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ANO 12 / NÚMERO 140 R$ 14,90

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FALTA DE PROGRAMA SEGURANÇA PÚBLICA ENTREVISTA
O QUE QUER A OPOSIÇÃO O PACOTE DE MORO A SOCIEDADE BRASILEIRA
NA VENEZUELA? NASCE VELHO SEGUNDO NEY MATOGROSSO
POR JULIA BUXTON POR MARCELO FREIXO POR GUILHERME HENRIQUE

LE MONDE
BRASIL
diplomatique

O QUE PENSAM
OS MILITARES
00140

752004
771981
9
2 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

VENEZUELA, ESTADOS UNIDOS E FRANÇA

Chegar
ao fundo
do poço...
e continuar
cavando?

© Bernardo França
POR SERGE HALIMI*

“O
pior ainda não aconteceu a pon- da Venezuela, a pretexto de uma va- A decisão da França infringe a regra autor de um golpe de Estado rapida-
to de podermos dizer: isto é o cância da presidência que só existe em segundo a qual Paris reconhece Esta- mente seguido pelo encarceramento
pior.” Nos dias que correm, a di- sua fantasia, Paris, ao contrário, voltou dos, não regimes. Ela insufla também de 60 mil adversários políticos e pela
plomacia francesa lembra esse a se pôr a reboque da Casa Branca e Emmanuel Macron a encorajar a polí- condenação à morte de seu predeces-
verso de Rei Lear. No fim do quinquênio deu seu aval ao que, aparentemente, tica incendiária dos Estados Unidos. É sor livremente eleito. Em matéria de
de François Hollande, acreditávamos não passa de um golpe de Estado. A si- que a proclamação de Guaidó foi inspi- política exterior que se pretende vir-
ter chegado ao fundo do poço;1 alguns tuação na Venezuela é dramática: in- rada pelos homens mais perigosos da tuosa, ainda poderemos fazer pior?
previam mesmo um arroubo de orgu- flação galopante, fome, prevaricação, administração Trump, como John Bol-
lho. Afinal, como os Estados Unidos exi- sanções, violências.2 E mais dramática ton e Elliott Abrams (ver o artigo de Eric *Serge Halimi é diretor do Le Monde
biam seu soberano desprezo pelas capi- ainda porque uma solução política se Alterman, na p.14). Ninguém mais ig- Diplomatique.
tais europeias e seu desejo de fugir às choca doravante com o sentimento nora que o vice-presidente norte-ame-
obrigações do Tratado da Aliança Atlân- de que tanto os que se insurgem con- ricano, Mike Pence, informou Guaidó 1 Ver Dominique de Villepin, “La France gesticule...
tica, por que não se aproveitar disso e tra o poder como os que o perdem po- de que os Estados Unidos o reconhece- mais ne dit rien” [A França gesticula... mas não diz
nada], Le Monde Diplomatique, dez. 2014.
deixar a Otan, renunciar à política de dem acabar atrás das grades. Acaso riam... na véspera do dia em que ele se 2 Ver Renaud Lambert, “Venezuela, les raisons du
sanções contra Moscou e imaginar a os dirigentes venezuelanos não esta- proclamou chefe de Estado.3 chaos” [Venezuela, os motivos do caos], e Temir
cooperação europeia “do Atlântico aos riam considerando o caso do ex-pre- Em 24 de janeiro, Macron exigiu “a Porras Ponceleón, “Pour sortir de l’impasse au Ve-
nezuela” [Para sair do impasse na Venezuela], res-
Urais”, com que sonhava o general De sidente brasileiro Luiz Inácio Lula da restauração da democracia na Vene- pectivamente, dez. 2016 e nov. 2018.
Gaulle há sessenta anos? Enfim, livres Silva, impedido de candidatar-se nu- zuela”. Quatro dias depois, chegou de 3 Cf. Jessica Donati, Vivian Salama e Ian Talley,
da tutela norte-americana – e adultos! ma eleição presidencial que prova- ânimo leve ao Cairo, bem decidido a “Trump sees Maduro move as first shot in wider
battle” [Trump encara a atitude de Maduro como o
Ratificando a autoproclamação de velmente venceria e condenado a 24 vender armas suplementares ao presi- primeiro tiro numa batalha mais ampla], The Wall
Juan Guaidó como presidente interino anos de prisão? dente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, Street Journal, Nova York, 30 jan. 2019.
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

A guerra contra os diferentes


POR SILVIO CACCIA BAVA

© Claudius
C
omo entender e superar esta que é um partido de esquerda (?). Mas de do orçamento público se destine a é verdade ou fake news, o que importa
polarização e violência que a corrupção é generalizada. No con- pagar apenas os juros da dívida públi- é que as falas reforcem sua visão e suas
marcam nossa convivência co- junto, todos os partidos grandes foram ca. E conclama seus seguidores a con- preferências.
mo brasileiros e brasileiras nos acusados de não atender ao que o povo siderar seus compatriotas que não Se a votação expressou que o povo
dias de hoje? precisa e de roubar descaradamente pensam como eles como inimigos a se- não queria mais do mesmo, que há
O primeiro passo é olhar para a si- em prejuízo do bem comum. rem combatidos e mesmo extermina- uma rejeição ao sistema político como
tuação real. Pelo lado do cidadão e da O tema do combate à corrupção e a dos. Bolsonaro convoca uma luta fra- um todo, como fica agora que a alter-
cidadã comuns, o que todos sentem na luta contra o crime foram centrais pa- tricida, considerando que essa é uma nativa de apostar em Bolsonaro se re-
pele é o desemprego, a precarização ra eleger Bolsonaro. Como ficam en- guerra que precisam vencer contra to- vela um desastre?
do trabalho e das condições de vida, a tão os eleitores quando descobrem dos os diferentes. E manipulam as in- Se cabe aos policiais enfrentar o
violência, a discriminação, a frustra- que a corrupção é praticada há muito formações, criam fake news, para ali- crime, cabe à política enfrentar o ódio.
ção, a insegurança. Muitos estão endi- tempo pelos Bolsonaros, com todo seu mentar o ódio: ódio de classe, ódio de Segundo Jacques Rancière, só elabo-
vidados, angustiados, sem poder pa- laranjal, e que estes estão profunda- gênero, ódio à diferença, ódio ao proje- rando o ódio se poderá disputar terre-
gar suas contas. mente envolvidos com as milícias, in- to popular e democrático.1 no com essa lógica de guerra. A politi-
Ao tratarmos da situação atual, não cluindo aquela que se supõe que te- Com a falência das expectativas e o zação dessa descrença, dessa situação
podemos nos esquecer de que o Brasil nha matado Marielle? colapso da confiança por parte das de mal-estar, “é o melhor antídoto
é dos países mais desiguais do planeta A corrupção e o crime ocuparam maiorias, ao que se soma o fechamen- contra a sua instrumentalização por
e que 60% dos brasileiros vivem com um lugar central na campanha eleito- to dos canais de diálogo, os atuais go- parte daqueles que querem encontrar
um salário mínimo. Temos uma desi- ral para ocultar a imposição das políti- vernantes destroem a política e a de- bodes expiatórios entre os outros”.2
gualdade estrutural, que vem desde os cas econômicas de austeridade que re- mocracia como espaço de negociação O caminho que Rancière aponta é
tempos da Colônia e da escravidão, e tiram direitos dos trabalhadores e de interesses entre os distintos grupos o de questionar as causas desse de-
que não se altera mesmo se a econo- trabalhadoras. Somada às discrimina- sociais, optam pela imposição, pela sencanto e frustração, os processos e
mia for bem. ções e desigualdades históricas que força de suas políticas e abrem espaço discursos que alimentam o ódio, e
A essa desigualdade estrutural se castigam negros, mulheres e pobres de para mais violência e opressão. combater de fato o desemprego, as de-
somam as políticas de austeridade, maneira geral, temos uma situação ex- A TV e a grande imprensa, contro- sigualdades e as discriminações.
impostas em escala global pelo capita- plosiva que atualmente é contida pela ladas pela elite, desencadearam há Ao lado disso precisamos encon-
lismo financeirizado e que são a inspi- imposição do terror por parte de um anos uma campanha que alimenta o trar novas formas de convivência, am-
ração do atual governo brasileiro. Estado policial e violento. Os assassi- ódio e ataca o PT. Seus programas pliando o espaço público, recuperan-
O segundo passo é olhar para as natos e a violência policial que estão abertos mostram um país constante- do o lugar central da política como
crenças dos eleitores. Houve uma re- sendo postos em prática nas favelas de mente ameaçado pelo crime organiza- espaço de negociação, apresentando/
jeição aos partidos políticos que domi- São Paulo e Rio de Janeiro, assim como do, com a população sendo vitimada construindo alternativas para que
naram a cena pública nas últimas dé- nos assentamentos rurais, são expres- todos os dias, com uma polícia que se possamos viver bem entre nós e com
cadas expressa na pífia votação do são dessas políticas do novo governo. torna a única salvação contra as amea- os diferentes.
PSDB e do MDB nas últimas eleições. O governo atual tem como princi- ças cotidianas de quem sai todos os
Nenhum deles, à exceção do PT, ultra- pal objetivo responsabilizar o PT e a dias para trabalhar. Com medo, a po- 1 Doris Rinaldi, “O discurso do ódio, uma paixão
contemporânea”. In: Miriam Debieux Rosa, Ana
passou 5% da preferência do eleitor. esquerda de maneira geral pela situa- pulação aceita a violência e os assassi- Maria Medeiros da Costa e Sérgio Prudente
A estigmatização do PT fazia parte ção de crise econômica e social que vi- natos praticados pelos policiais. E, co- (orgs.), As escritas do ódio – Psicanálise e política,
da agenda de Bolsonaro, baseada nos vemos. Para ele, os grandes bancos não mo já não se acredita na política, nas Escuta/Fapesp, São Paulo, 2018.
2 Jacques Rancière, “Como sair do ódio?” – entre-
elementos de corrupção denunciados têm responsabilidade pela desigualda- verdades que levaram o povo a eleger vista publicada no blog da Boitempo em 10 maio
desde o Mensalão e na acusação de de existente, mesmo que quase a meta- seus representantes, então tanto faz se 2016.
4 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

