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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

“Isto não é um roteiro”:

Vídeo-Escritura de invenção

no “Scénario du film Passion” de Godard

Disciplina: LITERATURA, CINEMA E SUAS MATERIALIDADES - 2LET956

Professora: Dra. Barbara Cristina Marques

Discente: Fernando Hiroki Kozu

LONDRINA, 09 DE FEVEREIRO DE 2019


2

“Isto não é um roteiro”: Video-Escritura de Invenção

no “Scénario du film Passion” de Godard

“Se há um cineasta, ao longo de toda a sua atividade, em que a escrita – em


todos os seus estados – está orgânica e sistematicamente presente na (e em torno da)
imagem, ele é Jean-Luc Godard” (DUBOIS, 2004, p. 259). Philip Dubois, em seu livro
Cinema, Vídeo, Godard apresenta cinco variações dos modos de figurações da escrita na
obra de Godard (texto escrito e/ou falado, nas e pelas imagens) a partir de uma divisão
cronológica de sua filmografia, a saber: 1) as palavras no enunciado fílmico (1960-
1967); 2) as palavras na e pela enunciação fílmica (1968-1972); 3) o vídeo ou a
enunciação “ao vivo” (1974-1978); 4) o tempo dos “video-roteiros” (1979-1984); 5) a
absorção da escrita em um ser-imagem generalizado (1988-1998). Em cada etapa
Godard estaria não somente se lançando a experiências com novos tipos e combinações
de figuração da escrita no cinema e no vídeo, mas também reavaliando, retomando,
transformando e acumulando todas essas possibilidades.

O “Roteiro do filme Passion” (Scénario du film Passion) foi produzido no ano


de 1982 por encomenda da Télévision Suisse Romande e situa-se na quarta variação
classificada acima, como “tempo dos “video-roteiros” (video ergo cogito ergo sum):
rumo a um deslocamento e a uma extensão do conceito de escrita” (id. p.278-284). Se
nas fases anteriores a escrita se fazia presente no enunciado diegético ao mesmo nível
narrativo; depois como texto-imagem na realidade enunciativa do próprio filme; e
posteriormente a partir do vídeo, a escrita se fazendo em tempo real na página-tela,
diretamente com a enunciação da imagem e do som (sem hierarquias); agora nesta
quarta variação a escrita é a própria imagem-som, funcionando como se fosse um texto
para ser visto e ouvido (sem a mediação das palavras), uma escrita de imagens.

Cada filme desta fase terá o seu “duplo”: o filme-cinema com seu enunciado
diegético (no caso Passion, de 1982) e outro filme-vídeo enquanto comentário
independente (Scénario du film Passion) e funcionando “como uma reflexão paralela,
uma metalinguagem sobre o filme cuja elaboração lhe é anterior ou posterior; (...) eles
funcionam como rascunhos, esboços, notas de pesquisador.” (p. 278-279). Um tipo de
“video-roteiro” ou vídeo-ensaio, que embora também nos faça insinuar a um tipo de
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vídeo-documentário – onde se relatariam os bastidores da feitura dos filmes (making


off) e o processo sequencial da construção da história – configura-se mais como uma
“espécie de meditação pessoal, cheia de hesitações e pesquisas, sobre algumas questões
(particulares ou gerais) que informam a concepção do filme e que este colocará (ou não)
em jogo, por outro lado e à sua maneira.” (id. p. 279)

Verifica-se nesse contexto uma incerteza ou dubiedade em pensar num único


tipo de classificação para o Scénario du film Passion, na medida em que pode-se
assentir em rotulá-lo como vídeo-roteiro ou filme-ensaio1 (video-ensaio), ou
videoescrita/videograma, escrita de imagens (DUBOIS, p. 282), mas também nas
palavras do próprio Godard, “ensaio de ficção” ou via Marker, “ensaio documental”
(MIRANDA, 2014, p.77), cinécriture (Varda) etc. Ou seja, um gênero híbrido que
segue a corrente da Nouvelle Vague com a intenção de diluição de fronteiras e
categorizações entre gêneros: um tipo de filme/vídeo-roteiro-ensaio-ficção-
documentário-escrita. Mas porque então Godard quis usar o rótulo “roteiro” do filme...
como título, se isto não é (apenas) um roteiro?

