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São Paulo
2016
DANIEL CAMILO MARQUES DE REZENDE
São Paulo
2016
R467s Rezende, Daniel Camilo Marques de.
Significação, discurso e relevância : uma análise da construção
dos sentidos e da persuasão em anúncios publicitários / Daniel
Camilo Marques de Rezende – São Paulo , 2016.
102 f. : il. ; 30 cm.
CDD 401.41
DANIEL CAMILO MARQUES DE REZENDE
BANCA EXAMINADORA
Agradeço ao meu orientador e amigo, Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista, a quem
muito admiro, quem tanto me ensinou, e em quem me espelho como profissional.
Sem sua orientação, desde a graduação, não chegaria onde estou.
Palavras-chave:
Discurso publicitário; cenas da enunciação; teoria da relevância.
ABSTRACT
This research, financed by FAPESP (São Paulo Research Foundation), under No.
2014/07446-7, has as its main goal the observation of the production of meaning and
the search for effects of persuasion in the advertising discourse. Based on two
distinct theoretical streams, Discourse Analysis and Pragmatics, we sought to
analyze television advertisements – adopted as study object –, observing how its
elaboration (the language used, the process of construction of the scenes of
enunciation, the implicated information) and its way of transmitting the messages are
designed in order to make your audience attend to what is being proposed. Through
concepts like enunciation scenes, ethos, relevance, inference, it was possible to
demonstrate how each campaign adopts specific procedures depending on the
audience it wants to persuade, exploring both the typical elements of discursive
organization – seen as verbal interaction between the language users, inserted in
specific situations and contexts of communicative practices, anchored in a social,
historical and ideological dimension – and the cognitive procedures of
comprehension, guided by relevance, and the deductive inferential calculations.
Key-words:
Publicity discourse; scenes of enunciation; relevance theory.
Lista de Ilustrações
Introdução 10
Referências 95
Anexo 100
INTRODUÇÃO
11
A linguagem humana, pela sua própria complexidade, pode ser descrita, analisada e
interpretada pelos pesquisadores que a tomam como objeto privilegiado de
observação científica por meio de diferentes pontos de vista e perspectivas teóricas.
Essa diversidade vem dando corpo a uma história de longa data, configurando o que
hoje podemos nomear como a história do conhecimento linguístico ou a história dos
estudos sobre a linguagem (BATISTA, 2013). Desde o início das reflexões dos
homens sobre a linguagem, os olhares que foram lançados para os fenômenos
linguísticos, na tentativa de compreendê-los, acabaram por definir diversos
caminhos para os estudos sobre a linguagem. Essa trajetória, portanto, é constituída
de continuidades e descontinuidades de teorias e métodos, colocando em destaque
ora a forma linguística, ora as funções que essas formas linguísticas executam
quando inseridas em contextos de uso das línguas.
1
Considerando a produtividade e a presença do conceito de ethos nos estudos discursivos em língua
portuguesa no Brasil, e a recorrência do uso do termo teórico, a grafia utilizada neste trabalho será
sem destaque para a palavra.
2
Maingueneau (2004, p. 91; 97) inclui em sua análise outros elementos além do verbal, como a
apontar que sua análise também se aplica a outros sistemas de significação que não exclusivamente
o da linguagem verbal. Em especial, no emprego da categoria de análise ethos, Maingueneau se
vale, em sua análise, de elementos além dos verbais. Além disso, no tratamento do discurso literário,
os conceitos de cronografia e topografia, em que a consideração de coordenadas discursivas amplia
consideravelmente as possibilidades de seleção de materiais de análise, englobando outras
semióticas (cf. a concretização dessa possibilidade analítica no texto de Mussalim (2015)). Ainda
nesse sentido, é importante frisar a seguinte passagem, na qual Maingueneau aponta a possibilidade
do uso de seu aparato conceitual e metodológico para outras linguagens além da verbal (o destaque
na citação é nosso): “Também não consideramos a dimensão icônica (fotos, desenhos, esquemas,
14
A base teórica desta pesquisa também está alicerçada na Pragmática, que estuda a
linguagem em uso, observando a relação entre a estrutura da língua e os processos
de enunciação que colocam essa estrutura em funcionamento (ARMENGAUD, 2006;
BATISTA, 2012; HUANG, 2007; LEVINSON, 2007). Dentre os fenômenos
linguísticos de interesse dos estudos da Pragmática estão os enunciados
performativos, os constatativos e os atos de fala resultantes do uso desses
enunciados (AUSTIN, 1990; SEARLE, 1981); o princípio de cooperação, que rege as
trocas conversacionais e as máximas que garantem a eficácia da interação verbal
paginação...) dos textos, de forma a nos concentrar unicamente na matéria verbal. Mas trata-se
apenas de uma escolha didática: um texto publicitário, em particular, é fundamentalmente
imagem e palavra; nele, até o verbal se faz imagem” (MAINGUENEAU, 2004, p. 12).
15
(GRICE, 1989). Esses objetos e pressupostos teóricos constituem, por assim dizer,
uma feição clássica da Pragmática, que tomou forma pelas contribuições de Austin,
Searle e Grice, principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Na década de 1980,
essa dimensão clássica do campo pragmático de estudos sobre a linguagem
testemunhou a presença de rupturas e a proposição de novas miradas teórico-
metodológicas. Nesse recorte histórico, a Teoria da Relevância (SPERBER &
WILSON, 1986, 1995, 2005) foi proposta como uma revisão das contribuições de
Grice e seu Princípio de Cooperação3.
