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A importância do almoço

Enquanto quase todas as pessoas ao seu redor continuavam esforçando-se para


lutar contra as diferentes variedades de insucesso, Nero e Tony Gorducho tinham
algo em comum: horror ao tédio, especialmente à perspectiva de acordar cedo e
ter um dia inteiramente livre à sua frente. Assim, a principal razão para que eles
se encontrassem antes daquela crise econômica era, como diria Tony Gorducho,
“fazer o almoço”. Se alguém residir em uma cidade ativa (como Nova York) e
tiver uma personalidade amistosa, não terá problemas em encontrar boas
companhias para o jantar, pessoas que conseguem manter uma conversa
minimamente interessante, de forma razoavelmente descontraída. O almoço, no
entanto, é uma verdadeira dificuldade, em especial em períodos com altos níveis
de empregabilidade. É fácil encontrar companhias para o almoço entre os que
ficam enfurnados em escritórios, mas, confie em mim, ninguém desejará
aproximar-se desses indivíduos. Hormônios de estresse liquefeitos estarão
pingando de seus poros, eles se mostrarão ansiosos caso tenham de conversar
sobre qualquer assunto que possa desviá-los daquilo que consideram interferir em
seu “trabalho” e, quando alguém finalmente se deparar com alguma
preciosidade menos entediante ao investigar seus pensamentos, eles o
interromperão com um “Preciso sair correndo” ou “Tenho uma reunião às
14h15”.
Além do mais, Tony Gorducho se fazia respeitar exatamente nos ambientes
certos. Ao contrário de Nero, cujos ruminantes episódios filosóficos apagavam
sua presença social, tornando-o invisível aos garçons, Tony despertava reações
calorosas e entusiasmadas quando aparecia em um restaurante italiano. Ao
chegar, fazia um pequeno desfile diante dos garçons e funcionários; era
teatralmente abraçado pelo dono do restaurante, e, após a refeição, sua saída
transformava-se em um longo ritual, com o proprietário e, algumas vezes, a mãe
do proprietário esperando-o do lado de fora, segurando algum presente, como
grapa caseira (ou algum líquido estranho, em uma garrafa sem rótulo), mais
abraços e a promessa de retornar para a refeição especial de quarta-feira.
Consequentemente, quando estava nas redondezas de Nova York, Nero
conseguia diminuir sua ansiedade em relação à hora do almoço, já que sempre
podia contar com Tony. Ele se encontrava com Tony na academia de ginástica;
lá, nosso herói horizontalmente debilitado fazia seu triatlo (sauna, jacuzzi e banho
a vapor), e, dali, os dois partiam para ser reverenciados pelos donos de
restaurantes. Então, um dia, Tony explicou ao colega que Nero não tinha
serventia alguma para ele à noite — Tony poderia conseguir amigos melhores,
mais bem-humorados, mais italianos e de Nova Jersey, que, ao contrário de
Nero, poderiam lhe trazer ideias para fazer “algo útil”.
A antifragilidade das bibliotecas
Nero levava uma vida de ascetismo misto (e transitório), indo deitar-se o mais
próximo das nove horas da noite que conseguia, às vezes até ainda mais cedo
durante o inverno. Ele tentava deixar as festas quando o efeito do álcool fazia
com que as pessoas começassem a falar sobre sua vida pessoal com estranhos
ou, pior, quando começavam os assuntos metafísicos. Nero preferia fazer suas
atividades à luz do dia, tentando acordar de manhã cedo, com os raios do sol
penetrando suavemente seu quarto, deixando listras nas paredes.
Ele passava o tempo encomendando livros em lojas na internet, e, com
bastante frequência, os lia. Depois de encerrar suas aventuras extremamente
turbulentas, tais como as de Simbá, o marujo, e de Marco Polo, o viajante
veneziano, ele acabou por se contentar com uma vida pós-aventureira, tranquila
e serena.
