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A UTOPIA

DEOLI ...JIIu\. VI A*
,

José Murilo de Carvalho

outros não lhe chegavam a abalar o prestí­


. 2
Descida aos Infernos glO.
A década de 30 foi ainda ma is generosa
egundo Capistrano de Abrcu, OJiveira com Oliveira Viana. Logo após a revolução,
Viana grassava ao [mal na década de de que Viana não participou, o interventor
20. Seu livro de estréia, Populações no estado do Rio de Janeiro, Ali Parreiras,
meridionais, tinha tido enorme êxito e cri· lhe pediu pareceres e quis nomeá·Jo prefei·
tica quase unânime. Os livros seguintes, to de Saquarema. Em 1932 foi nomeado
embora sem a mesma repercussão, tinham para a consultoria jurídica no Ministério do
consolidado a fama do arredio Iluminense. Trabalho, onde se tornou o principal formu­
O coro de elogios vinha de vários quadran­ lador da política sindical e social do gover·
tes ideológicos: de Agripino Grieco, no até 1940. Juarez Távora lhe pediu em
Tristão de Ataíde e Taunay, assim como de 1933 um programa para os tenentes. O Par­
Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, tido Econômico também quis sua colabora­
Carneiro Leão. Vinha também, surpreen­ ção intelectual. Sua visibili,dade se reduziu
dentementc, dc Monteiro Lobato, que um pouco, pois grande parte do trabalho era
publicou, desde 1917, na Revista do Brasil, de gabinete e o que publicava era de natu­
vários capítulos dePopulações meridionais reza espacializada. Mas a inlluência políti­
e, em 1920, o próprio livro. Lobato - que, ca chegou ao auge. Oliveira Viana estava
sob muitos aspectos poderia, ser considera­ nos céus.
da um antípoda de Oliveira Viana - dizia de A década de 40 já apresentou situação
seu editado que era "o grande orienlador de menos favorável. A saída do ministério e a
1
que o país precisava". As críticas de Astro· entrada para o Tribunal de Contas lhe per­
gildo Pereira, de Pereira da Silva e de raros mitiram voltar aos trabalhos sociológicos.

• A versâo prelimin ar deste trabalho foi .ptesall.da no seminário sobre OIivei,. Vima organiudo pelo Instituto de FiIOldi. e
aêneiu Humanas da Unicamp mire 12 e 14 de: março de 1991.

EslUdor lIis,óricos, Rio deJaneiro, vot. 4, n. 7, 1991, p. 82·99


A lITQPIA DE OUVEIRA VIANA 83

Mas a grande obra da década, Instituições de Capanema. É certo que ele não só parti­
pollticas brasileiras, só foi publicada em cipou do Estado Novo como também o
1949.O livro teve êxito, mas já não havia o justificou teoricamente. Mas é preciso en­
entusiasmo de antes. Oliveira Viana ficara tender que o espírito da época era muito
marcado pela participação no governo Var­ menos liberal do que o de boje, o autorita­
gas, pelo apoio à ditadura de 1937. Nos rismo pairava no ar, da direita A esquerda.
meios intelectuais de esquerda surgia uma A razão mais importante para uma visita
reação â sua obra que s6 faria crescer após desarmada é a inegável inlluência de Oli­
sua morte em 1951. O regime militar agra­ veira Viana sobre quase todas as principais
vou a reação, pois, para muitos, sua ideolo­ obras de sociologia política produzidas no
gia fundava-se na visão de Brasil e na pro­ Brasil após a publicação de Popl/laç6es
posta política do sociólogo fluminense. meridionais. Dele há ecos mesmo nos auto­
XingarOJiveira Viana tomou- se, então, um res que discordam de sua visão política. A
dos esportes prediletos dos intelectuais de lista é grande: Gilberto Freyre, Sérgio
esquerda ou mesmo liberais. Os rótulos Buarque, Nestor Duarte, Nelson Werneck
acumularam-se: racista, elitista, estatista, Sodré, Victor Nunes Leal, Guerreiro Ramos
corporativista, colonizado, nas críticas e Raymundo Faoro, para citar os mais no­
mais anaHticas; reacionário, quando a emo­ táveis. Até mesmo Caio Prado lhe reconbe­
ção tomava conta do crítico. Oliveira Viana cia o valor, ressalvando as críticas. Tal re­
foi mandado aos infernos ? percussão indica a riqueza das análises de
Nos infernos ele ainda se encontra, ape­ Oliveira Viana e justifica o esforço de revi­
sar de um ou outro ensaio tímido de rever a sitá-Ias.
condenação. É lá que pretendo fazer-Ibe Lasl and least, bá o lado pessoal que a
uma visita não diria amigável. mas desar­ mim me predispõe a uma análise menos
mada. Depois da longa condenação, parece raivosa. Amigos e inimigos, todos coinci­
cbegado o tempo de um julgamento menos dem em afirmar queOliveira Viana era uma
marcado por circunstâncias políticas passa· figura íntegra, totalmente dedicada ao tra­
das. Houve, sem dúvida, boas razões para a balbo e aos livros: nunca buscou posições
condenação.O racismo e o apoio à ditadura de poder. De bábitos quase monásticos, fu­
foram pecados graves. Mas O julgamento gia do brilbo das exibições públicas, não
não considerou as atenuantes. Racista era aceitava convites para conferências, recu­
quase toda a elite de sua �poca,embora nem sava empregos, como o de juiz do Supremo
sempre o confessasse. Até mesmo a Cons­ Tribunal e não freqUentav" rodas literárias
tituição de 1934, democraticamente elabo­ ou antecâmaras de palácios. Respondia aos
rada, pregava a eugenia. AJém disso. o pró­ críticos nos livros seguintes ou nas reedi­
prio Oliveira Viana recuou das posições ções e mantinha uma postura de respeito
mais radicais expostas em Evolução do po­ pelo debate intelectual. TIo perto do poder
vo brasileiro. Mais ainda, em nenhum de por tanto tempo, e do poder arbitrário. nun­
seus livros de política social o problema da ca disto tirou proveito em beneficio pes­
raça é mencionado, tomando-se irrelevante soal. Foi aquilo que acusava os brasileiros
para a avaliação dessas obras. Quanto ao de não serem: um bomem público um re­
",
apoio à ditadura, foram muitos os intelec­ pública, posto que a sua maneira.
tuais que aceitaram posições no governo e A visita lerá um objetivo preciso. Quero
de quem não se cobra a adesão com tanto examinar três temas relativos a sua obn.
rigor como de Oliveira Viana. Não se co­ Todos já foram, de uma maneira ou de
brou de Carlos Drummond, de Mário de outra, objeto da atenção dos críticos: sua
Andrade, de Sérgio Buarque, e nem mesmo concepção da natureza da investigação bis-
84 ESlllDOS J-USTÓRICOS -1991n

