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ARTIGO ARTICLE
dos ginecologistas-obstetras trabalhando em dois hospitais
maternidade de Salvador da Bahia
Silvia De Zordo 1
Abstract The objective of this qualitative study, Resumo O objetivo deste estudo qualitativo, re-
carried out in two maternity-hospitals in Salva- alizado em dois hospitais-maternidade de Salva-
dor da Bahia, was to investigate the experience dor da Bahia, foi investigar a experiência e as
and representations of health professionals, and representações do aborto legal, analisadas em con-
particularly obstetricians-gynecologists, regarding traste com as representações do aborto ilegal, dos
legal abortion in comparison with their represen- profissionais de saúde, em particular dos gineco-
tations and experience with illegal abortion. A logistas-obstetras.Usou-se como instrumentos um
questionnaire was distributed and semi-structured questionário e entrevistas semi-estruturadas com
interviews were conducted with 25 health profes- 25 profissionais de saúde (dos quais 13 ginecolo-
sionals (13 obstetricians-gynecologists) in a hos- gistas-obstetras) num hospital que oferece um ser-
pital providing legal abortion (P) and with 20 viço de aborto legal (P), e 20 profissionais de saú-
health professionals (9 obstetricians-gynecologists) de (dos quais 9 ginecologistas-obstetras) em outro
in another hospital that does not provide this ser- hospital, que não oferece este serviço (F). Os fato-
vice (F). The factors that influence the represen- res que mais influenciam as representações dos
tations and experience of abortion of most obste- ginecologistas-obstetras entrevistados acerca do
tricians-gynecologists and explain the high rate of aborto e que explicam a alta taxa de objeção de
conscientious objection at Hospital P were: 1- the consciencia no hospital P foram: 1- a criminali-
criminalization of abortion and the fear of being zação do aborto e o medo de serem denunciados;
denounced; 2- the stigmatization of abortion by 2- a estigmatização do aborto por certos grupos
certain religious groups and by the physicians religiosos e pelos proprios médicos; 3- o treina-
themselves; 3- training in obstetrics and the lack mento em obstetrícia e a falta de uma formação
of good training in the epidemiology of maternal boa no campo da epidemiologia da morbi-morta-
morbidity-mortality and abortion; 4- represen- lidade materna e do aborto; 4- as representações
tations on gender relations. The main factors as- acerca das relações de gênero. Os fatores princi-
sociated with liberal attitudes were: age – under pais associados à atitudes liberais foram: a idade -
30 and over 45 years of age – experience with high abaixo de 30/acima de 45 anos - a experiência
1
Department of maternal mortality rates due to abortion and ex- com altas taxas de mortalidade materna devidas
Anthropology, perience with legal abortion. ao aborto e a experiência com o aborto legal.
Goldsmiths-University of
Key words Abortion, Stigma, Conscientious ob- Palavras-chave Aborto, Estigma, Objeção de cons-
London. 8 Lewisham Way,
SE14 6NW London. jection ciência
ans01sd@gold.ac.uk
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De Zordo S
de entrevistados foram: anestesistas, enfermei- vai trabalhando com isso... se necessário a gente
ras, auxiliares de enfermagem, assistentes soci- faz outros atendimentos...
ais, psicólogas e as diretoras dos Hospitais. Feita Nas entrevistas, contaram as psicólogas, às
exceção por aqueles que estavam de férias ou de vezes emergiam conflitos entre mães e filhas em
licença prêmio ou maternidade, todos os gineco- torno da gravidez ou da decisão de interrompê-
logistas-obstetras foram convidados a partici- la e acontecia, embora raramente, que uma ado-
par seja pela pesquisadora principal e/ou sua as- lescente decidisse não interromper a gravidez.
sistente de pesquisa, seja através de cartazes pen- Graziella, outra psicóloga, acrescentou: nosso
durados no quarto de descanso deles. Porém, só objetivo não é dizer se é verdade ou mentira, ou
40% aceitou participar. Uma minoria de médicos seja se a mulher solicitando um aborto legal tem
recusou por causa do tema da pesquisa, demasi- sido estuprada, como afirmaram alguns gineco-
ado sensível para eles. A maioria alegou falta de logistas-obstetras, mas é: avaliar se ela tem con-
tempo, mas recusou também ser entrevistado dições psicológicas para passar pelo processo de abor-
fora do hospital em horários mais convenientes, tamento legal [...]. A gente dá informações de como
o que poderia indicar uma resistência a se con- esse abortamento é feito... para que ela tenha con-
frontar com o tema da pesquisa. Vale considerar dições de suportar.