Logo no início do Scènario (após uma breve introdução) ele diz assim: “Estamos
aqui... para falar do roteiro de um filme, Passion, de que participei há alguns meses”2.
De que roteiro ele está se referindo? Um roteiro já escrito anteriormente ao filme ou
desse Scènario que ele está gravando, falando continuadamente e produzindo em vídeo?
Logo em seguida ele diz: “Para falar a verdade, eu gostaria de poder me calar e antes de
falar, ver... E este filme, acho que é o que tem de original, porque se procurou, eu
procurei... ver o... não quis escrever o roteiro, quis vê-lo. (...) Acho que se vê primeiro o
mundo e o escrevemos depois... e que o mundo que Passion descreve, bem, era
necessário, antes de tudo vê-lo, ver, ver se ele existia para poder filmá-lo” (GODARD,
1984).

O que seria exatamente fazer (escrever) um roteiro somente depois que o filme
já está terminado (foi visto)? Mas Godard não quer escrever esse roteiro, ele quer ver e
depois filmar esse roteiro, produzir um roteiro videográfico, “escrita” com imagens e
sons. O que seria um roteiro visual? Para ver antes e depois filmar o roteiro de Passion
seria necessário primeiro filmar (sem roteiro) e conseguir vê-lo, ou seja: ao pé da letra,

1
Ver: MACHADO, Arlindo. O Filme-Ensaio. Concinnitas. Rio de Janeiro: UERJ, ano 4, nº 5, 2003. (p.
63-75).
2
GODARD, 1984. Tradução in ROSENBERG, 1986.
4

um roteiro filmado não seria já o próprio filme (substituindo e traduzindo um possível


roteiro escrito)? Daí que, ver (rememorar) e filmar um roteiro posterior ao filme só seria
possível com o filme finalizado. E esse vídeo-roteiro deve ser recriado num outro tipo
de composição, utilizando arquivos tanto do filme quanto tudo o que for interessante
para forjar esse roteiro, poetizar, ficcionar e mantendo ao mesmo tempo uma conexão
com dados (documentos) reais do processo todo da produção do filme Passion. Não
seria exatamente uma reconstituição fiel, passo-a-passo, de todo o processo; não seria
possível e nem faria sentido... seria necessário criar algo diferente, um filme novo: “O
que é necessário é criar uma probabilidade no roteiro e a câmera torna este trabalho
possível depois; então, criar este provável, ver; ver o invisível e ver o que existe se o
invisível fosse visível, o que se poderia ver. Ver um roteiro...” (GODARD, 1984).

Ver o invisível é equivalente a ver uma superfície em branco. E ver o que existe
se esse branco fosse visível corresponde a fazer aparecer, surgir nesse branco tudo
aquilo que o olho pode ver. Mas fazer aparecer como, de onde, o quê e para quem?
Nessa política do autor-Godard, seria ele mesmo diante de uma tela branca,
manipulando as imagens e os sons de seu próprio arquivo pessoal, nos equipamentos do
seu próprio estúdio, criando o roteiro em tempo real, pensando em voz alta e como se
estivesse fazendo mágica, imagens sendo “escritas” na tela branca. Mas então a grande
(“falsa”) ideia (e grande golpe de mestre): as imagens não vão aparecer na tela em
branco à sua frente; ele está se vendo (como um espectador de fora) vendo a tela, por
trás. Uma câmera fixa por trás e Godard entre a câmera e a tela em branco, formando
uma sombra chinesa em contraste com a luz da tela, e as imagens sendo sobreimpressas
nesse fundo em preto e branco.

