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1. Notas biográficas
- o sentimento telúrico
- a problemática religiosa
- o desespero humanista
1. Notas biográficas
Miguel Torga é o pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha, nascido em S. Martinho
de Anta (Trás-os-Montes), em 1907. Tem uma infância dura, durante a qual recebe do pai,
pobre caseiro, um carácter rígido e inflexível, e da mãe, criada de servir, a sensibilidade que o
tornará poeta.
Após a instrução primária, vai servir para o Porto. Como não se adapta, ingressa, em 1918,
no seminário de Lamego, aconselhado pelo prior de Paradela.
Dado o seu carácter rebelde e a sua ânsia de liberdade, sai desse estabelecimento
eclesiástico ao fim de dois anos e embarca para o Brasil, em 1920, onde é acolhido por
um tio e onde trabalha arduamente como capinador, apanhador de café, vaqueiro e caçador
de cobras. Aí teve uma vida muito difícil até aos 16 anos.
Entretanto, o tio apercebe-se das capacidades do jovem e prontifica-se a custear-lhe
os estudos, primeiro no colégio do Ribeirão e, mais tarde, em Portugal, aonde regressa em
1925. Completa em três anos o curso liceal (que normalmente levava sete) e aos 20 anos é
admitido na Universidade de Coimbra, onde inicia o curso de medicina, que termina aos
24 anos.
Começa a exercer como médico rural em S. Martinho de Anta. Transfere-se para Leiria em
1937. Para poder ter acesso às tipografias e livrarias, fixa-se em Coimbra, depois de
se ter especializado e otorrinolaringologia.
Casa com a lusófila Andrée Crabbé, professora da Faculdade de letras da Universidade
Clássica de Lisboa, de quem tem uma filha, Clara Crabbé Rocha, também professora
universitária.
Entre dezembro de 1939 e fevereiro de 1940, esteve preso nas cadeias de Leiria e no
Aljube e, embora tivesse pensado abandonar o país, não o fez devido ao amor que
sentia pela terra-mãe, aliás bem visível na sua obra.
Reparte a sua vida entre a medicina e a escrita, sendo esta última a sua paixão, e
morre em Coimbra a 17 de janeiro de 1995.
(Peixoto: 2001, 95)
Torga é um escritor que se situa no concreto e que está ligado ao húmus1 natal. A sua obra
é ele e a natureza, ele e Portugal.
O seu estilo poético é de uma eloquência sóbria2, viril3, que ou aquece de entusiasmo, ou
fustiga4. Pela escolha das palavras, manifesta uma inspiração genesíaca5:sexo, cio, sémen,
1
produto que resulta da decomposição dos vegetais e animais que se acumula no solo e constitui fonte de matéria orgânica. Em
Torga, é aquilo que diz respeito à terra.
seiva, fecundar, germinar, parir, etc., juntando-lhe o delírio sensual das invocações6 báquicas7:
o vinho, o mosto, o cacho. Em contraponto, existe outra zona de inspiração, que ele traduz por
termos como sonho, ilusão, aventura, Deus, mito, lua, estrela, astral. O culto da liberdade, a
ânsia de liberdade surge como permanente traço de união. É um lírico que fala de si, se exibe e
reabilita Narciso8 como o homem que se busca numa imagem inteira. No entanto, a presença
dos outros é condição de plenitude, mas também de incompreensão, de isolamento forçado,
motivo de ressentimento e de amargura, visíveis nos onze volumes do Diário. Em Torga temos
a sede de fraternidade, o lamento por não ter sabido amar ou por o amigo se lhe haver
negado. É o impulso afetivo para o outro que faz dele o poeta da comunidade. Torga é
simultaneamente o poeta da angústia e o poeta da esperança. Angústia provocada pela
ausência de Deus ou do divino nos homens, pelas mortes. A esperança é a resposta da vida
que em nós continua a latejar. Por isso, o humanismo9 de Torga consiste numa lição de
juventude. O poeta denuncia, ilumina, constrói.
