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SÍNDROME DO SOTAQUE ESTRANGEIRO: A SÍNDROME NÃO CAUSA UM SOTAQUE TÍPICO

Ter, 14 de Setembro de 2010 17:00 -

SÍNDROME DO SOTAQUE ESTRANGEIRO: A SÍNDROME NÃO CAUSA UM SOTAQUE


TÍPICO

Britânica passa a falar com pronúncia francesa depois de uma séria crise de enxaqueca.
Kay Russel conta como foi se descobrir com a chamada síndrome do sotaque
estrangeiro. Doença é uma desordem neurológica que provoca alterações na fala

Helio P. Leite

14.09.2010

A vida de Kay Russell (leia entrevista), 49 anos, sofreu uma reviravolta desde janeiro passado,
quando ela começou a falar de forma estranha. Duas crises de enxaqueca roubaram-lhe os
movimentos dos membros, de forma momentânea. No entanto, o dano maior foi causado à
expressão verbal. Como consequência das fortes dores de cabeça, Kay desenvolveu uma
doença chamada síndrome do sotaque estrangeiro. Subitamente, a britânica começou a se
comunicar como se fosse francesa. Até então, o único contato com o idioma havia sido na
escola e em três rápidas viagens à França. Sem entender o porquê de agir daquela maneira,
ela procurou ajuda do neurologista Nicholas Miller, professor do Instituto de Ciências da Saúde,
Sociais, da Fala e da Linguagem da Universidade de Newcastle e um dos poucos especialistas
nesse distúrbio. Por e-mail, Miller explicou ao Correio que desordens neurológicas, como
derrames e lesões cranianas, muitas vezes afetam as áreas cerebrais envolvidas na
programação e no controle dos movimentos da língua, dos lábios e das cordas vocais. “Por
isso, a fala é alterada”, afirma. “Apenas cerca de 100 casos já foram reportados na literatura
científica, mas é mais comum do que isso — a maior parte das pessoas se queixam do sintoma
por poucas semanas ou meses”, acrescenta. Segundo ele, o portador soa como se estivesse
falando com o sotaque de um idioma diferente. “Alguém que fala português de repente parece
alemão, norueguês ou francês. Uma pessoa do sul de um país também pode parecer falar
como se fosse procedente do norte”, revela o especialista.

Miller explica que casos como o de Kay são “muito raros”. “Como a enxaqueca é um distúrbio
neurológico, ela pode causar a síndrome do sotaque estrangeiro”, admite. O neurologista
comenta que, na maioria das vezes, a doença retrocede espontaneamente. “Casos
persistentes são raros, mas a cura completa é difícil”, observa. As consequências da desordem
são quase sempre profundas. “A fala e a linguagem integram nossa identidade — se são

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afetadas, a síndrome também pode afetar nossa personalidade”, observa Miller. O tratamento
se restringe à psicoterapia e à fonoaudiologia. “A psicoterapia vai ajudar o portador a enfrentar
o enorme impacto psicológico e social que o novo sotaque pode apresentar. A fonoaudiologia o
auxiliará a falar da maneira como costumava”, acrescenta.

Brasil
O neurologista Gabriel de Freitas, presidente da Sociedade Brasileira de Doenças
Cerebrovasculares (SBDCV), diz que a síndrome não é comum, apesar de subdiagnosticada.
“Provavelmente, ela é menos rara do que se pensa. As pessoas não fazem o diagnóstico. As
principais causas são lesões cerebrais, como o derrame e tumores”, explica. O especialista
carioca diz que, quando se conversa com um paciente, tem-se a impressão de estar falando
com uma pessoa de outro país. Em 2001, Freitas atendeu a um jovem, acometido de
hemorragia cerebral provocada por uma malformação. “Quando eu o examinei pela primeira
vez, pensei que fosse estrangeiro. Fizemos uma filmagem dele respondendo a várias
perguntas e mostramos a 10 pessoas. Quase todas achavam que ele não fosse brasileiro”,
relata o médico. “O mais interessante é que um achou que ele fosse americano, outro que
fosse espanhol, outro alemão. Ou seja, a síndrome não causa um sotaque típico, mas a
sensação de que o paciente está falando um sotaque”, conclui.

Freitas esclarece que a única cura existente passa pela eliminação da lesão. “Como nosso
paciente teve uma hemorragia e ela foi absorvida com o tempo, o sotaque desapareceu ao
mesmo tempo que o sangramento”, comenta. O caso clínico do brasileiro foi publicado pela
revista científica European Neurology, em 2004.

Surpresa indesejável

Saiba mais sobre a síndrome, identificada pela primeira vez em 1941.

O que é
Desordem neurológica da fala adquirida por meio de danos ao cérebro.

Características
» O portador passa a falar com um sotaque estrangeiro ou regional diferente, o qual nunca
falara antes
» O paciente pode jamais ter tido qualquer contato com alguém proveniente de onde tal
sotaque é comum
» Também não há qualquer razão social, psicológica ou psiquiátrica para adotar o modo
alterado de fala

Duração
» Os sintomas podem durar poucos dias ou chegar a meses. Para um número reduzido de
pacientes, as mudanças na fala persistem e se mantêm, apesar das sessões de
fonoaudiologia.

Causas
Uma gama de condições neurocomportamentais — entre elas, a depressão, o transtorno

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bipolar, a esquizofrenia e o delírio — tem ligações com o sotaque alterado. A imensa maioria
dos casos reportados de síndrome do sotaque estrangeiro têm raiz neurológica.

