início dos anos 2000 têm muito presente o discurso sobre
personalidade, psique, comportamento, qualidades e defeitos, bondade e maldade, arquétipos e
outros termos que demonstram a cultura psicologizante que estava sua potência máxima no
Brasil no seu período de formação. Cabe ressaltar que a faixa dos trinta e poucos anos é bem
variada em termos de concepções também por causa do tempo de ingresso no meio. Marcelo,
com 32 anos iniciou sua trajetória artística no início doa anos 2000. Já Marina e Lívia, com 29
e 32 anos respectivamente, apesar de terem tido contato com a arte na adolescência, cursaram
graduações de jornalismo e turismo (respectivamente) para depois se dedicarem a uma

252
formação mais consistente nas artes cênicas, isso já na década de 2010. É curioso perceber que
a visão de mundo que enfatiza a subjetividade e o discurso psicologizante perderam força
depois dos anos 2000 e principalmente na década de 2010. Os atores entrevistados que tiveram
a formação nesse período possuem uma variedade maior de concepções sobre a constituição do
ser que possibilitam formas diferentes de compreender o trabalho do ator. Entre eles há os que
falam em personalidade e constituição psíquica do personagem, há os que falam sobre criar a
partir de ações físicas, há os que falam sobre criar a partir dos gestos e há os que falam sobre
criar a partir da respiração e da energia. Por identificar essas diferenças geracionais e
compreendendo o movimento político-social do Brasil nessas últimas décadas, preferimos
organizar o material desse item por faixas geracionais. Mesmo compreendendo que, apesar das
diferenças identificadas, há também continuidades, organizamos desse modo por compreender
que toda escolha metodológica, em alguma medida, será sempre arbitrária.

Além da ênfase na pesquisa psicológica, outras formas de pesquisa ancoram o


significado da criação do ator numa experiência, muitas vezes de ordem física. Nesse sentido,
as escolas de artes cênicas apresentam aos alunos diversas formas de criação do personagem,
ou papel – por vezes utilizadas de forma combinada. Essas formas nem sempre são transmitidas
enquanto metodologias de trabalho. O problema de aprender técnicas separadamente e não
vislumbrar o conjunto de significados que ancoram essas técnicas, é que muitos atores acabam
fazendo de um modo “intuitivo” e sem domínio dos meios, um trabalho que poderia ser
realizado com maior eficácia e potencia se elaborado e consciente. Em ciências sociais, quando
estudei a cadeira de metodologia, ficou nítido para mim o quanto os conceitos (ferramentas de
trabalho do cientista social) faziam parte de um todo maior que compunha uma forma de
enxergar a realidade social do autor. Marx, Weber e Durkheim foram apresentados a mim
através de suas caixas de ferramentas. Sabia que poderia pegar uma ferramenta de uma caixa e
outra de outra caixa, caso quisesse. Mas isso era possível com a consciência de que cada uma
delas pertencia a uma caixa específica e que qualquer “mistura” teria um limite. Voltar a
ferramenta para a caixa correta é reconhecer o horizonte epistemológico do qual aqueles
conceitos pertencem.

No caso dos atores, metodologia pode se confundir com técnicas e estéticas. As técnicas
são as ferramentas e as estéticas não chegam a ser a caixa de ferramentas. Estéticas estaria no
campo da linguagem proposta, do contexto social de origem, etc. Esses elementos compõem a
caixa de ferramentas, mas ainda não dão conta do horizonte epistemológico. Como atriz, eu sei
que Grotowski sugere a eliminação de bloqueios como técnica para o desenvolvimento do ator,

253
mas o que são bloqueios para ele? O que é emoção ou ação psico-física para Stanislavski?
Todas essas formulações são usualmente tomadas pelo estudante de artes cênicas como
atemporais. Lê-se um texto do início do século XX como se lê um texto do início do século
XXI. O desconhecimento das bases epistemológicas no campo das artes cênicas nos faz
caminhar para traz no desenvolvimento das metodologias de pesquisa criativa.

Numa palestra que assisti da Fernanda Montenegro, na aula inaugural do curso de artes
cênicas, a atriz disse que cada ator tem seu próprio método de criação e que descobrir esse
método próprio é um momento importante na vida do ator. É um momento em que seu trabalho
se torna consistente e você consegue manejar a demanda de trabalho com uma eficácia maior,
porque já tem dadas as ferramentas que vai utilizar. Agora, se em cada trabalho, o ator precisa
primeiro achar qual o método vai utilizar para criar, são dois trabalhos: o de pesquisar o método
e o de criar o personagem. Segundo a atriz, ela chegou ao seu próprio método de trabalho
quando fazia o “tele-teatro”. Eram apresentados toda semana um clássico da literatura Ocidental
– ao vivo pela televisão. Ela dizia que dificilmente eles decoravam todo o texto, mas que esse
volume sobre-humano de trabalho lhe deu uma disciplina que a possibilitou não apenas elaborar
um método para si, mas saber a importância de ter um método de trabalho.

No capítulo anterior mencionamos uma passagem em que Stanislavski fala sobre como
seria bom se as artes cênicas tivessem, assim como na música, parâmetros sobre os quais
pudesse se alicerçar a produção artística. No artigo mencionado acima, Ângela Leite Lopes
afirma que o principal legado de Stanislavski foi justamente seu sistema de investigação da arte
do ator, seu legado enquanto pesquisador. Nos cursos de artes cênicas que frequentei,
pouquíssimos alunos liam toda a bibliografia indicada. Alguns confessavam que o livro da peça
que fazíamos a montagem não era lido inteiro e que conheciam apenas as cenas em que estavam
presentes. Esse ethos hedonista que persiste no meio, que despreza a chamada cultura erudita e
com isso desvaloriza o conhecimento apresentado em forma de leituras, é um terreno fértil para
que a falta de clareza sobre os próprios processos se estabeleça e para que o senso comum e
naturalizações se perpetuem.

Como dito no final do capítulo anterior, não estamos em defesa de que a transmissão
acadêmica e bibliográfica seja a única que possibilita aprendizado. Por outro lado, um nível de
reflexividade do próprio fazer é necessário para que a roda não seja inventada a cada vez que
se inicia um trabalho. A discussão sobre a relação entre método e criatividade, ou sobre
formalismo e inspiração em arte é extensa. Mas todos os autores da área de artes cênicas que
tive contato dizem que é inviável construir qualquer tipo de base artística unicamente através

254
do expontaneísmo. Eugênio Barba, por exemplo, defende que para que o teatro cumpra uma
função revolucionária, é preciso que o ator repense seu modo de executar a cena. Para ele a
consciência sobre o próprio trabalho é a única saída para que não se reproduza os valores que
se deseja transformar:

O teatro, como toda atividade artística, é disciplina. Toda explosão visionária


deve ser dominada; o ator deve domar o tigre e não deixar-se esquartejar. O
desdobramento físico das emoções deve ser canalizado, controlado, e, deste
modo, transformar-se numa onda de sinais explícitos. Não deve tomar a
dianteira e jogar o ator em ações desordenadas que imitam simiescamente a
dor. Esta falsa agonia, este sentimentalismo epidérmico próximo da histeria,
esta imitação simiesca das pragas dos homens do nosso tempo e, sobretudo,
essa satisfação pessoal e este álibi de boa consciência sentido pelos atores nos
revelam a miséria e a hipocrisia de toda a nossa época, de toda nossa
sociedade. O teatro se transforma, então, num reflexo de uma condição que se
faz necessário destruir, a começar pelo próprio teatro. O espectador sorri
diante de tal espetáculo e se sente seguro: este espetáculo não é perigoso e a
mentira continua. O impossível não se manifesta; os gritos, os slogans
políticos, os corpos nus em cena são trapos com os quais os atores cobrem seu
vazio interior. Para ser revolucionário é necessário ser lúcido, saber utilizar
suas próprias armas: os diletantes nunca mudaram a história. (BARBA. 1991.
p.32)

Essa “lucidez” proposta por Barba não se trata de um método único estabelecido para
todos os atores. Mas pode ser compreendida como uma critica da ausência de reflexividade, o
que impossibilita aos atores perceberem a si mesmos no interior da própria cultura. Apesar de
muitas vezes receber o texto acabado e ter a visão do diretor sobre o espetáculo já estabelecida,
o ator deve buscar o seu processo criativo enquanto artista conscientemente. Sobre esse tema
separamos alguns trechos das entrevistas que nos possibilitarão pensar a discussão apresentada
a partir de bases concretas. Como dito anteriormente, a organização dos dados a serem
apresentados se deu a partir do critério etário. Selecionamos algumas falas de cada feixe etário
mencionado acima.

***

Lucas (26 anos)

− Quando você recebe um... enfim pensa em um personagem pra você fazer, como é o seu
processo ate o momento da estreia assim, seu processo de criação?
− Cara difícil. (Pausa longa). Você pode perguntar de novo?
− Quando você é se propõem a fazer um personagem...

255
− Mas aí que tá... a minha dúvida está em se... se é uma proposição minha... Ou se eu topo
fazer...
− Você pode falar dos dois processos. De um personagem que você faz dentro de algo
que vai ser do seu jeito ou dentro de algo que já é, que já tem uma proposta, você pode
falar nos dois casos.
− Eu... eu acho que se eu topo fazer algum trabalho, eu acho que o processo primeiro é
entender o que que, o que que, o que que, o que que querem que eu execute.
− Ahã.
− E eu acho que mu... basicamente eu... eu num... cara é muito difícil falar isso. Mas eu
acho que o processo eu tento sempre trabalhar de acordo com o universo da coisa, se a
gente vai, é porque é muito difícil cara, é difícil. É difícil, eu consigo responder o meu.
− Então fala o seu.
− Eu consigo falar sobre um exemplo. É... se uma, uma proposição minha, por exemplo,
quando eu tra... quando eu trabalhava de palhaço...
− Ahã.
− Eu vou, basicamente é... pela estética!. Eu penso a estética visual e a minha estética é...
e eu penso, eu penso do microciclo ao macrociclo do meu... visualmente que eu fa... que
eu quero dizer é o que eu posso mudar, o que eu po... o que eu posso transformar em
atmosfera através do meu corpo.
− Ahã.
− É esse, esse visual que eu, eu quero dizer.
− Entendi.
− O que eu consigo fazer, o que que eu quero fa... nesse caso fazer, isso é uma coisa que
se eu me proponho fazer uma cena de acrobacia eu tento criar uma dramaturgia pra
inserir esse tipo... estético. Mas é um, eu acho que foi confuso também.
− Não, tá sendo legal, tá sendo bom.
− Eu, eu acho que a minha... porque assim eu tento procurar a comunicação não verbal da
coisa. Quando as minhas proposições são sempre não verbais até... ah tipo... é sempre.
Eu acho que a... que o meu tipo... a minha ação, a minha ação promissora é através do
não verbal.
− Ahã.
− E eu tento criar dramaturgia que... que eu consiga executar uma dramaturgia de acordo
com isso.
− Legal.
− E aí de, como é uma proposição minha eu escolho, eu quero brincar com a cadeira,
minha relação com esse objeto, eu quero brincar com a câmera lenta, visualmente eu
quero achar o que é interessante fazer em câmera lenta ou trabalhar com a cadeira, com
o objeto e dentro de um visual, chama approach visual.
− Ahã.
− Colocar pra... pro público o que que, o que, o interesse... criar essa relação de interesse
e dentro disso dessa, dessa enrolação que eu falei. Eu a minha intenção é sempre
controlar o foco, sei lá eu não consigo falar sobre isso, mas tipo... Esse domínio visual
que eu quero que por parte de mi... eu quero controlar.
− Ahã.
− - É, é basicamente isso e nessa peça que eu faço com a Marina, aconteceu uma coisa
assim... eu quero que essa hora eles virem a cabeça, as pessoas viram a cabeça, nessa
hora quero que as pessoas façam... coloquem a cabeça pra frente, nessa hora eu quero
que coloque a coluna pra trás, sabe? Esse domínio é... é dominar, dominar até... atenção,
foco através do que eu posso fazer com o meu corpo.

256
− Sim.
− E aí entra a questão de estética, sobre o que que eu vou falar. Mas basicamente, quando
eu tô de palhaço, quando eu proponho isso de palhaço ou de uma maneira não verbal eu
quero ter o domínio dessa coisa, do tempo. Basicamente é isso. Eu acho que eu falar
mais eu vou acabar...

***

Marina (29 anos)


− Quando você recebe um personagem pra fazer ou vai fazer uma peça que você criou,
como você trabalha até o momento pré-cena?
− Então, até eu conhecer a professora “x” eu fazia uma coisa que eu acho que todo mundo
faz. Eu recebia o texto, estudava o texto, decorava o texto sempre antes de qualquer
coisa, isso até hoje eu faço, e ia atrás de informações. Se era... se é uma menina
adolescente eu ia pra um lugar onde adolescente estava pra eu ouvir como é que
adolescente fala, como se mexe, como que movimenta, como reage. Mas depois que eu
trabalhei com ela, que eu conheci essa coisa de trabalhar com as ações físicas, eu fiquei
muito encantada com essa coisa de você fazer um texto e fisicamente não ser
redundante, você pode falar sobre o seu casamento cortando brócolis. Eu mudei. Então,
a primeira coisa que eu faço é sempre decorar o texto... se eu tiver que ensaiar logo,
senão não. É... e antes, não, mentira... antes de decorar o texto eu começo a fazer várias
sequências de ações e aí eu construo a partitura de ações, eu resolvo. Então, lá no
trabalho dessa peça eu queria que fosse uma mulher brincando com uma boneca. Então,
eu fiz toda a sequencia de ações dessa mulher brincando com a boneca. Aí depois eu
decoro o texto. Aí eu coloco o texto em cima dessas ações. Aí acho que algumas coisas
casam, outras não. E o que casa fica. Aí eu vou repetindo. Aí eu repito, eu repito, eu
repito, eu repito. E aí no meio do caminho sempre parece canastrão, sempre parece que
tá mecânico, e tá mesmo. Mas eu não... eu procuro não colocar coisas novas. Vou a
fundo no que eu pensei desde o início. Porque aí a coisa vai ganhando uma forma
bacana, assim. E aí as coisas acabam acontecendo sem querer. E aí quem tá me dirigindo
vai vendo novas possibilidades, vai modificando. Mas eu procuro repetir as coisas
sempre, desde o início. Só quando eu implico com uma coisa que eu acho que não vale
a pena. Mas tem sido assim, desde a professora “x”. Até na minha montagem de
formatura que eu trabalhei com um cara13 que não tinha nada a ver com ela, a gente fez
Sonho de uma noite de verão. Eu decorei o texto todo porque tinha que decorar para os
ensaios... é isso que eu estou falando, quando são ensaios que tem um diretor me
cobrando, quando não é um processo meu, da minha Companhia, aí eu decoro tudo,
porque fazer com o texto na mão é uma merda, depois vou fazendo as ações. E com ele
eu fiz assim também. Eu trabalhei ações que não tinham nada a ver e tinha uma menina
que dobrava comigo e a gente fez juntas e funcionou e ficou engraçado e não pareceu
teatro pseudo-contemporâneo, nem destoou do espetáculo. É isso.

***

13
Referindo-se ao trabalho com um professor que dirigiu a peça.

257
Lívia (32 anos)

− Sobre o seu modo de se preparar pra cada papel, quando você recebe um convite ou
aceita um determinado papel, como que você faz... como você trabalha? Qual é o seu
jeito de trabalhar?
− Então, primeiro, dependendo da personagem, se tiver alguma referência já sobre ela
então eu vou atrás, seja livro, seja filme, seja imagens, ou imagens que tenham a ver
com aquele contexto. Aí eu tento abordar a personagem de várias formas, ou pelo texto
que a pessoa me entrega. Então, do texto eu vou tirando algumas dicas da personagem...
como ela... o modo dela de lidar mesmo com a vida. E também aí eu começo a ir atrás
de coisas contextuais, história, período histórico, em que época se passa aquela história.
Então, eu trabalho sempre mais no contexto pra depois ir afinando na personagem
mesmo. Pegar jeito, pegar corporal. Mas geralmente eu trabalho em cima de referências,
assim... muita imagem, muito vídeo, muita leitura de coisas assim, eu vou procurando
o que pede, e também a vida cotidiana, né. Eu acho que pra você entender uma
personagem você tem que observar, observar muito, observar. Porque às vezes tem
coisas daquela personagem... por exemplo você tem, o Marcelo tem, ou então uma
pessoa que está passando tem. Eu sou muito observadora. Então, isso pra mim... tem
bastante... é primordial, observar pra poder construir alguma coisa.
− Entendi. Em termos de corporal e psique, como que você... você vai de que ponto pra
que ponto?
− Então, ultimamente eu tenho ido mais pela psique mesmo do que... porque se você vai
muito pela forma... que nem agora no Pequeno Príncipe tá sendo um desafio porque é
um garotinho de 10, 8 anos. Eu sou uma menina, uma mulher de 32... tudo bem que eu
tenho algumas coisas de menina, mas... né? Ele é um garoto, ele não é uma menininha.
Então, tá sendo bem complicado. No começo dos ensaios eu comecei muito pela forma.
Então, eu assisti o filme, vi o garotinho fazendo. Então eu queria fazer corpo dele. Ou
então, as intenções de fala dele. Só que aí eu fui começando a perceber ao longo dos
ensaios que na verdade eu tinha que tomar outro rumo. Eu tinha que partir da minha
psique, do que eu entendo por mim mesma, pra depois ir encontrando ele em mim.
Então, pegando o corporal dele... é, deixando vir mesmo, ‘O que eu tenho de Pequeno
Príncipe?’, na verdade. ‘O que eu tenho de um garoto dentro de mim?’, entendeu? E
deixar isso aflorar. É mais ou menos esse o caminho que eu tenho feito agora.

***
Marcelo (32 anos)

− Assim que você recebe um papel, um convite, ou aceita fazer um personagem, como que
você trabalha?
− A fase de estudo! Que é a base de tudo o que você vai fazer no palco. (Pausa) Primeiro
você tem que ler muito a peça, porque você precisa entender o que o personagem está
fazendo. Pra onde ele vai, de onde ele veio e onde ele está? É muito importante. Então,
você tem que estudar o que o autor fala sobre o personagem, o que os outros personagens
falam sobre o seu personagem e o que o seu personagem fala sobre si próprio. Já são as
maiores indicações. Se é um texto novo, de um dramaturgo novo, você não tem muitas
referências quanto ao dramaturgo. Então, você vai pela observação humana. Então, você
começa a estudar o personagem e começa a ver suas maiores características que se

258
assemelham aos outros seres humanos, óbvio. Agora, se você pega um texto clássico,
de dramaturgos renomados com os textos, então, você ainda tem esse benefício de poder
estudar o autor. Porque o jeito que o dramaturgo escreve as peças também influencia no
comportamento do personagem. Você começa a entender muita coisa do personagem
por conta do dramaturgo, do jeito dele escrever. Fora que cada dramaturgo tem seu jeito,
tem seu gênero e quanto mais você estuda mais você começa a ter habilidade em lidar
com o gênero... de peças. Então, a princípio é o estudo do texto. Texto, texto, texto,
texto, texto. Depois você vai começar a trabalhar, estudar a psique do personagem.
Porque ele toma tais atitudes. Enfim, aí você vai para a psicologia. E acho que por último
é a construção corporal. Você vai começar a pôr tudo isso em você, no ator. Então,
importantíssimo ter um corpo neutro pra você se permitir a personagem a se fixar em
você.
− E, ainda dentro dessa pergunta sobre preparação, é... esse momento do ator desde ele
pega o personagem até esse momento antes de entrar em cena, se você fosse me explicar
em ordem, assim, como que é organizar... tem estudo, o que é que vem depois do estudo?
Como você me explica?
− Bom, você estuda, começa a propor o personagem, o diretor este ali justamente pra te
nortear ou pra te trazer de volta, porque às vezes o ator viaja e tá totalmente fora e o
diretor te traz. Mas o diretor está ali para ser um facilitador. Ele está ali para nortear de
acordo com o que ele imagina. Por mais que o ator vá criar, não pode esquecer que
existe o diretor que é o que vai ter a visão da peça, é o que vai ter a visão do personagem
e... e você tem que fazer o que ele quer. Claro que com a sua criação. Então, primeiro é
você estudar o texto, você começar a criar a sua personagem. Você começa a mostrar
para o diretor enquanto a peça está sendo montada. Ok, mas o ator precisa se preparar
corporalmente, precisa se preparar vocalmente. Isso não dá pra fugir. Não dá, não dá. É
importante se aquecer antes de entrar em cena, é importante você aquecer a sua voz, é
importante você é... se concentrar para aquilo que você vai fazer. Eu acho que o público,
na verdade, ele merece isso. Eu acho muito desleixo um ator que chega em cima da hora
do espetáculo, ele chega, põe o figurino dele, bate papo na coxia e entra pra fazer a sua
cena. Eu acho falta de respeito com o público. Então, eu acho que esse é o processo: é
estudo, é construção, é direção e ensaio.

***

Caio (35 anos)

⎯ Quando você recebe um papel, você aceita fazer um personagem, como que você se
prepara pra fazer?
⎯ Ah, eu... tem 3 perguntas básicas, né? Tipo, putz, mesmo sendo uma falinha, uma
participação bem pequena, você tem que saber, entender porque que esse cara, essa
persona está falando isso. Porque por si só já tem um nome: personagem. Então, quer
dizer, eu sou um mero mortal perto desse personagem. Então, o mínimo que eu tenho...
o mínimo não, o que é o básico, é saber o que é que esse cara pensa, quem eu sou, pra
onde eu vou. É, é é... são 3 perguntas, né? Que a gente, também no nosso dia a dia... é
que as pessoas não fazem. Mas pra gente se colocar no mundo de hoje em dia, porra,
quem eu sou? O que eu estou fazendo? Pra onde eu vou? Você sair de casa com um
objetivo. Você vai, pô, na padaria. Então, você sabe que você está saindo de casa, vai

259
na padaria, vai comprar pão e vai voltar. Então, dentro desse negócio, da vida real, você
sabe que ali naquele meio você vai achar o João da banca, você vai dar um oi, aí
dependendo da tua energia, eu vou chegar lá e... que é que eu faço pra fazer um
personagem... É isso, que você falou? Aí, com o João da banca e não sei o que. Só que
tem dia que você não quer ver o João da banca, você não quer ver nada, você nada... aí
o que é que acontece? Você se prepara como? É... (pausa). Puta, o principal é saber o
o... quem você é na cena. Se você sabe quem você é na cena, você chega em algum
lugar. Porque daí a coisa vai ser... o que você falar vai vir... mesmo você decorando um
texto, vai vir natural. Vai vir de dentro. Vai vir uma coisa... que tá em ebulição lá dentro,
entendeu? Então, acaba... então, hoje em dia o que mais tem é atores que pô... que a
gente fala que é excesso de naturalismo, né? “Ah, vou chegar e vou dar essa fala”. Pô,
fica legal. Agora quero ver decorar, além de decorar o texto saber quem é o personagem,
pra onde vai, porra, quem é essa pessoa, cara; porra, eu fiz uma minissérie, que se passou
nos anos 80, se chamava queridos amigos. Eu vou ser sincero, eu nem aparecia na cena,
minha voz era em off. Só que eu gravava a cena. Aparecia minha voz em off e aparecia
o... no caso o personagem principal da cena falando comigo, que era o meu professor
da faculdade. Aí a minha fala era, era assim “pô, realmente, né professor, nós estamos
vivendo um quartelamento”. Aí eu falei caraca meu irmão. Por que é que o cara... peraí.
Então tá, se passa nos anos 80 o negócio, beleza, o cara fala isso, pô, eu vou pesquisar
onde? Eu vou na Constituição de mil oitocentos... 100 anos de Constituição. Então, dali
eu pô... eu... vários resumos. Dali você chega numa, num negócio que você está falando,
entendeu? Então, você tem que saber quem você é ali. Não só falar, pô. Chegar e “ah,
vou dar esse texto”. E o barato do ator é esse, cara. O barato nosso é a gente pesquisar,
é você ir, pô, saber quem é a pessoa, tudo isso.
⎯ Entendi.
⎯ Então, eu faço isso pra... antes de entrar na cena. Ou pega um texto e tal, preciso saber
quem é. Porque aí eu já sei quem eu sou. E um ator que não sabe quem ele é, ele tá
fudido. Ele não vai contar história nenhuma. E não to falando só do ator não, to falando
do ser humano normal. A vida imita a arte a arte imita a vida. Vai conversar com uma
pessoa que não tem uma referência de vida, não tem uma história pra contar? Ou é uma
pessoa que conta todas as histórias. Tá fudido. Ela é uma pessoa louca, tachada de louca.
Porque ele não sabe quem é, pô, ele fala de t... a pessoa é doida, entendeu, é uma
pessoa...