O LABIRINTO CASTRENSE

Notas para

© Rodrigo Leão
entender
os militares
brasileiros o assalto direto ao poder em 1964 –
apenas para citarmos algumas –, não
Fernando Henrique Cardoso, com a
extinção do Estado-Maior das Forças

na atualidade podem ser pensadas sem referência


ao aparelho militar.
É evidente que a nova realidade
pós-1985 é substancialmente distinta
Armadas e a transformação dos anti-
gos ministérios militares em Comando
do Exército, da Marinha e da Aeronáu-
tica), há que estar atento aos moldes
Ao dar de ombros a formas menos ortodoxas de compor da anterior, com a instituição militar deste, ou seja, que áreas são por ele efe-
no centro decisório do poder. Não obs- tivamente controladas e com civis à
um ministério e ao ignorar em larga medida o funcionamento tante, cabe salientar que o término do frente. Em outras palavras, quem man-
do “presidencialismo de coalizão” e o mundo da política, ciclo militar-autoritário brasileiro de- da e em quais atividades. Nessa dire-
o novo governo lançou uma proposta arriscada e suscitou correu, como sabemos, menos das ção, o quadro da nova estrutura insti-
pressões de uma forte e articulada so- tucional brasileira é desolador, mesmo
na cabeça de muitos a questão “O que pensam os militares ciedade civil exigindo o retorno à nor- após duas décadas de sua criação.2
brasileiros hoje?” malidade democrática do que do pro- Contudo, ao menos desde o gover-
POR ALEXANDRE FUCCILLE* jeto distensionista elaborado por um no FHC (1995-2002) temos observado
setor das Forças Armadas. De outra um maior destaque com respeito aos
parte, diferentemente de países como temas da caserna, ora com avanços,
a vizinha Argentina, onde literalmente ora com recuos e/ou hesitações. Se por
houve um colapso do sistema, a transi- um lado sob FHC tivemos a aprovação
istoricamente, a América Lati- ma contrapartida e preocupação se ção no Brasil foi negociada “pelo alto”, da Lei dos Desaparecidos (importante