Nero era vítima de um transtorno estético, e alguns elementos lhe causavam
repulsa e até mesmo fobia: pessoas que usavam chinelos, aparelhos de televisão,
banqueiros, políticos (de direita, de esquerda ou centristas), Nova Jersey, pessoas
ricas de Nova Jersey (como Tony Gorducho), pessoas ricas que faziam cruzeiros
(e aportavam em Veneza usando chinelos), administradores universitários,
ferrenhos defensores gramaticais, indivíduos que citam nomes de pessoas
importantes para impressionar os outros, música de elevador e vendedores e
empresários bem-vestidos. Já a alergia de Tony Gorducho era um pouco
diferente: à pessoa desimportante, que, conforme especulamos, é alguém que
comanda todos os detalhes supérfluos e administrativos das coisas, mas que
negligencia o essencial (e nem sequer se dá conta disso); sua conversa, portanto,
torna-se mero falatório em torno da questão, sem nunca alcançar a ideia central.
E Tony Gorducho era um farejador de fragilidade. Literalmente. Ele alegava
que conseguia decifrar uma pessoa simplesmente ao vê-la entrar em um
restaurante, e, quase sempre, estava certo. Mas Nero notara que, quando Tony
Gorducho conversava com as pessoas pela primeira vez, ficava muito perto delas
e as cheirava, como um cão, hábito do qual Tony nem estava ciente.
Nero pertencia a uma sociedade de sessenta tradutores voluntários que
colaboram para a editora francesa Les Belles Lettres, traduzindo textos antigos
inéditos do grego, latim ou aramaico (sírio). O grupo organiza-se com base em
diretrizes libertárias, e uma de suas regras é que títulos e prestígio universitários
não significam primazia nas discussões. Outra regra é a presença obrigatória em
duas “digníssimas” comemorações em Paris, a cada 7 novembro, dia da morte
de Platão, e a cada 7 de abril, dia de nascimento de Apolo. A outra associação do
qual ele faz parte é um clube local de levantadores de peso, que se reúne aos
sábados, em uma garagem. O clube é composto, principalmente, por porteiros,
faxineiros e sujeitos com cara de mafiosos de Nova York, que andam por aí no
verão vestindo camisetas sem mangas, do tipo “mamãe-tô-forte”.
Infelizmente, homens livres de responsabilidades tornam-se escravos de
sentimentos de insatisfação e de interesses sobre os quais têm pouco controle.
Quanto mais tempo livre tinha, mais Nero se sentia compelido a compensar o
tempo perdido preenchendo as lacunas com seus interesses naturais, coisas que
ele queria conhecer um pouco mais profundamente. E, conforme ele mesmo
constatou, a pior coisa que alguém pode fazer para sentir que conhece as coisas
um pouco mais profundamente é tentar aprofundar-se um pouco mais nelas.
Quanto mais se desce, mais profundo fica o mar, diz um provérbio veneziano.
A curiosidade é antifrágil, como se fosse um vício, e é ampliada pelas
tentativas de satisfazê-la — os livros têm a missão secreta e a capacidade de se
multiplicar, como bem sabem todos aqueles que têm estantes de uma parede à
outra da casa. Enquanto este livro era redigido, Nero vivia em meio a 15 mil
livros, estressado por precisar descartar as caixas vazias e o material de
embalagem quando a remessa diária chegava da livraria. Um dos assuntos que
ele lia por prazer, e não pela excêntrica obrigação de ler-para-se-tornar-maisinstruído,
era medicina; ele tinha uma curiosidade natural por textos médicos. A
curiosidade surgiu depois que ele teve dois encontros com a morte, o primeiro
em função de um câncer, e o segundo, por causa de um acidente de helicóptero,
que o alertou tanto para a fragilidade da tecnologia quanto para os poderes de
autocura do corpo humano. Então, ele passava algum tempo lendo livros
didáticos (não eram artigos — eram livros didáticos) de medicina ou textos
especializados.
Oficialmente, Nero era formado em estatística e probabilidade, que ele
abordava como se fossem um ramo especial da filosofia. Ele tinha passado a
vida adulta escrevendo um livro filosófico-técnico, chamado Probabilidade e
metaprobabilidade. Sua tendência era abandonar o projeto a cada dois anos e
retomá-lo novamente dois anos depois. Para ele, o conceito de probabilidade, tal
como era utilizado, mostrava-se muito limitado e incompleto para exprimir a
verdadeira natureza das decisões na ecologia do mundo real.
