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Introdução
Durante a escrita deste artigo, levando em conta o contato com novas discussões
e questionamentos, se faz importante perceber o lugar que estamos ocupando, de onde
parte o nosso dizer e como isto reflete em nossa produção, as bagagens não saem de nós,
a escrita mobiliza sentimentos e a prática de colocar palavras em um papel se configura
em um exercício de despir-se e despertar para além do que estamos habituados.
Pensando em nosso tempo e nos enfrentamentos que estão diante de nós, se faz
necessário que nossa escrita extrapole os limites da academia e que reflita sobre questões
presentes e urgentes de nossa sociedade. As questões que pretendo abordar na escrita
deste artigo perpassam pelos últimos acontecimentos midiáticos e reais envolvendo
mulheres negras e suas experiências em nossa sociedade que desde seu princípio preza
pelo silenciamento destas mulheres.
Não pretendo de forma alguma “dar voz” a nenhum grupo social, pois como bem
sabemos, estas pessoas no decorrer de suas trajetórias encontraram formas de se
organizar, resistir e denunciar as perversidades que o racismo foi e ainda nos mostra ser
capaz de fazer quando acionamos este viés para se pensar as formas de estabelecimento
das relações sociais. Se faz necessário atentar-se para nossa produção e interesse de
pesquisa para compreender que tudo é perpassado pelas relações de poder, e quando
menciono isto estou querendo reconhecer e situar o lugar de fala dentro da pesquisa
acadêmica.
Sim, estamos falando de privilégios e sobre quem tem direito a voz nesta
sociedade normatizada pela branquitude, masculinidade e heterossexualidade. A filósofa
Djamilla Ribeiro nos atenta para a questão que envolve o lugar social do sujeito que fala,
onde este é definido a partir de suas experiências e refletido em suas posturas. Como
mulher, branca, e que ocupa um espaço de privilégio por estar no meio acadêmico,
reconheço a necessidade da pesquisa adotar e assumir um comprometimento com os
saberes para além deste espaço formal ao qual estamos condicionadas.
Esta escrita também se constrói a partir de vários incômodos gerados entre leituras
e discussões em sala de aula: como podemos fazer/pensar a História sem criar o “outro”1
- os sujeitos que se constituem e se reconhecem nas assimetrias das relações de poder?
Quando falamos do outro, estamos falando pelo outro, e como fazer este delirar sem ser
capturado? É preciso medir as aproximações e afastamentos, e pensar em nossa postura
diante do modo como se produz o saber.
Neste sentido, este trabalho visa localizar nossos interlocutores e povoar a escrita
de gente para possibilitar o exercício de identificação dos campos ainda ocupados pela
colonialidade dentro da produção acadêmica e para além disto, propor outra dinâmica de
escrita e produção de saberes que tem como um dos objetivos perceber que as estruturas
que sustentam estas relações de poder perpassam pela lógica racial das relações4.
1
Em sua Filosofia e Ética da Libertação o autor percebe o processo de dominação apontando a modernidade
e suas consequências como a sobreposição de uma cultura (eurocêntrica) sobre a outra (sul-americana), e
questiona a possibilidade de construção de uma ética no lugar de uma intervenção intelectual que reflita o
eu e o outro no campo social para evitar a reprodução da exclusão. Ver mais em: DUSSEL, Enrique. La
ética de la liberación: ante el desafio de Apel, Taylor y Vattimo. Universidad Autónoma del Estado de
México, 1998.
2
Para o sociólogo Aníbal Quijano a colonialidade trata de uma estrutura mais profunda e duradoura que
tem como fundamento a modernidade, eurocentrismo para fins de dominação. Ver mais em: QUIJANO,
Anibal. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, Boaventura S.; MENESES, Maria.
Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
3
A autora expõe a necessidade do (re)pensamento crítico e transdisciplinar entre culturas, políticas e
economias nas relações de construção de conhecimentos para identificar as influencias eurocêntricas nas
universidades e descolonizar suas práticas. Ver mais em: WALSH, Catherine. “Introducción. (Re)
Pensamiento crítico y (de) colonialidad.” Pensamiento crítico y matriz (de) colonial (2005): 13-38.
4
Quijano aponta para a colonialidade como uma extensão da dominação onde se tem referências no
norte/europa, que perpassam pelo poder, saber e ser como formas de manutenção das hierarquias e
Pretendo aqui pensar e escrever sobre as recentes experiências que determinadas
mulheres negras tiveram em nossa sociedade (e que tiveram repercussão midiática), me
refiro aos casos de Marielle Francisco da Silva5, Valéria Santos6 e para adentrar em
análise mais profunda nosso “fio condutor” será a trajetória de D. Erci Francisca da Silva,
mulher negra nascida no interior do município de Taquara – RS.
Para tanto será utilizado excertos da entrevista realizada no ano de 2017 para a
elaboração do projeto de pesquisa de mestrado que visa perceber a construção de um
território negro em região de imigração alemã a partir das memórias de moradores da rua
“Vila- África”, bem como perceber os espaços e relações racializadas na cidade de
Taquara – RS.
Não podemos pensar na formação histórica do nosso país sem atentarmos para os
processos de exploração que aqui ocorreram. O sistema escravista que perdurou por mais
de trezentos anos deixou grandes mazelas a população negra, dentre elas o estigma da
raça que começara a ser pensada em seu conceito pela elite branca intelectual na Europa
em meados do século XIII, sendo importada e realocada para as especificidades do Brasil
ainda no século XIX. Porém, foi sobretudo após o fim da escravidão enquanto instituição
e do advento do modelo republicano que tal conceito vai ganhar força e adesão das elites
intelectuais, Estado e demais sujeitos que compunham a sociedade brasileira. Mas que
vai tomar forma, principalmente, a partir da implantação da República no século XX7.
Vários intelectuais dedicaram boa parte de suas vidas para tentar entender e
desenvolver estudos que abordassem as intenções e as necessidades de ter uma nação
brasileira homogênea e cordial logo no início do período republicano. Muitos deles
acabaram por criar uma imagem nacional atrelada ao convívio harmonioso e pacífico
entre portugueses, indígenas e negros, contribuindo para o que hoje conhecemos como
8
Gilberto Freire em seu livro clássico: Casa Grande e Senzala publicado em 1933 aborda questões
referentes ao cotidiano brasileiro e os impactos da miscigenação na formação cultural do país. Ver mais
em: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 50ª edição. Global Editora. 2005.
9
Para Guimarães o conceito de raça não faz sentido se não dentro de uma teoria racialista que deve ser
creditada a construções socioculturais eficazes para construir, manter e reproduzir privilégios e diferenças,
não são escolhidos pelos sujeitos, mas são assumidos pelo mesmo. Ver mais em: GUIMARÃES, Antonio
S. Definindo o racismo. In: Racismo e Antirracismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999.
10
Lélia Gonzales em sua publicação intitulada: Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira aborda aspectos
das relações entre dominantes e dominados apresentando os motivos que fazem a democracia racial ser tão
bem aceita e divulgada. Segundo a autora os textos publicados com este assunto abordavam a questão da
mulher negra somente através do viés socio-econômico, e não avançavam para questões mais profundas e
complexas que envolve as noções de representação das mulheres negras. Ver mais em: GONZALEZ, Lélia.
Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984.