O que há de invulgar em Miguel Torga é o facto de ele se apresentar, quer como poeta quer
como prosador, como um ser inconfundível, um telúrico10 padrão e um expoente da Pátria, um
artista da língua em que se exprime, um legatário11 de valores culturais, um recetor atento e
um transmissor dos inúmeros problemas do Homem. Torga tem todo o seu ser e toda a sua
obra firmados no solo onde se consubstanciam.
Torga é considerado a voz de Trás-os-Montes e a voz de um povo rude e melancólico, mas
de caráter firme e nobre. Mostra-se preocupado com a autenticidade criadora, projetando na
sua escrita as suas preocupações com o ser humano, a sua necessidade de transcendência. É
visível, na sua obra, um sofrimento magoado, que se transforma em desassossego, e que tanto
permite a esperança como conduz ao desespero.
(Peixoto: 2001, 95-96)
2 simples e correta.
3
enérgico, vigoroso.
4
castiga, maltrata.
5
que está na génese, na origem, neste caso na terra-mãe, onde tudo se gera.
6
chamamento para se fazer um ou mais pedidos; súplica. No contexto, significa que são chamadas, invocadas para a sua poesia.
7 que diz respeito a Baco, deus do vinho.
10
Telúrico/telurismo - relativo à terra, ao solo. Influência do solo de uma região nos costumes, no carácter.
11 Aquele a quem se deixou um legado, isto é, um valor, que pode ser uma qualquer herança.
estilo como a antítese, a metáfora, a adjetivação, e um conjunto diversificado de estratégias
que lhe permitem expressar o que realmente lhe vai na alma.
Segundo Torga, o Homem deve ser capaz de realizar-se no mundo. Deve unir-se à terra, ser-
-lhe fiel, para que a vida tenha sentido e o sagrado se exprima.
É na terra que a vida acontece e é aí que se deve cumprir. É nela que está a origem da vida e
dos tempos. Por isso, a terra surge, em Torga, como um ventre materno e a tarefa do Homem
é orientar-se para esse sentido criador, genesíaco.
O telurismo de Torga exprime-se no seu apego à terra, na sua fidelidade ao povo, na sua
consciência de ser português. Mas o poeta não se contenta em elogiar a terra, na medida em
que sente a condição humana cheia de limitações.
De qualquer modo, o sentimento telúrico presente na sua obra revela bem a ligação entre o
espírito genesíaco e o sentido do sagrado. O seu apego à terra-mãe surge em vários poemas,
nomeadamente em "Terra", onde esta é personificada numa mulher disposta à fecundação, ou
em "S. Leonardo de Galafura", testemunho perfeito do amor telúrico do poeta que em Diário II
afirma:
"[...] devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram
tristezas [...] a terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. [...] Vivo
a natureza integrado nela, de tal modo que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra,
orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no
meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno".
E o seu apego à terra fá-lo evocar o mito de Anteu12e declarar, em Diário XI, que:
"De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho
à prova, sem me esquecer, evidentemente, de deduzir o tamanho do gigante à escala humana,
e o corpo divino da Terra olímpica13 ao chão natural de Trás-os-Montes. [...] Sempre que,
prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas
começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma
transfusão de seiva. Sei, contudo, que o prodígio não aconteceria sem a força amorosa do meu
apelo, que as virtudes terapêuticas da fonte estão também na certeza da sede de quem bebe".
Note-se que no período final desta declaração torguiana está patenteada a crença de
alguém que muito ama a terra e nela vê a cura para os seus males, principalmente porque
acredita no seu poder terapêutico.
(Peixoto: 2001, 97)
12
Figura da mitologia grega e romana, filho da deusa Terra, onde ia buscar forças para derrotar todos quantos se aproximassem da
costa líbia. Foi derrotado por Hércules, que, tendo descoberto a origem da sua valentia, o ergueu do chão, durante uma luta,
impedindo, deste modo, que este sugasse a energia que o alimentava.
