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Vídeo-Escritura de invenção
Cada filme desta fase terá o seu “duplo”: o filme-cinema com seu enunciado
diegético (no caso Passion, de 1982) e outro filme-vídeo enquanto comentário
independente (Scénario du film Passion) e funcionando “como uma reflexão paralela,
uma metalinguagem sobre o filme cuja elaboração lhe é anterior ou posterior; (...) eles
funcionam como rascunhos, esboços, notas de pesquisador.” (p. 278-279). Um tipo de
“video-roteiro” ou vídeo-ensaio, que embora também nos faça insinuar a um tipo de
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Logo no início do Scènario (após uma breve introdução) ele diz assim: “Estamos
aqui... para falar do roteiro de um filme, Passion, de que participei há alguns meses”2.
De que roteiro ele está se referindo? Um roteiro já escrito anteriormente ao filme ou
desse Scènario que ele está gravando, falando continuadamente e produzindo em vídeo?
Logo em seguida ele diz: “Para falar a verdade, eu gostaria de poder me calar e antes de
falar, ver... E este filme, acho que é o que tem de original, porque se procurou, eu
procurei... ver o... não quis escrever o roteiro, quis vê-lo. (...) Acho que se vê primeiro o
mundo e o escrevemos depois... e que o mundo que Passion descreve, bem, era
necessário, antes de tudo vê-lo, ver, ver se ele existia para poder filmá-lo” (GODARD,
1984).
O que seria exatamente fazer (escrever) um roteiro somente depois que o filme
já está terminado (foi visto)? Mas Godard não quer escrever esse roteiro, ele quer ver e
depois filmar esse roteiro, produzir um roteiro videográfico, “escrita” com imagens e
sons. O que seria um roteiro visual? Para ver antes e depois filmar o roteiro de Passion
seria necessário primeiro filmar (sem roteiro) e conseguir vê-lo, ou seja: ao pé da letra,
1
Ver: MACHADO, Arlindo. O Filme-Ensaio. Concinnitas. Rio de Janeiro: UERJ, ano 4, nº 5, 2003. (p.
63-75).
2
GODARD, 1984. Tradução in ROSENBERG, 1986.
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Ver o invisível é equivalente a ver uma superfície em branco. E ver o que existe
se esse branco fosse visível corresponde a fazer aparecer, surgir nesse branco tudo
aquilo que o olho pode ver. Mas fazer aparecer como, de onde, o quê e para quem?
Nessa política do autor-Godard, seria ele mesmo diante de uma tela branca,
manipulando as imagens e os sons de seu próprio arquivo pessoal, nos equipamentos do
seu próprio estúdio, criando o roteiro em tempo real, pensando em voz alta e como se
estivesse fazendo mágica, imagens sendo “escritas” na tela branca. Mas então a grande
(“falsa”) ideia (e grande golpe de mestre): as imagens não vão aparecer na tela em
branco à sua frente; ele está se vendo (como um espectador de fora) vendo a tela, por
trás. Uma câmera fixa por trás e Godard entre a câmera e a tela em branco, formando
uma sombra chinesa em contraste com a luz da tela, e as imagens sendo sobreimpressas
nesse fundo em preto e branco.
espírito. Com o vídeo, vejo imediatamente (o) que penso. Logo sou.” (DUBOIS,
2004, p. 282)
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Optamos pelo termo “video-escritura” no sentido de uma escrita deslocada e extendida, tal como
descrita por Dubois: “na qual as imagens são matéria-prima da reflexão, e o vídeo literalmente inscreve e
reflete o cinema. Pois quando conectamos imagem e pensamento “em direto”, estamos sempre no
“roteiro”, isto é, na escrita em sentido amplo, seja antes do filme (na concepção), seja durante a filmagem
ou na montagem, seja mesmo depois que o filme já ficou pronto” (DUBOIS, 2004, p. 282).
4
CAMPOS, Augusto de. Música de Invenção. 1998, p. 10.
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Paideuma é um conceito adotado por Ezra Pound a partir do antropologista germânico Leo Frobenius,
como “um complexo de ideias, imagens, sentimentos – a maioria deles inconscientes, mas apenas sentidas
nos ossos – e que determina como certos grupos culturais veem o mundo” (ELDER, Bruce. The Films of
Stan Brakhage in the American Tradition of Ezra Pound, Gertrude Stein and Charles Olson. 1998, p.