***

Ricardo (40 anos)

⎯ Sobre esse processo do antes e, mesmo no momento de se aquecer e tudo, você acha
que tem muita diferença ente tv, cinema, teatro... ou, por exemplo, o seu trabalho de
preparar um personagem é o mesmo independente do... como funciona isso?
⎯ Hum... são processos completamente diferentes,
⎯ Ah é?
⎯ No teatro você leva 30, 60, 90 (pausa) 120... é (pausa) 160 dias dependendo do processo.
Eu já cheguei a ensaiar 6 meses. Mas também já fiz peças em 15 dias. Também já fiz
peças em 30, em 45, já fiz em vários tipos de processo. Mas há um tempo pra você. E é
no dia a dia que você vai descobrindo. Você também não tem muito tempo de estudar.

260
Porque você tem ensaio, que são 6 horas, 7 horas por dia de ensaio no teatro. Depois
você vai pra casa, você tem que fazer os afazeres de casa, na vida do cotidiano e tal,
resolver a vida.
⎯ Sim.
⎯ E... e aí é no ensaio do teatro, no dia a dia que você vai descobrindo o personagem. Não
tem mesmo pressa de descobrir. É mesmo... é com o texto, com o outro... com o diretor.
Então, essa troca, essa repetição incessante que faz com que você vá num crescente,
chegando no teu objetivo. É óbvio que quando você... meu caso né, uma peça que eu fiz
no teatro agora em 2008 ou 2009, 10, 11, 12, 13, ficou 5 anos em cartaz. A gente ensaiou
3 meses. No primeiro mês tava todo mundo meio perdido e todo mundo meio com medo
de fazer porque já tinham feito no cinema e tinha sido um puta sucesso, com o José
Wilker, com a Sônia Braga e tal. Então, tava todo mundo meio receoso, ‘Será que vão
comparar? Será que vão falar mal porque a gente tá montando uma coisa que só fizeram
no cinema? Nunca fizeram no teatro e tal’. E eu lembro da gente nos ensaios, Angela,
no 15º dia, no 20º dia de ensaio, eu fui o primeiro ator a esboçar, uma leveza assim de
um baiano, de um personagem e tal, de uma coisa que o elenco no final falou assim
‘Olha, foi o primeiro a achar o tom. Foi ele’.
⎯ Olha.
⎯ Porque tinha que botar sotaque, tinha que andar como anda na Bahia, ladeira acima,
ladeira abaixo, é diferente de quem anda no chão reto do Rio de Janeiro...
⎯ Sim.
⎯ ... ou de São Paulo e tal. A Bahia são várias montanhas. O povo lá... tem uma
malemolência, tem uma moleza, um jeito de falar diferente. Então, a gente foi
descobrindo isso com uma equipe inteira. Que você tem uma mulher de prosódia, que
te ensina a falar como um baiano, você tem uma preparadora corporal que te bota
andando como numa ladeira e tal, você tem um preparador de voz que te bota com... a
potência da tua voz em 100%, e você tem o diretor, que é ator, que era ator, é ator ainda,
e também tem esse entendimento do ator, conhece o coração, conhece a alma, sabe das
aflições e tal. E sabe chegar, sabe conversar, sabe pedir, chama num canto, fala no
ouvido ‘Eu quero que você faça assim, naquele momento você faz aquilo’. Então, você
tem um tempo no teatro.
⎯ Certo.
⎯ E esse tempo vai determinando se você vai chegar lá ou não. Obviamente que chega,
porque tudo é repetição no teatro.
⎯ Sim.
⎯ Na televisão, quando você é chamado, depende do trabalho. Tem trabalho que você
tem... eu fiz agora uma minissérie na emissora y que tinha uma preparadora. Tinha uma
pessoa te preparando... pra você... então, a gente teve 20 dias de preparação dentro dos
estúdios, trancados.
⎯ Que legal.
⎯ Preparando fazer os pescadores, os apóstolos judeus daquela época, como era o
sofrimento, como era o pessoal passando fome, não tinha nada, nenhuma dessas coisas
modernas como geladeira e tal, as pessoas comiam mesmo o que pescavam e comiam e
dormiam e... viviam nesse cotidiano repetido e tal. Então a gente teve uma pesquisa
profunda sobre isso dentro dos estúdios. Mas há trabalhos que você é chamado, que
você não tem tempo de nada. Falam ‘Ó Ricardo, você vai gravar uma novela, começa
mês que vem toma aí 30 capítulos e vai decorar’. (Pausa). Então, tu tem que chegar,
decorar aquilo e daqui a 20 dias você vai pro estúdio e começa a gravar. Sem preparação
nenhuma. Aí tu se vira. Aí eu recorro a tudo o que eu faço no cinema e no teatro, junto

261
tudo, tudo o que eu conheço e levo pra essa atmosfera que não tem preparação. No
cinema... no cinema todos os filmes que eu fiz, eu dei sorte de ter uma preparadora um,
um assistente... que cuidou do elenco antes de começar.
⎯ Poxa, que legal.
⎯ Há um cuidado, há um cuidado porque é um filme. Esse filme vai ficar pra história. Vai
ficar pra vida inteira. Esse aqui (pega um dvd) a gente fez... teve a preparação da
preparadora “x” também. A gente passou 15 dias preparando com ela.
⎯ Ahã.
⎯ Recebi muita crítica dela, depois de já ter feito dois filmes com ela, eu fiz esse e ela
‘Ricardo, tá ruim! Ricardo não tá bom. Ricardo tá uma merda’. E eu falava ‘Caralho, o
que é que eu tô fazendo aqui, tá ruim!’. Mas é o método de trabalho dela. Ela te bota
um pouco lá em baixo...
⎯ Entendi.
⎯ ... que é pra você não chegar achando que faz tudo, que eu sou bom e não sei o quê.
⎯ Ah tá.
⎯ Ela vai te moldando. Ela vai te colocando aonde ela quer, na emoção que ela quer e tira
um pouco o teu ego, limpa um pouco as tuas coisas, tira um pouco a tua... deixa um
pouco mais limpo.
⎯ Entendi.
⎯ Depois que eu fui entender isso, porque no primeiro filme ela não tinha tempo de
criticar. Era mesmo fazer, fazer e fazer. Eram 3 horas de preparação, depois terminava,
era um elenco gigante, muito maior que esse aqui (apontando para o dvd). Então, ela
não tinha tempo de falar individualmente de cada um. Aqui nesse não, era um elenco
menor de 11 pessoas, 10 pessoas preparando com ela. Então, ela tinha tempo de bater...
bater em pessoas no sentido... pra pessoa crescer e tirar umas máscaras que a gente acaba
criando... porque acha que já sabe, porque acha que já é bom ou porque acha que já tem
experiência, ou porque já tem carga e tal de trabalho. Então, são coisas completamente
opostas e... e a televisão, muitas vezes não te dá essa oportunidade de fazer esse
desenvolvimento antes de entrar. Muitas vezes. É raro como foi nessa minissérie, é raro.
Ter uma preparação... pode perguntar isso pro Henrique (riso), ter uma preparação 15
dias antes, 20 dias antes, 1 mês antes como teve lá. A gente sentar, aí fomos assistir
filmes, a gente foi assistir minisséries gringas pra ver e tal, pra saber como era e como
viviam e tal. Pra relembrar, porque na verdade a gente já tem um pouco na memória da
infância, por conta da igreja católica e tal, das histórias da bíblia. Mas outra coisa é você
chegar e representar isso. Entendeu? É um carioca de 39 anos, que é o meu caso. Agora
tô com 40, fazendo um apóstolo na época de Jesus. Sair de 2015, 2014, 2013 pra voltar
pra lá? Com todo esse aparato, celular, roupas moderníssimas e tal. Foi mesmo um
desnudar, um ‘Tira tudo! Fica simples! Fica aí. Fala aí certinho, devagar, não tem
pressa’. Então, a diferença é essa, assim, são... é... são processos diferente, o teatro tem
o tempo e o tempo te faz o senhor daquele espetáculo. Cinema também tem o tempo e
faz o diretor ser o do... porque cinema é o diretor, né?
⎯ Ahã.
⎯ Nem adianta, é o filme é o cara! O que fica quando você coloca no Google filme tal, aí
vem logo a cara do diretor. A primeira coisa que vem é a cara do diretor, o currículo
dele, o filme, a história, depois vem o elenco. Na televisão é o elenco, mas é por conta
da venda, né? Porque aí você tem que vender aquele cara que é mais carismático e tal
pra vender os produtos. Isso é tudo uma máquina que funciona e tal. Óbvio que é o
diretor também, óbvio que é o autor, óbvio que é toda a equipe. Em todas as 3 áreas as

262
equipes são fundamentais, é óbvio. Mas é que são processos diferentes. Eu prefiro teatro
e cinema (riso). Mas óbvio não descarto televisão sempre faço também.

***
Henrique (42 anos)

− Assim que você recebe um papel ou que você aceita um papel, como você trabalha até
o momento pré-cena?
− Depende muito do que é, se é teatro, se é cinema, se é televisão. Mas... vamos lá. Se for
cinema, por exemplo, que o personagem já vem fechado, primeira coisa é entender qual
a importância dele dentro da história e o que ele faz e o que é que ele tem que passar...
executar, digamos assim. Eu entendendo isso, eu tento dar uma personalidade pra ele,
dentro das informações que eu tenho e... e depois a hora que eu encontrar o diretor a
gente faz. O pré-cena é se encontrar o diretor. Acho que é o que eu faço de início. E às
vezes penso que... muitas vezes é irrelevante, mas eu penso no visual dele, que me
ajuda... na composição visual também pra chegar lá já com uma ideia pro pessoal da
produção.

***

Victor (53 anos)

⎯ Assim que você recebe um papel, aceita um personagem, é... como que você trabalha
até você.. começar a... até o momento pré-cena. Como que é o seu processo de...?
⎯ É, do Zero ao momento X? Olha, eu, eu trab... eu sou professor de teatro e por obrigação
eu estudei todas as técnicas, ou quase todas... de Stanislavski, Grotowski... e montes de
outros que tem por aí, daqui a pouco os nomes virão. Mas o que eu ensino hoje para
aluno e uso com a minha carreira, primeiramente é a intuição, é a impressão que
realmente você tem lá e desperta do personagem. Eu gosto muito de citar pra aluno que,
todo ator tem que achar seu, seu... sua particularidade, sua jóia guardada, seu algo mais,
pra você sair dos termos burocráticos com o personagem. Pra você dar humanidade para
o personagem, para ele ter vida e ser crível. Para as pessoas olharem e... e se
identificarem tremendamente com ele por algum fator. (Pausa). Então, assim, eu
separo... pelo diálogo ou pelo que o diretor me passa de informação. É... o que os
diálogos dele indica, como comportamento do personagem. Depois de juntar esse banco
de dados do personagem, eu busco esse algo mais, eu vejo se no meio desse negócio eu
consigo... eu tento fugir do óbvio. É... então se o cara é por decência mau, você percebe
nas atitudes ou no próprio diálogo, um sentido forte de maldade, nenhum ser humano é
só mau. Então eu não abdico do lado bom dele. Que eu sei que um lado bom esse sujeito
tem. Eu trabalho muito com essa dualidade para fomentar o lado humano dele. Pra não
virar arquétipo.
⎯ Sim.
⎯ Entendeu?
⎯ Entendi.

263
⎯ O cara só mau! Não existe um cara só mau. Como não existe ninguém só bom. Por mais
que sua maldade seja controlada, fiapos dela passam toda hora na tua cabeça, né?
Então... é... então é isso, eu vou alimentando o personagem, vou fazendo ele tomar uma
forma. É... primeiro verbalmente, através das leituras. Depois fisicamente tentar refletir
o que eu vislumbrei durante os estudos do personagem. Fazer isso fisicamente reverter
num comportamento que se assemelhe ao do personagem. E tentando devagarinho ir
chegando mais junto que possa dele. Eu acho assim, o ator... é, todos nós somos um
personagem. Eu tiro isso como exemplo para os personagens que eu construo. É... pegar
você ou eu, o meu comportamento natural de Victor, como pai, como pai de família,
como amigo do Henrique. É... eu tenho um comportamento. Todo o meu histórico de
vida, juntando com a minha genética, com a minha educação, com a minha educação
familiar que tive, como eu reagi a todos os problemas da minha vida, como eu reagi às
coisas boas também. Isso me canalizou para um tipo de comportamento e eu acredito
que personagem seja exatamente isso. Entendeu? E a gente é um personagem rico, a
gente é um personagem cheio de minúcias, cheio de detalhes, que é o que... algo mais
que eu considero é você ter uma jóia guardada que precisa ser boa aos olhos de todos.
É humano e verdadeiro. Não obriga a gostar, não obriga a odiar. Se você achar as
similaridades de um sujeito que assiste uma novela ou um filme e de alguma coisa ele
sentir, que conte uma história boa pra ele, entendeu? Já está valendo a construção do
personagem.
⎯ Ahã. E aí quando você fala em primeiro verbalmente, como que seria esse primeiro
verbalmente?
⎯ É... porque são duas questões, eu fiz um... Eu fiz um filme há uns três anos atrás que eu
fiz um maluco psicopata (pausa).
⎯ Hã?
⎯ E eu comecei, eu inverti essa ordem na verdade. É porque eu falo assim, normalmente
você tem os diálogos, é o... é a partitura que o ator tem pra começar a construir um
personagem. Então, você começa lendo, então começa verbalmente. Sentado, deitado
na cama ou lendo em grupo... é verbal. Você vai entendendo a sequência do
comportamento dele, como ele reage a cada questão da, da, da história... como ele
estabelece as relações com os outros personagens, pra dar um diapasão, um ponto de
partida pra ele. E... você junta isso com tudo o que eu falei de você mesmo na sua cabeça
pra criar uma dimensão maior pra isso e conseguir na prática... resolver. Eu acho que
precisa ser autêntico. O personagem pra ser bom tem que ser autêntico. Tem que ser
uma coisa que você convença, naturalmente. Você pode tecnicamente estar fugindo do
que o diretor a princípio... sugeriu para o personagem. Eu acho que o ator, é, é, eu, isso
é uma coisa que eu particularmente acho. O ator é muito mais dono do personagem do
que... a maioria dos diretores e produções consideram. Eu acho que o ator, é... tem
capacidade intelectual e, e, e... ninguém entra mais, aprofunda mais no que o texto diz
ali, da fala do personagem do que ele. Então, ele... o nível que ele, de profundidade que
ele atinge dá uma capacidade absurda pra ele. Diretores modernos, não são todos, eu tô
falando aleatoriamente, a grosso modo, os diretores não... eles vislumbram um
personagem e te obrigam a fazer da forma que ele vislumbrou.
⎯ Ahã.
⎯ Você pode fazer aquilo e além daquilo, na verdade. É só ele abrir mão um pouquinho.
⎯ Sim.
⎯ Entendeu?
⎯ Entendi.
⎯ Vira um aprisionamento desnecessário. Que às vezes você tem canais que ele nem
vislumbrou, mas que você pode oferecer pro personagem. Então, é olhar e relaxar
264
também um pouco com o que o ator propõe. Eu acho isso. Ator é bom pra propor,
também. Tem diretor que é mais fechado. Os mais abertos se dão bem. Que aí é diálogo.
É a troca de informações.
⎯ Entendi.
⎯ Não é ignorar o que o diretor falou, mas você ter propriedade também de propor. Às
vezes até por uma, um, um algo mais, algo que você tenha realmente, que não passa
muito perto do seu personagem, mas que se você jogar ali você dá um brilho diferente.
Eu procuro dar um brilho diferente pras coisas que eu faço. Entendeu? Eu acho que
personagem pra mim, mais do que postura e falar é olho. Eu acredito que ator tem que
ter olho, depois precisa do resto. Primeira coisa é olho. Porque eu acho que é quando
ele passa a maior verdade. É onde ele passa, ele mostra mais por dentro quem ele é, no
olhar. E... então, são detalhes também que constituem a técnica de composição de
personagem.

***

Sílvio (55 anos)

⎯ Quanto ao papel no teatro, de personagem, toda vez que eu pego algum, quando é um
papel que eu sinta algum peso... eu levo pra casa, leio e aí faço um perfil. Quem é aquela
figura, de quem ele foi filho, onde ele nasceu, que horário? Esse é o meu método.
Aprendi. Onde ele nasceu, que horário, filho, estudou o quê? Dependendo do
personagem eu traço um perfil. E aqui no Rio não tem isso. Os atores cariocas não
trabalham muito assim. Os atores paulistas trabalham mais.
⎯ Com a gênese?
⎯ Você pega o canhoto, o lado esquerdo do... do papel, do texto em branco e você escreve
ali. Dali você pega esse perfil que você traçou aqui desse e leva pra... para o personagem.
E aí você desenvolve o personagem com esses... ‘Ah, esse menino nasceu e teve um
problema de asma, de bronquite ou não sei o quê e não sei o quê’. Você leva pro
personagem uma crise alérgica, você leva uma tosse, qualquer coisinha que você botou
ali nesse perfil. Sempre que eu pego alguma coisa, em teatro principalmente eu, eu, eu
escrevo um perfil. Por exemplo nesse espetáculo que eu estou fazendo (...) eu fiquei
dois dias internado numa clínica de catatônicos, pessoas entre aspas “malucas”. Eu
fiquei lá dentro pra pegar, entendeu?
⎯ Entendi.
⎯ Levei, aí fiz um mosaico de todas as... as deficiências que eu vi lá dentro e trouxe pro
meu personagem, que eu tô fazendo, entendeu? Então, esse eu não fiz o... não relatei o
perfil. Eu simplesmente peguei... até porque não tinha tanta coisa pra fazer em termos
de texto. Mas, em termos físicos, em termos de sacação eu peguei de vários. Um andar
de um, a boca de outro, o jeito de olhar de outro, entendeu? E incorporei num só pra
mim. Então, de vez em quando eu até tenho problema com meu diretor, porque ele chega
lá e... ‘Ah, porque o andar tá assim’. Eu falo ‘Não, você talvez dirigiu o espetáculo, mas
você não foi procurar o que é ser catatônico, o que é ser uma pessoa com um problema’.
Então a gente tem uma (pausa) de vez em quando uma divergência nesse espetáculo.

***

265
Edgar (60 anos)

⎯ É... sobre o seu processo de trabalho, assim, como ator, você... quando você recebe um
papel pra fazer ou se propõe, enfim, é... como você trabalha? Esse começo, antes da
estreia, o antes?
⎯ Tá certo. É isso que na verdade eu converso com os alunos aqui, né? (Pausa) Eu acho
que a gente vai construindo um método próprio. Tem aí todo um histórico de muita
coisa pra traz que você... muita referência, né? E aí, vamos dizer, eu sempre fui uma
pessoa que li muito, eu sempre gostei de ler, então eu consegui juntar muita referência.
E acontece que hoje em dia eu acho que eu tiro proveito... é aí que eu comecei a me
perceber rico, entendeu? Porque eu tiro partido de toda essa possibilidade que eu tive
de oportunidades de trabalho. Eu trabalhei com pessoas diferentes, fazendo coisas
diferentes... e aí eu consegui tirar o que me interessava, o que eu achava... entendeu?
Vou confessar pra você que o meu trabalho aqui com os alunos, eu uso muita coisa da
época em que eu trabalhei com criança, pré-escolar, ensino fundamental. Porque é... a
criança, ela não tem esse embrutecimento que a gente tem. Então, assim, muitas coisas
que eu experimentei com elas e que deram certo e que não deram certo, foram a base
do que hoje eu uso, né? A noção de jogo que eu tenho um curso...
⎯ Ahã. Sim.
⎯ ... a noção de jogo, de regra do jogo, entendeu? Esse tipo de coisa, exercícios, ideias,
por exemplo, e tenho trabalhado muito com as letras de música, com... várias coisas que
eu fui juntando né? Eu fiz um curso aqui de Butô também, que usa coisas, exercícios
corporais. Trabalhei com alguns workshops também do Theatre Du Soleil, da Ariane
Mnouchkine, também uso muita coisa do trabalho de máscara. Enfim, eu acho que é
uma sal... uma geleia geral. E com isso eu acho que eu fui criando um método próprio
também. E o fato de estar nessa vida há muito tempo. Eu acho que eu tenho uma relação
afetiva também com o que eu faço, eu gosto do que eu faço. Então, as vezes mais difícil,
as vezes menos difícil, mas assim, eu acho que eu, que isso me dá uma disposição de
trabalhar, entendeu?
⎯ Ahã. Entendi.
⎯ Eu não tenho uma receita, mas eu tenho várias, várias abordagens possíveis, entendeu?
⎯ Ahã.
⎯ Então, eu acho que o mais complicado quando você se insere num trabalho novo, é
como é que você pode render o máximo, né? E de que, e que maneira, e como é que
você processa esse caminho até esse lugar, entendeu? Agora eu acho que método de
trabalho que eu, que eu adoto, não é um método rígido. Eu acho que tem um certo rigor,
mas não é rígido, né? Porque ele é inventado, ele é criado à nova proposta.
⎯ Ah.
⎯ Entendeu? Eu tenho que levar em consideração com quem que eu estou trabalhando,
tenho que levar em consideração o que é que eu estou fazendo, pra... qual é o formato
da produção, principalmente, pra quem que eu estou fazendo, né? Porque eu acho que
o teatro perdeu essa perspectiva... o teatro tá sempre em crise, mas uma das crises pelas
quais o teatro passou, que eu acho que tá saindo né, porque o jovem tinha sumido do
teatro e voltou a frequentar teatro. Há 10 anos atrás eu ia ao teatro só tinha gente mais
velha do que eu. E agora não. Era a terceira idade, as velhinhas da van, lembra?
⎯ (risos).

