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2.
Fixar um estado de alma, ainda que o não seja, em versos que o traduzam
impessoalmente; descrever as emoções que se não sentiram com a própria
emoção com que se sentiram — é este o privilégio dos que são poetas porque,
se o não fossem, ninguém os acreditava.2
3.
RITMO PARAGRÁFICO
Tudo quanto é artificial no verso — a rima, o metro, a estrofe — é principalmente
nocivo secundariamente. Não é tanto o mal que faz a rima, o metro, ou a
estrofe em serem em si mesmas artificiais. O mal é que desviem a atenção da
emoção ou do pensamento, criam novos pensamentos, e assim interrompem o
que originalmente se pensaria.
1
Fernando Pessoa, “[Álvaro de Campos]. [s.d.]. «Cancioneiro» é, como a mesma palavra o diz, uma
colectânea...”, en Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos establecidos por Georg
Rudolf Lind y Jacinto do Prado Coelho) (Lisboa: Ática, 1996), 427.
2
Fernando Pessoa, “[Álvaro de Campos]. [s.d.]. Rascunho dum prefácio para o «Cancioneiro » de Fernando
Pessoa”, en Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos establecidos por Georg
Rudolf Lind y Jacinto do Prado Coelho) (Lisboa: Ática, 1996), 428.
profundamente uma coisa e a quero dizer profundamente, para que os outros
a sintam profundamente, não quero ser desviado dessa profundeza com que
sinto porque a palavra «amor» não rima com a palavra «queijada», ou porque
«cebola» tem que ser «nabo» num ponto onde só cabem duas sílabas, ou porque
«ontem» é um espondeu e tenho que pôr «pálido» para dar dáctilo.
O rio, que poderia correr grandemente no seu leito, extravasa para os campos;
o que devia ser um curso torna-se uma cheia. parece que a imagem está às
avessas, e que os metros, as rimas, as estrofes é que verdadeiramente se devem
comparar às margens. Mas não é assim. As margens são as da nossa emoção
natural. A rima ou o metro são uma espécie de erguer-se do leito do rio que faz
transbordar este por uma forma desconhecida na natureza. Nem sequer é uma
cheia natural.
É-se grande poeta assim? Pode ser-se. Mas é-se grande poeta apesar disto e
não por causa disto. É-se grande poeta porque se é grande poeta, e não porque
«courage» rima com «rage» ou «son» com «saucisson».
Se, ao desenvolver um poema que tem metro ou rima, a minha odeia pedir
a palavra «amor», mas o metro ou a rima exigirem as sílabas ou o som que
pode ser preenchido só pela palavra «afecto», adentro da possível ou plausível
sinonímia, não é senão humano que eu empregue a palavra «afecto», dando o
caso por fechado nesse particular. Mas o seguimento do poema será atacado
pela circunstância de que a palavra «afecto» contém implícitas que não contém
a palavra «amor», e, insensivelmente, quase sem dar por isso, ou até sem dar
por isso, o seguimento do poema sofrerá um desvio, porque a minha própria
ideia sofreu.
Sei bem que a própria palavra é uma instituição dos outros, mas a substância
da vida é a assimilação, isto é, a conversão do que é outro em nosso. E quanto
mais nosso tornarmos o que é dos outros, mais vivemos. Para tornarmos mais
nosso o que é dos outros, é preciso que ele, inicialmente, seja o menos possível
dos outros já, para que mais facilmente seja nosso. A força da alma humana não
é tal, que trabalhe seguramente através de grandes dificuldades. Napoleão disse
que não conhecia a palavra impossível, mas deve tê-la encontrado em Moscovo
e Waterloo, se a não tinha visto antes. Depois, deve ter ficado a conhecer a
palavra, em toda a sua expressão maligna.
3
Fernando Pessoa, “[Álvaro de Campos]. [s.d.]. Ritmo paragráfico”, en Poemas Completos de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa. (Selección, transcripción y notas de Teresa Sobral Cunha) (Lisboa: Presença, 1994), 271–73.
Largo, complexo, curioso misto de ritmos de verso e de prosa, em Whitman;
curto, hirto, dogmático, prosaico sem prosa, poético sem quase poesia, no mestre
Caeiro; pitoresco vindo parar à incrível idiotia de Marinetti, cuja banalidade
mental lhe não permitia inserir qualquer ideia no ritmo irregular, porque lhe não
permitia inseri-la em coisa nenhuma e lhe chamou «futurismo», como se a
expressão «futurismo» contivesse qualquer sentido compreensível. «Futurista»
é só toda a obra que dura; e por isso os disparates de Marinetti são o que há de
menos futurista.
Tomemos um exemplo, simples e breve, em Caeiro:
Leve, leve, muito leve, (. . .)
4.
São três os sentidos que colaboraram na formação das artes,
São três os sentidos que colaboraram na formação das artes, ou, pelo menos,
das artes superiores: a vista, de onde se formou a pintura, a escultura, a
arquitectura, o ouvido donde se formou a música; a (. . .)
Quando se traduz um poema, traduz-se a ideia e o objecto; a liberdade está
nos pontos intermédios das frases, das imagens até. Por isso é intraduzível nas
línguas modernas a poesia quantitativa dos gregos e dos romanos.
