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Como se produz um jurista?

O modelo
japonês (parte 54)
DIREITO COMPARADO

Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 54)

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8 de fevereiro de 2017, 18h06

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. A ilha do sol nascente

Quando Portugal iniciou seu século de ouro em meados do século XV, com as grandes navegações, a Índia e
o extremo Oriente foram atingidos por uma tempestade. Nada mais foi igual para milhões de habitantes
daqueles territórios longínquos e que negociavam com o Ocidente por intermédios dos chineses e dos
otomanos. O acesso direto à Rota das Índias trouxe para os portugueses uma riqueza imensa, que, como
Luís Vaz de Camões advertira n’Os Lusíadas, pela boca do velho do Restelo, traria a decadência e a
corrupção, o que realmente ocorreu no final do século XVI e início do século XVII. Na sequência dos
portugueses e de seus intrépidos navegadores, como Vasco da Gama, Fernão de Magalhães e Bartolomeu
Dias, os espanhóis e os holandeses também se interessaram pela conquista do Oriente, disputando com os
pioneiros lusitanos aqueles territórios fantásticos.

Para além da Índia, a grande conquista dos portugueses, que viria a ser dividida ou perdida para
holandeses, franceses e ingleses nos séculos seguintes, havia arquipélagos de maior ou menor extensão.
Ceilão (hoje Sri Lanka), Formosa, Java (depois a sede da Índias Orientais Holandesas), Cingapura e outras
ilhas tornaram-se objeto de conquista, navegação e comércio naqueles anos de “descoberta” da Ásia. Um
desses arquipélagos, o mais extremo de todos, é denominado de Nippon-koku, ou terra do sol nascente.

Os primeiros europeus a aportarem nas ilhas de Nippon-koku foram os portugueses, com seus marujos e
padres. Não é sem causa que, ao menos na maior parte dos idiomas ocidentais, a palavra designativa desse
arquipélago é derivada da transliteração feita por jesuítas portugueses, Japão. O ano de 1543 foi um marco
na história japonesa, pois foi quando se deu o primeiro contato com europeus, dois náufragos portugueses
na costa de Tanegashima, no sul do país. Um senhor feudal adquiriu dois mosquetões trazidos pelos
marinheiros e conseguiu reproduzi-los em oficinas de armeiros locais. Em um prenúncio muito curioso do
que ocorreria na segunda metade do século XX com os produtos eletrônicos ocidentais no Japão, essa
apropriação de tecnologia alterou, em 50 anos, o curso da história japonesa. As armas de fogo alteraram o
equilíbrio de forças e o modo de fazer a guerra nas ilhas[1].

Além do fogo, os ocidentais, em particular uma ordem missionária multinacional fundada por um nobre e
militar espanhol (Ignacio de Loyola), trouxeram a cruz para o Japão do século XVI. Os soldados de Cristo,
como se tornaram conhecidos em todo o mundo os membros da Companhia de Jesus, discípulos de Ignacio
de Loyola, posteriormente canonizado como Santo Inácio de Loiola, engajaram-se em uma campanha de
conversão dos japoneses. Os métodos empregados na América luso-espanhola foram reproduzidos com
sucesso no Japão: aprendizado da língua local, publicação de léxicos e dicionários, foco no ensino de
crianças, uso da música e da pintura para evangelizar, aproximação das elites, disciplina e coragem ante as
ameaças de perseguição. Ao lado dos jesuítas estavam os comerciantes, que desenvolveram um fluxo
lucrativo de trocas com os japoneses, mas sem necessidade de entrepostos militares como se deu nas
outras ilhas da Ásia.

Em 1549, Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia de Jesus, aristocrata navarro que se tornou
um soldado de Cristo, chegou ao Japão. Ele aprendeu o idioma local, adotou os costumes alimentares, a
etiqueta de saudação e de reverência japoneses e se tornou uma pessoa respeitada nas ilhas, tendo
liderado a fundação das primeiras igrejas no país. Seu trabalho foi tão frutífero quanto perigoso para os
propósitos católicos. A rapidez da propagação dos Evangelhos, que conquistou os pobres e parte da
pequena nobreza, incomodou a alta aristocracia e deu início à perseguição e ao martírio de milhares de
cristãos japoneses e missionários europeus.

Diversas razões, que não cabem nesta coluna, podem explicar o porquê de o Japão ter escapado ao
processo de colonização e imperialismo europeu na Ásia nos séculos XVI-XIX. Pouca atratividade de seus
recursos naturais, baixa densidade do comércio (apesar da grande população) e a existência de áreas
vizinhas mais interessantes (como a China, a Índia e as demais ilhas da região dos oceanos Índico e Pacífico)
aos europeus, eis algumas explicações plausíveis. Podem-se somar a essas, porém, a existência de um
governo organizado desde o século VIII, uma estrutura jurídica relativamente sólida, a capacidade militar e
a reação violenta aos missionários cristãos. O Japão, antes de ser invadido ou colonizado, fechou-se por
três séculos em torno de seus valores religiosos e da ética de sua sociedade feudal e guerreira. Os
rarefeitos contatos com a Europa deram-se por intermédio de navegadores e comerciantes holandeses,
que mantiveram um enclave sino-holandês perto de Nagasaki[2].

No século XVII, o Japão atingiu o ápice do processo de feudalização e de ruptura das antigas hierarquias e
de extinção dos resquícios do poder central. Um senhor da guerra, Tokugawa Ieyasu, conseguiu fundar o
“Estado Tokugawa”, que viria a ser, por 250 anos, o núcleo do poder no Japão, após derrotar outros clãs e
terratenentes. O xogunato Tokugawa estabilizou o Japão, mas não rompeu com o feudalismo, embora
tenha fechado o país às influências estrangeiras até a Revolução Industrial[3].

