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EM DANIEL C. DENNETT
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Doutor em Filosofia por Paris I (Panthéon-Sorbonne). Professor de Filosofia da PUCRS. Site:
www.abavaresco.com.br
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Advogado e Juiz do Tribunal Eclesiástico do Regional Sul 03.
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Atualmente, é co-diretor do Centro de Estudos Cognitivos da Austin B. Fletcher
e professor de Filosofia na Tufts University (EUA). Dennett denomina-se autodidata,
ateu e defensor do movimento Brights (Brilhantes: cosmovisão e ética naturalista; livre
de elementos sobrenaturais e místicos). Preocupa-se em proporcionar uma filosofia da
mente, alicerçada na investigação empírica. Em sua dissertação original Conteúdo e
Consciência, expõe o problema de explicar a mente como uma necessidade de
conteúdos e de uma teoria da consciência. Defende a teoria conhecida por alguns como
Neurais darwinismo.
Tem uma abordagem, além de naturalista, também, funcionalista, no sentido de
que os organismos humanos são máquinas biológicas cujo comportamento é controlado
por seus cérebros. No dizer do professor Margutti Pinto: “Ele é impressionante, capaz
de oferecer novas idéias de um modo que é acessível não apenas a filósofos
profissionais, mas também ao grande público em geral. Isto é geralmente feito através
de seu método de contar estórias elucidativas, cheias de imaginação que ele chama de
“bombeamento de intuição”(intuiton pumps), para tornar suas idéias claras” (Pinto,
2009, 1).
O trabalho tem por objetivo apresentar no primeiro capítulo uma resenha
instigante da obra Quebrando o Encanto. A religião como fenômeno natural. Procura-se
reproduzir as idéias e temas de Dennett para que se compreenda seu ponto de vista
empírico no diagnóstico do fenômeno religioso. Depois, no segundo capítulo,
retomamos o livro para apontar os pressupostos que sustentam sua teoria sobre a
religião como fenômeno natural. Ou seja, veremos como Dennett se apóia na biologia
evolutiva para investigar o fenômeno da religião.
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pesquisas nesse olhar científico, busca descobrir como deveremos lidar com as religiões
no século XXI.
Dennett vê a religião como fenômeno global – algo tão interessante para que não
nos mantenhamos ignorantes a seu respeito – e interroga: “Será que uma análise tão
exaustiva não danificaria o próprio fenômeno? Não quebraria o encanto?” É o que vai
demonstrar. Como filósofo, afirma que essa classe de gente é melhor em fazer perguntas
do que em respondê-las.
O público alvo de seus livros são os leitores norte-americanos e justifica, quando
pergunta e responde: “Como filósofo, não deveria tentar abranger um público-alvo mais
universal? Não” (Dennett, 2006, 7).
1.1.1 – O encanto-feitiço
O autor inicia sua descrição dos fenômenos naturais evolutivos assim:
Observe uma formiga em um prado, laboriosamente subindo por
uma folha de capim, cada vez mais alto, até que cai, depois sobe
outra vez e mais outra, como Sísefo rolando sua pedra, sempre
tentando chegar ao topo. Por que ela faz isso? Que benefício
estará buscando para si própria nessa estranha e extenuante
atividade?” Então ele conclui a história cientificamente: “[...] é
que o cérebro da formiga foi dominado por um parasita
minúsculo, Dicrocelium dendriticum, que precisa entrar no
estômago de um carneiro ou de uma vaca para completar seu
ciclo reprodutivo. Esse verme cerebral é que dirige a formiga a
uma situação que beneficia sua progênie, e não a da formiga (id.
p. 14).
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formiga, é o verme que invade o cérebro. No homem, o cérebro cria a ideia-verme-
manipuladora (o meme – replicador cultural), que o faz agir, matar, alegrar-se [...].
Entre eles, há os tóxicos, e é onde ele inclui a religião e a conseqüente metáfora: Palavra
de Deus é um Dicrocelium dentriticum (o parasita).
Esse encanto-feitiço ou parasita-divino só será quebrado mediante o estudo
científico da religião. É o que Dennett anuncia.