3
Há diferentes estudos realizados no âmbito da Teoria da Relevância, como afirmam Rauen e
Silveira (2005, p. 9), na apresentação de um volume especial do periódico Linguagem em (Dis)curso:
“Hoje é objeto de estudos e pesquisas em artigos, livros, revistas e periódicos, dissertações de
mestrado, teses de doutorado, seminários, cursos, palestras, em diversas áreas, especialmente as da
Linguística, Literatura, Psicologia e Filosofia”.
16
4
“Sperber e Wilson apresentam sua teoria como um modelo geral capaz de explicar qualquer tipo de
comportamento ostensivo e não apenas a comunicação verbal.” (ANDRADE, 2001, p. 165, ênfase
adicionada)
17
Pelo que foi exposto, esta análise propõe uma complexa configuração teórico-
metodológica, ao associar, como instrumentais de análise, elementos de uma
análise discursiva na perspectiva de Maingueneau e elementos de uma análise
pragmática. A polêmica concentra-se, essencialmente, na conhecida distinção que
se costuma postular entre análise discursiva e análise pragmática, tendo em vista o
papel do sujeito da linguagem que cada um dos campos teóricos delimita.
Dessa maneira, como analisa Possenti (1996), a quem seguimos para justificar
nosso posicionamento teórico-metodológico, haveria entre esses dois campos de
análise uma incomensurabilidade6. No entanto, na linha de reflexão de Possenti
5
“Se definirmos a pragmática pela sua via mais clássica, relembrando Morris, falar da relevância de
fatores pragmáticos será postular a necessidade de levar em conta o papel do próprio falante na
análise de fatos da linguagem. De uma certa maneira, poder-se-ia dizer que a AD faz a mesma coisa,
e, por isso, ela nem deveria distinguir-se da pragmática. De fato, há análises de discurso que se
distinguem da pragmática basicamente porque tomam textos como seus objetos de análise, ao invés
de enunciados mais simples. Mas, há uma análise do discurso que quer distinguir-se, e se distingue
efetivamente da pragmática – teórica e ideologicamente -, em grande parte como decorrência de uma
diferente concepção desse mesmo falante – pela diferença de discurso sobre o sujeito. A AD, por ser
marcada pelo estruturalismo, pela psicanálise e pelo marxismo [...], se caracteriza, em sua relação
com a pragmática, por uma recusa total de determinados ingredientes que são fundamentais para
essa última.
Sumariamente: para a pragmática, a relação do falante com a língua é postulada de forma não só a
permitir, mas a exigir que o falante individual (falante ou ouvinte) seja concebido como detentor de um
certo conhecimento em relação à língua e às circunstâncias de utilização da língua, sendo, por isso
mesmo, capaz de realizar, na posição de ouvinte/leitor, cálculos relativamente sofisticados (e
relativamente conscientes) a partir dos quais, por exemplo, seleciona, dentre os fatores do contexto,
aqueles que são relevantes para interpretar adequadamente uma certa sequência linguística e,
simetricamente, na função de falante/autor, sendo capaz de realizar um cálculo semelhante, para
escolher as formas mais adequadas para obter os efeitos que deseje da forma mais eficaz possível,
em função de suas intenções.” (POSSENTI, 1996, p. 76)
6
“Tal incomensurabilidade pode ser facilmente atestada. Dou exemplos: ao falar de texto ou de
discurso os analistas de discurso tematizam o interdiscurso, a polifonia, o processo histórico de
produção; os ‘pragmaticistas’ tematizam a coesão, a coerência, o processo interpessoal de produção
e compreensão. Categorias relevantes para os analistas do discurso são o pré-construído, a memória
discursiva; para os ‘pragmaticistas’, a memória de curto ou longo prazo, o conhecimento partilhado. A
pergunta que me faço é se cada um dos programas pode, sem perdas relevantes, dispensar-se de
considerar as propriedades do acontecimento discursivo que o outro campo considera constitutivas.”
(POSSENTI, 1996, p. 74)
18
(1996), esse limite extremo entre uma certa análise de discurso e uma certa análise
pragmática pode ser ultrapassado, em nome de uma abordagem que procure de fato
identificar aspectos analíticos em textos e discursos, sem que se corresse o risco da
criação de um aglomerado sem sentido de teorias e métodos. Como afirma o
linguista aqui citado, “se os objetos são complexos, as teorias não podem ser
simples e que teorias locais (ou teorias auxiliares) são uma tradição na história das
ciências” (POSSENTI, 1996, p. 71).
Ainda nesse sentido, cabe mencionar que há já uma destacada tradição de estudos
pragmáticos que se constituem em diálogo com os estudos do discurso. Veja-se, por
exemplo, a publicação organizada por Louis de Saussure e Peter J. Schulz para o
periódico Pragmatic Interfaces, editado pela prestigiosa editora holandesa John
Benjamins. No volume 15 há textos como os de Ruth Wodak (“Pragmatics and
Critical Discourse Analysis: A cross-disciplinary inquiry”) e de Louis de Saussure
(“Procedural Pragmatics and the Study of Discourse”) que nos indiciam a
produtividade do diálogo entre as áreas7. Além disso, também podemos apontar a
publicação do volume 8 da série, publicada pela mesma John Benjamins,
Handbooks of Pragmatics Highlights, editado por John Zienkowski, Jan-Ola Ostman
e Jef Verschueren. O volume aponta para a produtividade dos estudos que se
inserem em região de interface entre a Pragmática e a Análise do Discurso, além
dos diálogos com a Análise Conversacional, a Análise Crítica do Discurso e outras
perspectivas de análise textual-discursiva.