2. A ocidentalização forçada

No século XIX, a estabilidade e a paralisia da era Tokugawa faziam-se sentir por rebeliões populares, pelo
enfraquecimento do aparato militar, marcado pela obsolescência de armas e de táticas, e pela debilitação
dos laços entre os clãs. Um elemento externo veio a desencadear a ruína da Casa Tokugawa: o
imperialismo ocidental, simbolizado pela abertura forçada dos portos em razão da chegada dos navios do
Comodoro Matthew Perry, dos Estados Unidos, em 1853. A diplomacia dos canhoneiros americanos forçou
o governo Tokugawa a celebrar um tratado de amizade nipo-americano, sem o placet do imperador (que
governava nominalmente o país)[4].

O impacto da abertura comercial sobre a economia, especialmente sobre camponeses e comerciantes, foi
imenso. A fragilidade do xogunato e de suas forças militares anacrônicas ante as forças ocidentais
evidenciava-se a cada nova concessão diplomática. A ratio do feudalismo desaparecia rapidamente, na
medida em que não mais assegurava previsibilidade econômica e segurança militar. O imperador assumiu
acentuadamente um papel místico sobre o povo e liderou um processo de contestação ao xogunato e à
Casa Tokugawa, que culminou com sua derrubada e a instauração de um estado unitário, sob a liderança
do imperador Meiji, que deu nome a uma nova era[5].

Mutsuhito, o imperador Meiji (1852-1912), assumiu o trono com 14 anos, em 1867, tendo liderado a
chamada Restauração Meiji, a guerra civil que pôs fim ao xogunato Tokugawa e iniciou o processo de
ocidentalização do país. Nesse processo, deu-se a mudança do vestuário, da estrutura das Forças Armadas,
da educação superior e a adoção do sistema romano-germânico no Direito Constitucional e no Direito Civil.
À semelhança do que fizera Pedro, o Grande, no Império Russo, o soberano Meiji estimulou a vinda de
engenheiros, professores de Direito e Medicina, militares e economistas ocidentais para modernizar as
instituições japonesas. Em um tênue equilíbrio, o novo regime procurou manter a essência da cultura
nacional, mas copiando o que havia de mais útil e avançado no Ocidente.

Como consequência de tantas mudanças, houve o aniquilamento de parte da aristocracia feudal, que se
opôs em guerras civis à Restauração Meiji, ao tempo em que o Japão converteu-se rapidamente em uma
potência militar. Duas expressivas vitórias na Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895 e na Guerra Russo-
Japonesa (1904-1905) demonstram os resultados exitosos desse processo de refundação nacional. Contra
os chineses, o Japão conseguiu impor-se e tornar-se um parceiro das nações ocidentais na exploração
imperialista da China. A vitória contra a Rússia, que perdeu territórios na Coreia e foi derrotada em Porto
Arthur, foi a mais avassaladora: era a primeira vez na história moderna que uma nação asiática derrotava
uma potência ocidental. Sob todos os aspectos, a Guerra Russo-Japonesa foi um divisor de águas e é
considerada a causa remota da Revolução Russa de 1917 e da queda da dinastia Romanov.

Outro símbolo dessa mudança está na velocidade com que o Japão adotou a cultura ocidental nas Forças
Armadas, que passaram a se organizar nos moldes prussianos e franceses, e nas universidades, que
importaram professores de todo o mundo. No Direito, “foram contratados 32 juristas de diferentes
nacionalidades. Havia franceses, alemães, americanos, italianos e outros. Todos eles deram contribuições
importantes para o progresso do Direito japonês no início da era Meiji. Sem desmerecer os demais, os mais
conhecidos entre os japoneses são o francês Gustave Boissonade e o alemão Hermann Roesler, que
influenciaram os governantes a adotar no Direito japonês, o sistema herdado do Direito Romano, ao invés
de Direito Anglo Americano”[6].

Na segunda metade do século XIX, foi a Alemanha o principal agente influenciador do Direito japonês. O
conhecimento do alemão passou a ser interessante para as elites jurídico-acadêmicas. O governo imperial
adotou o “modelo prussiano na Constituição, Códigos Civil e Penal e muitos outros”[7]. Um dos
responsáveis por essa relação teuto-japonesa foi Hermann Roesler (1834-1894), que foi contratado como
consultor do Ministério Imperial de Negócios Estrangeiros e auxiliou nos trabalhos de “elaboração do
Código Comercial promulgada em 1890”. No entanto, “a mais importante de suas contribuições foi a da
Constituição Meiji, promulgada em 1889”[8].

3. Apogeu, declínio e reconstrução

Após a vitória contra o Império Russo em 1905, o Japão manteve seu processo de industrialização e de
estímulo às Forças Armadas. Nos anos 1920-1930, a crise econômica e a militarização andaram de mãos
dadas, em um cenário muito similar ao que se deu no restante do mundo. A doutrinação militar, patriótica
e de divinização da autoridade do imperador, iniciada com o objetivo de fundamentar a Restauração Meiji,
ganhou autonomia e passou a servir à legitimação de um governo centralizador, autoritário, militarizado e
expansionista.
Sob o jovem imperador Hiroito, o Japão completou seus planos de invasão da Coreia e da China.
Internamente, havia uma divisão nas Forças Armadas sobre a participação japonesa no esforço militar do
Eixo Roma-Berlim, que resultou na Segunda Guerra Mundial. As obras de Adolf Hitler tornaram-se
populares no país, especialmente o livro-manifesto Minha Luta, cujos trechos nos quais o ditador alemão
tratava com desprezo os japoneses, considerando que os “macacos amarelos” seriam úteis ao esforço
militar alemão por perturbar a paz colonial europeia na Ásia, foram suprimidos na edição japonesa.

Antigas lutas de clãs feudais, cujos membros mais ativos se transferiram para as Forças Armadas, refletiam-
se no embate interno sobre entrar ou não na Segunda Guerra Mundial. A Marinha Imperial resistiu o
quanto pôde, até mesmo com ameaças do Exército, até que uma troca no alto comando fez com que os
oponentes à guerra fossem removidos.