Sem tentar esculpir em pedra para ser defendido até a morte, Dennett propõe
definir as religiões como um “sistema social cujos participantes confessam a crença em
um agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam” (id. p. 19). Seguindo
com o seu método de contar histórias, recorre ao reino da música e ilustra com Elvis
Presley: “De acordo com essa definição, um devotado fã-clube de Elvis Presley não é
uma religião, porque embora os membros possam, em um sentido bastante óbvio, adorar
Elvis, ele não é considerado por eles literalmente sobrenatural, mas apenas um ser
humano sobremaneira grandioso. Se alguns fã-clubes resolverem que Elvis é realmente
imortal e divino, então estarão no caminho de iniciar uma nova religião” (id. p. 19).
Outra idéia que parece estar embasada na vida moderna, e que Dennett chama
atenção, são as pessoas, hoje muito comum, que, depois de passar por várias religiões
organizadas, igrejas, credos, preferiram não somar em suas fileiras, e vivem, com
grande sinceridade e devoção, experiências particulares e que ele chama de pessoas
espirituais, mas não religiosas; ele as define, biologicamente, como vertebrados
honorários (cf. p. 21).
Descarta, em seu estudo, os “cultos satânicos” que ele chama de “tipo de
bobagem”, que as pessoas envolvidas não podem ser chamadas de devoto, porque ele
vê, nas pessoas religiosas, boas intenções e que tentam levar uma vida moralmente boa,
honestas em seus desejos de não fazerem o mal e reparar suas transgressões. Assim,
estas pessoas, que fazem o pacto com o mal, não merecem o mesmo respeito daquelas
que buscam o bem.
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1.1.3– Quebrar o encanto sem danificar o fenômeno.
Hem? Hem? O que mais penso, texto e explico: todo-o-mundo é louco.
O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso que se carece principalmente de religião:
para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura.
[Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas]
É com sobriedade que me dou conta de que vivi quase a metade da vida com
O gene egoísta – para o bem ou para o mal.
[Richard Dawkins. O gene egoísta]
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o seu encanto? Vê-se que a hipótese levantada por Dennett, implica elementos
especulativos, aliás, inevitáveis, para quem vê tudo sob os holofotes da razão. Com
argumentos empíricos, segue o autor sustentando a religião como fenômeno natural da
religião. Não busca certezas, mas é coerente na direção de “limpar” a religião do
sobrenatural.
Onde estão os encantos do abismo-religião, para Dennett? Ele nos fornece dois
encantos: o tabu e a religião em si mesma. Parece difícil separar os dois, que ele diz
estarem entrelaçados curiosamente.
O tabu bloqueia a ciência impedindo-a que através de métodos científicos
investigue o fenômeno religioso, pois a religião só tem poder enquanto o encanto do
tabu existir. E arrisca afirmar: “Um indefensável pressuposto mútuo pode se manter
hegemônico durante anos, ou até séculos, porque se acha que alguém tem algum motivo
muito bom para mantê-lo, e ninguém ousa desafiá-lo” (id. p.29). Não restam dúvidas
que Dennett busca desafiar esses tabus hegemônicos e, talvez, gerar em sua
higienização de ideias novos tabus. Ele afirma, nós filósofos, “somos melhores em fazer
perguntas do que em respondê-las” (id. p.29).
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auto-ajuda e capacitam grupos de trabalhos morais, usando a cerimônia e a
tradição para cimentar relacionamentos e construir “fidelidade de fãs de
longo prazo”. Nesse caso, Dennett vê os membros de uma religião
semelhantes a um torcedor do Flamengo ou do Corinthians.
d) As religiões diminuem em prestígio e visibilidade. O ensino religioso para
crianças é desaprovado na maioria das sociedades e até mesmo proibido em
outras.
e) O Dia do Julgamento chega. Os abençoados sobem corporalmente ao céu e o
resto fica para trás para sofrer a agonia dos condenados, já que o Anticristo
foi vencido.
Diante destas hipóteses, muitas outras poderiam ser criadas, mas o autor diz que
“muitas pessoas acham que sabem qual hipótese é a verdadeira, mas ninguém sabe” (id.
p. 47). A reflexão segue pedindo um esforço orquestrado para que a religião se torne um
adequado objeto de estudo científico. Em resumo: a religião, para o autor, deve
submeter-se à luz e análises da ciência e que, sem esta presença científica, estaríamos
passando aos nossos descendentes um legado de formas cada vez mais tóxicas de
religião (cf. p. 49).
