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Após isso, imaginemos o que é ser um Ydam

AS ESFERAS DO CORAÇÃO (deidade tutelar); ou então, pensamos que estamos em


Shambhala e que ensinamos aos bodhisatvas; ou, ainda,
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
nos reinos tântricos com os sidhas como discípulos; ou
Shardza Tashi Gyaltsen
então em Sukhavati ou Olmo Lungring, ensinando o
Ensinamento Dzogchen da Tradição Bön
Dzogchenpo. Coloquemo-nos nessa situação. No final,
Traduzido e comentado por Lopön Tenzin Namdak
integremos nossas visões todas no estado natural. Que
Traduzido para o português por Flávio Capllonch Cardoso
resta então? Integremos em seguida nosso próprio
pensamento de tal modo que não reste nada. Realizemos
então que tudo é fabricado por nosso pensamento, que
tudo vem dele. Devemos realizar a natureza das coisas.
INTRODUÇÃO
Devemos fazer este exercício com aplicação, ao menos
durante três meses, ou no mínimo um mês5.
Este texto compreende três subdivisões que
correspondem ao grau de inteligência do estudante. Por
estas práticas, o estudante inteligente realizará a
Prática Interior
Budheidade em uma vida, o estudante mediano durante o
estado intermediário e o estudante pouco brilhante após
A segunda parte da primeira prática preliminar
várias vidas utilizando os métodos do Dzogchen.
permite frear o desejo pelo emprego de visualização
interna e de recitações. Esta prática deveria ser feita
durante pelo menos sete semanas. Porém, a verdadeira
I
prática não é descrita aqui. Dizemos brevemente que há
PRÁTICAS PRELIMINARES
um mantra e que projetamos luminosidades para os seis
reinos para purificar todos os obscurecimentos. Esta prática
No início, vem uma prática preliminar descrita em
é, sobretudo ligada ao sistema tântrico7.
duas seções. O propósito da primeira prática é de distinguir
o samsara do nirvana; o propósito da segunda é
interromper todo desejo pelo corpo, a palavra e a mente.
O SEGUNDO CICLO DA PRÁTICA
PRELIMINAR: PARAR O DESEJO PELO CORPO, A
FALA, E A MENTE 8
O PRIMEIRO CICLO DE PRÁTICAS PRELIMINARES:
A Prática do Corpo
DISTINGUIR O SAMSARA DO NIRVANA.
Nos colocamos inicialmente, com os pés juntos
(calcanhar contra calcanhar) com os joelhos separados e as
A primeira prática é em si mesma subdividida em
mãos juntas acima da cabeça, sem a tocar. A nuca está
prática exterior e prática interior.
ligeiramente inclinada para o peito, o tronco está reto. Essa
é a postura do corpo. Nos visualizamos sob a forma de um
dordje de três pontas, flamejante e de cor azul9.
Inspirem e retenham sua respiração. Mantenham
Prática Exterior
esta postura até o momento em que não a podemos
manter mais tempo. Nesse momento, deixem-se cair para
Ir para um lugar calmo, totalmente isolado e
frente expirando e pronunciando HAH fortemente. Repitam
permanecer aí. Começando por fazer oferendas aos deuses
isso muitas vezes.
das montanhas ou àqueles que tenham poder espiritual na
Esta prática tem três objetivos: em primeiro lugar,
região de modo que eles não sejam perturbados. Devemos
ela purifica o corpo físico; em segundo lugar, os demônios
fazer isso onde praticamos de modo que não haja
vêem o dordje flamejante e nos deixam tranqüilos; enfim,
obstáculos.
ela suprime o desejo corporal.
Em seguida, pensando que devemos por um fim ao
samsara, perguntemo-nos: qual é o objetivo de tanto
A prática da Fala – em quatro subdivisões:
apego? Temos necessidade de nos perguntar porque
O segundo tipo de exercícios concerne à fala. Ele
temos esse desejo. Imaginemo-nos nus e nascidos no
compreende quatro subdivisões: Gyedapa (rgyas gdab pa,
inferno, berrando e sofrendo como se aí estivéssemos. Em
a aposição do Selo), Tsel Jongpa (rtsal sbyong pa, a
seguida, imaginem que nasceram no reino dos fantasmas
prática), Nyen Tselpa (mnyen btsal pa, o treinamento) e
famintos (pretas) com uma fome e uma avareza infinitas.
Lamdu Zhug (lam du gzhug, a entrada na via).
Imaginemos que nascemos no mundo animal, nos
comportando como um animal. Depois disso, pensemos
que tomamos um nascimento humano com empregados –
(1) A Aposição do Selo (Gyedapa)
imaginemos esta vida; em seguida, consideremo-nos como
em três partes:
um semi-deuses (asura) preso sem cessar em combates –
qual é o objetivo dessa existência? Finalmente,
a) O Selo Exterior.
imaginemo-nos sob a forma de um deus (deva)
O HUM é um selo para a mente impura. Ele é
esbanjando nossa vida em ócios sem pensar na próxima
usado na medida em que ele exprime a mente de um
vida. – qual é então o objetivo de uma tal vida?
Budha. A prática consiste em se sentar de pernas cruzadas,
Imaginemo-nos circulando de um reino a outro. Façam
colocando seu olhar no espaço. Visualizamos nossa mente
tudo o que vier à mente – visualizando ou em imaginação.
como um HUM azul ao nível do coração e pronunciamos
longamente HUM várias vezes. Ao mesmo tempo,
visualizamos o HUM azul emitindo raios de pequenos HUM
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Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

que saem pela narina direita e enchem o universo de HUM. deixam o corpo passando pelas narinas, e se dirigem para
Tudo o que esses HUM tocam são transformados em um a base do bastão. Elas sobem pouco a pouco, em torno do
outro HUM azul, exteriormente e interiormente. Nossa bastão, como formigas. Quando a primeira HUM chega ao
mente é completamente absorvida no HUM – nada cume do bastão, ela para diante de nós; as outras cercam
diferente acontece. Pronunciamos sempre um HUM suave o bastão em espiral. No caso de nos distrairmos pelos
e longo. pensamentos, imaginamos que todos as HUM voltam para
a primeira HUM no coração. A assim em seguida. Devemos
b) O Selo Interior. passar algum tempo fazendo esse exercício porque ele
Agora, gritamos HUM com um ritmo rápido (quer permite controlar as distrações de modo que podemos
dizer pronunciando fortemente HUM curtos) e imaginamos meditar assim durante quanto tempo desejarmos.
que todos os HUM se fundem uns nos outros e voltam ao
nível do coração passando pela narina esquerda. Quando
eles estão no interior do corpo, a carne e o sangue se (4) A entrada na Via (Lamdu Zhug)
transformam em HUM de tal modo que o corpo se enche
de HUM. Mantenham longamente essa visão. Isso significa que conduzimos o corpo, fala e mente
na boa via – para a clara luz natural. A prática consiste em
c) O objetivo do Selo. visualizar um HUM azul do tamanho correspondente à
Assim, realizamos que nenhum objeto, nem mesmo distancia do cotovelo até a ponta dos dedos. Essa HUM
nosso corpo, podem existir por si mesmos. Nada, nem representa nosso corpo, nossa fala, e nossa mente – quer
mesmo o nosso corpo tem existência material dizer, tudo. Quando pronunciamos HUM, ela move-se à
independente – tudo pode facilmente mudar. Quando direita e à esquerda, depois ela escapa, viajando através
tivermos durante longo tempo, praticado suficientemente, do campo, até que finalmente, atinge paises que nós
por exemplo, a visão repentina d’um HUM faz com que jamais vimos. Durante todo esse tempo, pronunciamos
sintamos rapidamente que nosso corpo está cheio de HUM. “HUM, HUM” continuamente. Depois, paramos e dizemos
Isso é um sinal indicando que nós praticamos Gyedapa de repente bem forte “pHAT!”, a visão desaparece e
suficientemente. ficamos tal como somos – permanecemos em nossa
natureza. Essa HUM pode ir aos paraísos ou à Shambala;
de repente, paramos e gritamos pHAT. Pronunciando
(2) A prática das visões como reflexos (Tsel pHAT, interrompemos nossos pensamentos e
Jongpa) permanecemos no estado natural. Conduzindo bem essa
prática, começamos a ter experiências (nyams) de
Quaisquer que seja a visão que venha à mente, se beatitude, de vazio e de claridade. O sinal que temos
trata de Tsel (reflexo), de modo que esta prática consiste conduzido bem esta prática é que seremos capazes de
em destruir tudo o que aparece dissolvendo na mente. A permanecer no estado natural sem a menor dúvida nem o
prática é similar ao que já foi explicado. Sentemo-nos menor esforço.
adotando a postura em cinco pontos10. Visualizamos a HUM
azul escura no interior do coração. Desta vez devemos A prática da mente (Sem Jongpa)
pronunciar a HUM de maneira muito forte, muito aguda, e Trata-se dos métodos diretos de introdução ao
visualiza-la como um fogo muito forte em forma de lâminas estado natural. Os métodos descritos acima são todos
de espada, projetando fagulhas como raios. Essa HUM sai meios materiais para nos conduzir ao estado natural.
através da narina direita sob a forma de numerosas HUM Seguem nove métodos para nos conduzir diretamente a
que destroem tudo o que elas tocam. Ao final deste este estado11.
exercício, elas atravessam todas as coisas e destroem
tudo, em todas as direções. Tudo é destruído por essa 1-3. Os três primeiros métodos são dados sob
HUM poderosa. Depois, novamente, ela volta através da o título de “D’aonde vem a mente, onde permanece
narina esquerda e destrói toda a materialidade do nosso ela e para onde vai?”.
corpo. Isso ajuda também à aniquilar todas as doenças Conservando a postura em cinco pontos,
assim como os obstáculos. Isso pode mesmo ajudar à busquemos a origem do pensamento e tentemos saber se
formação do corpo de arco-íris (Jalu, o corpo de luz) o estado natural é material, visível ou invisível. Devemos
paralisando qualquer desejo pelo corpo. verificar mais e mais. Não podemos encontrar onde está
Quando nos dermos conta que o universo é uma esse objeto, ou quem o procura. Quando tentamos,
simples ilusão, e que tenhamos a sensação que nosso perdemos tudo. Começaremos assim a realizar que a
corpo é tênue como um fio, sem substância, é o sinal que mente é vazia, como a imagem do céu.
praticamos suficientemente este exercício.
4. Verifiquemos a visão mundana normal.
Quando realizamos isso, podemos tentar destruir a
(3) O Treinamento (Nyen Tselpa) mente vazia, mas não encontraremos nada. Embora
tentemos, é impossível fazer o que quer que seja com a
O objetivo é aqui domar nossa mente e conduzi-la natureza vazia. Mesmo quando todos os pensamentos
sobre nosso controle. Praticamos colocando um bastão estão parados, há sempre uma presença muito brilhante e
diante de nós e pronunciamos HUM, de maneira continua e clara que é vazia. É isso que chamamos a Mente Natural
ritmada. Em seguida imaginamos que numerosas HUM Clara12.
saem do coração como um rosário de pérolas, e que elas
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Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

Se as coisas fossem independentes e se bastassem 8. A realização que está além do pensamento


a elas mesmas, poderíamos adquirir certeza verificando é sem nome.
todas as nossas visões como descritas acima, e descobrir Em primeiro lugar, o estado natural está totalmente
sua natureza. Mas, quando praticamos este método, além dos pensamentos e dos objetos do pensamento. Ele
mesmo se a visão parece normal, nossa compreensão é não é em nenhum caso um objeto do pensamento. Não
diferente. Vemos que todas as visões são ilusões. podemos mostrá-lo com um exemplo. Qualquer que seja
Realizaremos a natureza da ilusão incessante. nossa ação, não há nada que possamos fazer. Entretanto,
quando olhamos a fonte dos pensamentos, não podemos
5. Busquemos de onde provêm os reflexos. encontrar nada. – voltamos simplesmente à natureza da
As visões vêm à mente, mas como elas aparecem e mente em si mesma. Ele não é separado do objeto e do
quem as compreende? Quem experimenta a tristeza e a sujeito, nem dos nomes, e nenhum pensamento pode
felicidade? Se reconsiderarmos a situação da mente, apreender sua natureza. Quando isso é compreendido, sem
veremos que tudo é fabricado pela mente. Mas, se ter pensado, realizaremos a mente sem nome que está
observamos a mente, descobriremos que ela também, além dos pensamentos.
parece não ter nenhuma existência independente 13.
Entretanto, se a mente não está presente, então quem deu 9. A realização da mente espontânea sem
nomes e quem produziu as causas da existência? A mente ação.
deve então existir, e tudo existe em função da mente. Mesmo se não buscamos ou não estudamos nada,
Nada pode existir independente dela 14. Nada existe fora do o estado natural está sempre conosco desde o começo dos
estado natural. A terra não é separada do estado natural; tempos. Não há nada à perder e nada à encontrar. Se
uma pedra não é independente do estado natural; as buscarmos em nós mesmos, podemos encontra-lo? Assim,
visões não são visões independentes. Tudo é uma visão do não deveríamos falar da procura da natureza da mente.
estado natural. Desde o início, ela está sempre conosco e jamais se
O estado natural é como um ponto único; ele é separou de nós. Não há outros seres que possam ver a
como o espaço onde os pássaros voam – não deixam natureza da nossa mente. Ela é nascida dela mesma.
traços atrás. Se compreendermos esta característica, Quando realizarmos isso, teremos realizado a “Base Nua do
realizaremos que o estado natural é de onde surgem todas Dharmakaya”.
as coisas – o rei das criaturas.

6. A realização sem palavra nem pensamento. A VISÃO DZOGCHEN


Poderíamos dizer que se o estado natural existe, ele
deve poder aparecer em qualquer lugar, mas de fato nada Olhar de onde o estado natural provém, onde ele se
aparece. Concluímos então que ele não existe. O estado encontra e para onde ele vai.
natural é sempre sem vestígio no passado no presente e Nesta seção verificaremos desde o início de onde
no futuro. Ainda que o estado natural não apareça, ele provém o estado natural e o que aparece? O método de
está sempre presente. Esta consciência é tal que não verificação consiste, quando um pensamento vem
podemos jamais captura-la pelo pensamento, e não a espontaneamente, colocarmos a questão de saber se ele
podemos nomear ou descreve-la com palavras. Se provém da existência ou da não-existência. Olhem de onde
tentarmos revela-la com sons ou com sinais, não ele vem: qual a sua origem? Se pensarmos que ele vem da
atingiremos jamais a natureza dessa consciência. O que existência e dos domínios exteriores, digamos da terra, das
quer que façamos para estudar ou verificar desta maneira, montanhas ou das casas, ou dos domínios interiores tendo
seremos como um mudo que come açúcar! Ele o lugar no corpo, ou no cérebro, verifiquemos cada
experimenta, mas não pode descrever o sabor. Assim, esta possibilidade uma por uma. Verifiquemos e repitamos. Se
natureza não pode ser pensada, nem ser captada por fizermos isso, poderemos encontrar a fonte dos
palavras. Quando compreendermos isso, então pensamentos?
realizaremos o estado natural sem palavra nem Segundo, poderíamos pensar que provenha do céu
pensamento15. vazio – mas, se tal fosse o caso, então onde está origem
no céu? Esta fonte deve ser um dos elementos, mas se
7. O estado natural não existe porque ele não olhamos o ar, o fogo, a terra ou a água, não podemos ai
é material. encontrar nossos pensamentos. Se verificarmos assim, não
O estado natural não existe, porque não há poderemos nunca encontrar a fonte dos pensamentos. O
métodos para eliminá-lo. Ele não pode ao mesmo tempo estado natural é como um vento que vem repentinamente
existir e não existir; o estado natural não está nem além da de nenhum lugar.
existência nem além da não existência. Ele não tem Então, olhemos simplesmente o estado natural e
morada; pois, a natureza da mente está além dos limites. vejamos se ele é alguma coisa material, colorida e com que
Se compreendermos isso, compreenderemos a “Grande ele se parece? Nada pode ser encontrado. Então,
Mente Sem Limites que está além dos Quatro Limites 16”. rapidamente, perdemos ao mesmo tempo sujeito e
Assim, não há nada que possamos agarrar. Se agarrarmos objeto17; isso é chamado a “Visão sem fim”. Tem por Base,
as coisas, devemos pegá-las por um dos quatro limites. o Dharmakaya fundamental; o Dharmakaya da Via, para a
Via; e para o Fruto, o Dharmakaya final. Quando
compreendemos isso, compreendemos a natureza do
Dharmakaya.
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Tradução Flávio Capllonch Cardoso