O Japão foi destruído pelas forças aliadas na Ásia. O ápice de sua ruína foi o emprego da bomba atômica
pelos norte-americanos. Ocupado militarmente, o Japão manteve a monarquia, embora destituída de
funções efetivas de poder, graças à preocupação do general Douglas McArthur com a perda de estabilidade
interna decorrente do fim do Trono do Crisântemo. Em 1947, entrou em vigor a Constituição japonesa, que
permanece intacta, com a supressão das instituições autocráticas, militarizadas e a abolição dos títulos de
nobreza. Elaborada pelos norte-americanos, a nova Constituição foi um marco na refundação nacional.

O desenvolvimento industrial japonês no pós-guerra foi assombroso, tendo o país superado


economicamente, durante algumas décadas, alguns dos países que o derrotaram na Segunda Guerra
Mundial, como a Holanda, a França e o Reino Unido. Nos anos 1980, parecia que o Japão se encaminhava
para ser a segunda potência econômica mundial, o que terminou por não ocorrer. Nos anos 1990, o país
iniciou um processo de estagflação e recessão, do qual ainda não se recuperou totalmente.

Apesar de tantas mudanças, antigos valores sociais e morais permanecem no Japão contemporâneo, que
revelam um papel do Direito e das instituições jurídicas muito mais tímido do que o encontrado em vários
países ocidentais. É esse modelo que começamos a examinar.

[1] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Sistema jurídico japonês. In. HARADA, Kiyoshi (Coord).
Intercâmbio Cultural Brasil-Japão. São Paulo: Sociedade Brasileira de Cultura e Assistência Social Bunkyo,
2016.

[2] ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo:
Unesp, 2016. p.497.

[3] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.481-484.

[4] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.502-503.

[5] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.504-505.

[6] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.

[7] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.


[8] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.

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Otavio Luiz Rodrigues Junior é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de
Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP),
com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurí

Formação jurídica japonesa: Da Prússia a Nova York?

Em um comentário recorrente sobre os japoneses, diz-se que eles são os “alemães da Ásia”, a significar que
compartilham de alguns traços culturais “típicos” dos germânicos, como a organização, a disciplina e o
senso de hierarquia. Abstraindo-se de explicações estruturalistas, que identificam um “caráter nacional”
dos povos, algo em relação a que se deve guardar muitas reservas, talvez uma das razões dessa associação
entre japoneses e alemães esteja na prussificação do país levada a efeito pela dinastia Meiji no final do
século XIX e que se estendeu até meados do século XX.

Um dos exemplos mais flagrantes da adoção de modelos prussianos no Japão está no Exército Imperial,
remodelado inteiramente após a Restauração Meiji. No entanto, esse não é mais um modelo válido, na
medida em que, após a derrota japonesa para os aliados na Segunda Guerra Mundial, as estruturas
militares foram transformadas radicalmente. Não há mais Forças Armadas, e sim Forças de Autodefesa. Os
arquétipos prussianos foram substituídos pelos norte-americanos. Remanesce, porém, um campo no qual a
influência alemã é ainda hoje presente, a despeito de modificações implementadas na última década, que é
o Direito e a formação dos juristas.

O Japão, até a reforma de 2004, era um verdadeiro parque temático da educação jurídica germânica
transplantada para a Ásia. Após a mudança legislativa de 2004, esse modelo não é mais monolítico e
passou a conviver com estruturas tipicamente norte-americanas. Pode-se dizer que o Japão experimenta
hoje uma complexa e difícil transição entre Berlim e Nova York.

2. A evolução do modelo japonês (ou raízes de uma reforma malsucedida?)

Qual o espaço do Direito, da Justiça, dos aparatos judiciários e dos advogados em uma nação marcada por
índices reduzidos de criminalidade, baixa litigiosidade privada e um senso de dever individual arraigado? A
resposta parece ser óbvia. Esse “problema” — se é que se pode assim qualificá-lo — foi devidamente
registrado em uma curiosa matéria no The Wall Street Journal, edição de 3 de abril de 2016, cujo título é
autoexplicativo: “Japanese lawyers’ problem: too few cases” (O problema dos advogados japoneses: tão
poucos casos)[1].
É interessante explicar essa situação de um modo retrospectivo.

Até 1945, a formação jurídica japonesa era estritamente baseada no modelo alemão, com a instituição de
exames de admissão para a advocacia e para as carreiras da magistratura (juízes e promotores). No pós-
guerra, unificaram-se os exames profissionais e democratizou-se o acesso ao ensino superior. No ano 2000,
havia 93 faculdades de Direito e 45 mil estudantes a cada ano nos cursos jurídicos[2].

A graduação em Direito durava quatro anos e, à semelhança do ensino alemão, a matriz curricular era
primordialmente voltada para o estudo da Constituição, dos códigos Civil, Penal, Comercial, de Processo
Civil e de Processo Penal. A estrutura das aulas era magistral. As aulas eram voltadas para os códigos e o
estudo de doutrina. Havia uma nítida distinção entre formação teórica e formação prática, sendo que esta
última não era objetivo da faculdade. O egresso então aprovado no Exame de Ordem (Shihou shiken) ou no
Exame de Estado para ingressar na magistratura tinha acesso a um período de instrução prático-
profissional[3].

O sistema pré-reforma de 2004 era considerado restritivo ao acesso às carreiras jurídicas: nos anos 1990, o
número de aprovados no Exame de Ordem era limitado a 500 por ano, com um índice de 3% de aprovação,
considerado o universo de candidatos. Com isso, um número considerável dos formados em Direito
encontrava ocupação no serviço público ou como empregado de companhias privadas[4].

Como resultado desse tipo de formação e de recrutamento profissional, o número de advogados no Japão
era incrivelmente baixo, especialmente se comparado ao de outros países: a) 13.800 (1990); b) 15.108
(1995); c) 21.185 (2005). A comparação torna esses números ainda mais eloquentes. No ano de 1997,
tinha-se a seguinte distribuição de advogados por país: a) Japão (20 mil); b) Estados Unidos (941 mil); c)
Reino Unido (83 mil); d) Alemanha (111 mil); e) França (36 mil)[5].

