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O “quadrante mágico” (RICI) que desafia os EUA e o Ocidente

José Eustáquio Diniz Alves


Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População,
Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE;
Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

O mundo já deu muitas voltas e assistiu à ascensão e queda de diversas potências, como os
Impérios Egípcio, Persa, Macedônico, Hindu, Chinês, Romano, Português, Otomano, etc. Com a
Revolução Industrial e Energética, do final do século XVIII, a Europa e o Ocidente assumiram a
dianteira da economia mundial e o Império Britânico se tornou a potência dominante do século
XIX, mas perdeu o primeiro lugar para os Estados Unidos no século XX.

Com o crescimento da URSS, após a Segunda Guerra Mundial, parecia que o Império Soviético
estava destinado a vencer a Guerra Fria e, como disse Nikita Kruschev, o socialismo iria enterrar
o capitalismo. Contudo, foi o Império Soviético que se desmanchou como um castelo de areia.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da URSS, em 1991, deixaram os Estados Unidos
(EUA) como a única potência mundial capaz de dar um rumo para a economia e a governança
global.

A década de 1990 assistiu ao poder unipolar dos EUA e parecia que a democracia liberal e as
forças de mercado iriam predominar no mundo. Como disse Milton Friedman: “As urnas geram
conformidade sem unanimidade; o mercado gera unanimidade sem conformidade. É por essa
razão que é desejável usar urnas, tanto quanto possível, somente para aquelas decisões nas

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quais a conformidade é essencial”. A recomendação dos EUA para o resto do mundo foi a
universalização do regime democrático liberal, com predominância das forças de mercado. Isto
está expresso no decálogo do “Consenso de Washington”:

1. Disciplina fiscal e baixo déficit público;


2. Focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura;
3. Reforma tributária;
4. Liberalização financeira;
5. Taxa de câmbio competitiva;
6. Liberalização do comércio exterior;
7. Eliminação de restrições ao capital externo;
8. Privatização e venda de empresas estatais;
9. Desregulação das relações trabalhistas;
10. Propriedade intelectual.

Todavia, a predominância americana, juntamente com o poder do G7 (que reúne as 7 maiores


economias liberais capitalistas do Planeta), foi abalada por uma série de transformações no
cenário global. Em primeiro lugar, Putin tornou-se presidente da Federação Russa em 31 de
dezembro de 1999. Ele tentou um diálogo com Washington e a OTAN, mas a decisão dos EUA,
em 2002, de se retirar do Tratado de Mísseis Antibalísticos (Tratado ABM) marcou o começo do
fim do sonho ocidental de integrar a Russa à OTAN.

Em segundo lugar, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o foco de Washington


passou a ser a luta contra o terrorismo. Ao invés do receituário liberal, os EUA investiram na
ocupação de países importantes em regiões estrategicamente fundamentais do planeta. Na
Eurásia, as forças dos EUA estabeleceram-se no Afeganistão sob o pretexto de combater a Al-
Qaeda e o Taleban. No Oriente Médio, eles ocupam o Iraque e o tornaram uma base
operacional, o que provocou a desestabilização de todo o Oriente Médio.

Em terceiro lugar, a China foi aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC) em dezembro
de 2001 e o poder econômico chinês decolou graças às empresas industriais ocidentais
transferindo sua produção para o leste asiático e graças ao acesso ao mercado americano e
ocidental. Os consumidores mundiais ganharam muito com os produtos baratos chineses, mas
o peso do operário e da industrialização ocidental definharam.

A Índia também, aproximadamente, se reposicionou e seguiu os passos da China, buscando


fortalecer a sua base econômica no setor de serviços e investiu no crescimento pacífico para
tentar superar as condições de atraso e pobreza do país. Historicamente, a Índia tinha uma boa
relação com a Rússia e muitos conflitos com a China. Mas a relação recente dos dois gigantes
demográficos tem melhorado muito depois da formação da APEC (Cooperação Econômica Ásia-
Pacífico) e do grupo BRICS, mas principalmente depois da entrada da Índia na Organização para
a Cooperação de Xangai (OCX). Nos dias 27 e 28 de abril de 2018 houve um encontro informal
entre o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o presidente chinês, Xi Jinping, na cidade
de Wuhan. Em abril de 2019 haverá eleições na Índia (a maior democracia do mundo) e
Narendra Modi tenta se manter no poder. A cooperação China e Índia (Chíndia) tem melhorado
e é uma relação bilateral essencial para o Oriente e para o mundo.