“A mais bela mise-em-scéne desta postura fundamental aparece em todo o


dispositivo cenográfico do Scénario du film Passion: Godard no comando, na
sua ilha de edição (deus ex machina), único comandante a bordo, cercado de
seus utensílios eletrônicos e diante da tela, lugar das imagens que virão pouco a
pouco se inscrever, lentamente, em ondas, como se emergissem do fundo de seu
pensamento, sobrepostas ao seu próprio corpo de sombra que habita o
“laboratório”. A tela do vídeo como superfície latente, bloco mágico de imagens
virtuais, sempre deixando as imagens transparecer, inscrevendo, variando,
recomeçando, apagando, sempre disponível para novas aparições. Verdadeiro
palimpsesto de imagens, em conexão permanente com as modulações do
5

espírito. Com o vídeo, vejo imediatamente (o) que penso. Logo sou.” (DUBOIS,
2004, p. 282)

“Ver um roteiro...”, mas agora, isto já não é mais um roteiro. É um “video-


escritura”3 de invenção (ou cinema de invenção poética e intervenção político-
pedagógica). Uma invenção no sentido prescrito por Ezra Pound, de “desbravar novos
caminhos, confrontando com o repertório habitual”4, o roteiro como um “video-
paideuma”5. E uma escritura experimental como em uma livre improvisação, sem regras
e ordenamentos fixos que pré-determinariam o jogo: um jogo aberto a múltiplas
conexões entre imagens, sons e... palavras... estas palavras de ordem, “inimigas
mortais” que Godard associa às leis e aos negócios: “o filme escrito de tal modo que os
que fornecem o dinheiro possam imaginar o filme de acordo com o modo como está
escrito”6. “Godard não escolhe, claramente, o termo “roteiro” de forma gratuita; ele
serve-lhe para infringir a lei do conceito” (MIRANDA, 2014, p.78).

3
Optamos pelo termo “video-escritura” no sentido de uma escrita deslocada e extendida, tal como
descrita por Dubois: “na qual as imagens são matéria-prima da reflexão, e o vídeo literalmente inscreve e
reflete o cinema. Pois quando conectamos imagem e pensamento “em direto”, estamos sempre no
“roteiro”, isto é, na escrita em sentido amplo, seja antes do filme (na concepção), seja durante a filmagem
ou na montagem, seja mesmo depois que o filme já ficou pronto” (DUBOIS, 2004, p. 282).
4
CAMPOS, Augusto de. Música de Invenção. 1998, p. 10.
5
Paideuma é um conceito adotado por Ezra Pound a partir do antropologista germânico Leo Frobenius,
como “um complexo de ideias, imagens, sentimentos – a maioria deles inconscientes, mas apenas sentidas
nos ossos – e que determina como certos grupos culturais veem o mundo” (ELDER, Bruce. The Films of
Stan Brakhage in the American Tradition of Ezra Pound, Gertrude Stein and Charles Olson. 1998, p.
465). Num sentido mais amplo, o termo paideuma remonta à sua origem grega como equivalente à cultura
ou educação, evidenciando o caráter pedagógico: “o lugar onde as coisas acontecem”, “o lugar onde algo
é produzido”, “o lugar onde você aprende ou ensina” (ELDER, Bruce. DADA, Surrealism, and the
Cinematic Effect. 2013, p. 56).
6
GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. 1989, p. 133.
6

Godard culmina nesta fase de sua produção num ponto de tensionamento crítico
ao texto escrito (às palavras, à linguagem) pelo fato de que, por um lado, o mundo e as
coisas do mundo existem (sempre existiram e vão continuar existindo)
independentemente dos conceitos que as nomeiam (insuficiência e ilusão do signo
verbal), e por outro lado por causa das normas rígidas da sintaxe que essa linguagem
impõe ao pensamento, nos modos como limitam, reduzem e condicionam as formas de
pensar, ver e entender o mundo. O video-escritura de invenção seria outra maneira de
expressar a partir de imagens-pensamento puramente visuais e sonoras, que se
inscrevem diretamente na tela sem a mediação do discurso verbal lógico-racional-
teleológico.