11
Desde a criação do GT Emancipações e Pós-abolição, da Associação Nacional de História (ANPUH) no
ano de 2013, vem crescendo o número de pesquisas que buscam observar as agencias negras tanto no mundo
da escravidão bem como a partir do 13 de maio de 1888. Sobre o manifesto do referido GT, ver:
https://emancipacoeseposabolicao.wordpress.com/manifesto-de-fundacao/.
acessíveis a todos. A população negra liberta encontrava mais um obstáculo criado pelas
políticas de governo agora na recém-formada República: cada vez mais as ideologias
eugenistas ganhavam adeptos em solo brasileiro; a concepção de raça passara para além do
plano biológico e era cientificizada por intelectuais e por diversas instituições nacionais para
justificar as desigualdades, barrando o acesso da população negra aos direitos básicos
enquanto cidadãos.12
Neste sentido, podemos perceber a complexidade das relações que se
estabeleceram e que ainda identificamos na atualidade. Mulheres como Marielle e Valéria
rompem com os estereótipos que a sociedade branca brasileira construiu e está habituada
em ter como representação, desafiar esta estrutura de privilégios resultam nos fatos que
estão sendo naturalizados no cotidiano: a violência dirigida a esta população e sobretudo
às mulheres muitas vezes é letal.
12
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil,
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
13
Ver tabelas e índices de comparação: http://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_populacao.html
14
Branquitude também se constitui enquanto identidade, a partir universalização do branco como modelo
de humanidade e supremacia econômica, política e social, subjetivando as relações e potencializando a
reprodução do racismo a partir da ideia de branqueamento. Ver mais em: BENTO, Maria Aparecida;
SILVEIRA, Marly de Jesus Silveira; NOGUEIRA, Simone Gibran. (Orgs.). Identidade, branquitude e
negritude: contribuições para a psicologia social no Brasil: novos ensaios, relatos de experiência e pesquisa.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014.
problemas exclusivamente dos negros, pois só ele é estudado,
problematizado. (BENTO, 2002, p.02).
Assim podemos atribuir às trajetórias de Marielle e Valéria este olhar mais atento
e sensível aos elementos que estruturam o racismo em todas suas esferas, sejam elas
institucionalizadas ou não. Ambas estavam em esferas de poder, distintas e ao mesmo
tempo semelhantes em sua visibilidade e influência, porém isto não evitou que as formas
de silenciamento fossem acionadas quando estas mulheres de alguma forma rompem com
o estigma e a estrutura que as cerceiam, o que faz lembrar e referenciar DAVIS, 2018:
"Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com
ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram
as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo".
15
HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos Feministas, n. 2, ano 3, p. 464-478, 1995.
16
COLLINS, Patricia Hill. Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In: JABARDO, Mercedes.
(Org.) Feminismos negros: Una antología. Madri: Traficantes de Sueños, 2012, p. 99-134.
histórica de nosso país, adotando políticas voltadas para a higienização social e espacial,
como foi o caso da imigração como projeto nacional que encontrou nos destinos do sul
os componentes necessários para a construção de um discurso excludente e colonizador.
Para elucidar este percurso usaremos como exemplo a trajetória de Erci Francisca
da Silva, mulher negra, Mãe de Santo nascida na cidade de Taquara e que vivenciou em
seu cotidiano os efeitos da imigração e suas formas de acionamento da percepção de raça
para o estabelecimento das relações e espaços sociais.
17
Marcus Vinícius Freitas da Rosa em sua tese analisa os discursos de bacharéis republicanos como
Joaquim Francisco de Assis Brasil, Alcides de Mendonça Lima e Alfredo Augusto Varela de Vilares como
porta-vozes de um projeto de identidade nacional e regional, onde a construção do RS como região apta
para receber os imigrantes também tinha como objetivo a invisibilidade da presença negra. Ver mais em:
ROSA, Marcus Vinicius de Freitas. Além da invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre
durante o pós-abolição (1884-1918). Tese. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Campinas,
2014.
18
Em artigo intitulado: Povoamento pioneiro das Terras do Mundo Novo, Dóris Rejane Fernandes introduz
o Vale do Paranhana como espaço de disputas e de investimentos de particulares visto que a região fornecia
sua produção à capital da província. Ver mais em: FERNANDES, Dóris Rejane. Tristão Monteiro e o
projeto colonizador do Mundo Novo. In. SOBRINHO, Paulo Gilberto Mossmann; BARROSO, Véra Lucia
Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008.
