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P ARTE I

A CULTURA DO
BRINCAR E A INFÂNCIA
O brincar e os
usos do brincar
1
Peter K. Smith

Dentre as pessoas interessadas na criança pequena, poucas põem em


dúvida a fascinação do brincar. Quer seja o brincar fisicamente exuberante,
as brigas e perseguições de faz-de-conta ou as brincadeiras de dramatização
que imitam o mundo dos adultos, quer seja o brincar com palavras e con-
venções verbais, o certo é que o brincar evoca um mundo infantil livre de
preocupações para adultos que se sentem esmagados pelas responsabili-
dades do trabalho. De fato, o brincar freqüentemente é visto como o opos-
to do trabalho – uma atividade realizada por si mesma, sem limitações
externas. Mas conflitos e limitações também ocorrem no brincar, como em
qualquer outra atividade, e neste último meio século houve talvez uma
tendência a idealizar o brincar, particularmente por parte dos educadores
(Sutton-Smith, 1986); esse é um tema ao qual eu retornarei. Apesar disso,
essa fascinação é real.
O brincar, de certo modo, é um enigma. Exatamente qual é a sua impor-
tância no desenvolvimento? Ele certamente é prazeroso, mas será que tam-
bém é vital? Algumas pessoas respondem afirmativamente a essa pergunta,
mas isso é difícil de provar. De qualquer forma, ele é importante? E será que
devemos deixar que as crianças brinquem sozinhas ou devemos tentar
“estruturar” e “melhorar” o brincar por meio da intervenção adulta? Esses
são alguns dos temas a serem discutidos neste capítulo de abertura.

TIPOS DO BRINCAR

O brincar é extremamente característico na faixa etária dos 2 aos 6 anos.


Esse é o período do desenvolvimento infantil mais importante para o brincar
simbólico. Piaget (1951) distinguiu entre brincar prático, brincar simbólico e
jogos com regras. O brincar prático inclui o brincar sensório-motor e explo-
ratório do jovem bebê – especialmente dos 6 meses aos 2 anos; o brincar
simbólico abrange o brincar de faz-de-conta, de fantasia e sociodramático da
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criança pré-escolar, de cerca dos 2 ou 3 anos até os 6; os jogos com regras


caracterizam as atividades das crianças a partir dos 6 ou 7 anos.
Grande parte do brincar da criança pré-escolar será simbólica. As crian-
ças fingem que uma ação ou um objeto tem um significado diferente do seu
significado usual na vida real; por exemplo, se uma criança gira os braços,
diz “biiii-biiii” e distribui pedacinhos de papel, ela está fingindo que está
dirigindo um ônibus, buzinando e distribuindo as passagens. Se essas
ações estiverem suficientemente integradas, podemos dizer que a criança
está dramatizando ou desempenhando um papel (no caso, fingindo ser um
motorista de ônibus). Se duas ou mais crianças estiverem juntas, envol-
vidas na mesma dramatização, esse é o brincar sociodramático (examina-
do mais detalhadamente no Capítulo 7). Essas formas do brincar, segundo
Piaget, parecem se intensificar com a idade e depois diminuir, no perío-
do dos 3 aos 7 anos.
O esquema de Piaget foi levemente modificado e ampliado por Smilans-
ky (1968). Ela acrescentou uma categoria de brincar construtivo, em que os
objetos são manipulados para construir ou criar alguma coisa. Muitos profes-
sores, na verdade, consideram essas atividades construtivas como brincar.
Piaget (1951), entretanto, acreditava que os “jogos construtivos (...) ocu-
pam (...) uma posição intermediária entre o brincar e o trabalho inteligente,
ou entre o brincar e a imitação”, por pensar que a natureza das atividades
construtivas, orientada para um objetivo, significava que elas eram “acomo-
dativas” – a criança adapta o seu comportamento para que se ajuste à rea-
lidade – ao passo que o brincar simbólico era “assimilativo” – adaptar a rea-
lidade para que se ajuste aos próprios desejos.
Certos tipos do brincar não se ajustam bem nem aos esquemas de Pia-
get nem aos de Smilansky (Takhvar e Smith, 1990). Por exemplo, o brincar
de atividade física (correr, subir em árvores, escorregar, balançar-se e outras
formas de brincar que envolvem a musculatura ampla) e o brincar turbulento
(brincar de brigar, lutar e perseguir) são muito característicos da criança pe-
quena, especialmente em áreas de brincar ao ar livre (Capítulo 4). Mas essas
formas de brincar não são construtivas e não são necessariamente simbó-
licas. Essas formas de brincar têm sido um pouco negligenciadas pelos psicó-
logos e pelos educadores, que têm dado mais atenção ao brincar construtivo
e ao brincar simbólico, especialmente em discussões sobre currículos de edu-
cação infantil.
O comportamento de brincar é uma maneira útil de a criança adquirir
habilidades desenvolvimentais – sociais, intelectuais, criativas e físicas. Em
primeiro lugar, grande parte do brincar é social. O brincar sociodramático e o
brincar turbulento necessariamente envolvem coordenação de atividades en-
tre um ou mais parceiros. Essas formas do brincar constituem um modo
primário de interação social nesse intervalo de idade (incluindo a identidade
A excelência do brincar • 27