H na tem se caracterizado por ser


uma região onde as relações ci-
vis-militares se desenvolveram
de forma bastante atribulada. No caso
da experiência brasileira, maior país e
desse por parte dos civis.
Passados mais de cem anos, o des-
caso continua, e uma das mais fre-
quentes imagens no senso comum ao
falarmos de Forças Armadas e demo-
fazendo que isso viesse a se refletir no
futuro modelo de relações civis-milita-
res que temos até os dias de hoje. Ora, o
que estamos querendo dizer com isso?
As duas últimas décadas do século
passo, mas ainda insuficiente ajuste de
contas com o passado), a publicação de
uma inédita Política de Defesa Nacio-
nal (PDN) em 1996 e a criação do Mi-
nistério da Defesa em 1999 – apenas
economia deste espaço geográfico, is- cracia no Brasil pós-ditadura militar é XX representaram momentos decisi- para citar os principais acontecimen-
so não foi diferente, particularmente o negligenciamento da questão militar vos na trajetória da sociedade brasilei- tos –, por outro assistimos a uma peri-
no período republicano, nascido sob o como um plano resolvido e a quase au- ra. O término da Guerra Fria, crises in- gosa banalização das missões internas
signo da espada ainda no século XIX. tomática vinculação entre a institui- ternacionais sucessivas e o avanço do das Forças Armadas (rotineiramente
Foi a partir da Guerra do Paraguai, ção militar e sua adesão aos ideários processo de globalização/mundiali- empregadas em missões típicas de po-
também no século XIX, que as Forças democráticos. Dada a histórica escassa zação determinaram pressões que se lícia)3 e a um acentuado processo de
Armadas brasileiras passaram a ter produção de estudos sobre os militares traduziram numa drástica redefinição sucateamento de seus meios materiais,
crescente importância política e mili- brasileiros e o descaso que a sociedade da agenda pública, notadamente no entre outros desatinos.
tar. Militar porque as Forças, durante o nutre pelo tema, é compreensível a que se refere às características políti- No governo Lula (2003-2010), por
conflito, verificaram a necessidade de representação e aceitação – embora cas e econômicas do país. “Transição” seu turno, não foi muito diferente. Ao
dispor de novas técnicas e processos ambas perigosas, a nosso ver – do e “democratização”, programas de es- lado de admiráveis melhorias e inicia-
para que pudessem dar mais eficiência ideário da questão militar como um tabilização econômica, reformas neo- tivas, como importantes programas
ao desempenho de suas múltiplas tare- problema que não demandaria maio- liberais orientadas para o mercado e de reaparelhamento e fortalecimento
fas. Passou-se então a perceber a rela- res considerações no contexto pós- integração na ordem internacional das Forças (na casa de alguns bilhões
ção entre a organização militar e o -autoritário por amplos segmentos globalizada tornaram-se as novas de dólares), recomposição de parcela
grau de desenvolvimento econômico da sociedade brasileira. prioridades, traduzindo-se numa reo- importante dos soldos, orçamentos
de um país como o nosso, onde eram Em uma breve digressão históri- rientação das políticas públicas que crescentes, a revisão da PDN e o lan-
tão incipientes as bases da industriali- ca, salta aos olhos – seja como “prote- seriam postas em prática pelos gover- çamento da Estratégia Nacional de
zação. Até então, as Forças Armadas tora” da sociedade e/ou do Estado – a nos do período pós-autoritário. Defesa (END), em 2008, bem como o
regulares eram vistas como uma remi- proeminência militar ao longo de to- Dadas as peculiaridades e singula- estabelecimento de parcerias estraté-
niscência da dominação colonial. da a sua existência independente, es- ridades da profissão militar, ao lado do gicas com outras nações e a iniciativa
A percepção da importância de pecialmente no período republicano. forte esprit de corps1 que a instituição de criação do Conselho de Defesa Sul-
montar uma máquina bélica moderna Assim, datas fundamentais da vida possui, muitas vezes o controle civil -Americano (CDS), tivemos episódios
passou a estar presente no pensamen- política nacional, como 1889 (Procla- tem sido dificultado em nome de um lamentáveis, como a saída do minis-
to militar durante os anos que se se- mação da República), 1893 (Revolta conhecimento tecnocrático exclusivo tro José Viegas Filho (em vez da de-
guiram à guerra. A partir de então, a da Armada), década de 1920 (Tenen- que leva os militares a reclamarem au- missão do saudosista comandante do
corporação militar assumiu uma pro- tismo), Revolução de 1930 (fim da Re- tonomia perante qualquer controle ex- Exército como seria o correto naquele
gressiva influência política à medida pública Velha), 1937 (instituição do terno. Aqui entra um problema funda- episódio), um descaso com o fortale-
que teve uma noção mais crítica de Estado Novo), 1945 (deposição de Ge- mental. Por exemplo, mais do que cimento da direção política civil sobre
seu papel como a “mais nacional” das túlio Vargas), 1954/55 (suicídio de apenas verificar se um dado país pos- os militares que se refletiu na nomea-
instituições de um país tão marcado Vargas e contragolpe para a garantia sui ou não um Ministério da Defesa ção para a pasta de nomes absoluta-
pelos regionalismos, sem que a mes- de posse a Juscelino Kubitschek), até (em nosso país, foi criado em 1999, sob mente sem nenhuma familiaridade
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 5