Ainda nesse sentido, lembramos que Maingueneau (2004) nos oferece outra
abertura para o diálogo quando em Análise de textos de comunicação trata do que
ele denomina como leis do discurso, retomando, para isso, a proposta pragmática de
Grice e suas máximas conversacionais. Ampliando essa perspectiva, se a Teoria da
Relevância se constrói a partir do desenvolvimento de um dos pontos elencados por
Grice em seu princípio de cooperação – a máxima da relevância – por que não
colocar a proposta de uma teoria da relevância em diálogo com essas leis do
7
“[...] a theory of context combined with a theory on the semantic-pragmatic interface should prove
sufficient to explain discourse, in whichever sense, along the idea that discourse should be viewed as
a process, not as a whole, following the claims of a number of scholars in the field.” (SAUSSURE,
2007, p.139). Em uma tradução livre: “uma teoria do contexto associada a uma teoria na interface
(intersecção) da semântica com a pragmática deve se mostrar suficiente para explicar discurso, em
qualquer que seja o sentido, tendo em vista a ideia de que discurso deve ser visto como um
processo, e não algo terminado, de acordo com as asserções de diversos pesquisadores da área.”
(tradução nossa).
19
Como se, para invocar um papel ativo para o sujeito falante, fosse
necessário supor que então ele estivesse fora da história. Penso que
as oposições relevantes (e baseadas em boa lógica) são oposições
do tipo “o sujeito faz vs. o sujeito não faz”, “sabe vs. não sabe”, “é
individual vs. é social”, e não, por exemplo, “o sujeito sabe vs. é
social”, como se o fato de alguém ser social implicasse em que não
pode conhecer; ou se o fato de atribuir-se uma ação a alguém
devesse implicar que ele não é social. Qual a incompatibilidade entre
ser social e ser ativo? Qual a incompatibilidade entre ser “clivado”,
dividido, e poder conhecer, ter experiências relevantes? (POSSENTI,
1996, p. 81)
A junção teórica que propomos procura lançar mão de elementos que, em conjunto,
podem contribuir para uma análise mais abrangente da produção de sentidos e dos
efeitos persuasivos nos anúncios publicitários. Desse modo, de uma análise
discursiva colocamos em funcionamento os conceitos e métodos que enfatizam o
aspecto social, histórico e ideológico das práticas discursivas, sempre circunscritas a
contextos específicos de interação verbal, em meio a domínios discursivos e
gêneros apropriados para as práticas de linguagem que possibilitam a ação humana
em toda sua multiplicidade e complexidade. Já a abordagem da pragmática em torno
do conceito de relevância, a partir da perspectiva essencialmente cognitiva de
Sperber & Wilson, contribui para que possamos analisar a produção de implícitos na
21
Assim, queremos insistir que a prática discursiva não é apenas uma atividade
localizada social, cultural, ideológica e socialmente, mas também está articulada a
uma série de conhecimentos de natureza cognitiva. Esses conhecimentos são
empregados pelos falantes em todas as situações comunicativas. Temos, portanto,
um ciclo que se fecha com a proposta de um posicionamento teórico-metodológico
que se define em dois caminhos que entendemos como complementares, pois
ambos apelam para uma noção ampla de conhecimentos que devem ser
compartilhados (seja em relação ao conceito de interdiscurso nas análises
discursivas, seja em relação ao conceito de compartilhamento cognitivo e relevância
na abordagem pragmática da Teoria da Relevância).
Sendo assim, a execução deste trabalho encerra uma justificativa mais ampla em
sua realização, pois também pretende contribuir, nos limites de sua execução, para
uma série de estudos linguísticos que colocam no ponto principal de observação o
falante e a produção de sentidos, ambos contextualizados social, histórica e
ideologicamente.
1ª Peça:
8
O material de análise desta pesquisa será nomeado como anúncio publicitário televisivo e como
comercial publicitário televisivo – cada um com suas respectivas formas reduzidas
(anúncio/comercial publicitário, anúncio/comercial televisivo e anúncio/comercial) –, ambos
relacionados ao mesmo gênero discursivo específico, e peças publicitárias televisivas (e suas
formas reduzidas), referindo-se ao mesmo objeto. A variação obedece apenas a um caráter estilístico
de produção textual, para evitar recorrências demasiadas de itens e expressões lexicais.
25
2ª Peça:
3ª Peça:
d) Como o comunicador constrói sua mensagem atento a sua audiência, para que
ela perceba o que é relevante no processo comunicativo e o que merece ser
processado cognitivamente (WILSON & SPERBER, 2005, p. 229), analisa-se de que
modo foram empregadas estratégias linguísticas, visuais e sonoras para garantir nas
mensagens e na sua transmissão uma relevância ótima, tal como entendida pela
Teoria da Relevância (WILSON & SPERBER, 2005);
O leitor vai perceber que optamos, neste trabalho, por uma apresentação teórica
conjunta à análise, em vez da separação de capítulos específicos de referencial
teórico e capítulos específicos de análise.
30
A conclusão apresenta uma síntese entre as análises feitas a partir das duas
perspectivas adotadas, procurando observar como as análises e as teorias foram
pertinentes no desenvolvimento dos objetivos propostos inicialmente.
31
CAPÍTULO I
Na tentativa de definir discurso, Helena Brandão (in FIGARO, 2013) aponta três
características constitutivas desse objeto de estudo. Primeiramente, “ele ultrapassa
o nível puramente gramatical, linguístico” (BRANDÃO, 2013, p.19). O discurso se
estabelece não apenas em cima desses elementos linguísticos concretos, mas
também em aspectos extralinguísticos, que afetam diretamente sua produção e seus
efeitos.
A partir dessas considerações, Maingueneau define texto como sendo “[...] o rastro
deixado por um discurso em que a fala é encenada” (MAINGUENEAU, 2004, p. 85),
introduzindo, em sequência, o conceito de cenas da enunciação, o qual
adotaremos em nossas análises dos materiais selecionados.