Logo no início do Scénario, somos convidados a apreciar esse deslocamento


entre escrita-palavra e escrita-imagem, além de colocar já uma série de outras reflexões
acerca do que estaria em jogo nesse video-escritura. Vemos a tela em preto; a inscrição
do título sendo escrita em branco (como se Godard estivesse digitando numa máquina
de escrever), e mantendo o padrão de qualquer início de um filme como elemento não
diegético, mas... aos poucos, percebemos que já estamos mergulhados desde o princípio
no campo diegético do roteiro:

“em esbatimento, um trecho do filme: um quadro vivo. Uma jovem mulher, nua,
sobe alguns degraus ajudada por um rapaz, depois ela torna a descer em nossa
direção. Sobre esta imagem se materializa a tela da sala de montagem com,
sobreimpressa, contra a luz, a silhueta de J.L.G. sentado de costas para nós,
diante da tela. À sua esquerda um monitor, à sua direita um outro monitor. À
sua frente a tela em branco, muito grande, da qual a jovem mulher parece sair.
O título, sempre em letras brancas. Off, os coros.” (GODARD, 1984)

Na sequencia vemos mais quatro quadros, com trechos do filme já realizado e à


cada quadro o título reaparece com uma linha suprimida. Um recolhimento gradual da
escrita textual deixando cada vez mais espaço para ver as imagens, para o olho
vislumbrar essas fusões curiosas de imagens (primeiro desaparece a inscrição da lei dos
direitos autorais, depois do nome do autor, depois da classificação de roteiro, sobrando
somente uma única palavra: “PASSION”).
7

Assim, a problemática da crise das palavras já é a primeira temática em jogo do


Scénario mostrada poeticamente logo no início, como um prelúdio. Godard nos faz ver
primeiro antes de falar, comentar, divagar no próximo plano (contrastante) a questão de
ver primeiro o roteiro antes de escrever. Faz-nos presenciar o tom, o clima, a atmosfera
de todo o filme. Desde o início um vídeo-escritura de invenção poética.

Ver o roteiro antes da sua compreensão e posterior escrita, antes das palavras
que nomeiam as imagens, significa um tipo de redução fenomenológica (grau zero) ou
esvaziamento da memória, como uma criança que vê o mundo e está em contato direto
8

com as coisas nesse mundo. Neste sentido, Godard cria uma alegoria à página em
branco de Mallarmé, tomando a tela em branco7 como um espaço entre o ausente e o
presente, ou contorno de um vazio; o branco como potencial e origem de uma
pluralidade de caminhos, associações, analogias, metáforas, fusão ou encadeamento de
imagens e palavras e sons: polifonia de polifonias.

De acordo com André Brasil essa tela em branco seria o dispositivo de um não-
saber originário enquanto potencial para fazer aparecer um filme, pelo trabalho da
rememoração e restituição da origem como precariedade e inacabamento: um cinema da
origem, uma origem que “marca ao mesmo tempo uma desaparição em curso e a
potência de um devir. Ela é um turbilhão, que, ao girar o tempo, faz convergir o que
está em vias de desaparecer e o que está em vias de se formar. (...) Ela é aquilo que se
ausenta da imagem, sua dimensão invisível, inapreensível. Mas, em meio a essa
ausência, ela retorna, se restitui através da imagem como anacronismo, vestígio,
sintoma. Ou seja, a origem não se apreende senão na forma do resto e do acidental.
Como sintoma, nos diz Didi-Huberman, ela é ao mesmo tempo “a permanência surda e
o acidente inesperado”” (BRASIL, 2009, p. 82).

Qual a origem do filme Passion? E qual a origem do Scènario du film Passion?