de gênero, conforme discutido no Capítulo 3). Isso não acontece tanto no


brincar construtivo, que pode, mas não precisa, ser social. A maioria das
formas do brincar ocorre naturalmente entre crianças de idade semelhante,
mas o brincar também pode promover o relacionamento entre a criança e o
adulto se o adulto se envolver em uma atividade de brincar com a criança
(isso é examinado no Capítulo 8).
Em segundo lugar, muitos teóricos afirmam que o brincar traz benefícios
intelectuais. O brincar sociodramático pode favorecer as habilidades de lin-
guagem e de desempenho de papéis, enquanto o brincar construtivo pode
incentivar o desenvolvimento cognitivo e a formação de conceitos. Esses as-
pectos do desenvolvimento cognitivo podem se sobrepor a critérios esco-
lares de realização acadêmica, embora não sejam idênticos a eles.
Muitos teóricos e educadores acreditam que a experiência do brincar é a
maneira ideal de desenvolver a criatividade e a imaginação (Roy Prentice, por
exemplo, examina a arte e o brincar no Capítulo 10). Isso porque as crianças
ficam livres para experimentar novas idéias no brincar e podem se expressar à
sua própria maneira, especialmente no jogo simbólico e no brincar de faz-de-
conta, em que podem inventar papéis e criar uma história, guiadas livremente
pela própria imaginação. Por fim, grande parte do brincar é fisicamente ativa. O
brincar construtivo é uma forma de praticar habilidades motoras finas, en-
quanto o brincar físico que envolve a musculatura ampla e o brincar turbulento
exercitam o corpo todo e a coordenação motora.

Figura 1.1 Diferentes temas do brincar de faz-de-conta geram tipos


diferentes do brincar social.
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Parece plausível e provável – como Angela Anning e Tina Bruce argu-


mentam (Capítulos 5 e 15, respectivamente) – que as atividades do brincar
podem promover a maioria dos objetivos da educação dos primeiros anos
em todos os seus principais aspectos: social, intelectual, criativo e físico. No
entanto, é importante manter um senso de perspectiva em relação a isso. Os
objetivos da educação nos primeiros anos também podem ser facilitados por
muitas outras atividades mais estruturadas ou didáticas, jogos organizados,
exercícios físicos, narração de histórias e tarefas da vida real, como preparar
comidas (os aspectos culturais são discutidos por Audrey Curtis no próximo
capítulo) e arrumar a sala de aula. Essas atividades não são, necessaria-
mente, “brincar” (a menos que ampliemos a definição de brincar de modo
inaceitável, incluindo nela todos os comportamentos das crianças peque-
nas!). Os benefícios do brincar precisam ser comparados com os benefícios
das atividades de não-brincar.

UM CURRÍCULO DE BRINCAR LIVRE

Se o brincar é útil no desenvolvimento, como deve ser usado no currículo


dos primeiros anos? Uma idéia é que as crianças devem ter à disposição uma
variedade de bons materiais e acessórios, adequados para o brincar, e que
sejam deixadas livres para brincar de acordo com suas necessidades e inclina-
ções. Muitos educadores da Europa Ocidental acreditam que tal currículo
baseado no brincar livre é a forma ideal de experiência pré-escolar. Como a
maioria das idéias, essa também tem a sua história. O brincar não era visto
como valioso em termos educacionais quando as escolas de educação infantil
inicial começaram a ser introduzidas na Europa Ocidental nos séculos XVIII e
XIX. Acreditava-se que as crianças precisavam de instrução e, no caso de dou-
trinas religiosas, de remissão por seus comportamentos pecaminosos. Entre-
tanto, alguns autores e educadores – como o escritor tcheco Comenius, o
escritor suíço Rousseau e os primeiros reformadores sociais e educadores,
como Owen (Reino Unido), Pestalozzi (Suíça), Froebel (Alemanha) e Mon-
tessori (Itália) – começaram a enfatizar o valor do desenvolvimento espon-
tâneo da criança e a imagem da criança como naturalmente “boa”. Desse pon-
to de vista, o brincar espontâneo era considerado como tendo certa im-
portância. Além disso, o valor do envolvimento ativo dos professores era fre-
qüentemente enfatizado, embora com considerável variação nos tipos de
atividades recomendados. Montessori, por exemplo, priorizava as atividades
do brincar construtivo, com o uso de materiais especificamente planejados,
mas não incentivava o brincar de faz-de-conta ou o jogo simbólico.
Uma atitude ainda mais positiva em relação ao valor do brincar espon-
tâneo e do brincar dramático ganhou destaque no século XX, especialmente
A excelência do brincar • 29