nem – ainda mais grave – desejo de co- político atinentes à Defesa (Política posta arriscada e suscitou na cabeça serviços de inteligência –, além de suas
nhecer a temática (José Alencar e Wal- Nacional de Defesa, Estratégia Nacio- de muitos a questão “O que pensam os precoces e generosas pensões) anima
dir Pires), emprego das tropas em nal de Defesa e Livro Branco de Defesa militares brasileiros hoje?”. esses atores e está no centro dessa de-
questões de segurança pública em du- Nacional),5 a intervenção federal no Quando olhamos retrospectiva- cisão de participar de um governo de
ração muito maior do que a desejável, estado do Rio de Janeiro sob liderança mente, podemos perceber que, mais extrema direita militarizado, num fe-
e assim por diante. militar de fevereiro a dezembro de de meio século após o golpe que levou nômeno que lembra, mas é distinto do
Já o primeiro governo Dilma Rous- 2018 e o orçamento e execução orça- os militares diretamente ao centro do que foi a tutela militar vivida no gover-
seff (2011-2014), por sua vez, a despeito mentária num contexto de forte restri- poder decisório, esses atores hoje são no José Sarney (o primeiro civil após
de ter tido na maior parte do tempo co- ção fiscal e vigência da “PEC do Teto distintos. Fim da Guerra Fria, intensi- 21 anos de ditadura militar).13
mo ministro da Defesa o notável ex- dos Gastos” na Defesa e nas três Forças ficação da globalização/mundializa- A tentativa, por meios indiretos, de
-chanceler Celso Amorim, foi frus- de causar inveja aos reles ministérios ção acompanhada de desregulamen- acabar com Lei de Acesso à Informa-
trante sob vários aspectos ao não fazer civis (com seus custeios e investimen- tação financeira, entre outros atributos ção por Mourão quando esteve à fren-
avançar a agenda herdada de seu ante- tos fortemente contingenciados). Ou da atual era, parecem ter deixado no te do exercício da Presidência em ja-
cessor e padrinho político e levando- seja, a fatura estava sendo régia e rigo- passado a ideia de “projeto nacional” neiro último, permitindo a extensão
-se em conta o histórico de vida pes- rosamente paga em dia. tradicionalmente tão cara aos milita- de uma cultura de sigilo injustificável
soal da própria chefe de Estado e o que Enfim, chegamos a 2018, ano de res e/ou à defesa do Estado como indu- que ampliaria a funcionários comis-
ela sofreu nos porões da ditadura mili- eleições presidenciais e data que não tor do desenvolvimento. Outro ponto a sionados e de segundo escalão o poder
tar. Do lado da sociedade civil, tam- deixará melhores lembranças aos de- destacar é que, distintamente do que de impor sigilo a documentos públi-
pouco assistimos a qualquer tipo de mocratas e às forças progressistas. A assistimos até o golpe de 1964, em que cos, mostra que eles não estão para
pressão para a publicização e aprofun- preocupação central por parte da cor- claramente tínhamos no interior das brincadeira.14 Contudo, as cabeças
damento de uma agenda que contem- poração militar foi, mais do que qual- Forças Armadas brasileiras uma dis- oriundas da caserna – cartesianas por
plasse a questão do controle civil de- quer coisa, impedir a vitória de um puta entre “progressistas” versus “con- natureza e muitas vezes voluntaristas
mocrático sobre os militares, mesmo candidato petista (fosse ele o ex-presi- servadores”, ou “nacionalistas” versus – terão dificuldades em moldar-se ao
após a criação em 2011 da Comissão dente Lula ou aquele que o acabou su- “entreguistas”, o expurgo subsequen- universo da política, um terreno mo-
Nacional da Verdade (CNV), que inco- cedendo na chapa presidencial, Fer- te11 e o controle férreo sobre o processo vediço, plural, e de ética e gramática
modou profundamente os militares. nando Haddad). Dos militares, educativo não deixaram espaços para substantivamente distintas da militar.
Antes, pelo contrário, continuamos a sempre off the record, era comum ou- voltarmos a ter um “Almirante Negro” Os primeiros resultados da interação
assistir a um lamentável crescente em- vir que, em um eventual novo governo como João Cândido, um “Cavaleiro da Executivo-Legislativo têm sido prolífi-
prego das Forças Armadas em ques- do PT, eles voltariam com “sangue nos Esperança” como o capitão Luís Car- cos nesse sentido.
tões de segurança pública. Em seu se- olhos”, endossando um sentimento los Prestes, um marxista da cepa do Enfim, toda a participação militar
gundo mandato (2015-maio/2016), já manifestado anteriormente pelo en- general Nelson Werneck Sodré, entre no governo Bolsonaro (além dos mi-
de início conflagrado por uma oposi- tão comandante do Exército, o general outros. Os militares atuais, notada- nistros já citados, cerca de uma cente-
ção golpista que não aceitava a derrota Villas Bôas, e outros colegas de gene- mente do Exército, que têm tomado a na de pessoas com boa formação téc-
nas urnas, mais do mesmo. Todavia, ralato.6 E assim eles agiram, seja por liderança desse processo, são oficiais nica e origem nas Forças Armadas
apesar do perfil discreto dos militares meio da famosa postagem do Twitter brancos, católicos e de orientação libe- ocupando cargos de direção e assesso-
ao longo do chamado processo de im- de 3 de abril de 2018, lida ao final do ral, que veem pouco espaço para um ramento superior) é uma aposta arris-
peachment – o que não deve ser con- Jornal Nacional, a qual veladamente protagonismo internacional maior por cada, e, ciosos dos riscos que correm e
fundido como ausência de consulta a ameaçava as instituições na véspera parte do país e parecem aquiescer do pensamento estratégico que orien-
esses atores fardados, seja pela direita, do julgamento do habeas corpus do com uma inserção subordinada no sis- ta suas atividades profissionais ao lon-
seja pela esquerda –, maio de 2016 assi- ex-presidente Lula pelo Supremo Tri- tema internacional, a despeito de juras go de uma vida, esses atores fardados
nalaria um ponto de inflexão. Nesse bunal Federal (STF),7 seja no desem- de amor eterno à nação e frases de não parecem dispostos a comprome-
mês, em uma “RESOLUÇÃO SOBRE barque maciço na candidatura à Pre- efeito como “Brasil acima de tudo”.12 ter a alta credibilidade de que goza o
CONJUNTURA” do Diretório Nacional sidência do capitão reformado do Nessa direção, em um governo aparelho militar junto à opinião púbi-
do Partido dos Trabalhadores, menos Exército Jair Messias Bolsonaro.8 com ministros civis extremistas e tres- ca. A despeito da gratidão explicitada
de uma semana após o golpe e apea- Em um processo eleitoral sui gene- loucados, que carece de direção políti- na transmissão de cargo de ministro
mento da Presidência da República da ris, marcado pelas fake news, pelo anti- ca, mas tem uma forte âncora no pilar da Defesa, em 2 de janeiro, quando
primeira mandatária de nossa histó- petismo exacerbado e pela ausência de econômico ultraliberal capitaneado Bolsonaro afirmou ao general Villas
ria, num tardio e extemporâneo mea um debate amplo com a sociedade, pelo Chicago boy Paulo Guedes, os mi- Bôas que “o que já conversamos mor-
culpa dos treze anos de governo, lía- combinado a um atentado repudiável litares parecem jogar um papel de “po- rerá entre nós. O senhor é um dos res-
mos que “Fomos igualmente descui- que blindou e humanizou o “capitão”, der moderador” e ofertar alguma pre- ponsáveis por eu estar aqui”, e recebeu
dados com a necessidade de [...] modi- gerando-lhe enorme espaço de mídia visibilidade às ações futuras de um como resposta um sorriso e aceno de
ficar os currículos das academias positiva (em vez dos oito segundos de chefe do Executivo visto como despre- cabeça do seu hoje subordinado que
militares; promover oficiais com com- que dispunha em rádio e TV), Bolso- parado, de arroubos autoritários e sob despacha no GSI (comandado pelo ge-
promisso democrático e nacionalis- naro – com seu vice, o general Hamil- forte influência de um entourage fami- neral Augusto Heleno), esse não pare-
ta”.4 Apesar do diagnóstico correto, ton Mourão – sairia vencedor em outu- liar perigoso. Nessa complexa equação ce ser um pacto de sangue. Mais ain-
que muitos especialistas civis da área bro de 2018. e simbiótica relação, na qual Bolsona- da: o backup em caso de um eventual
alertavam fazia tempo, estava dada a De lá para cá, o anúncio da compo- ro usou o Exército e tem sido usado por impedimento do presidente Jair Bolso-
senha para o divórcio definitivo entre sição de seu governo, com uma pro- ele, os militares estão de volta, agora naro, com a posse do general Mou-
as Forças Armadas e o PT. A partir de porção de militares no primeiro esca- pela força do voto. A possibilidade de rão,15 sairia muito mais ao gosto da alta
então, com um governo impopular e lão considerada inédita mesmo reescrever a história – em que se veem oficialidade agora tendo um dos seus
de legitimidade contestada como o de levando em conta o período da ditadu- maculados pelo que chamam de “re- no comando direto da República.
Michel Temer, veríamos a influência ra militar e um entorno palaciano cuja vanchismo”, que insistiria que houve Ao mesmo tempo, nem o Exército
militar crescer significativamente. única figura civil a ocupar um cargo golpe, ditadura, tortura e desapareci- nem as Forças Armadas são institui-
Sob o governo Temer (2016-2018), de primeiro escalão é o cambaleante dos políticos, em vez de lhes agradece- ções monolíticas. Concretamente, ain-
os pontos altos seriam a recriação do ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lo- rem por terem impedido o Brasil de da é muito cedo e difuso o cenário para
Gabinete de Segurança Institucional renzoni,9 surpreendeu mesmo os mais transformar-se numa “grande Cuba” definir o papel que caberá aos militares
(GSI) – com status ministerial, muito céticos. Ao dar de ombros a formas –, garantir vultosos recursos aos pro- na condução do atual governo, recor-
mais fortalecido que a estrutura ante- menos ortodoxas de compor um mi- gramas estratégicos das Forças e pre- dando que o Estado é um complexo
rior (em especial na área de inteligên- nistério e ao ignorar em larga medida servar seus privilégios (como prerro- aparelho burocrático e normativo, com
cia) e sob a direção do prestigiado e in- o funcionamento do “presidencialis- gativas não condizentes com uma uma não desprezível rigidez e inércia
fluente general Sérgio Etchegoyen –, a mo de coalizão”10 e o mundo da políti- democracia madura – por exemplo, quanto a novos processos e composto
revisão dos documentos de alto nível ca, o novo governo lançou uma pro- grande autonomia na atuação de seus de três poderes (Executivo, Legislativo
6 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