266
⎯ E tinha aquela campanha “vá ao teatro e não me chame”, ficou uma coisa careta, cara,
chata, ir ao teatro saiu de moda. Mas, na época da ditadura era um foco de resistência.
Você não encontrava um universitário que não fosse no teatro. Hoje em dia inverteu,
você pergunta ‘Quem vai ao teatro aqui com regularidade?’ é a minoria que vai levantar
o braço. Mas eu acho que essa crise tá passando porque tem uma oferta muito
diversificada, mas o teatro perdeu isso. E acho que... as pessoas do teatro ficam
reclamando também da falta de público, mas será que não é o teatro que não está
conseguindo tocar nos assuntos que as pessoas querem ver abordados? Não está
conseguindo dizer o que as pessoas querem ouvir?
⎯ É mesmo. Pode ser.
⎯ Entendeu? Fora isso também tem... você vai fazer um Tchecov, vai fazer um Brecht,
vai fazer um Sheakespeare, citando os clássicos, assim, você não vai fazer um Tchecov
como se fosse Sheakespeare, não vai fazer um Sheakespeare como se fosse Ibsen, né?
Você começa a ter também noção das diferenças em termos de dramaturgia, de
interpretação mais conveniente para aquela dramaturgia. Você vai também aprendendo
a dançar conforme a música né? Eu acho que o ator, ele tem que ter muito jogo de
cintura, porque na verdade ele, ele tem que... primeiro, ele tem que ter uma... o ator não
tem que conhecer nada profundamente, ele tem que ter noção de tudo, cultura geral. Ele
tem que parecer ser qualquer coisa, ele tem que parecer ser criança, velho, homem,
mulher, é... mais velho mais jovem, enfim, tem que ter uma coisa camaleônica. Então,
tem que haver essa, essa possibilidade de você rapidamente, você ter que formar uma,
uma... construir uma abordagem, entendeu? Porque os ensaios de teatro, eles têm um
processo, o audiovisual não, a televisão... eu não tenho esse jogo de cintura de televisão.
(...) Como eu tive poucas chances de fazer coisas maiores... coisas menores você se vira,
mas coisas maiores o pessoal vai ganhando um jogo de cintura. Porque você começa a
porra da novela, você tem um perfil lá, mas aquilo vai mudar no meio do caminho, não
vai ser aquilo mais.
⎯ É mesmo.
⎯ Vai depender da audiência, vai depender do que o autor vai conseguindo catar dos
personagens, das químicas que vão se formando nos núcleos, a tal da obra aberta. Então,
assim, as pessoas começam a ganhar uma personalidade autônoma e elas começam a se
virar por si sós. Porque não tem tempo de preparo.
⎯ É.
⎯ Muitas vezes o texto chega em cima da hora, os diretores, eles mudam muito também
os capítulos, a ordem das cenas na edição. É... você não tem controle sobre o teu
trabalho, entendeu? Você não tem controle. Aquilo pode virar outra coisa conforme for
editado. É essa agonia do audiovisual. O cinema, ele é mais caprichado. Você chegar...
porque é mais caro. Então, você tem que ter menos possibilidade de errar. E a única
maneira de você ter menos possibilidade de errar é você ensaiar mais, se preparar mais.
A TV, você tem que fazer 30 cenas num dia. É pizza. É... entendeu? Iluminação,
enquadramento, é tudo meio... é tudo meio fake, é tudo meio... é pra imprimir. Não é
pra ser, é pra parecer. E o teatro não, o teatro você tem 2 meses pra ir construindo aquilo
internamente, pra você acessar aquela temperatura emocional de forma instantânea.
Tem uma série de diferenças, né? Você no teatro, é você quem edita. Você conduz o
olhar do expectador, entendeu? Então, eu acho que é uma prova de fogo. Mas o
audiovisual também impõe desafios, né? E eu, a minha experiência no audiovisual é
menor que no teatro. Então, eu no audiovisual eu fico mais peixe fora d’água.

***

267
4.1.1 A herança do método

Como começa o dia do cantor, do pianista, do bailarino? Levantam-se, lavam-


se, vestem-se, tomam café da manhã. A uma certa hora estabelecida, o cantor
começa fazer vocalizes e exercícios vocais. O músico se exercita com as
escalas e com outros estudos dirigidos à manutenção e desenvolvimento da
sua técnica. O bailarino se apressa para chegar ao teatro, a sala de ensaios,
para confinar na barra os exercícios devidos. E assim todos os dias. Verão ou
inverno. Cada dia perdido faz regredir a capacidade do artista.
Tolstoi, Tchekov e outros verdadeiros escritores garantem ser absolutamente
necessário, todo dia, a uma hora estabelecida, escrever, trabalhando num
conto, num romance, ou numa peça, ou mesmo escrevendo um diário,
anotações sobre pensamentos e observações.
É importante que a cada dia a
mão se exercite, com a caneta ou a máquina de escrever, na descrição exata e
sutil de pensamentos e ideias rápidas, de sentimentos e imagens mentais,
percepções concretas e recordações emotivas.
Pergunte a um pintor e ele vai te dizer a mesma coisa. Não basta: conheço um
cirurgião (e a cirurgia também é uma arte), que no tempo livre se diverte com
os mais refinados jogos de paciência chineses e japoneses. Enquanto toma chá
ou conversa extrai habilmente de um montinho de varetas aquelas mais
escondidas, para manter a mão firme, diz ele.
Só o ator, depois de ter se vestido e ter tomado café da manhã, se apressa em
sair para ir visitar os amigos ou para resolver as suas questões pessoais, porque
este é o seu tempo livre. Pode ser que realmente seja assim.
Isso sem falar
dos atores que não fazem exercícios de técnica em casa e se desculpam todos
dizendo que não tiveram tempo.
Como é doloroso isso! O ator precisa mais
que os outros artistas do trabalho em casa. Enquanto o cantor deve se
preocupar com a voz e a respiração, o bailarino com o aparato físico, o músico
com as mãos ou, no caso dos instrumentos de sopro, com a técnica da
embocadura e com a respiração, para o ator se trata de braços e pernas, dos
olhos, do rosto, da plasticidade, do ritmo, do movimento – do total grande
plano de estudos que se segue na nossa escola.
Este plano de estudo não acaba
quando se deixa a escola, é preciso continuar a segui-lo por toda a vida
artística. Quanto mais se envelhece, torna-se necessário o afinamento da
técnica e consequentemente também a elaboração sistemática.
Mas já que o
ator “não tem tempo”, a sua arte no melhor dos casos fica parada e no pior dos
casos se precipita para baixo.
O ator recorre então a uma técnica que nasce
ao acaso, que deriva espontaneamente e necessariamente do “trabalho” dos
ensaios, estúpido, falso, sem verdade, de mau profissional, e durante os
espetáculos, nas aspirações públicas, mal preparadas.
[...].
(STANISLAVSKI, Ética, item VII )

A discussão sobre em que medida o artista precisa de técnicas – e mais amplamente de


um método que articule de forma coerente a partir de uma base comum de significados o
conjunto dessas técnicas – ou prescinde delas é extensa. Toda arte está estabelecida dentro de
parâmetros culturais pré-definidos e a criatividade do artista, de algum modo, está sempre
relacionada a esses parâmetros. Norbert Elias (1995) afirma que “Diferente das ideias dos

268
sonhos, as ideias do artista sempre estão ligadas ao material e à sociedade” (p.64). Sendo que,
para o autor, a própria natureza do material já implica que a criatividade do artista ganhe forma
a partir de determinados códigos instituídos para que cumpra sua função de comunicar
artisticamente.

[...] Cada um dos materiais característicos de um campo artístico particular


tem suas próprias regularidades inexauríveis e uma correspondência
resistência ao desejo do criador. Para que uma obra de arte venha a existir, o
fluxo fantasia pessoal deve ser transformado de maneira a poder ser
representado em um de tais materiais. (ELIAS, 1995, P.64).

Entre a disciplina de trabalho proposta por Stanislavski acima e a regularidade dos


materiais, há um ponto comum: o ator é material de si mesmo. Como apontamos no capítulo
anterior isso implica num tipo de trabalho sobre si mesmo que vai desde aspectos como uma
“higiene moral” até treinamentos físicos para que seu corpo esteja preparado para receber o
fluxo criativo. A especificidade dessa arte em relação à dança são as dimensões compreendidas
no “uso de si” e que, por isso, fazem com que o ator dos teatros orientais, na sua maioria, se
aproxime da dança. No Ocidente o ator compreende utilizar esferas que usualmente são
separadas nessa visão de mundo como a mente, o corpo e as emoções, num único trabalho. Já
a dança no Ocidente é entendida muito mais a partir de um trabalho sobre o físico. Essa
combinação, articulação ou mistura de esferas que cotidianamente compreendemos enquanto
esferas separadas traz implicações para a constituição de um método para o ator. As
inquietações desses profissionais sobre “por onde começar”, “o que devo desenvolver mais?”,
o trabalho está estruturado na psique ou no corpo?, todos esses questionamentos só têm base
para existirem numa cultura que separe essas esferas do eu. Muitas das perguntas desse roteiro
foram pensadas por já conhecer alguns modos de pensar correntes no meio e uma intenção de
aprofundar o conhecimento sobre eles a partir das entrevistas.

É perceptível a dificuldade que alguns atores entrevistados têm em explicar o modo


como trabalham. Especialmente Lucas parece nunca ter pensado sobre o assunto de forma mais
sistemática. Dos que responderam de forma mais assertiva, a maioria apresenta suas técnicas
sem creditá-los a alguma corrente ou a algum aprendizado específico; outro grupo apresenta
essas técnicas ou método creditando-os a algum aprendizado e; por fim, um outro grupo
apresenta a existência de um método próprio (todos esses ocupavam além da posição de atores,
a posição de professores e/ou diretores)

269
A visão que não credita o uso de técnicas a nenhum modo de investigação teatral ou a
nenhuma estética específica vai ao encontro das respostas sobre uma questão não desenvolvida
no texto dessa tese, que perguntava sobre as referências, modelos ou exemplos que os atores
tinham para a profissão. A grande maioria respondeu sobre outros atores (brasileiros ou
internacionais – usualmente do cinema ou televisão) que tomam enquanto inspiração para o
próprio trabalho. Alguns poucos mais jovens e principalmente os entrevistados acima de 54
anos (na verdade, todos acima dessa idade) responderam nomes de teóricos teatrais para essa
questão. Voltando à análise sobre a questão relativa ao modo ou método de trabalho, alguns
entrevistados falaram sobre elementos que aprenderam e que utilizam no seu cotidiano
profissional.

No livro Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas (2012), T. Richards dedica o
primeiro capítulo para situar o livro no interior de uma tradição. Trata-se de uma genealogia
que apresenta ao leitor tanto os integrantes quanto os principais elementos teóricos que ligam
Grotowski a seu antecessor. O capítulo intitulado “Stanislavski e Grotowski: a conexão”
dedica-se a mostrar que não há contradição entre os dois autores e sim uma continuidade. O
autor reconstitui brevemente a trajetória de Grotowski no começo de sua carreira, quando era
um estudante de interpretação do Instituto Estatal de Teatro da Polônia. Nesse período
Grotowski reuniu-se com outros estudantes para desenvolverem pesquisas independentes sobre
o trabalho de Stanislavski com as ações físicas. O autor menciona uma afirmação de Grotowski:
“fundamentei toda a base do meu saber teatral nos princípios de Stanislavski”. O eixo central
dessa continuidade apresentado por Richards é o conceito de ações físicas.

Richards não apresenta apenas as informações sobre as influências que as teorias de


Stanislavski tiveram para Grotowski, mas também se posiciona criticamente frente às leituras
que não consideram essa conexão. Para ele, há um modo reducionista de enxergar a realidade
que não reconhece a complexidade do desconhecido, e que esse modo de ver não reconhece a
conexão entre os autores mencionados. A construção de uma tradição é colocada da seguinte
forma por Richards:

É muito fácil sonhar em fazer algo profundo. É muito mais difícil fazer algo
realmente profundo. Um velho provérbio russo diz: se você vai até o quintal,
olha para o céu e salta até as estrelas, só pode cair na lama. Muitas vezes a
escada é esquecida. A escada deve ser construída. Grotowski nunca se
esqueceu disso. (RICHARDS, 2012, p.6).

Como forma de alerta aos atores que iniciam na profissão, Richards assinala a
importância do reconhecimento de que o conhecimento de Grotowski – assim como qualquer
270
outro – é historicamente construído. Isso traz a dimensão do trabalho humano que existe na
elaboração das teorias ou do desenvolvimento dos modos de fazer teatro. Humanos que
partiram de ideias que outros humanos tiveram, desmistificando, desse modo, o conhecimento.
A metáfora da escada serve para reforçar essa perspectiva através da imagem de que cada nível
(degrau) da escada só está lá porque outros níveis vieram antes/abaixo. E que apenas através da
construção podemos avançar.

No campo da arte, é comum a visão que opõe técnica à inspiração. Essa forma de
compreender a criação artística é o que embasa a ideia de genialidade. Essa visão entende o
processo de criação do artista como uma mera exteriorização da criatividade, entendendo esta
unicamente como fruto da inspiração. Sobre isso, Thomas Richards, dando continuidade à sua
metáfora da escada diz que quando era um jovem ator:

[...]não tinha ideia de quanta maestria fosse necessária no ofício. É por isso
que eu gostaria de ressaltar que a escada é necessária. Essa é a nossa técnica
enquanto artistas, e não importa se nos sentimos muito criativos ou não; sem
técnica não temos nenhum canal para a nossa força criativa. (RICHARDS,
2012, p.6).
O autor compreende que a única maneira de canalizar a força criativa é através da
técnica. E ao considerar a técnica como a escada, ele aponta para a concepção de que a técnica
é baseada no trabalho dos antecessores, ou seja, é preciso estudar os que vieram antes. Ao
canalizar a força criativa, a técnica opera como uma viabilizadora, sem a qual a própria força
criativa – se não manifesta – não existe. O autor associa a compreensão de maestria à ideia de
construção, que está intimamente relacionada ao domínio da técnica, ao saber fazer.

Através do primeiro capítulo do livro de Richards, é possível compreender o seu modo


de situar-se no interior de uma tradição teatral, mas também há elementos que nos possibilitam
compreender sua concepção de artista. A relação entre técnica e inspiração é uma via de
compreensão dessa categoria. Para Richards não há construção se não houver esforço,
aprimoramento da técnica através de trabalho. Segundo o autor, “A inspiração só aparece uma
vez, o que fica é a construção, e isso significa simplesmente trabalho duro” (idem, p.117). Sua
concepção de artista, portanto, envolve a ideia de construção através de trabalho, de
aprimoramento da técnica através de esforço, para a aquisição de uma maestria. A tensão entre
técnica e inspiração pode ser vista na forma como muitos biógrafos retrataram Mozart. O
sociólogo Norbert Elias discute essa questão em seu livro Mozart, sociologia de um gênio. No
capítulo “O artista no ser humano”, Elias faz uma análise das implicações em se compreender
a vida do artista separadamente da sua existência social. Segundo o autor:

271
Com frequência nos deparamos com a ideia de que a maturação do talento de
um “gênio” é um processo autônomo, “interior”, que acontece de modo mais
ou menos isolado do destino humano do individuo em questão. Esta ideia esta
associada a outra noção comum, a de que a criação de grandes obras de arte é
independente da existência social de seu criador, de seu desenvolvimento e
experiência como ser humano no meio de outros seres humanos. De acordo
com este enfoque, os biógrafos de Mozart muitas vezes supõem que
compreender Mozart enquanto artista, e portanto sua arte, pode estar
dissociado de compreender Mozart enquanto homem. Esta separação é
artificial, enganadora e desnecessária. (ELIAS, 1995, p.53).

Ao trazer o trabalho artístico para a esfera do trabalho humano que é construído


socialmente e necessita de esforço para ser realizado, há uma desmistificação da figura do gênio
e, por conseguinte, a própria vida do artista se torna mais humana. A crítica de Elias à separação
que é feita entre o homem e o artista abre uma via de compreensão que nos possibilita pensar o
todo da existência de Wolfgang Amadeus Mozart. É isso que o autor faz ao pensar Mozart no
interior da sociedade de corte, em suas relações familiares e em suas relações amorosas. Elias
trata da relação entre um profissional da arte, que desde muito cedo adquiriu extrema habilidade
em seu ofício, e sua sociedade.

Na busca por compreender “o artista no ser humano” Norbert Elias faz uma reflexão
sobre a relação entre técnica e inspiração. O autor trata essa inspiração como fluxo-fantasia e
sobre isso diz:

[…] O produtor de arte – não importa quão espontânea seja a fusão entre
material e fantasia – constantemente tem que resolver as tensões que surgem
entre ambos. Só então a fantasia pode tomar forma, tornar-se parte integral de
uma obra e portanto tornar-se comunicável, capaz de produzir uma resposta
em outros, mesmo que não necessariamente entre os contemporâneos do
artista.
No entanto, isto também significa dizer que, sem esforço, nenhum artista é
criador de obra de arte – nem mesmo Mozart. (ELIAS, 1995, p.64-5).

Para o autor, o fluxo-fantasia necessita de um material para tornar-se concreto e esse


material tem suas próprias regras que só podem ser dominadas através da técnica. A
comunicação ocorre porque existem parâmetros estabelecidos históricamente através dos
materiais. A compreensão de Elias sobre a necessidade de esforço para gerar uma obra de arte
parte da mesma concepção de artista que Thomas Richards expressa quando diz que “sem
técnica não temos nenhum canal para a nossa força criativa”. A técnica, portanto, é o conteúdo
da tradição, o como fazer aquele trabalho, o como materializar aquele fluxo-fantasia.

272
Um aspecto indissociável da tradição é a ideia de transmissão. O livro de Thomas
Richards encarna a transmissão em dois níveis: 1) como relato da transmissão de Grotowski
para ele e; 2) como ensinamentos que, através do livro, ele mesmo transmite a outros. Em outras
palavras, a transmissão de Grotowski para Thomas Richards agiu em dois níveis de eficiência
para manter viva a tradição: transmitir a técnica (ensinar a fazer) e ensiná-lo a transmitir a
técnica (ensinar a ensinar a fazer). Este livro faz parte desse processo de transmissão vivido por
Grotowski e Richards. O livro foi revisado por Grotowski e é dele também o prefácio e o ensaio
colocado como apêndice. No prefácio elaborado por Grotowski fica evidente o projeto de
transmissão presente na relação entre eles e, por conseguinte, também contido no livro:

A natureza do meu trabalho com Thomas Richards tem o caráter de


“transmissão”; transmitir a ele aquilo que alcancei na minha vida: o aspecto
interior do trabalho. Eu utilizo a palavra “transmissão” no sentido tradicional
– durante um período de aprendizagem, através de esforços e tentativas, o
aprendiz conquista o conhecimento, prático e preciso, de outra pessoa, seu
teacher. Um período de aprendizagem verdadeira é longo e eu já trabalhei
com Thomas Richards durante oito anos. No início desses oito anos ele era o
doer (aquele que age: o atuante), e eu o guiava de fora. Com o passar do
tempo, como suas qualidades amadureciam, pedi que deixasse de ser apenas
um doer e que também dirigisse o trabalho. Foi nesse momento que Thomas
Richards se tornou o líder de um dos dois grupos do Workcenter, passando a
conduzir o trabalho prático cotidiano – ele se tornou o teacher do grupo –
enquanto eu ficava ao seu lado e às vezes trabalhava diretamente com os
membros do grupo. Mas principalmente eu indicava, quando era necessário,
alguns problemas práticos que Thomas Richards resolveria com eles depois.
Durante esse mesmo período, continuei o trabalho individual com ele. E esse
processo continua ainda hoje. Sendo assim, minha relação de trabalho com
Thomas Richards (durante os três primeiros anos descritos nesse livro, e
durante os cinco anos seguintes dedicados à arte como veículo) é uma relação
de “transmissão”; é por essa razão que sinto que ele é a pessoa certa para
escrever sobre o trabalho. (GROTOWSKI, Prefácio, in: RICHARDS, 2012,
p.XII).

Neste trecho há uma descrição de como Grotowski compreende a relação de transmissão


com Thomas Richards, como ela foi construída ao longo dos anos de trabalho juntos, e também
argumenta que, justamente por esta relação ser como é, Richards está habilitado e autorizado a
transmitir o que lhe foi ensinado. Ser “a pessoa certa para escrever sobre o trabalho” significa
que a transmissão feita pelo mestre foi nas duas dimensões – fazer (do) e transmitir (teach) –
bem-sucedida. A transmissão entre diferentes gerações é um importante tema de estudos
antropológicos. Luiz Fernando Dias Duarte discute em seu artigo Geração, fratria e gênero:
um estudo de mandato transgeracional e subjetivação diferencial como as análises de
transmissão transgeracional ocorreram nas ciências sociais e na psicanálise transgeracional. O

273
autor analisa quatro gerações de uma família com ênfase na observação dos mecanismos de
“mandato transgeracional” e as particularidades de subjetivação como aponta o título. A
transmissão transgeracional, no caso familiar que o autor discute envolve bens materiais, mas
também outros tipos de herança, como a transmissão de projetos identitários. Preparar herdeiros
que recebam a transmissão transgeracional é sempre um desafio para aquele que deseja
perpetuar algum tipo de tradição.

A descrição que Grotowski faz de seu processo de transmissão na relação com Thomas
Richards é profícua para pensar a questão da transmissão fora da esfera familiar. É interessante
pensar sobre as especificidades da transmissão entre mestre e discípulo no ocidente. Como
“escolhem” um ao outro e como essa transmissão se desenvolve ao longo do tempo. No caso
de Vasili Toporkov, em seu relato sobre a aprendizagem com o mestre Constantin Stanislavski,
a forma como ele descreve seus primeiros encontros com o mestre é através do fascínio.
Segundo o autor:

A atitude de Stanislavski comigo durante minha visita, suas ideias profundas


sobre a atuação, sua dedicação ilimitada ao teatro me causou uma impressão
que agora é difícil descrever, mas nada na minha vida inteira de profissão foi
mais poderoso”14(TOPORKOV, 2004, p.13).

Essa abertura que o discípulo deve ter para receber o outro como mestre é uma
característica que distingue esse tipo de relação de outras análogas, porém que envolvem outra
natureza. Inicialmente, no primeiro curso para atores que fiz, Stanislavski me foi apresentado
como um autor que criou a técnica da memória emotiva, que consistiria em lembrar de algo que
aconteceu na minha própria vida para trazer a emoção que eu compreendesse como necessária
para a cena. Grotowski e Eugênio Barba só foram “aparecer” tempos depois, em outro curso. E
inicialmente eles me foram apresentados como autores que trabalhavam “a partir do corpo”,
ligados à “técnicas físicas”. Esse é o senso comum que tive contato sobre tais autores. Depois,
durante a graduação de artes cênicas, estudei por um ano interpretação com um professor que
se baseava na proposta de Stanislavski e um semestre com uma professora que se baseava na
proposta de Grotowski. O professor fora aluno em Nova York de uma ex-aluna de Stanislavski.
Eu, me sentindo a bisneta de Stanislavski, fui buscar compreender a distância que existia entre
o senso comum dos atores sobre esse autor e o que aquele professor ensinava a partir da

14
Tradução livre. No original: Stanislavski’s attitude to me during my visit, his profound insights into acting, his
unbounded dedication to theatre made a impression on me that is difficult for me now to describe, but nothing in
my whole life in the profession has ever been more powerful.

274
proposta de Stanislavski. Do mesmo modo, pensei os ensinamentos dessa professora que
conheceu e estudou com o próprio Grotowski e nos ensinava a partir de seu modo de trabalho.

