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Marcelo da Silveira Campos, “Pela metade: as principais implicações da

nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo”

A emergência da Nova Lei de Drogas: um histórico completo do dispositivo médico-


criminal de drogas

A proposta da Lei de Drogas teve origem na CPI do Narcotráfico, e tinha por


objetivo a criação de um Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD).
Através desse sistema, buscava-se incrementar a severidade das punições para o
tráfico de drogas e, ao mesmo tempo, deslocar o usuário do campo penal para o da
assistência médica e social.

Para Campos, a leitura dos documentos oficiais elaborados durante o trâmite


do projeto de lei revela duas preocupações centrais: a necessidade de diferenciação
entre usuários e traficantes e a diminuição das negociações ilícitas entre policiais e
usuários/traficantes.

Linha do tempo do processo legislativo

1. 07/05/2002: apresentação do projeto de lei do Senado Federal n.º 115 de


2002 pelo GT “Subcomissão – Crime Organizado, Narcotráfico e Lavagem de
Dinheiro” (gestão FHC).
2. 07/08/2002: aprovação da redação final do projeto.
3. 21/08/2002: remessa do projeto à Câmara dos Deputados para revisão (PL
7134/2002).
4. 21/05/2003: recebimento do projeto na Comissão de Constituição e Justiça
e Cidadania (CCJC), pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação
(CCJR). Nesse momento, houve o apensamento do PL 6108/2002 e a
designação de Paulo Pimenta, do PT-RS, como relator do projeto da Nova
Lei de Drogas.
5. 17/02/2004: aprovação do PL 7134/02, com a incorporação de parte do PL
6108/02. Foi apresentado um substitutivo pela CSPCCOVN (Comissão de
Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e
Narcotráfico), remetido então ao Senado Federal.
6. 03/07/2004: apresentadas sugestões do Conselho Nacional Penitenciário
de Política Criminal (CNPCP) e do Ministério da Justiça. Foi elaborada uma
emenda substitutiva global.
7. 06/07/2006: elaboração de pareceres por Sérgio Cabral e Romeu Tuma.
8. 13/07/2006: incorporação dos pareceres. No mesmo dia, houve discussão
em turno único do substitutivo da Câmara dos Deputados ao PLS 115/200,
com votação, aprovação e envio à Sanção.
9. 03/08/2006: parecer nº 932 – redação final do PLS.
10. 23/08/2006: sanção e publicação da Lei 11.343.
11. 15/02/2012: resolução nº 5 do Senado Federal.

Projeto de lei inicial

O PLS nº 115/2002 foi elaborado pela Comissão Mista de Segurança Pública –


“Grupo de Trabalho da Subcomissão Crime Organizado, Narcotráfico e Lavagem de
Dinheiro (Grupo 3)”. De iniciativa do Senado Federal, foi apresentado em 07/05/2002,
e teve inicialmente a relatoria do Deputado Moroni Torgan (PFL/CE). Os Senadores Iris
Rezende (PMDB/GO) e Artur da Távola (PSDB/RJ) foram nomeados, respectivamente,
Presidente e Vice-Presidente da Comissão.

A origem da Comissão, em 2002, remonta à chamada “onda de sequestros”,


série de eventos de grande repercussão midiática em razão da ocorrência reiterada de
sequestros na capital de São Paulo e cidades próximas. Conforme o próprio relatório
da Comissão, seu surgimento decorre de um sentimento de “obrigação”, por parte do
Congresso Nacional, de “mobilizar todas as forças partidárias em prol de superar tão
grave problema”. Sendo assim, composta por 20 Senadores e 20 Deputados, a
Comissão tinha por objetivo a elaboração, em apenas 60 dias, de projetos de lei e até
mesmo de propostas de emenda à Constituição ligadas à questão da segurança
pública.

Nesse contexto, surgiu o Projeto 18, fruto dos trabalhos empreendidos pelo GT.
Sua composição contava com os Deputados Magno Malta (PTB/ES), Luiz Eduardo
Greenhalgh (PT/SP), Robson Tuma (PFL/SP) e Wanderley Martins (PSB/RJ).

Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e


Narcotráfico - CSPCCOVN/2003
Em 2003, com a eleição de Lula e a consequente mudança partidária no
Executivo, foi alterada também a composição partidária no Legislativo. Com isso, a
composição das Comissões se alterou, e a relatoria do projeto passou ao Deputado
Paulo Pimenta, do PT/RS.

Da análise comparativa das redações apresentadas durante a tramitação,


extraem-se algumas conclusões:

1. O fim da pena de prisão para o usuário de drogas foi sugerido desde o


Projeto de Lei originário do Senado;
2. Havia, no início, uma preocupação em estabelecer uma quantidade
limite ao uso, por meio do termo “pequena quantidade”. No entanto,
essa redação foi excluída do texto final;
3. O aumento da pena base foi incorporado ao texto somente no último
Projeto de Lei, por sugestão do Deputado Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ).

Distinção entre usuário e traficante

Conforme o parecer do Deputado Paulo Pimenta, o novo dispositivo legal,


então em elaboração, seria capaz de diferenciar o “usuário” do “traficante”,
principalmente a partir da abolição de penas restritivas de liberdade para o primeiro. A
todo tempo, então, afasta uma figura da outra, aproximando o usuário do sistema
médico/assistencialista e o traficante da prisão. Ainda assim, o uso de drogas não seria
descriminalizado.