Onde permanece ele e quem ai reside? Existem duas subdivisões conduzindo às instruções
Devemos verificar tudo isso. Se pensarmos que o essenciais. A primeira divisão explica o contexto do
estado natural existe, então onde ele está agora? Se ensinamento e a segunda expõe em detalhe a prática.
tomarmos todas as coisas materiais e se verificarmos sua
natureza, as coisas se resumem aos átomos e, finalmente,
desaparecem à imagem do céu. Não podemos encontrar o O CONTEXTO DO ENSINAMENTO
lugar onde eles residem. E, se nós não podemos encontrar OS TRÊS TIPOS DE ENSINAMENTOS ERRÔNEOS
esse lugar, quem, pois, ai reside? O que permanece é uma
claridade muito brilhante que permanecerá em nós. No Namkha Trudzö, é dito que o dzogchen
Se tentarmos reconhecer quem habita nesses dois reconhece três tipos de ensinamento errôneos. Os
domínios, não encontraremos nada – nem do ponto de primeiros são os ensinamentos errôneos que foram
vista do objeto, nem do sujeito. Sem pensamento nem incorporados ao dzogchen, os segundos são as más
palavra, é a presença do brilho e da claridade. A presença interpretações do ensinamento, os terceiros são os
é muito clara. Segundo a Via, é “Claridade natural da ensinamentos errôneos que desaparecem
prática”, e, segundo o Fruto, “O Sambhogakaya sem automaticamente20.
entrave”.
1. Ensinamentos errôneos incorporados ao
Aonde vai ele e quem vai? dzogchen.
Pouco depois, deveríamos repensar e nos perguntar Isso consiste, por exemplo, em introduzir as visões
aonde vão os pensamentos. Se olharmos exteriormente, dos oito veículos inferiores nos ensinamentos 21. Mas,
não poderemos encontrar seu destino. Tudo desaparece segundo a visão do dzogchen, não temos necessidade de
simplesmente. Mesmo se encontrarmos alguma coisa, ver as outras oito visões como negativas – elas se
deveríamos nos perguntar quais são as características do dissolvem espontaneamente na sua22.
agente que pretende conhecer este desaparecimento. Segundo o Yetri Tasel: “Na visão última do
Quando tentamos encontrar alguma coisa, tudo dzogchen, não temos necessidade de elevar o que quer
desaparece em si-mesmo e é auto-purificado. Não fizemos que seja. Não temos necessidade de agarrar, porque o
nada, mas a ilusão foi purificada. Não tentamos purificar dzogchen não segue as marcas das etapas do caminho e
nem fazer o que quer que seja com as percepções puras. do fruto. Toda apreensão com respeito à via externa ou
Tudo aparece espontaneamente e se auto-libera na interna se libera por si mesma. Esta via está além do
vacuidade. Segundo a Via, chamamos isso “a Conduta sem sujeito, do objeto, da obtenção do fruto ou da purificação
traço”, e segundo o Fruto, “o Inseparável Nirmanakaya”. dos defeitos. Ela é o objeto do melhor conhecimento do
Devemos buscar intensamente aonde vão os pensamentos. praticante”.
Semelhante ao vento que desaparece, eles desaparecem
no espaço. Eles são liberados em si-mesmos e se auto- 2. Más interpretações do ensinamento.
liberam. Quando temos esta experiência, vemos “o A segunda visão errônea é constantemente desejar
Inapreensível Nirmanakaya”. Temos o habito de crer que é e esperar obter uma claridade brilhante ou a vacuidade –
sempre nossa mente que pensa. Mas quando perguntamos apegando-se fortemente às coisas, cheios de esperança e
de onde ela vem, aonde ela vai e onde ela permanece, não de desejos. Esta visão é limitada pelos desejos. Não é a
podemos encontrar lugar nenhum. É isso que chamamos a verdadeira prática do dzogchen.
“Destruição da Morada da Mente”. Quando realizarmos
isso, atingiremos a “Grande natureza e o Não-eu infinito”, 3. Ensinamentos errôneos que desaparecem
Tadrel Chenpo (mtha’ brel chen po). automaticamente.
Quando chegamos à esta natureza, não há Se perguntarmos qual é nossa visão,
necessidade de verificar ou de fazer o que quer que seja – responderemos: “Nem negativas, nem positivas – as coisas
não há ação e nem há a nada à fazer. É a unificação da devem ser deixadas tais quais são. Então, todos os apegos
claridade e da vacuidade, e é a grande natureza do e obscurecimentos se liberam por si mesmos”.
Dzogpachenpo. Esta visão está além da decisão de praticar e de
Chamamos esta realização “chegada ao meditar. Sem fazer o que quer que seja – sem a menor
Conhecimento do Estado Natural”. tentativa para mudar nossa natureza – deixai-a
Assim, acabamos a prática preliminar18. continuamente seguir seu curso. Então, todos os aspectos
negativos e todos os aspectos positivos se dissolverão em
nossa natureza. Não há então visão falsa. Por exemplo, se
II uma avalanche se abate de uma montanha, ela arrasta os
A PRÁTICA DE TREKCHÖD arbustos e as árvores até a parte mais baixa do vale. Esta
O ENSINAMENTO ESSENCIAL PARA A PRÁTICA visão é semelhante à uma avalanche.

No início, deveríamos encontrar-nos no estado


requerido para o amadurecimento essencial da mente. OS TRÊS SISTEMAS DE ENSINAMENTO NESTE
Para isso é necessário receber a iniciação. Entretanto, se TEXTO
aplicamos esta prática preliminar, receberemos a iniciação
pela prática em si19. O primeiro é chamado “o sistema de ensinamento”,
o segundo se chama “sistema de introdução direta” e o
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terceiro o “viajante que, tendo errado o caminho na anterior. Mesmo que essas visões apareçam, elas não têm
montanha, recebe uma ajuda para encontrar a boa via”. existência inerente30.
Se nos perguntarmos qual o sistema é ensinado
aqui, trata-se do primeiro. Qual é o segundo sistema? É
introduzir Trekchöd e Thögal diretamente. O terceiro A INTRODUÇÃO DIRETA SEGUNDO O SEMDE
sistema significa que damos ensinamentos graduais 23. Este (SEMS SDE)
ensinamento é do primeiro tipo porque todos os
ensinamentos estão contidos nele. A natureza fundamental do estado natural
Damos gradualmente os ensinamentos sobre o (bodhichita) é a base de todos os reflexos. Ela é
conhecimento (do estado natural) aos praticantes que não semelhante ao oceano; todas as espécies de reflexos
possuem as mais altas capacidades, a fim de dissipar, podem aí aparecer. Assim o oceano reflete, de maneira
pouco a pouco, os obscurecimentos dos pensamentos e igual, todas as imagens – o sol, a lua e as estrelas.
afastar assim o samsara. Este método, eu já ensinei no Deveríamos compreender isso31.
Dzogpachenpo Kusum Rangshar (rdzogs pa chen pó sku Do ponto de vista da bodhichita (quer dizer O
gsum rang shar)24. ESTADO NATURAL), não podemos explicar a diferença
O ensinamento que achamos aqui é destinado aos entre a Base, a energia ou os reflexos. Porque a natureza
praticantes que possuem as mais altas capacidades. Como do estado natural é vacuidade e, na vacuidade, não pode
ele é ensinado? É preciso introduzir tudo de um golpe, haver distinção entre elas. Por exemplo, no oceano, a
como um raio. A Base (deste ensinamento) está claridade da água (energia) e seus reflexos não são
naturalmente liberada desde o início. À esta Base, não diferentes da água – eles aparecem, mas eles não existem
agregamos mais nada, mas fomos introduzidos fora d’água.
diretamente de modo que compreendemos totalmente25. Se olharmos do ponto de vista dos reflexos (quer
dizer das aparências individuais), não há mais contradição.
Com essa perspectiva, podemos ver que o oceano, sua
OS DETALHES DA PRÁTICA DE TREKCHÖD claridade e seus reflexos são distintos uns dos outros.
Entretanto, no estado natural, nenhum reflexo tem base
O praticante de capacidade superior não tem real. Elas não possuem uma existência inerente.
necessidade de meditar ou de contemplar, ele tem Segundo o Lugyudang Drawai Dampa (lus rgyud
simplesmente necessidade de tomar uma decisão. Por esta dang ‘dra ba’i gdams pa): “sobre esse assunto, não
decisão, ele é liberado. Tal é o método do sistema de falamos nem de vacuidade nem de visão. Nem a vacuidade
Trekchöd. nem a visão têm base”.
Graças aos ensinamentos do Thögal, chegamos à Assim o sistema do Semde serve somente para
obtenção das visões dos três Kayas e adquirimos assim o guiar os discípulos de capacidade inferior ao dzogchen, o
corpo de arco-íris ao fim da vida. chamamos também o Grande Selo (Mahamudra) 32.
Há duas subdivisões em função das capacidades O texto do Chagtri (phyag khrid) por Trugel
dos alunos. Na divisão inferior, encontramos uma citação Yungdrung (Brurgyal gyng drung) e seus discípulos o
do livro intermediário do Zhang Zhung Nyengyu26, o aceitaram como o ensinamento mais elevado, mas esse
Dringpo Sorzhag: “As visões são todas confrontadas 27 com não é o caso. Ele não pode ser comparado ao ensinamento
a mente, a mente é confrontada com a vacuidade e a mais elevado, como a terra não pode ser como o céu33.
vacuidade com a clara luz; a clara luz é confrontada com a
unificação e a unificação é confrontada com a grande
beatitude”. A INTRODUÇÃO DIRETA SEGUNDO O MENGAGDE
Quando confrontamos as visões com a mente, em duas subdivisões:
colocamos um fim na ilusão em virtude da qual as
aparências parecem existir por si mesmas. Quando Para os melhores praticantes, há uma segunda
confrontamos a mente com a vacuidade, paralisamos os introdução direta; eles podem ser liberados justamente
pensamentos ignorantes que procuram se agarrar à após haverem recebido diretamente esta introdução.
verdade. Quando mostramos diretamente a clara luz com Esta introdução comporta duas subdivisões: a
a vacuidade, isso põe fim à má compreensão de nossa primeira é a introdução direta, e a segunda concerne à
natureza. E quando mostramos a unificação com a clara decisão de entrar na grande não ação.
luz, isso é a unificação da consciência clara e da natureza.
Quando mostramos diretamente a grande beatitude com a
unificação, realizamos a natureza nua da vacuidade e a A INTRODUÇÃO DIRETA.
consciência não nascida, sem morada e sem limite28.
Agora, para esse primeiro sistema de ensinamento, No que concerne a introdução direta, há três
“mostrar diretamente”, se requer a revelação direta do maneiras de ensinar. A primeira consiste em comentar os
mestre. A visão em si mesma não é a mente. E a mente pontos importantes, a segunda a ligar e a terceira em
não é nem forma nem visão. Se perguntarmos o que é a adquirir determinação.
mente, deveríamos compreender que todas as visões
provêm das marcas cármicas29. Porque a mente conservou
os traços cármicos variados, eles podem ser revelados, e,
assim, as visões aparecem em razão dos traços da ação
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O primeiro método: o comentário dos pontos 1. A visão consistente em unir.


importantes Esta expressão significa que todas as visões estão
Aqui, dois métodos estão presentes: mostrar ligadas na vacuidade porque todas as visões e a mente
diretamente a consciência clara fundamental e mostrar a permanecem sem mudança e sem vontade de as modificar.
visão, a prática, a ação e o fruto. Tudo surge tal qual. Sem nada fazer e sem distração,
poderemos ver claramente. A visão vem repentinamente,
1. Mostrar diretamente a consciência clara- como um raio. Ela é chamada “a visão rápida, como o
raiz. aparecimento do relâmpago”.
Há três descrições da consciência clara (rig pa). A Segundo o Namkha Trlgyi Dzöchen (nam mkha’
primeira é a consciência clara da mente toda penetrante; a ‘phrul gyi mdzod chen): “então essas visões e essas
segunda é a consciência clara da mente pensante e a mentes são todas vistas sem véus, muito brilhantes e
terceira, a consciência clara primordial. A primeira claras. As visões surgem sem prevenir e são, por
corresponde à consciência clara do Budha que abraça conseguinte rápidas. Elas nascem delas mesmas e são
todos os seres. A segunda é aquela de algumas escolas de assim chamadas “raios”. Todas as visões são sem entraves
meditação como na Vipassana (visão penetrante) onde a e sem invenções. Elas aparecem espontaneamente e todas
consciência clara é praticada na meditação. Nesse caso, se as coisas se manifestam por elas mesmas. É porisso que
não praticarmos, não veremos a consciência clara; às dizemos que elas são como relâmpagos”.
vezes ela é clara, e às vezes ela não é. Aí está o primeiro das quatro métodos consistindo
A terceira corresponde a esta visão: é a verdadeira em se ligar (à Visão).
consciência clara do dzogchenpo. Ela está sempre aí, quer
pratiquemos a meditação ou não, quer a realizemos ou 2. A prática consistente em unir.
não. Que a conheçamos ou não, não tem importância. O Toda prática tem por objetivo ver diretamente com
que se segue nos expõe diretamente esta consciência plena consciência. Isso porque, quando os pensamentos
clara34. surgem rapidamente, nesse instante mesmo, eles se
liberam por si mesmos (se estivermos conscientes [em
2. A visão, a Prática, a Ação e o Fruto. RIGPA]). É isso que chamamos “atingir diretamente 37”.
No início, sentemo-nos na postura dos sete Segundo o texto precedente: “Os pensamentos
pontos35. Depois, o mestre interpela o estudante e diz: aparecem rapidamente. Não há certeza quanto à sua
“Oh! Nobre filho, há um observador ou uma coisa que seja origem; á assim que atingimos diretamente. Tudo o que
observada? Aonde esta coisa vai? E aonde ela não vai?” aparece se manifesta por si mesmo. Pois, a ignorância não
Não podemos encontrar o objeto à observar ou o tem lugar onde se ocultar e é isso que chamamos atingir
observador. Nesse momento, tudo se torna como o céu. diretamente”.
Não mudamos nada, não fazemos nada. Esta natureza é Vemos claramente como a consciência clara e a
inexprimível. Nesse instante, não há mais nomes ou visão normal estão ligadas e é isso que chamamos: atingir
conceitos de claridade, de vacuidade ou de unificação. diretamente. Quando a consciência clara e a visão são
“Não podemos mostrar isso por um exemplo: não a deixadas como são – sem nenhuma modificação – é isso
podemos verificar ou reconhece-la pelos pensamentos”. que chamamos: atingir diretamente. Quando
Somos incapazes de faze-la desaparecer, e, entretanto isso compreendemos esses métodos, não há nada além, nada
não parte jamais. Ela não tem raiz – é vazia. Quando sobre o que meditar: é atingir diretamente.
estivermos neste estado a claridade está presente
continuamente, pura e sem entraves. A claridade se 3. As atividades consistentes em unir
manifesta por si mesma, ela não tem antídotos. Ela estará Agora, todas as atividades estão ligadas à sabedoria
sempre na felicidade. Sempre nua, ela não pode ser que nasce por si mesma e que vem naturalmente.
iludida. Não podemos descrever o que vemos, se bem que Qualquer que seja o momento onde realizamos uma das
seja sempre brilhante. Sua natureza é incessante. É a quatro atividades38, não tentamos planificar ou mudar
natureza inexprimível e a sabedoria incessante. Não há qualquer coisa, mas permanecer simplesmente deixando
motivo para que as visões estejam presentes; sem tudo tal qual, é isso que chamamos: a “Sabedoria
pensamentos, a claridade está aí. manifestada espontaneamente”.
“Sem distinguir o sujeito do objeto, a sabedoria Segundo o mesmo texto: “Nada é obstruído e tudo
está presente. Quer dizer a sabedoria sem objeto nem aparece naturalmente. Isso se produz automaticamente.
sujeito, sem substância. É o caminho do grande segredo Não fazemos nada de particular. É por isso que é dito que
da Grande Perfeição – o sangue do coração das Dakinis – é tudo aparece espontaneamente. Se agirmos
o don de Drenpa Namkha (drag pa nam mkha’) . E é ‘normalmente’[no estado de rigpa], não há nada de errado.
também o ensinamento essencial de Rigpa Rangshar 36 O que quer que façamos tudo é reflexo da vacuidade, e é,
(rigpa rang shar)”. pois “a aparência manifestada espontaneamente”. Não há
“Compreenderam? Realizaram? Maravilhoso!” nada à modificar, à reunir ou à desejar – assim tudo se
manifesta espontaneamente. Tudo vem da vacuidade não
é questão de estar ou não de acordo com isso. – tudo é
O segundo método: Unir. manifestado espontaneamente. À todo momento, nosso
corpo, nossa fala e nossa mente são deixados tal como são
Este método é descrito em quatro seções: a visão, a – não existem antídotos. É a facilidade sem
prática as atividades e o fruto. constrangimento e sem rigidez”.
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 7
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