1órica, suas fontes intelectuais e sua utopia interpretá-los, era necessário o recurso à s
política. No caso de sua epistemologia, ou ciências, particulannente às ciências so­
de sua meta-história, pretendo matizar o ciais. O conhecimento do p:assado exigia o
ó
cicntificismo positivista de que é acusado; conhecimento do presente.
no que se refere às fontes de inspiração, Esta a(imtação aiuda poderia ser inter­
gostaria de ressaltar uma raiz brasileira até pretada como cientificista, na medida em
agora não levada em conta; quanto à utopia, que admite a possibilidade de elaborar leis
tcntarei distingui-lo de vlÍrios autores aos gerais para a história, da mesma natureza
S
quais é geralmente associado. das leis das ciências fisicas. Poderia reOetir
uma concepção naturalista da história. Mas,
na mesma conferência, Viana foi mais lon­
ge. A história exigiria uma "indução con­
jecturai", seria uma ciência conjecturaI.
A meta-história de Oliveira Viana Embora Viana acrescentasse que deveria
haver um esforço de reduzir o coeficiente
Oliveira Viana insistia no caráter objeti­ subjetivo da conjectura, pode-se deduzir
vo de suas análises, na ausência de prccoil­ que esta redução tinha seus limites, uma vez
ceitos, de preocupação com escolas. Repe­ que o conhecimento histórico exigiria iden­
lia a receita de Rankc: ver os fatos corno tificação com o espírito do tempo presente
eles realmente se deram, Queria fazer ciên­ e não dispensaria a ficção. A história devia
cia com a objetividade dos sábios de Man­ ser escrita com o cérebro c com o coração.
guillhos, isto é, com a objetividade das ciên­ Na verdade, concluía, era o lado de ficção,
cias naturais (1923:40). A "objetividade" era o lado artístico, que conferia fascínio à
apareceu mesmo no título de um de seus história.
livros: Problemas de poillica objetivil. Mas O ponto foi reforçado na defesa contra
estas declarações não devem ser levadas as críticas de Batista Pereira. Este crítico,
muito a sério. Eram um tributo, talvez meio segundo ele, se teria apegado a minúcias e
automático, ao cientificismo do século filigranas sem importância. Quem usasse
XlX. Não é di!1cil mostrar que cle próprio microscópio para analisar sua obra não con­
não acreditava nisso. seguiria entendê-Ia. Pois, "eu não sou um
Em várias ocasiôes deixou claro que sua puro historiógrafo (...). Eu não sou um pes­
noçao de história era mais moderna do que quisadorde arquivos. Eu não sou um micro­
'
sugere este positivismo estreito. Insistiu grafista de história. Não sou, não quero ser,
mais de uma vez que teorias e hipóteses uma autoridade de detalhes. (...) tenho a
eram indispensáveis ao conhecimento his­ paixão dos quadros geraiS"? Um livro co­
tórico. Na introdução de Populações meri­ mo O idealismo da Conslilllição, criticado
dionais foi explícito quanto à contribuição por Batista Pereira, ncm mesmo poderia ser
prestada ao historiador por várias áreas de considerado obra histórica. Era obra de pu­
conhecimento: a anlropogeografia, a antro­ blicista, de propagandista, de panfletário.
possociologia, a psicofisiologia, a psicolo­ Fica aí evidente que Oliveira Viana estava
gia coletiva c a ciência social. Foi ainda muito distante da prática historiográlica de
mais explícito na conferência que pronun­ seus colegas do Instituto Histórico.
ciou em 1924 ao ser recebido como sócio Além de depender de conjecturas, a his­
do Instituto Histórico e Geográfico. Afir­ tória não seria um exercício ocioso. Ela
mou, então, que nâo bastavam os arquivos teria finalidade pragmática. Na confcrência
c documenlos. Eles eram limitados, par­ 110 instituto, esta finalidade foi descrita co­
ciais c podiam ocultar o essencial. Para mo a busca do sentimento de nós mesmos,
A lITOPlA DE OUVEIRA VIANA 85

do fortalecimento do patriotismo. Em Evo­ que fosse (Viana, 1991:357-61). Tudo indi­


luçdo do povo brasileiro, no mesmo lugar ca que não quis ter o destino de Alberto
em que insistia na objetividade, defmia a Torres. Apesar das críticas ao bacharelismo
história como mestra da política, numa re­ e à nossa alienação mental, sucumbiu à
ferência, que é uma redefinição, à história necessidade prática da citação. O que não
8
mestra da vida de Cícero. •
impede, evidentemente, que em alguns ca­
Na produção de sua vasta obra, Oliveira sos, como o das teorias racistas, a influência
Viana foi sem dúvida fiel a esta visão de estrangeira, especialmente as de Gustave
história. Há muito nela de conjecrura, de Le Bon e Vacher de Lapouge, tenha sido
preocupação política, de problemas do pre­ real.
sente, de valores, de coração, ao lado do Pretendo argumentar que vários pontos
extenso uso de teorias de vária natureza. Na centrais do pensamento de Oliveira Viana
parte final deste trabálho irei em busca do enraizavam-se na tradição brasileira e não
conteúdo desses valores. Na que vem a estrangeira. Ele mesmo reconhecia sua dí­
seguir tentarei mostrar que muitos deles se vida com alguns de seus pred�cessores. par­
enraizavam na tradição do pensamento po- ticulannente com Alberto Torres e Silvio
lítico imperial. . Romero. Mas creio que deita raízes numa
famOia intelectual que antecede de muito
Silvio Romero e que tem longa descendên­
cia. Falo de uma linha de pensamento que
começa com Paulino José Soares de Souza,
As raízes de Oliveira Viana o visconde de Uruguai, passa por Silvio
Romero e Alberto Torres, prossegue com
Vários analistas salientaram a abundân­ Oliveira Viana e vai pelo menos até Guer·
cia das referências a autores estrangeiros na reiro Ramos. Vou me deter em Uruguai, o
obra de Oliveira Viana (Medeiros, 1974, patriarca da famOia, que Oliveira Viana c0-
Vieira, 1976, Faria, 1977, Moraes, 1990). nhecia e citava, embora dele não se decla­
Mas aqui novamente é preciso ter cautela rasse seguidor.
quando se trata de interpretar o sentido des- A sintonia de pensamento entre os dois

sas citações, de avaliar até que ponto elas autores é grande. Muitas das idéias de Oli­
representam influência real sobre seu pen­ veira Viana podem ser rastreadas em Uru­
samento. Os mesmos analistas já referidos guai. Para iniciar, lá está, em Uruguai, a
chamaram a atenção para a maneira pecu­ preocupação com o estudo do Brasil. No
liar que Oliveira Viana tinha de citar auto­ prefácio do Ensaio sobre O direÍlo adminis­
res. Freqüentemente, pinçava pedaços da trativo, principal obra de Uruguai, está dito:
obra e desprezava outros, distorcendo o '" --
('Tive muitas vezes ocasião de deplorar o
pensamento do autor, numa indiCação dita desamor com que tratamos o que é nosso,
do caráte inítrumental OUJ)l�smo r.itua da deixando de estudá-lo, para somente ler
9
cita ·0. A citação de estrangeiros como ri­ superficialmente e citar coisas alheia�". O
tual de legitimação era, aliás, uma prática autor referia-se exatamente à experiência
generalizada no Brasil. O próprio Oliveira liberal que, segundo ele, teria pecado por
Viana a mencionou para explicar o êxito de excesso na c6pia de instituições estra��
- - -

Rui Barbosa e o fracasso de Alberto Torres. ras como a federação, o Júri popular, e a
- ..- -

-
'"- --

O primeiro citava torrencialmente, o segun­ justiça eletiva. �ão era um provinciano,


do se recusava a usar 110 bordão do autor pOIS dava grande importância à ex eriência
estrangeiro". Ninguém no Brasil dava cré­ Antes de escrever o livro
dito ao pensador nacional, por mais original pela Europa e examinara com cui-
86 ES11JOOS J.USTÓRICOS -1991/7

dado a prática polftica e administrativa da euliberdade e opressão". Aqui havia um.,..!l


Inglaterra e da França. De regresso, lera clara oposição entre a visão conservadora
� -

também extensamente sobre os Estados


-

_expressa por Uruguai e a visão li eral mais:


Unidos. O que queria era um cuidadoso bem elaborada por Tavares Bastos. Segun­
;::::::.:....das cond'lções ocaispara_que a do Uruguai, os li erais julgavam que a
estranhas não