Primeiramente descobri que essa técnica de buscar as próprias emoções é uma etapa de
um processo muito maior e que de modo algum visa deixar o ator revivendo dores passadas. O
professor explicou que na sua investigação sobre interpretação, Stanislavski percorreu
caminhos que depois foram abandonados, e que a memória emotiva era um deles. Segundo o
professor tratava-se de observar o que determinada reação a uma situação semelhante ou
equivalente já vivida geravam no físico do ator enquanto estado. Esse primeiro momento de
uma reação orgânica do ator seria registrado para que depois o ator reproduzisse isso
mecanicamente. E por fim, depois de muito ensaiar, essas reações mecânicas voltariam a tornar-
se orgânicas, agora sem a necessidade de evocar a memória da situação análoga. Um
personagem que passa frio está com o corpo tremendo no palco, mas o ator pode estar passando
um calor do verão brasileiro. Ele consegue reagir ao frio porque, de algum modo, ele sabe como
é sentir frio, seu corpo reagiu a isso, ele ensaiou essas reações e agora consegue agir como se
estivesse sentindo frio sem nem precisar ficar pensando mais sobre isso. O foco dessa proposta,
como compreendi nessas aulas, seria a busca por estados através das ações. E a lembrança de
uma emoção ou sensação só serviria de base para que as ações indicativas de um estado
surgissem. Cabe salientar que, como antropóloga, a intenção não é apresentar “a verdade” sobre
os ensinamentos de Stanislavski e Grotowski, mas pensar em como essas tradições buscam
sobreviver e como são ressignificadas pelas futuras gerações.

Voltando à transmissão, compreendi àquela altura que era justamente na ideia de estado
que cria uma encruzilhada epistemológica. Esse professor me explicou que muitos associam
estado a estado emocional. Sendo que, na sua visão, o que Stanislavski dizia com estado era
uma resposta psico-física dada a uma situação. Ele dizia que o autor trabalhava sobre ações, o
que tornaria impossível ser esse, um autor que visaria apenas a psique da personagem. Para o
professor, muito dessa distorção era creditado às traduções. Desse modo, temos mais elementos
para compreender o trecho citado anteriormente em que Thomas Richards conta que os estudos
de Grotowski se basearam no estudo das ações de Stanislavski.

Já no estudo sobre Grotowski, compreendi que se tratava muito mais do que um autor
que visa trabalhar apenas o físico do ator. Trabalhar sobre as ações físicas envolve as várias
dimensões do agir que é visível através de sua expressão física. Trata-se de um trabalho, como
mencionamos anteriormente, que elimine os bloqueios do ator para que impulsos autênticos se
externalizem através do corpo no espaço. A eliminação de bloqueios proposta por Grotowski é

275
um trabalho que não se desenvolve apenas no físico do ator, mas é visível através do físico.
Eliminar a distância entre o querer ser e o ser é o objetivo final do ator, segundo sua proposta.
Enquanto o ator quer ser seu personagem, sua ocupação em querer ser não o permite ser. A
alteridade é buscada através dos estados que manifestam reações às condições que se
apresentam. Sobre esse trabalho que acontece apenas entre o ator e ele mesmo e entre o ator e
o diretor Barba diz o seguinte:

Na tradição ocidental, o trabalho do ator tem sido orientado por uma rede de
ficções, de “se mágicos”, que estão relacionados com a psicologia, o caráter,
a história de sua pessoa e de seu personagem. Os princípios pré-expressivos
da vida do ator não são algo frio, concernente às forças físicas que movem o
corpo. O que o ator busca, nesse caso, é um corpo fictício, não uma pessoa
fictícia.
Para romper os automatismos do comportamento cotidiano, o ator do Polo
Norte dramatiza cada ação imaginando empurrar algo, levantando, tocando
objetos de uma determinada forma e dimensão, de um determinado peso e
consistência. Trata-se de uma verdadeira psicotécnica, cuja finalidade não é
influenciar a psique do ator, mas o seu dinamismo físico. Pertence, portanto,
à língua que o ator fala consigo mesmo, ou, mais ainda, à que o mestre fala
com seu aluno, mas não tem qualquer pretensão de representar qualquer coisa
para o espectador que olha.
Para encontrara a técnica extracotidiana do corpo, o ator não estuda fisiologia,
mas cria uma rede de estímulos externos aos quais reaciona com ações físicas.
(BARBA. 2009. p 63-4).

Através do conceito de corpo fictício, Barba condensa essa tradição – mostrando que
não se trata nem de um “se mágico” psicologizante, como a tradição da arte no ocidente insiste
em tratar, nem “algo frio, concernente às forças físicas que movem o corpo”. Trata-se de uma
psicotécnica que tem como objetivo de romper com os automatismos cotidianos. A importância
do corpo, nessa visão, não se dá porque só o corpo interessa, mas porque é onde a técnica
acontece.

A apropriação desses ensinamentos que os dois professores de artes cênicas me


transmitiram um sobre Stanislavski e a outra sobre Grotowski efetivaram-se no palco. As
montagens de peças teatrais durante a formação são essenciais para a transmissão desse tipo de
conhecimento. Trata-se de um conteúdo que não se realiza ao sabê-lo, é preciso fazê-lo. É assim
que essa transmissão se completa nesse campo. Se o tesouro chega às nossas mãos como foi
produzido em sua origem já não é assim tão importante, mas aprender a receber a herança para
conseguir fazer uso do tesouro transmitido, isso sim é de grande importância.

276
4.2 OFF/ON: A poética do Ser

Manhã ensolarada em São Paulo. Minha mãe e eu caminhamos pelo bairro onde moramos
quando meu telefone toca. Atendo e alguém me chama de meu amor. Pergunta se está tudo bem
e eu penso que é engano. Ele insiste e eu fico confusa. Quem pode ser? Que brincadeira é essa.
Ele desiste e diz que eu me esqueci do que combinamos. Caio em mim e percebo que estraguei
tudo. Tínhamos combinado que no dia da gravação da nossa cena final daquela disciplina do
curso de atores, nos trataríamos como personagens e que pela manha ele me ligaria. Como me
lembrar que eu não era eu? Não consegui. À noite, no curso, ele me cumprimentou chateado e
disse que a partir daquele momento seríamos os personagens. Ficamos afastados e nos
concentramos durante muito tempo. Enquanto personagens éramos um casal. Naquela noite
eu (personagem) havia feito um jantar de aniversário para ele e na frente dos nossos amigos
contei que estava grávida. Ele ficou furioso e saiu. Nunca esperei que ele reagisse dessa forma.
Na nossa casa, esperei por horas que ele voltasse. E a cena a ser gravada começa assim que
ele chega em casa. As roupas da personagem me lembram quem eu sou naquele momento. Não
sou eu. Ao mesmo tempo, antes da cena começar eu ainda estou ali me cobrando não errar o
texto. Meu amigo com quem contracenava é um ótimo ator e além de não querer atrapalhá-lo,
sabia que se eu fizesse bem a minha parte, a cena ficaria muito boa. “Gravando”, disse o
diretor. Começamos o diálogo e meu amigo era totalmente o personagem. Eu ainda estava
dividida entre as minhas preocupações com a cena (texto, localização das câmeras, marcações
de espaço) e o sentimento da personagem naquela situação. “Ou esse filho ou eu” foi o que
ele me disse. Como assim? Eu não acredito! Onde está aquele homem que eu amo? Esqueci de
mim e nesse momento só pensava em como levar minha gravidez à diante. Ele foi ainda mais
longe e me acusou de planejar tudo aquilo. Dei um tapa na cara dele. Eu estava muito exaltada
e não lembrava mais o que era para falar. É como se aquelas falas não importassem mais, só
importava o que eu estava sentindo. De repente tudo voltou a minha cabeça e continuamos
nossa discussão. Ele viu que eu já tinha escolhido ter o filho e foi embora. Eu fiquei lá,
chorando, sozinha e desapontada. “Corta”, o diretor como um Deus encerra aquele momento.
Ainda no sofá eu enxugava as lágrimas e de repente um dos câmera-man fala comigo: “Nossa,
muito bom, viu!”. Sorri, eu tinha que ser eu novamente, nunca estive grávida. Era como uma
mágica, ou um transe. Eu consegui pela primeira vez não ser eu. O que eu pensei durante a
cena foram pensamentos dela. Como isso foi possível? Naquela cena nasceu uma atriz, com a
ajuda de um grande companheiro de cena. Meu amigo ficou contente, apesar de sempre pensar
que a cena poderia ter ficado melhor. No dia da avaliação nossa cena foi a mais elogiada da
turma. “Agora sim, temos uma cena!” foi o que a avaliadora disse.

***

A descrição acima foi escrita em 2012 sobre uma situação vivenciada em 2010. Agora,
em 2018 vejo a limitação de certas compreensões minhas sobre “ser” uma personagem. Era o
caminho que o aprendizado no curso que eu frequentava me possibilitou. Sei também que daqui
a alguns anos, escritos dessa tese talvez eu considere com pouca profundidade ou
inconsistentes. Que assim seja, já que isso significará novas e possivelmente melhores
elaborações. E pensando nesse sentido mais amplo do trabalho como um registro datado de

277
certo modo de pensar, permito-me nesse último item da tese densificar a escrita por outros
caminhos ainda não percorridos até então.

No momento descrito acima, no final do meu primeiro semestre dedicado a estudar a


arte do ator, senti pela primeira vez uma sensação que levou minha compreensão de existência
a outro patamar. Por mais confusa que eu estivesse com todas aquelas demandar por “ser” outra
pessoa e ainda lembrar do texto, olhar em determinada direção para que estivesse enquadrada
na câmera, além de todos os desafios com os colegas de curso, eu me lembro desse dia como
se tivesse acontecido agora. Foi o primeiro dia que aconteceu o êxtase de sentir que uma cena
realmente está acontecendo e que todos em volta estão acreditando e envolvidos com o que
veem. Minha busca por sentir aquilo novamente começou nesse dia. Êxtase ou prazer são
palavras que se aproximam da sensação desse momento, mas não há o que explique com
exatidão. Num momento as mãos estão suando e tremendo, as pernas estão fracas, o coração
está acelerado e no outro você não lembra mais dos efeitos do seu corpo. Você sente as pessoas
a sua volta olhando para você e respirando no mesmo ritmo da sua respiração. O operador de
câmera que estava comendo um sanduíche enquanto gravava para sua mastigação no meio e
sem olhar para ele você sabe que a garganta dele deu um nó. Aquele sentimento que aquela
personagem que estava no papel sentia agora está em você e transcende ao seu próprio corpo
chegando até essas pessoas que assistem.

Por mais que eu discorde de certas concepções que eu portava naquele momento sobre
“ser eu” e “ser ela”, concordo ainda sobre o elemento central nesse fazer: acontece. E não existe
“meio” acontece, ou acontece ou não acontece. Atualmente não penso que “sou ela” e sim que
“sou eu ocupando um outro lugar”, no sentido mais radical que a palavra empatia poderia ter.
Me coloco no lugar de um outro possível (e não existente) para viver determinadas situações,
mas sempre a partir de mim mesma. Ainda assim, percebo que só consigo fazer fazendo. Estar
no lugar de uma mulher desiludida e desesperada, agir ocupando esse lugar com a completude
do meu “ser”, me leva a reagir mental, física e emocionalmente de acordo com o acontecimento.
E se a minha tristeza chegar até o operador de câmera (que normalmente naquele contexto de
curso não se envolve com as cenas), se alcançar esses “lugares” que estão fora da ficção como
o público de um teatro ou os técnicos de um set de filmagem, aí saberei que aconteceu. Se não
fosse arte o prazer de acontecer em mim já seria o suficiente, mas é impressionante sentir
quando essa comunicação de fato se estabeleceu. Pra mim, aí, a arte aconteceu.

Durante a pesquisa fiz duas perguntas que nasceram da vontade de compreender com
maior profundidade essa minha própria experiência descrita acima. Uma delas era: O que

278
acontece na sua mente no exato momento que você está em cena? E a outra era: Depois de um
dia de trabalho como você faz para desligar? Começarei pela segunda pergunta e vamos tecendo
esse fio com a pretensão de uma renda mais poética que analítica, compreendendo que diante
desse aspecto do tema, é o possível para meu dizível.

4.2.1 Um banho ou um copo de cerveja

Sílvio (55 anos)

⎯ E... agora assim, quando termina o seu dia de trabalho, termina o seu espetáculo, o seu
processo de desligar.
⎯ O processo de desligar... eu desligo no camarim. Desligo no camarim, na troca de roupa
já começa aquela... ‘Pô o espetáculo foi bom, foi ruim, teve falhas sim, a plateia tava
fria e tal tal. Vamos pra casa de fulano, vamos beber e tal’. É... e os meus amigos
também assim, entendeu? Tem algumas pessoas muito... que sofrem. Eu tenho amigas
que saem, como atrizes, como atores, ‘Ai, hoje eu não...’ Eu sou assim. Eu também sou
assim. Eu tô falando isso mas eu também sou assim. Uma vez eu errei um texto em
Manaus, no teatro... foi no teatro Amazonas. É... lá em Manaus. Eu errei uma
bobagemzinha que não interferia em nada, a plateia... aquilo, tinha uma festa depois que
era oferecida pela Prefeitura, secretaria de Cultura, governador lá de Manaus. Eu não
fui porque eu fiquei tão mal. Eu fui pro hotel, me tranquei no hotel. Eu desapareci no
dia seguinte. Ninguém me viu. De madrugada eu pedi uma sopa, tomei uma sopa, ning...
No dia seguinte acordei, fui pra uma piscina onde ninguém me achava. Eu falei ‘Hoje...
o que eu errei ontem...’ E o pessoal atrás de mim e tal. Eu peguei um taxi e fui direto
pro teatro, cheguei lá ‘O que aconteceu ontem? E tal tal tal’. Aí eu f... que eu tava puto,
entendeu? Aí fiz um espetáculo! Aquele errinho que não foi nada. Eu fiz um grande
espetáculo, entendeu?
⎯ Sim.
⎯ Mas, assim, eu acho que com o tempo você vai... vai lapidando e fala assim ‘Porque é
que eu vou sofrer meu Deus do céu?’. Por um erro que é, é, é humano errar. O ator erra,
o músico erra.
⎯ Sim.
⎯ O cara passa o troco errado. Então, é... agora eu convivo com amigos que... sofrem. Que
sofrem também. Sofrem, saem ‘Não, eu preciso desligar e não sei o que’. Eu entendo a
adrenalina. A adrenalina é alta. (pausa) Dependendo do espetáculo. Esse espetáculo que
eu tô fazendo você sai com a adrenalina alta. Até você desligar leva uma hora, uma hora
e pouco pra você baixar, relaxar. E eu sei porque eu tô fazendo. Um dia desses uma
amiga minha não me via há muito tempo, foi assistir (Pausa). Ela falou ‘Ah, vamos para
a minha casa tomar um vinho e tal tal’. Fui. Eu só fui relaxar na segunda garrafa.
⎯ Olha.
⎯ Eu tava muito... foi um espetáculo bonito e tal tal. Mas você... sabe?
⎯ Ahã.
⎯ Agora... cada, cada, cada profissional tem... uma forma de trabalhar, de desligar. A
minha não. A minha acabou o espetáculo eu já... saio, deixo ali meu figurino, tá tudo
ali, não levo nada pra casa. Nada, nada, nada. Antigamente até a cueca que eu usava...
279
⎯ Você deixava?
⎯ Ficava no teatro. Eram cuecas pra espetáculo.
⎯ Olha.
⎯ Hoje em dia lido com isso. Minha cueca é a minha. A não ser que seja uma coisa que
precise mesmo pra cena e tal. Mas antigamente era meia, eu não usava nada. Hoje em
dia não, eu desligo e acabou. Acabou e tal tal. Entendeu?

***
Lucas (26 anos)

⎯ Quando você termina o seu trabalho, seu dia de trabalho como é pra você desligar?
⎯ Quase impossível! Depende... é acho que não, não tem variação entre o criativo e o, o,
o, o trabalho em si, eu acho que a, acho que é difícil desligar. Eu apago com facilidade
pra dormir.
⎯ Ahã.
⎯ Mas eu acho que se eu tivesse propensão a ter insônia eu teria.
⎯ Você fica agitado?
⎯ Eu fico, eu fico ...
⎯ Tenso ou o quê, como assim?
⎯ Muito excitado quando é uma coisa criativa...
⎯ Ah tá.
⎯ E muito tenso quando é uma coisa que me, tá mexendo com o processo lá com eles é
horroroso é a gente fala uma língua diferente da deles.
⎯ Entendi.
⎯ E quando eu chego em casa eu sei que eu não desligo porque eu jogo pra fora a maioria
das vezes em cima da Marina e ai tipo, é, não... eu entendo, eu entendo.
⎯ (Risos).
⎯ Não, eu sei que é errado.
⎯ Ahã.
⎯ E isso tá registrado (olhando para o gravador).
⎯ (Risos).
⎯ Não, mas é e, e assim de... mas é, uma coisa que é muito legal de estar com ela é porque
agente é muito apaixonado por isso. Mas... desligar no bom e no mal sentido pra mim é
muito ruim. No bom, então, eu acho que a gente vira a noit... a gente fez essa última
peça numa madrugada15.
⎯ Caramba.
⎯ O pensamento da coisa toda... O roteiro inteiro era numa madru... foi numa madrugada
conversando e depois a gente...
⎯ Sim.
⎯ Tá, vamos colocar em prática. Não, mas depois de ter o negocio assim... É e a gente foi
conversando e nesse... é acho que desligar é muito difícil. Eu sempre acho que tá uma
merda. Acabo tudo, tudo. Tudo eu to, eu, eu, eu sempre acho que foi uma merda eu
sempre acho que eu fiz errado.
⎯ Ahã.

15
Eles quer dizer que eles escreveram a peça numa madrugada.

280
⎯ Isso em cena, sempre acho que foi uma merda... Eu não gosto de falar... “E ai como é
que é?”, “E ai como é que foi?”. Foi uma merda e eu, ai eu perguntava foi igual ontem?
Foi, acho que hoje foi ate melhor, foi melhor não foi pior. Ou se... e assim e não é uma
coisa de ai que trabalho de merda que a gente faz e sempre não presta, não foi, não foi.
⎯ Entendi.
⎯ Só que aí acaba que nunca é. Então tipo eu não sei. Aí ela termina sempre feliz, sempre
tipo sempre alegre e eu fico... eu... e aí que...
⎯ Sim.
⎯ Mas eu digo que, que eu, e é uma busca que a gente tem é de nunca ser diferente, mas
dentro de, mas eu sempre acho que tá ruim, sempre acho que ah hoje eu brinquei com,
com... na rua... Hoje eu brinquei com um cara que não era pra brincar ai eu fiz uma cena
no circo que eu falei que foi uma merda e ela foi? Foi uma merda é foi uma merda, ela
não, ai tipo.
⎯ Ahã.
⎯ E acaba que foi uma cena que depois ela me falando como foi o que aconteceu eu falei
foi maneiro então, tipo...
⎯ (Risos) Sim.
⎯ Aí eu... sei lá, eu sempre acho que foi ruim.

***
Bárbara (35 anos)

⎯ É quando termina o seu dia de trabalho como que você faz pra, pra desligar, enfim, pra
encerrar?
⎯ Pela respiração também. Eu acho assim, têm várias... Ah, eu vou pela praia. Depende
do... depende assim, da carga emocional que eu usei em cada trabalho.
⎯ Ahã.
⎯ Mas pra mim eu não, eu, não é assim tão “Caraca, foi...”, porque era na personagem, eu
não coloco pra mim. Tipo tem um menino da Companhia que ele chora, aca... acabou a
peça, ele começa a chorar incessantemente e ele me falou “Ah, eu busco”. Porque ele
saiu de Natal, enfim, “eu sempre penso na minha mãe muito na peça, to na, aquela
coisa”. Então, eu não. Eu, eu desliguei ali, assim, eu desliguei. Até uma vez eu fiz um
coach, que é tipo um amuleto da... tem outro nome que chama, tipo que tu desliga num
toque. Se tu, toda hora, na tua mente, se isso é ativar (som de um estalo de dedos) se
isso, isso é desativar (som de dois estalos de dedos), se tu fizer um exercício... Tu vai
desativar com os dois toques e sair de uma carga emocional muito forte.
⎯ Entendi.
⎯ Então acho que pra desligar, mesmo quando a, uma personagem é muito forte, é energia,
é tudo. Mas eu não sinto assim “Ai caramba”, tipo que nem essa peça do Vinícius, tipo...
⎯ Ahã.
⎯ Não, não consigo. Assim, é... “Caramba, tenho que me desligar, tenho que...”. Acho que
é natural, entendeu?
⎯ Ahã.
⎯ Mas eu acho também, claro, se tu tá com uma super na vibe, eu acho que vai respirando,
vai pens... vai não é ali, ali não é tu.
⎯ Ahã.

281
⎯ Ali é uma personagem que tá e, exerc... né? Exercendo e eu acho que tem que ficar
mesmo se a personagem for triste tem que ficar alegre depois “Caraca, consegui a carga
dramática, consegui humanizar, consegui...
⎯ Ahã.
⎯ Né?
⎯ Sim.
⎯ Dar credibilidade, ser crível” Né?
⎯ Sim.
⎯ Natural.

***

Marcos (68 anos)

⎯ Quando seu dia de trabalho termina, assim, numa peça ou na TV ou no cinema, como
você faz pra... pra relaxar, enfim, pra...?
⎯ A televisão é muito rápido, né? Você vai, entra e sai e... é como se fosse não, nem
aconteceu. De tão rápido.
⎯ Ahã.
⎯ Cinema também, eu conheço atores que adoram fazer cinema, eu... depende se está
rolando. Tem várias maneiras de filmar. Se fosse um filme americano por exemplo,
eles... eles fazem muitas... tomadas, fazem muitas! Então, eu entro, eu sento aqui, eu
digo “Oi Angela, como vai?”, a gente faz isso 15 vezes! (riso). Gravando, gravando,
filmando, filmando, filmando, filmando, filmando 15 vezes. Então... a última vez que
eu fiz um filme estrangeiro, era tão picotada que eu não senti... você faz e entra, senta,
fala, faz um depois a outra. Cinema brasileiro que não tem tanto dinheiro é um pouco
melhor, é mais perto de uma novela. Então, você faz tomadas maiores, menos tempo,
menos vezes. (Pausa) Mas... a sensação não é que você tem feito alguma coisa, né?
Deve ser melhor protagonizar porque... o que eu faço sempre é uma... uma participação,
né, que não... Enquanto o teatro de outra forma... (pausa). Eu fiz várias peças, eu estava
em vários grupos. Eu fiz algumas coisas, de passar na audição e pegar o papel. E eu era
sempre a primeira pessoa pra chegar e a última pra sair. Então, muitas vezes eu tava...
levava uma hora ou mais pra tirar maquiagem, tomar banho, botar tudo de volta. Então,
muitas vezes eu saí sozinho do teatro, às vezes ia pra um bar que as pessoas foram, ou
não. Mas é... (pausa) é um feito, né, fazer uma peça. É um feito! Depois de duas horas
no palco, aí tem 3, eu fiz peça de 3 horas. Você sai e... e pô, você fala “Hoje chega!”
(riso). (Pausa longa). Naquela época, eu fumava maconha. Então, depois de sair do
palco eu fumava um baseado, aquilo dava uma... (Respira fundo). Agora eu não sei o
que eu faria, tomaria uma cerveja, assim... (riso).
⎯ Ahã, sim. E a cabeça fica assim ainda? Por exemplo, quando você ia deitar, ainda
ficava ligado ou não?
⎯ Depende, depende. Não, eu acho que eu ficava mais esgotado ao invés de pilhado.
⎯ Ah sim, entendi.