Esse quadro levou a que a reforma do ensino jurídico japonês avançasse, com apoio de professores e
magistrados, o que se materializou em 2004. Com o novo modelo, adotou-se a alternativa de um curso
jurídico pós-graduado de três anos, conforme o equivalente norte-americano, com uso do método
socrático em pequenas turmas. Um novo Exame de Ordem seria instituído a partir de 2010, com maior
facilidade de aprovação. Paralelamente, manter-se-ia a matriz curricular atual de graduação[6].

Passados 10 anos dessas mudanças, a reforma radical do modelo japonês apresentou mais externalidades
negativas do que imaginaram seus idealizadores. Não deixa de ser interessante comparar os resultados
pouco eficazes de uma mudança dessas proporções na estrutura da formação jurídica de um país com as
ideias que comumente se divulgam no Brasil sobre a “crise do ensino jurídico”, o abandono dos métodos
tradicionais e a superação do modelo atual, muitas delas sem apoio em base empírica ou qualquer
parâmetro objetivo de impacto regulatório.

Os números sugerem fortemente a falta de sucesso da reforma, ao menos em relação aos objetivos que ela
almejava atingir, segundo dados de 2015: a) havia 36.415 advogados no Japão, mais do que o dobro dos
existentes em 2001; b) 78% dos advogados atuam em escritórios com menos de 10 integrantes. Não
ocorreu uma mudança no caráter artesanal e liberal da profissão de advogado no Japão; c) apenas 9 firmas
de advocacia empregam mais de 100 advogados no Japão; d) os serviços jurídicos privados correspondem a
0,1% do Produto Interno Bruto (PIB) japonês, equivalentes a US$ 5 bilhões. Em comparação, esses serviços
nos Estados Unidos chegam a US$ 221 bilhões, um percentual de 1,27% do PIB; e) no âmbito cível, de 2004
a 2014, houve um crescimento de 2,5% na litigância cível nos juízos de primeiro grau; f) houve uma queda
acentuada no número de ingressantes nas faculdades de Direito japonesas na última década[7]; g) houve
uma queda na renda média anual dos advogados japoneses, entre 2006 e 2014, de 17,5 milhões de ienes
(US$ 153.751,50 ou R$ 476.525) para 9 milhões de ienes (US$ 79.072,90 ou R$ 245.070). Em razão disso,
muito escritórios fecharam, com profissionais deixando a advocacia[8].

As faculdades que se converteram ao novo modelo têm encontrado enorme dificuldade de se adaptar ao
método socrático importado dos Estados Unidos. As turmas com poucos alunos são apenas uma parcela
visível desse problema. Há ainda a dificuldade de se ensinar aos alunos, especialmente do primeiro ano,
com base no método norte-americano quando eles não possuem base prévia de conhecimentos jurídicos.
Some-se a isso a dificuldade de compatibilização desse modelo de ensino com uma cultura jurídica
fortemente influenciada pela tradição de civil law[9].

Muitas das faculdades de Direito terminaram por recuar na adoção do novo modelo e se mantiveram ou
retornaram ao modelo pré-2004. O modelo tradicional continua prevalente no Japão. Outro aspecto que
causou desconforto foi a perda de centralidade das faculdades de Direito, pois o aluno pode ser graduado
em outros cursos e só fazer um curso “pós-graduado”, como se dá nos Estados Unidos. Muitos professores
que apoiaram a reforma hoje não a defenderiam se pudessem voltar no tempo. Quanto aos estudantes, há
um número expressivo que considera o modelo antigo pouco interessante e antiquado. O câmbio no
sistema também implicou uma guinada no modo como o conteúdo jurídico é transmitido. O novo modelo é
considerado mais tecnicista e pragmático.

3. Número de faculdades de Direito no Japão

Após a reforma de 2004, segundo o questionário que se formulou a Takashi Kojiro, atualmente há 42
faculdades de Direito públicas e 77 instituições particulares no Japão, as quais seguem o modelo clássico de
ensino jurídico. Ao passo em que se têm 18 instituições públicas e 24 faculdades privadas seguindo o
modelo pós-2004.

As faculdades japonesas experimentam hoje uma crise sem precedentes. O número de interessados em
ingressar em cursos jurídicos no Japão caiu de 72.800, no ano de 2004, para 11.450 candidatos, no ano de
2014, conforme pesquisa desenvolvida por Masahiro Tanaka, da Universidade de Tsukuba[10].

***

Não se pode declarar o fracasso da reforma educacional japonesa. É cedo para afirmá-lo
peremptoriamente. Se comparados seus efeitos com os objetivos da reforma, poder-se-ia defender,
exclusivamente quanto a esse ponto, o insucesso do novo modelo. Independentemente de um juízo
favorável ou desfavorável ao novo modelo, devem-se pôr luzes sobre outros aspectos, esses sim muito
mais aderentes à realidade brasileira e ao nível de discussão aqui existente.
Primeiramente, a reforma japonesa é um bom exemplo de como o debate sobre a educação jurídica pode
ser capturado por jogos de palavras, belos discursos, lugares-comuns e a falta de impacto regulatório.
Ensino participativo, novos métodos, ataques ao formalismo ou à aula magistral integram um jargão
comum e quase sacrossanto quando esse tema é publicamente discutido. O problema é que não há base
empírica para se avaliar o sucesso dessas teses quando aplicadas à realidade em um país de tradição de
civil law. Tais experimentações localizadas são muito bem-vindas como formas de se demonstrar a validade
de certas teorias educacionais. Quando elas se transformam em regra geral, o risco de efeitos colaterais
como os encontrados no Japão se enormes.

Em segundo lugar, é notável a contradição entre discursos de “humanização” da educação jurídica e novos
métodos de ensino-aprendizagem. Abstraindo-se o que signifique realmente a “humanização”, veja-se que
a reforma japonesa deu-se em nome de um maior tecnicismo e de uma maior preocupação com a “prática”
na formação dos alunos. Finalmente, a questão do impacto regulatório e de bases estatísticas para se
proceder a reformas no ensino jurídico deveria ocupar a centralidade em qualquer estudo governamental
sobre o tema. Não há séries históricas de dados, não se encontram estudos rigorosos de impacto
regulatório, bem como inexistem estudos comparatísticos prévios a tais mudanças.