-
opressão vinha sempre de cima, do gover­
nao contra- no. Para os conservadores, ela podia vir
- ,

de também de baixo, das parcialidades, das


conhece a virulência com facções. No caso brasileiro, achava Uru­
que criticava o que chamava de idealismo guai, ela vinha principalmente de baixo.
utópico de nossas elites políticas, o deslum­ ;:....:do tema da unidade nacional, a
bramento com idéias estrangeiras, o anal fa­ da JiJieraaae -

betismo quando se tratava da realidade bra­ do regresso conser,­


sileira. Uruguai talvez tenha sido o primeiro :': "7.Mais centralização
a levantar este tema que depois se tomou "':="""'::::::':' ==:-=���:":'
sign ifj ca va, pa ra e ste ponto �e vista, mais
marca registrada de gente como Sílvio Ro­ controle sobre a violência e o arbítrio dos
mero, Alberto Torres, Oliveira Viana e mandões locais. E vice-versa. Isto é, menos
I Guerreiro Ramos. liberdade. Oliveira
,
Decorrência, ou talvez premissa, do Viana não concordava com a tese, como
ponto acima, era a insistência de Uruguai adotava a interpretação de Uruguai para
_"/ na importância dos usos, costumes, hábitos, este período da história brasileira, citando-o
tradições, caráter nacional e educação cívi­ várias vezes. Uruguai e Vasconcelos, a
ca de cada povo; era a ênfase na im ortân­ quem considerava estadistas de gênio, é que
eia do momento histórico e das circunstân­ teriam sido os principais artífices da centra­
cias sociais (Uruguai, 1960:353). Os povoS, lização, teriam, pelas leis do regresso, espe­
dizia, não têm a mesma tradição política, os cialmente peJa interpretação do ato adicio­
mesmos hábitos, não estão na mesma fase nal, matado o provincialismo e salvo a
de desenvolvimento. Implantar instituições nação. As instituições liberais, alegava Oli­
de uns em outros podia ser desastroso ou,
,
veira Viana na esteira de Uruguai, tinham
no mínimo, inócuo. Não �gnificava isto

gerado uma contrafacção do self- govern­
que as tradições fossem imóveis e imutá- ment americano: o domínio do caudilho. A
veIS. E as p Iam a rimorar-se. Mas én­ centralização e seus instrumentos - o rei, o
quan o fossem diferentes deviam ser trata­ Conselho de Estado, o Senado - eram a
das como tais. De novo, está ar outro tema melhor garantia de liberdade em pars que só
predileto de Oliveira Viana, que ele natural­ conhecia a política de clã. (1920, caps. xn
mente abordou com aparato conceitual e XIII).
muito mais desenvolvido: a culturologiá. Mas a ce.ntraliza ão odia ser excessi�
Pode-se mesmo dizer que h um nítido viés e reudicial. Uruguai confessa que.as via­
cultural e em sua obra. rrnvro gens e os estudos que fez provocaram ver­
.
sobre a nosso capitalis- dadeira revolução em suas idéias e l!zequ�­
mo (Viana, 1988), de que se poderia esperar no rever em parte o programa do regresso.
uma análise mais atenta dos aspectos mate­ A experiência francesa mostrou-lhe uma
riais de nossa civilização, é todo ele dedi­ ?
'
istinção essencial entre centralização po­
cado aos aspectos culturais e psicológicos. lítica e centralização administrativa. A pri-

Outro ponto de contato entre os dois meira era indispensável, a segunda muito
autores está na concepção da relação entre prejudicial para os negócios locais. Da! •

os pólos
·
ucentralização combinação ideal para o Brasil seria a cen-
A UTOPIA DE OUVErRA VlANA 87

tralização política com descentralização na época chamados também de sociais, de­


administrativa. O governo deveria ser dis­ viam ser universais e iguais para todos; os
linguido da adminislração, fórmula fre­ direitos políticos deveriam variar de acordo
qüenlemente repelida por Oliveira Viana, com a capacitação de cada um, pois deles
. 10
que a adaptava a seu modelo de sociedade d epend·la a sobreVIVenCla
_ d
·' · da SaCIed a e.
sindical e corporaliva: centralização polÍli­ De novo, estamos diante de uma das teses
ca, descenlralização funcional (Viana, 1952 favoritas de Oliveira Viana, para quem os
e 1938). direitos civis eram prioritários e condição
Um desdobramento dessa tese é a con­ indispensável para o exercício dos direitos
cepção do papel do Estado no processo políticos. Um dos erros dos políticos refor­
--, político de países como o Brasil. O Estado, mistas no Brasil era a ilusão de que a mera
segundo Uruguai, longe de ser o inimigo introdução dos direitos políticos pudesse
combatido pelos liberais, é o rincipal fator redundar em efetiva participação (Viana,
de transfomlação política. Onde não há Ira­ 1930). Ao lê·lo, parece estarmos ouvindo
f-
aição dê sel gevernmem, cabe ao Eslado Uruguai repetir a observação d� Vergueiro
desenvolvê-Ia. O Estado prolege a liberda- de que os problemas do Brasil provinham

de, cria o espírito púbJico, molda a nação.. do fato de terem as reformas políticas pre­
O Estado, poderíamos dizer, é o pedagogo cedido as reformas sociais.
da liberdade, cabe a ele educar o povo para Eis uma lista respeitável de sintonias
a participação na sociedade polílica (Uru­ entre os dois pensadores. Se nem sempre
guai, 1960:405-12). A tradição colonial era reconhecida a procedência "uruguaia"
portuguesa não preparara o povo para o de todas �ssas teses, não há d6vida de que
auto-governo. O Estado é que devia assu­ Oliveira Viana conhecia bem o Ensaio e o
mir a tarefa. Qualquer leitor de Oliveira citava com freqüência, especialmente
Viana identificará imediatamente aqui uma quando se tratava de interpretar a política
de suas teses favoritas. imperial. Em suas constantes acusações ao
Finalmenle, há em Uruguai oulra distin­ idealismo ulópico das elites, havia sempre
ção que foi totalmenle adotada por Oliveira lugar para exceções, para os idealistas oro

" Viana. Falo da distinção entre �Jreilos poli- gânicos, entre os quais se incluia. Os nomes
..

ticos e direitos civis. Não se trata, natural- desses idealistas estão registrados em Po­
inente, de uma origmalidade de Uruguai. A pulaç6es meridionais, O idealismo da
distinção já constava da Conslituição fran­ Constituiçllo e Problemas de organizaçdo
cesa de 1791, que falava de cidadãos alivos e problemas de direçllo. São genle como
e cidadãos passivos, os primeiros detento­ Olinda, Feij6, Paraná, Vasconcelos, Uru­
res dos direitos civis e polfticos, os segun­ guai, Euzébio, ltaboraí e Caxias. Com a
dos apenas dos direitos civis. O importante exceção de Feij6, que, no entanto, era um
em Uruguai é a ênfase nos direitos civis, na autoritário, temos aí a fina Oor do conser­
garantia das liberdades. O visconde diz ler vadorismo imperial, dos construtores da or�
observado na França a possibilidade de dem monárquica. Oliveira Viana os cha­
convivência de um governo fortemente mava de conservadores autoritários, de
cenlralizado com a plena garantia das liber­ reacionários audazes dotados de uma quase
dades dos cidadãos, de sua propriedade e de volúpia pela impopularidade (1952:133).
sua proteção conlra o arbítrio do próprio Uruguai é o mais cilado pela razão de ler
governo (Uruguai, 1960:417). Era esta uma sido o único a produzir obra sistemática.
.!Ose d2 Iiberalismç franc� 1'ós- revolucio- Mas o visconde citava extensamente Vas­

n:=
: io, estilo de,Gu�, autor freqüente­ concelos, a quem considerava seu mestre
" ::-;,
mente citado por Uruguai. Os direitos civis, em política. Era uma famma polftica, uma
ss ES11JDOS HlSTóRIros - 1991/7

corrente de idéias de longa duração na his­ autoritarismo não é um fim em si, não é um
tória brasileira. valor em si. Em todos eles há a
Poderlamos chamá-los de liberais con­ peJo liberalismo, especialmente em sua mo-
-

servadores, utilizando a expressão que Vic­ dahdad'-:e-:a::n�gíO-saxônica. Nele esUria o mo­


tor Hugo empregou para caracterizar o li­ delo para o Brasil. Masjulgavam que para
beralismo da Restauração, sintetizado na lá chegar, uma vez que nos faltavam tra<!,i­
figura de Guizot A expressão é, sem dúvi­ ções de autogovemo, era necessário passar
da, apropriada, pois Guizot era um dos au­ uma fase iOtermediária em �e a ênfa�e
tores prediletos de Uruguai, que o citava
extensamente para justificar o poder mode­ a
rador ("o rei reina, governa e administra") entre Uruguai e Tavares Bastos, por
e como fonte para a história política e cons­ exemplo, para citar os dois autores paradig­
titucional da França. Os liberais conserva­ m�ticos do conservadorismo e do liberalis­
dores tomaram-se particulannente influen­ mo monárquicos, respectivamente, seria
tes sob a Monarquia de Julho. Seu principal apenas de meios e n.ão de fins. Ambos ti­
objetivo político era completar a revolução, ,
nham o mesmo modelo diante dos olhos:
construir uma França nova a partir da de­ um julgava que para atingi-lo seria neces­
molição da antiga: principalmente, cons- s�rio fazer um desvio, o outro acreditava
truir instituições de governo, resgatar a po-
t lítica do domínio da paixão a que a tinham
que podia ser adotado imediatamente. Um
achava que o caminho para o liberalismo
\ confinado os homens de 1789 e recolocá­
era o autoritarismo, o outro que era o pró­
la dentro do circulo da razão. Uma das
prio liberalismo. A concordância q�a!'to ao
conseqüências desta postura era a reduç!,o
modelo era aliás, comum ao pensamento
..

