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BARBA, E.; SAVARESE, N. A Arte Secreta do Ator. Dicionario de Antropologia Teatral. Campinas-SP: HUCITEC, 1995; RAMATURGIA O TRABALHO DAS AGOES Eugenio Barba A palavra texto, antes de signil impresso ou manuscrito,significava “tessit hd espeticulo sem “texto”. © que esti relacionado ao " ‘Nem sempre é possivel distinguir, na dramaturgia de u twieulo, 0 que pode ser chamado de “dir ‘que deseja ser a interpretacio de um texto escrito. A distincao entre uma dramaturgia auténoma e o espetaculo em si tem origem no modo como Aristoteles enearou a tradicio da trax cia grega (uma tradicio que jé era distante até para ele mesmo). indicando dois campos de pesquisa diferentes: o texto escrito € 4 forma de represent. A ideia de que existe uma dramaturgia que s6 pode ser identifi culo — que independe dele e a0 mes- ‘mo tempo € sua matriz ~ 6 uma consequéncia daquelas situacSes historicas em que a meméria de um teatro foi transmitida através das palavras faladas pelos personagens de seus espeticulos. Uma distingio desse tipo seria totalmente impensivel se 0 objeto da and- cada no texto escrito do espe lise fossem os espeticulos em sua integridade. Bee wath i a cue 11-210 eto torn ag: (acia) pga docaderno de rablho de Edvard Gordon Cig (38721266) para encenaro do Hamlet de Shakespeare no Teatro de Ate de Mone (1908 1210 0, Cena dul entre Hamlet Lact dreta aque do pico do Teo conta om jo de gras de paps, expen Stans e ao tre 3 ‘dea sobre a encengao de Ham eor movimento de plo dos pteonogens Nets foto. ret do palea¢posel ver as figuras de Hare eLaerte durante duela. um texto falado ou escrito, a Nesse sentido, nao texto” (& tessitura) do espeticulo pode ser definido como “dramaturgia’, ou seja, drama-ergon, 0 tra balho das acdes no espeticulo. Jé 0 modo como as acoes trabalham espe: 10" e 0 que pode ser cha mado de “escrita” do autor. Essa distineZo s6 & clara em um teatro Concretamente, em uum espeticulo teatral, ardo (ou seja, tudo 0 aque esta relacionaco a dramaturgia) ndo é apenas 0 que € dito ou feito pelos diversos atores, mas tamb n 08 sons, os ruidos, as luzes, dancas do espaco. Em um nivel superior de organizacao, as ‘des io 05 episéios da hist6ria ou as varias faces de uma situacio, fs areos de tempo entre duas dancas do espaco. Ou ainda a evoluch fases do espeticulo, entre duas mur ~ com certa autonomia — de ima colana sonora musical, das variacdes das luzes, das variacOes de ritmo e de intensidade desenvolvidas por um ator em cima de temas fisicos bem precisos (maneiras de caminhar, de tratar os objetos, de ‘usara maquiagem ou o figurino). Também sio aces os objetos que se transformam, adquitindo diferentes significados ou coloracdes emo- tivas. Aedes so inclusive todas as relacOes, todas as interacGes entre os personagens entre si ou entre eles eas luzes, 0s sons, 0 espaco. Tudo ‘o que age diretamente sobre aatencio do espectadar, sobre sua com- preensio, sua emotividade e sua cinestesia também € ado. ‘A lista poderia ficar tio extensa a ponto de ser inttil. © que importa nao é fazer um levantamento de quantas ¢ quais sejam as aces de um espeticulo. Importante € observar que as acbes $6 co- ‘mecam a trabalhar quando se entrelacam: quando se tornam teci- do, textura = “texto”, Podem existir dois tipos de rama © primeiro tipo de trama tem a ver com 0 desenvolvimento das acées no tempo, através de uma concatenacdo de causas € efeitos ‘ow através de uma alterndncia de ages que representam dois de- senvolsimentos paralelos. (© segundo tipo de trama tem a ver com a presenca simultinea de varias acies. Concatenagio € simultaneiade so duas dimensdes da trama, Nao slo duas alternativas estéticas ou duas diferentes escolhas de método: 2) Eaqern de movinentos de cena desenhados por Stanslésk para acea apa os vsjnterno egundo ato de Ori ds Cares de Teak (1904) so os dois polos que, através de sua tensi ou de sua data, deter nina o expeticulo e sua vida o trabalho das acbes -a dramaturgia, ‘Vamos retomar a importante distingo ~ examinada sobretudo por Richard Schechier entre un teatro que se baseia na encenacio Sle um texto escrito anteriormente e tum teatro que se biseia no per srmance tet (texto do espetéculo). Aparentement, ess dstincdo € Stl para caracterizar das diferentes formas de abordaro fendmeno ceatfal €, pr consequénca, dois diferentes resultados de espetéclo, Por exemplo: enquanto o texto escrito pode ser conhecido € cransmitido antes e independentemente do espeticulo, perfor nnance texts6 existe no final do processo de trabalho e nao pode ser cransmitido, Na verdade, seria tautoldgico afirmar que o peformar- + text (que € 0 espetaculo) pode ser transmitido filo espericul. 