[1] Disponível em: https://www.wsj.com/articles/japanese-lawyers-problem-too-few-cases-1459671069.


Acesso em 14/2/2017.

[2] MATSUI, Shigenori. Turbulence ahead: The future of Law Schools in Japan. Journal of Legal Education,
v.62, n.3, p.3-31, 2012. p.4.

[3] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.4.

[4] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.5.

[5] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.6.

[6] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.11.

[7] Disponível em: http://blogs.wsj.com/briefly/2016/04/03/the-legal-industry-in-japan-the-numbers/.


Acesso em 14/2/2017.

[8] Disponível em: https://www.wsj.com/articles/japanese-lawyers-problem-too-few-cases-1459671069.


Acesso em 14/2/2017.

[9] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.20-21.

[10] TANAKA, Masahiro. Japanese law schools in crisis: A study on the employability of law school
graduates. Asian Journal of Legal Education, v.3, n.1, p.38-54, 2016. p.38-40.

*Texto alterado às 12h44 do dia 15/2 para correções.

O professor de Direito no Japão

Correm algumas lendas sobre o papel, a importância e a representação social do professor no Japão. Uma
das que têm percorrido a internet nos últimos anos não é confirmada por japoneses, e duvido mesmo que
seja confirmável. Ela diz que o professor é o único profissional que está liberado de se curvar perante o
imperador. A razão disso teria sido enunciada pela sabedoria popular japonesa: “Em um país onde não há
professores, não pode haver imperadores”. Essa lenda, assim como outras, remonta ao período de
reconstrução nacional no pós-guerra, quando havia poucos docentes (a maior parte deles alistou-se nas
Forças Armadas Imperiais) e os alunos eram reunidos em amplos espaços abertos, às centenas, para assistir
às aulas. Era mais do que necessário o exercício de uma autoridade superior para manter a disciplina de
tantos jovens e crianças durante as aulas.

O Japão, de fato, dedicou imensos recursos para educar as gerações do pós-guerra e vencer o abismo
histórico aberto pela destruição quase absoluta do país. Em certa medida, isso também ocorreu em
Cingapura e na Coreia do Sul, com resultados igualmente positivos. Mais recentemente, a China também
adotou essa política educacional de Estado, que combina um modelo rígido de educação, com forte
meritocracia e sinais claros para os estudantes sobre as oportunidades de sucesso e os efeitos do fracasso
em sua trajetória rumo ao topo do sistema universitário.

O professor universitário japonês é uma figura socialmente respeitada, mas não da forma idealizada como
se costuma representar no Brasil, muita vez, de modo mistificador. O professor de Direito, em particular, é
também uma pessoa dotada de prestígio social, mas, em termos comparativos ao que ocorre na Alemanha
e em Portugal, está longe da influência ou da preeminência de seus homólogos nesses dois países.

A estrutura da carreira docente é muito semelhante a que se utiliza na Europa e no Brasil. A última posição
é ocupada pelo professor titular. Abaixo dele está o professor associado. Em seguida, o professor adjunto e
o professor assistente. De professor adjunto para cima, é necessário o doutoramento. A estabilidade
(tenure) pode ser alcançada mesmo por professores assistentes. As posições correspondem a um número
determinado de ocupantes, o que implica a necessidade de vacâncias dos cargos superiores para que haja
mobilidade no sistema.

O professor de Direito japonês ministra as aulas no formato tradicional, embora desde 2004 tenha sido
encorajada a adoção do modelo norte-americano, o que tem gerado duas reações muito nítidas. A pura e
simples indiferença, conservando o professor os antigos padrões de ensino. Ou a tentativa de se
implementar o novo sistema, algo que não tem sido alcançado sem maiores problemas.

A remuneração do professor japonês é universal, independentemente do curso lecionado. Analisando-se a


estrutura remuneratória referente à Universidade de Tóquio, o valor mais alto, retribuível ao professor
titular, é 18,7 milhões de ienes (US$ 164.464 ou R$ 508.960), em final de carreira, considerando-se a
remuneração anual.

O professor titular em início de carreira pode perceber 8,7 milhões de ienes (US$ 77.052 ou R$ 238.585). O
valor médio é de 11,7 milhões de ienes (US$ 103.203 ou R$ 319.567). Todos esses valores são anuais. A
média etária do professor titular, na mesma instituição, é de 56,2 anos, sendo importante destacar a
existência de aposentadoria compulsória aos 65 anos de idade em diversas instituições públicas, aqui
incluída a Universidade de Tóquio, o que passou a ocorrer desde o ano 2013.

O professor assistente, primeiro nível da carreira docente no Japão, tem uma média etária alta para os
padrões brasileiros — 40,2 anos. O valor máximo de sua remuneração anual é de 8,5 milhões de ienes (US$
74.437 ou R$ 230.526). O valor em início de carreira é de 5,1 milhões de ienes (US$ 44.650 ou R$ 138.254)
anuais. A média remuneratória é de 7,1 milhões de ienes (US$ 62.330 ou R$ 193.000), também anuais."
Todos os dados acima são de 2015 e foram extraídos do site do Ministério da Educação, Cultura, Esporte,
Ciências e Tecnologia do Japão[1].

2. O aluno de Direito no Japão

Outro estereótipo que merece ser revisitado, ao menos no âmbito universitário, é o do aluno japonês como
uma pessoa obcecada pelo estudo e dotada de uma disciplina férrea. Isso tem se alterado sensivelmente
nas duas últimas décadas, especialmente após o processo de estagflação iniciado na segunda parte dos
anos 1990 no Japão. O desinteresse pelo modelo de aulas é também perceptível entre os mais jovens e foi
um dos motivos que provocou a reforma universitária de 2004.

O ingresso na faculdade de Direito depende do tipo de curso que se pretende fazer. Se for aquele de
modelo tradicional, equiparável ao bacharelado brasileiro, o aluno submete-se a um exame nacional, que é
comum a todos os que desejam entrar em uma graduação japonesa. Esse exame abrange matérias como
língua japonesa, matemática, estudos sociais, ciências, inglês e outras matérias complementares. Aprovado
nesse exame, o aluno terá de se submeter ao processo seletivo específico da faculdade que ele escolheu.
Fará, portanto, um duplo exame, o geral e o particular. Quanto a este último, o conteúdo e o grau de
exigência são variáveis, a depender do prestígio da escola ou do número de interessados naquele curso.