ênfase direitos políticos em favor <!<?S


os políticos mais representativos da elite
- .
. .

-:
i =�:
�reitos-civ i§ JRosanvaJlon, 1985).
imperial reu�idos no Conselho de Estado:2
Viana
ruguai era particulannente enfático na
defesa do autogoverno, que para ele se
materializava de modo perfeito no governo
local, nas towship s americanas. É na muni­
com sua m-

çipalidade, diz ele...., ue reside a f rça...dol<
As instituições municipais
nesta corrente esgotado o conteúdo
de sua obra? Certamente que não. Se são a liberdade ao alcance do povo. Sem
muitos os pontos de contato, não são meno­ instituições municipais, um país poderá ter
Os liberais conservado­ um governo livre, mas não terá o espirito da
res eram exatamente isto, liberais conserva- liberdade (1960:405). Há aí ecos inconfun­
dores. Seu conservadorismo não eliminava díveis de Tocqueville, autor que Uruguai
o liberalismo. Seu modelo de sociedade, ou estudou com cuidado quando, desiludido
sua utopia polltlca, continuava sendo a so- com a política, pôs-se a refletir sobre os
- .

!,!edade 1. eral e a polltica liber.!! . El�� problemas do país. Foi através de Tocque­
dem ser apropnãaamente chamados de au- ville que aprofundou o conhecimento da
riÜrios instrumentais7 na medlda em que experiência americana. Antes dela, soubera
o autoritarismo para eles era apenas um apenas através das reformas liberais da Re­
- .

meio que certas sociedades em determina­ gência, que lhe pareciam impróprias e ina­
das circunstfincias históricas tinham que dequadas para o país. É sintomático que
empregar pao atingir o objetivo, a socieda­ Q1iveira Viana nunca cite Tocqueville, em­
de liberal plenamente desenvolvida.ll O bora certamente conhecesse sua obra, nem
A lITQPIA DE OIJVEIRA VIANA ••

que fosse através de l!ruguai. Os valores de punha obstáculos intransponíveis à consti­


Tocquevillc nao eram os seus. lui fão de uma nação homogênea e podero­
sa. 3 Não se trata, é importante notar. de
uma visão católico-ultramontana que teve e
continua a ter seus adeptos no Brasil. É uma
visão leiga da sociedade e da política, em­
A utopia de Oliveira Viana bora infonnada por valores ligados à tradi­
ção católica medieval.
Quais seriam seus valores, sua utopia? Outra corrente poderosa que se enqua­
Onde estaria seu coração? Para dizê-lo de dra na mesma tradição é o positivismo or­
. .
uma vez, parece-me que sua I1\splraçao VJ- todoxo. Exemplo típico é o livro de Aníbal
- .

nha do que se tornou comum chamar de Falcão, Conceito de civilização brasileira.


iberismo . .9 iberismo pode ser entelldidt?z O autor aceita o diagnóstico dos admirado­
negativamente, �no a recusa de aspectos res da cultura anglo-saxônica de que no
centrais do que se convencionou chamar de Brasil inexiste a tradição de liberdade e de
mun o mo erno. É3tlegação da sociedacJC iniciativa individual. Mas, à diferença de­
. utilitária indivi ualisla, da política contra� les, considera o fato auspicioso, pois, se­
tualista, do mercado como ordenador das gundo Comte, a sociedade do futuro seria
relações econômicas. Positivamente, é um marcada pela predominância do sentimento
ideal de sociedade fundada na cooperação, sobre a razão, da cooperação sobre o con­
na incorporação, no predomínio do interes­ Oito, do coletivo sobre o individua1. A lati­
se coletivo sobre o individual, na regulação nidade - ou o iberismo, pois tratava-se da
das forças sociais em função de um objetivo herança ibérica - do Brasil nos colocava,
comunitário. Este conceito de iberismo não segundo Falcão, na vanguarda da civiliza­
se distancia muito do que foi utilizado por ção, ao lado do país central, a França.
Richard Morse em seu polêmico O espelho 9liveira Viana reconhecia explicita-
de Próspero. Como é sabido, Morse postula
a persistência de uma tradição cultural ibé­ te em seus textos
rica fundada no comunitarismo, em oposi­ com mais

ção ao individualismo do Ocidente anglo­ trabalho e democracia social como base de


saxônico. A Ibéria, e nós com ela, suas idéias sobre sindicalismo e previdên­
constilUirramos o que José Guilherme Mer­ cia social. A Rerllm novarum e a Quadra­
quior (1990) chamou com felicidade de o gesimo anno teriam sido os principais guias
Outro Ocidente, uma alternativa ao Oci­ de sua atuação no Ministério do Trabalbo.
dente nórdico que hoje parece monopolizar Em discurso feito em 1945 perante um con­
o conteMo da modernidade. gresso de católicos em Niterói, comentou
-
Sugiro que o modelo de sociedade que um manifesto dos bispos em apoio à legis­
orienta toda a obra de Oliveira Viana se lação trabalhista e afirmou que estudara
� enquadra perfeitamente na visão ibérica d� todas as doutrinas sobre o assunto, con­
I inspiração católica. No pensamento politi­ cluindo que "a verdade está com a Igreja; a
co brasileiro, o mais iJustre precursor desta sua doutrina é que está certa" (1951:81 e
vertente talvez tenha sido José Bonifácio, 169). Insistiu no fato de haver total coinci­
cuja visão de Brasil enfatizava as idéias de dência entre a legislação brasileira e as en­
nação, bomogeneidade e solidariedade. Seu cíclicas sociais.
abolicionismo, por exemplo, se tinha um pé -; É intrigante o fato de Oliveira Viana não
no direito natural, assentava-se principal­ se referir aos mestres do pensamento cat6-
mente na alegação de que a escravidão im- Iico da época, como um Júlio Maria e, .s-
• -
90 ESruoos msTóRICOS -1991/7

pccialmente, um Jackson de Figueiredo e truísmo e da predominância do sentimento


seus seguidores do Centro Dom Vital. A sobre a razao. Irritava-o talvez ainda mais
omissão estende-se aos pensadores euro­ o lado jacobino dos POSilivistas, donde a
peus que eram fontes importantes do con­ referência à sua lógica em I inha reta. A idéia
servadorismo católico brasileiro, como De de uma ditadura republicana não era com
4
Bonald, De Maistre e Maurras.1 A razão, certeza de extração católica, vinha da tradi­
arece-me, é ue Oliveira Viana, como já ção romana combinada com a experiência
. --

observado, não era um ultramontano: sua revolucionária da França. Uma sociedade


,

! . '

bem organizada na tradição do comunitª-


6

postura era leiga. Do catolicismo absorveu


.