4 transmissio seria impossivel, ainda que conseguissemos utilizar uma téeniea de transcricdo parecida com aquela sada na msia. {quando varias sequéncias horizontais si arranjads verticalmente quanto mais fil fosse a transmissio, mais ilegvel ela seria. Meso 2s gravagdes sonoras evsuitis do espeticulo 86 podem nos restituir ‘uma parte do performance text, pois excluem (pelo menos NOs ¢3- sos dos espetaculos que no usam 0 palco italiano) as complexas montagens das relagbes de proximidade-distincia entre atores € ‘espectadores, privilegiando, em todos os casos em que as acbes S30 simultineas, apenas tima montagem entre muitas. Na realidad, cla nos restitui olhar de wm tiie espectador. [Acdistingao entre “um teatro que se bascia em tm texto escr- to" = composto a prone usado como mattiz da encenacio ~ € “um teatro eujo texto significativo € apenas o performance text representa muito bem, intutvamente, a diferenca entre “teatro tradicional “novo teatro", Mas essa distincio é especialmente til se quise ‘mos pasar de una casifcacio dos fendmenos teatrais moderos a tina andlise feta 20 microscépio, ow a uma investigacio anatdmica dda peca ede sua vida: a dramaturgia. Desse ponto de vista, a relacio entre “performance test" € “texto composto @ prior” nfo surge mais como contradicio, e sim como complementaridade, oposi¢io dialética. Portanto, 0 problema néo éaescolha de um polo ou de outro, a definicao de um tipo de wea to ou de outro. Pelo contrario, o problema é 0 equilibrio entre 0 polo dda concatenacio ¢ 0 polo da simultaneidade. A vinica coisa negativa é a perda do equilibrio entre os dois polos. Quando o espeticulo deriva de um texto de palavras, pode ha- ver perda de equilibrio por causa do dominio das relacoes lineares (a rama como concatenagio), 0 que prejudica a trama entendida como tessitura ele acées simultaneamente presentes, Se o significado fundamental do espeticulo vem da interpreta: cdo de um texto escrito, entio vamos ter a tendéncia a privilegiar essa dimensio do espetaculo que corresponde a dimensio linear da lingua. Tenderemos a tratar como elementos periféricos todas as tramas que, a0 contraio, derivam da presenca simultanea de varias aces ao mesmo tempo. Ou tenderemos a trati-las como acdes que nao se entrelacam: acdes de fundo. Atendéncia a subestimar a importancia do polo da simultaneida- de para a vida da pega é reforgada, na mentalidade moderna, pelo espeticulo que Eisenstein ji chamava, na sua época, de “o nivel atual do teatro”, ou seja, o cinema. No cinema, a dimensio linear é pra- ticamente absoluta, ¢ a dialética (a vida) da trama depende basica- mente dos dois polos da concatenaco das aces ¢ da concatenacao da atencio de um espectador abstrato: 0 olho-filtro que seleciona primeiros planos, planos americanos, contraplanos, ete A forca do cinema sobre nossa imaginacio aumenta o risco de perdermos 0 equilibrio entre o polo da concatenacio e 0 polo da simultaneidade em nosso trabalho teatral. Os préprios espectado- res tém a tendéncia a nao atribuir um valor significativo a trama de acdes simultineas, e se comportam — a0 contririo do que normal- ‘mente acontece na vida cotidiana ~ como se no espeticulo teatral houvesse um elemento privilegiado para estabelecer o significado do texto dramatico (as palavras, os fatos do “protagonista”, etc.) Isso explica por que um espectador de teatro ocidental muitas vezes acha que no entendeu totalmente os espetaculos que se baseiam ‘numa trama de aces simultineas, e por que ele se vé em dificul- dade diante da légica de muitos teatros orientais, que The parecem complicados ou sugestivos por causa do seu “exotismo”. Empobrecer o polo da simultaneidade é © mesmo que limitar as [posshilidades de fazer brotar