A arte verbal de dizer as coisas de maneira que o ritmo influa no sentido
chama-se poesia.
Todos conhecem o «pensamento» trazido pela rima; e com o ritmo dá-se
o mesmo.
O que é pensado para se dizer, ou porque se está dizendo, em poesia não é
pensado do mesmo modo que se onde está a poesia estivesse a prosa. O ritmo
dentro do mesmo espírito tem outra marcha ou direcção.
Reescrevamos a Ilíada na forma de uma crónica medieval, e será uma boa
crónica medieval, mais nada. Dispamos o Paraíso Perdido da música rítmica da
[. . .] e será um monumento de fantasia teológica, tediento e fruste.
A preocupação do ritmo infiltrou-se no poema, na substância da mesma
ideação, e o que é para ser pensado ritmicamente não é pensado como se fosse
só pensado.4
5.
6.
4
Fernando Pessoa, “[Álvaro de Campos]. [s.d.]. São três os sentidos que colaboraram na formação das
artes...”, en Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Selección, transcripción y notas de
Teresa Sobral Cunha) (Lisboa: Presença, 1994), 274.
5
Fernando Pessoa, “[Álvaro de Campos]. [1914?]. Toda a arte é a sobreposição às Coisas da nossa
interpretação ou ideia delas”, en Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Selección,
transcripción y notas de Teresa Sobral Cunha) (Lisboa: Presença, 1994), 237.
De há muito sustento a teoria que a civilização é a criação de estímulos em
excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reacção a
eles.
A civilização é pois a tendência para a morte pelo desequilíbrio. A coisa mais
útil que a ficção real chamada um povo pode fazer é resistir a civilizar-se por
processos de civilização. Existir é não se deixar matar; ser civilizado é inventar
reacções para os estímulos que excedem já a reacção possível, isto é, inventar
reacções artificiais, quer dizer civilizadas, contra a própria civilização.
Tudo que é vivo subsiste pelo equilíbrio de duas forças — a de integração
e a de desintegração, o anabolismo e o catabolismo dos fisiologistas. A que
desintegra faz viver e morrer; a que integra faz morrer e viver. Uma insiste, e
outra subsiste. Até à civilização (sociedade), e na ordem biótica, e mesmo abaixo
da biótica, a força que insiste é que cria, porque destrói, e destruir é transformar;
a força que subsiste é que deixa criar, porque não deixa destruir, e destruir é
transformar para outro. Na ordem acima da biótica — isto é, nas sociedades
— inverte-se a dinâmica dos factores agentes: a tendência para subsistir é que
mata, a tendência para não subsistir é que faz viver. Isto porque a sociedade é
um corpo naturalmente artificial, e vive por isso segundo leis que são contrárias
às leis naturais.
O que faz subsistir nas sociedades? A tradição, a continuidade, a tendência
para permanecer, isto é, para não viver. E a tradição, a tendência para
permanecer,
tem três formas — o apego ao passado, que é a tradição vulgar; o apego
ao presente, que é a moda; e o apego ao futuro, que é o ideal social em que se
confia. O que faz viver, isto é, não subsistir, nas sociedades ? A anti-tradição,
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Obra Aberta · 2015-06-08 02:05
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a tendência para não permanecer. E a tendência para não permanecer tem só
uma forma — o apego ao não-passado, ao não-presente, e ao não-futuro. Isto
quer dizer o apego ao abstracto e ao ideal em que não se confia. Por isso a força
que conserva as sociedades é a inteligência de abstracção e imaginação.
A inteligência de abstracção e imaginação tem duas formas — a matemática
e a crítica. A matemática abstrai de toda a experiência, excepto da essência
da experiência; o único critério de verdadeira objectividade que temos é o
critério de matematização. A crítica abstrai de toda a experiência excepto de
ela ser nossa; o único critério de verdadeira subjectividade que temos é o da
confrontação, não das nossas impressões com as coisas, mas das coisas com as
nossas impressões.
Deve compreender-se que entendo por crítica toda a actividade crítica: a
crítica, no sentido em que emprego a palavra, inclui toda a forma de actividade
que ou não aceita, ou quer substituir a objectividade da experiência. Assim, a
arte é uma forma de crítica, porque fazer arte é confessar que a vida ou não
presta, ou não chega. Assim, também, a parte por assim dizer dogmática da
religião (não a sua parte social nem a sua parte metafísica) é uma forma de
crítica, porque crer numa coisa sem ser com uma razão, embora aparente (como
acontece na metafísica, que procura explicar), não sendo essa coisa um elemento
da experiência (objectiva), é querer substituir essa experiência. . .
A crítica é, em suma, todo o artifício que é feito com inteligência, e sem fim
social nenhum. Desde que sirva um ideal em vez de uma impressão [?], a crítica
é falsa como crítica, não é crítica, em suma, mas só opinião.6
6
Fernando Pessoa, “[Álvaro de Campos]. [1924].A INFLUÊNCIA DA ENGENHARIA NAS ARTES”, en Páginas de
Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos establecidos por Georg Rudolf Lind y Jacinto do
Prado Coelho) (Lisboa: Ática, 1966), 33.
Bibliografía