A cena englobante é aquela que filtra a realidade dentro da qual o falante deve se
situar para interpretar um discurso, e é determinada pelo tipo de discurso ao qual ela
se associa. Uma produção pode estar associada, para dar exemplos, ao discurso
religioso, ou ao discurso publicitário, ou ao discurso político, etc. Ao analisar um
discurso de posse do presidente, um panfleto de candidato (os chamados
“santinhos”) ou um adesivo de carro (de campanha política), imediatamente
reconhecemos que estes são abarcados pela mesma cena englobante, a do
discurso político.
Por ser a mais lato, a cena englobante é a mais fácil de se identificar. Assim, ao
receber, por exemplo, uma conta de luz em sua casa, o falante deve
automaticamente reconhecer que ela pertence ao tipo de discurso financeiro, e que,
portanto, é nessa cena englobante que ele deve se situar para interpretá-la.
9
É importante notar que não nos deparamos com um discurso na realidade. O discurso é virtual, não
apreensível, como um objeto etéreo. O que encontramos são os gêneros discursivos, que
apresentam conteúdo temático, estrutura composicional e estilo, e que são utilizados para manifestar
um discurso.
36
seria pensar nos gêneros como copos de suco, copos de água, copos de leite, etc,
os quais já trazem em si um valor, um conteúdo. Ele, no entanto, completa:
Em síntese, Alves Filho diz que gêneros podem ser vistos como “formas de
organizar dinamicamente a comunicação humana e de expressar diversos
significados de modo recorrente” (2011, p.21), cujo funcionamento “inclui, além da
forma e dos conteúdos, valores, situações, ideologias e papéis sociais
representados por sujeitos interagindo através dos gêneros” (2011, p.27), isto é,
todas as condições de circulação e autoridade de determinado gênero.
São esses aspectos que determinam a cena genérica estabelecida pelo enunciado.
No caso – apresentado anteriormente – da conta de luz, é preciso que o falante
perceba que se trata de uma carta de cobrança, que implica um “prestador de
serviço” se dirigindo a um “consumidor”, com um contrato de prestação de serviço,
com dados de consumo, valor de pagamento, data de vencimento, etc.
Entretanto, como aponta Maingueneau, não é diretamente com o quadro cênico que
o ouvinte se depara, mas sim, com a chamada cenografia. Cenografia é a situação
de enunciação que é proposta pelo próprio enunciado. Uma piada, por exemplo,
está dentro da cena englobante cômica, da cena genérica de piada (em vez da
charge, ou da sátira, ou do stand-up, etc), mas apresenta sua cenografia à medida
que é enunciada – por exemplo, “dois homens estavam em um bar”. O ouvinte passa
a imaginar então essa situação de dois homens dentro de um bar, e todos os outros
37
elementos que vão sendo introduzidos. E essa cena de enunciação, apesar de ser
suposta desde início, é legitimada e validada progressivamente à medida que o
enunciado se apresenta. Como descreve Maingueneau:
Há gêneros discursivos que não admitem grande variação em sua cenografia, como
é o caso de uma receita de médico, ou de um formulário, por exemplo. Nesses
casos, a cenografia se limita basicamente aos padrões da cena genérica.
Observemos esses dois exemplos do gênero receitas médicas, de prescrição de
medicamento a pacientes:
Por outro lado, há tipos de gêneros que oferecem uma variedade tão grande de
cenografias que dificilmente permitem prever qual efetivamente será empregada.
São os casos do discurso literário, publicitário, político, etc.
Qualquer discurso – quer oral, quer escrito – implica um ethos, como uma
representação de seu responsável, a imagem do enunciador (uma vez que um
discurso pressupõe o seu produtor). A essa imagem, atribui-se um tom (a entonação
da voz, sua dimensão vocal), um caráter (conjunto de traços psicológicos) e uma
corporalidade (conjunto de traços físicos e indumentários) (MAINGUENEAU, 1998,
p.60).
O termo ethos, que vem da Retórica aristotélica, aponta para a imagem de si que é
construída e comunicada implicitamente pelo enunciador por meio do próprio
enunciado.
moralmente censurável, pode construir seu discurso com marcas que lhe confiram
uma boa imagem.
Um aspecto importante nessa definição de ethos é o fato de ele não ser dito
explicitamente: “O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz
que é [...] honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir” (MAINGUENEAU apud
Eggs, 2008, p. 31).
Assim, não é por dizer “eu sou honesto” que um orador confere à sua imagem essa
característica. Na realidade, é provável que isso lhe confira a imagem de prepotente
ou arrogante. Ou seja, como aponta Ducrot, ethos “não se trata das afirmações
elogiosas que o orador pode fazer sobre sua própria pessoa no conteúdo de seu
discurso, [...] mas da aparência que lhe conferem o ritmo, a entonação, [...] a escolha
das palavras, dos argumentos...” (apud Maingueneau, 2004, p.107).
Cabe, aqui, fazer uma distinção entre o ato de persuadir e o ato de convencer.
Convencer implica uma mudança de opinião, implica a suplantação de conceitos já
existentes, o que é trabalhoso, e pode ser muito demorado. Já a persuasão “tem
mais a ver com concordar com algo que o consumidor já pensa e, por meio dessa
concordância, trazê-lo para o produto que se quer anunciar” (FIGUEIREDO, 2005,
p.53). Ela ainda envolve um direcionamento de atitude – uma vez que o consumidor
deve ser levado a ‘comprar’ a ideia proposta –, mas de forma mais prática.