13
relativo a Olimpo, local onde habitam as divindades pagãs.
REGRESSO
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! minha serra, minha dura infância! Depois o céu abriu-se num sorriso,
Como os rijos carvalhos me acenaram, E eu deitei-me no colo dos penedos
Mal eu surgi, cansado, na distância! A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou! (Diário VI)
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Sentimentos dominantes do sujeito poético: cansado (v.4), alegre, feliz, satisfeito, eufórico.
Relação entre poeta e natureza é de intimidade e de afetividade.
Donde a importância do campo lexical que se refere à terra:
A quantidade e variedade de vocábulos e expressões que descrevem a terra tornam esse o
campo lexical mais importante do texto, quase saturando o discurso poético. Assim:
as referências diretas são "fragas", "minha serra", "terra morta", «colo dos penedos";
há outras referências: metonímica – "minha dura infância"; metafórica – «meu velho
paraíso";
as referências "rijos carvalhos" e "cada fonte" indicam, por sua vez, realidades
indissociáveis da terra.
Donde o simbolismo metafórico dos elementos naturais, como:
o carvalho (Dic. dos Símbolos), instrumento de comunicação entre a terra (os homens)
e o céu (Deus);
a fonte, símbolo de maternidade, nas culturas tradicionais é a origem da vida, do
renascimento, do poder e da felicidade.
Assim sendo, o regresso à terra-mãe equivale à recuperação de forças, fazendo-o feliz,
satisfeito como se estivesse no paraíso. A sua terra é o seu céu (terra como expressão de céu).
Tal como Anteu que recebia energia e forças da sua mãe terra, assim é o poeta que ao
contactar com a sua terra restabelece a sua força anímica.
14 S. Leonardo de Galafura é uma capelinha que existe no alto da montanha, na freguesia com o mesmo nome, no concelho da
Régua (Vila Real). Vista do sopé da montanha, dá a imagem de navegar no espaço.
15 mosto – sumo da uva antes de se completar a fermentação.
16 socalco – espécie de degrau nas encostas, suportado por um muro, para se cultivar. Na região do Alto Douro é em socalcos que
se cultiva a vinha.
17 rabelo – embarcação típica, usada no rio Douro para transporte do vinho do Porto, que tem por leme um remo muito comprido
e grosso.
18 sorvo – gole; trago; sorver – absorver; aspirar.
19
rosmaninho – planta aromática, de flores violáceas designada por alecrim.
3.1. a forma como a construção das estrofes sugere a irregularidade do espaço a
percorrer;
3.2. a expressividade da alternância de vogais abertas e fechadas, bem como das
aliterações;
3.3. o valor do aspeto verbal;
3.4. o domínio da coordenação;
3.5. a importância das metáforas «navio de penedos», «doce mar de mosto»,
«ondas/Da eternidade», «cais humano», «cais divino», «charcos de luz», «Rasos, todos
os montes».
4. O texto é uma alegoria.
4.1. Que se pretende enaltecer?
4.2. É este um texto telúrico? Justifique.
Esta problemática assume em Torga uma dinâmica especial e revela-se, por vezes, ambígua
e contraditória. Com efeito, Torga parte da sua experiência para interrogar Deus, palavra onde
reside a ambiguidade da sua poesia. É que Torga revolta-se contra Deus, mas não se assume
como ateu20. A negação surge porque lhe perturba a razão e porque pretende afirmar o
homem. Frequentemente, negar Deus é negar a representação que Dele fazemos, como aliás o
próprio poeta confirma, ao declarar em Diário III:
"Cá por mim só concebo Deus dos aflitos, à porta de quem se bate com a angústia de
alguém que chama o médico".
A ausência de um Deus mais humano e imanente21 é o que realmente perturba o poeta. Por
isso, prefere questionar a verdade de Deus para afirmar o Homem e a necessidade de este
procurar a verdade na Terra.