primeiro a VISão social de Lc Play, depois !ismo cristão deveria dispensar ditadores

as encíclicas sociais e o pensamento do 9u mesmo uma excessiva dependência de


cardeal Mercicr (a Carta de Malines). Isto iJldivíduos �m posição de oder. A ditadura
é, republicana pod�ria cheirar-lhe a totalita­
rismo, regime que ele rçjeitav, a.assim como
. . . . 1
refer�otes a,9 rCJcltava o comunismo c q na�lsm...2.
convivência das classes Uma forte característica ibérica da

== católica..EIe lilava_ã orientação de Oliveira Viana era o horr<?r ao -t...


harmonia, integração conflito. A coerência neste ponto levava-o
Estado justificava- a ser incoerente em outros. Em Populaçoes
-

�' '':.::;.=
se como promotor harmonia social. Oli­ meridionais, foi enfático em apontar o con­
veira Viana apoiou um governo ditatorial. flito político e social como fator fundamen-
mas insistiu o tempo todo em que se tratava tai no desenvolvimento do espírito cívico,
de uma democracia social. Não apoiava a da consciência dos direitos e da identidade
ditadura pela ditadura. social. Falou abertamente em luta de clas­
-j Oliveira '>aana�laj):lbém nâo ses: "É, entretanto, a luta de classes não s6
uma das maiores forças de solidariedade
com as nos povos ocidentais, como a melhor escola
para a Comte deriva- da sua educação cívica e da sua cultura
ra boa parte de sua doutrina das tradições política" (1920:180). Nesta linha de racio­
do catolicismo medieval e sua concepção cínio, a impossibilidade em que se achava
da futura humanidade tinha traços do co­ a população pobre de enfrentar o poder do
munitarismo cristão, pois era baseada no latifúndio seria uma das causas do pouco ou
altruísmo, versão leiga do amor ao próximo nulo desenvolvimento entre nós do espírito
cristão. Oliveira Viana falava dos positivis-
.
público.
tas com respeito mas sem qualquer sim pa- Com base em tal diagnóstico, devia-se
-

.
-

tia. Achava-os carregados de eletricidade


-

esperar a receita de ampliação do conflito


�egativa; não atraiam as pessoas, r�peliam� como instrumento de educação cívica, ou
nas; suas regras e dogmas lembravam cilí­ pelo menos a sugestâo de maneiras de liber­
cios monacais e severos Batistas pregando tar as forças sociais de modo a tomá-Ias
no deserto; eram dogmáticos, intolerantes e capazes de ação própria em defesa de seus
agressivos; faltava-lhes o milk of IUlman direitos. Mas nada disso acontece. Pelo
I kindness, indispensável à comoção das al- contrário, na segunda parte de Populações,
mas (1925:119-26). Criticava a lógica jaco­ e em todas as outras obras, inclusive nas

I bin� retilínea que os tomava irritantes.


Irritava-o provavelmente a secura e im­
dedicadas aos problemas concretos de polí­
tica social e trabalhista, o que se vê é a
pessoalidade dos ortodoxos que contradi- defesa de forte interferência do Estado co­
ziam as próprias teses positivistas do al- mo promotor do civismo e, particularmen-
A IIfOPIA DE OUVElRA VIANA "

te, da paz social. Entre nós nâovalia a regra, ponto aparecia com clareza: .s�u,modçlo d�
a formação do cidadão devia passar não sociedade não era o do ca italismo indus­
pelo conDito. mas por sua eliminação. pela trial. e verificava, ao final dos dolS volu-
, =

implantação de uma sociedade cooperativa, mes, que se pelo lado material e témico já
o corporativismo sendo um meio para tal havia capitalismo no Brasil, especialmente
fim. em São Paulo, pelo lado psicológico e cul-
Não há a menor referência a uma possí­ tural, 'pela ainda
vel diferença entre cidadãos fonnados por
métodos tão opostos. Aqui Oliveira Viana
cometeu outra incoerência gritante, de que
se deu conta, mas que não reconheceu como que nossa
tal. Um tema recorrente em sua obra era a pré-capitalista, que tanta no­
acusação idealismo, alienação, marginalis­ breza, justiça e dignidade espalhou na vida
mo e ignorância das elites em relação à e nas tradições de nosso povo" sobreviveria
realidade nacional, era a denúncia da mania ao avanço capitalista (Viana, 1988:197).
de macaquear jdéias e instituições estran­ Quer dizer, ��
geiras. No entanto, quando ele próprio foi de
t chamado a colaborar na fonnulação e im­
plementação da polftica social e sindical, mação um valor. Ao buscar clássicos da
co iou abertamente a legislação estrangei- fiteratura para descrever a mentalidade ca­
I ra. O..gulliava-se mesmo de que nossa legis­ pitalista, como Sombart e Weber, ele carre­
lação estivesse à altura da dos países mais gava nos tons negativos. O capitalismo era
avançados. Prevendo a crítica de estar co­ a obsessão monetária, o mamonismo deli­
piando, argumentou que a industrialização rante, a submissão de tudo ao motivo do
gerava problemas que eram universais, que lucro, a instrumentalização da inteligência
se verificavam independentemente das ca­ e da cultura. Contra esta mentalidade, sus­
racterísticas de cada-país, podendo, portan­ tentava, ainda prevaleciam, e deviam pre­
to, a legislação social ter caráter também valecer, os valores que marcaram nossa he­
\
universal. Desconsiderava que, neste caso, rança (e aqui não entrava distinção de classe
a legislação só se aplicaria ao setor indus­ ou raça). Eram valores da sociedade pré-ca­
trial moderno, reconhecidamente minoritá­ pitalista, existentes também na sociedade
rio no Brasil. Ela era, no entanto, destinada baseada no latifúndio: a nobreza, a mode­
também ao campo, embora a aplicação co­ ração, o desprendimento, a dignidade, a
meçasse pelas cidades. Quanto à pró�ria lealdade.
industrialização, ele argumentaria em seu Além da intluência católica, revelava-se
livro póstumo que ela possuía caracteristi­ aí o que me parece ter sido a outra fonte de
cas que lhe retiravam parte da natureza inspiração de Oliveira Viana: as raízes ru­
,
capitalista (1988:193-7). rais. O ruralismo se manifestava com seus
Pode-se concluir que toda a sua análise .valores paternalistas, famil istas, pessoalis­
do latifúndio simplificador e eliminador do tas. Oliveira Viana orgulhava-se de ser fa­
contlito como responsável pela falta de ci­ zendeiro, de ter por trãs de si quatro gera­
vismo podia ser sociologicamente verda­ ções de fazendeiros. Nunca vendeu a
deira, mas não era relevante para seus obje­ fazenda do Rio Seco, embora só lhe desse
tivos políticos, porque o conceito de
-
prejuízo, velho banguê decadente que era.
civism da boa sociedade, que ele tinba em•
Até o run da vida usava a velha casa para
mente não era o das sociedades anglo-saxô- receber amigos íntimos em jantares acom­
l"nicas, No livro óstumo cita'do acima, é panhados de Iqngas discussões. A fascina-