***

Débora (40 anos)


282
⎯ Sim, é depois de um dia de trabalho é como que você faz pra desligar assim?
⎯ Boa pergunta, às vezes a gente não desliga né? Às vezes não desliga, é não sei eu gosto
muito de, de, de atividade física, eu malho, eu danço então é eu gosto de malha então é
aquele tempinho que eu vou, que é meu né?
⎯ Ahã.
⎯ É aquele tempinho que eu to longe do celular, que eu um tempinho meu que eu to
totalmente ali nem que seja uma horinha, mas é um tempinho meu isso é bom me tira
de tudo, quando eu to naquele momento ou quando eu vou dançar, fazer uma aula de
dança alguma coisa assim eu é um momento meu, que eu relaxo, não penso em nada e
tenho muito prazer em, em realizar em fazer.
⎯ Ahã.
⎯ Mas quando eu to em casa eu gosto de fazer pra desligar? É isso assistir um bom filme...
Que é uma forma de você tá se alimentando também porque é a gente se, a gente se
alimenta muito de referencias né? As referencias então cada obra que você assiste que
você, que você faz comparações é uma forma de você tá se alimentando. E ao mesmo
tempo se divertindo porque é um momento que você se desliga de tudo e entra na
história, então eu gosto muito de malhar, dançar e assistir um bom filme.
⎯ Ahã.
⎯ Acho que são coisas que me desligam assim.
⎯ E, por exemplo, quando você tá em cartaz, você acabou de sair assim ali no teatro,
como é que você fica e como é pra dormir? Enfim.
⎯ Olha é muito bom estar em cartaz. É muito bom tá ali realizando trabalho ai quando
acaba o espetáculo a gente sempre, se a gente tá na nossa cidade né? Então a gente tem
os amigos que a gente recebe depois a gente sai pra jantar...
⎯ Ahã.
⎯ Essa hora é muito gostosa porque você vai trocar ali se vai bater papo, você vai, aqui
tem aquela sensação de missão cumprida de hoje sabe? Você fez um bom espetáculo,
se ficou feliz com você mesma com o seu trabalho e ali aquele momento de tá jantando
com seus amigos e dividindo coisas, trocando é muito gostoso. Eu gosto muito, muito
mesmo, quando você tá em cidades né? Se tá em cartaz viajando pelo Brasil ai você tem
outras coisas né? Então você tá mais junto com o grupo ainda, porque ai você conhece
pessoas diferentes, você escuta muito, você tem muito feedback porque as pessoas
querem chegar, as pessoas querem conhecer...
⎯ Sim.
⎯ Tirar foto, tem muito isso né? O Brasil é muito carente de arte. Então quando você leva
um espetáculo pra fora então à gente sente isso, que eles querem muito então ter essa
troca com o público depois do espetáculo também é muito prazeroso, é muito gostoso
você ouvir as criticas assim.
⎯ Ahã.
⎯ É muito legal.

***

Viviane (32 anos)

283
⎯ É... quando termina o seu dia de trabalho, assim, o que você faz pra desligar? Pra fazer
essa...
⎯ Ah eu gosto de mudar a música, colocar música diferente da que eu tava ouvindo.
Porque música é uma coisa que me deixa muito no processo. Então, se eu pego uma
personagem, que tipo de música que esse personagem escuta ou que combina? Eu gosto
de deixar música de fundo pra decorar texto, porque música me dá o tom daquele texto,
me dá o tom daquele personagem, de quem que ele é. Então, mudar um pouco o estilo
totalmente da música e dar uma relaxada, é muito bom. Um bom banho, uma música
gostosa. E uma coisa que eu... eu não vejo tv normalmente né? Eu não tenho muita
paciência, vejo só série. Mas quando eu saio completamente de todos os personagens,
ali daquele momento em cena, eu gosto de ficar na tv sabe? Passando o canal, pra não
ver nada. Mas só aquela coisa relaxante de... não estar vendo nada, a mente tá totalmente
vazia, aberta pra vir qualquer outra informação que não tenha nada a ver com o que você
tava fazendo antes.
⎯ Ahã.
⎯ É meio que libertador. Eu gosto de pegar uma praia, fazer uma coisa com natureza, se
eu puder também, dar uma caminhada. Adoro caminhar pra dar uma liberada em todo
o processo que foi feito antes.

***

Vinícius (30 anos)

⎯ É... quando você termina o seu trabalho de ensaio, enfim, que você sai do teatro... como
que você desliga?
⎯ Hum (pausa). Às vezes leva um... leva um tempo eu desligar. É, porque eu saio muito
cansado. Eu saio exausto. Saio... pesado, né? Tem uma carga de dramaticidade muito
grande. Porque o texto é muito pesado, o texto é muito forte. Ele fala... tô contando
desse processo atual...
⎯ Ahã.
⎯ Que é o que eu estou. Então, não vou me lembrar dos outros agora.
⎯ Certo.
⎯ Mas nesse processo, que é onde a vida acontece, é... eu saio cansado e tento... me isolar
um pouco, falar menos... é... tô cheio de energia ali, né?! Então não posso estar me
contaminando, não posso... sair dali e ir beber com alguém e.. “Ah legal, vamos...”. Eu
acho que não é por aí o caminho, eu acho que é mais me guardar. Eu vou pra casa...
boto uma música gostosa pra ouvir... enfim, uma música que eu me identifico, vou tomar
um banho, acendo um incenso... enfim.
⎯ Ahã.
⎯ Relaxo, deito. Eu busco sempre... me preservar. Que é um... é um momento de... de
abertura... sabe, de energia? Que ali você pode estar absorvendo outras coisas? Que eu
acho mais possível você guardar aquilo que você conquistou... durante aquele processo
que você fez ali. Dedicou. E dali, eu vou pegar e, e, e vou largar ele? Sabe? Vou jogar
a obra no chão? Não. Vou pegar e vou guardar pra mim. Vou dizer, “Vem cá, você é
minha. Ninguém vai tocar aqui”.
⎯ Ahã.

284
⎯ Não que eu fique rude. Mas é que eu tento me controlar e ficar comigo. Acho que é isso,
o processo... após o ensaio, após...

***

Levy (54 anos)

⎯ O depois, assim, do seu processo de trabalho eu gostaria de saber, o depois imediato,


o momento que você desliga da cena, como é pra você esse desligar?
⎯ No dia-a-dia, depende muito do que eu estou fazendo. É... vou voltar àquela novela que
eu te falei, eu fiz um personagem, baseado no delegado “x”, um delegado brutal, onde
eu passava a maior parte do dia torturando pessoas. Interpretando essas torturas. É...
(pausa). Pra você ter uma ideia, uma vez eu tava no estúdio, fui me trocar, quando voltei
a atriz, que fazia uma torturada, ela estava saindo do estúdio. Ela tava toda
ensanguentada, ela tinha sido estuprada, ela tava suja, ela tava... Eu cheguei a voltar!
Eu sou um ator, eu estava fazendo o mesmo trabalho e tava interpretando aquela
brutalidade. Eu sei que é mentira, mas eu olhei... eu cheguei a voltar. Eu não suportei
olhar. Tinha dias que eu chegava no meu flat e eu estava tremendo dos pés à cabeça. Eu
tinha pesadelos terríveis. Eu porra.. às vezes eu entrava no carro e chorava um pouco.
Aí você fala “É um descontrole?”. Eu tenho controle absoluto quando termina. Eu sei
exatamente! Eu tiro a roupa, eu boto a minha, porra, acabou! (Pausa). Só que... (riso) é
humano! Você fica numa energia... o tempo pá, pá, pá! Porra, aquilo te afeta!
⎯ Sim.
⎯ Óbvio! Aí num contraponto, uma cena de amor, “Ai, então você se apaixona pelas
atrizes?”. Sempre há uma paixão! Óbvio! Quando você dirige, então, você se apaixona
por todas as mulheres do seu elenco. Especificamente por algumas, porque aí já é uma
condição mais assim, de... de... é, não da importância delas por ser protagonista ou ser...
não isso, mas aí já por uma questão mais pessoal sua, assim, de um tipo de mulher que
te interessa. Mas qualquer diretor que disser que não se apaixona por suas atrizes é uma
mentira!
⎯ Hã.
⎯ Nós exercemos basicamente uma profissão de sedução! Óbvio. E nos fragilizamos
demais quando começamos um trabalho e estamos nele, porque tudo nosso tá aparente.
Tudo em você vai ser julgado. Vai ser julgado fisicamente, emocionalmente,
sexualmente, intelectualmente, todos os seus entes estão sendo julgados, serão julgados.
Você se fragiliza e ao mesmo tempo muito poder. Porque você é condutor de milhões
de emoções e... projeções e... né? Mas, é inerente à profissão a sedução. O que você faz
com ela é uma outra coisa. (Pausa). Qual é o seu objetivo nisso é uma outra coisa. Se
você usa isso para alguma coisa, isso é uma outra história. Agora, é inerente. Então,
quando eu tô em cena, eu vivencio 8 meses com uma atriz, é... sequências de amor, isso
não quer dizer que eu vá ter alguma coisa com ela. Ou que eu me apaixone por ela, não,
não, não! Isso é que é muito difícil explicar é... para alguém que não é do meio. Ou se
pensa numa grande babaquice de putaria, de... essa coisa, idiotice que a gente nem entra
nisso, ou é... se você namora uma pessoa de fora, fica com ciúme. É uma outra coisa. É
um encantamento pra se construir aquele encantamento do personagem. Você fala assim
“Você já namorou atrizes que contracenaram com você?”. Raramente! Raramente! E
não namorei porque tava em cena com elas. Namorei porque a gente tava convivendo,
e isso qualquer profissão você vai ter isso. Né? Mas esse encantamento, essa... ele
existe! Então, também ele te abala. Aí, você pode sair cantando, feliz, você pode sair

285
triste, você pode sair de acordo com seu romance... acontece. Mas é muito raro... ser de
uma forma grave. Você tem que tentar o controle absoluto, da hora que você entra na
emissora ou no teatro, a sua vida pessoal fica lá fora. Você vai construir aquele universo
da fantasia, vai viver aquilo. Quando você voltar, sair do teatro, da emissora, da locação,
aquilo acabou! Mas como ser humano você não vai conseguir isso de forma absoluta.
⎯ Ahã.
⎯ E não tem que ter pudor disso. Né? É... (Pausa). Eu tive uma namorada, que ela era até
modelo. Uma pessoa com uma bagagem bacana, viajada e tal. E eu fazia uma novela,
na emissora m, e eu tinha uma mulher portuguesa. Eu era apaixonado pela irmã, mas o
pai me obrigava a casar com a irmã dela. É baseado numa história bíblica, né? E aí, teve
um dia que cheguei em casa, aquele dia que eu tava louco de saudades, eu tava... e falei
pra ela “Pô, vai lá pra casa, me espera”. Eu tava doido pra encontra-la e tal. Aí, quando
eu cheguei ela tava esquisita, eu falei “O que é que aconteceu?”. Aí passou um tempo,
ela falou “Ah, eu vi a novela hoje”. (Pausa). Eu falei “Foi bacana?”, eu raramente
assisto, já te falei. Ela falou “Ah, foi. Eu vi suas cenas com a Marta e tal”. Eu falei “Ah
meu Deus!”. Eu falei “Que cenas que foram hoje?”. Ela falou “Ah, aquela cena, que foi
a primeira transa de vocês”. Aí eu perguntei “Ficou bacana? Você curtiu?”. Ela “Não,
ficou legal”. Uma hora depois, “Fiquei com ciúme!”. Aí eu falei “Olha, você conhece a
Marta, (pausa) você conhece a minha profissão e você conhece a mim. Você é a minha
namorada, eu quero ser o seu namorado. A Marta é uma mulher linda, gostosa, boa atriz
e gente boa. Mas eu não quero ser o namorado da Marta. Eu sou o seu namorado. Então,
porra, não assiste! Se você vai sofrer, não assiste. Mas, eu acho uma grande bobagem.
E a segunda coisa é: eu nunca mais vou voltar a tocar nesse assunto com você. Eu tô o
dia inteiro com saudades de você, aí eu te encontro e a gente vai falar da Marta? Você
vai me convencer que é melhor ficar com a Marta. Não me joga lá, me traz pra cá, né?
Ponto”. Mas eu compreendo, jamais eu brigaria com ela...
⎯ Ahã.
⎯ ...Por causa disso, eu compreendo!
⎯ E você já viveu o contrário?
⎯ Se eu já vivi o contrario? Sim! De eu ter ciúme por uma atriz que... que eu trabalho?
Sim! Só que eu sei! E o que eu mais sei, e talvez seja o que mais dói (riso) é que eu não
vou controlar isso!
⎯ Ahã.
⎯ Ponto. Ponto. Mas isso é na vida, eu posso estar casado e eu vou achar que minha mulher
nunca vai se interessar por outro homem, vai se encantar, vai achar gostoso, ou vai ter
tesão, ou vai... o que ela vai fazer com ela vai... só ela vai saber. Enfim, mas como a
profissão tem essa coisa do romance e tal... então, a gente falou tanto do romance,
quanto de uma coisa barra pesada... eu coloco daqui pra lá. Mas, eu sou um ser humano.
Né? Tinha um ator, um ator muito... faleceu muito jovem, conta... as pessoas contam
que quando ele fazia uma cena de sexo com uma atriz, ele falava assim “Olha, se eu
ficar excitado você me desculpa, se eu não ficar você me perdoa”.
⎯ Ahã.
⎯ Uma grande brincadeira. Mas é óbvio que a gente tem que saber que a gente mexe com
coisas que não habituais. Emoções, sexo, amor, afetos, ódios... não é habitual, a gente
tem que ter essa compreensão. Mas a sedução é inerente à profissão. Quando acaba o
trabalho (pausa) dependendo do trabalho, é um vazio... absurdo! Mas o teatro me deu
uma coisa, que o fechar a cortina também é bonito. O efêmero do teatro. A compreensão
de que... né? Primeiro que com um palco vazio você cria um mundo. E quando a cortina
fecha, quem viu, viu, quem não viu, não viu. E essa beleza do teatro tá numa coisa
ritualística, a origem do teatro é a origem das religiões. Você senta em volta da fogueira
286
e conta seu dia, uma hora contar só não adianta, você levanta pra fazer algum gesto. Aí
você quer me contar que caiu um raio, ou você viu o fogo, mas você não sabe explicar
aquilo, você começa a construir deuses ou semi-deuses. E aí começa, rituais e
representações. Isso caminha junto. Né?
⎯ Sim.
⎯ Então, sempre é sagrado pra mim o representar. No teatro então nem se fala. Eu quando
estou em cena, você me ameaçar em cena, eu posso matar você. Porque aquilo é sagrado,
a minha vida tá ali, o que coloca alimento na minha na mesa tá ali, o que me... (inspira
fundo) dá o mínimo de sanidade tá ali! Aquilo é sagrado, não pode. Aquilo não, você
não toca naquilo! Né? E o teatro te dá isso muito claramente. Né? E quando fecha a
cortina, é engraçado que todo espetáculo que eu dirigi, mais do que os que eu fiz como
o ator, o ultimo dia tinha uma... é (pausa longa) não é uma de alegria, mas uma emoção
assim de que ‘é assim’. No sentido de que... quem foi (pausa) foi! Aquilo era pra ser
trocado com aquelas pessoas e aquilo tem que ter um tempo, né? Mas, por exemplo
hoje, se eu não tivesse essa entrevista eu poderia ter vindo pra esse hotel e ficado sozinho
hoje aqui. Aí o que é que eu faço com a minha realidade, estando numa outra cidade
que eu não conheço ninguém, que eu não tô namorando ninguém, que meus colegas
estão vivendo suas vidas... você pode olhar pra parede e enlouquecer.
⎯ Ahã.
⎯ Você pode gastar tempo, né? Ou, você pode ter a compreensão de que é assim! Né? É
a solidão do artista, é a máscara que quando você tira, você se olha no espelho e você
não é tão belo quanto o personagem que você faz, não é tão divertido quanto o palhaço
que você faz, né?
⎯ Ahã.
⎯ - Saber que você é bobo da corte. Saber que pô... você... é... tem uma profissão, que ela
tem um valor relativo. Regra geral, você vai conversar com os atores e eles... eles têm
uma, uma... uma visão sobre eles próprios com uma macro importância que o mundo
não dá!
⎯ É.

***

Sílvio começa a segunda garrafa de vinho com sua amiga que naquela noite foi “prestigiar”
sua peça. A cada gole ele relaxa e dissipa o que chama de adrenalina. Todas as tensões vividas
no seu trabalho lhe trouxeram adrenalinas de cores variadas. Algumas adrenalinas sabem que
talvez seu nome seja apenas um apelido para despistar os vigilantes da psi. Se cada esfera que
Sílvio acredita existir está em seu lugar, se a cueca estiver bem guardada, aqueles afetos – que
em nada (dizemos gritando) se parece com a adrenalina viu? – estarão a salvo, guardado a sete
chaves naquela gaveta do camarim do teatro. Talvez se estivesse sozinho e sem as garrafas de
vinho a gaveta viria se arrastando como uma sombra, ou as baratas das ruas cariocas no verão
mais quente.

287
Verdades ou mentiras, cada um de nós, atores, omite como pode sua relação com os afetos
causados na cena, no instante seguinte do apagar das luzes ou do grito de “corta”. Nas cenas de
amor, o mais difícil não era gostar de um colega que se tem carinho, expressar intimidade,
buscar sentir seu cheiro, buscar sua pele, beijar, abraçar e olhar com amor... o mais difícil era
olhar nos seus olhos depois do “corta”. Cadê o botão de desligar Viviane? Quanto você cobra
por esse amuleto mágico que te leva de uma dimensão a outra com o simples estalar de dedos?
Precisava de uns segundos sem o encarar para voltar a olhar pros seus olhos com o sorriso de
amizade.
E se estiver cansada de falar que meu cansaço é apenas físico? Vou para a academia como
a Débora, assisto a um filme ou vou jantar com o elenco ou convidados. Débora e Marcos
variam, as vezes ficam sós, às vezes acompanhados. Mas muitos outros parecem bem decididos
pelos opostos. Enquanto Lucas azucrina os ouvidos de Marina, Vinícius não aceita nada menos
que o isolamento. Levy já considera o isolamento como parte da profissão, mas isso não
significa que fique feliz com ele. Lívia, explica pra ele que é só ligar a tv, ficar passando os
canais e deixar que aquela não imagem seja uma companhia para quando não se quer pensar ou
sentir. O banho, incenso ou tv para aqueles que vão sós para casa e o vinho ou a cerveja no bar
para aqueles que preferem entorpecer os sentidos nas rodas de conversas.
O único problema é que todas essas alternativas só dissipam névoas que não enxergamos e
que no dia seguinte estarão novamente lá. Um dia, uma professora e amiga perguntou sobre
como tinha sido processo de filmagem de uma série e como eu estava naquele momento que
acabou. Falei que a intensidade do ritmo de filmagens era tão grande que era difícil ter tempo
pra relaxar e desligar da personagem. Nos primeiros dias, depois de 12 horas de trabalho eu
chegava em casa e minhas pernas latejavam tanto de dor por causa do salto alto da personagem,
que eu não tinha forças para tomar banho. Ficava com as pernas para o alto por quase uma hora,
já estudando o texto do dia seguinte, para depois ir pro banho e dormir. No início sem tv, sem
amigos e sem cerveja. Depois dos primeiros dias comecei a ir ao bar com alguns novos amigos
da equipe algumas vezes por semana e mais adiante nas filmagens, íamos todos os dias. Troquei
as pernas para o alto por um copo de cerveja e muitas risadas sobre o dia de trabalho. E depois
de uma ou duas horas de conversa voltava para casa para estudar o texto do dia seguinte. Depois
que acabou, parecia que aquilo tudo nem tinha sido verdade. Uma rotina tão intensa desfeita
literalmente do dia pra noite. À minha descrição ela respondeu: “Leciono há décadas e sempre
vejo todos os currículos de formação de ator dedicarem mil esforços para fazer os alunos
construírem ou “entrarem” nos personagens, mas nunca vi ninguém ajudar a sair. Aí o ator tem
que se virar sozinho”.

288
Entender os dispositivos de desligamento dessa máquina é o que motivou essa pergunta
na pesquisa. Isso porque me incomodava perceber resquícios da tristeza da cena, depois que a
cena acabava. Nas naturalizações do vivido, me considerava uma atriz pior por não “voltar”
com um estalar de dedos. O carro que Levy chora me consolou sobre a humanidade desse botão
ralentado que tenho. Por outro lado, para não sair de uma naturalização e entrar em outra, cabe
guardar naquela mesma gaveta do camarim, que precisa ser aberta para a próxima apresentação,
a intenção de uma reflexão mais aprofundada sobre o “ser afetado” do ator pelo seu trabalho,
considerando a totalidade desse ser ocidentalmente dividido e em ato reconciliado.

4.2.2 “Aí é um prazer que você jamais vai conseguir traduzir”

Marina (29 anos)

⎯ E como é o seu trabalho em cena? O que acontece?


⎯ Também to num momento novo que é de colocar em prática isso tudo que eu vi com a
professora x. Em cena eu faço exatamente o que eu ensaiei. E o professor y tem uma
frase muito boa que é: quando você vai pra cena você tem que fazer tudo o que você
ensaiou. E... é isso, você faz tudo o que você ensaiou. Eu não crio em cena, eu não
improviso, a não ser que claro... aí apagou uma luz, aí você dá um passo pro lado. Mas
eu ainda tenho dificuldade, por exemplo, em cena quando eu faço as ações eu to muito
concentrada em fazer. Então, eu não penso muito, a coisa vai fluindo. Mas aí eu enxergo
todo mundo que entra, porque eu enxergo muito bem. Então, eu ainda tenho dificuldade
de me concentrar nisso. De não ficar abalada porque alguém abriu uma bala numa hora
que é silêncio. Entrou uma mulher atrasada na semana passada e eu errei o texto. Eu
fiquei puta. Então eu ainda tenho dificuldade de me colocar dentro da redoma da
concentração das ações. Mas, geralmente... mas isso aconteceu numa cena que eu tenho
muito texto e pouca ação. Geralmente quando eu tenho uma sequência enorme de ações
eu nem reparo o que acontece. Claro que eu estou escutando pra ver se o Lucas está ali
perto de mim, se ele vai fazer a coisa na hora certa, se a luz está certa. Mas eu geralmente
me fecho mesmo. As ações ajudam muito.
⎯ Entendi. E como você explica isso dentro de você? Você pensando como atriz que tem
que fazer determinadas... que tem que cumprir determinadas tarefas, e você pensando
como a personagem? Como você descreveria isso?
⎯ Hoje eu não... é uma mistura, por exemplo, antes de começar, quando eu estou – agora
nesse espetáculo né – quando eu estou esperando começar e eu estou lá sentadinha, eu
falo comigo, eu me acalmo. Aí é a atriz se acalmando. ‘Olha pra luz Marina, olha pra
luz, se concentra, se concentra’, então é essa conversa. Quando eu vou começar, sempre
quando eu vou começar qualquer cena eu tento me colocar como a personagem. Mas
quando eu começo a ação é maior. Então, assim que eu começo eu penso “agora eu vou
cruzar a perna, agora eu vou levantar, agora tem que cantar baixo, agora eu vou olhar
pra frente”. Mas eu sempre tento fazer esse trabalho inicial de começar como a
personagem, que eu acho que vai me colocar num estado de espírito diferente. Mas eu
não consigo, porque a coisa da repetição é mais forte. Eu rapidamente caio no “ai meu

289
deus minha mão não é aí, tira a mão daí, coloca a mão...”. Então, eu vou me conversando
comigo sempre em relação à ação “acho que você falou baixo, acho que sua mão é mais
pra direita”, esse tipo de coisa. E por exemplo, uma coisa que aconteceu quando entrou
essa moça atrasada, a cena que eu fico parada, ela entrou durante essa cena. Eu tava
muito nervosa. Eu fiquei muito puta. E sabia que quando começasse a outra cena eu ia
me acalmar. Porque eu não tenho tempo de pensar, porque eu tenho de fazer as ações.
Então isso me ajuda. A diferença entre fazer uma cena em que a ação é só falar e um
monte de outras coisas é gritante pra mim em termos de concentração.