no período de 1930 a 1970, pelo menos no que concerne a muitos teóricos


da educação inicial da Europa Ocidental. O brincar espontâneo passou a ser
visto não só como importante, mas também como um componente essencial
do desenvolvimento social e intelectual da criança, e de seu desenvolvi-
mento criativo e pessoal. Esse ponto de vista pode ser chamado de etos do
brincar (Smith, 1988). Susan Isaacs (1929, p. 9) resumiu essa perspectiva
quando escreveu: “O brincar, na verdade, é o trabalho da criança e o meio
pelo qual ela cresce e se desenvolve”. E, novamente, no The Plowden Report
(DES, 1967, p. 193): “Nós agora sabemos que o brincar – no sentido de ‘fazer
alguma coisa’, quer com objetos materiais quer com outras crianças, e
de criar fantasias – é vital para a aprendizagem das crianças e, portanto, vital
na escola. Os adultos que criticam os professores por permitir que as crian-
ças brinquem não sabem que o brincar é o principal meio de aprendizagem
na primeira infância”.

Figura 1.2 O princípio de


que as crianças aprendem
por meio do brincar e que
as atividades do brincar
devem fazer parte dos
programas curriculares da
primeira infância é aceito
entre os educadores na
maioria dos países.

O etos do brincar – essa avaliação particularmente forte do brincar li-


vre – parece ter surgido por várias razões. Ele pode ser apoiado por argumen-
tos de perspectivas teóricas como a psicanálise (que sugere o papel do brin-
car na expressão de emoções e na elaboração de conflitos pessoais) e a bio-
logia evolutiva (que sugere o valor do brincar para todas as espécies mamí-
feras). Igualmente, mudanças socioeconômicas mais amplas na Europa Oci-
dental e na América do Norte (como famílias menores, redução da taxa de
mortalidade infantil, separação entre trabalho e vida doméstica e cresci-
mento da indústria de brinquedos) levaram à maior concentração nas crian-
ças como um grupo distinto, com necessidades diversas das dos adultos.
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Com início nas décadas de 1920 e 1930, o etos do brincar tem mantido
uma continuada influência sobre a educação dos primeiros anos. Autores
como Singer e Smilansky argumentaram que o brincar traz grandes benefí-
cios cognitivos ou sociais; embora os textos de Piaget sejam mais ambivalen-
tes sobre essa questão, muitas vezes foram reinterpretados como apoiando
esses argumentos. O resultado foi a ênfase no respeito pelo brincar espon-
tâneo da criança – e pelas suas iniciativas – e não pela estruturação ou dire-
ção do brincar proporcionadas pelo adulto.
Surpreendentemente, não existem muitas evidências sólidas confir-
mando essa visão positiva do brincar espontâneo. Alguns estudos experi-
mentais da década de 1970 realmente parecem apontar para a superioridade
do brincar livre em relação a atividades estruturadas de tarefas de solução de
problemas, mas métodos quantitativos mostraram, posteriormente, que
esses estudos não eram válidos (Smith, 1988). Eles não representavam ade-
quadamente a natureza real do brincar espontâneo e foram freqüentemente
distorcidos pelos “efeitos do experimentador”. Evidências mais válidas são
encontradas em estudos de tutoramento do brincar, embora comprovações
mais recentes indiquem conclusões mistas (Smith, 1988). Muitos educado-
res e psicólogos infantis continuam divididos e inseguros a respeito da im-
portância do brincar espontâneo no desenvolvimento e a respeito do papel
do adulto. Embora o “etos do brincar” continue influente, houve um certo
retorno a atividades curriculares mais estruturadas na Europa Ocidental,
especialmente desde o advento do Currículo Nacional com o Education Re-
form Act de 1988, no Reino Unido