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c) Encorajar a cooperação em grupo diante de problemas e inimigos.
Seguindo em sua razão, pergunta: “Será que isso faz de mim um ateu?” E
responde, sem duvidar: “Certamente, no sentido óbvio” (id. p. 260). Em resumo, a meta
de Dennett não é provar ou refutar a existência de Deus, mas buscar argumentos para
provar que a religião é fenômeno natural.
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percebe que a religião é amada por muitas pessoas, e ele se inclina a dizer: “que nada
poderia ter maior importância do que aquilo que as pessoas amam” (id. p.269). De
outro, o autor diz: “Só amor não basta. Porque para as pessoas apaixonadas, muitas
vezes, torna-se questão de honra reagir irracional e violentamente a qualquer
desconsideração percebida em relação ao seu amado” (id. p. 270). Diante desta
violência com que o amado reage às criticas do seu amor Dennett indaga: “Será que a
nossa capacidade evoluída para o amor romântico foi explorada pelos memes3
religiosos? Assim “faria com que as pessoas pensassem que era, de fato, uma coisa
nobre ofender-se, atacar todos os céticos com fúria, atacar com selvageria, sem
preocupação com a própria segurança – menos ainda, pela segurança das pessoas que
estão atacando” (id. p. 272). Creio que o autor vê isso no fanatismo religioso.
Acrescenta ao capítulo uma visão política quando alude ao perigo dos símbolos,
porque estes podem passar a ser “sagrados” demais, e mostra uma tarefa que considera
importante para todos os credos do século XXI: “Será que espalhar a convicção de que
não existem atos menos honrados do que fazer mal a “infiéis” de uma cor ou de outra
por “desrespeitar” uma bandeira, uma cruz, um texto sagrado” (id. p. 273).
Seguindo com suas interrogações, pergunta também: “o que sua religião pode
fazer por você?” (id. p. 286). Sem deixar de ser uma questão, o autor alude aos
benefícios que parece haver para a saúde, não deixando de apontar efeitos colaterais.
(cf. p. 288ss).
Dennett diz que muitas pessoas pensam que a moralidade é o papel mais
importante da religião motivando-as a serem boas. Segue o raciocínio que, sem o
incentivo divino, as pessoas ficariam por aí sem metas, ou se entregariam a seus desejos
mais baixos. Dennett aponta dois problemas para esse raciocínio: “(1) não parece ser
verdadeiro o que é uma boa notícia, já que (2) é uma visão muito degradante da
natureza humana” (id. p. 296). Ele toma o exemplo da população carcerária nos Estados
Unidos, dizendo que a mesma é formada por diversos credos, o que não comprova ser o
comportamento moral influenciado pela religião. Com certa ironia, Dennett diz: “se
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O termo meme é um neologismo utilizado por Daniel C. Dennett. Seu significado encontra-se abaixo no
item 2.1, letra “d”.
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Deus for justo, misericordioso, clemente, amoroso e o Ser mais maravilhoso
imaginável, então qualquer pessoa, que o ame, gostaria de ser justo, misericordioso,
clemente, amoroso por amor à bondade” (id. p. 300).
Ao tocar no fanatismo, Dennett assim se expressa: “As religiões são certamente
a fonte mais prolífica das “certezas morais” e dos “absolutos”, dos quais o fanatismo
depende” (id. p. 302). Enfim, para Dennett a opinião de que a religião é a bandeira da
moralidade é, na melhor das hipóteses, problemática, e que a crença de uma recompensa
celeste, faria uma pessoa boa, é degradante.
Seguindo nesse questionamento da moralidade da religião, Dennett também
questiona se é a religião que dá significado à vida. Muitas pessoas hoje diriam que a
vida não teria significado sem a sua religião, o que Dennett não refuta, mas questiona:
“Será que qualquer religião dá significado às vidas? E se a religião for uma “fraude”,
como as que caem nas garras de líderes religiosos vigaristas que enganam, será que a
vida delas ainda tem significado? (cf. p. 303).
Igualmente, o autor vê que muitos seguem a religião por tradição, e compara
essa fidelidade a um time esportivo, que também pode dar significado a uma vida (cf. p.
309). Porém, não deixa de afirmar que as pessoas “deveriam refletir sobre o fato de que
a própria religião, a que são tão leais, é de fato o produto evolutivo de muitos ajustes,
firme, mas delicadamente elaborados por amantes anteriores da mesma tradição”
(id.p.309).
