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Eric Voegelin: Política Gnóstica

por Eric Voegelin

Assim como em Roma, ao lado dos romanos, há uma outra população de estátuas, do
mesmo modo há outro mundo de loucura fora desse mundo real, bem mais poderoso, no
qual a maior parte das pessoas está vivendo.
(Goethe)

I
O movimento Puritano do século XVII possuía uma ala radical que entendia a revolução
como a construção do Reino de Deus na terra. Os santos do Senhor, guiados pelo Filho
e cheios do Espírito, batalharam pelo poder do Estado, não para inaugurar uma nova
era política, mas para permitir que uma nova era gnóstica sucedesse a era antiga que
estava marcada para a destruição. Essa ala radical expressou linguisticamente sua
posição em relação à sociedade e ao mundo por meio do simbolismo bíblico. O design
surgiu nos tempos (durch die Zeiten war gekommen) que 2 Esdras 6.9 profetizou, e viria a
sua realização no que Is.65.17-19 havia anunciado: “Pois vejam, criarei novos céus e uma
nova terra, e as coisas passadas não serão lembradas; em vez disso, vocês serão alegres
e felizes para sempre no que criei. Então vejam, criarei Jerusalém para o deleite e o seu
povo para a alegria. E irei regozijar em Jerusalém e exultar o meu povo, e não mais se
ouvirá ali a voz do pranto ou o som do choro”.
Essas coisas são fatos estabelecidos e bem conhecidos da história. Menos conhecido
ainda hoje é o seu signi cado como uma fase decisiva na evolução da política moderna.
Di culdades afetam nossa compreensão disso porque ainda estamos muito
profundamente envolvidos na visão de mundo criada pela gnose dos revolucionários
puritanos e seus sucessores secularizadores; falta-nos distância crítica, especialmente
em relação a ferramentas conceituais para uma crítica da consciência pública. Isso
ocorre porque a disponibilidade de tais ferramentas no mundo dos lósofos e
estudiosos tem pouco peso em um período de democracia de massa em que a
discussão racional perdeu seu status de força pública. Hoje nos falta essas ferramentas
mais ainda que no caso da época dos puritanos com sua consciência mais intensamente
cristã. A estranheza de uma tentativa de estabelecer o Reino de Deus por meio do povo
em um campo de batalha foi percebida mesmo então; e os pan etos dos puritanos
radicais eram, por essa razão, tão defensivos em relação aos argumentos cristãos
quanto agressivos em condenar o Reino das Trevas que seria eliminado. Sob a pressão
da crítica, capelães do exército e líderes sectários foram obrigados a caracterizar mais
exatamente a peculiaridade desse empreendimento em oposição à tradição cristã; e um
exame de um ou dois desses argumentos defensivos poderia fornecer uma introdução
à nossa investigação mais ampla.

Os vasos do Espírito armados até os dentes tinham que chegar a um acordo com a
declaração de Cristo: “Meu Reino não é deste mundo”. A di culdade apresentada por
essa a rmação foi parcialmente superada pela técnica usual entre os crentes literalistas
da faixa Rabulista, ou seja, de confrontá-lo com outras passagens. É claro que Cristo
disse que seu Reino não é deste mundo; mas ele disse que não deveria ser estabelecido
na terra? Pelo contrário, Ap. 5.10 nos assegura explicitamente: “E nos zeste para nosso
Deus, reis e sacerdotes, e reinaremos sobre a terra”. Portanto, o mundo e a terra devem
ser distinguidos um do outro. O mundo signi ca o período da dominação mundial pela
monarquia humana a qual os puritanos foram submetidos; e este mundo será sucedido
na terra por aquele outro do qual a Epístola aos Hebreus (2.5) fala: “o mundo vindouro,
do qual falamos”.

Um sermão pregado em 1647 por Thomas Collier na sede do quartel-general de


Cromwell leva ainda mais profundamente neste assunto de justaposição de texto contra
texto. Collier foi da defesa para o ataque. O novo céu e a nova terra são o Reino de Deus
em virtude do Espírito nos santos. O céu como um lócus sobrenatural da graça é um
mal-entendido:

Sempre tivemos e ainda temos imagens muito baixas e carnais do céu, na medida em
que consideramos ser um lugar de glória além do rmamento, invisível, e devemos
desfrutar de suas alegrias apenas para além desta vida. Mas o próprio Deus é o Reino
dos Santos, seu prazer e sua glória. Onde quer que Deus seja manifesto, há o seu
Reino e o dos Santos; e ele se manifesta nos Santos. Eis o grande e oculto mistério do
Evangelho, esta nova criação nos Santos.
Evangelho, esta nova criação nos Santos.