92 ES1UDOS HlSTORlCOS -1991/7

ção por valores rurais transbordava de vá­ lores, não têm aparato erudito. Neles talvez
rios textos. Um deles t. saudação a Alberto se revelasse com mais sinceridade o cora­
de Oliveira, feita quando foi recebido na ção do autor, neles talvez emergissem seus
Academia Brasileira de Letras. Referiu-se valores mais caros. O que ar transparecia
em tennos quase líricos a Saquarema, terra não destoava, aliás, do que se sabe da per­
natal de ambos. Exaltou tanto a patureza sonalidade de Oliveira Viana, um matuto \
quanto os valores da vida rural fluminense. !!!edioque raramente aceitava �nvites e.;: I
Em Alberto de Oliveira estariam personifi­ ra palestras; que ao falarem público era
cadas a tradição patriarcal, a nobreza, o quaseinaudlve1; que só por motivo dedoen­
16 ça deixava o Rio de Janeiro, ou melhor, sua
bom gosto.
Não era apenas o chauvinismo flumi­ �sa de Niterói; que nunca saiu do país,
nense que o movia. Em outro texto, escrito embora tivesse uma biblioteca internacio­
em 1918, quase simultaneamente a Popula- nal, que nunca fez parte dos cfrculos inte­
çôes meridionais, ele descreveu com imen- lectuais do Rio, nem da vida mundana da
,

sa simpatia as pequenas comunidades mi- cidade. Um exilado do mundo rural deca-


. -

neuas em que vIVera por seiS meses por dente na cidade rande.
• • •

-- -

motivo de doença. A alma mineira seria, Creio que tocamos aqui no ponto central
"

segundo ele, feila do "bom metal antigo, o para o entendimento da obra e do pensa­
metal da nossa antiga simplicidade patriar­ mento de Oliveira Viana, um ponto que
cal", Nela dominariam os valores domésti­ pode esclarecer o vínculo entre Populaç6es
cos patriarcais - o recato, a modéstia, a meridionais e os textos de política social e
hospitalidade -, valores que lhe souberam também a aparente quebra de perspectiva
à sensibilidade como ao paladar dos enten­ dentro de Populaç6es meridionais, além
dedores os vinhos caros: "quanto mais an­ das contradições já apontadas. Começando
tigos, tanto melhores no sabor, na limpidez, com Populaç6es, verifica-se neste texto
no perfume". Era a "Minas do lume e do uma guinada no tralamento dos proprieú­
pão", título com que o artigo foi publicado rios rurais ao passannos da primeira e se­
na Revista do Brasil, em 1920. gunda partes para a terceira.
Vale a pena citar outro texto referente à
realidade rural ainda mais distante da flu­ são defmidos ca-
minense. Em comentário 80 romance de mo aristocracia ,
em Evoluçl1o
Mário Selte, O vigia da casa grande, ele do povo brasileiro à dolicocefalia germâni­
elogiou a descrição fma da "alma rude e ca): aristocracia audaciosa, altiva, em­
bela dos nossos caboclos rurais". O roman­ preendedora, artlfice da ocupação do terri­
ce teria mostrado que valores como nobre­ tório nacional, desdenhosa do poder
za, cavalheirismo, fidelidade, bonra,justiça público. Esta simpatia deu margem a que
e bondade não eram limitados à aristocra­ Astrogildo Pereira intitulasse sua critica de
cia, mas impregnavam também as classes 1929 de "Sociologia ou apologética?"
plebtias. Surpreendentemente para muitos
de seus leitores, confessava uma uinfInita
ternura" pela gente humilde que mourejava
A sombra nem sempre grata dos fazendei­
ros. E conclula: "toda a minha obra ( ...) roa, os grandes estadislas que tentavam for­
17
respira uma íntima simpatia por eI3". jar uma nação a partir do arquiptlago lati­
Não há por que menosprezar esses tex­ fundiário que compunha a ex-colônia. ,Os
tos. Por não terem pretensão cientifica, eles �ristocratas ruraispassam a ser tratados c0-
são despojados, desarmados, não citam au- mo meros caudilhos territoriais, resistentes
, - ...
-
A UTOPIA DE OUVElRA ViANA 93

à obra progressista da Coroa, que devem ser canos, estava claro que o federalismo.-.rçpu�
domados em seus excessos de privatismo. blicano �ão se prestava à tarefa. Ao retirar
Se estou correto na identificaç-ão de do centro o poder de arregimentação, ele
\ mundo de valores de Ol iveira Viana, 'a rç- l iberava a força desordenada do jogo dos
\
. viravolta é apenas aparcn�. q Estado cria interesses dos grupos, facções e clãs locais.
a naçlo, estabelece o predomínio do úbli­ Era u m mundo caótico que ameaçava a
co sobre o privado, mas de f�ô$a o Itera própria integridade da nação. A situaçao
valor�s fundamentais que pertencem à or­ agravava-se com o fato de terem surgido no
de;.: rur: 1 patriarca l . Da posição de distan­
m.:, cenário político novas forç-as socia is que
; === � em que hoje nos colocamos, po­
ciamento escapavam ao controle do mundo rural, co­
deríamos dizer que, para Oliveira Viana,..Q.. nu;> os industriais, operários e imigrantes.
próprio Estado �ra patJ:iarcal e sua tutela Não me parece que Oliveira Viana lenha
s,?bre a nação tinha a marca do poder fami-- desenvolvido uma idéia clara sobre a forma

l
liar que buscava hannonizar a grande 31n1- que everia assumir a nova ordem, antes dS
-

na brasileira sob sua autoridade. Na cabeça ocupar a posição,que lhe .2er'lI\l 110 Minis­
estã grande (amnia, ou desti grande clã, tério do Tr<palbo.:..,Em Pequenos estudos,
colocava-se o imperador, que, ao final do ' publicados em 1921, ele ainda acreditava
-

Lmpério, com suas longas barbas brancas, l1uma ;:0113 ao mundo rural, ao "velho culto ) (
era a própria figura do grande patriarra. A nacional da lerra opima e nutridora"; ainda
verdadcira dcscstruturação se teria verifica­ aerecJitava em ensinar a juventude a amar a
do en @ como conseqüência da Aboli­ terra, o campo, o arado, "símbolos loscos e
ção da Escravidão. Oliveira Viana Coi.inc- obscuros desse palriotismo civil, que é qua-
quívoco ao colocar essa data como marco se tudo" (1921:21 e 25). Em O idealismo,

un amcntal na história do país. Popula­ publicado pela primeira vez CIO 1924, des­
ções meri dionais termina em 1888, exata- cria mesmo de soluções que fossem tenla­
mente porque o período posterior lhe pare­ das por meios exclusivamente pol íticos. O
cia exigir estudo à parte. Em Pequenos problema nacional seria antes social e eco­
esrudos de psicologia social foi repetida a nômico e exigiria medidas como a difusão
idéia do ugrande desmoronamento" que se da pequena propriedade (dara referência a
teria produzido com a Abolição (1921 :79). Alberto Torres).
O mesmo fo i dito em Evolllçdo do povo Em Problemas de política objetiva, de
brasileiro: o golpe d. Abol ição desarra njou ,1930, as reformas pro )ostas de naJ!l- C .)
a aristocracia rural, que, a partir daí, ou reza puramente IIlstitucioual e >olítica. In-
prosseguiu sua rota de decadência ou se sistia na re onna da Constituição de' 1891 ,
dirigiu às cidades em busca de alternativas no sentido de devolver ao poder central a
de vida. O corte devia parecer-Ihe . ter sido força que tinha no Império, talvez com a
tão violento que nunca cbegou a escrever o criaç-ão de um quarto poder. Lembrava o
livro sobre a República prometido em Po­ uso dos conselhos técnicos, já adotados em
pulações, promessa reiterada em O ocaso outros países. As leis sociais s6 apareciam
do Império. aí para serem criticadas pelo modo como
A Abolição, logo seguida da República, eram feitas: sem consulta a patrões e operá-
inaugurou um mundo novo em que a ordem rios, o que as fadava ao fracasso por falL a
imperial, politicamente centrali7..ada, mas da adesão moral do povo. Criticava também
al icerçada em valores rurais, deixou de ter as soluçõcs sociais dadas pelo nazismo,
condições de sobrevivência. Novo arranjo fascismo e comunismo. Chegou mesmo a
fazia-se necessário para substituí- la. Para propor soluçõcs individualistas, o que con­
Oliveira Viana, como para muitos republi- tradizia tudo que escrevera antes e escreve·