4. O Fruto da prática consistente em unir ação significa; e a terceira é de decidir praticar sem
Todos os frutos estão ligados aos três corpos que práticas.
são nascidos deles mesmos porque tudo o que vem ou
aparece, bom ou mau, não tem importância. Isso porque o a. Afastar todas as faltas.
pensamento provém espontaneamente do estado natural e Como introdução geral, alguns poderiam desafiar a
é a isso que chamamos: o “Fruto naturalmente nascido dos visão perguntando: se, como dizem, todas coisas são
Três Corpos”. naturalmente livres, quer compreendamos ou não, e que o
Segundo o mesmo texto: “O Dharmakaya que samsara e o nirvana sejam naturalmente liberados de
aparece dele mesmo é como o céu. O Sambhogakaya todos os tempos, passado, presente e futuro, então,
aparece de si mesmo como os quatro elementos que são a seguramente, não temos necessidade de fazer o que quer
terra, a água, o fogo, e os ventos. O Nirmanakaya aparece que seja. Parece que somos detentores da visão errônea
de si mesmo como os seis destinos dos seres. As segundo a qual não há nada à fazer.
sabedorias se manifestam todas por si mesmas como os 5 Em resposta, dizemos que se decidimos entrar na
[ou 6] venenos das emoções. Todas as coisas aparecem grande ação sem ação, então, há doze métodos de ação.
naturalmente da consciência clara e todas estão unidas à Se fizermos mais, ou fizermos muito erraremos no samsara
consciência clara. Assim, não há nada que reste à ainda mais profundamente40.
modificar ou à unir quando praticamos”. Uma citação do Trödel Namkhadang Nyampai Gyu
Agora, poderíamos nos perguntar: Se tudo se (spros bral nam mkha’ dang mnyam pa’i rgyud) desenvolve
manifesta de si-mesmo e retorna ao estado natural, então esse ponto: “ Se nos entregamos à muitas atividades, isso
o que é esse samsara no qual nós vivemos? Acreditamos significa que seguimos um caminho errôneo. Por isso,
que existe a verdade última e que não há permaneçamos descontraídos e sem distração no “caminho
obscurecimentos? O que dizemos é contraditório! que libera naturalmente sem ação”.
A visão do dzogchen replica que não há nada de Mas então, alguns podem dizer: não é essa ainda a
contraditório neste enunciado porque, para o praticante visão errônea segundo a qual não temos nada à fazer
dzogchen, tudo é nascido de si-mesmo. No estado natural, porque tudo está liberado em si?
não há nenhum antídoto à aplicar porque não há Respondemos então: sim, esse é o caso, mas isso
negatividades – não há nada à modificar. Isso é não é nem errôneo nem contraditório. Não tenho
demonstrado na situação seguinte do Melong Gudu Öselgyi necessidade de fazer mais. No presente, todas as visões
Gyu (me long dgu ‘dus ‘od gsal gyi rgyud): “A visão é como são úteis e sem erro. Na verdade, desde que
um raio que vem do céu – ninguém pode para-lo. A prática permaneçamos no estado natural, cada ação é como uma
da meditação é como um sol brilhante no céu – toda prática de acumulação de méritos.
obscuridade desaparece naturalmente. Quando se produz
uma avalanche na montanha, ela arrasta todas as pedras, b. A Decisão sem Ação.
as árvores, os arbustos até em baixo no vale – é o efeito A segunda divisão explica em detalhe a natureza
da atividade. Quando encontramos a jóia que realiza todos sem ação e compreende três partes. Inicialmente, existem
os desejos, os desejos são completamente atendidos – é o as quatro realizações, depois as três capacidades de
Fruto”. compreensão e finalmente, a decisão sem ação, que
comporta cinco pontos41.
O terceiro método: a determinação.
A descrição deste método se efetua igualmente em As quatro realizações.
quatro seções – a visão, a meditação, a ação e o fruto – 1. Ser capaz de fazer o oposto daquilo que
ligados à visão normal que não tem base. Tudo é pensamos ser a boa ação42.
simplesmente deixado tal qual – é a determinação. 2. Quando obtemos a capacidade de agir sem
nenhum conceito de bem ou de mal, pouco nos
importa de ser criticado ou não: todas as coisas
O RESUMO EM CONCLUSÃO. são iguais.
3. A pessoa que atinge esta capacidade não é
A conclusão é que tudo é consciência clara e mais de maneira nenhuma envolvida nas ações
vacuidade. É o ponto único: tudo está aí. Não há nada à ou nos pensamentos.
fazer com o corpo, a fala e a mente. Esta visão transcende 4. Se uma pessoa que atingiu esta capacidade é
todo limite. Todo o samsara e o nirvana se liberam sem criticada, ela não modifica seu ponto de vista e
nada fazer. É a união natural que é não nascida e sem fim, não será enganada pelos outros.
sem nada fazer – nós a deixamos simplesmente tal qual. É
então isso que é preciso entender para ligar com os cinco As três capacidades de compreensão.
pontos39. 1. Bem entendido, os praticantes que atingiram esta
capacidade serão clarividentes. Mas eles não
atribuirão importância à esses sinais, mesmo se o
A DECISÃO DE ENTRAR NA GRANDE NÃO-AÇÃO. Dharmakaya apareça muito claramente diante deles.
Eles compreenderam completamente que toda coisa
As decisões sem agir são explicadas em três partes: faz parte de sua natureza, e porisso eles não estão
a primeira é geralmente empregada para afastar toda nem felizes, nem aflitos por ver isso. Esse é o
falta; a segunda consiste em explicar o que a decisão sem primeiro sinal que ninguém poderá distrair o
praticante de sua natureza.
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 8
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

2. E, mesmo se as doenças ou infelicidades se sabedoria. Então, devemos decidir entrar no “o Caminho do


produzam, os praticantes não se preocupam mais. Sabor Único”.
Se o rei do inferno vem e verte metal fundido em Segundo uma citação do Desheg Gongpa Dupai Gyu
sua boca, se os demônios vem carregá-lo para 45
: “O que quer que façam nossos pensamentos, surgindo
longe, sabemos que essas aparências não são ou se deslocando, o estado natural e a consciência clara
separadas de sua própria natureza. Assim, ninguém não foram jamais prejudicados por eles. Tudo existe
pode apavorar o praticante. É o sinal que ele não espontaneamente. Esse é o grande fruto da “Liberação
sucumbirá mais. Naturalmente Pura”, ou ainda “a Sabedoria da Pura
3. Bem entendido, os praticantes podem Claridade”. Todas as visões, em sua diversidade, são como
espontaneamente dar muitos ensinamentos sem os reflexos do estado natural”.
estudar, pois os ensinamentos lhes serão 4. Todas as existências sejam do samsara ou do
espontaneamente conhecidos devido ao fato mesmo nirvana são reflexos provenientes do estado natural. Elas
de sua compreensão. Assim, eles terão uma boa serão liberadas no estado natural. No momento mesmo em
reputação e adquirirão poderes e conhecimentos que elas aparecem, estão já prontas para serem liberadas,
para vencer os detratores. Eles não atribuirão não há nenhuma necessidade de tentar libera-las.
nenhuma importância as coisas – mesmo se eles Decidamos, pois entrar na “Liberação Natural”.
vêm o Sambhogakaya ou Tonpa Sherab ensinado Em uma passagem do décimo capítulo do texto
sob sua sombrinha – eles não estarão nunca precedente, é dito: “Eis o corte automático dos erros e dos
separados de sua natureza. Eles sabem que nada é obscurecimentos. Desde a origem, ela está além das visões
diferente de sua natureza e não seguem, pois o do nihilismo e do eternalismo. Aqui, nada é dito sobre esse
bem ou o mal. Isso é o sinal da aptidão à prática – assunto, porque todas são liberadas naturalmente na “pura
os praticantes não serão entravados, nem se e grande Liberação Natural”.
desviarão de sua natureza. 5. Do ponto de vista do estado natural, quer
compreendamos ou não esta consciência clara natural isso
Os praticantes não têm esperança de atingir o não a afeta. Ela está completamente além das limitações
nirvana nem temem tombar no samsara. Não desejam do samsara e do nirvana 46. Se não realizarmos o estado
fazer boas coisas44. Os praticantes que têm essa natural, ele não se torna pior; pois sua natureza está além
capacidade não duvidam mais. Mas, se um praticante está do samsara; ele está liberado além das limitações do
ainda cheio de dúvidas, se perguntando se tratar da samsara. Se tentarmos buscar ou olhar, não
maneira correta ou não, ou se ele obteve o sinal correto, compreendemos senão uma pequena parte. Nesta
então, esta pessoa ainda não atingiu esta capacidade e natureza, não há lados que possamos agarrar; assim, ela é
continuará a circular no samsara. “liberada das limitações dos oito veículos”. O que quer que
façamos, tudo está naturalmente auto-liberado. Não há
A decisão sem ação. nada a buscar, nada a encontrar. E não há alguma ação
Chegamos agora à terceira parte, a decisão sem particular. Podemos viver agora sem preocupações porque
ação, que compreende cinco subdivisões: nós realizamos a natureza espaçosa de nossa mente.

1. A atividade não pode trazer a Budheidade porque c. Decidir praticar sem praticar.
todas as atividades são materiais e pois impermanentes. A Quando compreendemos plenamente o estado
Natureza e a verdade última são como o céu; nenhuma natural, então todas as dúvidas desaparecem.
atividade pode levar à vacuidade. Assim, decidamos Poderíamos nos perguntar: então, se todo mundo
simplesmente entrar na “Grande Natureza Sem Ação”. age sem ação, as práticas dos oito veículos inferiores
Segundo uma citação do Trödel Namkhadang devem ser inúteis?
Nyempai Gyu: “Qualquer um que entre na “Natureza Sem O dzogchen responde não sigam jamais esses
Ação”, quer este ser seja um deus, um humano ou veículos, mas todas as suas realizações, tais como o
qualquer outro dos seis reinos ao qual pertençam, a Sambhogakaya, o Dharmakaya ou as purificações do
natureza da mente estará sempre purificada conhecimento, estão naturalmente presentes na
espontaneamente na verdade natural. E quem quer que Budheidade do dzogchen. A razão é que todas as coisas
queira entrar nesta natureza não deverá realizar nenhuma existentes são como ilusões provenientes do estado
espécie de ação – somente permanecer na verdade natural. Daí, não há nenhuma visão errônea, pois que tudo
última”. está liberado no estado natural47.
2. Não há obstruções ou negatividades no estado Segundo uma citação do mesmo texto: “As práticas
natural. Desde a origem, tudo está liberado na dimensão dos oito veículos são ocultadas como as estrelas o são pelo
da “a Grande Felicidade da Claridade em si”. Então, não é sol levante. No dzogchen, não há necessidade de plano
necessário aplicar antídotos. para realizar a Budheidade; tudo acontece pelo fato de
Segundo uma citação do Kunzang Dewai Lung: “Os permanecer no estado natural – por existir
mais altos mandalas dos Budhas até o sol, incluindo todas espontaneamente48”.
as coisas existentes exteriores e interiores, nada está além Assim, na natureza da visão do dzogchen, não há
da Grande Felicidade. Então, nada está afastado da nada a fazer com a ação. Dia e noite, permaneçamos no
Budheidade”. estado natural – sem nenhuma ação, sem planos, sem
3. Tudo o que surge ou aparece são reflexos da pensamentos, sem expectativas, sem recitações, sem
sabedoria, como ornamentos do estado natural e visualizações – mesmo durante o sono. O praticante
naturalmente liberados. Todas as visões aparecem como
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 9
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

permanece durante dias, meses, e anos no estado natural.


As quatro ações são processadas sem distrações. NOTAS:
O praticante é a contemplação. Tudo é “A Ação sem
Entrave”. Qualquer que seja a experiência do praticante,
tudo o que surge é uma experiência para a prática – 5. É necessário praticar dessa maneira as
alegria, felicidade, não importa o que. Ele não dá nenhuma preliminares à prática principal; a menção ao tempo
importância ao fato de que os pensamentos se acotovelam necessário é pois séria e deliberada. Saibam que é muito
– ele não tem esperança, nem caminho – pois os importante de realizar um tal período de preparação e que
pensamentos são deixados tais quais. Eis a maneira de não é razoável por alguns instantes apenas. Então,
praticar. Existem as vezes intensas emoções, como a raiva, preparemo-nos tanto quanto pudermos.
a tristeza ou outras mas o praticante não se preocupa Com exceção de comer e dormir, esta prática deveria ser
mais. Elas são deixadas como elas são. Tal é o realizada todo dia sem interrupção. Se partirmos para
ensinamento. praticar num vale deserto ou numa gruta, que outra coisa
Quer o praticante colecione méritos ou pecados não há para fazer? É uma prática séria, não é como o ngöndro
tem importância, as coisas são deixadas simplesmente tais (preliminares comuns). É uma prática que se destina à um
quais. Próximo do estado natural, o praticante não deixa indivíduo completamente desgostoso do samsara. Senão, é
nenhum traço atrás49. Não há uma base que conserva as muito difícil de abandonar tudo.
ações passadas. Não é absolutamente fundamental ir para um lugar deserto
É a prática do dzogchenpa. O fato que não seja para fazer essa prática. Se não pudermos, deveríamos ao
necessário tentar antídotos ou se livrar das negatividades menos manter sessões regulares fazendo seriamente de
continua o fruto e não procurar antídotos constitui o maneira a ter resultados. O ritmo da vida ocidental deixa
engajamento. Tudo deve ser deixado tal qual50. Não é muito tempo livre que podemos utilizar para praticar.
questão de ter compreendido ou de não ter compreendido Então, é às vezes talvez mesmo melhor que ser monge,
– é o sinal do conhecimento do praticante. porque um monge tem muitas obrigações e rituais a
Uma outra crítica poderia se exprimir desta celebrar.
maneira: dizemos que a visão do dzogchen não é limitada; A visualização dos seis reinos é um meio, mas há também
entretanto, agora, dizemos que a não-ação é nossa visão. a realização do samsara enquanto tal. Esta é feita de
Não é contraditório? maneira exclusiva. Se tentarmos praticar tudo continuando
A resposta a isso repousa sobre o não-agir. Na visão nossas atividades mundanas, é muito difícil de não nos
do dzogchen esse termo significa não-ação mas, do ponto distrairmos. E, se nós não fizermos o ngöndro (quer dizer
de vista do praticante, isso não é uma escolha. - não essas preliminares) seriamente, então as outras práticas
fazemos senão o que se produz na continuidade do estado parecerão somente lazeres.
natural. Para explicar, um termo deve utilizado. Quer se 6. Mesmo se os humanos, olhando a água vêem
trate de olhar ou de não olhar, de agir ou de não agir, tudo água, os seres dos outros seres da existência olham a
está liberado em si; então, não há visão falsa nem visão mesma coisa e a percebem diferentemente. Quando os
correta – não lhes prestamos nenhuma importância51. animais olham a água, eles não vêem senão alguma coisa
para beber, eles não conhecem a água. Os seres do inferno
a percebem como fogo ou como gelo; os pretas como
alguma coisa salgada. O que vemos é sempre condicionado
por nossas ações precedentes. Não vemos senão o nosso
próprio carma; o que podemos verificar por um exemplo
simples segundo o qual se duas ou três pessoas vão juntas
ver qualquer coisa, elas vêem e sentem todas uma
realidade diferente. Isso nos dá uma idéia do que são as
visões cármicas. Tomemos a mente individual, por
exemplo. Uma pessoa pode pensar de uma outra que ela
é boa, ainda que outras a considerem má; uma mãe pode
ver um homem como seu filho, mas sua mulher o vê como
seu marido. Tudo isso é criado pela mente individual – as
pessoas vêem as outras através de seus pré-julgamentos.
Tudo é criado. Compreender isso permite desenvolver-nos
de maneira positiva ou negativa. Mas somos prisioneiros de
nossa ignorância, porque sempre nos enganamos. Se as
coisas existem como nossa mente ávida os vê, enquanto
objetos que são reais e fixos, então nada poderá mudar
nesse mundo. Entretanto, nada é fixo. Eis como estamos
iludidos. O objetivo desta prática é de quebrar esta
percepção ilusória.
7. Shardza compôs suas próprias coleções de textos
que são descritas no texto principal. Elas são originárias do
Zhang Zhung Nyengyu (Zhang Zhung snyan rgyud) que
foram publicadas em Delhi. É preferível realizar essas
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 10
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

práticas interiores ao mesmo tempo em que as práticas que é refletido na mente não existe independentemente; o
exteriores durante a mesma sessão. interior e o exterior são, os dois, reflexos espontâneos no
8. É preferível empregar esses três tipos da estado natural.
prática durante a mesma sessão, uma após outra. Essa produção é uma qualidade natural do estado
9. As três pontas do dordje são formadas primordial, mas isso não significa que tais reflexos sejam
pelos cotovelos e as mãos juntas. sólidos, independentes e com existência inerente. Eles
10. Quer dizer sentar-se com as pernas provêm do estado natural e voltam à ele; é nossa
cruzadas, o dorso ereto, o pescoço ligeiramente inclinado, ignorância que as toma como independentes. Também, a
os olhos olhando o peito, e a boca ligeiramente aberta. filosofia Cittamatra é seguidamente confundida com o
11. Esta parte da prática preliminar realiza-se dzogchen. No Cittamatra, é dito que os mundos objetivos e
em sessões – de início, uma sessão para o corpo, depois subjetivos se manifestam, todos, a partir de causas
para a palavra e, finalmente, para a mente, tudo de uma cármicas. No dzogchen, entretanto, o mundo existe
só vez. Como adiante, isso é um processo intenso; nós espontaneamente; ele é condicionado pelo carma, mas sua
podemos escapar às vezes, mas pratiquemos a maior parte fonte é o estado natutral.
do tempo. A filosofia Madhyamika não aceita totalmente o conceito de
12. Nós vemos todas as coisas como objetos kunzhi, ela não aceita senão os seis tipos de consciência
independentes; não vemos que elas são todas reflexos do (os sentidos e a mente) de preferência às oito do
estado natural. O que vemos consiste em ilusões que, de Cittamatra e do dzogchen. Nesses sistemas, após os seis
fato, não têm existência independente. Elas são como sentidos, o sétimo é nyonnyi (nyon yid, emoções) e o
visões que aparecem nos sonhos. Porque, se essas visões oitavo kunzhi. Uma analogia é às vezes utilizada: a mente é
fossem todas independentes e se sustentassem por si o marido e nyonyi é a mulher; kunzhi é o mercado e os
mesmas, poderíamos ser capazes de verificar isso através sentidos conduzem as mercadorias que vem do exterior e
de um processo de investigação. são estocadas no mercado.
Tomemos uma mesa, por exemplo. Se perguntarmos se a Assim, o dzogchen possui muitos aspectos em comum com
mesa pode ser encontrada sobre o tampo, sobre os lados, o Cittamatra, e o sujeito e o objeto são inseparáveis nos
nos pés ou na base, não poderemos encontra-la. Se uma dois sistemas. De maneira crucial, entretanto, no dzogchen
coisa fosse independente e se bastasse a si mesma (quer , o estado natural é puro desde o início e permanece
dizer tivesse uma existência inerente), sua realidade sempre presente. Não há nada à purificar e nada à atingir.
permaneceria após uma tal análise. 15. A crítica de Tsongkhapa sobre o
É um método de análise muito utilizado no budhismo; ver dzogchen era baseada sobre a noção que os dzogchenpas
Jeffrey Hopkins, Meditation on Emptiness (Londres; não fazem mais que questionar à propósito da natureza da
Wisdom Books, 1983). Verificar o objeto desta maneira é mente e encontram que ela não tem nem cor, tamanho,
um procedimento simples e sem grande dificuldade; o nem matéria. É essa segundo ele, a visão do dzogchen.
problema reside na reconstrução da percepção. Mas esta crítica é errônea porque esta é a visão das
13. A filosofia pode ser útil para introduzir a escolas Vipassana. Como mencionamos na nota
visão dzogchen. Ainda que não possamos explicar a precedente, o dzogchen sublinha a diferença entre mente e
natureza da mente, podemos apontar para o lugar onde a natureza da mente. Mas natureza da mente e nossa
ela pode ser achada – como uma criança que mostra a lua natureza da mente são diferentes. Há tantas naturezas da
com o dedo. Habitualmente, os dzogchenpas não discutem mente como há seres sensíveis. Quando alguém revela seu
a visão em uma ótica lógica ou analítica, porque eles não corpo de arco-íris, todos os outros permanecem
estao treinados à fazer isso. Esse não é o caso na tradição inalterados. Do mesmo modo que todos os seres sensíveis
Bön, onde uma escola filosófica única no dzogchen se têm corpos diferentes, eles também têm mentes
desenvolveu. Qualquer que seja o caso, o mínimo que um diferentes. Mas a qualidade de todas as suas mentes é a
dzogchenpa pode fazer é explicar isso que ele ou ela está a mesma; a mente é totalmente individual, mas suas
caminho de fazer e de pensar. qualidades são comuns a todos. Não podemos estudar
14. Esta utilização do termo mente não tem nossa própria natureza mesma se as qualidades que nós
o sentido de consciência; é a mente enquanto “natureza da descobrimos são as mesmas para todos os seres.
mente”. Isso não é como a visão do Cittamatra (a visão da 16. A existência, a não-existência, a
mente única). Esta referência ao Cittamatra concerne a conjunção ou a ausência dos dois. [ E, ~E, E ^ ~E, ~E ^
consciência reservatório ou Kunzhi (kun gzhi); nesta visão, ~ ~E ]
todas as marcas cármicas são conservadas, e, se nós a 17. Isso significa que o realizamos sem nos
purificarmos, atingiremos a budheidade. Mesmo se esse agarrar. É um método de instrução – um método
termo é utilizado no dzogchen, ele corresponde ao estado preliminar, não a visão final do dzogchen.
natural, a Base, e ele não tem conceito de purificação. A 18. Não devemos ir além desse ponto senão
Base é primordialmente pura – kadak (ka dag) – pura quando a realização descrita for atingida – sem verificação,
desde o início. Assim, esta prática não é uma purificação, objeto ou o menor apego. Esta realização é a claridade
mas um reconhecimento deste estado. brilhante e a vacuidade unidas. Não devemos mesmo nos
Tomemos o mundo exterior, por exemplo. No Cittamatra, apegar a unificação em si. É unicamente nesse estágio que
esse mundo é explicado como as duas metades de um ovo as práticas que seguem podem trazer seus frutos. Deve
duro cortado ao meio, de modo que o lado objeto e o lado haver uma presença clara sem apego; é o fruto das
sujeito d’uma existência individual coincidem. Mas o práticas preliminares.
dzogchen diz que tudo é envolvido pelo estado natural, 19. Quando recebemos a iniciação, é para
que tem o poder de produzir e de receber os reflexos. O nos mostrar o estado natural. Posteriormente, podemos
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Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