No modelo pós-2004, o interessado em ingressar na faculdade de Direito não precisa ter uma graduação
jurídica. O novo tipo de escola oferece um curso muito parecido com o norte-americano, o que se pode
equiparar a uma espécie de pós-graduação. Faz-se um exame nacional, mas com matérias diferentes, como
pensamento lógico ou comunicação e expressão. Aprovado nesse primeiro exame, o candidato submeter-
se-á a uma seleção específica na faculdade de sua escolha. Em geral, pede-se que o aluno faça uma
entrevista e redija um texto, ou apresente um artigo. A aprovação depende do somatório das notas nos
dois exames.

O aluno é obrigado a pagar matrícula e anuidade nos cursos de Direito. Nas faculdades que seguem o
modelo pré-2004, a anuidade nas universidades públicas pode chegar a US$ 5,3 mil (equivalentes a R$
16.351,00), e, nas universidades privadas, esse valor pode atingir US$ 8,2 mil ( correspondentes a R$
25.297,00).

Se o interessado deseja seguir o modelo pós-2004, ele poderá pagar até US$ 8 mil (correspondentes a R$
24.680,00) por ano, em uma universidade pública. Em uma universidade particular, esses valores podem ir
de US$ 5,5 mil (convertíveis em R$ 16.966,00) a US$ 17 mil (equivalentes a R$ 52.467,00).

3. Processo de formação e de avaliação do estudante de DireitoAs disciplinas tradicionais no Brasil (e na


Europa) equivalem às mais importantes no Japão, o que se explica pela valorização do modelo alemão de
estudo por códigos. No Japão, encontram-se manuais famosos como os de Direito Civil, elaborados por
Wagatsuma Sakae (我妻栄) e Uchida Takashi (内田貴), de Direito Romano, de autoria de Harada Keikichi
(原田慶吉), de Direito Constitucional, escrito por Ashibe Nobuyoshi (芦部信喜) e Higuchi Yoichi
(樋口陽一), e de Direito Penal, ao estilo dos que escreveram Yamaguchi Atsushi (山口厚) e Ida Makoto
(井田良)

Com o sistema pós-2004, tem-se buscado adaptar esse modo de ensino ao estilo de cases dos Estados
Unidos, o que não se tem revelado simples.

O Direito Romano é ainda muito importante em várias faculdades japonesas. Os estudos de Teoria do
Direito são também destacados em alguns centros. A influência de Hans Kelsen, cuja obra foi traduzida para
o japonês ainda na primeira metade do século XX, é também sensível, bem como de autores alemães como
Larenz, Savigny e Wezel.

Os alunos, no sistema tradicional pré-2004, são avaliados periodicamente por meio de provas escritas.
Eventualmente, são computados pontos pela participação em sala de aula ou pelo comparecimento às
disciplinas.

4. O egresso e os exames profissionais

O aluno egresso de uma faculdade de Direito precisa submeter-se a um exame jurídico nacional para
exercer a advocacia, cujo ingresso também depende de sua inscrição em uma seccional da Ordem dos
Advogados japonesa.

Para as carreiras da magistratura e do Ministério Público, o egresso tem de se submeter a um exame


jurídico nacional, obter excelentes notas e posteriormente submeter-se a um exame de Estado após um
período de treinamento para esses cargos.

5. Pós-graduação em Direito

O Japão também possui cursos de mestrado (dois anos de duração, em média) e de doutorado em Direito
(de dois a três anos). O mestrado é objeto de interesse de quem deseja seguir a carreira acadêmica,
magistrados e outros servidores públicos. O doutorado, que é bem mais restrito, tem sido procurado por
pessoas com maior interesse na carreira docente. O sistema também prevê a defesa de teses e dissertações
para a obtenção desses títulos.

6. Conclusões parciais

Como visto na última coluna, o Japão está em um processo conflituoso de transição entre dois modelos —
o alemão e o norte-americano, embora o primeiro deles subsista amplamente em várias faculdades. A
profissão docente é respeitada, mas não apresenta sinais de preeminência social como na Alemanha ou em
Portugal. Os níveis remuneratórios da docência universitária são padronizados, e a renda do professor é
relativamente alta.
Um ministro da Corte Suprema do Japão ganha 20.184.000,00 ienes anuais (equivalentes a US$ 178.567,00
ou a R$ 550.775,00), valor ligeiramente superior aos 18,7 milhões de ienes que recebe o professor titular
em final de carreira. O presidente da Corte recebe 27.648.000,00 ienes (US$ 244.601,00 ou R$
755.025,00), conforme dados da Agência Nacional de Recursos Humanos do Japão.

As transformações sociais e geracionais também chegaram ao país do sol nascente. Muito da reverência e
do tratamento respeitoso que o professor japonês recebe não são propriamente um exemplo de
diferenciação específica pela condição de docente, e sim um tratamento compatível com a cultura do povo
japonês.

Na próxima semana, estudaremos o ranking das faculdades e as profissões de Estado.

***

Esta coluna não poderia ter sido escrita sem o auxílio de Luís Felipe Rasmuss de Almeida, meu ex-aluno e
atual monitor de minhas disciplinas de Direito Civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Estudioso da cultura e do idioma japonês, tendo feito curso de verão naquele país em 2016, Luís Felipe
Rasmuss é a prova de que permanece viva a tradição nipônica nas Arcadas, tão bem representada pelo
venerável professor doutor Masato Ninomiya, colega de docência na Universidade de São Paulo, e o maior
pesquisador de Direito brasileiro e japonês da contemporaneidade, a quem também deixo minhas
homenagens por tantos anos de dedicação às relações e às tradições jurídicas nipo-brasileiras.

[1] Disponível em: http://www.mext.go.jp/b_menu/houdou/28/06/attach/1373620.htm. Acesso em


21/2/2017.