O humor, o estranhamento, o horror, o amor, o sexo, são todos temas que fazem
parte dos mecanismos utilizados pelo Discurso Publicitário para chamar a atenção
de seu público. De igual forma, as necessidades de diversas ordens (fisiológicas, de
42
Além disso, pelo fato de a televisão, de modo geral, ser um meio de entretenimento,
um gênero discursivo que se proponha a anunciar nesse meio deve, em um nível
maior ou menor, apresentar algum caráter semelhante, a fim de alcançar a atenção
do telespectador, e mantê-lo atraído.
Nota-se, ainda, como cada uma das peças se propõe a entreter o telespectador,
aliando, por meio de músicas, trilhas sonoras e piadas, um caráter prazeroso ao seu
objetivo persuasivo, estratégia típica das propagandas televisivas, o que confirma a
cena genérica na qual o material se insere.
É evidente que não se podem determinar regras muito delimitadas para a construção
das cenografias, em especial no meio publicitário. Como afirma Maingueneau, o
discurso publicitário admite “cenografias variadas na medida em que, para persuadir
seu coenunciador, devem captar seu imaginário e atribuir-lhe uma identidade”
(MAINGUENEAU, 2004, p.90). Ou seja, a depender do público-alvo da propaganda,
diferentes cenografias podem se fazer mais úteis na busca pela persuasão.
1ª peça:
Descrição:
Com a câmera em close no casal, após ambos dizerem “oi”, o homem aponta para
sua direita (em direção a um dos carros que estavam parados) e diz à atendente: “A
gente queria fazer um test-drive”. Ao fundo, está o logotipo da Volkswagen, fixado
em uma parede, atrás do casal.
A cena seguinte já mostra o carro, modelo Fox, andando na rua, com o som do
motor. Em seguida, a câmera, no interior do veículo, enquadra o funcionário no
banco dianteiro, do passageiro, indagando o motorista: “Tá sentindo o motor?”. Com
a câmera focalizando o volante, com as mãos do motorista, e o painel do carro,
ouve-se a resposta onomatopeica: “uhum”. E o funcionário continua: “E a posição de
dirigir? Perfeita, né?”. Durante esse diálogo, aparece uma pequena tarja azul, na
parte inferior da tela, escrita em amarelo: “MOTOR POTENTE”. Observa-se também
o emblema da Volkswagen no volante do carro.
Quando o funcionário parece ter terminado de apresentar tudo o que ele tinha para
falar, o motorista, com um riso discreto no rosto (ao fundo, percebe-se também a
mulher com um sorriso), pergunta ao Leandro Hassum, tocando-lhe com a mão para
chamar-lhe a atenção: “Vai fazer nenhuma piadinha, não?”. Ao fundo, sua mulher já
começa a rir.
Análise:
Outra característica dessa cenografia é o fato de ela ser elaborada, em sua maioria,
na forma de uma narração. A escolha desse tipo de organização se dá em função do
público-alvo, que é mais familiarizado com essa tipologia textual, a mesma
encontrada nas telenovelas, por exemplo. O anúncio, construído nos moldes de
novela, produz também uma identificação do público com o produto. De igual forma,
é feita a escolha por um ator popular, que teve grande projeção na rede aberta de
televisão, em programas humorísticos (informalmente, os “pastelões”), e que é
facilmente identificado por esse público alvo, por hipótese da classe média ou
média-baixa. Igualmente, a voz do locutor, pronunciando em alto som, com um tom
gritado, cheio de entusiasmo. Essas opções constroem a legitimação do enunciador
na cenografia, que procura atingir e persuadir o coenunciador que corresponda a
essa imagem da família de classe média ou média-baixa, a esse público que vê
novela, que reconhece aquele ator, que atende a esse tipo de conclamação.
2ª peça:
Descrição:
sketch, inclusive com uma linha de medição de altura ao lado do carro, e com o
escrito “Nova transmissão CVT”, no meio do para-brisas do desenho. As únicas
partes que aparecem como reais são as peças do motor e o emblema da
Honda, na frente do carro.
apenas desenhado, novamente como um sketch, desta vez com traços na cor
azul, e em papel quadriculado, sem nenhum fundo. No topo da folha
quadriculada, é possível observar uma pequena tabela com alguns dados, bem
como outros pequenos desenhos do carro em perspectivas diferentes. O banco
traseiro está marcado com linhas de medição de altura, e pode-se ver uma
bicicleta, com a roda da frente desmontada, encaixada nesse espaço do banco
traseiro. Além disso, o escrito “Sistema de bancos ULTR” aparece abaixo do
desenho.
A cena seguinte é a primeira do vídeo que não está dividida ao meio. Vê-se, de
perfil, o automóvel apresentado, na cor azul, andando por uma estrada cercada
de vegetação rasteira; ao fundo, vê-se uma montanha de grande extensão,
também coberta de vegetação.
Enquanto o narrador termina sua fala, a cena muda para um fundo preto,
mostrando um pequeno cérebro no meio da tela. Há um foco de luz
primeiramente apenas sobre seu hemisfério esquerdo, e depois apenas sobre
seu hemisfério direito. O narrador por fim anuncia, enquanto o logotipo e o
nome da marca Honda são mostrados: “Novo Honda Fit”.