ESTRUTURANDO O BRINCAR POR


MEIO DO ENVOLVIMENTO ADULTO

Apesar da diversão e da aprendizagem que podem ocorrer pelo brincar


livre, certas formas de brincar podem se tornar muito repetitivas. Portanto,
argumenta-se que os educadores têm um papel-chave a desempenhar: ajudar
as crianças a desenvolver o seu brincar. O adulto pode, por assim dizer, esti-
mular, encorajar ou desafiar a criança a brincar de formas mais desenvolvidas
e maduras.
Em certa extensão, isso pode ser feito oferecendo-se materiais estrutu-
rados que a criança é estimulada a usar. Um exemplo conhecido é o quebra-
cabeça: o design do quebra-cabeça significa que a criança é desafiada a
montá-lo – tudo o que o adulto tem a fazer é oferecer um quebra-cabeça no
nível certo de dificuldade. (Jogos para adultos e para crianças como um
elemento da aprendizagem matemática são discutidos por Rose Griffiths
no Capítulo 12.)
A excelência do brincar • 31

Além de organizar por meio dos materiais, os adultos também podem


proporcionar estrutura e desafio ao participar do brincar infantil. Smilansky
(1968; Smilansky e Shefatya, 1990) argumenta que o jogo simbólico é muito
importante para o desenvolvimento de habilidades sociais, cognitivas e lin-
güísticas nas crianças pequenas. Ela dá uma prioridade especial ao aumento
da quantidade e da complexidade do brincar de faz-de-conta para essas
crianças, principalmente no caso daquelas que vêm de ambientes desfavo-
ráveis, as quais, acredita ela, raramente brincam dessa maneira em seus pri-
meiros anos. Smilansky (1968) experimentou vários métodos para encorajar
esse brincar e descobriu que o método mais efetivo era o adulto ou o pro-
fessor iniciar a dramatização com pequenos grupos de crianças e ajudá-las a
sustentar e desenvolver essa atividade por um certo período de tempo. Ela
chama isso de tutoramento do brincar. Suas idéias também foram ampla-
mente adotadas nos Estados Unidos. Quatro variantes desse método são
usadas por Smilansky e por outros:
• Modelagem – O professor participa ativamente do brincar e, ao en-
cenar um papel, demonstra como ele pode ser desempenhado efeti-
vamente. Por exemplo, ao encenar o papel de “médico”, o professor
finge que uma boneca é um bebê e finge que um lápis é um termô-
metro. Isso demonstra para a criança tanto as transformações da fan-
tasia quanto uma parte real do papel dos médicos. O professor pode
ajudar a criar uma longa seqüência de brincar, por exemplo, pedindo a
uma criança que vá buscar mais “remédios” para ela.
• Orientação verbal – O professor não participa ativamente, mas faz
comentários e sugestões para ajudar as crianças a criarem os papéis
que vão desempenhar, por exemplo, lembrando a criança que está sen-
do a “mãe” de dar um banho no bebê antes de colocá-lo na cama.
• Treinamento da fantasia temática – As crianças são ajudadas a encenar
histórias de dramas conhecidos. Uma vez que a trama normalmente já é
conhecida, esse é um procedimento mais estruturado que os dois an-
teriores.
• Aprendizagem do brincar imaginativo – O professor exercita as crianças
em habilidades referentes a atividades de faz-de-conta. Por exemplo, elas
são estimuladas a usar marionetes de dedos ou a praticar expressões
faciais para representar diferentes emoções. Ou, ainda, as crianças podem
sentar sob um grande pedaço de papel cinzento e fingir que estão ao ar
livre em um dia de chuva. Esse tipo de experiência centra-se na fantasia e
geralmente não envolve o desempenho de papéis.
Smilansky descobriu que essas formas de encorajamento e treinamento
por parte do adulto realmente aumentam a quantidade e a complexidade do
brincar de faz-de-conta e sociodramático na criança pequena, especialmente
se ela não apresenta muito essa forma de brincar inicialmente. Além disso,
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um certo aumento do brincar de faz-de-conta espontâneo é mantido mesmo