19
Segundo o sociólogo Rogério Santos e o Historiador Ricardo Charão, a região que compreende Novo
Hamburgo e Taquara havia muita concentração de negros libertos que encontraram a região dos Vales para
Existem trabalhos recentes de pesquisas20 sobre o convívio destes imigrantes
europeus com a população negra que já se encontrava nestas localidades, inclusive
existem estudos voltados para a possibilidade destas famílias (de imigrantes) no período
que antecede a abolição, empregarem a mão de obra escravizada de famílias negras e no
pós abolição permanecerem com a mesma lógica da servidão em troca de recursos básicos
como a alimentação e a moradia21.
Estas relações estão presentes nas memórias de Dona Erci Francisca da Silva,
mulher negra nascida em 02 de julho de 1946 no interior do município de Taquara. Sua
mãe, Dona Otilia da Silva, juntamente com seus dez filhos moravam no distrito do Rio
da Ilha, interior do município.
[...] nóis era uma turma, nóis era dez irmão e minha mãe tava esperando
meu irmão mais novo, nem conheceu o pai, nóis era tudo pequeno, o
irmão mais velho tinha 14 anos, que já faleceu. Daí vivemo uma vida
muito difícil, passamo fome, passamo trabalho, sabe? A vida meio
rejeitada assim, sabe? A gente teve uma vida muito sacrificada, meu pai
não tinha assim, aposentadoria nem nada e nóis vivia nas terra dos
outros zona rural, e daí passemo muita fome, muita dificuldade [...]
[...]Nós era piquininho deste tamanho assim ó e nóis tinha que ir pra
roça, meu pai cavocava no chão pra mim ir plantando o aipim e daí
nóis.. daí minha mãe contava os pedaço de aipim assim e meu pai ia
cavocando no chão com aquilo longe e cumprido , ia cavocando no
chão, nóis ia depois do meio dia e só vinha de noitezinha, e quando
vinha a gente tinha que trazer lenha pra fazer fogo, sabe, uma coisa e
outra, quando era época de tentar plantar mais feijão , aipim, batata –
doce e daí ele ia cavocando e a gente seguia botando os pedacinho de
aipim ali dentro e tampando e tampando dentro da covinha né..[Sim]
Mamãe cortava e a gente pegava um balainho e ia botando dentro e daí
aquilo ali servia pra nóis pra quê? Porque armazém..pra gente ir num
armazém que nem nóis, nóis morava lá no canto da Sta Rosa divisa com
Tucanos e tinha que sair a pé pra ir no armazém, nóis vinha prá cá de
manhã e chegava em casa meio dia né então quando mamãe fazia pão,
naquele tempo pão não tinha farinha de trigo, não tinha moinho, pão era
farinho de milho com batata-doce, essas coisas assim sabe? [Sim]
Então nóis não tinha pão, não se comprava pão naquela época, então de
manhã era café com aipim, no outro dia era café com batata doce ou
com feijão mexido era assim que ...[vocês tavam sobrevivendo] E o café
se fixarem após a abolição. Os quilombos situados em Taquara chamam-se “Paredão Baixo” e "Quilombo
da Vó Anita".
20
FREITAS, Ubiratã F. História, pós-abolição e cotidiano; o negro livre na sociedade branca no município
de Taquara (1888-1920). XIII Encontro Estadual de História: Ensino, Direitos e Democracia. UNISC, 2016.