Em quarto lugar, Irã entendeu que poderia ser a próxima vítima da interferência americana, pois
a revolução islâmica de 1979 não foi esquecida nem perdoada pelos EUA. Assim, o Irã e a Rússia
continuaram em seu caminho de rejuvenescimento militar a fim de garantir uma dissuasão

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suficiente para desencorajar quaisquer ataques de Israel ou dos EUA. A crise da Síria fortaleceu
os vínculos da Rússia e do Irã e enfraqueceu a presença americana na região.

Para piorar o sonho americano, a quebra do banco Lehman Brothers, em 2008, e a recessão que
enfraqueceu a economia dos EUA e a economia europeia, deixou o Ocidente com uma influência
menor e mais fraco na competição direta com o Oriente. O ritmo de crescimento do lado oriental
tem sido muito maior do que no lado ocidental.

Como mostra o gráfico abaixo, com dados do FMI (em poder de paridade de compra – ppp) a
correlação de forças mudou completamente no espaço de 30 anos. Em 1992, a economia do
grupo RICI (Rússia, Índia, China e Irã) representava apenas 14,6% do PIB mundial, enquanto os
EUA, a União Europeia e o Canada representavam 46,4% (os líderes ocidentais eram mais de 3
vezes maiores do que o “quadrante mágico”). Até 2001, os números não tinham mudado muito
com 45,6% para os países do Oeste contra 16,8% para os países do Leste. Contudo, as duas
primeiras décadas do século XXI assistiram uma mudança épica, com os dois grupos se
aproximando e com a ultrapassagem do RICI sobre os EUA+Canada+União Europeia a partir de
2020 (32,2% contra 31,7%. Segundo dados do FMI, o “quadrante mágico” vai abarcar 34,3% do
PIB global em 2023 contra 29,9% dos EUA, Canada e União Europeia.

Desde o fim do G8, em 2009, a Rússia se afastou definitivamente do G7. Com a anexação da
Crimeia, em 2014, e os crescentes conflitos com a Ucrânia, o divórcio da Rússia com o Ocidente
se aprofundou, deixando Moscou com a alternativa de ficar isolado ou se aproximar da China.
Lembrando que o aprofundamento do racha da China com a URSS foi uma das grandes
conquistas geopolíticas do governo Nixon na década de 1970. Contudo, a criação do grupo BRICS
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) a partir de um estudo feito pelo economista Jim O'
Neill, do banco de investimento Goldman Sachs, possibilitou a aproximação do chamado
“triângulo estratégico” formado pelo RIC: Rússia, Índia e China.

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Com o início do governo Donald Trump, em janeiro de 2018, a divisão entre o Ocidente e o
Oriente se consolidou, na medida que os EUA definiram sua política externa como “America
First”. Logo no seu primeiro dia de trabalho na Casa Branca, Trump assinou um decreto
determinando a saída dos EUA da Parceria Transpacífico (TPP), acordo assinado em 2015 por 12
países de três continentes, que era considerado o mais importante tratado comercial do mundo
nas últimas décadas. O isolacionismo e o antiglobalismo do governo Trump tem fortalecido o
protagonismo de Rússia, Índia e China (RIC) e o papel central na Eurásia, com forte influência
nos oceanos Pacífico e Índico.

Em maio de 2018, numa das decisões mais controvertidas de política externa, o presidente dos
EUA decidiu abandonar o acordo nuclear firmado com o Irã, retomando as sanções contra o país.
Exatamente em um momento em que o Irã desempenha um papel vital no Oriente Médio e
Índia, China e Rússia usam o Oriente Médio como uma ponte para promover a integração
energética, econômica e militar da Eurásia. Com a perspectiva de paz na Síria, Iraque e
Afeganistão, aumentam as chances de integração de dezenas de países da Eurásia e não sob a
batuta dos EUA. Em março de 2019, o presidente Donald Trump anunciou a intenção de retirar
a Turquia e a Índia do Sistema Geral de Preferências. Idealizado no âmbito da Conferência das
Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), esse sistema tem como objetivo
que as mercadorias de países em desenvolvimento possam ter acesso privilegiado aos
desenvolvidos.