94 ESlUDOS JnSTÓRICOS - 199111

ria depois. O ue dizia da década de 20 - Estado caberia até mesmo forçar classes e
�ma época de in eclS , sem fISionomia - categorias sociais a se organizarem, pois a
'
podia aplicar-se a ele mesmo no que se organização seria a (mica maneira de se
!Creria não ao diagnóstico, mas A receita exercer a cidadania no mundo moderno.
ra os problemas do 1'!1s. ra a rase de Se antes a ênfase era nos direitos civis
ta amento. ' como condição para o exercicio dos direitos
A clareza na receita só parece ter surgido pollticos, agora os direitos sociais passa­
após a nomeação para a consultoria jurídica vam a ocupar o primeiro plano. Através da
do Ministério do Trabalho, em 1932 Com incorporação do trabalhador e do patrão
a compulsão que o caracterizava, passou a pela estrutura sindical e pela legislação so­
ler tudo sobre sindicalismo, corpotativis­ cial é que se criavam as condições para o
mo, direito do trabalho, e direito social. exercício das liberdades civis e políticas.
Muitos autores, antes ausentes, passaram a Operava-se completa inversão da seqüên­
povoar sua bibliografia. Alguns são ainda cia clássica da evol ução dos direitos como
hoje lidos e respeitados, como Gurvitcb, vista pOr Marshall. Antes- de 30, Oliveira
Sombart, Tawney, Moreno, Mayo, G. Viana reclamava a mesma seqüência dos
Fried.man, MacIver, Tonnies, Sorokin, Ve­ países pioneiros da modernidade, isto é,
blen, PerroU){ e Lasswell. Leu também ju­ direitos civis antes dos poHticos, sem falar
ristas e teóricos do corporativismo e as en­ ainda nos sociais. Agora, os sociais é ue se
2
cíclicas sociais. Analisou'a experiência de tomavam pré-condição dos outros. 1
vários países europeus, dos Estados Unidos As novas concepções foram expostas
e do Japão. em Problemas de direito corporativo, onde
Oliveira Viana fez uma lúcida e convincel,l­
te defesa do novo direito social contra a
A volta aopas­ visão individualista tradicional. Seu princi­
;;odo, aopatriarcalismo rural, fo.i totalmente pal oponente era Waldemar Ferreira, pro­
abandonada. Conformou-se com o fato de fessor da Faculdade de Direito da USP e
que o mundo moderno era o da indústria, do relator da Comissão de Justiça da Câmara.
operariado, das classes sociais. A pergunta O debate girou em tomo do projeto de or­
agora era ganização da justiça do trabalho, redigido
por comissão do Ministério. de que Oliveira
Viana fIZera parte. Contra o individualismo
jurídico defendido por Waldemar Ferreira,
essas assentado na idéia de contrato do Código
a vantagem de poupar ao Civil, Oliveira Viana insistia em afinnar a
país os dramas causados pela industriali.za­ natureza coletiva da realidade social mo­
ção capitalista, ainda incipiente, e de lan­ derna que pedia novos princípios de direito,
çar- nos na direção de uma nova sociedade nova exegese, novos órgãos. novos proces­
hannoniosa t, segundo ele, democrática, sos, novos ritos, nova jurisprudência. Os
pois envolveria, através de sindicatos e cor­ conflitos do trabalho, argumentava, eram
porações, o grosso da população na direção coletivos, exigiam convenções coletivas,
política do país. A regência da orquestra sentenças coletivas com poder normativo.
continuava sendo tarefa do Estado, com a Era dele, sem dúvida, a ostura moderna
diferença de que agora sua ação ordenadora nesse e ate.
e educadora Dão se exercia sobre os irre­ Olado político da nova visão foi exposto
quietos clãs rurais, mas sobre os sindicatos, em Direito do trabalho e democracia so­
corporações e outras organizações civis. Ao cial, onde foi defendida I política social do
A lITOPIA DE OUVEIRA VIANA 95

governo em 1930 e refonnado em 1937. jamais cita. Havia no pensamento de Plínio


Ficaram aí mais nítidos OS princípios orien­ Salgado alguns aspectos de que certamente
tadores da política social concebida por não gostava: o totalitarismo,o apelo à m9-
Oliveira Viana. Sua fonte era a doutrina !>ilização política, o culto,à liderança caris­
social da Igreja. Desta doutrina se servia mática. AS críticas de Oliveira Viana ao
especialmente para criticar o individualis­ tota Ilarismo eram freqüentes. Não rejeita­
mo, em cujo lugar colocava a pessoa, para va o individualismo liberal ao ponto de
enfatizar a cooperação em contraposição ao pulverizá-lo no bojo do Estado. O conceito­
conflito, a justiça e o bem comum em con­ cbave era o de psssoa, tirado da tradição
trapo�ição à simples defesa de interesses católica, A pessoa é o indivíduo inserido

individuais. As doutrinas corporativistas e nu�na rede de relações, um indivíduo que


sindicalistas e omeClam a engen ada so­ mantém sua identidade, que deve ter seus
cial e lítica moderna para im lementar direitos respeitados, Quanto à mobilização,
valores ue não eram substancialmente IS­ embora, como vimos, a admirasse na for­
tintos dos que teriam revalecido na socie­ mação dos povos anglo-saxôn.ícos, ele a
dade a rária do Império. Ó novo Estado ;;to aborrecia e nunca a propôs para o Brasil.
deixa de ser ?gran e p�trjªrc,!benevolente '
velando sobre o bem-estar da nova grande de sua escala de valores: orga nização,
família brasileira. graça o, IUcorporaçao, cooperaçao, Sim, e
'o • • _ _ _ •

A comparação com outros autores tam­ quanto mais melhor; mobilização, luta po-
bém considerados autoritários ajuda a res­ lítica, conDito, não, pois eram forças desa­
saltar o específico da posição de Oliveira gregadoras como desagrega dores eram o
Viana. Embora haja traços comuns ao pen­ latifúndio e o federalismo. Em sua utopia
samento dos chamados autoritários das dé­ �ocial também não havia lugàr para lideran-
cadas de 20 e 30, ponto tão bem desenvol­ ças carismáticas. Admirava, é certo,algun-s
vido por Bolivar Lamounicr (Lamounier, estadistas do Império, os homens de mil. e
1977), há também importantes distinções. o papel do Imperador. Mas na fase social e
A postura de Oliveira Viana não é, por trabalhista de sua obra, na rase utópica, os
exemplo, a mesma de Azevedo Arnaral, um atores eram coletivos, eram o governo, as

-j declarado defensor do moderno capitalis­ corporações, os sindicatos. Seu ideal de


mo. Em sua revisão da história do Brasil, sociedade era U,Dl corpo orgânicq que deve­
Azevedo Amaral adotava uma perspcct�va ria funcionar por conta própria, articulado
--

inspirada na lei posilivista dos três estados por lideranças funcionais que o pcnneariam
e valorizava tudo que apontasse para a so­ de alto a baixo.
ciedade industrial moderna. ti- Ainda dentro do exercício comparativo, �
parece-me que, além das origens rurais, do
banguê do Rio Seco, e da innuência católi-

que seus ca, talvez o que mais afastou Oliveira Viana


de corporativismo, eram tirados de muitos intelectuais seus contemporâ-
dos Estados Unidos. O autoritarismo para neos tenha sid<J/? mõdemismo.)Ele passou -)(
ele era urna técnica. uma engenharia social,
o..

ao largo deste movimento. Ignorou-o total-


_

um caminho para países como o Brasil che­ mente. Ignorou-o mesmo quando, em sua
garem ao moderno capitalismo. A ele cabia segunda fase, iniciada em 1924, a temática
com propriedade a definição de autoritário do nacionalismo, do brasileirismo, se tor-
instrumental. •
nou cen!raI.Há declarações de escritores da
Não se trata também do integralismo de antropofagia e do verde-amarelismo, refe-
flínio Salgadp. autor que 'Oliveira viana rentes à necessidade de rundar o nacional,
96 ESTUDOS msTóRI<DS -199l/1

o brasileiro, em oposição, pelo menos pro­ destruir o mundo rural tão caro a Olivein
visória, ao internacional ou universal, que Viana. A mesma comparação talvez pudes-
poderiam ser facilmente subscritas por Oli­ se ser feita com Gilbertn Freyre. De novo,
veira Viana, que tinha até mesmo seu totem há muito em comum entre os dois, inclusive
animal, contrapartida do jabuti da antropo- a simpatia pelo mundo rural.
fagia e da anta verde-amarela. Sugeria, se- de 01 iveira Viãiia

guindo Gregório de Matos, ue se injetasse


um pouco de sangue de tatu as veias de 9ue era estética, mas, principalmente, so­
nossos pensadores e legisladores (1930:47- cial.. Seu modernismo levava-o a desinte·
8). Quando dizia ainda que entre nós cultura ressar-se do poder político e concentrar-se
,

era alienação, poderia ser confundido com nas relações sociais, inclusive as mais ínti­
um partidário da antropofagia vociferando mas, com uma irreverência que escandali­
contra o lado doutor de nossa cultura.19 zaria Oliveira Viana.
Em que o modernismo o separava de Regresso dos infernos sem trazer Olivei­
pensadores de quem, de outro modo, estaria ra Viana de volta, nem lá fuj em missão de
muito mais próximo? Parece-me ue o tra­ Orfeu. Mas talvez tenha conseguido salien­
ço modernista detenninante da diferença tar aspectos importantes de seu pensamento
oi o da cu rura, ou da retendida ru tura, que o colocam dentro de �ma tradição a um
.
com o passado. Aruptura era a marca regis­ �empo distinta e marcante de nossa cultura.
trada do modernismo, tanto em sua vertente Entre o liberalismo ortodoxo ou o america­
,