Essa passagem que acabamos de citar do sermão de Collier é um dos documentos mais
notáveis das especulações puritanas, na medida em que torna explícito o que em outros
lugares só poderia ser sugerido como ideia de fundo: existe um velho e um novo
mundo, uma velha e uma nova criação. Ambos os mundos estão na “terra”, ambos
estão na história. Sob o termo terra, devemos entender a constituição do ser e,
especialmente, do ser humano na sociedade. Sob o termo mundo, devemos entender a
constituição gnóstica do ser como uma escuridão não redimida ou luz redentora. A
terra, como ela existe, pode ser o mundo das trevas ou o mundo da luz, reino do diabo
ou reino de Deus. Esta é a ruptura clássica com o cristianismo. O mundo cristão, como
criação de Deus, não é um reino das trevas; para ser mais exato, ele é escurecido pelo
fator demasiadamente humano da Queda; mas é enobrecido novamente pela
Encarnação de Deus como o lócus da humanidade plena dentro das limitações do ser
da criatura. Essa tensão cristã entre o ser criado e o ser divino, entre os limites do ser e a
trans guração pela graça na morte, se dissolve em um processo histórico imanente que
envolve o mundo e o super-mundo como éons que se desdobram temporalmente. E
esta imanentização dissolve até o símbolo do “paraíso” na medida em que substitui um
paraíso materialista pelo mistério da visão beatí ca de Deus na morte e então, contra
esta “imagem baixa”, pede a realização temporal do Reino eterno como sua
interpretação espiritual. Neste ataque aniquilador ao simbolismo cristão, Collier
realmente foi tão longe quanto qualquer um poderia ir sem abandoná-lo
completamente. A técnica de propaganda anti- losó ca e anticristã do intelectual
esclarecido de interpretar quaisquer símbolos de transcendência, não de acordo com a
analogia do ser, mas de mal interpretá-lo literalmente como uma a rmação direta sobre
um objeto nito em ordem, tornando ridículo o absurdo literalista, é totalmente
desenvolvida aqui. Já foi indicada a linha histórica ao longo da qual a política gnóstica
mudará da linguagem simbólica cristã para o simbolismo anticristão do marxismo.

II
A natureza de uma coisa é aquela pela qual é esse tipo de coisa e não outra em sua
essência. A natureza Ex de nitione (como a de nição implica) é imutável. Não obstante,
os políticos gnósticos desejam alterar a natureza uma maneira que, por ora, não será
mais bem esclarecida. Na medida em que a intenção de realizar o impossível é
transformada em meta de ação política, o programa não pode ser realizado; na medida
em que esse programa é agarrado, a condição espiritual das pessoas que o apreendem
é revelada como uma doença pneumopatológica. A essência da política gnóstica deve
ser interpretada como uma doença espiritual, como uma nosos no sentido de Platão e
Schelling do termo: uma perturbação na vida do espírito como distinta da doença
mental no sentido da psicopatologia.

Sem clareza sobre este ponto, uma interpretação crítica da política gnóstica é
impossível. A linguagem losó ca da tradição clássica e cristã foi moldada em termos de
tarefas diferenciadas para investigação. Como linguagem ontológica, ela cresce da
teoria, da contemplação do ser e de sua ordem; como linguagem metafísica, surge da
tentativa de uma extrapolação especulativa em direção ao fundamento do ser; como
linguagem teológica, cresce a partir da exegese das experiências de transcendência. Tal
linguagem losó ca é a linguagem da tentativa de compreender a ordem do mundo e o
lugar dos seres humanos nela. Não é uma linguagem sem sentido e, portanto, não pode
entrar em conversação com a linguagem do absurdo. Não nos fornece nenhuma
ferramenta para avaliar os programas gnósticos quanto ao seu valor, para tomar a
medida das ações gnósticas pelos padrões de intencionalidade racional, ou para discutir
as expressões linguísticas da postura gnóstica em seus próprios fundamentos. Ele só
pode tratar esses programas, ações e expressões linguísticas como sintomas de uma
doença, na medida em que veri ca em que ponto a ruptura com a realidade ou o
descarrilamento (como Jaspers denominou esse fenômeno no caso de Nietzsche)
ocorre. Uma investigação crítica do fenômeno gnóstico, consequentemente, terá de
trazer em alto relevo a confusão linguística em relação à realidade. Porque a natureza
transformada pelo espírito – a “realidade” do gnóstico – não é a realidade do
conhecimento losó co da ordem; e ainda o político gnóstico fala sobre isso e opera
dentro dele como se fosse realidade no sentido normal do termo. Portanto, para
resolver essa di culdade fundamental, na análise dos sintomas que se seguem, a
expressão “realidade onírica” será usada como uma abreviatura da “realidade” gnóstica.

III
Da realidade onírica, não temos experiência nem podemos realizá-la na realidade pela
nossa ação. No entanto, os gnósticos precisam falar sobre isso como se tivessem
experiência disso; e eles têm que agir como se fossem capazes de realizá-la. E eles
devem fazer ambos do seu ponto de vantagem na realidade do qual eles desejam
penetrar no reino da realidade onírica. A experiência patológica, como tal, não precisa
de mais explicações pelo exemplo, uma vez que a nossa memória ainda está fresca com
a “erupção” da Gnose do Nacional-Socialismo. Podemos nos voltar diretamente para as
duas questões que os gnósticos precisam responder. A primeira pergunta: Como pode
um quadro da realidade onírica ser construído de modo a ter características da
realidade e permanecer na “terra” e, ainda assim, sugerir a trans guração na condição
de luz? A segunda questão: Como se pode construir um programa de ação para que as
ações percorram seu curso na realidade, mas tenham como meta não a realidade, mas
a realidade onírica?