verificar se recebemos algo vendo se compreendemos palavras. Não poderemos dizer que é vazio porque isso não
então, perfeitamente, o estado natural. Entretanto, se é apreensível – se dissermos que é vazio, tentamos entrar
realizarmos as práticas preliminares, veremos o estado no estado enquanto agarramos o conceito de vazio. O fato
natural. Isso constitui então em si mesmo a iniciação. real está além dos conceitos. Isso faz referência ao sistema
20. Esse texto pertence à terceira categoria: do Mahamudra. O Semde é o aspecto do dzogchen que
se ele é ensinado corretamente, as más interpretações sublinha muito a vacuidade e então, o autor diz, aqui, que
desaparecem automaticamente e os exemplos serão dados ele é similar ao Mahamudra. O Mahamudra acentua sobre
no texto que segue. o apreender o vazio, mas aqui, a natureza é deixada tal
21. Essas visões devem ser abandonadas. A qual, sem tentar agir sobre ela, sem meditar, visualizar ou
visão do dzogchen está além dessas Vias; ela é o que há contemplar.
de melhor e deve ser praticada. Mas esta visão é ela O Sende, o Longde, o Mengagde, são todos aspectos do
mesma errônea porque, ao pensar que as outras vias são dzogcehn porque eles reconhecem a verdade final como a
negativas e que o dzogchen é a melhor visão, conservamos união da consciência clara e da vacuidade. O Semde
a dualidade – o lado negativo e o lado positivo: ora, o sublinha mais o aspecto vacuidade e o Longde coloca mais
dzogchen não tem extremidades. Se escolhermos sempre o acento sobre o aspecto consciência clara. Mas os dois
um lado não encontraremos a visão dzogchen. estão unidos, o que é a essência da via do dzogchen (a
22. Se permanecermos no estado liberado, união da vacuidade e da consciência clara). O Mahamudra
não teremos necessidade de guardar ou de rejeitar o que é a união da vacuidade e da felicidade e, assim como
quer que seja. explicou Tsongkhapa muito claramente, a vacuidade à qual
23. Particularmente os ensinamentos do ele faz referencia é a visão do Madhyamika; essa não é a
Bardo e do Phowa, que são dados no livro quatro abaixo. visão da vacuidade a qual nos referimos no dzogchen.
24. Nessa obra Shardza reuniu numerosas Muitas escolas usam termos e expressões que são muito
citações provenientes de fontes diferentes sobre Trekchö, semelhantes àquelas do dzogchem e isso tem ocasionado
Thögal, os retiros na escuridão, etc. algumas confusões quando esta denominação tem sido
25. A budheidade é então naturalmente aplicada a outros sistemas. Por exemplo, Sakya Pandita é
realizada. Durante esta via, realizaremos a Base e nos muito explicito ao condenar o dzogchen como não sendo
sentiremos em segurança. Vivemos com a confiança d’um completamente uma visão budista.
tulku, que não teme mais o samsara. Todos os textos dzogchen insistem particularmente sobre a
26. O livro da coleção das experiências dos necessidade de colocar de lado todos as outras visões afim
praticantes chamado geralmente o Nyamgyu. de tornar clara o significado dos termos no contexto do
27. “Confrontadas” significa aqui “mostradas dzogchen.
diretamente”. No início, devemos conhecer as outras visões, mas elas
28. Se buscarmos agarrar a vacuidade, isso devem ser descartadas em razão do fato de que o
não é bom, se buscarmos agarrar a consciencia clara, não dzogchen é o melhor e o mais elevado dos veículos.
é correto e, mesmo se buscarmos agarrar a unificação, Numerosos professores dzogchen de hoje ensinam que as
também não é bom. visões do Mahamudra, do Madhyamika e do Dzogchen não
29. Como no sistema do Cittamatra (Mente são diferentes. Mas não encontramos isso completamente
ùnica). nos textos.
30. Isso se refere à visão do Cittamatra 33. Trugel Yungdrung é o autor do A-tri em Quinze
concernente a visão dos elementos. Mesmo se as coisas sessões, que foi escrito no séc. XIII, Shardza critica esse
pareçam se produzir, quando estamos despertos, como se texto porque é principalmente do Semde.
elas fossem permanentes e reais alterações do mundo, 34. Esse terceiro tipo de consciência clara está conosco,
elas não são senão marcas cármicas; nada é produzido no quer saibamos ou não. Mas os seres comuns não estão
nível absoluto. conscientes deste aspecto de sua natureza. Isso pode ser
Toda visão é como um sonho. Num sonho, uma visão é melhor explicado por uma pequena historia. Era uma vez
simplesmente uma visão aparecendo a mente, mesmo se o uma velha que tinha um monte de ouro espalhado pelo
que aparece pareça uma matéria tangível ao sonhador. É chão de sua cabana. Um dia, um príncipe chegou, viu o
exatamente a mesma coisa quando estamos acordados. ouro e perguntou a velha: “Porque estás assim tão pobre?”
Todas as aparências provêm das marcas cármicas – elas a velha respondeu que ela era simplesmente uma pobre
chegam todas à mente. Fora da mente, nada mais existe. caseira. O príncipe lhe fez notar que um tesouro estava ali,
A diferença entre o sonho e a vigília é simplesmente de perto dela. Até aquele dia, a velha não tinha reconhecido a
ordem temporal – é tudo. riqueza que era sua. Foi somente quando o príncipe (o
31. A capacidade de refletir (rtsal) é uma propriedade ensinamento) apareceu que a velha (ser sensível) viu a
do oceano; pois, os reflexos (rol pa) e a energia estão riqueza (o estado natural). Seguramente, o ouro não foi
unificadas na sua natureza (gzhi). Às vezes, somente dois em nada afetado pelo fato de que a velha não o tenha
termos são utilizados: gzhi, a Base, e rtsal, os reflexos, reconhecido ou não.
fazendo respectivamente referencia à capacidade de 35. A postura em sete pontos consiste em sentar-se
manifestar os reflexos (o aspecto sujeito) e os reflexos em com as pernas cruzadas, as mãos uma sobre a outra,
si mesmos (o aspecto objeto). coluna reta, o pescoço ligeiramente inclinado, os olhos
32. Não podemos dizer que o estado natural é vazio ou abertos, a boca ligeiramente aberta, a língua contra o
possui reflexos ou o que quer que seja. Como a água que é palato.
também úmida, esses dois aspectos não são mais que um 36. Drenpa Namkha era um mahasidha que foi pai de
– nenhum termo capta esta realidade, que está além das Guru Padmasambhava segundo a historia Bön. Era um
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Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

grande reformador, assim como autor de numerosos 44. No passado, quando as outras escolas budistas
comentários. Rigpa Rangshar é o nome secreto de Shardza ouviram esses ensinamentos, elas ficaram coléricas e
Tashi Gyaltsen: ele é conhecido também com o nome de disseram que o dzogchen não era absolutamente budismo.
Drime Nyingpo (dri med snying po). Mas o dzogchen não é como a visão das filosofias
37. Quando estamos na consciência clara e os materialistas indianas e ocidentais nas quais as ações da
pensamentos surgem, então eles se liberam por si vida não têm nenhuma conseqüência última porque o
mesmos. Se não estamos na consciência clara, então são corpo e a mente têm a mesma natureza - a visão que
os pensamentos que nos guiam. mostra que eles nasceram ao mesmo tempo – e onde
38. As quatro atividades são: comer, dormir, sentar-se, então importa pouco fazer boas ou más ações porque elas
defecar – em todos os momentos, devemos ficar no estado acabarão as duas em cinzas e que nada subsistirá. O
natural! <Só se forem os monjes e lamas porque os seres estado natural não é completamente material – depois de
comuns movem-se, trabalham, copulam, estudam, etc...> tudo, como dissemos continuamente nesse texto, onde
N.T. poderemos, pois encontra-lo?
39. Os cinco pontos são: 1) parar, 2) reunir em um 45. Esse texto foi perdido infelizmente na destruição
ponto único, 3) religar não fazendo nada, 4) liberar todo o maciça que se seguiu a invasão chinesa no Tibet.
samsara e o nirvana, 5) tudo está unido sem fim no estado 46. Isso significa que não há extremos e que está além
naturalmente unido. dos conceitos. A natureza do dzogchen não tem início nem
40. esse doze métodos estão descritos nas seções que fim. Entretanto do ponto de vista do indivíduo, o nirvana
seguem, como as quatro realizações, as três capacidades pode ser visto como tendo um começo, porque o praticante
de compreensão, e os cinco pontos da decisão sem ação. deve tornar-se um Budha. Mas, neste ensinamento, todas
41. Essas descrições convém à um praticante que tem a as coisas são iguais – elas estão plenamente despertas.
capacidade de realizar o estado de Budha. 47. Porque criticam está visão? Porque essas escolas
42. Se não compreendermos completamente o estado todas, mesmo as escolas tântricas, dependem da
natural, então todas as práticas como recitar mantras etc. visualização, d’uma postura do corpo, da respiração etc.
são vistas como esforços necessários. Mas, quando 48. Durante uma corrida de cavalos, o cavalo não tem
compreendemos totalmente este estado, então nenhuma tempo de olhar o campo nem colher flores ou ervas; da
dessas ações continuará a ter importância. Assim, seremos mesma maneira, quando praticamos o estado natural,
capazes de fazer as coisas de maneira oposta. Uma todos os pensamentos e atividades são naturalmente
observação similar foi feita por Longchenpa: “Quando não liberadas no estado natural sem planos nem ações.
compreendemos o estado natural, devemos tentar 49. Quando o praticante não está distraído, mas
acumular méritos, praticar bodhichita, a confissão etc.” permanece continuamente no estado natural, é como se
Mas a oposição da qual falamos não é uma oposição estivesse no espaço – o que quer que ele faça, nenhum
significando que adotemos as visões das escolas heréticas traço subsiste. Como temos dito, se pintamos o espaço de
ou mesmo aquelas de um oponente. Ela quer dizer que branco ou de negro, nada permanece. A base que conserva
uma vez que permaneçamos continuamente no estado todos os traços está perdida; ela é vazia.
natural, não podemos estar errados. Então, quer Bem entendido, isso não se aplica senão a um praticante
recitemos, quer pratiquemos visualização ou o que quer que realiza a contemplação contínua. Para as outras
que seja, isso não tem importância. É como estar no pessoas que continuam a se prender em seus traços
espaço. Quer pintemos de branco ou de negro sobre o cármicos, isso não se aplica. Quando Lopön foi ao Nepal
espaço, isso não deixará nenhum traço. em 1944 em Swayabhu, ele encontrou tibetanos com os
Quando começarmos a entender esses ensinamentos, isso quais viajou durante alguns dias. Um deles era um monge
pode nos conduzir ao erro, porque eles não são válidos ancião, que tinha uma mulher e filhos, e carregava uma
senão para aqueles que podem permanecer estáveis e não enorme carga de bagagens sobre suas costas. Quando era
distraídos no estado natural. Uma tal liberdade é o monge, havia encontrado Dega Rinpoche, um célebre
resultado. dzogchenpa, na montanha. Em seguida, ele havia tirado
43. Se não fizermos nada, isso não tem importância do seu manto porque ele se sentia muito limitado pelos votos
ponto de vista da vacuidade; certamente, é diferente do do Vinaya. Mas Lopön lhe mostrou que ele estva
ponto de vista do praticante. Essas distinções não são igualmente limitado por seus filhos. O homem respondeu
diferentes de sua fonte, pois não há duas verdades; o que no dzogchen, é dito que o que fazemos não tem
praticante não é afinal a fonte? Há somente uma fonte, importância – então ele era livre de fazer o que quer que
mas para aquele que agarra, existe um ponto de vista seja e que estava bem assim. Mas essa é uma
limitado. incompreensão completa do dzogchen, o ensinamento não
Muitos ensinamentos parecem muito similares ao se aplica senão quando estamos totalmente absorvidos no
dzogchen, mas todos os ensinamentos estão ligados pelos estado natural. Isso depende de nossa prática, e, então,
pensamentos. Se nos voltamos para sua origem há sempre somente nós mesmos podemos julgar.
preceitos dizendo que essa é a boa maneira e essa não é a Então, é um paradoxo - que os iniciantes tenham que
boa maneira. Uma vez que nos estabelecemos sobre essas empreender ações mesmo se a visão última do dzogchen
bases, estamos ligados aos pensamentos. Mas o dzogchen não comporta ação. O iniciante deve ter uma grande
não tem nenhuma base; isso é difícil de compreender determinação – uma decisão – de outro modo terá dúvidas
porque tudo o que o dzogchen diz se dirige a um e hesitações. Todos os métodos preparatórios nos ajudam
praticante que tenha aptidões. Esta diferença de visão é a realizar o estado natural, mas uma vez que este é visto e
muito importante de compreender. compreendido, a situação, desde então é diferente. O
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 13
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