e Judiciário) nem tão independentes e 1 Espírito de corpo corresponde à visão corporativa, 7 O habeas corpus foi negado por seis votos a cinco Em contrapartida, os partidos oferecem os votos
de grupo, que transcende a corporação no sentido (cujo voto da ministra Rosa Weber surpreendeu necessários para que o presidente aprove a
tampouco harmônicos como pudemos administrativo. O termo traduz uma visão de “alma” em razão de posicionamentos anteriores). Poste- agenda governamental no Congresso Nacional.
acompanhar nos últimos tempos. O institucional. Huntington, em sua obra clássica da riormente, em entrevista, o então comandante do 11 É interessante notar que os militares – e leia-se,
que é certo é que o núcleo duro do com- década de 1950, afirma que a corporatividade faz Exército frisou: “Nós estivemos realmente no limite, os de esquerda – foram a categoria social mais
os militares pensarem em grupo, diferentemente que foi aquele tuíte da véspera da votação no Su- perseguida proporcionalmente durante a vigên-
prometimento do establishment para dos profissionais civis, que pensam individualmen- premo da questão do Lula. Ali, nós conscientemen- cia do regime autoritário de 1964-1985, com
com a eleição de Bolsonaro e o desmon- te. Para mais detalhes, ver Samuel Huntington, O te trabalhamos sabendo que estávamos no limite”. milhares expulsos em todos os níveis da hierar-
te do Estado e de políticas públicas in- soldado e o Estado: teoria e política das relações Todavia, ainda segundo Villas Bôas, o episódio quia nas três Forças. Ver Paulo Ribeiro da
entre civis e militares, Biblioteca do Exército Edito- rendeu críticas do “pessoal de sempre, mas a rela- Cunha, “A Comissão Nacional da Verdade e os
clusivas, acompanhado de uma perver- ra, Rio de Janeiro, 1996, p.28 e seguintes. ção custo-benefício foi positiva”. Folha de S.Paulo, militares perseguidos: desafios de um passado
sa reforma da Previdência que tolherá 2 Para piorar, de forma inédita, desde fevereiro de 11 nov. 2018. no tempo presente e futuro”, Acervo, v.27, n.1,
direitos dos mais humildes e menos 2018 temos tidos militares – ainda que da reserva 8 Vale lembrar que o deputado fluminense em suas 2014, p.137-156.
– como ministros da Defesa. quase três décadas como parlamentar sempre foi 12 Esse brado (que recorda o Deutschland über al-
aquinhoados para a manutenção de 3 A base legal para tal emprego na segurança públi- tido como um político do “baixo clero”, com seu les, ou “Alemanha acima de tudo”, muito usado
um insaciável sistema financeiro, se- ca neste e em outros governos é parte do artigo mandato basicamente centrado em demandas mi- durante o nazismo), ainda comum nos quartéis de
guirá adiante, com o apoio da grande 142 da Constituição Federal, que prevê que elas litares corporativas e reivindicando soldos maiores hoje, originalmente foi criado após a decretação
se destinam “à defesa da Pátria, à garantia dos po- à sua categoria, com bom trânsito entre praças e do AI-5, em dezembro de 1968, num contexto de
mídia e dos partidos da ordem (obvia- deres constitucionais e, por iniciativa de qualquer graduados, mas sem penetração entre oficiais su- perseguição aos “subversivos” e outros episódios
mente, com os militares em larga me- destes, da lei e da ordem”. Conceitos fluidos como periores e oficiais-generais, pelos quais era visto de triste lembrança, pelo grupo de oficiais para-
dida preservados em seus direitos e sua “lei” e “ordem”, que variam enormemente conforme com suspeição dado seu fraco e folclórico desem- quedistas Centelha Nativista. Sua apropriação por
a perspectiva político-ideológica, podem represen- penho parlamentar e prisão por indisciplina no pas- Bolsonaro e Mourão, ambos com passagem pela
“missão” de protetores da nação). Em tar um inapropriado risco à democracia, permitindo sado. Efetivamente, essa leitura alterou-se ao longo Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército,
paralelo, a subordinação militar ao po- que o aparelho militar seja empregado em defesa de 2018. acabou resultando no bordão de campanha “Bra-
der civil e à direção política sobre os do governo (vide a greve dos petroleiros de 1995 e 9 Atualmente, dos 22 ministros de Estado, oito são sil acima de tudo, Deus acima de todos”.
os episódios de tentativa de invasão da fazenda militares, ou seja, mais de um terço do total. Mesmo 13 “A tutela corresponde a uma manifestação especí-
fardados seguirá como uma tarefa dos filhos de FHC por parte do MST), e não do à época do presidente general Ernesto Geisel, que fica do papel militar na preservação da ordem so-
pendente em nossa frágil democracia Estado, como deveria ser. chegou a ter dez ministros militares, é preciso re- cial num momento em que a corporação castrense
tupiniquim. Tempos nada alvissarei- 4 Disponível em: <http://bit.ly/DN-PT_17-05-16>. cordar que entre estes estavam os quatro ministé- não se encontra no exercício do poder de Estado,
5 Aqui, em contraste com a orientação anterior de rios militares (Exército, Marinha, Aeronáutica e Es- sem no entanto haver perdido a importância orgâ-
ros se avizinham! tais documentos, era relativizada a importância da tado-Maior das Forças Armadas), que foram nica no conjunto dos órgãos do Estado”. Eliézer
América do Sul como entorno estratégico, e anti- extintos em 1999 com a criação do Ministério da Rizzo de Oliveira (org.), Militares: pensamento e
*Alexandre Fuccille é doutor em Ciência gas parcerias estratégicas, como com os Estados Defesa, além do Serviço Nacional de Informações ação política, Papirus, Campinas, 1987, p.61.
Unidos e a Europa, eram apontadas como neces- (SNI), extinto em 1990, que também tinha status 14 A Câmara dos Deputados derrubou o Decreto
Política e professor da Universidade Estadual sárias de serem reavivadas e incrementadas. ministerial. Presidencial em 19 de fevereiro.
Paulista (Unesp). Foi presidente da Associa- 6 Vale a pena conferir “Mal-estar na caserna”, a reve- 10 Grosso modo, a expressão cunhada por Sérgio 15 Antigo membro do Alto Comando do Exército,
ção Brasileira de Estudos de Defesa (Abed) ladora entrevista de março de 2018 com o coman- Abranches em 1988 sugere que o presidente da colegiado responsável pelas principais decisões
dante do Exército e seus assessores, na Piauí. República forma seu ministério com integrantes da Força Terrestre e que reúne os dezesseis ge-
de 2014 a 2016 e trabalhou no Ministério da Disponível em: <htps://piaui.folha.uol. o . r/ a- dos partidos da coalizão de governo, de modo nerais de exército/quatro estrelas do Exército
Defesa de 2003 a 2005. teria/ al-estar- a- aser a/>. semelhante ao que ocorre no parlamentarismo. brasileiro.
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 7

OS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA E A (IN)SUBORDINAÇÃO DOS MILITARES AO PODER CIVIL NO BRASIL

Somente para meus olhos


Há uma dificuldade institucional e corporativa das Forças Armadas no Brasil em compreender e aceitar
a subordinação ao poder civil. Isso se reflete no histórico engajamento político de militares e na relutância em conectar
os serviços de inteligência do país aos três poderes, o que enfraquece nossas experiências democráticas
POR LUCAS PEREIRA REZENDE*

subordinação dos militares ao vido apenas por Fernando Collor, que sem uma clara definição e controle de to, general Eduardo Villas Bôas, em ra-