465). Num sentido mais amplo, o termo paideuma remonta à sua origem grega como equivalente à cultura
ou educação, evidenciando o caráter pedagógico: “o lugar onde as coisas acontecem”, “o lugar onde algo
é produzido”, “o lugar onde você aprende ou ensina” (ELDER, Bruce. DADA, Surrealism, and the
Cinematic Effect. 2013, p. 56).
6
GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. 1989, p. 133.
6
Godard culmina nesta fase de sua produção num ponto de tensionamento crítico
ao texto escrito (às palavras, à linguagem) pelo fato de que, por um lado, o mundo e as
coisas do mundo existem (sempre existiram e vão continuar existindo)
independentemente dos conceitos que as nomeiam (insuficiência e ilusão do signo
verbal), e por outro lado por causa das normas rígidas da sintaxe que essa linguagem
impõe ao pensamento, nos modos como limitam, reduzem e condicionam as formas de
pensar, ver e entender o mundo. O video-escritura de invenção seria outra maneira de
expressar a partir de imagens-pensamento puramente visuais e sonoras, que se
inscrevem diretamente na tela sem a mediação do discurso verbal lógico-racional-
teleológico.
“em esbatimento, um trecho do filme: um quadro vivo. Uma jovem mulher, nua,
sobe alguns degraus ajudada por um rapaz, depois ela torna a descer em nossa
direção. Sobre esta imagem se materializa a tela da sala de montagem com,
sobreimpressa, contra a luz, a silhueta de J.L.G. sentado de costas para nós,
diante da tela. À sua esquerda um monitor, à sua direita um outro monitor. À
sua frente a tela em branco, muito grande, da qual a jovem mulher parece sair.
O título, sempre em letras brancas. Off, os coros.” (GODARD, 1984)
Ver o roteiro antes da sua compreensão e posterior escrita, antes das palavras
que nomeiam as imagens, significa um tipo de redução fenomenológica (grau zero) ou
esvaziamento da memória, como uma criança que vê o mundo e está em contato direto
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com as coisas nesse mundo. Neste sentido, Godard cria uma alegoria à página em
branco de Mallarmé, tomando a tela em branco7 como um espaço entre o ausente e o
presente, ou contorno de um vazio; o branco como potencial e origem de uma
pluralidade de caminhos, associações, analogias, metáforas, fusão ou encadeamento de
imagens e palavras e sons: polifonia de polifonias.
De acordo com André Brasil essa tela em branco seria o dispositivo de um não-
saber originário enquanto potencial para fazer aparecer um filme, pelo trabalho da
rememoração e restituição da origem como precariedade e inacabamento: um cinema da
origem, uma origem que “marca ao mesmo tempo uma desaparição em curso e a
potência de um devir. Ela é um turbilhão, que, ao girar o tempo, faz convergir o que
está em vias de desaparecer e o que está em vias de se formar. (...) Ela é aquilo que se
ausenta da imagem, sua dimensão invisível, inapreensível. Mas, em meio a essa
ausência, ela retorna, se restitui através da imagem como anacronismo, vestígio,
sintoma. Ou seja, a origem não se apreende senão na forma do resto e do acidental.
Como sintoma, nos diz Didi-Huberman, ela é ao mesmo tempo “a permanência surda e
o acidente inesperado”” (BRASIL, 2009, p. 82).
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Citando e parafraseando o que Deleuze diz sobre o pintor Francis Bacon, mas “transposto” para Godard:
“É um erro acreditar que Godard esteja diante de uma superfície em branco. Com efeito, se estivesse
diante de uma página em branco, poderia reproduzir nela um exercício de estilo que funcionaria como
modelo. Mas não é isso o que acontece. Godard tem várias coisas na cabeça, ao seu redor ou no estúdio.