dzogchenpa experimentado não terá necessidade de partam e vivam como uma criança”. Outros dizem:
práticas preparatórias. “Devemos viver o oposto dos ensinamentos”; outros
50 Isso significa sem hesitações nem meditação, e é dizem: “Devemos evitar os objetos que causam o ódio e o
por isso que muitos mestres budistas criticaram o desejo e não esperemos ter uma boa reputação!”. Outros
dzogchen, é como ser inconsciente. Está longe de ser o dizem: “Mesmo se as pessoas disserem coisas boas ou más
caso, porque esta consciência clara é muito brilhante e sobre nós, não devemos lhes dar atenção”. Esses são ditos
muito clara. Mas os comentadores indianos do de mestres dzogchen.
Prajnaparamita, tal como Nagarjuna, não compreendem “Mas, segundo esse sistema, não aceitamos nenhum
esta consciência clara que está presente quando os ensinamento deles, não pensamos que esses ensinamentos
pensamentos cessam [se torna explicita]. Eles reconhecem sejam bons ou maus - não lhes damos importância.
alguma coisa semelhante, o conhecimento direto sem Porque? Porque estamos completamente de fora do
ilusão de shunyata (vacuidade). Este conhecimento é julgamento dessas instruções. Não há razão para
inseparável de seu objeto e desprovido de ilusão; mas não argumentar ou para julgar: não lhe damos nenhuma
é a mesma coisa. importância. Como o elefante: se ele tem sede, ninguém o
Isso poderia parecer idêntico porque aqui o objeto pode impedir de chegar à água! Todas as diferentes visões
é shunyata e o sujeito é o conhecimento direto; mas a estão aprisionadas pelo pensamento e, pois pelo agarrar”.
diferença é que este conhecimento é fruto da prática do Esse processo tem por objetivo fazer surgir às dúvidas para
pensamento. No início, praticamos, depois temos a esclarecê-las – como lavar as manchas de uma vestimenta
experiência. Procuramos esse desenvolvimento até que os de maneira que possamos ver claramente o tecido.
pensamentos diminuem gradualmente e que o objeto se
torna mais e mais claro. Finalmente o objeto é percebido
diretamente; então é o resultado do pensamento. Mesmo III
que haja um abismo da progressão até a etapa final do
conhecimento direto, a ligação entre o pensamento e o A PRÁTICA DO THÖGAL
conhecimento direto não pode ser refutada. Se não há
nenhuma ligação entre os dois, então ninguém poderia A sessão de Thögal comporta duas partes: a
uni-los. Mas, do ponto de vista do dzogchen, a natureza primeira consiste em uma explicação da superioridade de
está já unida; ela não está ligada aos pensamentos porque Thögal sobre o Trekchöd; a segunda é o ensinamento
ela já está presente. Ela sempre esteve presente. Não é propriamente dito da Via do Thögal.
uma invenção. Tudo o que está em nós, podemos realizar.
A purificação é, entretanto necessária no dzogchen, esta é
a razão das práticas preliminares. É um grande erro tentar SUPERIORIDADE DO THÖGAL SOBRE O TREKCHÖD
aplicar esses ensinamentos sem esse período de
preparação. Devemos sempre compreender a intenção de Em primeiro lugar, no Yetri (ye khri) são indicados
um comentário – quer se trate do estado natural ou do dez pontos que distinguem Trekchöd do Thögal; vejamos
indivíduo. De outro modo, caímos no niilismo. um resumo em sete pontos52.
51 Na base filosófica do dzogchen há numerosas visões
errôneas que são descritas no Namkha Truldzö, um texto (1) As maneiras de purificar o apego.
maior da filosofia do dzogchen ensinada em Dolanji: “A No Trekchöd, absolutamente tudo, as montanhas,
visão segundo a qual devemos ou não devemos meditar; a os rochedos, as regiões... devem ser vistos como uma
visão que diz que não há fonte de existência ou que o ilusão. Senão, este ensinamento não pode liberar
samsara não tem fim; que o dzogchen deve ser aprendido diretamente. Thögal depende das cinco luzes graças as
afim de conhece-lo ou que não há ligação com a mente; quais todos os objetos da existência são integralmente
que não há nada à fazer com o que quer que seja de liberados em luz. Segundo o Yetri: “Tudo está
outro, ou que a visão do dzogchen não é certa, que tudo originalmente purificado; não há apego. Esta natureza é
pode se ir; que todas as coisas são nada e que podemos chamada a “Grande Budheidade”.
fazer tudo o que desejarmos, ou que todas coisas não são
erradas. Essas visões são visões ignorantes. (2) A visão natural do corpo.
“As visões melhores mas sempre errôneas são; kadag (ka No Trekchöd, o corpo físico não pode não pode se
dag) – a visão é pura desde o início; lhundrub (lhun grub) tornar corpo de luz – podemos somente faze-lo
– quer dizer que todas as coisas existem desaparecer no estado de átomos53. há numerosos
espontaneamente; ou ainda, que a visão não é certa – sistemas para fazer desaparecer o corpo físico, tal como o
pois, ela pode ser isso ou aquilo; ou bem, que o estado corpo ilusório temporário. Mesmo na prática de shamata, o
natural real é natureza e reflexos. Essas últimas são visões corpo físico pode desaparecer. Mas essas práticas não são
parcialmente completas. verdadeiras ou finais. Thögal, entretanto, transforma
“Alguns mestres do dzogchen introduzem diretamente a completamente o corpo físico em luz pura.
visão com um cristal ou um espelho; alguns dizem que Se não realizarmos o corpo de arco-íris, então não
devemos ir meditar n’um lugar tranqüilo; alguns dizem que realizaremos o corpo final. Assim, se não realizarmos o
devemos enfrentar as provas e outros que devemos nos Grande Corpo de Arco-íris, não teremos atingido a
tornar mendicantes. Outros mestres dizem que é preciso Budheidade final. No Thögal, o conjunto de nosso corpo
abandonar nossos bens e ir viver em um cemitério ou nas físico e os objetos com os quais partilhamos a visão se
montanhas; outros, ainda, dizem: “Partam e vão viver tornam o corpo de arco-íris54.
como um demente!”. Alguns dizem: “Não desejem nada,
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Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

Se atingirmos o corpo de arco-íris, nosso corpo de Segundo uma citação do Yetri: “É em si um grande
luz não tem defeitos; ele está totalmente purificado e as fruto; então, não há nada à buscar. Se não buscarmos
marcas cármicas se evaporaram totalmente. esse fruto, tudo existirá espontaneamente; então, é
Precedentemente, praticamos a bodhichita; agora, excelente”.
obtivemos o resultado, então até que o samsara seja
extinto ajudaremos os seres animados55. (6) A maneira de ver diretamente as visões
Segundo uma citação do Yetri: “As visões dos cinco naturais.
agregados (skandas) não desaparecem mas são purificadas No Thöghal, vemos diretamente as visões naturais.
nas visões naturais56”. No Trekchöd, os seis órgãos dos sentidos não são
purificados; devemos então buscar as visões purificadas.
(3) A Purificação da consciência. No Thöghal, as portas da clara luz são abertas pelo sopro
No Trekchöd não vemos senão a vacuidade, mas da sabedoria. Daí, as quatro lâmpadas aparecem. Elas
não vemos as visões da luminosidade pura, a visão ilusória purificam todas as visões da ilusão. Segundo este método,
não pode então ser abandonada ou purificada. Devemos compreendemos que todas as visões são visões que se
compreender o que é kadag, quer dizer puro desde o liberam nelas mesmas enquanto que ao mesmo tempo
início, se bem que isso não aparece assim. Então estamos desenvolvemos a visão do Trekchöd60.
sempre ligados à ignorância, as visões não são
completamente puras. É porisso que podemos ser Segundo o Yetri: “É preciso compreender o
facilmente distraídos e é difícil atingir a liberação. No significado das visões naturais de modo que não haja nada
Thögal, entretanto, utilizamos métodos para compreender que possamos separar; tudo acontece junto”.
diretamente a ilusão, isso permite atingir rapidamente a
liberdade natural.
Após a liberdade natural, a visão ilusória não (7) Os bhumis (terras61)
aparece mais e, então, não causa mais distrações. As No Trekchöd, tudo está ligado ao estado natural,
visões do Thögal conduzem muito rapidamente à mas a visão e o corpo não são capazes de se elevar ao
compreensão. nível final (porque o método deixa escapar). No Thöghal,
Segundo o Yetri: “Existem os oito objetos das oito não há antídotos para descartar os obscurecimentos –
consciências (os cinco sentidos, as emoções, a mente e somos conduzidos naturalmente ao nível final. Thöghal
kunzhi [alaya]). Essas são as Dakinis da visão natural e permite assim atingir a “Grande Bhumi do Svastika62”.
elas existem espontaneamente sem nenhuma afetação.
Isso é chamado a “Grande Visão Detentora da Sabedoria”.
A MANEIRA DE PRATICAR THÖGAL
(4) O método para ajudar os outros do ponto O TEXTO RAIZ
de vista que aceita que nada exista em si
O estado natural existe espontaneamente sob a No Rigpa Khujug (rig pa khu byug)63 encontramos a
forma de sons, de raios de luzes que aparecem todos seguinte passagem concernente a prática do Thöghal, que
completamente. Nós os vemos pelo método do Thögal; é seguida de um comentário.
então, tudo é purificado rapidamente. Embora no Existe uma alegoria sobre os quarenta e dois
Trekchöd, não haja método direto para ver isso. Trekchöd métodos do Thöghal:
é gradual – isso leva tempo. Enquanto Thögal é muito
direto e pode liberar por si-mesmo de tal modo que “Quando o Rei da Consciência Clara viaja
podemos muito rapidamente ajudar os outros. Segundo o magicamente para os seres, ele cavalga um pássaro
mesmo texto: “Todas as visões vem delas-mesmas e são vermelho de bico longo, que vem do rochedo vermelho em
vistas por elas-mesmas. Tudo é seu próprio reflexo. Não há marcha lenta, e, cavalgando este pássaro, ele vai a
objetos que existam por si-mesmos. Tudo é a “Grande diferentes lugares. Ao mesmo tempo, quatro reis o servem,
Visão”; então não há nenhuma maneira de ajudar os e o elevam do fundo. As quatro rainhas das estações o
outros”. sustentam. Quatro ventos mágicos o deslocam e elevam, e
Pergunta: Se realizarmos que tudo é nossa própria quatro grandes rios espalham a maré de seus méritos.
visão, então como podemos ajudar os outros? A resposta é Quatro fogos equalizam seu calor; eles permanecem sobre
que não podemos os ajudar porque eles são a visão a terra de ouro, e os oito espelhos de claridade ornam seu
nascida dela-mesma57. Ajuda-los em si não é possível. corpo. Três letras secretas estão inscritas em sua mente;
cinco lâmpadas de claridade nascem no alto de sua
(5) A maneira de não buscar o fruto. cabeça; estrelas e constelações resplandecem desde seu
Nesses métodos, não buscamos obter um fruto. tamanho. Quatro servidores obedecem a suas ordens. Ele
Enquanto não praticamos senão Trekchöd, todas as visões trabalha sem cessar para o bem dos seres animados: tais
mantêm uma existência inerente, mesmo que são as qualidades deste equipamento”.
compreendamos que elas não tenham58.
Thöghal permite o desenvolvimento d’uma visão Nesta alegoria estão combinados todos os métodos
especial que se mistura à visão comum de modo que esta das práticas do Thögal. Eles foram ensinadas pelo
se transforme facilmente na visão da realidade. É um Dharmakaya às Dakinis que os guardaram secretamente no
caminho rápido e prático para desenvolver a visão que se meio dessas metáforas. Os antigos sidhas e eruditos não
libera ela-mesma. Não temos mais necessidade de rezar. fizeram nenhum comentário, mas pensaram em deixar esse
Por este método, realizamos rapidamente a budheidade59. cuidado a Shardza Tashi Gyalten.
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 15
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

esfíncteres anais]. A testa ligeiramente inclinada para trás.


As duas mãos são colocadas sobre o chão entre as pernas.
A posição é como se estivesse agachado. Alguns
ensinamentos dizem que os pés devem estar inteiramente
O COMENTÁRIO colocados sobre o chão, mas, em nossa tradição, somente
a frente dos pés é pousada. O objetivo é eliminar o vento
“Quando o Rei da Consciência Clara viaja que produz os pensamentos perturbadores e abrir o canal
magicamente para os seres, ele cavalga um pássaro central de modo que as visões apareçam. Isso ajuda
vermelho de longo bico, que vem do rochedo também a estabilizar o estado natural.
vermelho em marcha lenta, e, cavalgando este
pássaro, ele vai a diferentes lugares”. a.1.2. A postura do Sambhogakaya
O pássaro de longo bico significa a fonte da visão Na postura do elefante alongado, ficamos
(os cinco raios de luz coloridos, desde o início) no centro agachados com as plantas dos pés sobre o chão, os joelhos
do coração, permanece a consciência clara, e um canal do não tocam o solo, mas tocam o peito, e o queixo é seguro
tamanho d’uma palha, partindo do coração, liga a pelas mãos, os cotovelos no chão. Isso acalma os ventos
consciência clara aos pulmões. Através desse canal, os que engendram a distração, para os pensamentos de
ventos vão e vem, e as visões se apegam à eles. É isso que desejo ou de raiva e reforça a saúde. Esta postura ajuda a
produz os pensamentos. Quando os ventos tocam a fonte desenvolver exteriormente visões completas, e a estabilizar
das visões, é a isso que chamamos mente. O vento é como o estado natural.
um cavalo cego cavalgado pela mente como a imagem de
um homem prejudicado, mas vidente. Quando os ventos a.1.3. A postura do Nirmanakaya
param, todas as visões se dissolvem na consciência clara e Na posição do rishi, as plantas dos pés estão
todos os pensamentos desaparecem e se dissolvem em sua colocadas sobre o chão, o braço em torno dos joelhos que
natureza. tocam o peito. A nuca ligeiramente pendida para trás. O
Esta natureza tem três qualidades – a vacuidade, a objetivo desta postura é de trazer calor e de parar
consciência clara e a unificação (ou inseparabilidade). É a gradualmente os pensamentos. Ela nos permite também
Base de onde surgem os reflexos. Se utilizarmos os desenvolver as visões exteriores, enquanto que
métodos do Thögal, esses reflexos, contidos na Base, interiormente surgem grandes experiências.
aparecem espontaneamente através do canal de luz que As posturas não devem ser mantidas de maneira
desemboca nos olhos. Cada olho tem dois canais que lhe muito estrita, nem mantidas de maneira tão rígida que se
estão ligados64. tornem desconfortáveis. Elas não devem, nunca, ser
Isso purifica as visões impuras e veremos as visões mantidas com muita descontração. Muito rígida, a postura
da Sabedoria. Existem quarenta e dois métodos no Thögal será dolorosa e perturbara a meditação; muito frouxa, ela
e, aqui, os ensinaremos por etapas. não trará nenhuma ajuda.
Há em seguida a postura da gansa que se desloca
“Ao mesmo tempo, quatro reis o servem, e o sobre os lados que é muito útil aos iniciantes para começar
elevam do fundo”. a ter visões. O praticante deverá se estender sobre o lado
Os quatro reis são os quatro métodos – o primeiro direito, o cotovelo direito colocado no chão e a mão
método concerne ao corpo, a fala e a mente; o segundo segurando o queixo. A mão esquerda é colocada sobre a
concerne ao órgão dos olhos que se situam na porta de coxa esquerda. As duas pernas repousam sobre o chão,
emergência; a terceira é o objeto da visão; a quarta uma sobre a outra, ligeiramente dobradas. Esta postura
consiste a moderar os ventos e a consciência clara. Por permite a inserção dos ventos no canal central de modo
exemplo, Tonpa Shenrab se dirige aos quatro Grandes Reis que as visões extraordinárias se desenvolvam.
para convida-los respeitosamente e ele controla os três Enfim, há a postura de antílope que não é descrita
reinos da existência. Assim, existem quatro métodos à aqui65.
utilizar e a consciência clara controla todas as visões.
a.2. Os métodos da fala
O primeiro método: o Corpo, a Fala e a Mente Segundo o Taktse Dronma (rtags tsahd sgron ma)
a.1. Os métodos do Corpo do Zhang Zhubg Nyengyu: “Se não pararmos de falar, não
O primeiro método tem três subdivisões. O corpo é poderemos ver a natureza inexprimível e a natureza do
mantido em uma postura afim de controlar os canais e os ponto único não aparecerá diretamente”. Shardza precisa
ventos. O fato de controlar a postura ajuda o praticante a que devemos falar menos e menos e, por fim, parar de
ver a clara luz diretamente; porisso a postura é importante. falar permanecendo na nossa natureza.
Segundo o “Maravilhosas Perolas de Ouro” (gser gyi
phreng ba mdzes): “A postura do Dharmakaya é como a.3. Os métodos da mente
um leão sentado, a postura do Sambhogakaya é como A mente significa a essência da Consciência Clara
um elefante sentado, e a postura do Nirmanakaya é em função do modo de ver do olho. Focalizar o espaço
como um rishi sentado”. permite aos movimentos dos ventos se acalmar mais e
mais. Quando os ventos estão estabilizados, a unificação
a.1.1. A postura do Dharmakaya será mais e mais profunda.
A postura do leão sentado consiste em colocar as Segundo o Taktse Dronma: “Se não aplicarmos os
plantas dos pés sobre o solo, contrair as nádegas, manter modos de olhar de maneira estrita, a consciência clara não
o tronco ereto e fechar a porta inferior [contrair os aparecerá diretamente”.
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 16
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