A poder civil é unanimidade nos


estudos acadêmicos sobre rela-
cionamento civil-militar em re-
gimes democráticos. Não há democra-
cia sólida se os militares não aceitarem
criou a Secretaria de Assuntos Estraté-
gicos (SAE). A Abin foi institucionali-
zada apenas em 1999, pelo governo
Fernando Henrique Cardoso, no mes-
mo ano de criação do Ministério da
alvos e coletas de dados, nossos espiões
podem estar se dedicando muito mais à
caça de “subversivos” (termo usado du-
rante o regime militar para denominar
todos os opositores domésticos ao go-
zão de declarações que fez chamando,
entre outras coisas, de incompetente a
então presidenta da República e co-
mandante em chefe das Forças Arma-
das, Dilma Rousseff. Em 2017, o mes-
e serem comandados de fato por um Defesa. Nova no nome, mas velha nas verno) do que a agentes ligados ao crime mo Mourão foi novamente desligado
poder civil. A lógica é que as institui- práticas e no obscurecimento. organizado, por exemplo. Enquanto o do cargo de secretário de Economia e
ções civis, ao representarem o desejo Não que se espere que um serviço limite, o escopo e os métodos de atua- Finanças do Comando do Exército por
popular, definem a política a ser segui- secreto seja absolutamente transpa- ção dos espiões não forem claramente declarações sobre o “balcão de negó-
da. Aos militares, cabe o papel de exe- rente, o que seria um contrassenso à definidos, haverá uma névoa invisível cios” do presidente Michel Temer, seu
cutar essas políticas, sejam elas quais sua atividade fundamental. O estabe- perigosa à democracia. superior constitucional máximo.
forem. Esse balanço é o que garante o lecimento da Política Nacional de Inte- Há alguns anos, em fóruns anôni- À época, as reprimendas às insu-
equilíbrio dos que controlam a estabi- ligência, em 2016, da Estratégia Nacio- mos na internet, nossos arapongas bordinações de Mourão foram critica-
lidade constitucional e a soberania nal de Inteligência, em 2017, e do Plano reclamavam da precariedade institu- das por serem muito brandas, ao que
nas democracias. Nacional de Inteligência, em 2018, são cional, da falta de propósito e do sau- Villas Bôas respondeu que não deseja-
Esse equilíbrio jamais ocorreu no passos importantes para a transparên- dosismo dos anos da ditadura que va criar um mártir. Não foi preciso
Brasil – e agora se distancia ainda mais cia das agências do Sisbin. Mas não são imperava na Abin. De lá para cá, mu- criá-lo, pois o palco político de Mourão
com a quantidade de militares ocu- suficientes, em especial pela ausência dou-se a ave mascote para o carcará. o levou (por ora) à Vice-Presidência da
pando cargos-chave no governo de Jair de controle e supervisão dos serviços Novo bico, velhas penas. República. A mensagem passada à so-
Bolsonaro. Nossos militares – original- de inteligência das Forças Armadas. ciedade não poderia ser mais clara: a
mente a elite colonial e, posteriormen- A falta de subordinação ao poder ci- insubordinação militar e a atuação po-
te, imperial – sempre foram agentes vil nesse campo é vista em elementos lítica na caserna são não apenas tolera-
políticos domésticos com forte engaja- concretos, tais como ausência de su- Enquanto o limite, das, como também compensam. Não é
mento, atuando como garantidores do pervisão dos gastos, de um marco legal o escopo e os métodos de à toa que Mourão demonstrou tanto
status quo político. Ainda que essas de operação e limites das agências, de atuação dos espiões não interesse em mudar a Constituição Fe-
ameaças não fossem assim tão claras, a um controle contínuo e de uma presta- deral, que proíbe a atuação política de
percepção de “estabilidade nacional” ção de contas aos poderes Legislativo e
forem claramente militares da ativa e os obriga a respei-
vinda dos quartéis prevaleceu no pro- Judiciário. A Abin coleta as informa- definidos, haverá uma tar a hierarquia de comando, hierar-
cesso de independência de Portugal, ções e as entrega ao Executivo federal, névoa invisível perigosa quia essa que deve ter obrigatoriamen-
na proclamação da República, na im- hoje, pelo Gabinete de Segurança Ins- à democracia te, no posto máximo do Executivo
plantação e desmonte do Estado Novo titucional (GSI). Mas as informações Federal – e, portanto, comandante em
e no regime militar de 1964-1985, para ali chegam prontas, sem ciência de co- chefe das Forças Armadas –, um civil.
citar apenas os principais envolvimen- mo foram coletadas – e o mais agra- O princípio da subordinação dos
tos diretos na política doméstica. vante: já previamente filtradas. A ausência de um claro controle ci- militares ao poder civil não quer dizer
Parece haver uma percepção de As agências de inteligência brasilei- vil no Ministério da Defesa e nas agên- que os civis sejam melhores que os mi-
que existe um despreparo dos civis pa- ras ainda parecem seguir a mesma po- cias de inteligência reflete a inquietu- litares, e sim o oposto: que os militares
ra a condução dos temas ligados à de- lítica conduzida pelas Forças Armadas de da caserna brasileira em aceitar não são, per se, melhores que os civis.
fesa nacional, o que demandaria uma para o Ministério da Defesa: isolar e esse comando. Se o respeito à hierar- Essa é a mensagem urgente que deve
“tutela” dessas questões pelos milita- manter o controle. Apesar de todo o or- quia é um dos princípios fundamen- ser compreendida tanto pela caserna
res até que os civis, de fato, se mostras- ganograma, o ministério é ainda fraco tais da formação e atuação militar, es- quanto pela sociedade civil se deseja-
sem preparados. O problema é que es- institucionalmente e atua apenas nos se respeito, em tempos recentes, tem mos recompor um regime democráti-
se momento parece nunca chegar – e espaços deixados pelos comandos in- parado no generalato, não chegando co sólido em nosso país. E, se esse é o
não é por falta de preparo dos civis. dependentes das três Forças. Exemplo ao comandante em chefe e, por vezes, desejo, a desmilitarização dos serviços
Um dos exemplos disso é o Sistema disso é a incapacidade, mesmo já com nem mesmo aos próprios comandos secretos brasileiros e a retirada de sua
Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que duas décadas de existência, de contro- das Forças. Isso sem falar no ministro névoa antidemocrática parecem ficar
reúne os órgãos federais de (contra)es- lar o orçamento do Exército, da Mari- da Defesa, que, com raras exceções, agora mais distantes com o retorno
pionagem. Ainda que hoje, por decreto nha e da Aeronáutica, que seguem ope- tem papel esvaziado e pouco expressi- dos militares ao poder e da militariza-
de 2018, o Sisbin seja composto por 39 rando independentemente uns dos vo no comando dos militares. ção da política no Brasil.
órgãos federais, o principal deles é a outros, em larga medida. Exemplos de insubordinação não
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Essa liberdade dos serviços secretos faltam nos anos recentes, sejam de al- *Lucas Pereira Rezende é doutor em
herdeira direta do Serviço Nacional de é problemática porque a desconexão ta ou de baixa patentes. O maior deles Ciência Política e professor de Relações In-
Informações (SNI), do regime militar. entre a prática de coleta de informações é do próprio vice-presidente da Repú- ternacionais da Universidade Federal de
Criado em 1964, imediatamente e o propósito político para uso delas as blica. Enquanto ainda estava na ativa, Santa Catarina (UFSC). É autor de Sobe e
após o golpe que depôs João Goulart, o torna inócuas ou, pior, objeto de mani- em 2015, o general Hamilton Mourão desce: explicando a cooperação em defesa
SNI sobreviveu até depois do fim do pulação do poder. Não tendo ainda saí- foi demitido do Comando Militar do na América do Sul, Editora Universidade de
regime. O órgão da ditadura foi dissol- do do espírito estabelecido pelo SNI e Sul pelo então comandante do Exérci- Brasília, 2015.
8 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

DIVÓRCIO IDEOLÓGICO ENTRE O MUNDO CIVIL E O MILITAR

A educação nas Forças Armadas


Na maioria das escolas, a educação militar segue divorciada do restante da educação do país, o que afasta
as Forças das demais instituições públicas e contribui para a instabilidade das relações entre civis, militares e Estado
POR ANA PENIDO*

s propagandas eleitorais dos Entretanto, essa interação na pós-gra-

A dois principais candidatos à


Presidência em 2010, Dilma
Rousseff (PT) e José Serra (PS-
DB), exibiam algo em comum. Em seus
currículos, uma história pessoal de
duação é de mão única – apenas os mi-
litares podem fazer escolas civis e ter a
equivalência de ensino. Na maioria
das escolas, contudo, a educação mili-
tar segue divorciada do restante da
combate ao regime militar. Dilma, tor- educação do país, o que afasta as For-
turada, e Serra, presidente da UNE ças das demais instituições públicas e
quando do golpe. Naquele mesmo ano, contribui para a instabilidade das rela-
o último do governo Lula, a turma de ções entre civis, militares e Estado.
cadetes formandos na Academia Mili- Por fim, a educação militar é forte-
tar das Agulhas Negras (AMAN), escola mente impactada pela diversidade de
responsável pela formação dos oficiais funções que o oficial é chamado a