Continua dizendo que não é fácil ser moral, e parece que está ficando cada vez
mais difícil nos dias de hoje. E acrescenta:
Antes era porque a maior parte dos males do mundo – doença,
fome, guerra – estavam muito além das capacidades que as
pessoas comuns tinham de melhorar. Eram impotentes para evitá-
las e viviam com algumas poucas máximas simples, aplicáveis
localmente, podia garantir mais ou menos que se levasse uma
vida boa quando possível na época. Hoje, segundo Dennett, já
não é possível pelo fato da tecnologia, o que quase qualquer um
pode fazer foi multiplicado milhares de vezes, e nosso
entendimento moral a respeito do que deveríamos fazer não se
manteve no mesmo passo (id. p. 310).
Seguindo nessa direção, Dennett vai afirmar que a religião é diversas coisas para
muitas pessoas. Para alguns, os memes da religião são mutualistas, provendo benefícios
inegáveis de tipos que não podem ser encontrados em nenhum outro lugar. Não nega
que a religião dá a algumas pessoas uma motivação organizada para fazer grandes
coisas – trabalhar por justiça social, educação, ação política, reforma econômica e assim
por diante. Para outras, os memes da religião são mais tóxicos, explorando aspectos
menos atraentes de sua psicologia, jogando com a culpa, a solidão, o anseio por auto-
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estima e o status. E conclui: “Só quando conseguirmos estruturar uma visão abrangente
dos diversos aspectos da religião é que poderemos formular políticas defensivas como
reagir às religiões no futuro.” (id. p. 329).
Dennett, não especificando quais seriam as políticas defensivas para reagir às
religiões do futuro e evitar os seus efeitos tóxicos, segue sustentando a sua investigação
empírica, com base na Biologia, e dita uma receita que denomina de única: pesquisem
mais.
Acredita o autor que sua tarefa foi demonstrar que há motivos suficientes para
questionarmos os preceitos de fé, convocando a não voltar às costas aos fatos relevantes
disponíveis ou passíveis de serem descobertos, ou, como ele denomina “vias a serem
exploradas”.
Creio que a caixa de Pandora está aberta, há muito tempo, na história. Todavia,
Dennett organizou, com instigação, perguntas e histórias que continuarão estimulando a
busca de respostas e que a sua investigação segue estimulando uma pesquisa séria e
tolerante, como vamos ver, no capítulo II, que segue.
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2 - TEORIA DA EVOLUÇÃO: PRESSUPOSTO EM DANNETT
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é mais evoluída que as formas sociais mais primitivas. O darwinismo social é uma
versão da ética evolucionista, afirmando que a luta pela seleção natural deve ser
estimulada pelas relações competitivas e agressivas entre as pessoas na sociedade ou
entre as sociedades (id. p. 131).
d) Os memes e a evolução cultural: Dennett retoma o princípio do processo de
seleção natural, elaborado por Darwin, que determina a evolução quando três condições
são satisfeitas: a) replicação; b) variação (mutação) e c) aptidão diferencial
(competição). Nas taxonomias da teoria evolutiva, há controvérsias sobre como
desenhar os ramos e como lhe atribuir nomes. O zoólogo Richard Dawkins elaborou o
termo meme no seu livro O gene egoísta, de 1976. O termo foi introduzido no Oxford
English Dictionary, sendo assim definido: “Um elemento de cultura que pode ser
considerado transmitido por meios não genéticos”. O meme é, portanto, um replicador
de base cultural (id. p. 365). Não obstante este conceito, permanece certo ceticismo, e
muitos comentadores opõem-se a “reformular questões nas ciências sociais e humanas
em termos de evolução cultural, e essa oposição é, muitas vezes, expressa em termos de
um desafio para provar que os “os memes existem”: Os genes existem [admitem os
críticos], mas o que são os memes? De que são eles feitos? Genes são feitos de DNA.
Serão os memes feitos de modelos de neurônios no cérebro de pessoas aculturadas?
Qual é o substrato material dos memes?” (id. p. 369).
Dennett apresenta, após cada capítulo, uma síntese das teses apresentadas, e
lança as hipóteses para o capítulo subseqüente. Vamos retomar estas sínteses e fazer
uma apresentação recapitulativa, para compreender sua análise da religião enquanto um
fenômeno natural.