Os gnósticos estão doentes no espírito, mas não são estúpidos; eles desejam o
impossível, mas sabem o que querem. Eles querem romper através de uma realidade
onírica que pretende ser uma realidade, mas sabem que uma realidade onírica é uma
realidade de um tipo diferente e que precisamente aquelas características que são
essenciais para ela não podem emergir da experiência da realidade normal. Ao
perceberem essa di culdade, ocasionalmente mostram uma tendência a não responder
à primeira pergunta, se possível. Na visão judaica apocalíptica de uma ssura que
à primeira pergunta, se possível. Na visão judaica apocalíptica de uma ssura que
atravessa as eras, Esdras importunou o Senhor com pedidos de coisas particulares; e
ele é reprimido por Deus com o aviso: Não me faça mais perguntas, Esdras! A solução
perfeita é a canção da Juventude Hitlerista: Estamos marchando, marchando para o
futuro! – porque essa fórmula, tão carregada de tensão escatológica, toca os desejos
mais profundos de redenção e, no entanto, nada diz sobre a realidade onírica a ser
esperada tempo histórico.

Políticos gnósticos com alguma estatura intelectual encontram suas soluções pessoais
para essa di culdade de acordo com seu temperamento e meticulosidade. Bakunin era
da opinião de que o processo histórico de transição do antigo para o novo mundo
levaria algum tempo. A primeira fase de ação, que caiu para sua geração, consistiria na
ruptura radical do velho mundo; as instituições coercitivas do velho mundo – o poder
organizado do Estado e a burocracia – teriam que ser eliminadas. O processo de
aniquilação em si e a subsequente desordem exigiriam sacrifícios frutíferos; mas esses
sacrifícios devem ser usados para que, sobre as ruínas do mundo antigo, uma natureza
humana essencialmente boa, liberada das in uências destorcidas, possa construir sua
vida perfeita na ação federativa livre. Quanto ao que essa vida perfeita deve parecer,
nada é dito, porque nós mesmos ainda pertencemos à geração da destruição; podemos
ajudar o mundo em direção à perfeição pela aniquilação do velho mundo, mas o
conhecimento da nova vida é que ela deve ser criada para a geração liberada pela nossa
ação.

Bakunin viveu tão profundamente em sua fé na redenção através da ação – através do


Einsatz (campanha), como os gnósticos nacional-socialistas chamavam o desejo que não
enxerga – que ele não precisava de nenhum conhecimento. Talvez seja por isso que ele
pudesse entender mais facilmente que os outros que esse conhecimento não existe. De
qualquer forma, esse re namento epistemológico no sonho é a característica marcante
de Bakunin. Precisamente porque para ele a realidade onírica do novo mundo não é
para ser imaginada, mas apenas para ser criada na solidariedade existencial, ele poderia
se concentrar inteiramente no velho mundo; e esse relacionamento com o antigo era o
negativo da ação disruptiva. Por meio de sua pro ssão de não-conhecimento radical da
realidade onírica, a vontade de aniquilação dirigida contra as forças da ordem foi
claramente isolada como o único componente da política gnóstica acessível à
experiência. Na tensão da fé de Bakunin entre o nada e o nada, é revelada em seus
termos mais puros o niilismo da Gnose moderna; e na medida em que sua vida aderiu a
esta tensão, torna-se prototípica para a existência revolucionária gnóstica.

Nem todos os gnósticos são tão contidos quanto Bakunin. Eles querem proclamar
aquilo de que seus corações estão cheios. E uma vez que a realidade onírica não pode
ser anunciada nas categorias próprias da realidade, elas elaboram uma forma única de
comunicação: a visão ou perspectiva do futuro. No movimento Puritano, este formulário
é formado e nomeado em um pan eto de 1641, intitulado Um Vislumbre da Glória de
Sião. O termo vislumbre não tem equivalente exato em alemão. Signi ca um olhar
Sião. O termo vislumbre não tem equivalente exato em alemão. Signi ca um olhar
arrebatado de relance de uma coisa como se fosse através de uma divisória que se abre
por um momento, incerta em sua apreensão, porque a glória radiante varre o contorno
esboçado.

O que o vislumbre da glória de Sião revela? Acima de tudo, o caráter socialmente


revolucionário do movimento que, como em Bakunin, é dirigido contra as forças atuais
da ordem. Deus faz uso das pessoas comuns quando ele proclama o reino de seu Filho.
A voz de Cristo “vem primeiro da multidão, o povo comum. A voz é ouvida deles
primeiro, antes de ser ouvida de qualquer outro. Deus usa as pessoas comuns e a
multidão para proclamar que o Senhor Deus Onipotente reina”. Cristo não veio para os
sábios, nobres e ricos; ele veio para os pobres. O espírito do Anticristo reina nas classes
superiores; daí a Reforma e a revelação do Anticristo começaram na “multidão tão
desprezível e comum”. No novo mundo, em contraste, as relações de regra expressarão
a verdade das coisas. Os governantes do mundo antigo não apenas serão convencidos
de suas injustiças, mas além disso o povo de Deus virá em auxílio de seu entendimento,
causando sua degradação. De fato, Isaías havia profetizado [49.23]: “Reis deverão ser
seus pais servidores, e suas rainhas suas mães servidoras: eles se inclinarão diante de
vocês…e lamberão a poeira de seus pés; e saberão que Eu sou o Senhor: pois não tenha
vergonha de esperar por mim”. Os santos, por outro lado, “serão todos revestidos de
linho branco, que é a justiça dos Santos, a justiça que eles têm através de Cristo, pela
qual são justos diante de Deus e santos diante dos homens. A santidade será inscrita em
suas cabeças e em suas rédeas; sobre todos, a sua benignidade resplandece em excesso
para a glória de Deus”. O simbolismo desses visionários em Israel tornou-se obsoleto
hoje. Gnósticos mais recentes substituem os antigos sinais orientais de sujeição com
campos de concentração e câmaras de gás; e, em vez do linho branco testemunhando o
pertencimento de alguém ao reino, o marrom, o azul, o preto ou outras cores que
precisam ser lavadas com menos frequência são selecionadas para a vestimenta. Mas o
princípio da coisa deve ficar claro.

