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Eugenio Barba Queimar a Casa Origens de um diretor ‘Tradugdo: Patricia Furtado de Mendonga PRATICA DA LITE RATYRA DRAMATICA 2 Bk mn i aa pve Lieraue— Dramaturgia do Espectador espeticulo nao é um mundo que existe igual para todos; é uma realidade que cada espectador experimenta individualmente na ten- tativa de penetré-la e de apropriar-se dela. A substncia definitiva do teatro so os sentidos ea meméria do espectador. E essa substancia que as agbes dos atores atingem. © coragao do meu oficio de diretor era a transformagio das ener- gias do ator, para que ela provocasse a transformagao das energias do espectador. Uma no podia acontecer sem a outra. Era indispensavel trabalhar em profundidade com cada um dos atores, para que eles, por sua Vez, provocassem uma rea¢ao em profundidade em cada um dos espectadores. Eu queria que o espectador assistisse as histérias das personagens ficticias e, ao mesmo tempo, escorregasse para dentro de um mundo ‘que era sé seu. Eu tinha visto que isso era possivel. E quando aconte- Cia, 0 espetaculo nao s6 sussurrava um segredo, um pressagio ou uma interrogacao, mas também evocava uma outra realidade. O espetaculo no era mais uma aparéncia, mas uma apari¢io que visitava sua cidade interior. A experiéncia evocativa comportava um salto de consciéncia do espectador, uma mudanca de estado. A dimensao evocativa, esse nivel em que o espeticulo ~ e com ele, 0 espectador ~ ultrapassa a si mesmo e vai além dos prdprios confins, foi a nostalgia intima de uma parte do teatro do século ao qual pertenci. Era aquilo que Ihe dava valor, além de Ihe dar sentido. Nao poderia haver um salto de consciéncia sem um trampolim ade- quado. Ele era constituido pelo nivel orginico que tocava os sentidos do espectador, ¢ pelo nivel narrativo que envolvia a esfera emotiva e in- telectual. O trampolim era a condicdo necessdria para 0 salto, mas nao era sua condicao suficiente. S6 me dedicando ao trabalho de construir © trampolim eu podia esperar produzir o salto de consciéncia, 252 Eu podia estruturar conscientemente o nivel organico e preparar as condigées do nivel narrativo. Com relacdo ao nivel evocativo, eu s6 podia esperi-lo, no duplo sentido que Simone Weil atribuia & palavra espera: aguardar, mas também dedicar toda a sua atencio. Esse nivel nao tinha a ver com as emogdes, as lembrancas, as associagGes que o espeticulo po- dia e devia suscitar no espectador. Ou melhor, nao se esgotava ali Uma coisa é compor materiais para nés mesmos, uma sucessio € uma simultaneidade de ages e circunstancias que tenham sentido e valor para nés que as criamos e elaboramos. Outra coisa é fazer com que clas tenham um efeito sobre o espectador através de uma estratifi- cada orquestracio de relagdes contrastantes e descontinuas. ‘A potencialidade evocativa de um espetculo dependia também da capacidade de salvaguardar, sob um manto reconhecivel, a vida inde- pendente de outras ogicas a de cada aor, ado diretor ea de cada es pectador. Mas de que espectador estou falando? De espectadores fetiche aos quais eu me dirigia durante os ensaios. Eram poucas pessoas, com tragos que podiam ser reconhecidos: a crianga que se deixava levar pela euforia do ritmo e da maravilha, mas que era incapaz de avaliar simbolos, metAforas e originalidade artisti- ca; Knudsen, um velho carpinteiro que sabia avaliar os minimos aca- bamentos; o espectador que achava que nao entendia nada mas que dangava em seu assento sem se dar por isso; 0 amigo que tinha visto todos os meus espeticulos, e revivia o prazer de reconhecer as coisas que o faziam ama-los, e ao mesmo tempo ficava embaracado com as cenas desagradaveis; o cego Jorge Luis Borges que se deliciava com as minimas alusdes literdrias e as espessas camadas de informacio vocal; 0 surdo Beethoven que escutava o espetculo através da visdo, apre- ciando sua sinfonia de agdes fisicas; um bororo da Amazénia que ali reconhecia uma ceriménia para as forcas da natureza; uma pessoa que eu amava e queria que ficasse orgulhosa de mim e dos meus atores. ‘Trabalhar a dramaturgia do espectador significava, para mim, ope- rar em diferentes niveis sobre a sua atencio através das acdes dos ato- res. Eu me comportava como o primeiro espectador, com uma dupla atitude de estranhamento e identificacao. Estranhamento do “piblico”, mas também de mim mesmo. Identificacao nas diversas experiéncias dos meus espectadores fetiche, que tinham a ver com as varias outras maneiras do espetaculo estar-em-vida. Eu justificava todos os detalhes e ages do espetaculo através das reacGes de cada um destes espectadores. Eu passava de um para 0 ou- tro, vigiava resistencias e aprecamentos, imaginando o sorriso irénico 253

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