quando o trabalho é interrompido. Esse achado foi confirmado por outros
pesquisadores no Reino Unido, nos Estados Unidos e em outros lugares.
Será que as crianças têm outros benefícios com o tutoramento do brin-
car? Isso seria o esperado se o aumento do brincar espontâneo trouxesse os
benefícios que Smilansky e que outros defensores do “etos do brincar” acre-
ditam que seja o caso. Estudos sugerem que o brincar de faz-de-conta e o
brincar sociodramático trazem grandes benefícios. As crianças que aprende-
ram a brincar desenvolveram mais as habilidades sociais, cognitivas e lin-
güísticas do que as crianças de grupos-controle.
Entretanto, essas crianças necessariamente não melhoraram mais devi-
do ao aumento no brincar sociodramático. Isso talvez se deva à natureza dos
grupos controle desses estudos. Nesses grupos controle, normalmente esta-
va presente um adulto, mas apenas de maneira muito passiva. As crianças
dos grupos de “aprender a brincar” de faz-de-conta provavelmente recebe-
ram muito mais do adulto em termos de conversas e encorajamento. Por-
tanto, o maior ganho obtido pode ser devido ou ao aumento no brincar de
faz-de-conta ou sociodramático ou ao envolvimento extra do adulto. Para
escolher entre essas alternativas é necessária uma melhor condição-controle.
Estudos similares (Christie e Johnson, 1985; Hutt et al., 1989) confir-
mam que, quando equiparadas em contato adulto, as condições de aprendi-
zagem do brincar e aprendizagem da habilidade são igualmente efeti-
vas. No que se refere às habilidades cognitivas e lingüísticas, as crianças de
ambas as condições tiveram ganhos, independentemente da condição vi-
venciada. Embora os primeiros estudos sobre tutoramento do brincar te-
nham sido defendidos por Smilansky e Shefatya (1990), na minha opinião
os dados da pesquisa sugerem que o fator crucial é o envolvimento adulto,
e não o encorajamento da fantasia – um ponto discutido por alguns cola-
boradores deste livro.
A aprendizagem do brincar de faz-de-conta e sociodramático é praze-
rosa para as crianças e para os professores e é uma maneira de promover um
ativo envolvimento adulto-criança. Isso pode favorecer muitos aspectos do
desenvolvimento infantil, mas provavelmente não mais do que outros tipos
de envolvimento que não incluem o brincar da fantasia ou sociodramático.
Seu apelo especial talvez seja o fato de intensificar a interação e a comuni-
cação adulto-criança sem diminuir as interações criança-criança, o que tão
freqüentemente acontece em intervenções adultas.
Outro exemplo para aumentar o envolvimento adulto no brincar foi o
projeto de Manning e Sharp (1977), que reflete a crença de que qualquer tipo
de brincar, embora valioso em termos educacionais, pode ser tornado ainda
mais valioso por algum grau de envolvimento adulto. O envolvimento adulto
pode ser a participação e a iniciação. A participação envolve brincar com as
A excelência do brincar • 33

crianças ou ao lado delas, enquanto a iniciação significa desenvolver uma


situação de brincar já existente ou criar uma nova, identificar problemas e
aconselhar soluções. Por exemplo, se uma criança está brincando com areia,
derramando-a em um recipiente, o adulto pode se aproximar e oferecer mais
recipientes de diferentes tamanhos, proporcionando assim a oportunidade
de conversar sobre tamanho e conceitos como “meio-cheio”, “duas vezes
maior”, etc.; ou se a criança está fingindo fazer bolos com areia molhada, o
adulto pode ajudar a transformar isso na criação de diferentes tipos de “bo-
los”, incentivar outras crianças a participarem e talvez usar a oportunidade
para desenvolver habilidades matemáticas, contando quantos bolos de di-
ferentes tipos foram feitos. Em todos os casos, a idéia é que o adulto observe
o brincar espontâneo da criança e aja para desenvolvê-lo – em vez de orga-
nizar as atividades da criança desde o início. Esse projeto resultou em muitas
idéias valiosas para professores de pré-escola, embora nunca tenha sido
avaliado de modo sistemático.
Outro modelo para estruturar o brincar é o do High/Scope Curriculum,
desenvolvido nos Estados Unidos (Hohmann et al., 1979), no qual adultos e
crianças planejam e iniciam as atividades e trabalham juntos ativamente.
Originalmente desenvolvido com pré-escolares negros de ambientes desfa-
vorecidos em Ypsilanti, Michigan, ele agora é usado em algumas escolas de
educação infantil em vários países, incluindo o Reino Unido e a China. As
atividades em sala de aula giram em torno de 50 “experiências-chave” des-
tinadas a promover o desenvolvimento intelectual e social. Por exemplo, dis-
tinguir entre “alguns” e “todos”; expressar sentimentos em palavras; com-
parar períodos de tempo. A ajuda adulta é orientada por um ciclo de “plane-
jar-fazer-revisar”. Os adultos incentivam as crianças a escolherem e a plane-
jarem uma atividade, depois executarem o plano e então refletirem sobre por
que algumas coisas deram certo e outras deram errado. Há materiais e jogos
para conceitos numéricos, relações espaciais, representação, classificação, se-
riação e tempo. As crianças aprendem esses conceitos por meio da ativa explo-
ração e experimentação, depois refletem sobre eles por meio de discussões
com adultos e com outras crianças. Um seguimento dos efeitos desse currículo
nos Estados Unidos indica efeitos benéficos a longo e a curto prazo, especial-
mente ganhos cognitivos e de adaptação (Schweinhart et al., 1986).
Parte da ênfase no currículo High/Scope é que o adulto não deve ser
excessivamente invasivo; as crianças não devem ficar cercadas pela fala do
adulto ou dominadas por instruções, mas devem ter liberdade de ação para
desenvolver as próprias idéias e ter sucesso ou para fracassar. Algumas das
idéias seriam semelhantes ao que é comumente feito nas escolas do Reino
Unido com crianças de 5 a 6 anos. Por exemplo, muitas escolas de educação
infantil usam a idéia de “temas” para organizar as atividades da semana. Os
temas também proporcionam oportunidades para a criança trazer materiais
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ou experiências relevantes de seu ambiente familiar para compartilhar com o