© André Valias
do Exército brasileiro, homenageou o cumprir atualmente. As dificuldades
general Emílio Médici, presidente do técnicas no manejo das diferentes fun-
período 1969-1974, considerado o de ções são um problema menor do que,
maior violência de todo o regime autori- por exemplo, a exigência de discernir e
tário. Essa escolha evidencia um dis- em que se mantém a mesma separa- ra a administração da violência e os va- classificar cada ambiente profissional
tanciamento ideológico entre o mundo ção entre as três Forças e é estimulado lores para viver toda uma vida militar. para posteriormente acionar o conjun-
civil e o militar, construído essencial- o espírito de competição entre elas. Há dúvidas sobre o estudo pro- to de conhecimentos a ser aplicado em
mente no ambiente educacional. Tal di- Tal autonomia foi justificada com o priamente do Brasil na educação mili- cada situação. O exercício de classifica-
vórcio quiçá seja a característica mais argumento de que o preparo militar tar. O amor à pátria é extremamente ção demanda uma necessária forma-
forte da educação militar. não depende do regime político, mas trabalhado, as tradições são exalta- ção crítica, em que o soldado precisa
A Constituição de 1988 estabelece do problema de defesa que porventura das, elementos simbólicos como o hi- entender a especificidade de sua tarefa
que a educação é um direito de todos exista. Em outras palavras, o que de- no e a bandeira são cultivados. Porém, enquanto tem conhecimento da totali-
os cidadãos, sendo dever do Estado e termina como devem ser formadas as essa valorização subjetiva do Brasil dade da missão. Em outras palavras, é
da família promovê-la, devendo ser in- Forças Armadas é o tipo de ameaças não é acompanhada na mesma pro- uma tarefa bastante difícil “deixar de
centivada a colaboração da sociedade. que pairam sobre a sociedade. Essa é porção por um estudo objetivo da rea- lado” os conhecimentos adquiridos
No artigo 83 da Lei de Diretrizes e Ba- uma visão equivocada! Uma política lidade do país, que aborde a formação para a guerra quando se é empregado,
ses da Educação Nacional (LDB, Lei n. educacional reveste-se, como seu pró- do Estado brasileiro, as raízes cultu- por exemplo, em uma missão de Ga-
9.394/1996), por sua vez, consta que “o prio nome expressa, de caráter políti- rais e raciais do povo, a estrutura eco- rantia da Lei e da Ordem (GLO), expe-
ensino militar é regulado por lei espe- co, social e econômico. Assim sendo, a nômica e a própria participação dos diente facultado pelo artigo 142.
cífica, admitida a equivalência de es- definição de temas, currículos e orien- militares na construção dessa histó- Resta constatar que uma profissio-
tudos, de acordo com as normas fixa- tações carrega em si visões de mundo. ria. Essa defasagem contém três ris- nalização para o futuro precisa ser
das pelos sistemas de ensino”. Isso deu É inegável o cuidado que as Forças cos. O primeiro é a ideia de uma pátria pensada com base em um novo para-
autonomia às Forças Armadas para a Armadas têm com seu sistema educa- ideal, distante da que existe de fato. O digma das relações entre civis e mili-
elaboração de sua política educacio- cional. Muito mais que o ensino, as es- segundo é considerar o país insufi- tares, em que se discuta a concepção
nal, proporcionando garantia legisla- colas possibilitam a manutenção de ciente e incompleto diante de outras de controle público sobre assuntos de
tiva para que a educação militar man- redes corporativas e de valores profis- potências mundiais, pois sua realida- defesa. Nesse caso, a educação militar
tivesse formulações distintas e até sionais. Há um componente formal e de é vista de forma descontextualiza- não funcionará de forma apartada do
mesmo antagônicas do restante do sis- oficial, composto de planos de estu- da de seus interesses e de sua história. restante. Na realidade, mais do que
tema educacional brasileiro. Esse do- dos, currículos, horários e perfis, cujo O terceiro é a não identificação da cor- educação militar, será possível falar
mínio reservado é autorregulado, uma processo de aprendizagem acontece poração com o povo do território que em educação para a defesa, destinada
área central dos militares para a for- essencialmente na sala de aula. Esse é ela defende, o que dificulta a constru- a civis e militares, especialistas ou
mação de si próprios. um processo de ensino, algo mais res- ção de uma cultura de defesa efetiva- não. Talvez nesse novo paradigma seja
O correto é dizer que cada uma das trito que a educação. Por outro lado, mente nacional e abre espaço para to- possível construir uma cultura estra-
Forças tem um sistema educacional também existe um componente infor- do tipo de conduta autoritária. tégica de defesa efetivamente brasilei-
próprio, formulado de maneira autô- mal, mas igualmente efetivo, caracte- Existem alguns exemplos de espa- ra, na qual o primeiro aprendizado é a
noma. Ou seja, temos no Brasil o siste- rizado, entre outras coisas, pela expo- ços de aprendizagem divididos por ci- importância da ação coletiva e coope-
ma de ensino da Marinha, do Exército, sição permanente a situações com vis e militares, como o Instituto Tec- rativa entre os cidadãos do próprio Es-
da Aeronáutica, e o sistema de ensino forte carga simbólica, da relação com nológico da Aeronáutica (ITA) e o tado, civis e militares, e o trabalho
civil, o que traz obviamente proble- colegas da mesma patente, submissão Instituto Militar de Engenharia (IME), conjunto com outros países da Améri-
mas para qualquer atuação interagên- às ordens de superiores, entre outros. A mas são absolutas exceções. Essa se- ca do Sul nos assuntos de defesa.
cias. Existem iniciativas de intercâm- aprendizagem do “ser militar” é con- paração também se torna menor com
bio, mas o principal momento em que comitante à diferenciação e separação o decorrer da carreira, quando alguns *Ana Penido é doutora em Relações Inter-
os cadetes se encontram são os jogos do mundo civil. Nesse processo, o ca- ambientes de exercícios ou estudos de nacionais (Unesp) e mestre em Estudos Es-
esportivos militares e outros eventos dete adquire ferramentas técnicas pa- pós-graduação são compartilhados. tratégicos (UFF).
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 9