***

Marcelo (32 anos)

⎯ Legal. Bom, e como que é o seu trabalho e cena? O que acontece com você quando você
está em cena?
⎯ Eu acho que o importante quando está em cena é estar pleno. É você... é engraçado que
às vezes a gente pega coisas que a gente traz na bagagem e uso até como ator e eu acho
isso muito importante. Quando eu fazia faculdade de educação física, eu tinha um
professor que... uma vez ele disse assim pra plateia... pra plateia, pros alunos! Ele falou
“vocês são as pessoas mais importantes da minha vida”. Aí tod... um bando de jovens,
todo mundo tirou sarro “ah, até parece, pára”, de zoeira. E ele falou “não, é verdade, a
gente tem que viver cada momento na sua plenitude. Hoje eu estou aqui pra dar aula pra
vocês, então, nesse exato momento, eu não tenho família, eu não tenho mais nada. Nesse
exato momento que eu estou aqui pra dar aula, vocês são as pessoas mais importantes
da minha vida, porque o que eu estou fazendo agora é a coisa mais importante da minha
vida”. E aí eu comecei a pegar um pouco isso pra minha vida e eu acho que em cena é
exatamente isso. Quando eu to em cena (pausa)... aquele momento é o momento mais
importante da minha vida. Aquele personagem é o personagem mais importante da
minha vida! Então, é concentração e... e dominar. Eu acho que quando você tem o
domínio do seu personagem, claro que você estudou, você foi dirigido, você ensaiou.
Então você domina aquilo que você está fazendo e nada foge do seu controle. Pode
acontecer um imprevisto, pode o cenário cair, pode roupa rasgar, pode plateia tossir,
pode plateia... não importa, você usando o domínio que você já tem da sua personagem
e usando a concentração que é necessária e a disponibilidade do ator, eu acho que nada
foge do controle. Nada. Você fica tão pleno em cena que você consegue jogar com o
seu parceiro, você consegue observar que está ao redor, você consegue saber... de
repente algo caiu e está sujando o palco, é algo que não deveria estar ali e pode estar
tirando o foco da cena e a plateia observando... você está inteiro, você entende a sua
personagem, você retira esse objeto, você faz outras coisas e você... é estar pleno. É
saber que ali é o momento mais importante. Não dá pra você encenar pensando na sua
vida fora ou qual a próxima cena que você vai fazer. Eu acho que aquele é o momento
e você tem que dominar aquilo. Porque o público é sensível, o público percebe, mesmo
porque a nossa maior maneira de expressar o sentimento do personagem ou as intenções
do personagem, é através do olhar. O olhar diz tudo. E se você foge... do foco do seu o
personagem, você foge daquilo que é a tua personagem, o público percebe. Inclusive na
televisão, no olhar você percebe ‘hum... a pessoa não está sendo verdadeira, a pessoa
está falsa. Isso está me soando artificial’. Porque é o olhar, é o olhar. A pessoa compra
através do olhar. É o olhar que diz. Se a pessoa vai expressar raiva, ela... ela traz a raiva
no olhar! É engraçado porque a gente fala ‘expresse raiva’ e a pessoa pode gritar, a

290
pessoa pode urrar, mas não, ela pode apenas estar olhando com raiva pra alguém e ela
vai estar olhando com raiva. Entende?
⎯ E isso tem a ver com aquilo de que o professor falava no começo de que o olhar expressa
o que você está pensando exatamente?
⎯ É exatamente. Exatamente. Porque se você está olhando e você está sentindo aquela
raiva, você está expressando aquela raiva, e aí você pensou que seu cachorro ficou sem
comida em casa...
⎯ Já era.
⎯ O olhar some! E é incrível como isso acontece. Basta você estar atento e sensível,
envolvido na história... e você sabe, fugiu! Você sabe! O ator sente na hora. Mas o
espectador ou o telespectador, ele percebe na hora. Basta ser um pouco mais sensível...
e observar isso. Ele percebe, saiu.
⎯ Olha.
⎯ Existem grandes atores, que pra mim são mestres e às vezes eu to assistindo alguma
coisa e existe um minutinho que eu falo ‘hum, saiu do personagem, saiu!’. É isso, é essa
plenitude. É difícil. É difícil. Ainda mais um ator que trabalha muito, principalmente
ator de televisão que pega texto dias antes e é muita cena pra gravar, é difícil estar o
tempo todo concentrado. Mas é... esse é o desafio. Esse é o desafio. É o desafio da nossa
profissão.
⎯ Sim
⎯ E aí tem tantos outros que fazem... pegam o texto e vão fazer a ceninha e... ok, e a grande
massa curte. (Pausa) Porque ok, é bonitinho e dá um texto bom, fala bem, e aí é natural...
porque assim, na verdade ele representa igual estar na casa dele, enfim, não é o que eu
acredito como arte. Não é como um artista de verdade. Mas funciona... então, quem sou
eu para questionar?
⎯ Dentro disso, como que você explica o que acontece sua cabeça na hora da cena?
⎯ (Pausa) Não sei o que acontece. Eu acho fundamental o ator estar ciente de tudo. Ele
nunca pode estar tomado. Nunca, nunca pode estar tomado. Então, eu não vou dizer ‘ai,
eu entro numa vibe que eu viajo e enfim, eu to com raiva eu sinto raiva...’. Não. Foi
aquilo que eu te disse, ele sabe que aquilo é uma interpretação e ele sabe que ele está
representando um ser humano. Então, aquilo não é dele, na hora ele está emprestando
um corpo, ele está emprestando a voz, ele está emprestando os trejeitos. Então, é... ele
tem que estar consciente de tudo. O ator... claro que quanto mais você exerce a
profissão, quanto mais você trabalha o teu corpo, a tua voz, tudo vai ficando bem mais
natural. No início, um ator que talvez não tenha tanta prática, ele tenha que ficar
concentrado ‘não, a voz tem que encaixar pra cá, a voz tem que encaixar pra lá, a
respiração tem que ser assim, o corpo tem que ir pra lá...’ mas pra isso que existem os
ensaios, pra que isso, você vá tendo propriedade disso. Eu acho que durante a cena nada
acontece em relação a ter um transe...é consciente, é consciente. O que acontece é... é
‘estou pensando... vou pensar como meu personagem’, é isso. Vou pensar como meu
personagem que é um ser humano assim, porque eu já estudei, reagiria nessa situação.
Como é o meu personagem agora. Lógico que eu não posso pensar no depois, porque
tem uma continuidade e eu não posso agir agora já pensando no final da peça, por
exemplo. Então, agora! Porque eu estou agindo assim? Então, eu sou esse ser humano
e como esse ser humano tem que agir agora? É consciente isso. Não tem transe... É isso.
É isso. É você saber ‘eu Angela estou aqui. Eu Angela, com essa cor, com esse cheiro,
com essa energia, com esse perfil, sou eu... pensando como uma senhora, ruiva, velha,
abandonada pelo marido, enfim...’ mas é você! Não é... a personagem não existe. É você
representando alguém. Então, é exatamente isso. Por mais que você tenha esse outro

291
pensamento de ‘tenho que agir como a personagem’, então ‘não fala assim comigo, eu
sou fulana...’, mas você sabe que você é a Angela se emprestando.

***

Eduardo (45 anos)

⎯ Certo. E como que é seu trabalho em cena? O que acontece nesse momento?
⎯ É maravilhoso, né. (risos) Essa pergunta é incrível (pausa). Porque... independente do
nervosismo, que deve existir mesmo, claro, que é natural... Paulo Autran, aos 84 anos,
um pouco antes dele morrer, um jornalista perguntou pra ele “Sr. Paulo, o Sr. ainda
sente nervosismo quando entra em cena?”, e ele falou “No dia que eu não sentir isso eu
prefiro não trabalhar mais como ator, no dia que eu não tiver esse nervosismo perdeu a
graça”. Então, todos nós sentimos... quer dizer, eu estou falando pela maioria até, aí
alguns talvez nem sintam, cada pessoa também desenvolve uma forma. Sinto sim, sinto
um nervosismo, uma certa tensão, pouco antes de entrar, em qualquer, em qualquer
desses veículos que eu venho trabalhando, seja televisão, teatro, dublagem ou cinema.
Mas é incrível, quando eu ouço a palavra ação, rola uma magia, rola uma sintonia com
os deuses do teatro, que eu acho que é fundamental, que eu fico... eu fico totalmente
tomado com aquilo. Então, o texto que provavelmente eu tenho ele já muito
bem...estipulado isso, pelo menos eu chego sempre no set de filmagem ou no palco, e
no caso da dublagem não, porque é sempre uma novidade, a não ser quando você já tem
um personagem que você trabalha ele há muito tempo, mas normalmente você descobre
quando você vai pra banca qual personagem você vai fazer. Mas mesmo ali rola uma
sintonia com... a linguagem, cada um desses veículos que eu te falei tem uma linguagem,
e... vem, na hora vem essa, vem essa sintonia do universo com, com o quanto eu gosto
e respeito essa profissão. É... eu desenvolvo muito bem o... é, eu sou sério, sou sério e
sou profissional. Vou até falar um pouco do signo, que não tem nada a ver com o
trabalho de ator, mas eu gosto de falar que o virginiano, ele é muito preocupado. Se eu
virar pra você e falar “olha, eu vou pular da Pedra da Gávea sem asa delta, segunda
feira”, eu vou pular. Foi um compromisso que eu fiz. E na vida, principalmente na minha
vida profissional, como ator, se eu achar que eu não tenho capacidade de fazer o
personagem, eu recuso. E se eu achar que eu consigo fazer, eu assumo e faço. Com
pontualidade, com seriedade e com muita paixão.

***

Caio (35 anos)

⎯ E como é o seu trabalho no momento da cena?


⎯ Como é meu trabalho na minha cena? Foco. (Pausa). Foco, foco, foco em tudo. No meu
objetivo no personagem. Foco. Tem que estar ligado em tudo, na luz que entra, quem
está contracenando comigo... é onde eu tenho que passar. É foco, porque não tem outra
coisa.
⎯ E como é que você descreveria o que acontece na sua cabeça nesse momento?
⎯ Sabendo quem você é e qual seu objetivo em tudo, tendo a segurança do que você quer,
tudo, é tocar o foda-se. Brincar e se divertir. Esse é o barato do ator. Tocar o foda-se
mêmo. É... vários professores de teatro falam isso: o ator só vira ator mesmo quando ele

292
liga o foda-se. Tipo, eu não to pagando mico. Porque tem ator que até ele achar que não
está pagando mico... porque a vida do ator é pagar mico, porra. Mas quando ele tem
esse... essa... esse “pô não to pagando mico, o barato é se divertir pagando mico”... esse
é o barato do ator, entendeu? Você ser quem você jamais seria.

***

Sílvio (55 anos)

⎯ Quando você está em cena, como você descreve o que acontece com você?
⎯ (Pausa) Pois é, uma vez até minha mãe me perguntou sobre isso. (Pausa) Eu frequentei
algumas sessões espíritas, assim, eu gostava de ir. E espíritas que eu digo assim,
macumba, o candomblé. Eu ia por conta dos rituais de tambor, de músicas, sempre
gostei.
⎯ Ahã.
⎯ E eu via aquelas pessoas incorporando... aquelas entidades que ficavam... não sei se
ficavam em que plano... eu me sinto mais ou menos como se fosse uma entidade. Entre
a realidade e essa outra, esse outro lado. Eu sinto muito isso quando eu estou em cena.
Quando eu tô em cena eu sinto... é engraçado isso né? Porque eu sinto essa... essas duas
coisas. Eu sei que tá ali a consciência de quem sou eu, meu RG tal tal eu sei. Mas aquele
personagem é outra pessoa. Então, tem horas que eu... eu saio de cena... eu não sei por...
eu nunca... eu nunca fiquei desse jeito, eu nunca andei assim, eu nunca... sabe essa...?
Esse paralelo eu... é muito... é uma coisa misteriosa na (pausa). Você me complicou
nessa pergunta. Mas eu, eu, eu tenho consciência do que, do que, da... do que tô fazendo.
⎯ Sim.
⎯ Eu tenho consciência... se tiver que cair, se o teatro for desabar, alguma coisa for cair e
eu ver que está ali, eu saio, claro. Eu não sou louco. Eu não vou deixar... entendeu? E
ao mesmo tempo eu tenho a consciência que se aquilo for cair e se não for machucar
nem a mim nem ao meu companheiro, aquela personagem... vai continuar ali e vai tirar
partido daquele acidente ou...
⎯ Ahã, sim.
⎯ Eu já cortei a minha perna, num espetáculo, com uma folha de zinco... que eu quase
perdi minha p... sabe? Num lugar longe. Eu cortei, entrei em cena com muita dor, com
muita dor. Entrei no personagem, saía sofrendo. Até que... a sorte foi que no final do
espetáculo alguém perguntou ‘Tem algum médico na plateia?’. Aí o médico não podia
fazer nada, eu estava num lugar longe... Madureira. É foi Madureira, no teatro Sesc de
Madureira e eu vim ser socorrido aqui em Botafogo, no hospital que era... saí 10 horas
de lá da noite. Mas assim, consciente de que eu entrei com personagem, com a perna
cortada e que... dei um improviso com muita dor e, e, mas quando saía de cena era eu
sofrendo mesmo ‘Porra, caralho, to perdendo sangue de montão’. Então eu não...
⎯ Ahã. É... a minha curiosidade quando eu pensei essa pergunta é porque é... é muito...
isso que eu vivi interpretando, de, de como se fossem dois pensamentos ao mesmo
tempo.
⎯ É isso.
⎯ Um pensando na marca, na luz, no... e outro pensando assim, ouvindo o que o outro
personagem está falando e pensando ‘Como ele pode falar isso pra mim? E não sei o
que’.
⎯ Pode. É.
293
⎯ E pensando como personagem, né? Aí, é algo que nunca tinha acontecido antes e eu
fiquei intrigada e falei ‘Nossa, como é para as outras pessoas?
⎯ Claro. Não, é assim mesmo. Quando você está contracenando é sempre essa coisa. É
todo dia que se repete, pelo menos no teatro, mas é essa coisa ‘É verdade?’ (Como se
estivesse ouvindo alguém falar e questionando-se). Não, você está sempre recebendo...
isso é interpretação. Isso é interpretação. É... é isso! É você receber, você sabe aquilo
ali que todo dia você... mas todo dia você... é novidade, você tem uma inflexão diferente
isso é, isso sim com certeza. Agora (pausa) essa consciência é o ato... o ser... o cidadão
Sílvio, a Angela vai ter sempre ‘Eu sou o fulano de tal que tô fazendo isso. Eu tenho
que fazer assim, eu tenho que ouvir isso’. Não muda. A conscien... porque se eu sou o
ator, se eu sou a pessoa, o ser humano que interpreta, como é que eu... antes de chegar
na personagem eu tenho que estar consciente do ser humano, de mim. Mas como é que...
entendeu? Não sei se eu... se tá claro. Você tem que ser o ator, o Sílvio, o Sílvio de tal
que comanda esse boneco aqui. Sou eu aqui, mas que eu tô comandando ali o John, por
exemplo, nesse momento no teatro. Eu sei que eu tô ali, eu tô comandando esse papel.
Esse papel é um cara que anda assim, que fica torto, que não fica, que manda o pessoal
pra puta que pariu e tal tal.
⎯ Ahã.
⎯ Mas, eu sei que eu não posso falar isso aqui porque meu companheiro tá falando, minha
companheira tá falando, entendeu? Tem que ter a consciência.
⎯ É, e esse domínio é a técnica né.
⎯ É, você tem que ter a consciência de você entrar na hora certa. E se você falhar um dia,
esquecer, porque tem.
⎯ Sim, e lidar com isso.
⎯ Porque você um dia pensou... você está em cena fazendo e fala assim ‘Puta, amanhã eu
tenho um compromisso... ou tenho que fazer isso...’. Aí você desliga e pum, você
interfere no seu mamulengo ali, no teu brinquedo que você tá comandando. Então, essa
consciência tem que ter sempre. Eu acho assim.

***

Ricardo (40 anos)

⎯ É... quando você está em cena, como é o traba... o que acontece? Assim, se você fosse
explicar o que acontece em você, no momento que você está em cena.
⎯ (Suspiro profundo e pausa) No teatro? Vou começar pelo teatro que é a praia que eu sei
falar mais.
⎯ Isso.
⎯ No teatro, é... eu antes de entrar em cena faço toda a preparação de corpo, de voz e tal,
como em qualquer peça. Posso fazer um personagem assim (símbolo de pequeno com
a mão), posso fazer o principal, o processo é o mesmo. Chego 2 horas antes, faço e tal.
E... e quando eu entro em cena, é como se... como se eu fosse guiado por uma luz. Juro
por Deus. É como se eu estivesse guiado por uma luz. Em que eu fecho, aqui fecha (com
a mão na frente dos olhos), não é o Ricardo, quem tá olhando aqui é uma outra figura,
uma luz, um personagem vamos dizer assim. É óbvio que você estuda, faz o sotaque,
faz o andar, faz tudo, bota roupa, tudo ajuda né? Bota maquiagem, o cabelo, tudo ajuda.
Mas, esse contato com a plateia... eu não sou ator de stand up e tal, que olha no olho,
fala piada e tal, mexe com plateia e faz gracinha e tal. Eu entro e faço a cena, faço a

294
história, conto a história. Pra isso eu tenho que estar muito concentrado. E essa
concentração ela, ela vem através de uma oração, de uns pedidos e tal antes de entrar
em cena. Eu faço uma oração.
⎯ Ahã.
⎯ Eu abaixo e peço perdão, perdão não, peço... permissão porque eu sei que pra trás vários,
milhões, milhares de atores e diretores e tal trabalharam e honraram pra que isso
estivesse aqui até hoje, para que a gente pudesse usufruir desse momento.
⎯ Sim.
⎯ Você não está sozinho. E... e então, eu encaro... é, como se fosse uma coisa sagrada. E
acho que também me encaram assim. E por isso, eu quando estou em cena sou tão
diferente do Ricardo quando tá fora. Eu sou tímido, pode não parecer. Eu sou bem
tímido. Mas, no palco, quem me olha diz que ‘Pô, não é? Tá solto, tá soltinho’. Mas é
que não sou eu (riso). Não é o Ricardo. Porque se fosse eu entrando lá... assim nesse...
assim frio, pra dizer alguma coisa, pra fazer alguma cena, não ia sair. Não ia sair. Tem
mesmo que ter uma preparação antes e tal e tem uma oração antes que eu faço. Peço
permissão pra entrar aqui, me protege, me ilumina tal, não deixa acontecer nada comigo,
vou entrar quero sair inteiro, quero contar a história bem. E entro! E a partir disso eu
enxergo tudo. Eu enxergo refletor, que cores tem, eu enxergo ator, enxergo cenário, mas
eu não enxergo a plateia. Isso aqui pra mim vira uma quarta parede (pausa) mesmo. Eu
procuro, se alguém chamar a atenção, se alguém tossir, alguém gritar, eu procuro não
olhar. Se rirem do que está sendo feito na cena, é... procuro não me vender para aquele
riso, mesmo concentrado na história, concentrado no personagem é... o que eu digo,
assim, que o palco, ele é sagrado. É como se fosse... o altar. Como se fosse o teu lugar
de, de religião. Como se fosse o teu lugar de oração, teu lugar de troca, teu lugar de
purificação. Então, quando eu chego no teatro, a primeira coisa que eu faço, a primeira
coisa é botar a mão no palco ‘Dá licença, tô chegando aqui pra trabalhar’. Aí olho assim
e sinto que tô sendo observado, obviamente eu acredito no espiritismo, sou espírita.
⎯ Ahã.
⎯ E entro! E sempre deu certo. Sempre deu certo. Então, eu sinto, sinto... fico forte (pausa)
sou magro, me sinto forte. Tem uma força, ganha uma potência... fico sabe? Fico mais
cheio, mais preenchido, fico mais...
⎯ Sim.
⎯ Fico inteiro. E depois que eu saio, eu tô exaurido, eu tô morto, eu tô com fome, eu tô
com sono, eu tô querendo ir pra casa, eu tô querendo... ficar, sei lá, namorar. Mas eu
quero... procuro me esconder depois. Eu sou do tipo que termina... tem gente que é
assim, consegue, termina, deixa lá e vai pra casa. Deixa lá e vai sair, vai jantar vai
encontrar os amigos numa festa e tal. Eu posso até ir, mas eu demoro um tempo maior.
Tem um tempo de recuperação do corpo.
⎯ Entendi.
⎯ Porque eu jogo com muita energia. Eu não consigo entrar a 10% eu sempre entro a
150% em cena. Uma potência incrível. De tudo, de olhar, de voz, de articulação (pausa).
Então, eu acredito que eu só tenho essa potência e eu só tenho esse momento com o
teatro porque eu respeito muito o palco. E quando eu entro no teatro eu faço isso tudo o
que eu te falei e... e pronto é isso, quando você respeita as pessoas, quando você respeita
o ambiente obviamente isso retorna pra você.