Uma origem possível é esse trabalho de ver o invisível, o branco da tela como jogo de
conexões múltiplas. Branco como o invisível, mas também como conceito errante. “Por
desconfiança de qualquer discurso preexistente que pudesse influir sobre as imagens,
Godard insiste em sua força de surgimento puramente visível, mas esse surgimento não
consegue abandonar uma certa relação com o verbal” (AUMONT, 2004, p.57),
encadeando as imagens segundo um jogo de figuras de linguagem:

7
Citando e parafraseando o que Deleuze diz sobre o pintor Francis Bacon, mas “transposto” para Godard:
“É um erro acreditar que Godard esteja diante de uma superfície em branco. Com efeito, se estivesse
diante de uma página em branco, poderia reproduzir nela um exercício de estilo que funcionaria como
modelo. Mas não é isso o que acontece. Godard tem várias coisas na cabeça, ao seu redor ou no estúdio.
Ora, tudo o que ele tem na cabeça ou ao seu redor já está na tela, mais ou menos virtualmente, mais ou
menos atualmente, antes que ele comece o trabalho. Tudo isso está presente na tela, sob a forma de
imagens (visuais-sonoras-conceituais-etc) atuais ou virtuais. De tal forma que Godard não tem de
preencher uma tela em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la. Portanto, ele não compõe para
reproduzir na tela um filme que funciona como modelo; ele compõe sobre imagens que já estão lá, para
produzir um filme cujo funcionamento subverta as relações do modelo com a cópia. Em suma, o que é
preciso definir são todos esses “dados” que estão na tela antes que o trabalho de Godard comece. E,
dentre esses dados, quais são um obstáculo, quais são uma ajuda ou mesmo os efeitos de um trabalho
preparatório. Há clichês psíquicos assim como clichês físicos, percepções já prontas, lembranças,
fantasmas. Há nisso uma experiência muito importante para Godard: uma série de coisas que se pode
chamar de “clichês” já ocupa a tela, antes do começo. É dramático. A luta contra os clichês é algo
terrível” (DELEUZE. Francis Bacon: Lógica da Sensação. 2007, p. 91).
9

branco = sol ofuscante = praia = lapso de memória = luz

Disso, as coisas do mundo (e da história) vão se multiplicando, a partir de


fragmentos e misturas de palavras-coisas-sentidos. Outras pontas de origem vão sendo
inventadas (recebidas e concebidas e escritas) num mesmo tempo simultâneo de
“origem”, pois há todo um trabalho em buscar ver algo, um mundo visível no invisível:

mundo do trabalho = operários = Isabelle = Goya = opressão = suicídio


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Outra linha de origem vem da primeira reunião com a equipe de trabalho do


filme Passion:

Tintoretto = amor = Jerzy e Isabelle = virgem = pureza = branco = trabalho e amor

Godard e a famosa fórmula de Rimbaud: “Eu=Outro”. Godard e seus


doppelgängers: sua sombra, suas telas duplicadas, seus personagens e seus duplos, a
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fábrica e o cinema, o amor e o trabalho, o real e o imaginário (ficção), a memória e a


história, o preto e o branco:

Apenas ideias vagas, e nenhuma história; apenas relações entre palavras e


imagens soltas. Em vez de um argumento lógico e explicativo, temos o que Deleuze
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chama de “discurso indireto livre”8, ou também, de acordo com Rancière9, uma


“desfiguração” da narrativa.

Podemos também dizer que seria algo similar àquilo que as palavras e a
linguagem verbal (os sentidos) não conseguem transmitir de forma inteligível, o que
poderia ser comparado ao que Gumbrecht10 defende como “campo não-hermenêutico”,
e nos faz pensar num outro deslocamento a partir do que seria uma crise da
interpretação: a passagem da produção de sentido para a produção de presença. Essa
abordagem resultaria numa ênfase de leitura do Scénario du film Passion não tanto na
descrição do roteiro, mas nos momentos de descoberta de ideias durante o processo de
busca e invenção. Rotulá-lo como um “roteiro” seria uma heresia. Isto não é um roteiro,
mas um vídeo-escritura de invenção. Uma série de lampejos nos interstícios da sombra-
impressão entre as imagens: momentos de graça, epifania e sublimação.