Segundo o Tigle Drugpa (thig lê drug pa): “Em


O segundo método: o olho que se mantém à geral, quatro coisas se combinam para fabricar o corpo. Os
Porta de Emergência. canais ou as veias são como fios. No corpo , há quatro
O segundo método trata agora dos olhos. Na visão canais especiais de atividades. O primeiro é chamado “o
comum, o olhar não ajuda na emergência da sabedoria. grande canal dourado” (ka ti gser gyi rtsa chen), o segundo
Então, devemos utilizar métodos de olhar especiais com as “o filamento de seda branca” (dar dkar snal ma), o terceiro
posturas do corpo. o “filamento finamente enrolado” (phra la ‘khrul) e o quarto
Segundo as “Maravilhosas Perolas d’Ouro”: “Na “o tubo de cristal” (shel bug can).
postura do Dharmakaya, os olhos devem olhar firmemente
para cima, para a postura Nirmanakaya o olhar deve ser 1. O primeiro liga o coração ao canal
para baixo e para a postura do Sambhogakaya o olhar central no nível do coração. No interior existe a clara
deve ser do lado direito ou esquerdo” – existem então três luz essencial, e aí todos os reflexos co-existem
espécies de olhares mas a coisa mais importante é o espontaneamente com as divindades pacíficas. Daí
surgimento das visões66. esse canal se reúne ao cérebro, onde as divindades
Segundo o mesmo texto: - “Os olhos semi cerrados iradas residem espontaneamente. Existem
e sem permanecer na ilusão67, olhar ligeiramente sob o sol igualmente ramificações as quais suportam cada
à uma distancia que corresponde àquela entre o cotovelo e uma as visões dos tigles 68.
os dedos[???]. Tal é o método”. 2. O interior do segundo canal, “o
Pratiquemos isso mais e mais até que possamos filamento de seda branca” é fino e branco. Esse
olhar o sol desta maneira continuamente. [isso pode canal começa no nível do coração no canal central e
cegar!!!] sobe ao longo da coluna vertebral, deixando o canal
central no nível do pescoço. Daí, ele caminha pelo
exterior do cérebro onde ele se separa em dois
braços. Um lado está conectado ao canal do olho
O terceiro método: o objeto da visão. direito onde ele suporta o que vemos como visões
O terceiro método concerne à mente. Em um lugar exteriores; o outro lado está ligado ao alto da
elevado absolutamente calmo, olhemos o céu claro e puro. cabeça onde ele é o suporte do surgimento da
Dirijamos nosso olhar para o céu puro sem nuvens; aí grande consciência sem pensamentos. Quando a
aparecerão as diversas visões da Clara-Luz. Os iniciantes visão é completada, ele sustenta os nove tigles que
deverão fazer isso ao nascer e ao pôr-do-sol. De manhã, estão empilhados uns sobre os outros no interior do
de frente para oeste, e à tarde, permanecer voltado para canal.
leste olhando para o céu puro. Segundo uma citação do 3. O terceiro canal, o “filamento
Tingshok (mthing shog): “De manhã olhar à oeste; e, à finamente enrolado”, tem origem no canal central
tarde, olhar à leste...”. no nível do coração, depois desce à sua base antes
de ressurgir novamente através o centro das quatro
O quarto método: moderar a respiração rodas (os chakras do coração, da garganta, das
[sopro, vento] e a consciência. sobrancelhas, e do alto da cabeça) para caminhar
O quarto método descreve quatro etapas para a pelo exterior do cérebro até a porta de emergência
respiração – inalar, acrescentar um pouco, reter e expirar. do olho esquerdo. Esse canal é o suporte de todas
Alguns mestres dizem isso mas eles não conhecem o as visões da clara luz natural que brilham
método de respiração que falamos aqui; no presente diretamente.
caso, não devemos mudar a nossa respiração mas deixa-la 4. Finalmente, o tubo de cristal vai
como de hábito. Quer seja através do nariz ou da boca, do coração aos olhos; ele constitui o suporte da
mantenha a mesma respiração enquanto ela permanecer dissolução das visões em sua própria natureza.
suave. Se mantivermos essa respiração suave, os Os pensamentos são gerados quando a unificação
pensamentos e a mente se acalmarão e a mente será ao nível do coração reencontra os ventos do canal que vem
mantida como uma prisioneira, porque os ventos não se dos pulmões.
deslocarão mais.
A mente é mantida prisioneira pela consciência “Quatro fogos equalizam seu calor”.
clara. Se guardarmos o sopro suave, então, a respiração Esta frase faz referência às quatro lâmpadas: a
que vai e vem entre a boca e o nariz se torna calma e, lâmpada d’água chamada Gyangzhag (rgyang zhags chu’i
quando está calma, a mente e o sopro[vento] encontram- sgron ma); a lâmpada do tigle vazio (thig le stong pa’i
se no canal do coração. Como não há perturbação, sgron ma); a lâmpada da vacuidade pura (dbyings rham
nenhum pensamento é produzido, e a mente é dag gi sgrom ma) e a lâmpada do conhecimento nascido
naturalmente absorvida em sua natureza nua. dele-mesmo (shes rab rang byung gi sgron ma ). Essas
quatro lâmpadas produzem as visões dos mandalas e as
“Quatro ventos mágicos o deslocam e formas das deidades e, quaisquer que sejam as visões que
elevam”. apareçam, elas são claras. Quaisquer que sejam as visões
Há quatro canais especiais. Da mesma maneira que que surjam, elas são plenas de sabedoria e do
todos os ventos fazem vibrar o universo e o elevam, todas amadurecimento dos três Kayas. É porisso que dizemos
as visões de claridade são produzidas e se desenvolvem alegoricamente que o grande fogo da existência faz com
em quatro grandes canais. que tudo esteja igualmente quente, produzindo os frutos e
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 17
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

as folhas das arvores. Este ensinamento é importante para A claridade aparece sob a forma de pérolas e de
uma visão profunda do estado natural. filamentos dourados; a natureza é sabedoria e as formas
Segundo o Rigpa Tselwang69 (rig pa rtsal dbeng): que aparecem assim são o Tsel da sabedoria. Quaisquer
“As quatro lâmpadas são, todas, ensinamentos interiores que sejam as visões que possamos ter, elas são todas da
essenciais”. mesma da mesma natureza e retornam à mesma verdade.
Detalharemos agora as quatro lâmpadas: de início, Não as distinguimos senão pelos nomes.
guardemos as posturas do corpo e as posições dos olhos
como precedentemente. “Eles permanecem sobre a terra de ouro, e os
oito espelhos de claridade ornam seu corpo”.
A primeira lâmpada, a lâmpada d’água, aparece Isso significa que a natureza fundamentalmente
quando os olhos olham através do espaço claro e que uma vazia é o lugar de onde as visões provêm e desaparecem;
cor azul escuro se manifesta70. os dois estão em unificação. O espaço é azul escuro. Deste
A partir daí, se desdobram as cores das cinco luzes espaço azul escuro, aparecem e se desenvolvem cinco
e dos raios de formas diferentes semelhantes aos motivos cores. A essência real da consciência clara está no interior
das cores que aparecem no azul escuro do fundo d’um do coração mas as formas e as cores aparecem como um
brocado de seda. É o início dos surgimentos das visões que mala de perolas através dos olhos 75. Quando estamos a
existem espontaneamente no interior do coração. ponto de nos focalizar sobre a luz do sol, veremos
Segundo o “Ouro Refinado” (gser gyi zhun ma): filamentos, inicialmente brancos e negros. Os dois tipos de
“No céu vazio exterior, veremos diretamente as luzes claras consciência clara são a consciência clara da natureza (o
do coração que são todas azuis, verdes, vermelhas, estado natural) e a consciência clara da claridade (as
amarelas, brancas, e cor de fumaça. visões)76. Assim sobre a terra tudo é ouro; não podemos aí
Esse texto faz referência ao céu – alguns encontrar pedras comuns. Da mesma maneira, se todas as
comentadores pensam que isso faz referência ao céu coisas são vistas como reflexos provenientes ou resultando
comum sem nuvens, mas porque o céu comum nada tem a do estado natural, então as visões serão vistas realmente
ver com o praticante71. O céu é somente a base da visão; o como a natureza vazia, a unificação 77. As visões são tudo o
azul escuro que aparece espontaneamente existe na que existe espontaneamente com a unificação. Quando
natureza mesma do praticante quando este método de esses métodos são praticados, as visões aparecem ao
posturas e de olhares é utilizado. praticante.
Segundo “Os Maravilhosos grãos d’ouro”: “No céu
exterior, emerge a lâmpada do espaço interior”. Aqui, “Quatro grandes rios espalham a maré de
apresentamos o céu exterior e o espaço interior de seus méritos”.
maneira diferente. Normalmente, o céu não é a base da Os quatro grandes rios são as quatro visões.
visão do arco-íris do Thögal; ele não se transforma em Segundo o Trödel Rigpai Tselwang (spros bral rig pa
arco-íris senão graças às visões do praticante. Entretanto, ‘i rtsl dbang), o texto inicial do Zhang Zhung Nyengyu: “A
não devemos concluir à propósito desta distinção que o primeira é a visão direta que vem da vacuidade. Em
espaço interior e o espaço exterior são duas coisas seguida, há uma visão que se desenvolve, depois uma
separadas72. visão que se completa e, finalmente, a visão que se
dissolve na vacuidade78”.
As segunda e terceira lâmpadas são a lâmpada É somente uma medida da intensidade de nossa
do tigle vazio e a lâmpada da pura vacuidade. Elas podem prática; não podemos comparar isso com os bhumis. O
ser ilustradas por um lago. Se jogarmos uma pedra nesse caminho da acumulação é como caminhar, porém aqui, é
lago, as ondas se formarão em volta. Da mesma maneira, como voar no céu.
círculos aparecem em torno da visão. No início, eles são
desprovidos de cores, mas, finalmente, aparecem de um A Primeira Visão – a visão direta que vem da
modo pentacolorido. Isso vem da purificação do vento vacuidade.
grosseiro. Se olharmos nesta visão, veremos o interior. A Se utilizarmos os quatro métodos da prática (corpo,
consciência clara se torna mais clara e, repentinamente, fala, mente, olhares) mencionados anteriormente, então do
não há mais objeto nem sujeito – nenhum apego – e isso chakra do coração onde a essência Budha permanece (o
aparece de maneira despojada. É a lâmpada do estado natural), as visões aparecerão. Quando
conhecimento nascido dele mesmo73. começarmos a aplicar esses quatro métodos, veremos os
arco-íris e os tigles, e é a partir daí que as visões
A quarta lâmpada é chamada “lâmpada da aparecerão. No início, haverá muitos tigles, às vezes
sabedoria nascida dela mesma”. Ela é também empilhados como perolas e algumas vezes lado à lado,
apresentada como nua, sem nenhum apego aos objetos – mexendo sem cessar; às vezes as visões são claras e às
ela é simplesmente deixada tal qual 74. Se estabilizarmos as vezes elas não são completamente. A razão da existência
luzes, permanecendo no estado natural, então um dessas visões é comparável ao fenômeno do sol e de seus
conhecimento muito preciso e claro se desenvolverá. Este raios – a unificação é a natureza real, mas isso é
conhecimento é muito mais claro que o que se adquire inexprimível. As visões são semelhantes aos raios que
estudando. Com efeito, o que quer que digamos ou aparecem ao praticante, mas sem a mediação dos órgãos
ensinemos, isso sem pensar, sem estudar – isso vem comuns da percepção dos sentidos. Eles são chamados os
automaticamente. Tudo é perfeito e preciso. É isso que tigles Svastika. Eles são como o espelho e nosso rosto –
chamamos Tsel (energia) desta natureza. nosso rosto é refletido no espelho, mas não podemos fazer
distinção entre o espelho e nosso reflexo – eles não são
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 18
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

mais que um. Da mesma maneira, quando temos as guirlandas de flores, swastikas, jóias, palácios e mandalas.
visões, não as podemos separar da unificação. Devemos Muitas formas podem aparecer. Chamamos isto: “as Visões
compreender isso. do Espaço chegando no céu”. Podemos também ver
Se não compreendermos, veremos os reflexos como aparecerem chorten, flechas e muitas outras formas. É a
objetos e nós nos compreenderemos como o sujeito realização das visões quase perfeitas. Entre essas visões,
observador. Aquele que olha e aquilo que é olhado estão existem muito grandes. Seu tamanho é de escudos
ligados pelo pensamento, o que é um erro do pensamento redondos penta coloridos79. É isso que chamamos:
que agarra. Conservando este método de prática, todas as “compondo a essência da consciência clara”.
visões se liberam delas mesmas. O sinal é que elas se
assemelharão a grãos muito finos ( tigles) se deslocando “Estrelas e constelações resplandecem desde
em numerosas formas angulares. No canto desses ângulos, o seu tamanho”.
haverá pequenos tigles delicados. A explicação é fornecida pelos comentários
Essas visões estão ligadas aos ventos e é porisso precedentes sobre as visões. Essas visões se tornam todas
que elas estão sempre em movimento. Entretanto, não estáveis segundo a duração da prática. De início, elas voam
devemos seguir essas visões, nem lhes prestar muitas e se deslocam como um falcão voando através do céu; em
atenção nem cuidados. Isso significa que quaisquer que uma segunda etapa, elas têm a rapidez d’um cervo que
sejam os tigles ou as visões que apareçam, devemos estar corre nas montanhas; na terceira etapa, elas evoluem
atentos ao observar as visões sem as seguir. Devemos como um sharana (animal mitológico de movimentos muito
permanecer no estado natural e não nos preocupar com as lentos); na quarta, elas são lentas e suaves como as
visões que aparecem abelhas em seu trabalho de colher nas flores. Sua
Segundo o Togbep (thog ‘bebs): “Há dois métodos estabilidade depende da intensidade de nossa prática da
para serem utilizados em conjunto - durante o dia, à luz do contemplação - as visões são também estáveis como
dia, utilizamos o sol e o cristal de fogo (uma lupa), e nossa contemplação.
durante a noite, utilizamos a lua e o cristal d’água (um Na etapa final, as visões são tão grandes como o
cristal natural). Muito cedo pela manhã, ou tarde à noite, universo e estáveis, do mesmo modo que a contemplação.
utilizamos a luz das lâmpadas de manteiga. Quaisquer que Quando as começamos a desenvolver, há também técnicas
seja a luz que utilizemos, não a olhemos diretamente. as para modificar os olhares em função da maneira como as
visões aparecerão mais brilhantes, claras e estáveis. Nossa visões aparecem.
contemplação se tornará mais e mais estável; o que Segundo o Zhang Zhung Nyengyu: “Quando as
significa que os ventos e a nossa mente se tornarão mais e visões aparecem como semi-círculos brancos, deveríamos
mais calmas. Então, as experiências se desenvolverão. olhar no ar tão intensamente como possível. Quando as
Rapidamente, obteremos diversos conhecimentos, sem cores são vermelhas, dirigidas para o alto e a direita,
estudar. Um terço da Sabedoria será nossa. Durante esse deveríamos olhar para baixo. Quando as visões aparecem
período, se morrermos, renasceremos no Rangzhin Trulpa como formas iradas de cor amarela, o olhar deverá ser
(rang bzhin sprul pa), os reinos que se manifestam de dirigido para a direita. Quando elas são redondas e verdes,
maneira mágica durante o estado intermediário” olhar para a esquerda. Se as formas são triangulares e as
Segundo o Tagdronma (rtags sgrom ma). “O cores azuis, o olho deverá olhar direto para frente.”.
chamado vazio provêm do nível das sobrancelhas; se Tais são as instruções gerais, mas as visões mudam
estivermos mortos, iremos aos reinos manifestados de muito; é pr isso que devemos aprender por nossa própria
maneira mágica”. experiência.
Esses métodos não concernem somente às visões Se, mesmo praticando, as visões não aparecerem,
do estado natural, mas se aplicam igualmente à prática da às vezes é útil pressionar os olhos e prender a respiração.
contemplação; é assim que aparecerão sinais desse tipo. Abram então rapidamente os olhos e expirem, as visões
Segundo o Tagdronbu (rtags sgrong bu): aparecerão temporariamente. Esta prática poderá ser
“indissociado da consciência clara e do espaço, necessária no início80.
renasceremos nos campos puros das aparições naturais”. Após seu desaparecimento, permaneçamos
simplesmente no estado natural sem nenhuma distração.
A Segunda Visão – a visão que se desenvolve. Às vezes, se não somos capazes de controlar nossos
Na primeira visão, desde que a visão apareça, pensamentos, deveríamos parar um pouquinho e acalmar a
continuamos a praticar e, assim, a unificação da natureza respiração docemente.
se produz. Nesta primeira etapa, se praticamos desta Os olhares ajudam, também, a acalmar os
maneira, as visões se manifestam, mas elas não são iguais pensamentos. Nossa contemplação jamais será errônea se
– às vezes brilhantes e claras, e às vezes sem brilho; mas estivermos no estado natural. Então, quer as visões se
elas se estabilizam progressivamente. desenvolvam ou não, a mente deverá sempre permanecer
Agora nesta segunda etapa, a unificação se produz. na contemplação do estado natural. Os olhares podem
É a isso que chamamos: “separar da sobrancelha”. ajudar a entrar no estado natural, mas a mente é o ponto
Simbolizamos assim as cinco sabedorias aparecendo crucial81.
sob a forma de cinco cores jorrando em raios diretamente É importante que nossos olhares sejam sempre
das sobrancelhas em direção ao alto. Elas vão assim sobre conduzidos ao espaço e que permaneçamos na consciência
os lados, e, às vezes, podem eventualmente aparecer sob clara sem distração e com uma respiração calma82.
a forma de um triangulo. Elas são muito mais No início, as visões se manifestam a partir do
desenvolvidas que antes e podem mesmo parecer tão interior do tigle; também somente a parte superior ou
vastas como um país. Elas são diáfanas como fios e tem inferior aparecerá e não será muito clara. Neste instante,
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Shardza Tashi Gyaltsen
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deveríamos sempre conduzir nosso olhar direto diante do Ao mesmo tempo, as visões são todas liberadas por si
estado natural83. mesmas. Então a “Sabedoria Vazia” nos aparece – e, o que
Isso é geralmente verdadeiro mas há outras quer que vejamos, a sabedoria aparecerá. Pouco importa
especificidades. Se morrermos quando estivermos ao nível que vejamos amigos ou inimigos – todos são liberados em
da “unificação das quatro visões da sabedoria”, então, da nossa visão. As visões são totalmente misturadas, sem
mesma maneira, no estado intermediário haverá quatro nenhuma parcialidade. Todas as visões normais da vida são
visões de sabedoria. Neste momento, nos realizaremos e vistas como reinos do Budha e das cinco famílias de
seremos liberados. Se, no instante de nossa morte, virmos Budhas. Podemos ver de nosso peito os cinco raios
formas de triângulos em suas visões, seremos libertados coloridos que nos unem a essas divindades. De nossas
no estado intermediário. Se as visões são redondas e sobrancelhas, os raios surgem; em seu seio aparecem os
semelhantes a flores de quatro pétalas no momento de tigles que se tornam como mandalas das oitenta e seis
nossa passagem, realizaremos a visão clara no primeiro deidades iradas e, no interior do coração, se manifestam as
bardo do estado intermediário. Concluindo, se todas as quarenta e cinco deidades pacíficas.
cores e formas são completas no momento em que Os canais se tornam completamente purificados e,
morremos, então, quando estivermos no estrado através deles, as divindades e os seres aparecem. Nesse
intermediário, realizaremos todas essas visões antes do momento, todos os pensamentos comuns que se
bardo do nascimento (sipai bardo) e seremos liberados84. confundem com a ignorância são totalmente purificados e
Quando os tigles atingem o tamanho de escudos liberados. A consciência clara e as sabedorias aparecem
redondos, as visões estão praticamente no seu paroxismo. diretamente.
Elas não se tornam maiores que isso. Cada uma possui Nesse momento, podemos nos focalizar sobre as
cinco cores em sua periferia, assim como os mandalas das pedras e as deslocar se quisermos. Nossa mente pode
divindades com suas consortes e diversos assistentes no fazer marcas em um rochedo; não há nenhum apego ao
interior. Essa constitui quase a visão final. corpo físico. O praticante possui igualmente as seis
A Terceira Visão. espécies de falas claras e pode ver todas as montanhas
Agora, aparece a visão completa. Essas visões são como paraísos das divindades. Podemos receber
todas espontâneas no estado natural e nós utilizamos ensinamentos da parte delas, e obtermos muitos
métodos para desenvolve-las, de modo que as visões conhecimentos, que receberemos sem nenhuma
aparecem. As visões não provêm do exterior. Quando as aprendizagem.
visões estiverem todas completas, então as divindades O corpo físico e os canais são naturalmente
pacíficas e iradas aparecerão – não como estatuas mas liberados, as coisas materiais começam a desaparecer. A
diretamente do estado natural sob formas do mente e o corpo físico são separados; também o corpo
Sambhogakaya ou do Nirmanakaya. Cada uma delas físico começa a desaparecer. Podemos ver o samsara e o
possuirá as trinta e duas marcas especiais e os oitenta nirvana. Podemos ver o samsara e descobrir que ele não é
signos secundários. Elas aparecem quando o praticante mais nossa causa cármica. Podemos ver o nirvana e ver
atingiu a visão completa. Utilizando simplesmente os que ele está ligado a nós.
métodos do Thögal e do Trekchö, sem nenhuma Todas as causas e as marcas cármicas desaparecem
visualização ou mantra, as divindades aparecem; é então como as estrelas cadentes que se desfazem no espaço. Os
excelente. três Kayas são realizados nesse instante.
Quaisquer que sejam os nomes que possamos dar
as visões, sua natureza é não dual (unificação). Elas “Três letras secretas são inscritas em nossa
aparecem ainda que elas existam espontaneamente. mente”.
Somos nós que acessamos o estado natural, não elas. Todas as visões, os Nirmakayas portadores de
Quaisquer que sejam as visões que apareçam, não conhecimento e de purificações aparecem ao praticante. É
deveríamos ficar limitados por elas. Quer se trate de o resultado da prática do Dzogchen. Nenhuma outra escola
corpos com ou sem consorte, Dakinis pacíficas ou iradas – pode fazer isso. Praticar, ver e utilizar os três Kayas é único
elas aparecem estáveis e claras, porque praticamos na não do Dzogchen; é por isso que o Dzogchen é o caminho mais
dualidade (unificação). esotérico.
Desta maneira, essas visões surgem. Pode haver Na prática dos Oito Veículos, a realização dos três
ambientes, assistentes, mandalas e assim por diante, cada Corpos se produz após o final do caminho (durante o
um com as decorações e ornamentos. Elas surgem estado intermediário). Aqui, eles aparecem durante esta
naturalmente porque cada coisa existe espontaneamente. vida e, então, podemos praticar e receber ensinamentos
Não fizemos nada de particular; simplesmente utilizamos provenientes diretamente deles.
os métodos. Alguns mestres dizem que essas visões não são
Segundo o Togbep: “Os sinais são os raios de mais que uma ilusão, e outros que se trata da última
claridade e as decorações das imagens”. verdade. Segundo este texto e minha intenção, não
poderemos dizer que se trata de uma ilusão ou de uma
“Cinco lâmpadas de claridade nascem no alto verdade. O que aparece é o que existe espontaneamente –
de sua cabeça”. nós não podemos afirmar que é verdadeiro ou falso. O
Quando as visões finais aparecem ao praticante, as estado natural aparece espontaneamente ao praticante,
cinco sabedorias surgem diretamente. Ao mesmo tempo, mas as visões não são nem exteriores nem materiais. Na
todas as visões se misturam à visão exterior. A visão real experiência do praticante que atingiu este estado, todas as
se mistura à visão exterior, ela é para nós a mesma visão – visões são liberadas no estado natural.
as coisas materiais, se misturam agora com nossa visão.
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Tradução Flávio Capllonch Cardoso