Ora, tudo o que ele tem na cabeça ou ao seu redor já está na tela, mais ou menos virtualmente, mais ou
menos atualmente, antes que ele comece o trabalho. Tudo isso está presente na tela, sob a forma de
imagens (visuais-sonoras-conceituais-etc) atuais ou virtuais. De tal forma que Godard não tem de
preencher uma tela em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la. Portanto, ele não compõe para
reproduzir na tela um filme que funciona como modelo; ele compõe sobre imagens que já estão lá, para
produzir um filme cujo funcionamento subverta as relações do modelo com a cópia. Em suma, o que é
preciso definir são todos esses “dados” que estão na tela antes que o trabalho de Godard comece. E,
dentre esses dados, quais são um obstáculo, quais são uma ajuda ou mesmo os efeitos de um trabalho
preparatório. Há clichês psíquicos assim como clichês físicos, percepções já prontas, lembranças,
fantasmas. Há nisso uma experiência muito importante para Godard: uma série de coisas que se pode
chamar de “clichês” já ocupa a tela, antes do começo. É dramático. A luta contra os clichês é algo
terrível” (DELEUZE. Francis Bacon: Lógica da Sensação. 2007, p. 91).
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Podemos também dizer que seria algo similar àquilo que as palavras e a
linguagem verbal (os sentidos) não conseguem transmitir de forma inteligível, o que
poderia ser comparado ao que Gumbrecht10 defende como “campo não-hermenêutico”,
e nos faz pensar num outro deslocamento a partir do que seria uma crise da
interpretação: a passagem da produção de sentido para a produção de presença. Essa
abordagem resultaria numa ênfase de leitura do Scénario du film Passion não tanto na
descrição do roteiro, mas nos momentos de descoberta de ideias durante o processo de
busca e invenção. Rotulá-lo como um “roteiro” seria uma heresia. Isto não é um roteiro,
mas um vídeo-escritura de invenção. Uma série de lampejos nos interstícios da sombra-
impressão entre as imagens: momentos de graça, epifania e sublimação.
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“As personagens, as classes, os gêneros formam o discurso indireto livre do autor, tanto quanto o autor
forma a visão indireta livre deles (o que vêem, o que sabem ou não). Em suma, é a reflexão nos gêneros,
anônimos ou personificados, que constitui seu “plurilingüismo”, seu discurso e visão. (...) É uma linha
quebrada, uma linha em zigue-zague, que reúne o autor, suas personagens e o mundo, e passa entre eles.
O cinema moderno desenvolve assim, de três pontos de vista, novas relações com o pensamento: a
supressão de um todo ou de uma totalização das imagens, em favor de um fora que se insere entre elas; a
supressão do monólogo interior como todo do filme, em favor de um discurso e de uma visão indiretos
livres; a supressão da unidade do homem e do mundo, em favor de uma ruptura que nada mais nos deixa
que uma crença neste mundo” (DELEUZE, G. A Imagem Tempo. 2005, p. 225-226).
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Essa noção de desfiguração diz respeito ao trabalho de emancipação das artes em relação ao regime de
representação num entrelaçamento a um novo regime estético que Ranciére denomina “partilha do
sensível”: uma alteração profunda no “sistema de evidências sensíveis que dão a ver a distribuição dos
tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do barulho no interior de uma comunidade,
que dão a ver ao mesmo tempo a existência de um comum e as découpages que aí definem os lugares e as
partes respectivas” (DUARTE, Susana Nascimento. O Figural no Cinema Contemporâneo: Articulações e
Disjunções do Visível e do Dizível. Tese de doutoramento. 2015, p. 121). Neste sentido, Godard estaria
orientando seu cinema por dois princípios aparentemente contraditórios. “O primeiro opõe a vida
autônoma da imagem, concebida como presença visual, à convenção comercial da história e à letra morta
do texto. Esta rejeita como não essencial a composição das intrigas herdadas da tradição romanesca e
arranjadas de modo a satisfazer o desejo do público e os interesses da indústria. O segundo princípio, ao
inverso, faz dessas presenças visíveis elementos que, como os signos linguísticos, valem apenas pelas
combinações que permitem: combinações com outros elementos visuais e sonoros, mas também de frases
e palavras faladas ou escritas na tela. Trechos de romances ou de poemas, títulos de livros ou de filmes
muitas vezes efetuam as aproximações que dão sentido às imagens, ou melhor, que fazem dos conjuntos
de fragmentos visuais “imagens”, isto é, relações entre uma visibilidade e uma significação”
(RANCIÈRE, J. O Destino das Imagens. 2012, p. 43).
10
GUMBRECHT, H. U. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. 2010.
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REFERÊNCIAS
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
ROSEMBERG FILHO, Luiz. GODARD, Jean Luc. Rio de Janeiro: Livraria Taurus Ed.,
1986.