A visão con rma ainda mais. As formas de lei e da economia da realidade onírica serão
diferentes. A presença de Cristo em seu reino tornará as sanções legais supér uas no
futuro. “É questionável se haverá necessidade de ordenanças, pelo menos dessa forma
que agora existe… A presença de Cristo estará lá e proverá todo tipo de ordenanças”. A
provisão econômica de bens escassos, além disso, renderá a uma condição de
abundância e prosperidade. Porque Cristo comprou o mundo inteiro; ele comprou para
os santos e será entregue. Mais candidamente, o autor fornece o motivo de sua
convicção: “Você vê que os santos têm muito pouco agora neste mundo; agora eles são
os mais pobres e os mais desprezíveis de todos; mas quando a adoção dos Filhos de
Deus vier em sua plenitude, então o mundo será deles … Não somente o céu será seu
reino, mas este mundo corporalmente”. Nesses pontos também a visão é signi cativa
não por causa de sua extraordinariedade, mas por causa do caráter típico de sua
imagem. Fantasias sobre o paraíso são tipicamente um catálogo de negações de
necessidades existenciais. Um paraíso tem que estar livre da pobreza, doença, morte,
necessidades existenciais. Um paraíso tem que estar livre da pobreza, doença, morte,
opressão e necessidade sexual. Os sonhos do Vislumbre estão concentrados nas
necessidades político-econômicas – na pobreza e na autoridade coerciva. Estas são as
constantes que se repetem em outros sonhos gnósticos, como na liberdade do querer e
do medo da Carta do Atlântico, ou no paraíso terrestre do comunismo em que o Estado
vai morrer e todos com seus bens serão atendidos na medida de suas necessidades.

IV
O visionário (der Blickende) permanece na realidade e forma uma imagem onírica do
futuro (Traumbild). Por meio de sua visão antecipatória, ele quer mediar a outras
pessoas que permanecem na realidade uma imagem da condição desejada e conquistá-
las como colaboradores que o ajudarão a forçar o sonho a entrar na história. Para o
observador crítico, o aspecto doente da visão e sua intenção motivadora consistem em
um descarrilamento, uma ruptura com a realidade. Ele sabe que o sonho não pode ser
realizado e que a operação do sonho, se for empreendida, conduz, após terríveis
perturbações da ordem existente, a uma nova condição de realidade que nada tem a
ver com a pretendida realidade onírica. Mas os mais inteligentes dos gnósticos
compartilham a visão dos lósofos de maneira notável. O gnóstico também teme um
descarrilamento, mesmo que a direção de sua preocupação seja invertida. Porque o que
o lósofo prevê como necessário, o gnóstico deve temer como possível: que os santos
revolucionários serão bem-sucedidos em destruir a velha ordem, mas que depois que a
ação for realizada, eles serão provados como pessoas tão impuras quanto o resto e
terão trazido a destruição sacrificial para nada.

A direção na qual este descarrilamento profano se desdobra é para ser aprendida muito
claramente do Vislumbre Puritano. As imagens oníricas são a expressão de uma volúpia
selvagem pela dominação carregada de ressentimento, assim como foi diagnosticada
com habilidade psicológica magistral como a essência do puritanismo radical por
Thomas Hobbes (e por Richard Hooker antes dele). O que quer que realmente aconteça
no curso de uma revolução gnóstica, é certo que os santos vitoriosos formarão uma
nova classe superior marcada por uma brutalidade requintada, e que os membros das
classes superiores prévias serão basicamente maltratados. O ponto não é as terríveis
consequências que inevitavelmente atingem as pessoas subjugadas em um con ito
violento, mas a legitimação da violência como uma ação penal espiritual contra as
forças opostas à luz. A situação dos subjugados é horrível porque eles não são
adversários políticos na luta pelo poder; mas na fantasia onírica do gnóstico, eles são
oponentes cósmicos na luta da luz com as trevas. O que é perpetrado sobre os
representantes do velho mundo é um julgamento cósmico. A partir desta distorção
onírica patológica, as inversões “dialéticas” outrora ininteligíveis das quais Marx foi
especialmente o mestre tornam-se compreensíveis. Na realidade, fórmulas como
“opressores dos opressores” ou “expropriação dos expropriadores” são eticamente
contraditórias como exigências; na especulação onírica, por outro lado, eles têm o bom
senso porque a opressão e a expropriação, se praticadas pelos gnósticos, são a
senso porque a opressão e a expropriação, se praticadas pelos gnósticos, são a
liberação. Esta fase negativa de estabelecer o reino, a batalha com os poderes das trevas
é, como já se observou, a única parte do programa gnóstico que pode ser realizada. E
isso será realizado com algum nível de certeza, uma vez que coloca o prêmio não
apenas de um bom trabalho, mas de um trabalho redentor na satisfação dos instintos
inferiores – uma combinação que sempre tem sua atratividade psicológica e, numa era
de vulgarização massiva pelos intelectuais secularizados, inspira poderosos movimentos
políticos.