Histórico
A síndrome foi observada pela primeira vez em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial.
Uma mulher atingida em um bombardeio aéreo sobre Oslo (capital da Noruega) sofreu
traumatismo craniano, o que provocou uma lesão no hemisfério esquerdo do cérebro e
problemas na fala. Um ano depois, a linguagem melhorou, mas o discurso tinha ritmo e
melodia alterados, sugerindo um sotaque alemão. Oficialmente, foi descrita pela primeira vez
pelo neurologista Monrad-Krohn, em 1947, que acompanhou o caso.

Do bombardeio ao enfarte

1941
O primeiro caso registrado foi o de uma mulher atingida durante um bombardeio na Noruega,
que, depois de uma lesão cerebral, passou a falar norueguês com sotaque alemão

2006
A inglesa Lynda Walker, 60 anos, foi diagnosticada com a síndrome depois de sofrer um
enfarte. Ao acordar, depois do tratamento de urgência, a moradora de Newcastle descobriu
que estava falando com sotaque jamaicano. “Eu não me sinto a mesma pessoa. Não havia
notado o sotaque, mas dei-me conta de como soava quando meu terapeuta me mostrou uma
fita das nossas conversas. Fiquei devastada”, contou, na época, à versão eletrônica do jornal
The Times.

2010
A técnica em informática Sarah Colwill, 35 anos, teve uma grave crise de enxaqueca. “A
telefonista e os paramédicos que me atenderam (quando chamou a ambulância) comentaram
que eu estava com um sotaque chinês, apesar de eu nunca ter ido à China e ter vivido toda a
minha vida no sul da Inglaterra”, contou Sarah, que mora em
Plymouth, a jornais britânicos. Ela hoje está sendo tratada por fonoaudiólogos para tentar
perder a pronúncia chinesa. “Estou falando em um tom muito mais agudo, desafinado. Quando
ligo para meus amigos, muitos batem o telefone na minha cara pensando que estou passando
trote”, afirmou.

entrevista KAY RUSSELL


“Você sente que se perdeu de si mesmo”

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Moradora de Cheltenham, no condado de Gloucestershire (sudoeste do Reino Unido), Kay


Russell é uma das cerca de 60 pessoas no mundo hoje portadoras da síndrome do sotaque
estrangeiro. Em entrevista exclusiva ao Correio, por e-mail, ela falou sobre o drama vivido
desde o início do ano. Sem emprego, Kay luta para reverter os sintomas da doença, que lhe
impõe uma série de limitações na comunicação e na capacidade de concentração. “É muito
estranho para o portador, porque você sente que se perdeu de si mesmo”, afirma.

Quando a senhora começou a apresentar os sintomas da


síndrome do sotaque estrangeiro?
Eu sofro há duas décadas de um raro tipo de enxaqueca, chamado enxaqueca hemiplégica
esporádica. Ela tem efeitos similares aos de um derrame. Todas as vezes que tenho um
ataque, perco a fala e, algumas vezes, fico com os membros paralisados por algumas horas ou
mesmo alguns dias. O mais longo período até janeiro foi de nove dias. Em janeiro de 2010,
sofri duas graves crises de enxaqueca. Perdi minha fala e depois ela ficou incompreensível por
três semanas. Por duas vezes fiquei paralisada, durante o banho, da cabeça aos pés, por mais
de 30 minutos. No fim de janeiro, quando minha fala estava se tornando mais clara, veio esse
sotaque estrangeiro.

Qual foi sua reação?


Eu não podia entender por que eu havia desenvolvido essa diferença na fala ou por que eu
soava estrangeira. Eu sabia que não estava tentando colocar um sotaque estrangeiro. Meu
neurologista (Nick Miller) me indicou um fonoaudiólogo. A síndrome do sotaque estrangeiro é
um impedimento da fala. O sotaque está na percepção de quem escuta. É muito estranho para
o portador, porque você sente que se perdeu de si mesmo. Para o mundo lá fora, soa como se
você fosse alguém a mais. Você perde sua identidade.

Que limitações a doença lhe impõe?


Eu era uma executiva de vendas. Tinha um trabalho que exigia alta demanda. Essa condição
afeta o portador de muitos modos. Não se trata apenas do sotaque. Isso afeta o processo da
fala, como você encontra palavras no cérebro antes de pronunciá-las, como você forma as
palavras para falar, como você usa os músculos de sua boca. O nível de concentração exigido
para falar é muito mais alto e muito mais difícil. Qualquer distração, como muitas pessoas
numa sala, música ou outro barulho, torna as coisas bem mais difíceis para nós. Quando as
pessoas me interrompem no momento em que falo, é difícil, pois perco o que estava dizendo. A
comunicação verbal completa é muito cansativa. Isso não afeta apenas a comunicação verbal,
mas também a escrita. Eu escrevo como falo. Nesse momento, respondo a essa entrevista
com emendas, porque você precisa cumprir com seu deadline e isso é muito difícil para mim.
Há a perda de quem o portador é. Trata-se de uma vida que exige grande período de
adaptação. Eu quero conscientizar o público em geral. Faço isso para atingir qualquer um que
esteja sofrendo da síndrome do sotaque estrangeiro ou esse tipo de enxaqueca. Pode haver

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algumas pessoas que têm isso e acham que não existe ajuda. E ela existe.

A senhora está se submetendo a algum tipo de tratamento? Como responde a ele?


A terapia da fala (fonoaudiologia) é a melhor ajuda que podemos ter. Há limite para o que ela
pode fazer, mas trata-se do melhor apoio. Não existe cura. Meu fonoaudiólogo tem sido minha
rocha, ao ajudar-me não apenas a falar, mas também a gerenciar minha condição. (RC)

Rodrigo Craveiro

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