Como médico, sofre, muitas vezes, por não salvar o paciente que morre, mas que procurara
a esperança do milagre que só Deus lhe poderia ter concedido.
Por sentir constantemente as provações da vida, própria e alheia, é que Torga entra em
conflito interior, causando-lhe o desespero religioso que o leva a um constante monólogo22
com Deus, palavra que assume como obsessão23. Sente que precisa de Deus, mas as suas
conclusões racionalistas tornam-no inatingível.
Esperança e desesperança surgem como expressão de um conflito íntimo, bem patente no
poema "Desfecho", onde o poeta tenta negar a divindade, mas sente a sua existência. A
descrença e a revolta contra um Deus transcendente refletem a angústia do poeta que tenta
valorizar o Homem e a Terra e, simultaneamente, a revolta da inocência humana contra a
divindade transcendente.
(Peixoto: 2001, 98)
Referências bíblico-religiosas:
Abel – Segundo filho de Adão e Eva (Antigo Testamento). Como era pastor, decidiu oferecer a
Deus as primeiras crias do seu rebanho e as suas respetivas gorduras, oferta que foi melhor
aceite por Ele do que os frutos da terra oferecidos pelo seu irmão Caim. Dominado pela inveja,
Caim matou Abel...
Caim – Primeiro filho de Adão e Eva (Antigo Testamento). Movido pelo ciúme, assassinou o
irmão, Abel, pelo facto do sacrifício deste ter sido melhor aceite por Deus do que o seu.
Job – (c. século V A.C) No Antigo Testamento, líder hebreu que, no Livro de Job, questionou o
sofrimento que Deus infligia aos justos enquanto ele próprio era sujeito a grandes
padecimentos.
Livro de Horas – livro de devoções privadas segundo um esquema: começam com um
calendário elaborado exclusivamente em função das festas religiosas. Seguem-se numerosas
preces. Estas, compostas em grande parte de salmos, seguem o ritmo quotidiano — as
matinas, laudas, prima, tércia, sexta e noa, as vésperas e as completas escalonam o dia.
Estrutura externa: poema constituído por 7 estrofes de tamanho irregular, métrica muito
variável e, no aspeto vocálico, alternando o verso livre com rimas consoante e vocálica. É um
texto com um ritmo interior vigoroso e um hábil aproveitamento das sonoridades que
conduzem a uma fortíssima afirmação da subjetividade.
DESFECHO
Não tenho mais palavras. E lutei, como luta um solitário
Gastei-as a negar-te... Quando alguém lhe perturba
(Só a negar-te eu pude combater a solidão.
O terror de te ver Fechado num ouriço de recusas,
Em toda a parte.) Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado Mas o tempo moeu na sua mó
A divina presença impertinente O joio amargo do que te dizia...
Do teu vulto calado Agora somos dois obstinados,
E paciente... Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
Poema constituído por quatro quintilhas, sendo as duas primeiras de métrica muito
irregular e a terceira e quarta decassilábicas, com exceção do penúltimo verso que é um
hexassílabo.
No aspeto rimático há, em todas as estrofes, um primeiro verso solto, embora, no caso da
primeira e segunda estrofes, se possa falar de rima toante em "a" com o segundo verso. Os
restantes versos são emparelhados, cruzados ou interpolados, segundo o esquema rimático
ABCCB / DEFEF / GHIIH / JKLLK.
O título do poema indicia claramente uma luta de que se prevê um desenlace.
Os dois contendores (adversários) são:
O sujeito lírico – caracterizado como combativo (v. 3), ruidoso (v. 14), aborrecido com
a presença do «tu» (v. 12).
O «tu» – omnipresente, importuno (v. 8) e silencioso (v. 9).
Nesse combate (vv. 3, 11) o «eu» usa como arma a palavra (v. 1) enquanto o «tu» utiliza o
silêncio (vv. 9, 15).
