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A Bienal de Arte e as manifestações públicas

por Rubens Pileggi Sá

Resumo
Nesse artigo, feito após uma visita à 31ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, busco
compreender porque "Espaço para Abortar" pode ser considerado arte e, se há alguma relação
dessa manifestação feminista com a marcha que pedia, ao mesmo tempo, a Intervenção
Militar, na Av. Paulista. Assim, lembrando algumas das últimas bienais, vou traçando um
paralelo entre arte e ativismo, ao mesmo tempo em que discuto se é possível pensar alguma
singularidade para o que chamamos de ARTE.

Palavras-chave: manifestação, engajamento, recorte curatorial.

Reprodução do ca rta z da 31ª Bienal Interna cional de Arte de São Paulo

Enquanto outras bienais, desde 1998, como a bienal da "Antropofagia", buscavam relacionar
arte e política, essa, a 31ª, intitulada de "Como falar de coisas que não existem", assume essa
que essa relação já está estabelecida, dando voz e visibilidade ao posicionamento engajado de
artistas em várias partes do mundo e mostrando práticas militantes que nem sempre são
vistas ou, mesmo, pensadas para se tornarem arte. Uma vez, porém, no templo da arte, não há
como pensa-las desvinculadas da singularidade que produz a arte, tanto naquilo que ela possa
ter de transgressora, quanto de conformista. Isso porque, uma vez no calor das ruas -
reivindicando direitos, protestando, ou, vivenciando problemas em comunidades, trabalhando
questões sociais, ou, ainda, junto a movimentos de minoria, ou gênero, ou agindo diretamente
em lutas comportamentais – a experiência está viva e a potência do acontecimento se
expressa em seu grau máximo, com todos os riscos que possam estar envolvidos na ação.
Depois, nas paredes do museu, no espaço institucional, o que é que aquela ação pode se
tornar? Documento, registro, lugar de representação do que já não mais está presente, do que
já não se apresenta. Nossa desconfiança primeira é que se torne não arte, mas história. Nossa
desconfiança segunda é a da captura de tudo aquilo que se fazia como resistência e agora é
patrocinado pelas mesmas instituições as quais os movimentos sociais, políticos e
comportamentais combatiam.
Todavia, nada se dá de maneira unívoca. Podemos pensar que essa Bienal não busca a exibição
de objetos estéticos, com valores simbólicos que são refletidos na materialização da obra, de
forma a remeter ou representar aquilo que se quer dizer. Por exemplo, vermelho é sangue e
violência. Portanto, uma boneca sangrando poderia ser uma metáfora da violência contra a
criança. Mas, aqui, isso não é o mais importante, porque não se tenta jogar com o duplo
sentido da imagem. Quer dizer, há uma posição a ser defendida, um engaj amento explícito
pelas causas comportamentais, de gênero, pelas questões sociológicas. Porém, o que se torna
interessante nessa Bienal é que, diferente das anteriores, não se busca questionar a relação
entre arte e realidade ou entre arte e política, porque ela já é, de partida, política, ou melhor,
engajada. A questão que se coloca é a da experimentação desse retorno ao tema dentro do
museu de arte. Ou seja, a exibição desse discurso - por mais narrativo, documental e literário
que seja - dentro das instituições.

Já na entrada do prédio da Bienal temos a instalação realizada por um coletivo feminista da


América do Sul a favor do aborto. Em sua apresentação, nada do que nunca tenha sido visto
ou feito. Escolar, demais, talvez, apesar do engajamento ao tema, pode-se dizer. Feita de
casulos de panos vermelhos transparentes e fones de ouvido com gravação de depoimentos
de mulheres que passaram pela experiência do aborto, sobre um tablado onde se lê: "espaço
para abortar". O que está em jogo, porém, é a mensagem. E ela é forte e contundente.

foto: Rubens Pileggi

Espa ço pa ra a borta r, do coleti vo feminista Mujeres Creando, da Bol ívia , expos to na 31ª Bienal Interna cional de Arte
de São Pa ulo (2014)

Assim, se tomarmos que a arte tem ou tinha uma bula ou uma fórmula, por exemplo, que
falava de certas práticas singulares, e que essa singularidade é definida tanto pelo que ela é
tanto pelo o que ela não é - como a de dizer que arte não é narrativa, ou não é literatura ou
não é comunicação - então, devemos pensar que toda a definição de arte, anteriormente,
também já foi desmistificada, como por exemplo, a “arte pela arte”, de um certo modernismo
dominante nos EUA, em meados do século passado. Antes disso, porém, os expressionistas
europeus já declaravam que arte é tanto engajamento como comunicação. Embora o suporte
para esse engajamento fosse a tinta e a tela de pintura e hoje é o próprio embate com a
realidade das pessoas, seja em uma comunidade, seja em uma manifestação pública pelas ruas
da cidade. Nesse sentido, o objeto da arte, agora, não é mais a obra, mas o processo. E a tela e
pintura, o próprio meio onde o homem produz seu cotidiano. Portanto, porque ela não
poderia ser abertamente engajada?