ãilfropofágica quanto na verde-amarela. nismo de Tavares Bastos e o liberalismo


Tratava-se de derrubar a construído, de des­ conseIVador ou o autoritarismo instrumen­
truir as tradições, os mitos oficiais e falsos, tal de Uruguai, há o iberismo, ou seia li o I!
de refazer o Brasil a partir de uma visão nome que se lhe dê, de Oliveira Viana. A
abstrata e romântica das raízes indígenas. perguntâ a se fazeré se este iberismo, pro­
f Alguns modernistas, se não todos, deixa­ fundamente antagônico à visão liberal, or­
I vam-se fascinar pela técnica do mundo mo­ todoxa ou conseIVadora, não tcm raízes
derno, pelas máquinas, pelas invenções, pe. mais profundas em nossa cultura, raízes que
las grandes metrópoles. Nada disso atraía podem estar na base das dificuldades de
Oliveira Sua visão de futuro implantação de uma sociedade liberal. A
pergunta é se o inferno a que condenamos
de romântico nela havia e o omantismo -
Oliveira Viana em vez de ser o outro, como
a Vida fazendeira idealizada. em que havia queria Sartre, não é parte de nós mesmos.
brancos e negros ex-esmy.os,.(negros que
eStâo quase totalmente ausentes na antropo-
fagia), mas não índi.'1§.. .
.
..--

A diferença bbica entre Oliveira Viana


e Sérgio Buarque de Holanda pode estar aí. Notas
Há muito em comum no diagnóstico que
ambos fazem da sociedade brasileira: o pe­ 1 . Cilado em Torres (1956:62)

so da famíl ia, das relações pessoa is, do 2. A crílica de Aslrogildo Pereira (1979),
publicada pela primeira vez em 1929, deu o tom
ruralismo, e mesmo da nacio-
de muitas das críticas posteriores . Centrava-se
nal para a democracia. Mas
em Populn ç&s meridionais e denunciava o viés
do
de classe dominante do autor. Batista Pereira
(1931), publicou originalmente sua critica em
1927 nolomal do Commercio. Seu alvo era "O
zação, exatamente as forças que idealismo da· Constituição" e focalizava espe-
. ,
A UfOPIA DE OUVEIRA VIANA 91

cialmente O caráter arbitrário de muitas das afir­ 1 1 . A exprf.5são ê de Wanderley Guilherme


mações de Oliveira Viana. dos Santos ( 1978).
3. A primeira critica mais virulenta veio de 12, A análise do pensamento dos oonselbei ­
Nelson Werneck Sodré (I961). Em livro anterior ros foi feita por Carvalho, 1988, capo 4.
(1942), este autor elogiara a obra de Oliveira 13. Sobre a visão integradora de José Boni­
t
Viana. Na mesma linha de denúncia do racismo fáào, veja Carvalho ( 1988).
e da submissão ao pensamento colonialisia, em­ 14. Sobre o pensamento católico reacionário,
bora com maior erudição, está o artigo da Vanil­ especialmente o de Jaclcson de Figueiredo, con­
da Paiva (1978). A crítica mais extensa, objeto sulte-se Francisco Iglésias (1971).
de um li':'fo inteiro, foi produzida por José Ho­ 15. Pode-se perguntar se a rejeição ao totali­
nório Rodrigues (1988). O titulo já indica o tarismo e a defesa do Estado Novo como regime
sentimento deste autor em relação a Oliveira democrátiro não passavam de retórica autoritá­
Viana. Para ele o sociólogo fluminense fora nada ria. ou mesmo de cinismo. Não me parece que a
menos que o responsável intelectual pelos gol­ vida e a obra de Oliveira Viana autorizem tal
pes de 1937 e de 1964 (p. 3). Vejam-se também interpretação. No que se refere a seus valores
as críticas de Sérgio Buarque de Holanda (1979) polfticos. ele foi coerente e explícito durante
e de Dante Moreira Leite (1969). A tese deste toda 8 vida, mesmo sabendo-os impopulares.
último, que deu origem ao livro, é de 1954. 16. Veja "Discurso do Sr. Oliveira Viana".
anterior ao liv,ro de Sodré. pronunciado na Academia Brasileira de Letras

4. Não existe uma biografia satisfatória de em 20107/1940.


Oliveira Viana. Na falta de coisa melhor, consul­ 17. Veja " O v i g i a da casa grande"
te-se a obra de Vasconcelos Torres (1956). (19240:247).
5. Além dos críticos antes citados, consul- 18. Não é piC::ciSO salientar a importância
desta proposta e de sua implementação para a

tem-se as obras mais recentes de Vieira (1976),


Medeiros (1974), Lima e Cerqueira (1971), Fa­ formação da cultura política do Brasil oontem­
ria (1 977), Moraes (1990), Alves Filho (1977), porâneo. Ela está no centro do que vimos cha­
Gomes (1989). mando de iberismo.
6. Veja "O valor pragmático do estudo do 19. Sobre as duas fases do modernismo, veja
passado", discurso pronunciado quando de sua Eduardo Jardim de Moraes (1978).
ieccpçãO no Instituto Histórico e Geográfico,em
1 1 de outubro de 1924.
7. Veja ""Do ponto de vista de Sirius ..... A
aítica de Batista Pereira, publicada no mesmo
jornal em 23/10/1927. tinha título idêntico ao da
BibliografIa
resposta, menos a reticência. A tréplica de Batis­
ta Pereira saiu em 15/11/1927. com o título de
""A passagem de Sirius".
8. Vej a Evolução do povo brasileiro, 1 . Obras ih Oliveira Viana
1923:28. Lembre-se aqui também a famosa pro­
posta de Martius (1845) sobre como se deveria
1 . 1 . Livros
escrever a história do Brasil . Martius atribuía à'
história o papel de mcstra do futuro e do presente ' 1920. Populações meridionais do BrasiL Pau­
e de instigadora do patriotisD;lo. listas, fluminenses, mineiros. São Paulo,
9. Veja Uruguai (1960:9). Privilegio aqui o Monteiro Lobato e Oa.
Ensaio, que ê a obra mais teórica de Urugua i. Os 1921. Pequenos estudos de psicologia social.
Estudospráticos sobre a administraçDo daspro­ São Paulo. Monteiro Lobato e Cia.
víncias no Brasil, são um imenso repertório de 1923. Evolução do povo brasileiro. São Paulo,
evidências empíricas sobre problemas adminis­ Monteiro Lobato e eia.
trativos. 1925. O caso do Império. São Paulo, Melhora­
10. Sobre o liberalismo conservador francês mentos.
da geração 1814- 1848, baseei-me no excelente 1927. O idealismo da Constituição. Rio de Ja­
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Casa Editora Vecchi.
---c'196 1 . A deolog
i ai do colonialismo. Rio de José Murila de Carvalho é professor da luperj
Janeiro, lseb. e pesquisador da Fuodação Casa de Rui Barbosa.

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