Análise:
Essa escolha pela similaridade com uma pesquisa de opinião é adotada por
conta do público-alvo do anúncio. Diferentemente da peça anterior (1ª peça),
esse público, a julgar pela imagem simbólica elaborada na cenografia, não está
interessado apenas no preço e na confiabilidade da marca, mas em buscar
outras vantagens no produto oferecido. Especificamente no caso dos jovens, a
opinião de outro jovem (expressa nesse anúncio por meio do modelo da
pesquisa de opinião) tem muito peso, por conta da necessidade social de
pertencer a um grupo, muito presente nessa fase da vida. Por isso, o
anunciante se utiliza dessa estratégia na construção da cenografia,
apresentando dois perfis de jovens, representantes de dois grandes grupos em
que o consumidor pode se encaixar (esses dois grupos foram
propositadamente divididos de maneira polarizada, de forma que o ouvinte
acaba se encaixando em um deles), cada um dando as suas razões pelas
quais eles compram um carro.
ambiente formal (de escritório), usando terno, com valores mais objetivos –
projeta um ethos de jovem mais sério, trabalhador, organizado, representando
o grupo dos racionais. Esses dois ethos propostos nas personagens têm a
função de representar os ouvintes, possíveis consumidores, fazendo com que
eles se identifiquem com algum dos dois. Dessa forma, o “vendedor” molda a
sua imagem em função de seu “comprador”, para assegurar a imagem de
fiador confiável, como um valor de persuasão.
O anúncio, por meio do ethos que propõe, vai revelando, à medida que é posto
em funcionamento na situação de interação, ser voltado para um público
jovem, que se identifica com a música moderna tocada; por hipótese (a
considerar as imagens simbólicas elaboradas na cenografia) de classe
média/média-alta, que trabalha de terno, viaja frequentemente para regiões
praianas; de nível universitário, capaz de reconhecer os diversos elementos
apresentados (em especial na ala dos racionais), como uma placa de circuitos,
ferramentas eletroeletrônicas, um micrômetro, assim como culturalmente
atentos, reconhecendo instrumentos clássicos como o trompete, valorizando o
ato da pintura (óleo em tela), que saibam inglês (“loading”), atentos também a
tendências de modas e estilos (pelos óculos usados, pela pulseira de tiras de
couro, pelo cavanhaque).
optam pela emoção ou dos que optam pela razão, a melhor escolha em ambos
os casos é sempre o Novo Honda Fit 2015, que atende e satisfaz a ambos.
3ª peça:
Descrição:
O comercial começa com uma música, que serve de trilha sonora para todo o
vídeo. Com percussão bem marcada e sons ecoantes, a música começa com
um tom sombrio, que aos poucos se desenvolve em tons mais eufóricos. Ainda
que se mantenha um aspecto denso e nebuloso, ela eclode, no refrão, com
lampejos de esperança e entusiasmo.
58
Enquanto o narrador termina de fazer seu convite, a próxima cena mostra uma
estrada simples, no meio de um campo aberto, praticamente sem vegetação,
com o céu cheio de nuvens cinza. De frente para a câmera, do lado oposto da
estrada, está o módulo lunar pousado e o astronauta, vestindo o traje espacial,
ao seu lado. O modelo do carro anunciado vem andando pela estrada, da
esquerda, e freia antes de chegar ao astronauta.
Mais uma vez, o narrador fala: “Honda HR-V, a revolução na sua garagem”,
que é o slogan da campanha. Enquanto isso, a cena mostrada enfoca o
capacete do astronauta, no qual é refletida a imagem do carro, e o brilho do
sol.
Por fim, o carro é mostrado parado naquela mesma estrada, sendo enquadrado
pela câmera em direção diagonal, de baixo para cima. No canto superior-direito
da tela, aparecem três linhas de escritos, na cor branca: “Chegou o Honda”,
“HR-V”, “A revolução na sua garagem.”. A segunda frase, no entanto é
apresentada com um tamanho de fonte maior, e com traços mais grossos.
Análise:
CAPÍTULO II
10
Registrado de acordo com a variedade oral mais popular da língua, com o uso da próclise,
mesmo no início da frase.
68
não basta que se tenha a definição teórica estéril de “ontem” como o dia que
precede o dia em que se fala. Se não for possível observar as marcas no
processo enunciativo que revelam a relação efetivamente firmada com o
mundo nesta situação específica, ou seja, se não for possível determinar o dia
em que se fala, para assim compreender a que dia se refere o “ontem”, não
será possível captar e interpretar a totalidade das implicações da mensagem
transmitida.
Em suas considerações teóricas, Grice (1982, 1989) aponta para o fato de que
a comunicação verbal humana não é – e não pode ser – constituída de
enunciados soltos, com constatações desconexas, centrados em apenas um
dos interactantes da cena comunicativa, e lógicos apenas para ele, mas, antes,
70
Como neste outro exemplo, mais sutil. “Vou embora mais cedo, pois ainda
tenho que passar no mercado”. Não há dúvidas de que o que está sendo
comunicado aqui é que o motivo para o falante ir embora mais cedo é o fato de
ter de passar no mercado e que, se não o tivesse de fazer, ficaria. No entanto,
apesar de encadear essas duas ideias (ir embora mais cedo e passar no
mercado) de modo a transmitir essa mensagem, o falante, na realidade, não
disse (no sentido aqui adotado) que ir embora mais cedo é consequência de ter
de passar no mercado, mas sim o implicitou – nesse caso, por meio da
conjunção.
implicaturas. Esta última, mais sutil, que um falante ordinário da língua muitas
vezes talvez nem perceba como ‘não dita’, representa as chamadas
implicaturas convencionais, e o que as determina como tais é o fato de elas
serem depreendidas de um âmbito semântico, ou seja, de relações lógicas
entre o significado das palavras, sua significação convencional, levando o
ouvinte a concluir, ou inferir, informações que não foram explicitamente ditas –
como demonstrado. Já a implicatura que aparece mais evidentemente, pelo
manifesto desalinhamento entre o que foi dito e o que se quis dizer, faz parte
das chamadas implicaturas conversacionais, assim classificadas por ser
possível sua inferência somente pela observância do âmbito pragmático, isto é,
da cena enunciativa, composta pelos falantes, inclusive com seus cargos
sociais hierárquicos, pelo momento e local da enunciação, pelo cotexto e
conhecimento de mundo compartilhados, etc. É sobre este tipo específico, as
implicaturas conversacionais, que se desenvolvem os estudos com base no
Princípio de Cooperação (sendo esta uma teoria pragmática).
quis implicitar com o que ele disse, buscando atribuir sentido para o enunciado
neste contexto comunicativo”. Lógico que, para qualquer falante protótipo, esse
cálculo funciona como algo intuitivo, o que permite que mesmo a criança o
realize.