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Tratar de modo científico a religião é um campo de muitas críticas, porém, o
autor defende que é possível estudar a religião, sob este ponto de vista, no capítulo 2:
“A religião não está fora dos limites da ciência, apesar da propaganda em contrário” (id.
p. 63).
Evolução ou base racional descomprometida: Analisando a história da
evolução do planeta, percebe-se que a humanidade constrói valores, tais como “açúcar,
sexo, dinheiro, música, amor e religião”. Estes valores originam-se por algum motivo:
“Por trás disso, e diferentes de nossas razões, há razões evolutivas, bases racionais
descomprometidas que foram endossadas pela seleção natural” (id. p. 105). O autor
afirma que, para além das razões ou motivos da criação destes valores, há o processo da
evolução, que determina esses valores. Há uma evolução fundada na base racional
descomprometida, ou seja, “processos evolutivos cegos, sem direção “descobrem”
projetos que funcionam” (id. p. 70). Ora, a religião é um valor que foi criado, e
submete-se à evolução como os outros valores que surgiram na história da humanidade.
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animal em um mundo hostil” (id. p. 123). Ora, na raiz da crença humana em deuses está
este instinto pronto a agir através de crenças e desejos e outros estados mentais, diante
de qualquer coisa ou problema emergente (cf. p. 126).
Religião popular e religião organizada: As religiões populares crescem onde
há elementos adversos, porém, só as variantes melhores se propagam, porque atendem
as necessidades psicológicas e físicas, aprimorando-se pelo processo de seleção (cf.
capítulo 5). Por religião popular, entende o autor o tipo de religião que não tem credos
escritos, teólogos, nem hierarquia ou funcionários. As religiões organizadas emergiram
daquelas. No entanto, a cultura humana evolui, e as pessoas tornam-se mais reflexivas.
Então, a religião popular transforma-se numa religião organizada. Dennett argumenta,
assim, que esta evolução da religião não se deve ao fato de um gene divino, mas uma
evolução cultural: “Se os neurocientisas encontraram um „centro de Deus‟ no cérebro,
os cientistas darwinianos como eu queremos saber por que o centro de Deus evoluiu.
Por que aqueles dentre os nossos ancestrais que apresentaram uma tendência genética a
criar um centro de Deus sobreviveram melhor que os rivais, que não tinham?”
(Dawkins, apud Dennet, 2006, 153). Então, conclui Dennett, “agora, temos uma
resposta finalmente testável para a questão de Dawkins, e ela invoca não apenas os fatos
bioquímicos, mas todo o mundo da antropologia cultural. Porque eles, ao contrário dos
que não têm o gene, tinham seguro de saúde! Nos dias anteriores à medicina moderna, a
cura xamanística era o único recurso da pessoa que ficava doente” (id. p. 153).
Evolução dos guardiães ou a domesticação da religião: No capítulo 6,
apresenta-se a evolução da intendência, ou seja, “na mesma época da domesticação de
animais e plantas, houve um processo gradual, no qual os memes selvagens (auto-
sustentáveis) da religião popular se tornaram inteiramente domesticados. Eles
adquiriram intendentes”. Ora, esses responsáveis ou guardiães da religião criam uma
relação de dependência religiosa: “Os memes domesticados, em contraste, dependem da
ajuda dos guardiães humanos para continuar a existir” (id. p. 185). Assim, a transmissão
da religião passa pelos intendentes das idéias, que domesticam os seguidores pelo
segredo e a impostura de seus interesses.
Invenção do espírito de equipe: O capítulo 7, responde à pergunta: Por que as
pessoas participam de grupos? Será que há uma decisão racional ou será que há forças
irracionais de seleção de grupos em funcionamento? Dennet responde: “Por diversos
motivos, incluindo o óbvio: para proteção mútua e segurança econômica, para promover
eficiência nas colheitas e outras atividades necessárias, para obter projetos em grande
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escala que, de outro modo, seriam impossíveis” (id. p. 193). No entanto, ele questiona:
“Será que a religião é o produto de um instinto evolucionário cego, ou uma escolha
racional?” (id. p. 195). Porém, conclui que a “tendência humana a formar grupos é
menos calculada e prudente do que parece em alguns modelos econômicos, mas
também mais complicada que o instinto de rebanho desenvolvido em alguns animais. O
que complica o quadro é a linguagem e a cultura humanas, e a perspectiva dos memes
nos permite compreender como os fenômenos da lealdade humana são influenciados por
uma mistura de raciocínios generalizados e bem amarrados” (id. p. 213). Portanto, a
dinâmica de alguém participar de um grupo, desde as condições de entrada e saída,
fidelidade e reforço através da disciplina ou punição etc., é um fenômeno de cooperação
e altruísmo, tanto em meios seculares como religiosos. Porém, o fenômeno religioso se
distingue de outras instituições por diferentes necessidades e gostos.