grupo. Esse tipo de programa é particularmente adequado para pré-escolares
mais velhos, de 4 a 6 anos de idade.
Assim como organizam atividades de brincar variadas abrangendo um
amplo currículo, conforme apresentado em outros capítulos deste livro,
os adultos também podem organizar jogos cooperativos para as crianças
(Masheder, 1989). Esses jogos podem variar de atividades expressivas e de
fantasia (como as encorajadas por Smilansky) à narração de histórias, jogos
de cantar e de sons e jogos sociais realmente cooperativos, que desenvolvem
a consciência do outro. Por exemplo, no “jogo do espelho”, as crianças sen-
tam-se em pares, uma diante da outra, e cada uma tem de fazer exatamente
o que a outra faz.

ATIVIDADES ALTAMENTE ESTRUTURADAS

No extremo oposto do currículo baseado no brincar livre estão as abor-


dagens em que os adultos criam muita estrutura para as crianças: elas não
exercem muitas escolhas e seguem rigidamente a estrutura de regras da
atividade ou imitam o que o adulto modela. Alguns tipos de jogos são alta-
mente estruturados nesse sentido – por exemplo, os “dominós de figuras”,
em que a criança precisa combinar um dominó com o mesmo número da-
quele mostrado na mesa – especialmente se o adulto também estrutura o
jogo socialmente, de modo que a criança precisa seguir as regras e se revezar
na atividade. Algumas abordagens de “tutoramento de habilidades” seguem
essa linha e as escolhas da criança ficam realmente muito limitadas.
Ainda mais estruturados são os programas em que as crianças, freqüen-
temente a classe inteira, devem realizar uma atividade grupal prescrita, ou
imitar o que o professor demonstrar ou responder às suas perguntas. Por
exemplo, pode ser feito um treinamento de determinados exercícios, mú-
sicas e movimentos rítmicos; ou aprendizagem por repetição de somas nu-
méricas ou significados de palavras; ou a criança precisa construir uma cópia
de um dado modelo. Nos Estados Unidos, o currículo de Bereiter e Engle-
mann (1966) segue essas linhas. Muitas atividades de pré-escolas em países
africanos e em países asiáticos, como a China, a Coréia e o Japão, utilizam
freqüentemente a aprendizagem por exercício ou por repetição ou técnicas
de treinamento na mesma linha.
A aprendizagem e o treinamento por repetição não são vistos muito
favoravelmente por muitos educadores ocidentais. Isso pode refletir a in-
fluência do “etos do brincar” e a maior ênfase no individualismo e, portanto,
na liberdade e na escolha individual, comparados a valores mais coletivistas
em outros lugares. Eu devo dizer que não compartilho totalmente essa visão
A excelência do brincar • 35

negativa da aprendizagem e do treinamento por repetição. Dependendo das


circunstâncias, isso pode ser prazeroso – aprender um exercício físico ou uma
coreografia de dança, por exemplo. Essa também pode ser uma maneira
efetiva de aprender quando o que deve ser aprendido é um material factual
ou associações definidas, como nas somas numéricas. Conforme menciona-
do, a aprendizagem por repetição é consideravelmente adotada em países
orientais e o nível, em geral elevado, de realização acadêmica lá encontrado
(Stevenson e Lee, 1990) sugere que isso dificilmente se constitui em um
desastre. A aprendizagem de canções também pode ser educativa; as rimas e
a aliteração com freqüência presentes nas canções infantis se revelaram uma
atividade muito útil de leitura inicial (Bryant e Bradley, 1985).
Tendo dito isso, devo acrescentar que também é improvável que os
métodos de repetição ajudem a desenvolver o pensamento e o planejamento
independentes e criativos: não é isso o que eles pretendem fazer. E a repe-
tição pode, às vezes, ser muito mecânica e chata, obrigando as crianças a
realizarem tarefas que muitas não compreendem direito. Os métodos de re-
petição foram muito usados nas escolas de educação infantil do Reino Unido
na virada do século, mas a insensibilidade com que eram aplicados provavel-
mente ajudou a fomentar a busca de métodos mais centrados na criança e
no “etos do brincar”.
A escolha entre todos esses tipos de abordagens curriculares, eviden-
temente, é em grande parte uma questão de circunstâncias, tradições locais,
expectativas parentais e necessidades e valores societais. Estes últimos são
vigorosamente expressos no CN – uma questão controversa discutida por
Angela Anning no Capítulo 5. Todos podem oportunizar um ambiente cari-
nhoso, estimulante e prazeroso; e grande parte da pesquisa no Reino Unido
e nos Estados Unidos sugere que todos têm efeitos positivos sobre o desen-
volvimento infantil (Miller e Dyer, 1975; Osborn e Milbank, 1987). Obvia-
mente, há espaço para variedade, tanto entre diferentes escolas como dentro
da mesma escola. Não há razão para uma escola de educação infantil não
usar, em diferentes momentos do dia ou da semana, todos os métodos men-
cionados acima – e, de fato, a maioria usa!