Ele disse que p; não há nenhuma razão para supor que ele não
esteja observando as máximas ou pelo menos o Princípio de
Cooperação; ele não poderia estar fazendo isso a não ser que
ele pense que q; ele sabe (e sabe que eu sei que ele sabe)
que posso ver que a suposição de que ele pensa que q é
necessária11; ele não deu qualquer passo para impedir que
eu pensasse que q; ele tem a intenção de que eu pense, ou
pelo menos quer deixar que eu pense que q; logo, ele
implicitou que q. (GRICE, 1982, p. 93, grifo e nota de rodapé
nossos)
11
Necessária para que se mantenha o pressuposto de que ele está respeitando o contrato
(princípio de cooperação).
75
12
“Sob a categoria da RELAÇÃO, coloco uma única máxima, a saber “Seja relevante”. Embora
a máxima seja muito concisa, sua formulação oculta vários problemas que me preocupam
muito [...]. Considero o tratamento de tais questões excessivamente difícil e espero retornar a
elas em um trabalho posterior.” (GRICE, 1982, p.87).
76
Esse princípio parte da ideia de que o sistema cognitivo, como qualquer outra
função biológica, surgiu (quer pelo design inteligente, quer por fenômenos
naturais) e sofreu naturalmente adaptações em direção ao melhor desempenho
do organismo.
Ou seja, não basta que se tenha a intenção de transmitir uma mensagem à sua
audiência. É preciso deixar claro à audiência que se está tentando transmitir a
mensagem.
Visto isso, ainda de acordo com o Princípio Comunicativo, tem-se que esse
estímulo ostensivo produz uma presunção de relevância ótima, ou seja, sua
audiência pode esperar que o estímulo seja otimamente relevante, cumprindo
obrigatoriamente as seguintes exigências:
produziu, mas que ele não está disposto a elaborar (por questões de esforço),
ou mesmo está satisfeito, dento de suas intenções, com os efeitos alcançados
pelo input ‘menos’ relevante (lembrando que o input, tendo sua relevância
definida comparativamente, só seria menos relevante caso o outro input tivesse
sido de fato produzido; na sua ausência, permanece esse como mais
relevante). A teoria propõe que há, entre os falantes, certas “regras de etiqueta”
que gerenciariam quanto esforço cada parte deve empenhar.
presunção pode levar o ouvinte a (ter de) extrair conclusões mais fortes do que
naturalmente faria. Retomando o exemplo do abridor de garrafas, quando a
audiência processa o estímulo ostensivo oferecido – a frase “Tenho que abrir a
garrafa” –, ela poderia entender que a intenção do falante era simplesmente de
informar que tinha a necessidade de abrir a garrafa. Entretanto, essa conclusão
não traria efeitos cognitivos suficientes para justificar o esforço de
processamento (considerando, neste caso, que não haveria nenhum ganho
significativo na representação de mundo do ouvinte com essa informação) do
input. A audiência, então, continua buscando mais conclusões plausíveis que
satisfaçam sua presunção de relevância, chegando, por fim, à mensagem que
o falante queria transmitir – a de que ele queria saber onde estava o saca-
rolhas, que possibilitaria a ele atender sua necessidade de abrir a garrafa.
1ª Peça:13
13
As análises das três peças aqui apresentadas são elaboradas a partir da observação
descritiva já feita nas páginas 44-63, no primeiro capítulo.
84
Perceba-se que o casal de atores, a quem Leandro dirige esse enunciado, não
ri, pois tomam (atuando conforme seus papéis) a interdição como séria.
Ou seja, dois inputs são oferecidos ao ouvinte, e fica a cargo dele inferir qual
deve ser tomado como parte do sentido que o falante pretendeu transmitir.
Guiado pelos princípios da relevância, o ouvinte será levado a computar o input
que demande menor esforço de processamento. Não é difícil perceber como
uma imagem centralizada, ocupando grande parte da tela, requer menor nível
de esforço em seu processamento do que uma informação linguisticamente
codificada, exibida em letras minúsculas, no rodapé da tela. Dessa forma, o
telespectador é levado a inferir que o carro que está sendo anunciado pelo
preço informado é o modelo Fox, quando, na verdade, a oferta anunciada é
válida apenas para o modelo Gol (duas portas).
2ª Peça:
Outro fator a ser notado é como a escolha pela utilização da música se baseia
no processo de atribuição de relevância, em acordo com a teoria. A música, em
si, é um estímulo de mais fácil apreensão e, consequentemente, requer menos
esforço de processamento, por conta da presença de um padrão no qual ela é
elaborada – em função da repetição de uma sequência de acordes, da
composição dentro de um mesmo campo harmônico, de uma linha melódica
86
orientadora. Dessa forma, esse input musical tem potencialmente uma maior
relevância, enquanto que, caso todas essas informações fossem transmitidas
na forma de um texto, ou mesmo da fala, o nível de esforço de processamento
subiria, reduzindo a relevância atribuída pela audiência ao input.