Crença na crença: A gestão de idéias religiosas cria o fenômeno da crença na
crença, afirma Dennett no capítulo 8, transformando o conteúdo das crenças
subjacentes, dificultando uma investigação racional: “Uma vez que nossos ancestrais se
tornaram reflexivos (e hiper-reflexivos a respeito de suas próprias crenças) e se
autonomearam intendentes das crenças que julgaram mais importantes, o fenômeno de
acreditar na crença tornou-se uma força social em si, algumas vezes eclipsando os
fenômenos de ordem inferior, que eram seus objetos” (id. p. 215). O fenômeno de
acreditar na crença torna Deus um objeto intencional, como um dogma da fé. Porém, as
proposições sobre esta crença são misteriosas, tanto para peritos como leigos. Então,
Dennet questiona: “Por que alguém aceita isso? A resposta é evidente: crença na
crença.” Continua, “muitas pessoas acreditam em Deus. Muitas pessoas acreditam na
crença em Deus. Qual é diferença? As pessoas que acreditam em Deus têm certeza de
que Deus existe [...] e as pessoas que acreditam na crença em Deus têm certeza de que a
crença em Deus existe. Deve-se acreditar em Deus” (id. p. 236). E assim as crenças
religiosas persuadem seus próprios filhos de suas crenças: “Desde que as fórmulas
sejam transmitidas ao longo das eras, os memes irão sobreviver e florescer” (id. p.
240). Conclui o autor que aqui estamos diante de um problema epistemológico:
“Descobrimos que é quase impossível distinguir os que genuinamente acreditam dos
que (apenas) acreditam na crença”(id. p. 307).
Deus existe ou existe o acaso? : Ao concluir a parte II do seu livro, Dennett
repõe a pergunta clássica: Deus existe? Face à questão, elenca algumas respostas: a) O
Argumento do Projeto afirma que, observando o mundo, conclui-se que isto é resultado
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de um Projetista Inteligente, ou seja, não pode ser obra do acaso; b) Argumento do
Princípio Antrópico: Admitindo que a evolução, por seleção natural, explique o projeto
das coisas vivas, “o ajuste fino” das leis da Física, para que toda essa evolução seja
possível exige um Afinador Inteligente (cf. p. 258). O autor contesta estes argumentos
remetendo ao seu livro A idéia perigosa de Darwin: “A maravilhosa particularidade ou
individualidade da criação deve-se, não a um gênio inventivo shakespeariano, mas às
incessantes contribuições do acaso” (id. p. 259). Pergunta ele: “Será que isso faz de
mim um ateu? Certamente, no sentido óbvio. Se aquilo que é sagrado para você, não for
algum tipo de Pessoa para quem você possa rezar, ou considerar um recipiente
adequado de gratidão (ou raiva, quando um ser querido morre sem sentido), você é um
ateu, no meu livro”.
Basta de crença em Deus ou a militância atéia: Ele se declara não apenas ateu,
bem como conclama à adesão: “Basta de crença em Deus. E a crença na crença em
Deus? Ainda não investigamos todas as bases dessa crença na crença. Não será ela
verdadeira? Ou seja, não é verdade que exista Deus ou não, a crença religiosa é pelo
menos tão importante quanto a crença na democracia, no domínio da lei, no livre-
arbítrio? A opinião muito disseminada (mas longe de universal) é que a religião é o
bastião da moralidade e do valor. Sem religião, cairíamos na anarquia e no caos, em um
mundo em que “qualquer coisa vale” ” (id. p. 261). Assim, Dennet conclui a segunda
parte tomando partido para abandonar a crença em Deus, uma vez que os adeptos não
sabem realmente o que estão professando. Ora, isto “torna a meta de provar ou refutar a
existência de Deus uma busca quixotesca – mas também, exatamente por esse motivo,
não muito importante” (id. p. 262).