também que a pesquisa teve uma duração mais A maioria dos ginecologistas-obstetras en-
curta do que tinha sido planejado (um mês em trevistados no Hospital P consideravam impor-
vez de três), devido ao longo processo de avalia- tante não só que estas pacientes passassem pela
ção e aprovação do projeto de pesquisa pela entrevista com a assistente social e a psicóloga,
CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pes- mas também que cada caso fosse avaliado pelo
quisa). É possível que em 3 meses se tivesse cole- comitê de ética do hospital. O objetivo deste pro-
tado um número maior de entrevistas. cesso era, na opinião deles, verificar: 1- se tinham
as indicações para uma interrupção legal da gra-
videz; 2- se tinha alguma condição clínica que
Resultados impedia o procedimento, e, por fim, 3- se a mu-
lher estava segura, se ela queria abortar. Só uma
A experiência e a opinião dos profissionais minoria de ginecologistas-obstetras, os que ti-
de saúde acerca do aborto legal e da Lei nham uma atitude muito conservadora acerca
do aborto (3), falaram que era preciso confir-
No Hospital P, 89 mulheres vítimas de estu- mar se havia tido um estupro ou não. Como
pro, grávidas, pediram para interromper a gra- explicou um deles, católico praticante e contrário
videz entre 2002 e 2008, mas só 49 conseguiram ao aborto sem nenhuma exceção: Elas podem
um aborto legal (dados fornecidos à pesquisa- mentir... tanto que você não pode fazer [...] tem
dora pela Diretoria do Hospital P em outubro que passar pela comissão de ética... ser avaliado...
2009). Em muitos casos, quando as mulheres julgado... Outra ginecologista, ela também a fa-
solicitavam o aborto ou quando o comitê de éti- vor de uma Lei mais restritiva, contou um caso
ca do hospital aprovava o pedido delas, o prazo no qual ela tinha tentado convencer a paciente a
legal para o abortamento já tinha decorrido. não abortar: Ela tinha tido na verdade já relações
De acordo com as assistentes sociais e as psi- sexuais outras vezes com a pessoa... A mãe insistia,
cólogas, estas mulheres, na maioria dos casos porque não queria. Eu não concordava, tentei con-
adolescentes ou mulheres jovens, são encaminha- vencer a filha e a mãe, não se dava para entender o
das por instituições que se ocupam de mulheres que a filha queria. Neste caso não era bem claro se
vítimas de violência e oferecem assistência psico- tinha sido estupro por uma pessoa conhecida. Era
lógica. Porém, quando chegam ao hospital elas mais uma gravidez indesejada do que estupro. Ela
devem passar por outra entrevista com a assis- foi abortada, com 5 meses: foi quase um parto. Esta
tente social e com a psicóloga. Por quê? ginecologista, espírita, era contrária ao aborto
Uma das psicólogas, Janaina (todos os no- também em caso de estupro. Porém, ela acres-
mes são fictícios), explicou: a gente vê qual o esta- centou: Vendo pelo lado religioso não concordo,
do emocional dela [...] e também os recursos psí- mas se fosse comigo eu gostaria de fazer um aborto.
quicos dela para enfrentar essa situação... e a pos- A maioria dos ginecologistas-obstetras do
sibilidade de interrupção dessa gestação... a gente Hospital P concordava com a Lei atual sobre o
procura saber com elas qual a decisão delas... algu- aborto, e acrescentou que o aborto deveria ser
mas já vem com uma decisão tomada [...] e outras legalizado também em casos de malformações
vem ainda um pouco em dúvida... então a gente fetais graves. Seis dos 13 ginecologistas entrevis-
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final dessa história eu não sei... o fato é que ela não As mulheres que chegavam com abortos in-
reconhecia o filho... ela não teve uma relação mãe completos no hospital eram consideradas clan-
e filho... ela não queria nem ver a criança. Outra destinas por duas razões principais, citadas pelos
ginecologista relatou o caso de uma mulher lés- ginecologistas: 1- porque ocupavam os leitos que
bica que tinha sofrido violência por um grupo de deveriam ser reservados às mulheres grávidas, e
homens da rua onde morava e tinha ficado grá- 2- porque a missão da obstetrícia é salvar a vida,
vida. Depois de solicitar um aborto legal ela ti- ou, como falou um ginecologista: cuidar dos fetos
nha desistido porque tinha sofrido ameaças pelo vivos. Porém, a maioria dos médicos descreveu as
grupo. mulheres que induziam o aborto como vítimas
A maioria dos profissionais de saúde entre- de difíceis condições econômicas, sociais e famili-
vistados considerava moralmente justificável a ares, o que justificava parcialmente a decisão de-
decisão de abortar das mulheres “vítimas” da vi- las, e nenhum ginecologista tinha recusado ou
olência masculina, ou seja, em caso de estupro, recusaria atender uma paciente com sintomas
mas nem sempre em caso de gravidez indeseja- graves. As assistentes sociais e algumas auxiliares
da. Ainda existe um preconceito, falou uma jo- de enfermagem mostraram ter mais empatia com
vem ginecologista do Hospital P, aquela questão estas pacientes. Uma auxiliar de enfermagem fa-
de julgar... de ver de forma... superficial aquilo ali... lou: eu passei por uma gravidez não planejada e
eu confesso que ás vezes eu também penso como meu marido foi embora: foi difícil mesmo.