Dessa forma, ao ser defrontado com a imagem de uma bexiga vermelha, por
exemplo, o telespectador procura atribuir ao estímulo um sentido que satisfaça
a expectativa de relevância criada pelo falante. Uma vez que a figura aparece
no lado esquerdo da tela, associado ao lado da emoção, um balão sendo
inflado passa, pelo processo de inferência, a comunicar euforia, empolgação,
ou taquicardia, como verbalizado na música. Note-se que a cor da bexiga –
vermelha, cor vibrante, viva, associada a emoções fortes – também foi
escolhida propositalmente com o objetivo de transmitir essa mensagem.
Dificilmente essa cor seria escolhida se a bexiga aparecesse no lado direito da
tela (o lado da razão). Possivelmente, esta seria uma bexiga de cor fria, menos
vibrante, mais calma – azul frio, por exemplo –, e conduziria o telespectador à
87
Por fim, a própria disposição do vídeo, com a tela dividida ao meio, e dois
estímulos diferentes sendo apresentados simultaneamente, pode ser analisada
na perspectiva da Teoria da Relevância. Isso porque, a depender da audiência,
um lado vai chamar mais atenção que o outro, à medida que nossos
mecanismos perceptuais tendem automaticamente a escolher estímulos
potencialmente relevantes (cf. p. 78 desta dissertação). Logo, o lado que se
conectar mais relevantemente a informações de background de determinado
telespectador será de maior relevância para este indivíduo, pois produzirá
maiores efeitos cognitivos positivos.
3ª Peça:
Outra questão que ressaltamos são esses inputs inicialmente deixados de lado.
Durante a propaganda, vários elementos (bandeiras, cavalos, manifestantes,
barricadas, transmissões de televisão, etc.) são apresentados ostensivamente,
porém o seu sentido só poderá ser completamente reconstruído pelo ouvinte
com o conhecimento da última frase do vídeo. Esses inputs são dados
propositadamente de forma que o telespectador não os consiga compreender,
e estabelecem, por serem apresentados ostensivamente, a presunção de sua
relevância ótima. Isso cria uma expectativa de relevância, que só é satisfeita
com o enunciado final “Honda HR-V, a revolução na sua garagem”, do qual o
ouvinte é levado a “extrair conclusões mais fortes do que naturalmente faria”
(cf. p. 82 desta dissertação), para atribuir sentido aos inputs previamente
apresentados. A partir desse input, o ouvinte reconstrói o que o falante
pretendia comunicar com as imagens apresentadas, concluindo que aqueles
itens estão sendo tratados como representativos das várias revoluções pelas
quais a humanidade passou, e que mudaram o curso da história em direção ao
avanço e ao progresso, gerando admiração por aqueles que participaram
nelas. Por inferência, o ouvinte assume que o mesmo está sendo sugerido
quanto aos que participarem, com a compra do carro apresentado, dessa
revolução na garagem.
CONCLUSÃO
91
Outra questão analisada foi o fato de os produtores das peças serem capazes
de predizer e manipular os estados mentais dos receptores, para fazer
92
A última questão que nos propusemos a analisar foi como o enunciador molda
e se utiliza da imagem de si evidenciada no próprio enunciado (ethos), para
configurar-se, perante a audiência, um fiador fidedigno, intensificando seu
poder persuasivo. O anunciante se vale de elementos diversos inseridos na
construção da cenografia a fim de legitimar a imagem de si que ele pretende
passar a seus ouvintes. No anúncio do Honda Fit (2ª peça), o enunciador
transmite seu ethos apoiando-se na figura dos jovens (atores), na música
moderna, nos itens de vestuário, etc. Esses valores conferem a ele uma
legitimidade para se dirigir ao seu público-alvo (jovens, classe média-alta, etc),
colocando-o na posição de fiador confiável das informações e propostas feitas
pelo anúncio (ele – ou essa imagem dele – é que assegura que os apelos feitos
no comercial “valem a pena”, conferindo-lhe um maior poder persuasivo).
Por meio da Teoria da Relevância, como proposta por Sperber e Wilson (1986,
1995, 2005), dentro do campo da Pragmática, foi possível observar e verificar
como os estímulos e informações transmitidos por meio do discurso são
articulados cognitivamente pelos falantes no processo comunicativo, em busca
da compreensão. Os interlocutores, por meio de cálculos inferenciais
específicos, tendem a selecionar na interação verbal aquilo a que eles atribuem
maior relevância, que lhes pode geram um maior ganho cognitivo,
processando-os da maneira mais eficiente possível.
O que pudemos observar por meio da utilização conjunta dessas duas teorias
foi que a construção discursiva das peças publicitárias se inscreve num âmbito
social, histórico e ideológico, com suas marcas e elementos específicos, mas
que, dentro dessa organização, depende de um mecanismo cognitivo de
depreensão de sentidos e de inferência de informações, estando também
articulada a uma série de conhecimentos de natureza cognitiva.
Por esse motivo, julgamos ter sido benéfica e produtiva a conjugação teórica
proposta, ultrapassando-se a referida “incomensurabilidade” entre os dois
ramos de pesquisa, em prol do estabelecimento de uma base conceitual que
permitisse uma abordagem analítica suficientemente abrangente, de forma a
compreender a vastidão de aspectos constituintes do material adotado, e, ao
mesmo tempo, específica, de forma a tratar satisfatoriamente das suas
particularidades e articulações internas.
modo, não seria possível fazer uma análise das escolhas do enunciador
cognitivamente direcionadas em função de uma intencionalidade, tomando por
base apenas uma teoria sócio-discursiva.
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100
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101
ANEXO
102