O autor parte da constatação de que muitas pessoas amam suas religiões acima
de qualquer coisa na vida, e pergunta: “Será que a religião deles merece essa adoração”?
Método das ciências e método interpretativo: No capítulo 9, ele discute a
objeção clássica de que a ciência não dispõe de um método apropriado para analisar o
fenômeno religioso: “Uma cortina de fumaça é a declaração mais geral de que os
métodos das ciências naturais não apresentam possibilidade de progresso na cultura
humana, que não exige experiências, mas “semiótica” e “hermenêutica”. Ou seja, a
cultura é uma teia de significados, portanto, a análise dela, “não pode ser como uma
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ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa em busca de
significados”. Ele ataca este argumento, qualificando-o de “inteiramente desatualizado”,
porque essas teias podem ser “analisadas por métodos que decisivamente envolvem
experiências e pelos métodos disciplinados das ciências naturais. A interpretação, nas
ciências naturais, não está em oposição à experiência, e a ciência não é toda subsunção
sob a cobertura de alguma lei. Tudo, nas ciências cognitivas e tudo na Biologia
evolutiva, por exemplo, é interpretativo, de tal forma que está em paralelo muito
próximo às estratégias interpretativas das humanidades e da antropologia” (id. p. 277-
278).
“Eu também quero que o mundo seja um lugar melhor”: Por que
acreditamos na crença em Deus? Por que aquilo em que você crê tem importância? A
resposta é que as pessoas “querem que o mundo seja um lugar melhor”. “Acham que
fazer com que outros compartilhem de suas crenças a respeito de Deus é o melhor meio
de alcançar aquela meta, e isso está longe de ser evidente” (id. p. 284). Dennet
responde: “Eu também quero que o mundo seja um lugar melhor. Por esse motivo,
quero que as pessoas compreendam e aceitem a teoria da evolução: eu acredito que a
salvação pode depender disso! Como assim? Abrindo-lhes os olhos para os perigos de
pandemias, degradação do ambiente e perda da biodiversidade, e informando a elas
sobre algumas das fraquezas da natureza humana. Então a minha crença de que a crença
na evolução é um caminho para a salvação não é uma religião? Não, existe uma grande
diferença. Por isso, sinto como um imperativo moral disseminar a palavra da evolução,
mas a evolução não é a minha religião. Eu não tenho religião” (id. p. 284).
Prós e contras da religião: Será que a religião nos torna melhores, pergunta
Dennett? William James responde: a) Pode fazer com que as pessoas sejam mais
eficazes em sua vida diária, mais saudáveis, tanto física como mentalmente, mais
constantes e compostas, com maior força de vontade contra a tentação, menos
atormentadas pelo desespero, mais capazes de suportar suas infelicidades sem se
abandonarem. b) E pode tornar as pessoas moralmente melhores, através da santidade
(id.p. 286).
A religião é boa para as pessoas? A resposta é sim e não: Parece, diz Dennett,
haver alguns benefícios para a saúde, porém, os efeitos colaterais negativos
contrabalançam os benefícios (id. p. 293).
Religião e moralidade: No capítulo 10, o autor analisa se a religião é a base da
moralidade. É verdade que se recebe o conteúdo da moralidade por intermédio da
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religião, ou seja, ela é uma infra-estrutura para organizar a ação moral. Porém, a religião
nos torna morais?
Dennett responde: “Não encontrei nenhuma evidência que sustente a alegação de
que as pessoas, religiosas ou não, que não acreditam na recompensa no céu e/ou na
punição no inferno, têm mais propensão a matar, estuprar, roubar ou quebrar suas
promessas do que as pessoas que acreditam”. Para provar sua resposta, cita o exemplo
dos presos: “A população carcerária, nos Estados Unidos, é formado por católicos,
protestantes, judeus, muçulmanos e outros – inclusive os sem filiação religiosa -,
representados mais ou menos na mesma proporção que na população em geral” (id. p.
296).
