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DELIBERAÇÃO INTERNA, DELIBERAÇÃO EXTERNA E O MONÓLOGO COLETIVO

Vanice Regina Lírio do Valle1

Existe uma vasta literatura norte-americana no tema das técnicas de deliberação mantidas pela
Corte Constitucional; uma das perspectivas que já ocupou a minha atenção é aquela que
trabalha as figuras de deliberação interna e externa.

As duas categorias operam a partir de uma perspectiva analítica que tem em conta quem seja o
interlocutor identificado pelo julgador como destinatário da sua comunicação. Na deliberação
interna, tem-se a valorização da dialética entre os integrantes de um órgão de deliberação
colegiada, na busca da formação do consenso possível. Aos seus integrantes caberia se dedicar
a um esforço recíproco de argumentação, sensibilização e convencimento, tudo de modo a
consolidar uma posição comum.

Na deliberação externa, o discurso se dirige principalmente ao público também externo – a


sociedade como um todo, ou segmentos específicos que tenham aproximação ou relação direta
com o tema sob análise. O exercício de persuasão não se dá entre os julgadores, mas destes
para o público.

Ambas as perspectivas encontram pontos fortes e riscos. Instintivo perceber que a construção
dialógico de uma decisão que se apresente como fruto de uma síntese de inteligências seja
desejável, eis que supostamente espelha uma racionalidade que foi testada a partir de vários
pontos de vista. A estratégia, porém, não é infensa a críticas vez que a busca desse patamar
compreensivo comum pode envolver o abdicar de parte de algum dos partícipes da decisão (se
não de todos) de um ponto de vista distinto, que não encontrou o apoio e adesão dos demais.
O preço da consensualidade pode ser uma posição mais conservadora, com uma potencial
desaceleração de avanços.

A outra posição, que sobrevaloriza a deliberação externa, elege por interlocutor alguém que
está fora da Corte. Também aqui se pode apontar efeitos positivos e negativos. Na perspectiva
favorável, o pendor pela deliberação externa tende a determinar uma linguagem e
argumentação mais compreensível ao leigo (à sociedade) – e com isso, amplia-se o potencial de
comunicação da Corte para aquele que é o destinatário último da jurisdição constitucional.
Outro subproduto da ênfase na deliberação externa é o prestígio às considerações
metajurídicas, que possivelmente se tem com maior frequência na esfera de cogitação do
público além das fronteiras do Tribunal. Não se pode negar que, em que pese o caráter
especializado da função desempenhada por uma Corte Constitucional, a consideração da

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Visiting Fellow no Human Rights Program – Harvard Law School. Pos-doutorado pela EBAPEFGV,
Doutorado em Direito pela UGF. Professora Permanente do PPGD/UNESA e Procuradora do Município do
Rio de Janeiro.

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percepção coletiva quanto a um tema em debate não é em si um mal. O vício aí (como tantas
coisas na vida) pode estar não no fenômeno em si, mas na sua intensidade.

Abertura à deliberação externa não pode condicionar o exercício de racionalidade jurídica que
se requer, em especial, de um Tribunal Constitucional. Se o vício pode estar no grau, a virtude
estará no ponto médio: um forte investimento na deliberação interna produz potencialmente
decisões revestidas de alto grau de congruência. Associar a isto uma abertura à deliberação
externa facilita o incremento de legitimidade da conclusão, eis que mais facilmente se constrói
adesão em torno de algo que é compreensível a todos.

A dualidade das categorias – e os riscos inerentes a cada uma delas – se tem claramente
presente no STF, especialmente em suas decisões mais recentes, ainda que essas expressões
técnicas não tenham vindo à tona.

No terreno da reverência para com a deliberação interna, tem-se a prática hoje generalizada na
Corte, da remessa prévia dos votos aos demais Ministros. Vale o registro da resistência em
relação a essa prática externada publicamente pelo Ministro Março Aurélio, que afirmando-se
“sugestionável”, recusa a recepção prévia dos votos.

Manifestação mais recente de um comportamento que se enuncia harmônico com a deliberação


interna é a evocação da colegialidade (não vou aqui debater a adequação técnica da associação
à colegialidade da categoria de princípio). Esse componente tem sido vocalizado como
justificativa para a adesão, episódica ou não, a uma conclusão que não reflete o ponto de vista
pessoal de um ou de outro Ministro.

As alusões mais recentes à colegialidade ensejam muita resistência, tendo por ponto central um
suposto efeito fossilizador da evolução natural da jurisprudência, que tenderia a render-se
sempre à maioria formada. O argumento soa curioso num sistema jurídico que tem se
aproximado progressivamente da lógica dos precedentes vinculantes. A par disso, fato é que
colegialidade importa em deferência para com a deliberação da maioria – mas não na
impossibilidade de manifestação do dissenso.

O problema está em que nos termos em que a colegialidade tem sido utilizada, tem-se nela um
curioso híbrido entre deliberação interna e externa. Híbrido, porque embora o resultado final
seja o robustecimento de uma posição sufragada pela maioria, tem-se o claro registro para fins
externos de que aquele que homenageia a colegialidade não concorda com o resultado final da
deliberação.