Introdução

Na coluna anterior da série sobre a formação jurídica no Japão, apresentaram-se dados e informações
sobre o professor, o aluno e os cursos de Direito naquele país asiático.

As reformas educacionais da última década, como já demonstrado, apresentaram mais problemas do que
mudanças efetivas na qualidade do ensino. A ampliação do acesso dos alunos aos cursos jurídicos e o
aumento do número de advogados não implicou melhoria qualitativa na formação dos novos bacharéis,
muito menos atingiu os objetivos.

Nesta última coluna da série sobre o Japão, o foco serão as carreiras jurídicas.

Magistratura japonesa

A estrutura judiciária japonesa foi profundamente alterada após a Constituição de 1946. Embora os
magistrados decidam “em nome do imperador” (uma fórmula que foi substituída na Alemanha e na Itália
pelo enunciado “em nome do povo”), eles se apresentam constitucionalmente como parte integrante de
um poder autônomo. A organização do Poder Judicial japonês dá-se de modo simples: a Suprema Corte
está no ápice do sistema. Abaixo da Suprema Corte estão as cortes superiores, que se dividem em seis
seções, além de uma corte especializada em propriedade intelectual. Existem também 50 tribunais
especializados em Direito de Família e 50 tribunais distritais, ambos com 230 unidades jurisdicionais. Na
base do sistema encontram-se os juizados sumários, traduzíveis por “cortes para pequenos litígios civis e
criminais”, em número de 438, distribuídos em todo o país.

A Suprema Corte japonesa não é um tribunal constitucional, ao estilo alemão, embora tenha a última
palavra quanto aos recursos extraordinários em matéria cível e criminal. Seus membros são nomeados pelo
imperador japonês (o presidente da corte) ou pelo Gabinete de Ministros em nome do imperador (os
demais membros da corte), sem limitação de mandato, salvo a aposentadoria compulsória aos 70 anos. Os
cargos são vitalícios. Excepcionalmente, admite-se a remoção dos juízes da Suprema Corte por decisão dos
eleitores. Embora não haja mandato, na prática, o tempo de permanência no tribunal é previsível, dado
que a idade média dos nomeados é de 60 anos.

De modo igualmente diverso ao que se dá na Alemanha e, em grau infinitamente maior, no Brasil, a


Suprema Corte japonesa é marcada pelo princípio da autocontenção. Questões de grande interesse político
ou social são deixadas ao escrutínio dos atores políticos por meio dos fóruns democráticos tradicionais,
como o Parlamento e as manifestações populares. São poucas as decisões da Suprema Corte que
redundaram em declaração de inconstitucionalidade de leis e mais raras ainda as decisões que trouxeram
para o tribunal as funções de poder moderador.

O tribunal possui 14 juízes (o mais jovem com 63 anos) e um presidente (com 69 anos de idade). A origem
dos magistrados é geralmente a advocacia, a judicatura ou o Ministério Público. Os ministros acadêmicos
quase sempre conjugaram a docência com outra atividade em uma dessas carreiras. A Lei de Organização
da Suprema Corte Japonesa, a esse propósito, exige uma idade mínima de 40 anos para os nomeados, além
de comprovada experiência profissional por período não inferior a 10 anos em cargos como presidente de
uma corte superior, juiz, juiz de um juizado sumário, promotor de Justiça, advogado ou professor
catedrático ou assistente de universidade japonesa.

Tradicionalmente, um terço dos membros da Corte Suprema é oriundo da magistratura, enquanto outro
terço vem da advocacia, e o restante é escolhido dentre promotores e professores. Os advogados, também
por tradição, são ex-presidentes ou ex-vice-presidentes da Ordem dos Advogados.

As cortes superiores, sediadas nas cidades de Tóquio, Osaka, Nagoya, Hiroshima, Fukuoka, Sendai, Sapporo
e Takamatsu, dividem-se em seis seções. Em 2005, criou-se uma corte superior especializada em Direito da
Propriedade Intelectual.

As cortes distritais são destinadas ao conhecimento em primeiro grau de matérias cíveis e criminais. Ao
passo em que as cortes de família examinam matérias sobre Direito de Família, Direito da Criança e do
Adolescente e crimes cometidos nessa área.

As cortes para pequenos litígios civis e criminais são formados por juízes singulares, equiparando-se aos
juizados especiais brasileiros.
O recrutamento dos magistrados integrantes da jurisdição ordinária dá-se por ato do Gabinete Imperial, a
partir de listas de candidatos formadas pela Suprema Corte. O processo depende de um parecer do Comitê
Consultivo de Nomeações. Segundo dados de 2014, havia no Japão o número de oito presidentes de cortes
superiores, 1.921 juízes e de 1.000 juízes auxiliares de cortes superiores e distritais e 806 juízes de cortes
sumárias.

O provimento inicial na carreira dá-se para o cargo de juiz auxiliar. Os candidatos devem ter sido
previamente aprovados no Exame de Ordem (um número reduzidíssimo de bacharéis consegue essa
aprovação) e depois hão de ser submetidos a um Curso de Formação e Treinamento da Magistratura, ao
fim do qual são examinados em avaliação específica[1]. A progressão para o cargo de juiz titular exige um
mínimo de 10 anos de exercício da magistratura como auxiliar[2].

As cortes superiores são compostas de juízes titulares com mais de cinco anos de experiência, além da
escolha dentre promotores, advogados ou professores com mais de 10 anos de atividade.

Os juízes dos juizados sumários são escolhidos de modo mais discricionário e eles possuem mandatos de 10
anos, com possibilidade de reeleição.

Dado importante em qualquer estudo comparativo das carreiras jurídicas é a remuneração profissional. A
Lei 90 de 2016 fixou os seguintes patamares remuneratórios para a magistratura japonesa: a) juiz titular
(nível 1, o ápice da carreira) recebe 1,17 milhão de ienes por mês ou 14,1 milhões de ienes ao ano. O juiz
titular (nível 8) recebe 516 mil ienes por mês; b) o juiz auxiliar de nível 12 (o mais baixo) percebe 231,4 mil
ienes ao mês; c) o juiz das cortes para pequenos litígios civis e criminais percebe entre 818 mil ienes por
mês (nível 1) e 231,4 mil ienes por mês (nível 17)[3].