***
Edgar (60 anos)

295
⎯ É... quando você está em cena... o que acontece? Como você explica?
⎯ Olha, tem um prazer muito grande. Da onde vem esse prazer? Porque muitas vezes não
tem muito dinheiro, muitas vezes você tá cansado, né? Da onde vem esse prazer? Eu
acho... é uma coisa que eu me pergunto, né? Eu acho que esse, essa gratificação, ela
vem muito do fato... é uma ilusão, na verdade né? Porque é uma ilusão... de você estar
vivendo mais do que os outros, você estar vivendo duplamente. Eu acho que tem uma
ganância de viver aí... tem uma sede de vida. Essa consciência também de que a gente
tem prazo de validade, né? Então assim, eu acho que a sensação é essa. É como se eu
tivesse vivendo 2 vezes, a minha e a do personagem. O personagem sou eu! Mas eu
escolho me mostrar daquela maneira, entendeu?
⎯ Entendi.
⎯ Sou eu e não sou eu. Tem essa ambiguidade né? E dá essa ilusão de estar vivendo mais
que os outros. Mas é pura ilusão.
⎯ (riso).
⎯ Não passa de uma ilusão. E também a própria linguagem teatral, né? O que é a cena? É
você eternizar aquele minuto né? É você valorizar aquele segundo, aquele instante da
existência humana não vai se repetir. É único. É especial. Eu acho que tem também esse
ritual de, de... é uma valorização do momento e uma, e uma ilusão de... de viver
duplamente. Talvez em cena, sejam essas as sensações. É... quando você inicia, você
tem muitas tensões que não servem né? Que você tá nervoso de não dar certo, de...
entendeu? Esse tipo de coisa. Mas, depois eu acho que você vai caindo assim, num...
não é que não fique nervoso! Claro, quando você está preparando uma peça, quando a
peça estreia... é que o trabalho vai se completar porque vai entrar o público. O público
é o último elemento a entrar, por isso que as pessoas fazem muito esses ensaios abertos,
apresentação, como é que é? Pré-estreia. É uma maneira de aquecer o espetáculo, porque
quando você prepara um trabalho ele só se completa na hora que entra o público. Porque
é aí que acontece o fenômeno teatral. É o último elemento que falta. Então, isso causa
uma ansiedade sim. Porque você está ali trabalhando naquele grupinho fechado, de
repente quando você abre, você vai ter um retorno. Às vezes num lugar que você achou
que poderia ser mais... é... poderia ser mais bem sucedido, poderia atingir mais gente,
aquilo não teve tanto efeito, e algo que você não deu tanta importância acaba surtindo
um efeito inesperado. Então, tem essa, essa brincadeira, vamos dizer assim. Então,
assim, é... mas assim, com o tempo, depois de fazer muita coisa, eu já não tenho mais
aquela... insegurança. Não sei se a palavra é insegurança. Eu não tenho mais aquele tipo
de nervosismo, de tensão, entendeu? Tem a tensão sim de... e também eu acho que em
cena, mais específ... mais concretamente, é uma coisa assim de que você tá ali, tem que
falar, tem que olhar pra lá, tem que fazer isso e não sei o quê. Mas também tem uma
coisa assim, uma consciência na hora ‘E se agora eu tossir? E se agora eu espirrar? E se
agora eu não...’ entendeu? ‘E se eu de repente parar, calar a boca e esquecer de tudo e
não fazer nada, o que é que vai acontecer?’.

***

Bárbara (35 anos)

⎯ É... como você descreve o que acontece quando você tá em cena?


⎯ Como?

296
⎯ Quando você tá em cena é... como você descreveria assim... o que acontece? O que
você sente, o que você pensa?
⎯ Eu fico sempre muito nervosa. Assim, quando é um trabalho ‘ah vou lá fazer um dia ou
alguma estreia’, daí eu fico muito assim, nervosa. Então, o que eu tento fazer? Usar isso
a favor e eu com a respiração acalmar. Mas, eu sinto assim, parece que um turbilhão de
coisas. Se tu vai fazer um personagem digamos que nem eu fiz da novela que te contei...
⎯ Hã?
⎯ Já tava, digamos, lá na quarta tu já, parece que já tá mais... não sei, que já tá mais dentro,
acho que tu não fica tão nervosa. Mas eu acho que o nervosismo sempre (respiração
profunda)...
⎯ Ahã.
⎯ Dá um frio na barriga, dá vontade de fazer xixi antes, tipo...
⎯ Ahã (risos).
⎯ Enfim, só que daí é, é aquela sensação também “Caraca tô, tô na emoção”. Tu, tu sente,
né? Quando tá fazendo super bem e quando também tu não tá, “Puta, que merda” tipo.
Então a sensação é sempre de euforia, eu acho.
⎯ Entendi e como você é vê que funciona o seu pensamento, assim, a sua mente? Com
relação a personagem e ao, e a você e...
⎯ Eu não busco tipo, como muitas pessoas, né? Já posso, claro ter feito, enfim, buscar
coisas que tu já viveu e pra, pra passar na hora, pra ter a mesma sensação. Eu acho que
isso serve sim, né? Como o ator é que nem o vinho, quanto mais coisas tu já passou, tu
identifica, tu sabe como fazer. Mas eu acho que tu consegue tudo através de experiências
e não relembrando os fatos e colocando ali na, imagina, eu vou matar minha mãe 100
vezes porque minha mãe morreu na cena. Então, acho que é pela história, pela história
da personagem. A personagem tem aquela história. Como que uma perso... como que
eu me coloco então no lugar, como que eu ficaria se eu tivesse vivido isso?
⎯ Ahã.
⎯ “Ah eu teria esses sentimentos, isso, aquilo, aquilo outro”. Então faço um, um, um traço,
o que que eu, quais os sentimentos que a personagem, né, vai ter e procuro sentir em
mim e na própria respiração mesmo. Tipo, todo mundo fala “Ah, tu consegue chorar
muito fácil”, mas é a respiração. Eu sei como, como é, como o corpo dentro da gente
funciona quando tu, tu vai chorar e às vezes tu não quer chorar... Daí tu vai guardando,
guardando e tu começa a chorar.
⎯ Ahã.
⎯ Então, eu acho que é muito respiração. Tu entender como tu funciona: a euforia, a
alegria intensa, então acho que é tudo...
⎯ Ahã, você pelo registro orgânico que você tem você acessa aquela, aquele resultado é
isso?
⎯ É um, é porque tu imagina, eu vou fazer uma personagem não sei quantos capítulos em
uma novela e a personagem é muito sofrida, muito isso. Se eu for usar... eu acredito, né,
na física quântica. Então, como que vou usar isso, eu vou, eu vou me botar pra baixo,
me boicotar com... na minha vida. Entendeu? E eu não quero isso, então ou fazer, claro
o trabalho de descons... né? Desconstrução de tudo, mas que é também aí outro caminho,
mas não é o que eu uso muito.

***

Marcos (68 anos)

297
⎯ Como você descreve o que acontece com você no momento da cena?
⎯ (Pausa). Hã. (riso). Eu diria que é melhor que droga. (riso). Mas... hoje eu não sei, não
sei mais de droga, não sei mais. Então, eu não posso mais fazer essa comparação porque
eu perdi o contato com...
⎯ (riso)
⎯ Mas, é uma... a experiência cênica, na verdade, é uma coisa... peculiar. Porque é uma
coisa que as pessoas dizem “Ah, todo mundo é ator, todo mundo tem que agir, a gente
é tudo ator, representa, todo mundo representa na vida”. Isso não é verdade. Isso não é
verdade. As pessoas podem... mentir ou dissimular na vida, mas isso não é a mesma
coisa de um ator em cena representando. Porque se eu dissimulo ou se eu minto na vida,
eu estou fazendo isso por uma necessidade minha. Quer dizer, sou eu. Quando você
entra em cena você começa a agir em prol de uma personalidade que não é você. Que
isso é totalmente diferente. Totalmente diferente. Não, não, não... não há comparação.
Hã... então... o ator em cena ele está funcionando em 2 níveis diferentes, ele é o ator e
ele é personagem. E não é que parte dele é a... o ator e parte dele é a personagem. A
personagem é um ser humano completo, e o ator é um ser humano completo, então essa
dupla vivência é uma experiência que só tem em cena. Só, só o ator em cena tem essa
experiência! Que você pode estar, por exemplo, sofrendo enquanto personagem e
celebrando enquanto ator. O ator está dizendo “Opa, eu tô conseguindo né?”. Essa dupla
vivência é... é uma... é uma droga! (riso).
⎯ (riso).
⎯ Eu sempre antes de entrar em cena... faz tanto tempo que eu não faço teatro, eu tava
num estado de “me segura, me segura”. Porque eu tava... querendo... pular pro palco.
Era... era uma coisa especial.
⎯ Ahã. Em termos, assim, do seu pensamento. Assim, como ele funciona ali?
⎯ (Pausa) Pensamento do ator?
⎯ É, essa pergunta, assim, essas duas... os dois pensamentos na verdade.
⎯ Você... você pode pensar duas coisas ao mesmo tempo, sentir duas coisas ao mesmo
tempo. (Pausa). São dois fluxos de vidas paralelos. E pra quem não experimentou, é
muito difícil eu explicar. Mas pra quem experimentou, você “Ah é, é verdade!”. Quando
você fez aquela peça, né? Por mais que você esteja envolvida na personagem, você não
perde a consciência que... que tá aqui, né, dizendo “Pô Angela, tá ótimo”. Ou você tem
uma... a pausa, né? E a personagem tá totalmente entregue nesse momento, e a Angela
tá aqui dizendo “Espere um pouco... (riso)... agora!”.

***

Débora (40 anos)

⎯ É quando você tá em cena é como você descreve o, o que acontece assim?


⎯ Em que sentido?
⎯ É com a sua, com a sua mente.
⎯ Ah, muito bem. Olha Angela, eu acho que o dom da arte é tão maravilhoso é tão divino
porque é... eu, eu costumo dizer que você interpretar, você estar emprestando seu corpo,
sua voz pra um personagem que não é você, que muitas vezes não tem absolutamente
nada haver com você, então eu acho que é tão difícil quanto o médico fazer uma cirurgia
ou uma operação, por exemplo. São pontos muito delicados, então assim é o mais bonito
da profissão o mais, o mais maravilhoso, assim, que eu acho na minha profissão como
298
atriz é aquele momento que você não pensa. Que quem tá pensando é sua personagem.
Não é você que pensa.
⎯ Ahã.
⎯ Claro que você tem que tá 100% atriz e 100% personagem ao mesmo tempo. Por quê?
Porque você tem que tá ligado em tudo, né? Você tem que tá super antenado com... com
a troca, você não pode tá fechado para o seu personagem e esquecer do seu parceiro ou
dos seus parceiros em cena, você tem que tá de ouvido bem aberto, tem que tá muito
flexível e como, como um lago, por exemplo. Um lago, se você joga uma pedrinha, ele
foi todo afetado. Ele se move inteiro. Então, o ator tem que tá afetado em cena se afetar
com os parceiros, com os outros personagens que tão ali, mas é muito lindo é muito
interessante quando você tem essa... essa percepção. Você tá ali, você sabe o que você
está fazendo porque é sua consciência é claro, você tá ali. Mas, ao mesmo tempo não é
você que tá pensando é a sua personagem que tá pensando.
⎯ Ahã.
⎯ Quando tem uma ação do... do parceiro do lado a sua personagem ela tem a reação da
personagem dela, não é a Andreia que tá tendo uma reação... É a personagem. Se a
personagem é uma barraqueira surgiu um pla... um caco. Caco pra quem não sabe é um,
alguma coisa que não está no texto né? Alguma... frase, alguma palavra que não está no
texto, então você tem que tá, a sua personagem ela reage conforme aquela situação,
porque foi um improviso, porque a gente no teatro principalmente no teatro a gente tem
que ter essa flexibilidade do improviso né?
⎯ Ahã.
⎯ Porque nenhum espetáculo é igual. Nunca. Uns são melhores, outros são piores em
alguns aspectos... Mas nunca é igual. A plateia muda também. Então, a gente troca
muito com a plateia então tem dias e dias. Então ,voltando a esse ponto o mais
interessante o mais lindo da nossa profissão é você poder emprestar o seu corpo, a sua
voz pra sua personagem e deixar ela pensar, e deixar ela agir.

***

Viviane (32 anos)

⎯ E quando você tá em cena...como você explica o que acontece naquele momento?


Assim... com a sua mente...
⎯ Tá. Então, quando eu tô em cena, o que eu explico é o seguinte, eu já treinei o emocional,
então eu paro o emocional. Eu já treinei o corpo físico, eu já paro o corpo físico. Porque
eu já sei exatamente as marcações, eu tô agindo com uma energia minha que tá além do
que eu tô pensando. Tá já ali, condicionada àquilo, ela foi treinada para aquilo. E é uma
energia a mais que vem na hora do ação, que é aquela energia que vc...tá valendo o
processo, que você se coloca mesmo de uma forma ainda mais forte. Que é quando a
gente fala que tá fazendo à vera mesmo.
⎯ Ahã.
⎯ É de verdade. E aí...você tem que esquecer também a sua mente. O texto, a marcação,
tudo isso você esquece. Você já treinou, você já sabe. Então o que você vai fazer ali, é
simplesmente vivenciar aquilo, vivenciar o momento presente. Sem pensar no passado,
no futuro, sem ficar raciocinando, é... se tá feio, se tá bonito, se tá indo bem, se o pessoal
tá gostando. Porque senão você caga com tudo. Você simplesmente vivencia aquilo. É
aquele personagem naquele momento!

***
299
Vinícius (30 anos)

⎯ Como você descreve o que acontece quando você está em cena? O que acontece com a
sua mente...
⎯ Entra em parafuso, né? (risos)
⎯ (risos)
⎯ Nem eu sei o que acontece, sinceramente.
⎯ Ahã.
⎯ Nossa é tão, é tão louco. É... eu acho que deve ser como um, um piloto de Fórmula 1
que deve tá no carro a 360 por hora, sabendo que a qualquer momento pode bater e
morrer. (Pausa) Eu acho que é isso... eu acho que é bem isso... não sei o que é que pode
acontecer... não sei mesmo. Tudo acontece muito rápido, sabe?
⎯ Sim.
⎯ É então... é... é uma coisa instantânea. Você entra e tipo assim... não pode mais voltar
atrás. Você bota o pé ali e não pode mais voltar atrás. Então... é esse poder que o teatro
tem, né, quando você sobe no palco. Eu acho que deve ser... esse poder também
quando... você tá fazendo alguma coisa... que... vai te dar acesso a outras pessoas. Você
vai sair do seu íntimo né? Hum... sair do íntimo é complicado.
⎯ Ahã.
⎯ Você se expor? Nossa! O artista plástico, ele pinta a obra. O cara vai na galeria, olha,
mas o, a... na maioria das vezes o pintor não tá ali. Mas eu tenho certeza que, ainda
assim, o pintor em casa, ele está... tímido, ele está... perplexo, está com receio, está com
medo do que tão dizendo dele lá.
⎯ Ahã. Porque é ele, né?
⎯ Porque é ele. É ele que tá representado ali. (pausa). Tudo bem, eu tenho que abafar meu
ego, lidar com ele pra ouvir as críticas. Mas é sim pessoal. Porque é você ali, não tem
como.
⎯ Me fala uma coisa... ainda nessa pergunta, você em cena pensa, tem um eixo de
pensamento ou mais de um? Por exemplo, você tá pensando como ator, assim na luz...
ou você pensa totalmente como personagem, como funciona isso?
⎯ Então, eu falo isso por experiência dos ensaios que eu tô tendo. Quando eu entro... eu
sei que tem o diretor... fazendo o papel... de maestro... me posicionando, pedindo pra eu
baixar a voz, pedindo pra eu aumentar o volume... isso... tá nítido aqui, eu tô vendo isso.
Não tem como eu não ver. Não tem como eu não ver também um expectador. O cara tá
me olhando, eu vejo também. Mas o meu olhar pra ele, pode ser um olhar... de distração,
pra ele não perceber que eu tô falando direto com ele... de acordo com a direção, isso
também, né? Que é o que a gente tá trabalhando, esse processo todo. Mas entrando bem
dentro da sua pergunta, olha é... é meio complicado, né? Porque... várias sensações que
você passa. Você num, num...
⎯ Ao mesmo tempo.
⎯ Ao mesmo tempo. É... sei lá... eu tô ali... dentro da história, contando como personagem,
usando as minhas emoções... mas ao mesmo tempo eu tô consciente do que tá
acontecendo ao meu redor. Então eu vivo nesses dois universos... que é.... super... louco.
Estar aqui contando a história, querendo ser... querendo não, fazendo de tudo pra ser
verdadeiro. E ao mesmo tempo... é o que eu te falei, você tá em exposição.
⎯ Ahã.
⎯ Eu sei que e sou um instrumento de exposição... estou ali pronto, pra todo mundo, ser
visto... e eu tenho que tomar consciência disso. E também consciência de que eu estou

300
ali como personagem, contando uma história... que isso tem que ser... a mais verdadeira
possível.

***

Levy (54 anos)

⎯ Aí, a segunda pergunta sobre esse... o processo, é o que acontece durante? Como que
você descreveria o que acontece com você em cena? E aí se você quiser falar também
da diferença, explorar um pouco mais isso, se há alguma diferença de estar em cena,
fazendo TV e fazendo teatro.
⎯ Bom, quando estou em cena é aquilo que eu te falei, tem um lado meu que ele é
absolutamente consciente em relação a tudo. E tem uma parcela, que é a minha parcela
da criação, da fantasia. E tem uma terceira, que é uma parcela inconsciente que a gente
jamais vai explicar. Que te leva depois a ver uma cena sua e você falar “caramba”! Essa
é bem pequenininha... “aquilo ali eu não tinha pensado em fazer e aconteceu na cena”.
⎯ Hã.
⎯ É uma parcela quase que só do personagem.
⎯ Olha só.
⎯ Né? Por exemplo, eu fiz uma novela (pausa) que eu fui ver isso depois, que eu não
assisto... assim, muito né? É... quando eu fui ver depois... as cenas. O cara parava com
as duas mãos, uma aqui e do outro lado. Aqui nesse bolso. Eu nunca parei assim, eu
nunca saquei que parava assim em cena. E isso era uma coisa do cara. Que aí você fala
“Mas, pô, de onde veio?”. Não tenho a menor ideia.
⎯ Ahã.
⎯ Wilker uma vez contou uma coisa, que ele chegou cedo no teatro, aí, era um espetáculo
que ele tinha que sair correndo e pular uma coisa, assim. Aí ele olhou aquilo e falou
“Pô, aquilo é alto demais, como eu pulo aquilo toda noite?”. Aí foi contar quantos passos
ele dava, como é que era o impulso. Nunca mais conseguiu!
⎯ Nossa.
⎯ Aí entra no aspecto na magia da coisa. Que aí já... é uma fraçãozinha, é uma bobagem,
mas que está ali. Então, quando eu tô em cena, tem o meu... a minha consciência
absoluta e tem o meu lado, que é o lado lúdico, eu saber que to brincando de mentirinha,
que aí que está meu prazer, minha diversão. E quando você tem o jogo, onde você
consegue com o teu colega o contracenar, que cada vez é mais raro, aí é um prazer...
que jamais você vai conseguir traduzir. Não há como traduzir. Porque aquele cara tá na
mesma frequência que você, nesse hemisfério da fantasia, do brincar e da mentirinha,
né? Agora, consciência absoluta. E aí tá... aí tá talvez a coisa mais delicada da
interpretação. O ator sabe o texto, o ator sabe o que vai acontecer, as emoções, as
quebradas, o personagem não! Então, tem o meu lado consciente que vai conduzir o
ator, mas tem o outro lado da fantasia que é só do personagem. Então, eu tenho que criar
com a minha experiência, com minha técnica, com toda minha consciência que isso aqui
aconteça (apontando para o outro lado, o lado do personagem que não sabe). Então, um
exemplo simples, o que me dá a sensação que o personagem pensa na hora? O ator sabe,
mas o personagem vai pensar na hora. O que é que me dá isso? Como eu construo isso?
Nas pausas! Então, a minha consciência faz com o que eu trabalhe as pausas, para que
o personagem pareça que sentiu e pensou na hora, né? Então... agora, não é uma coisa
que vai acontecendo assim, e você pro... já tá em mim essa consciência, esse
conhecimento que eu disponho pra que ele... pra que ele pareça estar vivendo aquilo
tudo naquele momento.
301
⎯ Ahã. Sim!
⎯ É absolutamente maluco tudo isso.
⎯ Então, isso que eu, que eu... assim, a primeira vez que eu senti isso, eu fiquei muito...
“Nossa!”. É como se fossem dois pensamentos, assim, um na luz, não sei o quê e o
outro... é, aquilo que acontece quando alguém está falando com você, e você pensa
sobre o que a pessoa está falando, então o outro personagem falava e aquilo gerando
algo em mim.
⎯ É essa divisão.
⎯ E a hora que acabou, eu “Uau!”. E aí eu pensei “Como será que é isso pras outras
pessoas?
⎯ É quase... (riso). Mas a sensação é exatamente essa que você falou “Uau!”. Eu, por
exemplo, sempre pensei numa coisa, que eu ia achar genial fazer, era fazer um
espetáculo monitorado. Pra ver como é que o cérebro funciona assim.
⎯ Ahã.
⎯ Porque tem essa divisão. É concreta essa divisão! Eu tô no palco, eu sei que tenho... a
minha marca é tal, eu tenho que cair na luz x, eu tenho que dizer aquele texto. Mas tem
um lado que acompanha que é o personagem, né? E é essa fraçãozinha que a gente não
domina, né? Então, quando eu tô em cena, isso tudo funciona em mim muito...
intensamente, muito claramente. É... e quando é... está tão dominado a parte mecânica,
que o outro lado pode se sobressair, o lúdico pode sobressair, aí é indescritível!
⎯ É (riso).
⎯ Aí...
⎯ Então!
⎯ Nenhuma droga vai chegar próxima disso!
⎯ Nada!
⎯ Nenhum... não dá pra traduzir!
⎯ É.
⎯ É. É fato! É aquilo! E quando você estabelece o contracenar... como é que funciona pra
mim? Eu falo “Eu quero que o cara entre a 150”. Porque aí... eu não quero que ele entre
a 60. Eu quero que ele venha com tudo. E esse tudo é pingue pongue. Eu vou mandar,
aí ele vai receber, vai rebater e de acordo com que ele rebate eu pego aqui e mando pra
ele, né? Aí quando tem isso pápápá... boom. Hoje, eu fiz duas cenas assim. Aí você fala
“Opa, aí aconteceu!”. Aí quando acontece você fala “Bacana...”.
⎯ Ahã. E que não é sempre né?
⎯ Não! Não é sempre.
⎯ Mas quando acontece...
⎯ Não é sempre e... é, é, é... pela forma de fazer hoje, cada vez é mais raro você estabelecer
o contracenar. Cada vez... é tudo picotado. É tudo... onde o que prevalece é o quadro, o
enquadramento, ou... a câmera. Então, você foi perdendo o espaço para a interpretação.
Isso a gente está falando da televisão, basicamente. No cinema ainda é pior, porque é
muito mais fragmentado, né? E o teatro foi perdendo isso, em função de... é... (suspiro)
desse tônus teatral não existir mais. É só um dizer texto, né? Então, assim, eu me sinto
assim, quando eu tô em cena: o consciente, quando eu consigo o lúdico vir à tona é
deslumbrante.

***

302
A ganância de viver vidas que não são suas. Alguém que quer viver a sua própria e a de
outros. Alguém que não se contenta com uma existência, com um tempo-espaço. Alguém que
por alguns momentos da vida foi Cleópatra, foi Medéia, foi uma princesa, uma presidiaria, ou
uma dona de casa viúva no Brasil dos anos 50. Edgar vê isso como ganância. Ele se vê como
um ganancioso. Aos 60 anos Edgar tem uma vitalidade que se disser que tem quarenta e poucos,
com certeza acreditariam. Os músculos firmes, a postura ereta, um jeito acelerado de falar, uma
voz potente e marcante e um olhar profundo. Seus olhos azuis estão sempre parados nos olhos
do interlocutor. A vontade de viver duplamente o moveu para que tivesse esse corpo, esse tônus,
essa presença e essa atenção. Mecanismos através dos quais se move nos mundos.