O desenlace consiste na obstinação de ambos (v. 18); o «eu» acaba por seguir o método do
«tu»: o silêncio (v. 19, «mudos»).
A luta é um processo, um percurso que se torna visível no poema, estruturado nas seguintes
partes lógicas:
1ª parte: estrofes I e II em que se definem uma temática religiosa e uma situação de
luta, se identificam os contendores em situação de luta – o Eu, que passou a vida a
negar Deus – e se antecipa o resultado («desfecho»): «não tenho mais palavras».
2ª parte: estrofe III na qual se apresentam os processos (instrumentos) de luta
utilizados pelo Eu contra a presença «impertinente» (incómoda) e agressivamente
calada de Deus: a recusa e o grito.
3ª parte: estrofe IV na qual se apresenta uma conclusão em que se descrevem os
resultados desse combate: o tempo passou e digeriu a amargura dos gritos do Eu,
reduziu-o ao silêncio, ficou mudo como o seu adversário. E agora são dois frustrados,
ambos teimosos. Nenhum convenceu o outro. Como que regressamos ao primeiro
verso – «Não tenho mais palavras» – e compreendemos a propriedade do título.
As palavras («E», «Mas» – conjunções copulativa e adversativa) estabelecem a ligação entre
as partes lógicas.
24 que não desaparece; que existe sempre; inerente; perdurável; fixo; privativo de um sujeito ou de um objeto; o que é interior a
um ser ou a um objeto do pensamento; diz-se da descrição e da análise de um objeto ou de um fenómeno que não utilizam
fatores transcendentes a esse objeto ou a esse fenómeno.
(Guerra: 1999, 393-394; O Movimento «Presença» – Miguel Torga e José Régio, Ed. Sebenta)
________________________________________
«[...] Deus não nos vê, Deus não nos ouve. Deus não nos conhece. Deus é o silêncio, Deus é
a ausência, Deus é a solidão dos homens. O homem está sozinho. E é sozinho que decide o mal
ou inventa o bem. Não existe autoridade superior ou absoluto algum perante os quais o
homem deva ou possa justificar-se. Que ganha o homem em troco da negação de Deus? A sua
identidade e autonomia, mas de maneira nenhuma uma vida mais fácil. A partir de agora tem
de assumir a responsabilidade de tudo. O homem não pode esperar mais pontos de apoio
situados fora da sua própria pessoa. A sua existência não depende de ninguém. Resta-lhe o
imperativo da liberdade para a construir.»
(Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser e Ler Torga)
25 Mito de Orfeu - está relacionado com a descida aos Infernos para recuperar Eurídice. Este deus da antiguidade era um
excecional poeta e músico que conseguiu com o seu canto obter autorização para ir buscar a sua amada, sob a condição de não
olhar para ela enquanto não estivessem fora do reino dos mortos. Orfeu não resistiu e, por isso, esta desapareceu sem que
tivessem chegado ao portão. Então, a mágoa de Orfeu era traduzida pelas melodias tristes que este tocava quando passeava pelas
florestas. Um dia, um grupo de Bacantes pediu-lhe que se lhes juntasse. Como este recusou, estas desfizeram-no e lançaram-no
em pedaços ao rio. A sua cabeça, sempre a suspirar por Eurídice, foi levada para o mar e depois sepultada pelas musas. A lira de
Orfeu, depois da sua morte, subiu aos céus e transformou-se numa constelação.
26
[2] amada de Orfeu que na noite de núpcias morreu por ter sido picada por uma cobra, tendo sido sepultada no reino dos
mortos, de onde Orfeu a vai tentar libertar.
passagem inexorável27 do tempo. Torga recusa a poesia lamecha28 dos românticos
("rouxinóis") e recorre a uma expressão violenta, agressiva, para vencer aquilo que o instinto
adivinha e o sujeito recusa. Não lhe interessa se o canto é "de terror ou de beleza"; ele
assume-se, como os clássicos, como alguém que se defende e procura encontrar a eternidade
na realização poética ("Canto, a ver se o meu canto compromete / A eternidade do meu
sofrimento").