A equivalência desses valores com as realidades norte-americana e brasileira pode ser assim estabelecida:
a) 1,18 milhão de ienes por mês — US$ 10,37 mil ou R$ 34,11 mil; b) 14,1 milhões de ienes anuais — US$
124,46 mil ou R$ 409,31 mil; c) 516 mil ienes por mês — US$ 4,55 mil ou R$ 14,98 mil; d) 6,19 milhões de
ienes anuais — US$ 54,66 mil ou R$ 179,75 mil.

Os valores remuneratórios dos níveis iniciais da magistratura não são particularmente elevados,
especialmente se considerado o custo de vida na região metropolitana de Tóquio ou de outras grandes
cidades japonesas. A magistratura japonesa não passou pela transformação, que é muito sensível no Brasil
e em outros países, no sentido e na representação social da carreira. A figura do juiz discreto e com uma
vida anônima ainda é preponderante no Japão. O envolvimento dos magistrados em questões políticas é
praticamente nulo.

Ministério Público

O monopólio da titularidade da ação penal e a coordenação da investigação criminal são as atividades


essenciais do Ministério Público japonês. Além dessas atribuições, estão a defesa do interesse público e a
proteção da criança. A chefia do Ministério Público é atribuída ao procurador-geral de Justiça, auxiliado por
um procurador-geral adjunto. Há ainda oito procuradores-superintendentes, 1.294 promotores de Justiça e
919 promotores de Justiça assistentes[4].

De acordo com a Lei 91, de 2016, a estrutura da carreira do Ministério Público é dividida em promotores
titulares e promotores assistentes. A remuneração do promotor titular de nível 1 é de 1,17 milhão de ienes
mensais. No nível 20, correspondente ao patamar inicial, a remuneração é de 231,4 mil ienes por mês. Os
promotores de Justiça assistentes recebem entre 574 mil ienes por mês (nível 1) e 212,2 mil ienes por mês
(nível 17). O procurador-geral de Justiça recebe a remuneração mensal de 1,47 milhão de ienes mensais[5].

O recrutamento dos membros do Ministério Público é muito semelhante ao dos juízes. É necessária a
conclusão do curso de Direito, aprovação no Exame de Ordem e também na escola de formação, que é
comum a magistrados, promotores e advogado[6].

Diferentemente do que se dá no Brasil, a atuação do Ministério Público japonês é mais contida e discreta.
Ela se amolda a um perfil ministerial pré-Constituição de 1988. Outra particularidade japonesa é que o
papel do Ministério Público se transformou após a Segunda Guerra Mundial: da tradição francesa do
promotor como um magistrado, passou-se ao modelo alemão, que identifica as carreiras de promotor e de
juiz como autônomas[7].

O Ministério Público organiza-se de modo centralizado e altamente hierárquico, o que é um contraste bem
notável com a realidade brasileira. O Ministério da Justiça exerce a supervisão do Ministério Público,
exercendo sobre ele controle hierárquico[8]. É similar, contudo, a distribuição dos níveis de carreira em
correlação com a magistratura. A atuação do membro do Ministério Público é vinculada ao respectivo
órgão jurisdicional, o que implica a promoção estar associada ao ofício perante juízos de primeiro grau, de
segundo grau e tribunais superiores[9].

Advocacia no Japão

Na parte 55 da série, fez-se uma análise aprofundada da transformação do perfil da advocacia japonesa
após as reformas universitárias de 2004. Recomenda-se ao leitor a consulta a essa coluna para uma visão
mais abrangente da advocacia e do impacto negativo da introdução de um novo sistema educacional no
modelo profissional da advocacia japonesa.

Diferentemente do período pré-Segunda Guerra Mundial, os advogados japoneses não se vinculam mais ao
Ministério da Justiça, mas somente à Ordem dos Advogados, que se organiza nacionalmente como uma
federação de seccionais. O exercício da profissão, ao menos até o início da década de 2000, conservou
traços liberais, sendo rara a existência de advogados internos nas empresas ou grandes escritórios de
advocacia, com centenas de profissionais associados ou subordinados[10].

Conclusões

O Japão é um excelente modelo para se comparar a confluência de tradições jurídicas romano-germânicas,


preponderantes na estrutura judiciária e da advocacia, com uma nova estrutura educacional de inspiração
norte-americana. Mais ainda é um ótimo campo de observação para a introdução de reformas pouco
felizes na formação dos futuros profissionais do Direito.

A estrutura do Poder Judiciário e do Ministério Público é bastante sólida, com uma participação
autocentrada na vida política e social japonesa. A baixa litigiosidade, a prevalência de elementos morais na
conduta das pessoas (o respeito à palavra, o pagamento das dívidas e o respeito aos consumidores) e a
busca por soluções alternativas de conflitos contribuem para a pequena expansão do aparato judiciário
japonês e da advocacia. Esses fatores, somados à crise gerada pela reforma universitária, têm determinado
uma queda na procura pelos cursos jurídicos.

***

Com esta coluna, encerra-se a série sobre a educação jurídica japonesa.

[1] Disponível em: http://law.unimelb.edu.au/news/MLS/q-and-a-with-judge-aya-kobayashi. Acesso em


6/7/2017.

[2] ODA, Hiroshi. Japanese Law. 3 ed. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 74.

[3] Disponível em: http://law.e-gov.go.jp/htmldata/S23/S23HO075.html. Acesso em 5/7/2017.

[4] Disponível em: http://japan.kantei.go.jp/judiciary/0620system.html. Acesso em 10/7/2017.

[5] Disponível em: http://law.e-gov.go.jp/htmldata/S23/S23HO076.html. Acesso em 11/7/2017.

[6] Disponível em: http://law.unimelb.edu.au/news/MLS/q-and-a-with-judge-aya-kobayashi. Acesso em


10/7/2017.

[7] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 73.

[8] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 77.

[9] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 76.

[10] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 78-79.

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