O PAPEL DO ADULTO COMO AUXILIAR


DO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA

Eu falei muito sobre o papel do adulto no desenvolvimento do brincar e


das atividades infantis. A importância disso foi especialmente enfatizada por
dois influentes psicólogos e educadores: Vygotsky, na Rússia, e Bruner, nos
Estados Unidos. Suas idéias contrastam um pouco com as de Piaget, cujos
textos fundamentam nossas expectativas sobre o que as crianças são capazes
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de fazer sozinhas e nos explicam a natureza ativa da criança ao aprender


sobre o mundo.
O que Piaget não enfatiza muito é o papel do adulto e da comunidade
social como apoio à aprendizagem. É nesse aspecto que as idéias de Vygotsky
e de Bruner são especialmente esclarecedoras: não tanto em oposição a Pia-
get, mas como um complemento. Essas idéias são extremamente relevantes
para os educadores e para o planejamento curricular que estamos conside-
rando.
Vygotsky (1978) argumentou que o adulto desempenha um papel-cha-
ve como auxiliar da aprendizagem infantil. Ele lançou a idéia da zona de
desenvolvimento proximal (ZDP). A idéia é que a criança pode ter desenvol-
vido um certo nível de competência em uma habilidade, que pode ser rea-
lizada de forma independente e sem ajuda. Esse nível é chamado por Vy-
gotsky de nível desenvolvimental real. Entretanto, se ajudada por um adulto,
essa capacidade pode ser um pouco ampliada, para que a criança possa
tentar algo levemente mais difícil. Obviamente, ela não pode ser excessi-
vamente ampliada ou a criança não compreenderá o que o adulto quer que
ela faça. Esse nível é chamado por Vygotsky de nível de desenvolvimento
potencial. A diferença entre esses dois é a ZDP – a área de desenvolvimento
que a criança é capaz de manejar e compreender com a ajuda do adulto (ou
com a ajuda de seus pares mais capazes).
Por exemplo, suponha que uma criança está brincando com blocos de
madeira e é capaz de construir uma torre colocando três ou quatro blocos um
em cima do outro. O adulto poderia sugerir que ela faça duas dessas torres,
uma perto da outra; depois, ele perguntaria como se poderia construir uma
arcada, se necessário sugerindo que um bloco comprido em cima do topo
ajudaria. Dessa maneira, a criança poderia vir a compreender como fazer
uma arcada (e o que o termo significa). Sem ajuda, isso é algo que ela não
seria capaz de fazer no momento, de modo que essa é a ZDP. Mas se o adulto
tentasse fazer com que a criança construísse ou copiasse uma estrutura
complicada de uma casa com um telhado, isso estaria fora da ZDP da criança.
Mesmo que ela fosse capaz de seguir as instruções do adulto, ela não com-
preenderia realmente o que estava fazendo e não seria capaz de fazer aquilo
sozinha, sem ajuda, posteriormente.
Idéias semelhantes foram propostas por Bruner em seu conceito de scaf-
folding (Wood et al., 1976). Um andaime é uma estrutura usada para ajudar
gradualmente na construção de um prédio desde as suas fundações; o an-
daime vai crescendo conforme o prédio vai subindo. No final, o andaime
pode ser retirado. Aqui, a construção do prédio é uma analogia com o desen-
volvimento das capacidades infantis, e o andaime (scaffolding) é uma ana-
logia ao modo como o adulto pode apoiar isso. O apoio deve ser adequado
ao nível atual de desenvolvimento da criança e pode ser reduzido ou
A excelência do brincar • 37

removido depois que a criança dominou aquela tarefa específica. Alguns as-
pectos do scaffolding são:
• dirigir a atenção da criança para aspectos relevantes da situação;
• ajudar a criança a dividir a tarefa em uma seqüência de tarefas me-
nores que ela é capaz de manejar;
• ajudar a criança a executar corretamente a seqüência de passos.