Será que é a religião que dá significado à sua vida? De um lado, afirma Dennett,
“a maior parte das pessoas no mundo diz que a religião é muito importante em suas
vidas”. De outro, questiona o autor, “será que qualquer religião dá significado às vidas
de um modo que devemos honrar e respeitar? E as pessoas que caem nas garras de
líderes de cultos, ou que são enganadas para dar a poupança de sua vida inteira a
vigaristas religiosos? Será que a vida delas ainda tem significado, mesmo que sua
“religião” particular seja uma fraude” (id. p. 303)?
Há um juízo moral preconceituoso, afirma Dennett: “Passei a aceitar que esse
alinhamento da bondade moral com a “espiritualidade”, e do mal moral com o
“materialismo”, é apenas um fato frustrante da vida. Nós, os materialistas, somos os
caras maus, e aqueles que acreditam em qualquer coisa sobrenatural [...] estão do „lado
dos anjos‟” (id. p. 322).
Enfim, conclui o autor que a opinião difundida de que a religião é o baluarte da
moralidade é, na melhor das hipóteses, problemática, porque a idéia de que a
recompensa celeste é o que motiva as pessoas serem melhores é desnecessária. A outra
afirmação de que a religião dá sentido à vida está ameaçada pela hipocrisia em que
caímos. Ainda, a idéia de que a autoridade religiosa fundamenta nossos julgamentos
morais é inútil, na medida em que esses líderes são ineficazes em lidar com os
intransigentes mais radicais de seus próprios credos (cf. p. 314-315). E, por fim, “a
suposta relação entre a espiritualidade e a bondade moral é uma ilusão” (id. p. 324).
O autor conclui afirmando que a pesquisa está apenas começando, pois será
necessário mais pesquisa sobre a história evolutiva da religião e os seus fenômenos
contemporâneos.
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3 – Dennett: Ateísmo naturalista e fundamentalismo
Dennett afirma que existem questões religiosas urgentes, por exemplo, como
lidar com os excessos da criação religiosa e o recrutamento de terroristas? Isto exige
analisar as convicções e as práticas religiosas. Porém, conclama o autor, “precisamos
garantir nossa sociedade democrática, a base original desta pesquisa, contra as
subversões daqueles que usariam a democracia como uma escada para a teocracia, e
depois a jogariam fora” (id. p. 325).
O autor e outros tantos que adotam a posição do ateísmo naturalista tem a
preocupação com o fundamentalismo religioso atual:
Aqueles que sustentam religiões devem também ser considerados
responsáveis pelos danos causados àqueles a quem elas atraem.
Os defensores de religião são rápidos em dizer que os terroristas
em geral têm agendas políticas, e não religiosas. As agendas
políticas dos fanáticos violentos muitas vezes os levam a adotar
um disfarce religioso, a explorar a infra-estrutura organizacional
e a tradição de lealdade sem questionamentos de qualquer
religião que esteja à mão. É verdade que esses fanáticos
raramente são inspirados ou orientados pelos mais profundos e
melhores dogmas da tradição dessas religiões. E daí, pergunta
Dennett? O terrorismo da Al Quaeda ainda é responsabilidade do
islã; o bombardeio de clínicas de abortos ainda é responsabilidade
do cristianismo; as atividades assassinas dos extremistas hindus
ainda é responsabilidade de hinduísmo (id. p. 317).
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Portanto, cabe aqui perguntar: Será que os que defendem um ateísmo naturalista,
com a intenção de criticar o fundamentalismo religioso não acabam caindo no mesmo
reducionismo que pretendem criticar? A preocupação com o fundamentalismo religioso
e seus desdobramentos patológicos, no mundo contemporâneo, pode justificar a
negação completa de todo o fenômeno religioso? Ou ainda, é válido descrevê-lo,
meramente, como um fenômeno cultural, reduzindo-o a uma análise evolucionista? É
plausível o diagnóstico de Dennett sobre “a religião como fenômeno natural”,
aplicando-o a todas as religiões, indistintamente?
REFERÊNCIAS
AUDI, Robert (ed.). Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006.
DENNETT, D. Darwin’s Dangerous Idea. New York: Simon and Schuster, 1995.
HAUGHT, John F. Uma teologia da evolução precisa mostrar que a fé bíblica não
contradiz o caráter evolutivo do mundo. Revista IHU. São Leopoldo, Edição 245, p. 19-
23, 26.11.2007. Disponível em <http://www.unisinos.br/ihuonline>. Acesso em 12 de
junho 2009.
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