A polêmica que essa 31ª Bienal pode suscitar, porém, é a de ter ampliado os espaços de
visibilidade da fratura social, cujo modelo, como um todo, está longe de ser ideal. Quer dizer,
ao mesmo tempo em que falar em aborto é um tabu, duas mil pessoas se juntam em frente ao
prédio do MASP, na Av. Paulista, nesta mesma São Paulo da Bienal, para pedir a volta da
ditadura militar! Quais são os loucos e quais são os artistas nessa guerra ideológica, se ambos
formalizam suas reivindicações com as mesmas características militantes?

Reprodução da Internet: Mili tantes pedem "Intervenção Mili ta r, já !", na Av. Pa ulista (01/11/2014)

No entanto, há uma diferença entre ambas as causas que a experiência histórica nos ensina,
nos impedindo de aderir a uma delas e, menos do que aderir, nos faz repudiar, porque ligada
ao movimento preconceituoso e insensível de uma marcha fascista pela volta da ditadura .
Como cidadão e crítico de arte, não saberia dizer, exatamente, se o que fazem as mulheres do
coletivo pró aborto, é arte. Mas, certamente, sei que a marcha pela volta à ditadura é insana e
nefasta. Recolocando a questão para o terreno do debate artístico, prefiro concordar com o
crítico de arte dos EUA, Leo Steinberg, quando este diz, em ensaios sobre a arte nascente de
Jasper Johns e Robert Rauschenberg - que não se enquadravam no código hegemônico da
época em que surgiram - o crítico deveria suspender seu juízo e aprofundar suas questões até
ser capaz de compreender aquilo que, na sua frente, como uma esfinge, o indaga1. De
extrema elegância, Steinberg é francamente favorável à nascente de vanguarda, revirando a
história para repensar a arte em um país que fez da obra de seus artistas commodities para
serem vendidas no mercado, para obtenção de lucro e não como força cultural capaz de
renovar o tecido necrosado de um pensamento que só reproduz sua própria repetição. Só que
Steinberg não é um militante político. Menos, ainda, um crítico de arte que acredita que a arte
esteja a serviço de qualquer posição partidária, panfletária ou utilitária. Para ele, o que está
sendo levado em consideração é a própria história da arte e o modo como os artistas são
capazes de transformar a percepção do olhar, em suas obras. Para isso, vai discutir o que ele
chama de "plano flatbed da pintura", mostrando que a ilusão e a representação, em arte, são
autoconscientes e, portanto, estão a serviço da percepção da realidade. Exemplifica, então,
com a cama na posição vertical, usada por Rauschenberg, que faz a pintura partir,
necessariamente, para o espaço, 'tridimensionalizando' a experiência comumente aplicada à
superfície bidimensional. O que aconteceu, pois, foi uma abertura para a dimensão espacial,
onde o tempo é incorporado ao pensamento plástico, possibilitando, a partir desse tipo de
pensamento, que possamos falar em uma manifestação sobre o aborto como parte do
discurso da arte!

Em nosso caso, o problema não é mais profundo, mas as consequências, se não mais graves,
são mais imediatas, porque é a própria vida das pessoas que está em jogo no mesmo instante
que o processo de construção dessas formas de se pensar a arte e o ativismo estão em
marcha, nas ruas, nas instituições, nos espaços mentais coletivos. E as nuances são cada vez