8
“As personagens, as classes, os gêneros formam o discurso indireto livre do autor, tanto quanto o autor
forma a visão indireta livre deles (o que vêem, o que sabem ou não). Em suma, é a reflexão nos gêneros,
anônimos ou personificados, que constitui seu “plurilingüismo”, seu discurso e visão. (...) É uma linha
quebrada, uma linha em zigue-zague, que reúne o autor, suas personagens e o mundo, e passa entre eles.
O cinema moderno desenvolve assim, de três pontos de vista, novas relações com o pensamento: a
supressão de um todo ou de uma totalização das imagens, em favor de um fora que se insere entre elas; a
supressão do monólogo interior como todo do filme, em favor de um discurso e de uma visão indiretos
livres; a supressão da unidade do homem e do mundo, em favor de uma ruptura que nada mais nos deixa
que uma crença neste mundo” (DELEUZE, G. A Imagem Tempo. 2005, p. 225-226).
9
Essa noção de desfiguração diz respeito ao trabalho de emancipação das artes em relação ao regime de
representação num entrelaçamento a um novo regime estético que Ranciére denomina “partilha do
sensível”: uma alteração profunda no “sistema de evidências sensíveis que dão a ver a distribuição dos
tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do barulho no interior de uma comunidade,
que dão a ver ao mesmo tempo a existência de um comum e as découpages que aí definem os lugares e as
partes respectivas” (DUARTE, Susana Nascimento. O Figural no Cinema Contemporâneo: Articulações e
Disjunções do Visível e do Dizível. Tese de doutoramento. 2015, p. 121). Neste sentido, Godard estaria
orientando seu cinema por dois princípios aparentemente contraditórios. “O primeiro opõe a vida
autônoma da imagem, concebida como presença visual, à convenção comercial da história e à letra morta
do texto. Esta rejeita como não essencial a composição das intrigas herdadas da tradição romanesca e
arranjadas de modo a satisfazer o desejo do público e os interesses da indústria. O segundo princípio, ao
inverso, faz dessas presenças visíveis elementos que, como os signos linguísticos, valem apenas pelas
combinações que permitem: combinações com outros elementos visuais e sonoros, mas também de frases
e palavras faladas ou escritas na tela. Trechos de romances ou de poemas, títulos de livros ou de filmes
muitas vezes efetuam as aproximações que dão sentido às imagens, ou melhor, que fazem dos conjuntos
de fragmentos visuais “imagens”, isto é, relações entre uma visibilidade e uma significação”
(RANCIÈRE, J. O Destino das Imagens. 2012, p. 43).
10
GUMBRECHT, H. U. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. 2010.
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REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas, SP: Papirus, 2004.

BRASIL, André. Tela em branco: cinema da origem, origem do cinema. Significação:


Revista De Cultura Audiovisual, 36(31): 2009, p. 79-93.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2009.67028

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

GODARD, Jean-Luc. 1984. “‘Scénario du film Passion’, de Jean-Luc Godard”.


“Découpage” integral do texto por Juliette d’Assay e Catherine Schapira. L’Avant-scène
Cinéma 323-324: 79-89.

MIRANDA, Rita Novas. “O ensaio enquanto gesto: Passion e Scénario du film


'Passion', de Jean-Luc Godard”. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por
Paulo Cunha e Sérgio Dias Branco, 75-88. Coimbra: AIM, 2014.

ROSEMBERG FILHO, Luiz. GODARD, Jean Luc. Rio de Janeiro: Livraria Taurus Ed.,
1986.

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