Viver duplamente é a grande “loucura” da qual se fala nesse item. Marcos alerta que
não se trata de mentir ou figir. Segundo ele, quando alguém finge, não é outra pessoa, é apenas
ele fingindo. Mas atuar é de outra ordem, de outra natureza. Para ele e muitos outros seres dessa
narrativa, atuar é sinônimo de verdade. É a sua verdade, a verdade do seu corpo nu, a verdade
do seu olhar de amor, a verdade do seu choro, tudo isso à disposição do trabalho de estar no
lugar de outro ser. Eu só sei chorar de um jeito. Por mais que entenda sobre estar num lugar que
não é meu, aquele só pode ser o meu choro. É aí que a mágica, a divindade, o êxtase, o prazer,
a droga e todas as nomeações ou metáforas que recorramos para descrever esse momento
acontecem. “Sofrer enquanto personagem e celebrar enquanto ator” é o que Marcos nos conta.
Viver uma tristeza gigante na cena e ao mesmo tempo estar gritando internamente de felicidade
por executar uma boa cena. Nas palavras de Marcos “difícil explicar pra quem não
experimentou”.

Dentre todas as falas apresentadas é possível perceber que há diferenças na compreensão


sobre o trabalho de atuar. Débora diz que há um momento em que “quem pensa é ela” (a
personagem), mas depois pondera que de algum modo, ela própria (a atriz) está sempre ali. Já
Viviane diz que tem como esquecer de tudo em volta e só vivenciar. Enquanto isso, a maioria
dos mortais luta para não perder o foco pensando na conta para pagar amanhã. Marina usa a
concentração no agir. Concentra – ação: essa é sua via de permanecer na personagem. Seu
pensamento fica repetindo ordens para que ela volte a pensar como personagem. Marcelo diz
que essa fração de segundo em que o pensamento do personagem sai da sua cabeça, o público
já viu que é você quem está ali e que está falso, porque seu olhar revela.

303
“Corra!”16 Um filme lançado em 2017 com esse nome mostrava uma família que
hipnotizava pessoas a fim de realizarem um procedimento cirúrgico em que poderiam transferir
sua mente para o corpo do hipnotizado. A avó da família vivia no corpo de uma mulher de meia
idade, assim como o avô. A fórmula de imortalidade da família era essa. A trama de sequestro
de pessoas para essa finalidade foi descoberta por uma nova vítima que era fotografa. Duas
ferramentas lhe foram úteis, uma consciente e a outra acidental. A acidental foi o flash da
câmera que interrompia por instantes a hipnose e trazia do fundo do abismo da consciência ou
inconsciência (não saberia dizer) o ser adormecido/aprisionado que não controlava mais aquele
corpo. Aquela consciência que habitava antes aquele corpo ficava aprisionada em algum lugar
lá dentro, que não era a cabine de controle do ser, mas estava lá. A outra ferramenta de
investigação consciente era a observação do olhar. Como artista da imagem, o fotografo
percebia a qualidade do olhar daquelas pessoas hipnotizadas. Era como se o olhar fosse de uma
pessoa e o corpo de outra. E por vezes, algo no fundo daquele olhar queria sair. Sim, era um
filme de terror. Outros indícios menos contundentes também o fizeram suspeitar, por exemplo,
como o negro cumprimentava como branco? Essa era a parte engraçada do filme, que explorava
as diferenças culturais entre negros e brancos nos EUA. Mas, voltando ao olhar é interessante
pensar esse filme enquanto metáfora para a fala do Marcelo. No momento em que alguma
preocupação faz o ator sair do abismo no qual se confinou para que o personagem existisse, seu
olhar é o primeiro a revelar quem está na cabine de comando.

Como outros compreendem, o manche do avião é dividido entre o “eu que sou eu” e o
“eu que sou ele”. Os dois fluxos se complementam. Um elemento que parece ser comum entre
diversas falas é que quanto mais se desenvolve a técnica, mais se tem domínio sobre esse
processo. Se Caio quer brincar, Eduardo quer ser tomado pelos Deuses e Ricardo quer se sentir
pleno é porque a natureza de explicação para o indizível se assenta no conjunto de significados
que cada um tem à sua disposição. Os currículos escolares não ensinam sobre isso e talvez
devessem ensinar sobre como não dizê-lo. Se estamos no plano da “entidade”, como diz Sílvio,
nossa “mediunidade consciente” nos faz sermos inteiros ao simultaneamente termos o controle
e nos deixarmos ser canal. Numa mutação da dialética, manejamos o tempo para ser flor sem
negar a semente.

Sincronicamente e por uma busca interessada, durante a pesquisa de mestrado pesquisei


com indivíduos que tinham dúvidas sobre seu futuro profissional como atores. Ao fazerem um

16
O trecho a seguir contém spoiler.

304
curso, estavam pensando se aquele caminho valia a pena ser percorrido ou não. Já nessa
pesquisa de doutoramento, desistir dessa profissão já não era uma escolha para mim. Segui o
conselho da Arlete, verdadeiro nome da Fernanda Montenegro, e saí da profissão. Tentei ficar
longe. Fiquei triste, adoeci e voltei com a certeza de que não há vida sem isso pra mim. Esse
conselho a atriz nos deu na já mencionada aula inaugural do curso de artes cênicas. Para ela é
difícil tanto desempenhar a profissão quanto viver dela. Que se o indivíduo conseguir viver
sem, é melhor que vá. Se não conseguir, ela diz: “Seja bem-vindo. Você vai sofrer, mas você
também vai sentir muito mais prazer do que qualquer outra profissão nunca poderá dar”.

A busca por prazer enquanto profissão pode parecer o ápice do hedonismo. Mas há
atenuantes. Prazer é o nome que encontramos para essa sensação que ocorre no momento em
que a ficção realmente – a ambiguidade aqui é insolúvel – acontece. Como Levy diz “é quando
acontece!”. Não conseguimos explicar, traduzir ou nomear o que acontece, mas acontece. O
público, de modo diferente, também sente quando acontece. Então, para além da busca de
prazer, penso que trata-se de uma busca pelo sentido de si. Aquele momento em que sentimos
que a própria essência se realiza na sua máxima potência, em que o sentido de existir enquanto
humano se faz perceber. Para Marx o homem só realiza sua humanidade através do trabalho.

[...] na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se confirma, em


primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é sua vida
genérica operativa. Através dela a natureza aparece como sua obra e sua
efetividade (Wirklichkeit). O objeto do trabalho é portanto a objetivação da
vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na
consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente],
contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. (MARX.
2004. p.85)

O trabalho não estranhado e não alienado para Marx é o modo através do qual o homem
se reconhece único e ao mesmo tempo genérico – fazendo parte de uma humanidade. Essa
consciência de humanidade se dá na contemplação do homem diante do mundo criado por ele,
ou seja, diante do resultado do seu trabalho. A efetivação do ser no mundo material – o trabalho
– é a via de consciência de si que nos torna humanos. O trabalho do ator no teatro é efêmero,
como diz Levy “quem viu, viu”. Por outro lado, o dvd que Ricardo manejou durante a entrevista
ou as novelas que reprisam no “Viva”, ou no “Vale a pena ver de novo” deixam os atores
contentes pelo material persistente ao tempo. Mas falando sobre o exato momento em que o
trabalho acontece, dependendo do modo de produção, do ritmo e outros elementos
apresentados, ele pode não acontecer. Já vi atores empregados estarem tristes porque nunca
mais tinha acontecido. Esse acontecimento não é apenas o prazer em si. O prazer é

305
consequência do instante em que o ser percebe a efetivação de si na matéria do seu trabalho,
que nesse caso, é ele mesmo. Essa é a droga que os entrevistados falam. Esse é o sentido de si
no seu grau mais profundo. O reconhecimento de que sou humano porque me efetivo na matéria
e posso contemplar a mim através do fruto desse trabalho, e que, contemplando a mim,
reconheço-me enquanto único, o único ser que faz aquilo daquele modo, porque ali está a minha
essência. A droga que move esse trabalho é um profundo sentido de si.

306
Considerações Finais

"Em perigo, a holotúria se divide em duas:


com uma metade se entrega à voracidade do mundo,
com a outra foge.

Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,


em multa e prêmio, no que foi e no que será.

No meio do corpo da holotúria se abre um abismo


com duas margens subitamente estranhas.

Em uma margem a morte, na outra a vida.


Aqui o desespero, lá o alento

Se existe uma balança, os pratos não oscilam.


Se existe justiça, é esta.

Morrer só o necessário, sem exceder a medida.


Regenerar quanto for preciso da parte que restou

Também nós, é verdade, sabemos nos dividir.


Mas somente em corpo e sussurro interrompido.
Em corpo e poesia.

De um lado a garganta, do outro o riso,


Leve, logo sufocado.

Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar,


Três palavrinhas apenas como três penas em voo.

O abismo não nos divide.


O abismo nos circunda."

(Autonomia, de Wislawa Szymborska, 2016)

Assim que iniciei o curso de doutorado as pessoas – antropólogos e atores – costumavam


me perguntar se eu gostava mais de antropologia ou mais de atuar. Eu tentava explicar que é
muito bom estar com alguém que se gosta e que a antropologia era assim pra mim. Uma
companhia agradável para se estar, a melhor companhia que eu já conheci. Sincera, polida,
culta. Ela me ensinava um jeito de estar comigo mesma que cavava fundo sobre os modos de
pensar. Ao seu lado eu me sentia livre, porque algo em mim sempre dizia que um tipo de
escravidão contemporânea se desenvolve através do pensamento, através das ideias e valores
que acreditamos, sem saber que acreditamos. Sentia que para honrar meus ancestrais que foram
escravizados – aí em termos concretos – nesse país, eu tinha que me libertar pelo pensar. O que

307
é irônico se observarmos que o lugar onde fui buscar essa minha liberdade é no palácio da
família imperial brasileira. Todos os dias, ao buscar minha liberdade de pensar, olhava a figura
de D Pedro II e da Princesa Isabel (que ficam na entrada do museu), entrava naqueles
“aposentos” e pensava a frase que circula no movimento negro de que a senzala estava
invadindo a casa grande. Me sentia uma espécie de vingadora do bem, que só estava ali de
passagem pra conseguir sua alforria.

Sentia prazer com o pensar, principalmente naqueles momentos em que uma grande
síntese acontece. “Nossa, mais um elemento de liberdade”, eu pensava. Aprender a ler através
das camadas sobre o que se diz e como se diz foi um grande aprendizado desde o mestrado. Um
exercício constante no Museu. Não bastava saber o que o autor dizia. Era preciso saber como
ele engendrava aquele pensamento. Quais os conceitos importantes que articulavam aquele
pensar? Qual a relação entre aquele conjunto de conceitos e outras epistemologias? Que
contexto social e que experiências biográficas possibilitavam aquele modo de pensar existir?
Qual a relação entre aquele pensamento e os que vieram antes e os que vieram depois? Qual a
relação entre o método de pesquisa e os conceitos elaborados? Saber o que o texto fala era
muito pouco. Dava trabalho ler um texto para as aulas do museu, mas tem treinamentos que
não basta compreender como é para ser feito. Precisa fazer.

Então, eu explicava para essas pessoas que me perguntavam sobre o que naquele
momento eu compreendia enquanto carreiras distintas: “Olha, a antropologia pra mim é como
um beijo na boca de quem se ama. Um beijo delicado e suave, com carinho e afeto”. O
interlocutor usualmente sorria com essa imagem e dizia: “Ah, então você quer continuar na
carreira acadêmica?”. Eu continuava dizendo: “É, mas estar em cena pra mim é aquele orgasmo
que você só acredita que existe porque acabou de sentir. Que se alguém te contasse, você não
acreditaria que um corpo humano pudesse sentir tanto prazer. Não existem palavras pra
descrever”. Então, o interlocutor concluía: “É, dificilmente você vai deixar de atuar”. Parei de
explicar por essas imagens porque alguns interlocutores se chocavam, já que no ambiente
acadêmico não é usual se recorrer à menções escatológicas ou sexuais, com a facilidade que
ocorre no meio teatral.

Hoje compreendo que a busca por uma boa companhia e por sentir um prazer
indescritível não precisam ser excludentes, e essa tese é prova disso. Esse prazer não precisa
ser cego. A liberdade que eu buscava quando quis ingressar no mestrado do museu, pode libertar
a minha arte de ideias e valores dos quais eu não tinha consciência. E sabendo que esse é um
longo caminho, inauguro a pedra fundadora com essa pesquisa, com a expectativa de continuar

308
pesquisando tendo o palco como simultaneamente campo e academia. Durante o tempo dessa
pesquisa vivenciei proximidades e afastamentos com as duas áreas, como se estivessem
polarizadas. Tentei deixar a arte, como quem deixa um amor partir por não ver condições de
partir com ele. As condições materiais de existência me prendiam àquele chão enquanto a arte
seguia no próximo trem.

Nesse instante meu corpo começou a definhar, as forças se esvaíram, a respiração


mesmo profunda não dava conta de encher os pulmões, o corpo pesado já se recusava a levantar,
me dissolvia em lágrimas, lamentos, revolta e arrependimento. Olhava em volta procurando
alguém que me ajudasse, um emprego de professora que me desse a certeza de que havia feito
a escolha certa em deixar a arte partir. Meu companheiro naquele momento, também ator,
estava desempregado e o aluguel já começava a atrasar. Até que uma coincidência entre uma
transcrição de entrevista dessa pesquisa e o suicídio de uma ex-colega de turma me deixaram
assustada. Como já relatei na tese, esse foi o momento de sair correndo atrás do trem para
reencontrar a arte, não importa em qual estação ela estivesse. Criei a ideia de peça, escrevi um
texto, reuni três dançarinas – que até então eu não conhecia -, um ator e um compositor musical
e compusemos a performance. Apresentamos a peça uma única vez, para 250 pessoas. Naquele
momento eu soube a decisão, nunca mais deixaria que ela partisse sem mim. Por outro lado, foi
só a partir dessa resolução que consegui iniciar a escrita da tese. A frustração de lidar com o
material da pesquisa me impedia de elaborar qualquer reflexão sobre ele.

Estar decidida implica em ocupar um lugar, em saber sua posição. Como é possível
analisar um material de pesquisa quando não se sabe “de onde” fala? Estar decidida foi um
passo importante, nesse sentido, para a fase de análise do material. Eugênio Barba utiliza a ideia
de corpo decidido para expressar o objetivo do trabalho sobre si que o ator deve desenvolver.
Barba indica também que há aspectos desse corpo decidido que não é possível ser enunciado.
Sobre isso, segue uma passagem do livro A canoa de papel:
“A verdadeira expressão” – disse Grotowski em uma conferência da ISTA de
Bonn, em 1980 – “é a da árvore”. E explicava: “Se um ator quer expressar-se,
encontra-se então dividido; há uma parte que quer e uma que expressa; uma
parte que ordena e a outra que executa a ordem”.
Em muitas línguas europeias, existe a expressão que se poderia escolher para
condensar o que é essencial para a vida do ator. É uma expressão gramatical
paradoxal, na qual uma forma passiva chega a assumir um significado ativo e
na qual a indicação de uma enérgica disponibilidade para a ação se mostra
como que velada por uma forma de passividade. Não é uma expressão
ambígua, mas hermafrodita, que soma em si ação e paixão e que, apesar de
rara, é uma expressão da linguagem comum. Diz-se, efetivamente, “estar
decidido”, “être décidé”, “to be decided”. Não quer dizer que algo ou alguém
nos decida, que nos submetamos a uma decisão ou que sejamos objetos dela.

309
Nem sequer quer dizer que estejamos decidindo, que sejamos nós os que
conduzem a ação de decidir.
Entre essas duas condições opostas corre uma veia de vida que a língua parece
não poder expressar e sobre a qual revoa com imagens. Nenhuma explicação,
exceto a experiência direta, mostra o que quer dizer “estar decidido”. Para
explica-lo em palavras, deveremos recorrer a inumeráveis associações de
ideias, a exemplos, à construção de situações artificiais. Entretanto, cada um
de nós acredita saber muito bem o que quer dizer a expressão “estar decidido”.
Todas as imagens complexas, as séries de regras obscuras que se entrelaçam
em torno do ator, a elaboração de preceitos artísticos e suas estéticas
sofisticadas são cambalhotas e acrobacias para indicar experiências. Tentar
explicar a experiência do ator significa criar artificialmente com uma
complicada estratégia, as condições nas quais essa experiência pode
reproduzir-se. (BARBA. 2009. p 60-1).

Eugênio Barba, através da discussão sobre o que representa “estar decidido” para o ator
nos apresenta elementos importantes para pensar as possibilidades de comunicar através da
linguagem falada ou escrita a arte do ator. Nem sempre a confusão, a contradição ou o não saber
nomear dizem respeito a uma falta de reflexividade do próprio ofício e da própria relação que
o indivíduo estabelece com o mundo. Por vezes, trata-se de uma impossibilidade mesmo de
nomear a experiência. Nesse sentido, para algumas análises tentamos diferenciar a natureza das
perguntas. Dentro desse intuito dividimos a tese em duas partes, a primeira que trata de
elementos mais ligados à ordem do dizível, as relações sociais de trabalho; e a segunda parte
que trata de temas mais ligados ao indizível, que são a experiência e o fazer. Há elementos
dessa arte que são inteligíveis a partir de “veias de vida” que conseguimos ver e sentir, mas que
não conseguimos dizer ou escrever. Por isso também o formato de apresentação dos dados na
segunda parte é diferente do formato da primeira. Enquanto tentam dizer o indizível, os atores
desenvolviam raciocínios extensos que não poderiam ser quebrados em uma frase. Essa
especificidade sobre os elementos não enunciáveis ou não descritíveis da profissão é uma das
potencias e ao mesmo tempo uma das limitações de um trabalho acadêmico sobre a arte do ator.
Há caminhos que só podem ser tangenciados pela linguagem falada e escrita e esse é um deles.
Talvez por isso, simultaneamente à escrita da tese fiz investigações para uma nova peça, para
dizer fazendo o que não consegui aqui dizer escrevendo.

Enquanto considerações finais, considero importante ressaltar que manejar


antropologicamente dados sobre a profissão que desempenho, possibilitou-me elaborações que
antes da pesquisa não faziam nem parte do campo de possibilidades do meu modo de pensar a
profissão. Nesse sentido, cabe percorrer um pouco mais detidamente esses pontos. Nas cenas
ficcionalizadas da parte I temos uma qualidade diferenciada de dado, que parte da observação
direta da pesquisadora. No capítulo 1 a compreensão de que algo que inicialmente eu tomava

310
enquanto desemprego, outros viam como liberdade foi inicialmente um choque. Aos poucos a
elaboração desse elemento me fez enxergar toda uma discussão sobre sazonalidade que existe
no meio e que antes desse material, “eu não tinha olhos para ver”. Além disso, ao mapear o
campo de possibilidades que os atores enxergam para si diante da instabilidade (categoria
nativa que concentrou os esforços analíticos, que de outro modo, também poderiam ser
desmembrados nas ideias de escassez ou de sazonalidade) consegui enxergar certos padrões
que transcendiam as narrativas sobre si mesmos ou sobre conhecidos, contadas durante as
entrevistas. De modo geral, discussões sobre moralidades, ethos e visão de mundo atravessam
diferentes temas que compõe essa pesquisa sobre trabalho. Em que medida um ator se entende
como “se vender”, ou “se prostituir”, usar a sua arte para um trabalho publicitário? Essa é uma
das questões que o capítulo 1, na discussão sobre diversificação se dedica e que toca em
compreensões sobre moralidades. Em que medida é possível conciliar o contexto de
instabilidade enquanto artista com a vontade de constituir família, ou como arrumar um plano
B que não atrapalhe o plano A, são outras delas.

No capítulo 2 concluímos que o ator, como um trabalhador autônomo (na maioria das
vezes), deve atentar-se para elementos como remuneração e segurança no trabalho por ele
mesmo. São itens normalmente não ensinados nas escolas e que, se não aprendidos rapidamente
pelos atores na sua vida profissional, podem “custar caro”. As discussões sobre “amor e
trabalho” e sobre a qualidade dos laços interpessoais nessas relações de trabalho eram temas
que me inquietavam desde que iniciei os estudos de artes cênicas. Por que meu trabalho não era
visto como trabalho e por que existiam “panelinhas”? Daí, a trajetória como atriz já possibilitou
uma abrangência maios da visão sobre esses aspectos vistos inicialmente de forma superficial.
Assim, as perguntas já continham essas elaborações anteriores e puderam ser aprofundadas ou
confrontadas a partir das respostas dos entrevistados. O final dessa primeira parte já aponta para
a segunda ao considerar que contar com boas relações de trabalho para o ator, pode ser
considerado um requisito de condições de trabalho dada a especificidade dos afetos mobilizados
para se realizar uma cena. “Ser profissional nas boas e nas más energias” conecta a discussão
sobre como o ator enxerga o meio – desenvolvida na parte I -, à discussão sobre como enxerga
a si mesmo enquanto trabalhador – desenvolvida na parte II.

A parte 2 investiga o modo como esses profissionais compreendem o próprio trabalho.


No capítulo 3, a análise do lugar que o conceito de experiência tem no campo das artes cênicas,
foi atravessada por uma discussão sobre o tipo de escrita mais comumente utilizado na
formação de atores. Nesse sentido, foi explorada a correspondência entre os elementos da

311
escrita que transmite um saber e do modo como a profissão é ensinada. Por fim, nesse capítulo,
através de um modo distinto da parte I de expor os dados das entrevistas, apresentando de forma
mais extensa e privilegiando a estrutura de pensamento do ator entrevistado, refletimos sobre
os atores serem sujeito, objeto e ferramenta de objetivação da sua própria arte. Como cada ator
formula essa operação de executar um trabalho que é sobre si e através de si é a principal
reflexão desse último item do capítulo 3.

Por fim, no capítulo 4 investigamos as formulações que os atores entrevistados têm


sobre seus modos ou métodos de trabalho, desenvolvendo uma discussão sobre a própria ideia
de método e, em seguida, sobre a apropriação de ensinamentos transmitidos para o
desenvolvimento do próprio fazer. No item 4.2 investigamos a “Poética do Ser”, através dos
aspectos mais indizíveis da profissão, que são respondidos a partir das perguntas sobre como
desligar e sobre o que acontece com você no momento da cena? Essa última pergunta foi a
porta de entrada para o ambiente mais poético da pesquisa. Já que não se pode descrever
exatamente o que nos acontece em cena, cada entrevistado produzia caminhos de aproximações
para comunicar com o intuito de responder. Os caminhos poéticos dessas respostas levaram-
me a lidar com o material também de forma diferente. Me permiti poetizar (poesia com aroma
antropológico, se me permitem a heresia) sobre suas respostas. Esse final – que poderia bem
ser um apêndice, mas apêndices não servem pra nada, já esses dados são a pérola dessa pesquisa
– propus uma curta elaboração não tão científica de explicações que no fundo não visavam
explicar. Descrições do indescritível é a rica poética deixada nesse item da tese através da
contribuição desses colaboradores. Que o êxtase de efetivar sua humanidade ao enxergar-se no
fruto do próprio trabalho (que nesse caso ocorre no tempo-espaço do próprio ser do ator) tenha
cada vez mais lugar em nosso meio, minando as formas estranhadas. Mesmo enquanto
espasmos esporádicos, saber que tal forma de relação consigo e com o mundo existe – e sabe-
la como um raio de sapiência que atravessa seu ser – contém em si o embrião da reapropriação
de si. Se a antropologia me apresentou a liberdade do pensar, a arte ensinou-me, através
daqueles instantes em que “realmente acontece”, a liberdade de existir.

312
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