1
Os textos referidos são "A arte contemporânea e a situação de seu público", inserido no livro "A Nova
Arte", de Gr egory Battock (1975) e "Outros Critérios", de livro homônimo (1968/2008)
menos perceptíveis. E, mesmo perceptíveis, muitas vezes não são unânimes entre as próprias
pessoas do mesmo grupo. O artista chinês, Ai Weiwei, formado culturalmente nos EUA,
protagonizou, durante os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, um debate sobre a liberdade
de criação e expressão em seu país, tendo sido preso, por incitação ao caos do sistema
comunista, em vigência na China. Para nós, ocidentais, a liberdade é o bem maior a ser
conquistado e preservado. Mas o que é essa liberdade do outro lado do planeta? Em um país
com outra cultura, com outros costumes, com uma população de mais de 1 bilhão de pessoas,
em um regime político diferente do nosso e com crescimento de seu PIB, na época, a mais de
5%? Além disso, qual é a liberdade que os EUA defendem, tratando-se de política externa?
Recentemente vivemos várias intervenções militares por forças da OTAN, conhecidas através
da grande mídia com o delicado nome de "primavera árabe". Alguém ainda ousa dizer que tais
intervenções militares no Oriente Médioo trouxe algum benefício àquelas populações em
extrema situação de vulnerabilidade, em todos os sentidos? A morte do líder político Saddan
Hussein, comemorada como uma vitória da democracia, trouxe alguma esperança ao povo
iraquiano? Um líder, diga-se, alçado ao poder pelo apoio dos mesmos EUA que promoveram
seu assassinato. EUA que agora entram em guerra com um grupo extremista chamado
Irmandade Árabe. Extremistas esses que conseguiram suas armas através desses mesmos EUA
que os combatem. Enfim, voltemos a falar de arte? Ou, à luz do debate que essa Bienal nos
traz, esse assunto não pode ser visto como parte da arte, também? Assim, nem só a política
capturou a arte, mas a arte, ao se desenformar de sua moldura e de seu pedestal, expandindo
seu campo de atuação, tornando-se interdisciplinar, híbrida e relacional, torna-se
eminentemente política, também2.

Nesse sentido, o próprio boicote ensaiado pelos artistas contrários ao patrocínio do Estado de
Israel à presente Bienal foi, também, uma postura política. Seria incongruente uma edição da
Bienal, como essa, aceitar patrocínio daqueles a quem seus artistas combatem? Sim, seria.
Mas e os bancos, as empresas exploradoras de mão de obra, as construtoras destruidoras, os
setores devastadores do agronegócio que também querem dar visibilidade a seus negócios,
associando suas marcas ao marketing de eventos culturais mundialmente reconhecidos pela
qualidade e excelência, isso não deveria ser combatido? Sim, mas levando em consideração a
ideia de poder em Foucault, não há um poder central que emana de um rei pra seu povo, mas
tudo é poder, e esse poder é disputado em sua 'microfísica' (FOUCAULT:1979). Ou seja, não se
luta fora do sistema, mas dentro dele, transformando-o internamente. Um dos casos mais bem
sucedidos dessa relação desigual de forças, onde a ação do artista resultou em uma mudança
de mentalidade na forma de se entender "a coisa pública", se deu com a obra "Vazadores", de
Rubens Mano, em 2002, na edição de número 25 desta mesma Bienal Internacional de Arte de
São Paulo. Ao criar uma abertura real dentro de uma das paredes de vidro do prédio da Bienal,
o artista permitia que as pessoas entrassem sem pagar dentro da mostra, em uma época em
que ainda se cobrava pela entrada. Depois de longa polêmica, tendo sido a obra, inclusive,
vigiada pela instituição, o resultado foi que não se paga mais para visitar a referida mostra e o
trabalho do artista passou a servir de paradigma na construção desta nova maneira de se
pensar aquele espaço público. Quanto ao patrocínio de Israel , segundo os responsáveis pela

2
Sobre esse assunto especificamente, reporto o tex to de Hal Foster, O artista como etnográfico" (2005),
além de outros autores, como Sarah Bishop e Miwon Kwon, entre outros, discutidos no capítulo 2 de
minha dissertação de mestrado.
Bienal, o dinheiro pago, cerca de noventa mil reais, estes não poderiam ser devolvidos,
encontrando-se uma solução negociada, que foi alterar as informações do banner e do site da
instituição, especificando exatamente o que o governo daquele país estava, de fato,
patrocinando pontualmente, na mostra3 .