Nero gostava de fazer longas caminhadas em cidades antigas, sem recorrer a
mapas. Ele adotava o seguinte método para desturistificar sua viagem: tentava
introduzir um pouco de aleatoriedade em sua programação, sem nunca decidir
sobre o próximo destino até que tivesse passado algum tempo no primeiro,
levando à loucura o agente de viagens — quando estivesse em Zagreb, seu
próximo destino seria determinado pelo seu estado de espírito enquanto estivesse
em Zagreb. Na maior parte das vezes, era o cheiro dos lugares que o atraía até
lá; era impossível expressar o cheiro em um catálogo.
Quase sempre, quando estava em Nova York, Nero se sentava para estudar,
com sua mesa de trabalho contraposta à janela, observando às vezes, com ar
sonhador, a costa de Nova Jersey para além do rio Hudson, lembrando-se do
quanto era feliz por não morar lá. Então, ele confessou a Tony Gorducho que a
frase “não tenho nenhuma serventia para você” era recíproca (em termos
igualmente não diplomáticos), o que, como veremos, não era verdadeiro.
SOBRE OS IDIOTAS E OS NÃO IDIOTAS
Após a crise de 2008, ficou claro o que os dois companheiros tinham em comum:
estavam prevendo uma crise de fragilidade para os idiotas. O que facilitara sua
aproximação é que ambos estavam convencidos de que uma crise de tamanha
magnitude, com uma destruição vertiginosa do sistema econômico moderno, de
uma forma e em uma escala nunca antes observadas, estava prestes a acontecer,
simplesmente porque havia pessoas idiotas no mundo. Mas nossos dois
personagens provinham de duas escolas de pensamento totalmente diferentes.
Para Tony Gorducho, os nerds, os administradores e, principalmente, os
banqueiros eram os idiotas supremos (isso quando todos ainda pensavam que eles
eram gênios). Além disso, Tony acreditava que, em conjunto, eles eram ainda
mais idiotas do que individualmente. E ele tinha uma habilidade natural para
detectar esses idiotas antes de sua ruína. A renda de Tony Gorducho provinha
dessa atividade, ao mesmo tempo que levava, conforme vimos, uma vida sem
muitas responsabilidades.
Os interesses de Nero eram semelhantes aos de Tony, exceto pelo fato de
serem revestidos de tradições intelectuais. Para Nero, um sistema construído
sobre as ilusões de compreensão das probabilidades estava fadado a entrar em
colapso.
Ao apostar contra a fragilidade, eles eram antifrágeis.
Foi assim que Tony fez um pé-de-meia com a crise, algo entre oito e nove
dígitos — para Tony, qualquer outra coisa que não fosse um pé-de-meia era
“papo furado”. Nero também lucrou alguma coisa, embora muito menos do que
Tony, ainda que tenha ficado satisfeito por ter saído ganhando — como dissemos,
ele já era financeiramente independente e considerava o dinheiro um
desperdício de tempo. Para ser bem direto, a riqueza da família de Nero atingira
o auge em 1804, e, portanto, ele não tinha a insegurança social de outros
aventureiros; dinheiro, para ele, estava longe de ser um meio de afirmação social
— por enquanto, ele se valia apenas da erudição, e, talvez, da sabedoria na
velhice. O excesso de riqueza, quando não se precisa dela, é um fardo pesado. A
seu ver, nada era mais tenebroso do que o excesso de requinte — em roupas,
alimentos, estilo de vida, atitudes —, e a riqueza era não linear. Para além de
certo nível, ela impõe às pessoas complicações intermináveis em sua vida,
criando preocupações sobre as possíveis trapaças da governanta em uma das
casas de campo e sua má conduta profissional, e dores de cabeça semelhantes,
potencializadas com o dinheiro.