Nessa hibridez, prevalece o subproduto mais pragmático da proclamada deliberação interna –


não há redator para o acórdão, não há voto vencido nem embargos infringentes. O que se vê

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enfraquecida é a ideia de consenso construído para alcançar a decisão – e de que, portanto, o
resultado da deliberação tem elevado seu potencial de acerto, observada a máxima de Pareto.
Perde-se igualmente o potencial de convencimento que o declinar das razões de divergência
possa expressar. É de se ter em conta que o processo de deliberação interna não se esgota num
único caso, e que a reiteração da divergência pode se afigurar como uma ferramenta dessa
mesma técnica

No campo da deliberação externa, a manifestação máxima é a opção pelo televisionamento das


sessões do Pleno, complementado pela veiculação destes mesmos julgamentos em canal do
YouTube. Em que pese as discussões iniciais quanto à conveniência deste tipo de visibilidade, a
prática parece ter ultrapassado o ponto de não-retorno, sendo pouco provável sua interrupção.

Há um segundo conjunto de ferramentas incorporada pela Corte no seu processo de decisão


que se alinham com a deliberação ao externa, mas num viés de caráter dialógico. As audiências
públicas e amicus curiae são exemplos claros dessa incorporação. Diz-se afinados com a
deliberação externa, porque envolvem a recepção de argumentos e informações externos aos
autos. O cariz é dialógico porque a comunicação se dá (supostamente) em “mão dupla”.

Os exemplos de deliberação externa mais claros, todavia, se tem em decisões mais recentes, e
se identificam no conteúdo discursivo de votos e apartes.

O uso de dados estatísticos acerca da realidade sobre a qual se está decidindo é uma
manifestação clara dessa nova tendência. Considerada a natureza do resultado que se
materializa na jurisdição constitucional, as informações empíricas, embora não sejam
desimportantes, tem baixo poder de convencimento no plano da deliberação interna, mais
pautada pelos parâmetros estritamente técnicos. Já na perspectiva da deliberação externa, do
discurso “para fora da Corte”, o diálogo com dados empíricos inequivocamente busca um
reforço no signo de legitimidade do voto que se está a veicular.

Outra manifestação clara de uma inclinação à deliberação externa se tem na própria referência
nos votos “a quem nos esteja ouvindo”, expressão que tipicamente antecede algum
esclarecimento conceitual muito elementar.

Também sugere uma inclinação em favor da deliberação externa, o modo de veiculação dos
votos de alguns dos Ministros, com uma combinação entre leitura de trechos escritos, e discurso
livre. Nisto tem-se um variado perfil entre os integrantes da Corte, com o Ministro Celso de
Mello no extremo do apego ao texto escrito de seu voto, e o Ministro Roberto Barroso talvez no
outro extremo, preferindo a explanação oral de suas linhas de pensamento.

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Novos componentes se apresentam no cenário de deliberação da Corte, especialmente em
ambiente de acirrada divergência. Assim, tem-se visto a reiteração de narrativas, que se
apresentam ao longo do voto televisionado (e não do escrito) reiteradamente, independente do
conteúdo do feito em discussão. É conhecida a recorrente referência pelo Ministro Gilmar
Mendes ao desacerto das decisões da Corte nas ADI’s versando sobre o sistema de precatórios;
ou mais recentemente, a crítica ao regime de férias da magistratura – crítica que encontra seu
caminho de enunciação, não importa qual seja a matéria em discussão. Tem-se nesta estratégia
a busca de uma narrativa (ou contranarrativa) que evidentemente não tem por destinatários
aos pares, mas àqueles que tenham contato ou notícia da posição veiculada na sessão de
julgamento.

Uma consequência previsível da inclinação em favor da deliberação externa é um maior


escrutínio pela imprensa – o que por sua vez retroalimenta o direcionamento da comunicação
ao público, seja para reforçar a visão ou diagnose dos meios de comunicação, seja para
desqualificar essa mesma percepção. Este é um componente particularmente curioso deste
cenário, porque o espaço na mídia, que incialmente se apresentaria como útil à deliberação
externa, pode se revelar um obstáculo à comunicação. Isso porque, inexistindo no Brasil uma
mídia especializada no tema do Judiciário e em particular, da Corte Constitucional, muitas vezes
os meios de comunicação, ao invés de funcionarem como caixa de ressonância da comunicação
construída pela Corte para o público externo, distorcem essa mesma mensagem.

Novo ponto a assinalar relacionado à essa nova tendência, é a armadilha do monólogo coletivo.
Afinal, se a prioridade é o convencimento do público externo, tem-se os Ministros todos falando
– mas não uns com os outros, e sim para um “interlocutor” abstrato. Não se pode olvidar que o
monólogo coletivo é uma das primeiras fases do desenvolvimento da criança; fase que logo é
substituída pelo diálogo efetivo; aquele que envolve falar e ser ouvido, estar aberto a convencer
e ser convencido.

Também um inovador e relevante componente nesse quadro é o risco de radicalização; de a


deliberação externa se deslocar do campo da visibilidade para o da busca do convencimento
desse interlocutor além das fronteiras da Corte. Facilitar a compreensão quanto aos problemas
complexos da vida, e às muitas visões de mundo que podem se apresentar num mesmo conflito
social envolve um esforço de construção de um código compreensivo. Migra o juiz do terreno
exclusivo da técnica, para um ponto onde a expertise seja capaz de se traduzir em enunciados
compreensíveis.

Quando ao revés disso, o que se busca é o convencimento do destinatário externo da decisão,


cresce o risco de um certo “colorido argumentativo” – normalmente dirigido contra a posição
majoritária. No jogo de convencimento ao público, para que a sua posição esteja certa, é preciso
que a do outro esteja errada. E quanto mais errada for a visão do outro, mais fácil e rápido se
alcança convencimento externo. Nesse exercício, pode ter lugar a hipérbole – mas também pode
se insinuar o discurso desqualificador. E esse é, inequivocamente, indesejável, porque
desprestigia à própria instituição.

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