Existe uma ampla literatura tratando do “triângulo estratégico (Rússia, Índia e China – RIC) que
está soerguendo a Eurásia e o Oriente e desafiando o poder dos Estados Unidos (EUA) e do
Ocidente (Alves, 26/04/2017). Mas, indo além de toda essa literatura, há pesquisadores e
autores que acrescentam o Irã na formação de um “quadrante mágico” (RICI) que está mudando
o mundo e reforçando a ideia do século XXI como o século da Ásia (Pieraccini, 25/01/2019).

Estes quatro países representam quatro civilizações e culturas muito diferentes da tradição
judaica-cristã-ocidental. A Rússia Ortodoxa (cristã oriental), a Índia Hindu, a China Ateia e
Budista e o Irã Muçulmano são o contraponto mais perfeito ao projeto de democracia liberal
com predominância do mercado. No lugar do “Consenso de Washington” tem se fortalecido o
denominado “Consenso de Beijing”, que consiste em uma combinação de regime político
autoritário e eficiência de mercado, com pelo menos as seguintes características:

 Promoção das economias em que a propriedade estatal continue sendo dominante;


 Promoção de câmbio competitivo, com mudanças graduais para evitar choques e
controle cambial para evitar a especulação;
 Políticas de promoção das exportações (Export-led growth) com proteção da indústria
local e dos setores estratégicos do país;
 Reformas de mercado, mas com controle das instituições políticas e culturais;
 Centralização das decisões políticas e das estratégias de projeção nacional.

Com o fim do poder unipolar dos EUA e o declínio relativo da economia dos países ocidentais, o
“quadrante mágico” aparece como uma alternativa não só para os países da Eurásia, mas
também para a África e até mesmo para a América Latina (sendo, por exemplo, a última tábua
de salvação para o regime de Nicolás Maduro na Venezuela e de Daniel Ortega na Nicarágua). A
próxima reunião de cúpula do BRICS será no Brasil, em 2019, e haverá confronto de
posicionamentos entre o Brasil e, principalmente, Rússia e China.

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A guerra comercial entre os EUA e a China pode acirrar as fissuras da economia e da governança
internacional. A prisão da executiva Meng Wanzhou, CFO da companhia Huawei, 2ª maior
produtora de celulares do mundo e grande produtora de equipamentos de telecomunicações
(com ligações estreitas com as forças armadas) é um exemplo da tensão que existe pela
liderança global da Revolução 4.0. O mundo ainda vai assistir a outros capítulos da guerra
científica e tecnológica entre China e os EUA, que envolve a disputa pela liderança da
implantação da infraestrutura da rede de internet móvel 5G, da Internet das coisas (IoT), da
Inteligência Artificial, computação quântica, etc.

A China, com a iniciativa “Um cinturão uma Rota”, busca unir o “quadrante mágico” e a Eurásia
na tentativa de criar a maior faixa continental de uma economia multimilionária. Enquanto isto,
os EUA brigam com os aliados e tenta construir um muro para se isolar da América Latina e do
mundo. Desta forma, fica cada vez mais provável a emergência da Era Asiática no século XXI e o
“quadrante mágico” vai estar no centro deste novo poder.

Referências:
ALVES, JED. RIC: o triângulo estratégico que pode mudar a governança mundial, Ecodebate,
26/04/2017
https://www.ecodebate.com.br/2017/04/26/ric-russia-india-e-china-o-triangulo-estrategico-
que-pode-mudar-governanca-mundial-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. A aliança China-Índia (Chíndia) e a ascensão do século asiático. Ecodebate,
04/05/2018 https://www.ecodebate.com.br/2018/05/04/a-alianca-china-india-chindia-e-a-
ascensao-do-seculo-asiatico-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
Federico Pieraccini. Russia China India and Iran The Magic Quadrant That is Changing the World,
Strategic culture, 25/01/2019
https://www.strategic-culture.org/news/2019/01/25/russia-china-india-iran-magic-quadrant-
that-is-changing-world.html
Ritesh Singh. Beware a full tilt to the US: A far better foreign policy for India will be an open
market and double-digit growth, TOI, January 31, 2019
https://timesofindia.indiatimes.com/blogs/toi-edit-page/beware-a-full-tilt-to-the-us-a-far-
better-foreign-policy-for-india-will-be-an-open-market-and-double-digit-growth/

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