ORFEU REBELDE
Bicho instintivo que adivinha a morte
Orfeu rebelde, canto como sou: No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como um possesso Canto como quem usa
Que na casca do tempo, a canivete, Os versos em legitima defesa.
Gravasse a fúria de cada momento; Canto, sem perguntar a Musa
Canto, a ver se o meu canto compromete Se o canto
A eternidade no meu sofrimento. É de terror ou de beleza.
Após a leitura atenta, analise o poema com base nos seguintes tópicos:
1) Tema/assunto.
2) Desenvolvimento do tema / momentos em que está estruturado.
27
[3] implacável, inabalável, que não se comove com rogos ou preces; é intransigente.
28 [4] ridícula, exageradamente sentimental.
3) Oposição sujeito poético / os outros poetas.
4) Conceção da poesia defendida.
5) A poesia assume-se como uma arma em legítima defesa, de modo que são seguintes as
marcas de agressividade, revolta e rebeldia a nível do vocabulário:
«rebelde» (v.1), «possesso» (v. 2), «canivete» (v. 3), «fúria» (v. 4), «compromete» (v.
5), «sofrimento» (v. 6), «desafio» (v. 7), «cruel» (v. 10), «gritos» (v. 11), «nortadas» (v.
11), «violências» (v. 12), «recusa» (v. 13), «defesa» (v. 16).
Note-te ainda que a rebeldia que perpassa todo o discurso está realizada com notável mestria,
donde se destacam:
a) os valores do nível fónico:
aliteração do fonema /c/ ao longo do poema conjugada com a aliteração do fonema
/t/ ;
os vários transportes;
domínio do verso decassílabo;
b) a expressividade da adjetivação onde:
é sugestiva a rebeldia, ex.:
e há também o adjetivo irónico, ex.:
c) o valor dos verbos:
domínio do presente (canto, sou, ergo);
o presente do conjuntivo (sejam, saibam);
o imperfeito do conjuntivo (gravasse);
d) a importância das figuras de estilo – a personificação casa-se com as metáforas e as
imagens:
comparação:
«como um possesso» (v.2);
«gritos como há nortadas» (v. 11);
«canto como quem usa / os versos em legítima defesa» (vv. 15-16);
Personificação:
«que o céu e a terra, pedras conjugadas/.../ saibam que há gritos como há nortadas»
(vv. 9,11;
«violências famintas de ternura» (v. 12);
Repetição: «canto»;
metáforas e imagens:
gravação na «casca do tempo» (v. 3);
«rouxinóis» (v. 7);
«pedras conjugadas» (v. 9);
«moinho cruel que me tritura» (v. 10) .
6) Metáforas da poesia.
7) Estrutura formal.
8) Explicação do título.
Em síntese: «Torga é simultaneamente […] o poeta da angústia e o poeta da esperança […].
Angústia provocada pela ausência do absoluto, ausência de Deus ou do divino nos homens,
pelas mortes em vida, pela morte final».
O poeta procura descer ao mais fundo de si mesmo, sentindo «um medo triste, de vergonha
e assombro» (v. 30), em contraste com o céu que se reflete, lá do alto, «inútil como a paz que
me promete» (v. 33).
Há assim uma catábase29 contínua ao procurar descer à interioridade de si mesmo, para de
lá trazer à luz a poesia, o amor e a esperança. Mas, tal como Orfeu em demanda de Eurídice,
tudo exprime o desalento, a solidão, a tristeza indefinida, o além. E, neste drama íntimo, Torga
afirma a sua rebeldia contra os limites da sua condição humana.
29
descida ao inferno
Note-se que, na 3ª estrofe, o medo, a vergonha e o assombro pelo que lhe é dado a
observar no seu próprio íntimo gelam-lhe «o sangue, no seu nascente» (v. 31), onde ainda se
reflete o céu, cuja paz não aceita.