O gnóstico, que enxerga através desse truque do Aqueronte tão bem quanto o lósofo,
tem que temer que seu movimento permaneça preso nessa fase de negação, que seus
seguidores tomem a derrubada das instituições, o massacre e o saque dos oponentes,
como a essência do estabelecimento do reino, e que o reino milenar vai encalhar em
uma dominação coercitiva pirateada de ladrões e assassinos insaciáveis. Marx viu esse
perigo e assim ele distinguiu entre o comunismo em estado bruto e o verdadeiro. O
comunismo em estado bruto é “a generalização da propriedade privada”. O comunista
em estado bruto está tão submergido pela dominação dos bens que quer aniquilar tudo
o que não pode ser propriedade privada de todos. Ele considera a posse física e
imediata como o único propósito da vida; ele não quer abolir a forma de existência dos
trabalhadores, mas estendê-la a todas as pessoas; e, portanto, ele deseja extinguir
todos os talentos distintos pela violência. O mundo das posses deixa a relação marital
com a propriedade privada e entra em uma relação de prostituição universal com a
comunidade. Este comunismo em estado bruto nega a personalidade do ser humano. A
avareza da propriedade privada é satisfeita de uma nova maneira, na medida em que a
inveja das posses dos outros é constituída como poder público. A competição na
sociedade capitalista é a inveja e o desejo de nivelar a pequena propriedade contra a
grande propriedade privada maior; o comunismo em estado bruto é o cumprimento
desta inveja por meio de um nivelamento a um mínimo geral. Destrói a civilização por
seu retorno a uma simplicidade antinatural de pessoas pobres que não estão além da
propriedade privada, mas ainda não chegaram a ela. É uma comunidade de trabalho e
de igualdade de renda paga pela comunidade como capitalista generalizada. No
comunismo em estado bruto, manifesta-se a “falta de propriedade privada que se
colocaria como essência ou comunidade comum positiva”.

Essa caracterização do comunismo em estado bruto é puxada de um trabalho anterior


de Marx, Os Manuscritos Econômicos e Filosó cos de 1844. É uma análise sutil do
descarrilamento na realidade que se aproxima no insight psicológico de Hobbes. Tem
seu valor especial porque elabora a continuidade entre a realidade que o gnóstico quer
descartar e os componentes da realidade em seu sonho. Além da amarga luta de nossa
época entre os movimentos gnósticos e seus oponentes, e dentre os uniformes de cores
diferentes, é muito fácil esquecer que esses movimentos não emergem do nada, mas
estão ligados histórica e causalmente à corrente da realidade, que o Puritanismo radical
é o resultado coerente de um cristianismo já corrupto, e que o positivismo, o
comunismo e o nacional-socialismo são os frutos canibalescos de uma sociedade liberal
comunismo e o nacional-socialismo são os frutos canibalescos de uma sociedade liberal
corrupta.

V
O gnóstico tem que ter medo do descarrilamento do sonho. O problema, no entanto,
torna-se complicado para ele pelo fato de que a queda na realidade é um evento no
tempo. A luta contra o velho mundo deve ser travada dentro da realidade; uma briga
gnóstica turbulenta entre as forças da SA [Sturmbabteilung, tropas de assalto ou
Camisas-pardas] e seus oponentes são, na realidade, indistinguíveis de uma briga não-
gnóstica. O novo mundo começa com a destruição do antigo, com a derrubada de
instituições. E se for um novo mundo comunista, então, psicologicamente e
institucionalmente, ele será inevitavelmente parecido com o que Marx chamou de
Comunismo em estado bruto. O novo eon começa com a crueza. Mas em que ponto
começa a trans guração? E se não for inserido imediatamente, quanto tempo o estado
bruto deve durar antes de chegar ao veredito de que algo deu errado com a
transfiguração?

Nos seus anos de juventude Marx havia se preocupado, na obra A Ideologia Alemã, de
1845-1846, com a geração do Novo Homem (usado sinonimamente com: homem total,
homem socialista, super-homem). A nova pessoa trans gurada deve ser criada na
experiência da ação revolucionária. Para a geração de massa da consciência comunista é
necessária uma transmutação dos seres humanos na massa, uma alteração tal como só
pode ser causada pela experiência da revolução. Assim, a revolução é necessária não
apenas para derrubar as classes dominantes, mas, acima de tudo, para que a classe que
está fazendo a derrubada chegue ao ponto em que “se livre da velha sujeira” e, assim, se
torna capaz de uma nova fundação da sociedade. Essa ideia peculiar da criação do
super-homem por uma intoxicação sanguínea revolucionária mostra como os gnósticos
mais recentes se relacionam uns com os outros, mesmo que lutem entre si no cenário
histórico. A intoxicação sanguínea marxista pertence ao mesmo tipo simbólico da
mística nacional-socialista que permitiu ao homem da era milenar ser formado pela
química do sangue e da terra. E na redação de um professor alemão de direito
constitucional [Carl Schmitt] descobrimos, por ocasião do seu exame da brutalidade do
regime, a fórmula idêntica à de Marx: “Fora com a sujeira!”