elas são capazes disso... mas eu paro... porque eu Kumar et al.21 afirmaram que a mulher que
não tenho que fazer isso... mas eu acho que grande induz o aborto muitas vezes é estigmatizada, na
parte dos médicos julgam as pacientes... inclusive família, na comunidade ou no hospital/clínica
eu [...] tento não fazer para não prejudicar a mi- onde ela é atendida, porque transgride toda uma
nha relação com elas... mas eu acho que ainda são série de normas de gênero: ela é a demonstração
vistas desta forma clandestina. Os médicos mais concreta que nem todas as mulheres tem aquele
jovens acusavam em particular os mais velhos “instinto maternal” que as levaria a cuidar dos
de serem preconceituosos e questionavam seus seres sociais mais vulneráveis – a criança, e, por
próprios preconceitos. Porém, a maioria dos extensão, o feto, mas também os doentes e os
médicos, incluindo os jovens, fazia uma clara dis- velhos – que a maternidade não é sempre central
tinção moral entre as candidatas ao abortamen- na vida de uma mulher e que a sexualidade femi-
to legal – pacientes “legítimas” -– e as mulheres nina não é sempre finalizada à reprodução.
que chegavam ao hospital com um abortamento A maioria dos profissionais de saúde entre-
incompleto, “clandestinas”. vistados, embora considerasse a experiência da
Alguns médicos denunciaram a atitude puni- maternidade muito importante na vida das mu-
tiva que alguns colegas ou auxiliares de enferma- lheres, considerava as mulheres pobres que ti-
gem tinham com as pacientes que tinham indu- nham muitos filhos e as mulheres jovens e as ado-
zido o aborto, o que fazia com que elas fossem lescentes que ficavam grávidas irresponsáveis. A
esquecidas e deixadas sangrando durante horas. prioridade, para as mulheres jovens, pobres, de-
Vários médicos relataram o caso de uma mulher via ser o estudo, finalizado à procura de um bom
que foi “esquecida” e morreu em outra unidade trabalho. Elas deviam, então, usar métodos con-
de saúde. A ginecologista que atendeu esta paci- traceptivos eficazes e assumir a responsabilidade
ente contou: eu presenciei aqui nesta maternida- da contracepção sozinhas porque, como falaram
de... uma situação de uma moça... me parece... de muitos, os homens são machistas e não cuidam
vinte e três anos... ela já estava gestante de umas da contracepção. Sendo vários métodos anticon-
vinte semanas... usou vinte e cinco comprimidos ceptivos oferecidos de graça pelos centros públi-
de cytotec... por uma orientação da amiga... e pro- cos de saúde, uma gravidez não desejada não era,
vavelmente ela rompeu a bolsa... e ficou em casa então, considerada totalmente justificável.
[...] dois... três dias... veio pra cá... uma hora da
tarde... isso foi uma falha muito grande do siste- A objeção de consciência
ma... só foi atendida umas seis horas [...] e ela já
estava em pré-choque séptico... ela desmaiou... bai- Ao contrário do aborto induzido, o aborto
xou a tensão [...] quando eu cheguei no plantão... por estupro era moralmente justificável na opi-
encontrei essa paciente em choque séptico [...] ela nião da maioria dos profissionais de saúde en-
foi transferida daqui... uma hora da manhã [...] trevistados. Porém, muitos médicos se pergun-
chegou na maternidade referência... e morreu cin- tavam: e se elas mentirem? Embora a maioria deles
co horas da manhã... não se definisse religiosa praticante e não consi-
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A maioria dos obstetras entrevistados nos da paciente este deve ser real e iminente. Ao mes-
dois hospitais, incluindo os jovens, tinha visto mo tempo, muitos médicos, incluindo aqueles
pelo menos uma mulher morrer de aborto indu- contrários à legalização do aborto, se queixaram
zido através de manipulação ou, mais raramen- da falta de debate sobre este tema e afirmaram
te, de autoadministração de citotec. Porém, ape- que um treinamento e uma discussão interna
nas 1/4 deles sabiam que o aborto é a primeira aberta sobre o aborto legal seria útil para evitar o
causa de mortalidade materna em Salvador. Os sofrimento e o constrangimento dos médicos que
médicos acima de 45 anos tinham presenciado são contra e para oferecer um serviço melhor a
mais de uma morte por aborto clandestino, em nossas pacientes, não só às estupradas, mas tam-
particular antes que o citotec se tornasse o meto- bém às que induziram abortos clandestinos.