Há um lapso, porém, a ser investigado mais a fundo, entre o fato de existir uma instalação que
se passa por "artística" - uma vez que sua discursividade é incorporada e exibida pela
instituição de arte - e a reação coletiva dos artistas contrários ao patrocínio do governo de
Israel, não assumida como sendo arte, também, mas um protesto político. Talvez devêssemos
reconhecer que a relação entre arte e vida, tão sonhada pelos artistas desde, pelo menos,
quando Kurt Schwitters disse que "tudo o que eu cuspo e arte, pois eu sou artista", na década
de 30 do século passado (ANDRADE; 1974:30), é mais uma tentativa utópica ou teórica do que,
de fato, uma possibilidade concreta e real. Como dizia o professor e maestro Hans Joachim
Koellreuter, de quem fui aluno: "o máximo de objetividade é o mínimo de objetividade". Ou
seja, à medida em que as singularidades não podem ser mais afirmadas, não podemos mais
falar em corpo, tensão e confronto, que são as bases para o reconhecimento de si próprio e do
outro. Do sujeito e do objeto do conhecimento. E da possibilidade de relação entre causa e
efeito. Creio, mesmo, ser este o ponto nevrálgico que coloca em cheque certas concepções
pós modernas de cultura, onde autores como o filósofo Rancière se detém para discutir a ideia
do comum e da comunidade e sua relação com a arte, em livros como a "A partilha do
Sensível" (2012), por exemplo, ou "O Espectador Emancipado" (2012).

Na presente abordagem sobre os aspectos políticos da arte e seu sistema de representação,


porém, que inclui não só a arte, mas a postura do artista, a visão do curador, a participação do
crítico, chegando às paredes do museu e galerias, o movimento do colecionador, os interesses
da mídia, a produção de discursos, enfim, de uma cadeia produtiva completamente
capilarizada, o cuspir do artista passa, cada vez mais, pelo fato de que todos nós cuspimos,
mas é no interesse da curadoria sobre usar esse cuspe ou não que recai agora a
responsabilidade sobre pensar o campo de atuação para a arte. Afinal, não é exatamente isso
que vem acontecendo nas exposições, há décadas? quem cospe agora não é, necessariamente,
o artista, mas esse cuspe pode se tornar "artístico", de acordo com a vontade - e o recorte -
curatorial.

Essa postura da curadoria também não é, necessariamente, negativa. Seria preciso quebrar,
todavia, o monopólio da autoria curatorial, também, para que, mesmo o protesto dos artistas
fosse entendido como arte. Assim, ao invés de uma curadoria de curadores em uma Bienal
fortemente engajada em causas de gênero, religiosas e comportamentais, poderia se pensar
em uma curadoria com a um coletivo. Sendo que este coletivo poderia convidar outros
coletivos para que assumissem a Bienal, e que esses outros coletivos se espalhassem, até o
ponto em que pudéssemos pensar a Bienal não como um espaço onde a participação popular
seria, de fato, plena, confundida, de algum modo, com as organizações da sociedade civil.
Claro, essa seria outra Bienal. Mas, de certa forma, não é isso que se vem tentando fazer, cada
vez mais, desde 1998? Uma experiência interessante ocorreu em 2001, na mostra Panorama

3
Segundo o site na Folha de São Paulo, do dia 02/09/2014 (1:30h), dois dos signatários do manifesto,
que teve a assinatura de 55 dos 86 artistas presentes à mostra, eram israelenses.
de Artes Plásticas, quando o diretor do Museu de Arte Moderna convocou o artista Ricardo
Basbaum e os curadores Ricardo Rezende e Paulo Reis para uma curadoria conjunta e es te
grupo, por sua vez, convidou vários outros grupos e coletivos para ocuparem o prédio do
museu. Havia, pois, ali, uma oxigenação que anda procura espaços para proliferar, como forma
de ocupação de lugares institucionais. Mas, até que ponto esses espaços oficiais estarão
dispostos a se alargarem para conter as manifestações sociais?

Ainda tendo a Bienal como farol, ou melhor, as posições abertamente engajadas, lembremos a
participação, em 2008, do artista argentino Roberto Jacoby, com a obra A Alma Nunca se
Pensa sem Imagem, construindo um painel com a foto da candidata Dilma Roussef e fazendo
campanha eleitoral aberta dentro do prédio do museu. Talvez a polêmica que se seguiu ao
caso e a privação do conteúdo de sua obra na Bienal tenha, de algum modo, devolvido ao
artista, em relação ao curador, o direito de, novamente - usando as expressões acima - 'cuspir'.