significacios complexos no espeticulo, Esses significados no derivam de uma complexa concatenacio de acdes, e sim do entrelacamento de virias ages draméticas, cada uma delas dotada de um “significado” proprio e simples. Acées que sio ‘compostas entre si, entrelagadas através de uma tinica unidade de tem- po. F, assim, o significado (aqui estou usando a palavra “significado” ‘em seu sentido banal, aquele da lingua comum) de um fragmento da peca nio é determinado apenas pelo que o precede e pelo que vit depois, mas também por uma multiplicidade de facetas, por uma sua presenca, digamos assim, tridimensional, que faz com que ele viva no presente com uma vida propria, Em muitos casos, iso signifiea que, {quanto mais se torna dificil para 0 espectador interpretar ou avaliar imediatamente o sentido do que acontece diante de seus olhos ¢ de Sim mente, mais forte é sua sensacao de viver uma experiéncia. Ou centio ~ dito de maneira mais obscura, porém (talvez) mais proxima & realidacle — mais forte & a experiéncia de uma experién« > 0 entrelagamento simultineo de varias aces determina, no es petaculo teatral, algo equivalente ao que Eisenstein descreve com relacio a0 quadro de Fl Greco, Vista de Toleda: nese quadro, 0 pin- oF no reconstréi uma “vista” real, ele constr6i uma sintese de mui- {as “vistas*, mostrando as varias faces, inclusive aquela mais obscura, de um edificio, Bele faz iso montando diversos elementos ~tirados 4a realidade, um independentemente do outro ~ numa nova rela- ficial (ver fig 1, pagina 161) Essas possbilidadtes dramavirgicas pertencem a todososdiferen- tes niveise a todos os diferentes elementos do espeticulo, tomados tum por un, da mesma maneira que pertencem & trama siperior. ator, por exemplo, obtém efeitos de simultaneidade no mo- ‘mento em que rompe 0 esquema abstrato dos movimentos para que © espectador nio seja mais capaz de antecips:lo. Monta (com- pe = poe junto) sua agao em uma sintese que nao é nada parecida com a do agir cotidiano: segmenta a acio escolhendo alguns frag- mentos ¢ dilatando-os, compée ritmos, encontra um equivalente da acio “real” através daquilo que Richard Schechner chama de “restauragio do comportamento’ (0 uso do texto escrito, quando nio é interpretado somente como concatenacio de acdes, pode conduzir a trama simultinea, «em uma nova sintese dramética de elementos ¢ detalhes que, por si 56, nao sio dramaticos. De Hamlet, por exemplo, podemos extrair uma série ce informa- «bes: rastros ca secular disputa entre Noruega e Dinamarea encon- tramse no conflito anterior que colocava Hamlet pai em oposi¢a0 4 Fortimbrs pai; a Inglaterra que deve pagar impostos para a Di- namarca faz ecoar 0 tempo dos vikings; a vida da corte lembra Renascimento; as alusdes a Wittemberg podem nos remeter & Re- forma, Todas essas diversas facetas hist6ricas (ou que podemos re- almente utilizar como diversas facetas hist6ricas) podem formar um Jeque de escolhas para interpretar 0 texto dramitico: neste caso, uma facetaeliminaré as outras. Mas, 20 contriio, elas também po- dem estar entrelagadas numa sintese le varias facetas historias si- multaneamente presentes, cujo “significado” como “intexpretagio de Hamlet ~ ou seja, 0 que 0 texto dramitico vai parceer para os ‘espectadores ~ nao € previsvel. Quanto mais 0 autor do espetaculo crabalhar usando uma ldgica simples ao entrelacar 0s atios fos, ais 0 significado do espetaculo o surpreenderi, o motivari e sera nprevisivel para ele mesmo. ‘Também podemos dizer algo parecido com relacio a H: protagonista da peca. A concatenacio das ages montadas por Shakes peare, em geral, fornece uma imagem do personagem como um hhomem cheio de diividas, indecso, dominado pela doenca da “melan- coli’, um fldsofo sem aptido para aco. Mas nem todos os elemen- tos dessa montagem correspondem a essa imagem: Hamlet age com determinagio quando mata Poldnio;falam de como ee falificou —de modo decide efrio ~a mensagem de Cliudio para o rei da Inglater- re de como derrotou os piratas; ele desafia Laerte; identifica rapid: ‘mente as armadilhas preparadas contra ele: mata re. Para um ator (¢ para um direwr), todos esses detalhes,vstos um ‘por um, podem ser usados como indicios para construir uma interpre- tagio