21
CUNHA, Olivia Maria Gomes da e GOMES, Flavio dos Santos (Orgs.). Quase-cidadão: Histórias e
antropologia da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora: FGV, 2007.
com...e daí a dona da.. Dona da fazenda lá dava leite pra nóis e daí
porque a plantação o meu pai plantava não era só pra nóis era pros donos
da fazenda, ele tinha que plantar roças grandes e daí ela dava leite pra
nóis e nóis comia leite com farinha de mandioca, o outro pegava leite
quente e botava farinha de mandioca e comia leite com farinha de
mandioca, polenta de farinha de milho porque daí tinha, plantava milho,
mandava num moinho, meu pai era vivo e mandava num moinho e
moinha farinha de milho e fazia farinha de milho né, não essas fininha
que tem hoje, era aquela grossa e daí fazia polenta e comia com leite
né.. e o que vinhesse era lucro pra nóis sabe?[...] Muita necessidade, a
vida.. e daí não tinha oportunidade de ninguém sabe? Não tinha
oportunidade de ninguém porque na verdade a vida do negro foi assim:
a escravatura foi assim ó: eles libertaram o negro mais..[aff] sem nada!
E ia viver de que jeito? Era a mesma coisa ou duma escravidão, não
vende, aí não davam mais os filhos, não vendiam mas a necessidade
continua a mesma, como se fosse escravo, né? [...]
Estas memórias que D. Erci aciona acabam por colaborar ainda mais com o fato
de que as experiências comuns a homens e mulheres negras ao longo deste período
refletiam os resquícios e noções do cativeiro, onde as relações de trabalho fora transposto
a um contexto que as identidades sociais são acionadas com a finalidade de estabelecer
as hierarquias de poder similares ao antigo sistema, que tinha como elementos para a
exploração o critério racial.
No decorrer do depoimento outras questões são levantadas por D. Erci, que
perpassa a infância difícil no interior da cidade, a morte de seu pai e a decisão tomada por
sua mãe em sair do interior e morar perto do centro do município.
Este deslocamento também se dá pelo fato de que a cidade representava uma
oportunidade de melhora no dia a dia desta família, trazendo alternativas de sobrevivência
para além do cultivo e manuseio da terra. Este movimento de migração campo – cidade
fora uma das alternativas adotadas pela população negra visto que a inserção de industrias
e modernização da mão de obra estava chegando na região através de ferrovias, fábricas
e comércio local.
[...] até que foi ficando mais adulta né e daí depois que com o tempo
que começou as fábrica mesmo pra.que começaram a bota gente pra
trabalha em Igrejinha e Taquara, essa época aí eu tava com 20 anos
quando eles começaram a botar gente nas fábrica e daí..porque no
começo só tinha umas ali em cima, a Chaplim.. Uma outra fabricazinha
aqui em baixo, então quem tinha serviço tinha e quem não tinha, tinha
que se virar do jeito que pudesse né![...]
A inserção da mulher negra nos espaços públicos se deu muito antes da abolição,
e neste contexto também não foi diferente. Agora morando na cidade, a família de Dona
Erci e seus irmãos encontravam meios para permanência. Dona Erci desde muito nova
trabalhava em “casas de família” para ajudar no orçamento da casa. Esta prática fora
muito comum e delegada às mulheres negras justamente por estas mulheres terem maior
mobilidade nos espaços públicos e não carregarem o estigma da cor atrelada ao indivíduo
suspeito, criminoso ou vadio, como era o caso dos homens negros22.
A Experiência na Cidade
As experiências cotidianas que perpassam a vida destas mulheres nos dizem muito
sobre as formas e estratégias adotadas para a (re)existência em uma sociedade que estava
constantemente viabilizando formas de negligenciar sua estada no mundo junto aos seus
corpos.
[...] Então depois que nóis fomo crescendo mais, fumo ficando grande
minha mãe botava nóis no serviço pra trabaiá, mas mesmo assim no
serviço pra trabaiá a gente passava trabalho, porque a gente tava
trabalhando nas casa e quando as patroa saiam os homem se passavam
com a gente na ausência das patroa né. E daí quando as patroa chegavam
eu digo, por isso que hoje tem essas mistura tudo, porque as patroa
nunca acreditavam que o patrão abusava as empregada sabe? As negra!