Foto: reprodução da internet

Vista da Ins talação "A alma não se pensa sem ima gens", de Robert Ja coby, na 29ª Biena l Interna cional de Arte de
Sã o Pa ulo, em 2008, dura nte ca mpanha eleitoral pa ra presidência da repúbli ca . A ins talação foi , pos teriormente,
encoberta pela ins ti tui ção.

Assim, é do nosso direito perguntar por que não há, nessa Bienal francamente engajada em
causas políticas, uma barraca do assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
ao lado do coletivo feminino latino ou, ao lado da instalação que conta a história dos
transexuais, ou, mesmo, da instalação do artista israelense que "explode" o templo de
Salomão? Uma hipótese é a de que, por princípio, a luta pela Reforma Agrária não cria um
público consumidor para o capitalismo, assim como o são as outras lutas pela liberdade de
expressão. Legalizar o aborto ou acabar com a discriminação de gênero não ataca o cerne do
capital, lugar onde nenhuma das empresas patrocinadoras deste grande evento tem o menor
interesse de mexer.

Não sabemos com serão as coisas daqui em diante, embora a correlação de forças, cada vez
menos parece contida na defesa do retrocesso, como o movimento pela volta da ditadura
militar que, a princípio, mostra-se apenas como uma caricatura de apelo social. Por outro lado,
esses mesmos setores à direita têm conseguido eleger em peso seus representantes, tanto nos
cargos legislativos quanto executivos, representando, de fato, uma despolitização do próprio
debate político. Os setores sociais envolvidos na transformação social precisarão, claro, cada
vez mais, de ampliar o interesse da população e mantê-la mobilizada, reacendendo a sensação
vivida em junho de 2013, quando o que parecia improvável aconteceu, e o povo saiu às ruas,
exigindo uma série de mudanças na política, ainda que sem foco definido sobre o que seriam e
como se dariam essas mudanças.

Quanto às fronteiras entre arte e vida, ou sua abolição, menos do que buscar definições
conceituais sobre as particularidades dessa relação, talvez seja mais rico pensar que, a cada
mudança que se opera na política e na sociedade, também os termos ampliam suas
possibilidades de abarcarem outros significados, não representando uma superação,
substituição ou, mesmo, uma contraposição entre o isto que existe e o aquilo que passa a
existir, senão um compartilhamento de experiências que se expandem. Talvez o objeto, a
instalação, a ação efêmera, o registro, tudo seja intercambiável e parte, uns dos outros,
também. As "performances orientadas para fotografia" ou para o vídeo, por exemplo,
desvinculam o momento da efemeridade e precariedade da ação performática com seu
registro, agora pensado como linguagem e não acessório residual. Cito, de passagem, as
imagens produzidas pela artista Berna Reale durante as manifestações de 2013 - comentadas
acima - e, também, por Solon Ribeiro, que se utiliza da mesma estratégia de apropriação de
registros documentais.

Reprodução da internet

Berna Reale em a ção nas ruas (2013). Performance orientada pa ra fotos e vídeo

A conclusão a que chegamos, por fim, é a de que o termo ARTE não só é instável, como,
também, que ele não opera por superações de fases, estilos ou meios. Podemos crer que ele
não possui uma especificidade mas, todavia, está sempre na fronteira de sua própria
formalização, transformando aquilo que era da ordem do cotidiano e do ordinário em uma
armadilha de captura de sua própria condição singular e única. Nesse sentido, essa 31ª Bienal
tem o grande mérito de não se perguntar mais sobre a crise de representação ou a crise da
imagem, como aconteceu com suas precedentes, posicionando-se pelos devires do "dissenso"
- retomando, ainda, Rancière - e apostando no debate em profundidade, mais do que as
contestações e provocações reativas advindas da superfície. Já não estamos no mesmo lugar e
isto muda o nosso modo de encarar o mundo. Principalmente porque saímos de um buraco
onde contemplar o "vazio"4 parecia ser nosso único horizonte

4
Refiro-me aqui à 29ª Bienal de São Paulo, centralizada na ideia do vazio como forma de materializar os
discursos de crise da imagem e crise institucional.
Referências

ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. Prefácio de Haroldo de Campos. São Paulo: Civilização
Brasileira, 1974.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. [Organização e tradução de Roberto Machado]. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1979.
MARTI, Silas. Bienal de São Paulo relativiza apoio de Israel. Matéria no site do jornal Folha de
São Paulo: Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/09/1509096-bienal-de-sp-relativiza-
patrocinio-de-israel.shtml> Consulta em 10/11/2014: 09:21h
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

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