A ética de apostar contra os idiotas será discutida no Livro VII, mas existem
duas escolas de pensamento relacionadas ao assunto. Para Nero, seria preciso,
primeiro, advertir as pessoas de que elas são idiotas, enquanto Tony era contra a
própria ideia de alerta. “Você será ridicularizado”, dizia ele; “Palavras são para
os covardes”. Um sistema baseado em advertências verbais será dominado por
pessoas que só fazem falar, e que não assumem riscos. Essas pessoas não o
respeitarão nem respeitarão suas ideias, a menos que você lhes tome o dinheiro.
Além disso, Tony Gorducho insistia para que Nero tivesse um olhar
cerimonioso diante das encarnações físicas do patrimônio, por exemplo, um
extrato de conta bancária — como dissemos, não tinha nada a ver com o valor
financeiro e nem mesmo com o poder de compra dos itens, mas apenas com seu
valor simbólico. Ele conseguia entender por que Júlio César precisara arcar com
os custos de levar Vercingetorix, o líder da rebelião gaulesa, para Roma e fazê-lo
desfilar acorrentado, apenas para que pudesse expor na carne sua vitória.
Há outra dimensão para a necessidade de focar nas ações e evitar as
palavras: a dependência do reconhecimento externo, algo que corrói a saúde. As
pessoas são cruéis e injustas na forma como conferem reconhecimento;
portanto, o melhor é ficar de fora desse jogo. Permaneça robusto à maneira
como os outros o tratam. A certa altura, Nero fez amizade com um idolatrado
cientista, uma pessoa de capacidade notável, por quem ele tinha imenso respeito.
Embora o sujeito fosse o mais proeminente possível em sua área (aos olhos dos
outros), passava seu tempo focado no status que a comunidade científica lhe
concederia naquela semana. Ele ficava furioso com autores que não o citavam
ou com algum comitê que outorgasse a medalha que ele nunca recebera a
alguém que ele considerasse inferior, aquele impostor!
Nero aprendeu que, independentemente do nível de satisfação com suas
próprias obras, estes figurões-que-dependiam-de-palavras estavam privados da
serenidade de Tony ; eles permaneciam frágeis ao impacto emocional dos elogios
que não recebiam, dos elogios que os outros recebiam e daquilo que alguém de
menor envergadura intelectual pudesse lhes roubar. Então, Nero prometeu a si
mesmo que fugiria de tudo isso com seu pequeno ritual — caso se deixasse levar
pela mesma tentação do figurão. O patrimônio de Nero originado com o que ele
chamava de “a aposta de Tony Gorducho”, após a dedução dos custos de um
carro novo (um miniconversível) e de um novo relógio Swatch de sessenta
dólares, chegava a uma cifra estonteantemente alta, e estava armazenado em
uma carteira de investimentos cujo balanço lhe era enviado mensalmente pelo
correio, proveniente de um endereço (de vários locais) de Nova Jersey, com três
outros extratos demonstrativos vindos de países estrangeiros. Novamente, não era
a quantidade, mas a concretude de sua ação que importava — os valores
poderiam ser de um décimo, até mesmo de um centésimo do montante total, e o
efeito permaneceria o mesmo. Então, ele se curaria do jogo de reconhecimento
abrindo o envelope que continha o extrato e, em seguida, prosseguiria
normalmente com seu dia, ignorando aqueles cruéis e injustos usuários de
palavras.
Contudo, seguindo essa ética até sua conclusão natural, Nero, provavelmente,
se sentiria igualmente orgulhoso — e igualmente satisfeito — caso o envelope
contivesse extratos que demonstrassem prejuízos. Um homem é honrado na
proporção dos riscos pessoais que assume por suas opiniões — em outras
palavras, a quantidade de desvantagem a que está exposto. Resumindo, ele
acreditava na erudição, na estética e assumia riscos — nada mais do que isso.
Quanto aos recursos, para evitar a armadilha da caridade, Nero seguia a
regra de Tony Gorducho, que era fazer doações sistematicamente, mas não para
aqueles que pediam donativos diretamente. E ele nunca (jamais) ofereceu um
centavo sequer a qualquer organização beneficente, com a possível exceção
daquelas em que nenhum de seus membros recebia um salário.

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