Análise empírica – O impacto da nova legislação no sistema de justiça criminal em


São Paulo

Conforme se observou, o legislador esperava que a Nova Lei de Drogas


deslocaria o usuário do cárcere, de forma que o dispositivo teria, de certa forma, um
caráter despenalizante. No entanto, como bem se sabe, não foi essa a realidade
observada após a publicação da lei.

De pronto, o autor pontua que são os operadores do sistema de justiça criminal


que produzem as taxas de comportamento desviante, ao processar determinadas
condutas enquanto desviantes. Sendo assim, não é possível negligenciar a posição
social do indivíduo diante das práticas desses operadores, que, situados em posições
de poder numa sociedade notoriamente desigual, tendem a reproduzir estereótipos
atrelados à criminalidade.

Diante dessas bases, Campos buscou, em sua pesquisa, esclarecer de que


maneira a nova legislação passou a ser mobilizada pelo sistema de justiça criminal.
Para tanto, utilizou dados empíricos colhidos na cidade de São Paulo, em delegacias
policiais nos bairros de Santa Cecília e Itaquera, representantes, respectivamente, do
centro e da periferia – com a ressalva da notória existência de um centro de consumo
de crack no primeiro. Os identificadores utilizados foram os de gênero, idade, grau de
escolaridade, estado civil, ocupação, estado e país de nascimento.

Campos empreende a análise de 1.256 processos de criminalização, divididos


entre 1.014 em Santa Cecília e 242 em Itaquera.

Com relação ao marcador de gênero, a proporção observada foi de cerca de


74% de homens e 26% de mulheres em Santa Cecília, ao passo que em Itaquera a
proporção ficou de 94% para 6%. Quanto ao estado civil, mais de 80% dos incriminados
nas duas delegacias eram solteiros. Sobre a faixa etária, 70% situavam-se na faixa dos
18 aos 30 anos.

Vinculado de forma mais profunda a marcadores de classe, o identificador do


grau de escolaridade revela uma relação direta com a criminalização: quanto maior o
nível, menor o número de pessoas criminalizadas por uso ou tráfico de drogas.
Somente 3% dos indivíduos incriminados possuíam Ensino Superior, completo ou
incompleto. Em oposição, a faixa do Ensino Fundamental (completo ou incompleto)
soma cerca de 73% dos casos.

Outra variável também bastante ligada à classe social é a da ocupação. 20% dos
incriminados estavam em situação de desemprego, e pouco mais de 30% trabalhavam
em serviços ou vendas, profissões de baixa escolaridade e, por vezes, caráter informal.
Essas duas parcelas, somadas, compõem mais da metade dos casos. A criminalização
por tráfico, portanto, “repõe a seletividade do desemprego e do subemprego, já que
as chances de emprego e de alternativas formais à comercialização e ao uso de drogas
estão desigualmente distribuídas entre os diferentes grupos sociais no Brasil
contemporâneo”.
Não há como negar, dessa forma, o impacto que a posição social do acusado
possui no enquadramento de sua conduta pelos operadores do sistema de justiça
criminal.

Papel de destaque, nesse sentido, é o da polícia, que adquire ainda mais relevo
em nosso sistema de civil law. Essa instituição é responsável pelo primeiro contato e
enquadramento da conduta vista como ilegal, numa fase que se torna mais autônoma
quanto maior a exclusão social do acusado.

Campos ainda procura explicar o aumento do encarceramento por tráfico de


drogas a partir de uma segunda frente de pesquisa, com o objetivo de produzir
explicações distintas daquelas que justificam o fenômeno pela ausência de critérios
objetivos de distinção entre usuários e traficantes. Segundo essa linha, tal ausência
estaria levando à maior incriminação de usuários, em razão, principalmente, da já
mencionada discricionariedade policial. Assim, para analisar a questão, o autor
procede a um estudo por meio da série temporal interrompida.

Dessa análise, extrai-se que, quanto maior a distância temporal do ano de


2006, maior a quantidade de pessoas incriminadas por tráfico e menor a daquelas
incriminadas por uso. A partir disso, é possível concluir que houve uma forte rejeição à
parcela médica da Nova Lei de Drogas, sendo incorporada pelo sistema de justiça
criminal somente a parte punitiva. Não por acaso, desde a publicação da lei, a
probabilidade de incriminação por tráfico de drogas aumenta progressivamente.

Outro fator decisivo para a análise é a quantidade de droga apreendida. De


acordo com os dados coletados pelo autor, mais de 50% das pessoas portava até 7
gramas de todos os tipos de drogas. Até nas faixas de menor quantidade (3 gramas)
pôde-se observar que o número de pessoas incriminadas por tráfico duplicou após a
vigência da nova Lei. Dessa forma, mesmo quando apreendidas pequenas quantidades
de drogas, a tendência crescente é a da condenação.

Os dados revelam, portanto, que o dispositivo foi recebido pelos operadores do


sistema de justiça criminal quase de forma exclusiva pelo seu viés penal, e, por
consequência, com a imposição de penas de prisão.

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