E existe assim.. existia sim porque os patrão, as patroa saiam e os patrão
se passavam cá gente sabe? E a gente e as vez a gente conseguia correr,
e eu graças a Deus que nunca, mas eu conseguia correr, eu corria sabe?
Eu corria sempre. [...]
A experiência de Dona Erci trabalhando desde muito nova para ajudar no sustento
da casa junto com seus irmãos ajuda a exemplificar estas noções difundidas em nossa
sociedade sobre as representações e lugares destinados às mulheres negras:
[...] e daí as mulher pediam pra nóis ir nas casa fazer serviço e minha
mãe mandava pra nóis ganhar um prato de comida e daí ela dava comida
de meio dia pra nóis porque aquele prato de comida..nóis era que nem
cachorro, eles tavam dentro de casa comendo e depois que eles comiam
o resto de comida que sobrasse que eles botavam num prato e
mandavam nóis sentar na área e davam comida pra nóis e daí nóis tinha
que fazer os serviço pra elas. Capinar o jardim, limpar em roda da casa,
lavar chiqueiro de porco, tira balde da água do poço e lavar os
chiqueiros do porco por um prato de comida [...].
22
NAPOMUCENO. Bebel, Protagonismo Ignorado In PRADO, Maria Ligia Coelho. FRANCO, Stella
Scatena. Participação Feminina no Debate Público Brasileiro In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana
Maria (Org.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
não, e o que precisamos voltar nossa atenção são para além destas relações que foram
estabelecidas entre estes sujeitos.
Outro espaço que também se constituí nesta lógica, sendo a proposta inicial do
projeto de pesquisa, volta-se para o surgimento da rua Miguel Bauer como “Vila –
África”, sendo percebida não por seus moradores como território negro, mas assumida em
sua identidade racial por estes:
[...] é que aqui era todo mundo, só nego dos dois lado da rua, eles
achavam que como era só negro, acho que começaram a chamar de
África ali em baixo pela África e depois um pouco vieram pra cá, outros
pouco não vieram e daí depois aqui pra baixo, de cima pra baixo só
nego, porque os filho casaram e foram ficando morando por aqui e
aquela coisa, então eles. Daí como eles conhecem a negrada dali como
todo mundo conhece todo mundo dali pra cá começaram a chamar de
África daqui pra baixo e quer dizer que todo mundo sabe que o nome
da rua é Miguel Bauer, mas se um perguntar “Ah tu mora lá em baixo
na África, lá em baixo?!” é tá moro é África é África, fazer o que né?
[...]
O campo da História Oral caminha lado a lado com a demanda que a historiografia
se ateve na década de 1980, sendo influenciada pela história marxista de Thompson e
demais historiadores que procuravam não apenas supervalorizar a estrutura, mas
compreendê-las através dos seus sujeitos, e das relações em que estes estabeleciam com
seus meios. Sendo assim, Alberti defini a História Oral como sendo:
Um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica etc.) que
privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de,
ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo,
como forma de se aproximar do objeto de estudo (ALBERTI, 2004,
p.18).
Já sabemos quem está sendo o principal alvo destas ideologias, sabemos também
que as garantias até aqui adquiridas são fruto de muita luta resultante dos movimentos
negros, LGBT, feministas e demais formas de reivindicação pelo direito de viver com
dignidade em um país que a passos lentos tenta (re)contar e (re)conhecer sua própria
história em meio a golpes e sufocamento de liberdades. Quando apontamos para o fato de
que a racialização perpassa por todas relações e esferas, também estamos dizendo que
nossos privilégios advém das identidades construídas e disputadas ao longo deste
percurso, e para além de reconhecer, precisamos dimensionar nossa postura diante as
desigualdades, não no sentido de ocupar espaços e frentes de luta, mas para que possamos
juntos seguir, com os olhos atentos e punhos cerrados.
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