Devemos repetir que os gnósticos não são estúpidos. A ideia marxista da criação do
super-homem pelo ato da revolução pode levar a di culdades na prática política: por
que, por exemplo, uma vez que a revolução tenha ocorrido e os novos governantes
tenham poder rmemente ao seu alcance, as pessoas ainda são sempre os mesmos
velhos seres humanos? Ou por que, quando há, por acaso, até mesmo preciosos tipos
elitistas que trouxeram pessoalmente o burguês, o judeu ou o comunista à ruína, mas
que agora têm que ser liquidados porque a intoxicação não os elevou a um status
super-humano? Tais observações teriam um efeito preocupante sobre o gnóstico? Elas
o despertariam de seu sonho para a realidade? De jeito nenhum! Ele prevê essa
possibilidade e, com a astúcia de um louco, a constrói em seu sonho. Marx corrigiu a
precipitação de sua juventude quando, nos anos seguintes, considerando essa
possibilidade, ele elaborou uma alternativa. Sob a in uência da Comuna de 1871, ele
deu uma formulação de nitiva a uma ideia que re nou desde o fracasso de 1848: Após
a tomada do poder, haverá novamente um governo talvez ainda mais opressivo do que
o mais antigo; mas os governantes terão mudado. E um governo governado por santos
(ou confederados, ou camaradas) é diferenciado de todos os outros governos pelo fato
de que ele morrerá na medida em que a nova humanidade cresce sob ele. O governo
dos santos é um período de transição do antigo para o novo mundo. O período de
transição pode durar um tempo indeterminadamente longo, talvez séculos, de modo
que perguntas desconfortáveis não podem surgir sobre se a sua extensão não pode ser
interpretada como um fracasso. E quem não acredita que a realidade brutal é apenas
uma transição para o reino de Deus, essa pessoa é um vilão, um burguês, um judeu, um
comunista ou um fascista, dependendo de seu século e posição. Essa especulação
onírica, tão segura de sua argumentação, é o coroamento nal da loucura gnóstica
como desenvolvida por Marx na Crítica do Programa de Gotha (1875) e mais elaborada
por Lenin no Estado e Revolução (1917). É a doutrina da ditadura do proletariado como
a fase de transição que a segunda fase do verdadeiro comunismo deve seguir em um
tempo remoto indeterminado.

VI
A doutrina das duas fases alcançou sua primeira formulação explícita na segunda
metade do século XIX. Como um pressuposto mais ou menos claramente compreendido
da ação gnóstica na realidade, certamente esteve presente desde que houve uma
política desse tipo; O grande retrato dos puritanos, elaborado por Richard Hooker no
nal do século XVI, já mostra com toda a clareza possível que está contido na
argumentação de seus oponentes. Essa lógica interna da ação gnóstica já havia alterado
a ideia de revolução de maneira notável mesmo antes de sua formulação explícita. No
sentido dessa doutrina, a revolução não é mais o massacre da sociedade em que um
regime político é substituído por outro, mas um processo indeterminadamente
estendido no qual a tomada do poder é apenas uma fase, ainda que de signi cado
decisivo. Décadas de trabalho revolucionário podem preparar esse golpe decisivo, e
séculos podem segui-lo até que o objetivo real seja atingido, a realidade do sonho. É a
“revolução permanente”.

A palavra revolução primeiro entrou em uso comum com a Revolução Francesa de 1789.
A frase “revolução permanente” foi cunhada nos círculos liberais da monarquia
restaurada na França. No jornal Le Censeur, depois de 1815, Charles Comte e Charles
Dunoyer desenvolveram a ideia de uma política que deveria impedir as erupções
violentamente destrutivas e as igualmente violentas restaurações despóticas da ordem,
como demonstrado pelo balanço da grande revolução do terror ao império. Isso seria
realizado por reformas graduais das condições malé cas no momento apropriado por
meio de uma “revolução permanente e sabiamente regulamentada”.
meio de uma “revolução permanente e sabiamente regulamentada”.

Essa tentativa de vender a revolução através da reforma social para os gnósticos é digna
de nota em mais de um aspecto. Isso mostra especialmente que a gnose patológica
havia penetrado muito além do ativismo revolucionário na política moderna. À sombra
da Gnose, desenvolve-se uma ala progressista “direita”, liberal, que retoma a ideia de
revolução, mas quer se defender de sua violência destrutiva por meio de um
procedimento evolucionário e ordenado. A formação de tal ala pode ocorrer dentro dos
próprios movimentos ativistas, como mostrado no caso da Alemanha do Partido Social-
Democrata revisionista. Ou, como no caso dos liberais do Le Censeur, pode surgir de
uma política de compromisso no nível da realidade; ou fora de uma política de
“mudança pací ca”, como foi especialmente propagada pelos americanos entre as duas
guerras mundiais. E, na esfera da política internacional, pode se constituir na tentativa
de criar uma instituição sob o título de “Liga das Nações” ou “Nações Unidas”, que
subjugaria a crise gnóstica das civilizações ocidentais e ocidentalizadas por
procedimentos legais e que desejam para construir o reino divino da paz na terra a
custo em larga escala.

A primeira coisa notável sobre essa tentativa é a indiferença de uma política sem
qualquer vontade formativa que queira “tirar o vento das velas” de uma vontade
perigosamente forte com muito pouca astúcia. A segunda coisa notável para o contexto
contemporâneo é essencialmente o erro de que o “vento” da política gnóstica é uma
exigência de reforma e que o descarrilamento em realidade condenado por Marx é a
essência do sonho gnóstico; e, portanto, de fato, o partidário evolucionista ou
gradualista pode chegar a este sucesso aparentemente “real” da revolução a um menor
custo. Esse erro é carregado de graves consequências: No passado recente, motivou a
política ocidental de apaziguamento; e ainda hoje motiva inúmeras medidas
particulares bem-intencionadas voltadas para deter o comunismo.