Aqui o motivo do efeito apaziguador e fascinante do canto de Orfeu no Hades foi anulado,
para dar lugar ao vazio do som, ao negativo das sensações.
(Mª Helena da Rocha Pereira, «Os mitos clássicos em MT» in Colóquio, nº 43.)
Embora esta temática não seja recorrente na poesia torguiana, parecem não restar dúvidas
quanto à sua inserção em muitos dos seus poemas. Aliás, já anteriormente se disse que, com
frequência, Torga se sente triste por não conseguir iluminar a sua poesia. Mas a sua reflexão é
bem mais profunda e é o próprio que reconhece que:
"De quantos ofícios há no mundo, o mais belo e o mais trágico é o de criar arte. É ele o
único onde um dia não pode ser igual ao que se passou. O artista tem a condenação e o dom
de nunca poder automatizar a mão, o gosto, os olhos, a enxada. Quando deixa de descobrir, de
sofrer a dúvida, de caminhar na incerteza e no desespero – está perdido".
Diário I (1941).
Para Torga, a poesia é um dom inato que compromete o homem integral no dever de não o
trair, pois, ao fazê-lo, pode trair o seu semelhante. Torga acredita na literatura, na poesia
como emanadoras e reveladoras de uma ordem cósmica que funciona como salvação terrena
para o homem que escolheu a perdição divina. Para ele, o ato poético é indissociável de um
certo comportamento místico que aproxima o homem dessa ordem cósmica em que se integra
a sua animalidade.
A título exemplificativo, veja-se o poema "Maceração" e relembre-se, neste contexto, o
mito de Sísifo, rei de Corinto, temido pelas suas crueldades; este, depois de morrer, foi
condenado a rolar uma pedra até ao cimo de um monte. Quando deste ponto a pedra se
aproximava, voltava a cair e Sísifo era obrigado a recomeçar. Em literatura, esta figura mítica é
usada para caracterizar um trabalho extenuante, que exige esforços sempre continuados, um
trabalho sem fim que tão bem serve o dramatismo30 da criação poética que Torga incute em
muitos dos seus textos.
(Peixoto: 2001, 100-101) Mas, diz ele, no Diário XII (1977): «Escrever é um ato ontológico».
MACERAÇÃO
Pisa os meus versos, Musa insatisfeita!
Nenhum deles te merece.
São frutos acres que não apetece,
Comer.
Falta-lhes génio, o sol que amadurece
O que sabe nascer.
Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te desfigura.
Nega esta rima impura
Este é um poema com a seguinte estrutura externa: três estrofes desiguais (uma sextilha,
uma sétima e uma quadra) e de metro irregular. Esquema rimático: abbcbc/deefgfg/hiih, logo,
dois versos soltos e os restantes emparelhados, cruzados e interpolados.
MUDEZ
Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta à minha frente,
Tenho a memória cheia de poemas,
Tenho os versos que fiz,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não sei
De que palavra, síntese ou imagem!
Desço dentro de mim, olho a paisagem,
Analiso o que sou, penso o que vejo,
E sempre o mesmo trágico desejo
De dar outra expressão ao que foi dito!
Sempre a mesma vontade de gritar,
Embora de antemão a duvidar
Da exatidão e força desse grito.
Recursos estilísticos:
Conjunção copulativa com valor adversativo nos vv. 5 e 10 usada para opor a grandeza
de uma obra como a Ilíada ou a profundidade interior do poeta com a incapacidade do
poeta em abarcar essas realidades através da sua escrita.
Hipérbole no v. 5 que reforça a insatisfação.
Anáfora da expressão «tenho» na 1ª estrofe acentua a angústia do poeta.
Enumeração gradativa no v. 7 dos objetos da procura responsáveis pela sua
inquietação.
Imagem e metáfora: «mar de silêncio» e «noite / Sem madrugada» para transmitir a
mesma incapacidade humana em conseguir a palavra certa sempre que se quer.