A Quarta Visão. fato, ele tem um corpo de luz (do onde a expressão o “livre
A quarta visão é o acabamento das visões naturais. e nascimento”). Em seu corpo, não há nada de material, o
Aqui, em função dos métodos que utilizamos, as visões do copo pode completamente desaparecer ou atravessar
estado natural estão plenamente desenvolvidas. Elas são muros sólidos ou voar no ar. Tapihritsa é um exemplo:
como a lua cheia. Igualmente, quando a lua está cheia, e após ter atingido o corpo de arco-íris ele era capaz de
ela começa a decrescer, as visões decrescem igualmente. aparecer sob todas as formas e a qualquer momento. No
Elas regressam até o tamanho de um tigle e o tigle se Chang Chung Nyengyu, se fala dele aparecendo a um
dissolve no estado natural de modo que o que subsiste é a homem rico sob o aspecto de um servidor; foi porque o
unificação, nada mais. Por esta razão, dizemos que está homem era o benfeitor de Nangzer Löpo que meditava nas
“terminado”. A visão permanece no estado natural, é a proximidades. Mais tarde, eles descobriram que o servidor
verdade final, como quando do 30º dia do mês lunar do era uma forma manifestada, e Tapihritsa ensinou ao
calendário tibetano não podemos ver a lua85. mesmo tempo ao rico doador e a Nangzer Löpo, para
As visões são maiores ou menores em função do finalmente aparecer sob uma forma cristalina e colorida do
praticante. O estado natural não é nem grande nem Dharmakaya.
pequeno - ele tem sempre a mesma natureza sem Um outro exemplo foi Lungbon Lanyen, que viveu
tamanho nem cor. no décimo século na província de Tsong, e que rezou
Este acabamento tem duas maneiras de se durante um período bastante longo a fim de ver Tserwang
manifestar - gradualmente e rapidamente. No caso Rigdzin. Um dia, Tserwang Rigdzin lhe apareceu e aceitou
gradual, as visões se exibem totalmente e depois elas lhe dar ensinamentos. Na verdade, mais de uma pessoa
diminuem gradualmente: o praticante desenvolve as quatro recebeu seus ensinamentos que incluem dzogchen do
lâmpadas de maneira progressiva e as visões desaparecem Namkha Truldzö citado aqui.
gradualmente. O praticante pode reencontrar uma pessoa comum,
Se bem que isso seja extremamente raro, há lhe falar, depois desaparecer e reaparecer a qualquer
praticantes que foram purificados pela prática realizada em momento. Ele pode, também, ajudar todos os seres dos
uma vida precedente e, para eles, as visões se desfazem e seis reinos. Se suas ligações já estão presentes, o
se reabsorvem muito rapidamente. Após o completamento praticante pode inserir sua mente na de um de seus
das visões, todos os aspectos da experiência se absorvem discípulos e mudar assim a mente deste. Gradualmente os
ao mesmo tempo - não somente as visões que tivemos, estudantes praticarão e obterão seus próprios corpos de
mas também a visão comum, o corpo e a mente, os órgãos arco-íris. Este é o primeiro resultado 90. O segundo
dos sentidos e a consciência. Tudo se dissolve na nossa resultado é chamado: “obter a livre entrada”. Isso quer
natureza porque todos os aspectos foram purificados86. dizer que, se o praticante possui uma forma corporal que
Porque todas as visões exteriores foram dissolvidas? não é impressionante ou poderosa para ajudar os seres,
A razão disso se prende ao processo da consciência clara então, quando ele vir seus dedos rodeados de luz, não terá
gerada no coração pela chegada dos ventos provenientes mais necessidade de se focalizar sobre eles. O praticante
do canal que vem dos pulmões. No final das visões, este permanecerá simplesmente na unificação, depois
canal é completamente desconectado e o estado natural se desaparecerá inteiramente e tudo se esvaecerá por si
torna completamente puro87. mesmo. Sozinha, a unificação permanece. É isso que
Assim, todas as visões são dissolvidas e esta chamamos: “todas as visões retornam ao estado natural”
natureza volta à verdadeira fonte final88. 91
.
Se não chegarmos a natureza final, então um
pequeno corpo é deixado porque as visões não puderam OS QUATRO SUPORTES
ser todas dissolvidas.
“As quatro rainhas das estações o sustentam”
Isso significa que existem, juntos, os quatro
OS DOIS RESULTADOS suportes.
Segundo o texto do Ouro Refinado: “Existem quatro
Nesse momento, o praticante recebe duas espécies suportes. O primeiro corresponde as três bases móveis; a
de coisas. No início ele recebe o “nascimento livre” (isto é segunda se refere às três estabilidades; o terceiro suporte
explicado mais adiante) e ajuda os seres. As visões é como se selássemos com cravos as três obtenções; e o
começam a se dissolver e quando o praticante olha os quarto é mostrar os signos da liberação e das quatro
dedos de sua mão, ele os vê cercados de luz. Quando o satisfações”.
praticante se focaliza sobre essas luzes e permanece em
meditação, o corpo desaparece e, nesse momento, ele vê o O primeiro suporte - as três bases imóveis.
universo como o reflexo da lua na água. É, inicialmente, manter a postura do corpo tão
O praticante pode também olhar o seu próprio estável quanto possível, a fim que nossos canais e nossos
corpo e descobrir que ele é como um reflexo em um ventos se tornem calmos. A segunda base é manter o olhar
espelho. Esse momento é chamado a “Grande imóvel, isso acelera o desenvolvimento das visões. A
Transferência”. O praticante se torna então um membro da terceira é manter a mente sem falar, no estado natural, o
linhagem daqueles que realizaram a “Grande que permite a unificação ser mais estável.
Transferência” como os vinte quatro primeiros mestres da
linhagem dzogchen89. Eles pertencem então a sua O segundo suporte - as três estabilidades.
comunidade. Quando ele possui um tal corpo, os olhares A primeira estabilidade é a ausência de atividade do
impuros vêm o praticante como uma pessoa comum, de corpo; a segunda consiste em permanecer tranqüilo, sem
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Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

nada fazer: nossos ventos, então, se acalmarão e se Enfim, a mente do praticante é como aquela de um
liberarão por si mesmos; e, quando os ventos estão homem que tivesse sido envenenado: ela não tem mais
calmos, a mente não será mais perturbada pelos censura. O praticante é completamente controlado por sua
pensamentos. A terceira se obtem, se os ventos não são consciência clara e todas as coisas aparecem
agitados pelos pensamentos, então as visões estarão todas espontaneamente sem nenhum planejamento. Todos os
estáveis e, se desenvolverão e atingirão sua forma final pensamentos se liberam por si mesmos. Este é o cravo
muito rapidamente. sem pensamento que fixa todos os pensamentos.

O terceiro suporte - selar as três obtenções. O quarto suporte - os sinais da liberação.


É como se fixássemos com cravos as três Os sinais da liberação são apresentados em duas
obtenções. Durante este período, os signos da intensidade partes. No início, há um tempo de completamento, durante
de nossa prática se manifestam pelas três portas do corpo, o qual as visões se tornam completas. Todas as coisas são
da fala e da mente. O que realizamos se vê também liberadas e todas as visões se tornam perfeitas. É como o
através dos sonhos. Os primeiros sinais aparecem à porta elefante que se banha na lama no meio de uma arrozal. Ele
de emergência do corpo. Temos a impressão de ser uma sairá por si mesmo! O praticante não terá necessidade de
tartaruga colocada sobre um prato, imóvel em sua prática particular. Isso é chamado: “sem nenhum entrave”.
carapaça. Se fizermos isso com o corpo, os canais e os O resultado é que a sabedoria das atividades estará
ventos se acalmarão - é o sistema natural. Quando a controlada; de maneira que, qualquer que seja a fala do
Grande Perfeição não para a sua ação 93, as lâmpadas são praticante, ela será doce a quem a entender. A fala será
fixadas como que com cravos. Todas as atividades controlada pela consciência clara e a compaixão surgirá
corporais são, então, liberadas, e, sem nenhuma atividade, automaticamente. Tudo o que ele possa dizer se tornará
a unificação e a consciência clara se intensificam. Essa é a ensinamento e este ensinamento será profundo e límpido.
parte consagrada ao corpo. A mente é comparável ao homem que contraiu a pequena
A segunda porta de emergência é a fala; ela é como varíola - uma vez curado ele não pega mais. Do mesmo
uma batida ininterrupta de um tambor. Se não pararmos modo, quando o praticante liberou todo pensamento, os
de falar, a mente irá para os canais e perturbará nossa pensamentos obscurecedores não aparecem mais. O
permanência no estado natural. Se pararmos de falar, praticante é controlado pela sabedoria e a consciência
nenhum vento irá para os canais e a mente inalterável será clara. Esse sinal é chamado: “os cravos sem pensamentos
mais clara e estável. Seremos mais estáveis na unificação e que fixam os pensamentos que ressurgem” 94.
na consciência clara. O segundo sinal da liberação está presente em quatro
A terceira porta de emergência é a mente: a divisões. É, aqui, a realização total. Todas as visões são
imagem é a de um pássaro preso em uma armadilha. realizadas e, durante este período, o corpo do praticante é
Quando todos os pensamentos e as atividades se tornam semelhante a um cadáver. O que quer que ele coma, ou o
naturalmente liberadas, a unificação e a consciência clara que quer que aconteça, ele não dá mais importância - tal é
se tornam límpidas e estáveis. E é isso que torna todas as a sensação do corpo. Isso significa que a mente está
visões homogêneas e puras. As visões impuras completamente liberada na unificação e na claridade. O
desaparecem e as visões puras são estáveis e claras. praticante não tem medo; assim, “Sem medo, o cravo fixa
Durante o período no qual as visões se sem se focalizar”. Por exemplo, se o praticante está
desenvolvam, o praticante é como um homem muito cercado de inimigos, ele não ficará apavorado. É o sinal de
doente, ele não tem o menor constrangimento com os que todos os pensamentos estão liberados na unificação
outros. O praticante que manifesta esses sinais não se imutável.
preocupa mais de estar limpo ou não - ele não se preocupa A fala do praticante é como um eco nos rochedos: o
mais com sua aparência. Assim, para o praticante, nada que quer que possam dizer os outros, ele o repetirá,
mais tem importância. A razão é que os ventos entraram porque ele não tem a intenção de dizer qualquer coisa.
no canal central e que tudo está controlado pelo estado Esse sinal mostra que todas as sílabas que existem
natural. O mundo das convenções ligadas aos normalmente nos canais estão liberadas na unificação;
pensamentos não tem a menor pertinência. Todos os assim o “cravo do inexprimível fixa os pensamentos”, e
pensamentos estão imersos no estado natural. Isso é tudo é brilhante, límpido e natural. A mente do praticante é
chamado: “conduzido ao corpo sem procedimentos”. Pouco comparável à bruma que se dissolveu no espaço - não há
depois, o corpo do praticante será liberado no estado marcas nem do lugar onde se produziu sua liberação nem
natural e os três Kayas aparecerão em sua totalidade de seu destino. Tudo o que resta é a unificação e a
através da sabedoria do estado natural. sabedoria liberadas além da ilusão. A sabedoria de aparece
Em segundo lugar, a fala do praticante parecerá a brilhante com estrondo.
de um homem louco para o qual nada mais tem Esses sinais vêm ao praticante que concluiu as
importância. Ele liberou todos os pensamentos, ele não visões. O praticante recebeu quatro iniciações: para os
está mais preso por seus pensamentos e então sua palavra quatro sinais do corpo, ele recebeu as quatro iniciações da
não é mais restringida. base; ele recebeu as quatro iniciações do caminho; na
Assim, o cravo do indizível é aposto a palavra. Para mente, enfim, ele recebeu as quatro iniciações do fruto. Tal
um tal praticante, a consciência clara e a unificação são é o sinal da liberação.
muito brilhantes e é isso que o controla. Ele não se apega
mais ao menor pensamento e ao que os outros podem Reconhecer o grau de perfeição através dos
pensar. sonhos.
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 22
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A perfeição vem em função da determinação do