do abortivo por excelência, e eram a favor da
legalização do aborto para salvar a vida das
mulheres pobres, que os realizam de forma inse- Conclusões
gura. Porém, nem todos estariam dispostos a re-
alizar procedimentos abortivos caso fossem lega- Esta pesquisa indica que os fatores que mais in-
lizados, em particular os médicos homens. Ne- fluenciam a prática clínica e as representações dos
nhum deles se definiu religioso praticante. Porém, ginecologistas-obstetras entrevistados acerca do
um deles, que praticava abortos só em casos de aborto são: 1- a criminalização do aborto e o
risco de morte materna, falou: Deus ainda manda medo de serem denunciados; 2- a estigmatização
em mim [...] eu sinto que tenho que reformar de do aborto por certos grupos religiosos, interna-
acordo com essa questão... mas ainda não me sinto lizada pelos proprios médicos; 3- o treinamento
a vontade para fazer essa reforma. Outro, que fazia em obstetrícia e a falta de uma formação boa no
abortos também em caso de estupro, explicou campo da epidemiologia da morbi-mortalidade
que faria abortos legais, caso mudasse a Lei, mas materna e do aborto; 4- as representações dos
só se não tivesse outro médico para fazer: isso não médicos acerca das relações de gênero e do com-
é uma situação tranquila para mim [...] não é uma portamento sexual, contraceptivo e reprodutivo
questão religiosa... não é um temor a Deus... não é de suas pacientes. Estes fatores, e em particular
uma questão filosófica... eu nunca consegui definir os primeiros três, levam muitos ginecologistas a
isso com clareza.... Por fim, um colega dele, que se recusarem a realizar abortos legais.
não tinha realizado ainda abortos legais porque Porém, apesar da alta taxa de objeção de cons-
trabalhava em outro serviço do hospital, mas era ciência, a maioria dos médicos do Hospital P se
favorável a legalização do aborto, explicou: posso declarou favorável à Lei atual e acrescentou ser
dizer... que eu me sinto mal... interrompendo uma favorável à legalização do aborto em casos de
vida... assim se eu tivesse que matar um animal anencefalia e malformações fetais graves. Quase
para me alimentar... eu poderia até fazer... mas não a metade dos ginecologistas entrevistados neste
me sentiria bem [...] agora... se você me perguntar hospital e 1/3 dos ginecologistas que trabalha-
quando eu considero vida... um embrião [...] se é vam no outro hospital afirmaram ser favoráveis
até dez semanas [...] até doze... se tem consciência à legalização do aborto. A idade – abaixo de 30/
ou não tem consciência... essa é uma discussão que acima de 45 anos – a experiência com altas taxas
não acaba nunca... e eu não quero entrar nela... de mortalidade materna devidas ao aborto e à
porque na verdade é uma questão de como eu me experiência com o aborto legal foram os fatores
sinto... mas eu não julgo essas mulheres... e nem as principais associados às atitudes liberais acerca
considero como pecadoras. dessa prática. Na opinião dos médicos favorá-
A partir da 12ª semana se formam os ossos e o veis à legalização, deveria ser legalizado para não
feto começa a ter a aparência de uma criança, discriminar as mulheres pobres que não têm aces-
apontaram vários médicos. Por esta razão eles so a todos os métodos anticonceptivos, não con-
tinham dificuldade a realizar abortos legais e a seguem sustentar muitos filhos e não podem
não julgar as mulheres que induziam abortos em pagar por abortos seguros em clínicas clandesti-
idade gestacional avançada. Só uma minoria dos nas. Estes argumentos são utilizados também
ginecologistas entrevistados sabia que, de acor- pelo movimento feminista e pelos políticos de
do com as Normas Técnicas e com o Código de esquerda para defender sua legalização. Isso de-
Ética médica, os médicos podem se recusar a re- monstra que as campanhas a favor da legaliza-
alizar um aborto previsto em Lei só se tiverem ção tem influenciado a opinião dos médicos so-
um colega disponível a fazer o procedimento, e bre o assunto, como apontei também em outro
muitos apontaram que em caso de risco de vida artigo23. Porém, nem todos estariam disponíveis
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