As idéias da ZDP e do scaffolding podem ser usadas para ajudar a im-


plementar a maioria das idéias para o currículo discutidas anteriormente,
com exceção do currículo baseado no brincar livre, em que o adulto não
assume um papel ativo.
Nos currículos que enfatizam a estruturação do brincar infantil ou o
tutoramento do brincar, o adulto interage com cada criança individualmente
ou, mais provavelmente, em pequenos grupos. Se os adultos já observaram o
brincar das crianças, eles saberão o tipo de nível em que elas estão funcio-
nando e poderão adequar sua participação ao nível certo. Eles evitarão dizer
às crianças coisas óbvias que elas já sabem; eles também procurarão falar de
modo menos complicado, utilizando um vocabulário que as crianças possam
compreender. De maneira ideal, os adultos devem interagir com as crianças
na sua ZDP construindo um andaime (scaffolding) para uma tarefa levemente
mais complexa, de modo que as crianças sejam capazes de realizá-la naquele
momento e, mais tarde, sozinhas. Como vimos, essa “tarefa levemente mais
complexa” pode assumir muitas formas: uma construção de blocos mais
avançada, um jogo mais elaborado na caixa de areia, uma reflexão sobre
outras propriedades dos objetos com os quais a criança está brincando, a
encenação de uma história com uma trama mais completa ou com mais per-
sonagens, e assim por diante. O adulto estará em melhor posição para fazer
isso se souber em que nível de atividade e compreensão está a criança.
Atividades mais estruturadas, como tutoramento de habilidades, jogos
cooperativos, atividades de aprendizagem por exercício e repetição também
podem utilizar esses conceitos. Obviamente, as tarefas que a criança está
sendo solicitada a fazer devem estar dentro de sua competência quando lhe
for dado um modelo para copiar. Na verdade, alguém que está empregando
atividades de aprendizagem por repetição para ensinar, digamos, uma co-
reografia de dança, provavelmente utilizará princípios do scaffolding. Ela
ensinará primeiro uma parte da coreografia e depois, quando essa parte
estiver aprendida, partirá para a próxima seqüência, e assim por diante.
Há duas dificuldades na aprendizagem por repetição que devemos comen-
tar aqui. Uma delas é que esse método é usado com grandes números de crianças
– talvez uma turma inteira de alunos. Isso realmente economiza tempo e esforço
para o professor e transmite às crianças um sentimento de envolvimento com
todo o grupo. Entretanto, como as crianças estarão em níveis de desenvolvimen-
38 • Janet R. Moyles & cols.

to variados, a aprendizagem será fácil para algumas, exatamente no ponto certo


para outras e difícil demais para as restantes. Nem todas as crianças da mesma
idade estão na mesma ZDP para uma dada habilidade.
A outra limitação é a seguinte: na aprendizagem por repetição, o adulto
normalmente apresenta um modelo completo (ou uma parte completa de
um modelo) para a criança imitar ou aprender – por exemplo, uma soma
numérica como 2 + 2 = 4 ou um verso de uma canção. Essa tarefa deve estar
dentro da capacidade da criança e, na verdade, freqüentemente está. Entre-
tanto, a criança tem um papel passivo nisso. Não é como se sua aprendiza-
gem estivesse sendo “apoiada por um andaime” para que ela faça a sua cons-
trução; é como se fosse apresentada à criança a parte de uma construção a ser
incorporada. A criança não tem o mesmo grau de iniciativa. Na aprendiza-
gem por repetição, existe o perigo de ser dada uma ajuda excessiva, de modo
que a contribuição da criança fica perdida. Isso pode se constituir em uma
séria desvantagem dependendo de diversos fatores: o que está sendo ensina-
do, o tamanho e a composição do grupo, os recursos da equipe e as tradições
e os valores culturais.

AFIRMAÇÃO FINAL

As idéias de Vygotsky e Bruner são valiosas para o educador que traba-


lha com educação infantil, ao indicar como os adultos podem, de modo mui-
to efetivo, intensificar e apoiar o brincar e o desenvolvimento da criança.
Seja qual for o valor dos currículos baseados no brincar livre, por um lado, ou
das atividades estruturadas de exercício e repetição, por outro, também deve
haver espaço para o adulto trabalhar com as crianças individualmente ou em
pequenos grupos, estruturando o seu brincar ou suas atividades de uma ma-
neira adequada em termos de desenvolvimento.

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