meditante em praticar. O melhor praticante põe um fim a
visão onírica e não se preocupa mais de aprender pelos {}
sonhos, estes são liberados na clara luz. É o sinal que ele
atingirá o corpo de arco-íris durante esta vida. O praticante
de segunda capacidade conhecerá as visões do sonho NOTAS
como um sonho e as controlará; quando ele é capaz, a
liberação será atingida durante o estado intermediário. O 52. As distinções são feitas entre e as duas técnicas a
praticante de terceira capacidade deteve as más causas fim de as clarificar uma com relação a outra, e por não
carmicas dos sonhos e só tem sonhos agradáveis. Ele sugerir que uma ou outra possa funcionar sozinha. sem a
renascerá nos reinos manifestados de maneira mágica 95. prática fundamental da visão do trekchöd, o thögal não
Segundo o Ouro Refinado: “O praticante recebeu as terá nenhuma significação, mesmo se isso possa funcionar.
transmissões de poder das visões. Graças a isso, todas as Sem o trekchöd, a base não é estabelecida para o thögal.
visões de causas secundárias são o suporte da prática. Ele Muitas pessoas desejam fazer retiros no escuro
igualmente recebeu as transmissões de poder do corpo. diretamente. Mas sem o trekchöd, não há base para que as
Graças a isso, todas as coisas materiais desaparecem e visões apareçam.
somente as claras luzes permanecem. Ele recebeu as Se esperarmos ver coisas estranhas, é possível, mas isso
transmissões de poder da mente e do vento secretas. não terá significado. A explicação é dada posteriormente.
Graças a isso, todos os pensamentos estão liberados no 53. O corpo se torna tão sutil que não podemos vê-lo a
estado natural”. olho nu, como se ele estivesse transformado em partículas
muito finas. Há muitos outros efeitos da prática nas outras
tradições. No mahamudra, por exemplo, o corpo
AS QUATRO SATISFAÇÕES desaparece e o corpo ilusório é realizado. Não é que o
corpo físico se torne o corpo ilusório, o corpo físico morre
A primeira satisfação é seguinte: que o praticante normalmente mas a mente realiza o corpo ilusório.
entenda todos os ensinamentos dos Budas, ou não, ele não 54. As causas cármicas produzem o mundo das
fica nem alegre nem triste. O praticante não busca jamais experiências, cada pessoa individual possui sua parte dessa
os entender nem a vê-los porque ele realiza visão comum. Por exemplo, pessoa chamada João, faz
completamente que o Buda não está afastado de sua parte da visão comum, mas sua mãe o verá como seu filho,
unificação. e sua mulher o verá como seu marido. É a sua parte
A segunda é que o praticante não tem mais dúvida pessoal. Então,com o corpo físico, tudo o que é parte
e não necessita de mais nada. pessoal se integra no corpo de arco-íris quando da
A terceira satisfação é que, quando o praticante vê transição final; o corpo de arco-íris é tudo que permanece
a intensidade do sofrimento dos reinos inferiores da após a purificação de toda visão cármica. O corpo inteiro se
existência, ele não tem medo. Ele não necessita rezar para transforma em luz, mas as coisas materiais e as
não renascer nesses reinos porque o estado natural foi propriedades – permanecem uma parte da visão comum.
realizado. 55. Quando um homem morre, ele deixa posses,
A quarta é que o praticante não se perferá jamais móveis, casas, mas o: “isso é meu” ou “isso me pertence”
no samsara. Ele não tem nada em sua visão que possa morre com ele. Ninguém pensará: “é meu” de uma de suas
conduzi-lo ao renascimento ou ao sofrimento. posses anteriores a menos que isso tenha sido dado ou
comprado.
Portanto, as ligações cármicas se aplicam a todas as coisas,
AS QUATRO SABEDORIAS mas é preciso distinguir dois aspectos, o aspecto social e o
aspecto pessoal. Não é, entretanto, como na visão
“Quatro servidores obedecem a suas ordens”. Hinayana, onde se acredita que após o Budha ter entrado
Essas são as quatro sabedorias: a primeira é a em Parinirvana não restou mais traços, porque se tenha ido
faculdade de distinguir claramente (o intelecto). Todas as inteiramente – não-existente. É o corpo final do
existências não se misturam. O praticante as distingue, Dharmakaya, permanente porque não-manifestado. O
pois claramente. corpo de arco-íris é o corpo manifesto da budeidade, a
A segunda é a capacidade de saber como as coisas forma do Sambhogakaya, na qual o corpo, fala e mente
estão unidas. O praticante vê a que ponto toda existência estão completamente purificados de todos os traços
está unida à consciência clara. cármicos.
A terceira é de saber como as coisas são liberadas. Como ele é uma forma do Sambhogakaya, esse corpo é
O praticante vê como as existências são liberadas no impermanente; entretanto, alguém que adquiriu o jalu (‘já’
estado natural. lus) realizou os três Kayas dos Budhas. O Dharmakaya só
A quarta é chamada a natureza última das coisas. O pode ser visto pelos Budhas; o Sambhogakaya pode ser
praticante vê que tudo o que existe é conduzido visto pelos grandes Bodhisattvas; as formas do
inteiramente ao puro estado natural; nada existe além Nirmanakaya podem ser vistas pelos seres comuns, mas
desta natureza. somente se eles tem causas cármicas necessárias. Todos
Isso conclui os 42 métodos da prática de Thögal. os corpos manifestados são impermanentes, mesmo o
Todas as visões impuras são liberadas na natureza Dharmakaya tem duas formas – o Dharmakaya da
pura. O praticante atingiu o estado sem regresso. Sabedoria (o aspecto consciência), que é impermanente e
AS ESFERAS DO CORAÇÃO 23
Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

o Dharmakaya natural (o aspecto vazio), que é 63. Löpon o traduziu por “consciência do Cuco”, mas
permanente. trata-se de um texto diferente do famoso de Tun Huang,
56. No trekchöd, não é fácil de ter visões puras, mas no que leva o mesmo nome.
thögal onde fazemos a experiência da fonte das visões, de 64. Um dos canais corresponde a consciência normal do
sua natureza e da maneira como elas se liberam. É, pois, olho, o outro é aquele do qual falamos aqui: pois, a
mais fácil purificar todos os objetos e sujeitos comuns. passagem é idêntica, mesmo se as visões de Thögal são
Trekchöd é como ler uma descrição da visão sem ver a geradas interiormente. Na medicina tibetana, esse caminho
visão em si mesma. interior é chamado o Yangje Karpo (yang rje dkar pó). Ele
57. É dito as vezes que não percebemos senão nosso viaja entre o globo ocular e os pulmões através da
próprio carma. Se nos detemos em ajudar os seres, isso cavidade occipital sobre a periferia do cérebro, e é por aí
significa que os outros seres têm uma realidade intrínseca. que vem as visões do Thögal. Normalmente, ele não é
Portanto, mesmo se temos essa convicção, não podemos, utilizado até que ele se abre pelos métodos do Thögal. No
de fato, realmente ajudar os outros. Ajudar os outros faz trekchöd, utilizamos sempre os canais normais do olho.
parte de nossa própria visão nascida de si mesmo no 65. É uma posição muito difícil com as pernas dobradas
estado natural da espontaneidade nascida de si mesma. e as mãos sobre a parte detrás do pescoço olhando para o
58. As visões aparecem sempre como existindo em si alto.
no trekchöd, mesmo se compreendemos plenamente que 66. Como para as posições do corpo, esses modos de
elas são reflexos que vem do estado natural. Então, no olhar não devem ser mantidos forte demais, de outro modo
trekchöd as visões não mudam mais – e elas são auto- isso perturbará a meditação. A coisa essencial é de
liberadas mas as visões não mudam. controlar a mente.
59. Mesmo se, no trekchöd, compreendermos que a 67. quer dizer que a mente não segue a visão.
visão é auto-criada, nossas visões estao sempre misturadas 68. No que concerne aos tigles, existem os tigles
com nossa visão ignorante; então, deveríamos praticar materiais e os tigles naturais; o tibetano para os “tigles
thögal para misturar as visões do thögal com as visões naturais” significa “vazio” “gota”.
comuns. Quando praticamos trekchöd, nos resta sempre as 69. Um capítulo do Shang Shung Nyengyu, seção dos
visões para purificar; atingir a budeidade por este método ensinamentos e das iniciações.
levará tempo. É muito mais rápido com thögal; trekchöd é 70. Esta cor é a que vemos quando fixamos o céu e que
gradual. notamos uma cor escura entre as montanhas e o céu. No
60. Esta visão é aquela da visão e da unificação. Não início, veremos a cor azul escura ainda mais escura que em
podemos separar a visão pura da unificação – elas se outros lugares; isso quer dizer que as visões começaram. É
desenvolvem ao mesmo tempo. como no momento quando começa um filme e que a tela
61. Literalmente “bhumi” significa “terra” mas, aqui, está escura.
falamos dos níveis da mente. Os dez bhumis representam 71. A aparição ou não desta visão – a primeira visão
a capacidade crescente do desenvolvimento do azul escura – depende da qualidade de nossa prática. Ela
conhecimento. pode aparecer no céu, mas isso depende muito do
62. O Svastika é o antigo símbolo do Yungdrung praticante.
(eterno) Bön. Os bhumis dos quais falamos aqui são níveis 72. Quando praticamos, parece que o espaço está
segundo o Prajnaparamita Bönpo. Se os estudarmos mudando, mas o espaço exterior não é a base dessas
globalmente, elas parecerão todas se refletir uma na outra. visões. Elas vem do interior.
Cada uma tem seu próprio início, um objeto a purificar e 73. Aqui, não há apreensão ou focalização – para nós é
um conhecimento a atingir. A cada etapa, há diferentes claro é muito brilhante. É a natureza da visão de trekchöd,
visões e cada bhumi tem suas próprias deidades. Quando a natureza inseparável, a não-dualidade. É a visão
realizamos uma bhumi, veremos as divindades e elas nos trekchöd da natureza nua.
ensinarão como ir mais longe. Quando realizamos a Sem trekchöd, a prática de Thögal não caminha; sem
primeira bhumi, veremos a deidade benevolente do Don trekchöd , Thögal não é eficaz. Também não deveríamos
(dana), o Sambhogakaya da deusa da generosidade. Ela praticar Thögal somente – ele deve ser praticado
nos ensinará o antídoto dos obscurecimentos e como os paralelamente à trekchöd. Se abandonarmos a visão de
descartar. A segunda é o componente moral ou shila; e trekchöd, as visões do Thögal não terão nenhuma
assim em seguida pelos níveis os mais elevados. significação é como olhar a televisão – melhor ir ao
A filosofia Bönpo tem uma origem totalmente cinema! As visões podem surgir, mas se não há nenhuma
independente daquela da Índia e é mais antiga. Mais tarde, compreensão da ilusão, as visões não terão nenhum valor.
ela encontra seu caminho para a Índia e os indianos Todo mundo pode olhar para o sol e ter visões, e assim por
aceitaram alguns dos seus conceitos. Um exemplo diante, mas isso não quer dizer nada.
interessante é o sistema cosmológico de Vasubandhu. Esse 74. É ainda a visão do trekchöd. Mesmo se na visão do
sistema não tem nada em comum com os outros sistemas dzogchen, os sons, os raios e as luzes existam
cosmológicos budistas. Os budistas tinham o habito de espontaneamente, se não praticarmos senão o trekchöd, o
dizer que esse sistema tinha sua própria especificidade. De que existe espontaneamente não terá a possibilidade de
fato, ele é quase idêntico ao sistema Bönpo. Na tradição nos aparecer. É porque Thögal permite um processo de
Bönpo, o texto raiz é chamado o Dzöpu (mdzod pug), ele liberação de ilusão muito mais rápido, pois o que existe
foi escrito na língua de Shang Shung com uma tradução espontaneamente nos aparecerá. Mas esta visão não é
tibetana em baixo. Ele é usado até hoje. diferente daquela de trekchöd.
75. Novamente, o olho normal não vê nada; a visão
vem da unificação.
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Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig
Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

76. Essas duas consciências claras são da mesma 85. Elas provêm do estado natural e retornam a mesma
natureza, mas, quando estamos na unificação, a fonte.
consciência clara é chamada a consciência clara da 86. Isso porque, após haver atingido o corpo de luz
natureza, e quando praticamos Thögal e que as visões se (‘já’ lus), as unhas e os cabelos permanecem – nós
exibem, chamamos a consciência de a claridade – somente podemos corta-los, mas isso não faz mal, isso indica que
os nomes diferem. eles estão fora da ligação com a natureza. Vinte unhas e
77. Não há nada a pegar ou a retirar; tudo é da mesma alguns cabelos ficam.
natureza. Um dos mestres de Shardza chamado Dawa Dragpa
78. As quatro etapas não são progressivas como no realizou a reabsorção completa de seu corpo em 1932. Ele
Prajnaparamita ou nos ensinamentos tântricos com os pediu a seus alunos para construírem uma cabana, afim de
quatro caminhos, que começam com a purificação dos que ele pudesse realizar o corpo de arco-íris, e pediu para
obscurecimentos etc. Aqui, essas visões não são mais que manter o seu lugar secreto, particularmente diante de seu
um reflexo da intensidade de nossa prática; não há a irmão muito poderoso que vivia à uma jornada de
noção de purificação ou desenvolvimento de antídotos para distancia, porque senão ele iria perturbá-lo. Construíram
os obscurecimentos. uma cabana fechada, deixando apenas um pequeno buraco
79. Essas visões podem aparecer no interior dos tigles durante alguns dias, depois fecharam completamente.
ou no exterior; os tigles podem aparecer também por si Antes de entrar na cabana, ele tomou um pouco de leite
mesmos. depois mais nada. É dito que, durante este período, pouco
80. Esta técnica é simplesmente uma medida antes de sua entrada, ele desaparecia às vezes
temporária. Se não desenvolvermos essas visões, mas completamente aos olhos de seus estudantes. Depois, ele
permanecemos somente no estado natural não as entrou na cabana e, em torno dela, se ouviram palavras e
desenvolveremos rapidamente; inversamente, se não canções e foram vistos arco-íris no céu de formas
praticarmos o estado natural, poderemos ter algumas extraordinárias retos e alinhados. Após uma semana, eles
visões mas elas não serão nunca livres. Mas então, se as informaram a seu irmão, que foi muito raivoso de não ter
visões nos distraem da manutenção do estado natural, isso sido avisado. Ele viajou rapidamente até esse lugar, ele
não é bom. briga com seus alunos e demole a cabana. Fazia nove dias
Se permanecermos continuamente no estado natural sem que Dawa Dragpa havia sido ai encerrado. Quando o irmão
visões, não compreenderemos o aspecto ilusório da visão, olhou o interior parecia que Dawa ainda estava lá e ele
temos então necessidade de duas técnicas. Isso não é exclamou ruidosamente, “Todo mundo disse que tu estás
como um jogo no qual jogaríamos por interesse; não morto, mas tu não estás...” então ele sacode as roupas,
devemos nos apegar à essas visões nem as agarrar. As mas ali não havia mais nada. – somente vestimentas vazias
visões estão aí para praticar. O mesmo serve para os que Dawa vestia e que tombaram sobre o solo. Procurando
retiros no escuro: poderemos ter experiências as relíquias, ele encontra os cabelos e as dezenove unhas,
interessantes, mas elas não tem nenhum sentido em si mas não encontra a vigésima. Neste instante, o aluno
mesmas. principal de Dawa não estava ali, e quando ele apareceu,
81. Deveríamos praticar e descobrir o que funciona para ele fez prosternações ao longo de todo o caminho que o
nós – antes de tudo, somos nós que entraremos no estado conduziam ao lugar. Ele chega a cabana onde Dawa havia
natural. desaparecido, e, buscando os restos de seu mestre, ele
82. Trata-se aqui, de uma instrução fundamental encontra a unha que faltava. Ela pode ser vista ainda hoje
valiosa a qualquer tempo. Se permanecermos no estado em Deg.
natural, então as visões se manifestam. Entretanto, não Quando Shardza morreu, em 1935, ele deixou atrás um
sigamos a s visões, não sejamos distraídos por elas. corpo não maior que um prato; uma reabsorção parcial do
Existem três técnicas no Shang Shung Nyengyu – os corpo foi também realizada por seu sobrinho e seu
olhares no escuro, no espaço e na luz. A primeira não é sucessor.
descrita neste texto que menciona somente os do espaço e O caso mais recente foi o caso de quatro estudantes. Um
da luz. A prática no escuro é utilizada para estabilizar a deles era amigo pessoal de Löpon, que começou a praticar
contemplação e para o desenvolvimento inicial das visões. com um estudante principal de Shardza nos anos
83. Se procurarmos a outra metade da imagem, nada cinqüenta. Quando adveio a revolução cultural, eles foram
subsistirá – as visões partirão todas. O melhor é não tentar brutalizados com todos os monges; um morreu nesse
ver o que quer que seja. Se permanecermos no estado período e teve a absorção parcial dos elementos de seu
natural, elas virão naturalmente porque este é sua fonte. corpo. Os dois sobreviventes viveram até pouco antes da
Mas se tentarmos ver mais e tentarmos focalizar nelas, morte de Mão. Um deles deu muitos ensinamentos a
elas desaparecerão; esses não são objetos da visão. numerosas pessoas durante o período de liberação religiosa
84. Este é um comentário do Shang Shung Nyengyu em que se seguiu, e quando ele morreu em 1983, ele este
um texto chamado As Seis Lâmpadas. Se, durante este muito próximo de desaparecer. Dois monges residentes em
período, morrermos, seremos liberados no estado Kathmandu estavam presentes nesse momento, como é
intermediário, porque no início do bardo, as visões descrito no apêndice I desse livro.
começam como nesta prática. Se realizarmos que essas Uma reabsorção parcial do corpo é simplesmente o
visões emergem espontaneamente do estado natural, resultado do nível de prática atingido ao fim da existência.
então seremos liberados, porque não as agarraremos 87. O início desse processo poderia ser comparado à
como uma realidade. Isso é explicado no livro IV desse travessia de um mar: Esta etapa corresponde ao momento
texto. em que o viajante atinge o mar alto e não vê mais a costa.
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Shardza Tashi Gyaltsen
Tradução Flávio Capllonch Cardoso

88. Isso não é como se toda a visão exterior houvesse


desaparecido e que o praticante não é capaz de ver o que
quer que seja ou o que quer que isso seja. A visão que se
dissolve é a visão que está ligada à nossos próprias marcas
cármicas; de fato, o praticante pode ver os outros seres e
tudo que faz parte das marcas cármicas que ele partilha
com eles, mas ele não vê mais as suas. Nenhum
pensamento pode nos distrair; se nos olhamos em um
espelho, somos invisíveis. O praticante pode ser percebido
e as vezes desaparece. Isso depende da profundidade da
absorção no estado natural.
89. Isso faz referência a linhagem Shang Shung
Nyengyu que foi transmitida oralmente de mestre a
discípulos: durante vinte e quatro gerações, todos os
detentores da linhagem realizaram a Grande Transferência;
o vigésimo quinto Mestre Tapihritsa, perguntou a seu
discípulo Nangzher Löpo (snang zher lod pó) no VIII séc.
de colocar o ensinamento por escrito, e muitos outros
corpos de arco-íris foram registrados na linhagem escrita
que daí surgiu. E ela permaneceu ininterrupta até hoje.
90. tais manifestações são raras em nossos dias. Hoje,
as pessoas não estão mais religadas, o que quer dizer que
o praticante deve ter uma causa cármica e o mestre um
engajamento para que uma tal manifestação chegue a se
produzir.
91. Algumas vezes é explicado por analogia com uma
estátua colocada no interior de um vaso de oferendas; não
podemos ver a estátua do exterior do objeto, se bem que
no interior ela esteja presente. Da mesma maneira, mesmo
se as visões sejam dissolvidas, alguma coisa está presente;
o praticante existe espontaneamente na unificação. Mesmo
se esta analogia é freqüentemente utilizada, ela pode
causar confusão – devemos nos lembrar que a unificação
não tem interior nem exterior.
92. Shardza é o autor prolífico de mais de quatorze
volumes comportando cada um centenas de paginas.
93. Se nosso corpo é estável e não se move,
naturalmente as lâmpadas não se deslocarão
mais.
94. Isso significa que todos os pensamentos
desaparecem.
95. Esses reinos emanam dele durante o estado
intermediário.

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