O fato de estarmos lidando aqui com um erro maligno torna-se claro assim que se
considera o que signi ca “revolução permanente” para os ativistas gnósticos. A frase
aparece em Marx pela primeira vez em sua Carta à Liga Comunista de 1850. A diretoria
do Congresso teve que tornar compreensível para os membros por que o fracasso de
1848 não foi o m e como a ação revolucionária deveria prosseguir. A solução é simples:
Não há falha de revolução; a revolução avança, movida permanentemente para o
objetivo do sonho irreprimível; existem apenas obstáculos na realidade e devem ser
superados incessantemente por um estilo de atividade política para o qual Marx cunhou
o nome de “tática”.

A ação política gnóstica, cuja ideia Marx desenvolveu, segue seu curso na realidade, mas
tem como meta a realidade onírica. Como, no entanto, a realidade onírica não pode ser
implementada na realidade, surge a questão de como os meios dentro da realidade
podem ser orientados para uma meta fora da realidade. E a seguinte pergunta: Como
pode tal orientação onírica ser interpretada nas categorias da realidade? Certamente, a
pode tal orientação onírica ser interpretada nas categorias da realidade? Certamente, a
orientação onírica não é um tipo de ação racionalmente intencional; e é questionável se
ainda se pode falar disso como ação política. A designação dessa ação onírica como
“tática” é a solução terminológica descoberta pelos próprios gnósticos.

Por trás dessa distinção linguística está o fato perigoso de que a política gnóstica é um
fenômeno patológico além do cálculo político normal. O que tática signi ca
concretamente pode ser aprendido do conselho marxista dado na situação de 1850. Os
comunistas devem estar interessados, não na reconciliação de oposições de classe, mas
na abolição de classes; não na reforma da sociedade atual, mas na fundação de uma
nova. Para manter a luta, uma estabilização da situação política deve ser evitada a
qualquer custo. Durante um con ito revolucionário, assim como depois, os comunistas
devem evitar qualquer tentativa de acalmar o estado de excitação. As revoltas da massa
não devem ser impedidas ou apenas toleradas, mas instigadas e organizadas de modo a
comprometer os democratas. Sempre que a ordem constitucional é restaurada, os
comunistas teriam de sobrepujar qualquer medida de reforma democrática com
exigências mais radicais. Se os democratas propuserem a nacionalização de ferrovias e
fábricas em troca de uma compensação adequada, os comunistas pedem seu con sco;
se os democratas exigissem um imposto moderadamente progressista, os comunistas
teriam que exigir um que arruinasse a renda mais alta, e assim por diante. Basicamente,
as demandas dos comunistas devem sempre estar voltadas para as concessões e
medidas dos democratas. O princípio subjacente a este conselho é válido para todas as
situações, sejam de política interna ou externa. As táticas são a negação patológica da
política, na medida em que, em princípio, elas não criam ordem, mas procuram destruí-
la.

VII
A transformação da revolução da derrubada política a uma luta tática sem m está
enraizada na lógica do sonho das eras. Nem a era da luz pode ser realizada nem a
realidade pode ser eliminada. Assim, a ação gnóstica deve assumir a forma da luta
permanente contra pessoas, instituições e ideias que são sempre obstáculos táticos
concretos do momento. Uma ordem concreta da realidade é impossível porque tudo o
que é concretamente o conteúdo da realidade deve ser superado. A revolução
permanente da Gnose é uma úlcera cancerígena no corpo da realidade; é a morte de
uma civilização se não for detida por forças formativas mais fortes. Do ponto de vista da
realidade, o problema da Gnose não é, portanto, o advento da nova era, mas a luta de
forças concretas na realidade contra a ameaça mortal de sonhadores patológicos.

Mesmo este ponto não escapou dos gnósticos. Um documento puritano, as Perguntas a
Lord Fairfax de 1649, está ocupado com os detalhes da tomada do poder e com a
provável resistência daqueles que são as possíveis vítimas sacri ciais. A tomada do
poder é preparada pela organização federativa de sectários de grupos locais – a
comunidade de santos – para cima. Quando a organização atingir o nível das
assembleias ou parlamentos regionais da igreja, “então Deus lhes dará autoridade e
governará sobre as nações e reinos do mundo”. Concretamente, os “magistrados e
parlamentos cristãos da Inglaterra” devem ser substituídos pelo governo imediato do
Espírito em seus vasos, os santos, os “o ciais de Cristo”. Não é su ciente que os
governantes sejam cristãos; eles devem ser santos. “Como pode o reino ser os Santos,
quando os ímpios são eleitores e eleitos para governar?” Nenhum compromisso com a
velha classe dominante é permissível, pois “como então pode ser lícito consertar o velho
governo mundano?” O único procedimento permitido é “suprimir os inimigos da
piedade para sempre”.