coerente do carater de Hamlet. Mas também podem ser usados ‘como indicios de comportamentos diferentes ¢contradit6rios para se- rem montados em uma sntese que no fro de wma deo primar relacionada ao cariter que desejam encontrar em Hamlet. Como podemos ver, com essa simples hip6tese nos aproxima- mos bastante do processo criativo (= compositivo) de varios ato- res do Grande Teatro Ocidental. Em seu trabalho cotidiano, eles nao partiam (€ nao partem) da interpretacao do personagem, mas chegavam (e chegam) até ele ~ pelo menos aos olhos dos especta- lores impressionados ~ seguindo um caminho que nio se baseia ‘em “o qué?’ mas em “como? montando numa sintese formalmente coerente alguns aspectos que, @ prior, pareceriam incoerentes do ponto de vista do “realismo habitual". O trabalho das agdes (a dramaturgia) deve ser vivo para equi- librar 0 polo da concatenagio e o polo da simultaneidade. Essa vida corre o isco de se perder quando a tensio entre esses dois polos é perdida. Enquanto a perda do equiltbrio a favor da trama por concatens iio leva peca a0 torpor de um reconhecimento confortivel,a pera do equilibrio a favor da trama na dimensio da simultaneidade pode resullar na arbitraredade, no caos. Ou na incocréncia cocrente fill prever que esses riscos ejam bem maiores para quem tr batha sem a condugio de um texto compostoanteriormente. Texto de palavras, performance text, dimensio da concatena¢io ou linear, tdimensio da simultaneidade ou tridimensional sio elementos que no carregum em si nenhum valor postvo ou negatvo. Os valores, positivos ou negativos, dependem da qualidade de suas rlacdes. o ‘Quanto mais oespeticulo permite que o espectador faca a expe- riéncia de uma experiéncia, mais deve conduzir também a sua aten- Gio, para que ele nio perca, na complexidade da acio presente, 0 sentido da directo, do passado e do futuro, a hstra, ndo como anedota ou historinha, mas como “tempo histérico" do espeticulo. “Todos os principios que permitem montar a atencio do expects. dor podem ser buscados na vida do drama (das ces que comecam a trabalhar): a trama por concatenacio ea trama por simultaneidade. Griara vida do drama, do texto dramtico, nao €6 entrlacaras acoes ¢ as tensdes do espeticulo, mas também montar a atencio do ‘espectador, montar os rtmos,induri as tens6es sem tentar impor ele uma interpretacao. i: De um lado, « atencio do espectador & atraida pela complexi- dade, pela presenca da acio; de outro, é continuamente chamada a avaliar essa presencae essa acio a luz do conhecimento do que acabou de acontecer e da previsio (ou do questionamento) sobre © que ainda acontecera. Asim como a acio do ator, a atencio do cspectador também deve poder viver num espaco tridimensional, governada por uma prépria dalética que constitu’ um equivalente dia dialtica que governa a vida, Em sitima analise, poderiamos reconduzira dialtica entre "ra- sma por concatena¢io" e “trama por simultaneidade” & complemen: taridade (e nao & oposicio) entre hemisfério esquerdo e hemisfério dircto do cérebro, Dramaturgia e espaco cénico Todos os espeticulos do Odin Teatret so caracterizados por uma diferente utilizagio do espaco. Os atores no se adaptam as dimensdes do espaco que ja existe (como no palco italiano), mas modelam a arquitetura de acordo com a exigéncia da dramaturgia e de cada nova producao. [No entanto, no sio $6 os espacos ocupados por atores e especta- ores que variam a cada espeticulo. Durante um mesmo espeticulo, (5 espectadores podem se encontrar ao redor da area de atuacio ou no meio dela, Alguns vivem a acio como se fosse um primeiro plano, ‘quando ator esta a poucos centimetros deles; outros, como se fosse ‘um campo total, quando podem ver um espaco mais amplo. Esses mesmos principios sto empregados em espetculos feitos 0 ar livre, usando pracas, ruas, varandas e telhados das cidades ou dos vilarejos. Nesse caso, o ambiente ja existe ¢, aparentemente, ino pode mais ser transformado. Mas o ator pode usar sua presenca para fazer uma caracteristica dramstica brotar daquela arquitetura que, por costume € habitos cotidianos, ndo somos mais capazes de ver € nio vivemos mais com o frescor do olbar.

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