O ataque radical às instituições da Inglaterra que amadureceram historicamente e a


intransigente alienação da oposição da vida pública e sua supressão (hoje diríamos
“liquidação”) assumem suas características peculiares nas Perguntas pelo fato de que os
“o ciais de Cristo” intencionam nos cristãos. A expressão linguística continua vacilando.
Os líderes da Inglaterra foram designados como “magistrados cristãos”; mas em outras
passagens, quando o espírito de luta irrompe, a oposição é mencionada como o
Anticristo. Assim como no sermão de Collier, o cristianismo dos Puritanos nas Perguntas
foi levado ao extremo no qual se torna impossível distinguir um movimento anticristão
de um ataque aniquilador ao status histórico de uma sociedade cristã nacional.

Os autores das Perguntas não tinham dúvidas de que os cristãos não iriam desocupar
para os santos sem luta. O novo reino era universal em sua reivindicação de domínio;
deveria estender “a todas as pessoas e coisas universalmente”. (O “universal” do século
XVII seria traduzido como “total”). Os santos esperavam que a reivindicação universal de
sua federação chamasse uma aliança igualmente universal do mundo contra eles. Os
santos tiveram que se unir “contra as potências anticristãs do mundo”; e os poderes
anticristãos, por sua vez, teriam que “se unir contra eles universalmente”. Dos dois
mundos que deveriam seguir um ao outro cronologicamente viriam dois campos
históricos e concretos, armados universalmente, engajados em uma luta de morte entre
si. Já aqui, na mística Puritana dos dois mundos, são pressagiadas as guerras universais
que de fato eclodiram no século XX. A reivindicação universal ao domínio do sectarismo
gnóstico produz a aliança universal contra ele. O perigo real das guerras mundiais
contemporâneas não é a extensão global do teatro de guerra, mas seu caráter de
guerras entre mundos, no sentido gnóstico, que só pode terminar com a aniquilação do
contra-mundo.

VIII
As considerações anteriores tentaram esboçar os traços essenciais da política gnóstica
com base em fontes selecionadas. Tal esboço de sua essência ainda não exaure os
problemas. A m de evitar mal-entendidos, vou encerrar, portanto, as limitações de
nosso tratamento do assunto, bem como as outras questões ainda não mencionadas
expressamente.
Qualquer determinação da essência da Gnose política tem que levar as palavras dos
pensadores gnósticos em relação à sua intenção. Eles querem projetar uma imagem
verdadeira da realidade da humanidade na sociedade e na história; e legitimam sua
ação pela verdade da imagem. O crítico deve, portanto, determinar o que é a Gnose em
sua verdade essencial; e ele só pode fazer isso na medida em que o mede pelos critérios
de seu próprio conhecimento da verdade. O resultado é a determinação de sua essência
como a tentativa patológica de realizar um reino de perfeição transcendente histórica e
imanente. Essa determinação leva a importantes insights sobre o declínio da cultura
racional e da disciplina em nosso tempo. Mas não responde a uma série de perguntas
que nos pressionam com urgência. Quais são os processos intelectuais e espirituais que
levam, em casos individuais, a esse desvio patológico? Quais são as condições históricas
sob as quais esse desvio se transforma em movimentos de massa? Quando e por que
esse desvio entrou em cena e com tal eficácia social?

Esses são grandes temas que vão além da estrutura deste exame da essência da política
gnóstica. Mas as fontes foram selecionadas de modo que as sugestões de respostas
estejam contidas nelas. Documentos puritanos e fontes do passado mais recente foram
utilizados em igual medida para con rmação. A seleção pretendia sugerir que a Gnose
política é um processo social de imensa profundidade histórica. E os documentos
puritanos apontam para profundidades adicionais que remontam aos movimentos
sectários heréticos nos séculos XII e XI. A massividade dessa profundidade histórica deve
ser considerada se quisermos entender a massividade dos movimentos gnósticos em
nossa época. Seu poder destrutivo não brota das asneiras de um par de intelectuais dos
séculos XIX e XX; em vez disso, é o efeito cumulativo de problemas não resolvidos e
tentativas super ciais de uma solução ao longo de um milênio da história ocidental. E
suas origens em movimentos hereges na Alta Idade Média indicam que estamos lidando
com uma alta cultura urbana e nacional expansiva cujos problemas o Cristianismo
institucional não conseguiu resolver.

Finalmente, lembrem-se de que a Gnose política é uma doença crescente dentro da


civilização ocidental, crescente dentro da tradição clássica e cristã. Essas tradições são
suprimidas hoje; elas são gravemente dani cadas e desacreditadas por séculos de
propaganda anti- losó ca e anti-cristã entre os intelectuais. Mas elas não estão
completamente mortas. Ao contrário, na visão retrospectiva da história, o último meio
século pode parecer o período decisivo do renascimento; em comparação com os dias
por volta de 1900, nós hoje novamente temos uma ciência do homem na sociedade e na
história que pode ser chamada de ciência sem evocar zombaria. Mas a in uência social
dessa disciplina intelectual e espiritual recuperada é ainda muito insigni cante, abafada
pelas práticas tendenciosas de intelectuais políticos e seus dependentes em posições
bem estabelecidas em baluartes acadêmicos, partidários, sindicais, editoriais,
jornalísticos e outros baluartes sociais. Levaria muito tempo, persuasão, trabalho e,
provavelmente, até mesmo o uso do poder para suprimir esses fatores destrutivos o
su ciente para impedi-los de fomentar ainda mais a falta de saúde do que eles já
su ciente para impedi-los de fomentar ainda mais a falta de saúde do que eles já
conseguiram. Mas a tarefa não é sem esperança.

traduzido por Mariano Henrique Rodrigues

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