UM MILHÃO DE PESSOAS JÁ PASSARAM PELOS CAMPOS DE REEDUCAÇÃO

A repressão contra os uigures no


controlado mundo do “sonho chinês”
Se é difícil avaliar o número de uigures presos ou que passaram pelos centros de reeducação – fala-se em 1 milhão –,
é certo que um sistema de vigilância sem precedentes persegue os muçulmanos do Xinjiang, punidos não pelo que fizeram,
mas pelo que podem fazer. Xi Jinping promove essa política de repressão como um modelo de segurança
POR RÉMI CASTETS*

que está acontecendo no Xin- tentaram evitar que as confederações

O jiang, no extremo oeste da Chi-


na? Em setembro de 2018, a or-
ganização Human Rights
Watch alertou sobre violações dos di-
reitos humanos de uma amplitude
das estepes, as quais ameaçavam os
flancos setentrionais do império, pu-
dessem tirar proveito do maná gerado
pelo controle dessas rotas comerciais.
Após os portugueses estabelece-
sem precedentes contra os uigures – rem a rota marítima contornando a
população turcófona e muçulmana –, África, o gradual abandono das rotas
e também contra cazaques, uzbeques terrestres em prol dos caminhos pelo
etc.1 As autoridades chinesas negam e oceano marcou o início de um longo
falam em combate ao “radicalismo” e declínio para esses oásis. Quando, em
ao “terrorismo” alimentado pela opo- meados do século XVIII, esses territó-
sição diaspórica uigur e pelas potên- rios, convertidos ao islamismo entre
cias estrangeiras. Entre os países mu- os séculos X e XVII, foram conquista-
çulmanos, silêncio total. dos pela dinastia Qing (1644-1712),
O certo é que um programa deno- eles já haviam perdido sua centralida-
minado Transformação pela Educa- de. O fechamento da China, o isola-
ção, criado na década de 1990 para mento da região e, em seguida, o con-
“reeducar” os seguidores da seita Falun flito sino-soviético acabaram por
Gong, foi adaptado e ampliado no Xin- torná-lo um enclave estratégico aos
jiang para todos os indivíduos oriun- olhos do poder central chinês.
dos de minorias muçulmanas cuja Essa província, uma das mais po-
lealdade ao regime desperte a mais re- bres do país, voltou a se desenvolver à
mota dúvida. Na falta de dados oficiais, medida que foi recuperando sua im-
é impossível quantificar precisamente portância na configuração regional e
o número de pessoas atingidas. Segun- internacional. Após a instalação das
do o pesquisador Adrian Zenz, que se tropas de Mao Tsé-tung, em 1949, ela
baseia no exame de contratos públicos foi integrada ao restante do país por
para a construção ou expansão de ins- meio de investimentos públicos, que
talações de detenção, mais de 10% da se intensificaram no início dos anos
população uigur, o equivalente a 1 mi- 2000, com a Política de Desenvolvi-
lhão de pessoas, ou teria passado por mento do Grande Oeste. Isso foi acom-
esse programa, ou estaria presa.2 Ao panhado por um fluxo maciço de pes-
© Tulipa Ruiz

contrário do que ocorre nos campos de soas da etnia Han, majoritária na


reforma pelo trabalho (laogai), aqui os China, o que fez surgir novas cidades
suspeitos não vão para o tribunal e po- no norte, nos anos 1950-1960, e, nas
dem ficar presos por períodos indeter- psicológica e física. Em meados de fe- décadas posteriores, deu novos con-
minados. Os trabalhos de Zenz e os re- chinesas acabaram reconhecendo a vereiro, o governo turco, leal defensor tornos aos velhos oásis do sul.
latórios das organizações de direitos existência dessas estruturas, apresen- dos uigures, sentiu-se obrigado a emi- Hoje o Xinjiang é atravessado e co-
humanos mostram que a mecânica re- tando-as como lugares de educação tir uma declaração de protesto. nectado ao restante do país por uma
pressiva tem diversos níveis, incluindo patriótica e centros de formação pro- Essa nova onda de repressão, de al- malha de rodovias de alta qualidade e
desde aulas abertas de reeducação até fissional destinados a promover a inte- tíssima intensidade, é mais uma na por uma rede ferroviária ligada a li-
centros fechados com disciplina de fer- gração das minorias. Ali se combinam história de um Xinjiang muitas vezes nhas de alta velocidade. Graças ao im-
ro. Baseados na patologização do pen- sessões de educação patriótica e de agitado por violentas revoltas, sempre pulso das empresas estatais e das uni-
samento contestatário, esses dispositi- autocrítica, interrogatórios e cursos de enfrentadas com uma resposta repres- dades de produção desenvolvidas
vos pretendem “erradicar os vírus idiomas para pessoas que não ficam siva ainda maior – engrenagem da pelas colônias do Corpo de Produção e
ideológicos” e tratar os indivíduos de tão à vontade em mandarim. Mas tes- qual os dirigentes chineses não conse- Construção,4 a província se especiali-
acordo com seu grau de recalcitrância. temunhos na mídia estrangeira dados guem sair. zou na mineração e na produção agrí-
por pessoas que fugiram do país após Cercada por altas montanhas, a re- cola (algodão, tomate, frutas).
POLO ENERGÉTICO ESTRATÉGICO serem libertadas compõem um cená- gião foi por muito tempo um ponto cru- Esse território três vezes maior do
De forma protocolar, o Escritório rio mais sombrio do que aquele descri- cial da rota da seda. Na virada do pri- que a França tornou-se um polo ener-
do Alto Comissariado das Nações Uni- to pela mídia chinesa: eles descrevem meiro milênio de nossa era, ela passou gético estratégico – ele abriga um
das para os Direitos Humanos solici- condições severas de detenção, forte por intervalos de dominação chinesa, quarto dos hidrocarbonetos e 38% das
tou direito de acesso. As autoridades pressão e até mesmo atos de tortura sob as dinastias Han, Sui e Tang.3 Todas reservas nacionais de carvão. Como a
10 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

China deseja limitar sua dependência da pela União Soviética até o final da termediação representante dos mu- MAIS DE TREZENTAS VÍTIMAS DE TERRORISMO
das importações, as empresas do país década de 1940. A vitória de Mao Tsé- çulmanos), a administração regional, Nessa época, um punhado de mili-
extraem dali um sexto da produção -tung e dos comunistas, em 1949, e em as estruturas de ensino religioso, a es- tantes islâmicos nacionalistas que ha-
nacional de petróleo e quase um quar- seguida as políticas repressivas que cola, a universidade, tudo foi pouco a viam se reunido em áreas paquistane-
to da de gás natural. Oleodutos e gaso- precederam e acompanharam a Revo- pouco sendo posto sob controle. Os sas e afegãs estabeleceram conexões
dutos ligados às regiões centrais e cos- lução Cultural (1966-1976) desativa- quadros não muito dóceis, excessiva- com as redes talibãs do comandante
teiras foram rapidamente instalados, a ram essas redes. mente religiosos ou considerados mui- Jalaluddin Haqqani. Esse grupelho,
partir dos anos 1990-2000, para trans- to complacentes com o autonomismo chamado pela China de Movimento Is-
portar as torrentes de hidrocarbone- A VIRADA DE 1989 ou com o separatismo foram afastados lâmico do Turquistão Oriental, penou
tos que alimentaram o crescimento Nos anos 1980, porém, com a chega- ou até punidos. para atrair a atenção das ricas redes da
chinês. Agora as autoridades apostam da ao poder do setor reformista do Par- Entrou em ação uma política de Al-Qaeda recentemente instaladas no
em infraestruturas de carvão liquefei- tido Comunista Chinês (PCC), o partido progressivo enrijecimento do controle local. Com recursos limitados, ele ti-
to e na geração de energia eólica, solar e a administração estatal foram buscar sobre a sociedade. Para evitar a prisão, nha dificuldades para se projetar em
e hidrelétrica. representantes das minorias para ten- os militantes nacionalistas mais en- um Xinjiang onde as redes adormeci-
Após a implosão da União Soviética tar envolvê-las no aparato de Estado. gajados se uniram às diásporas uigu- das haviam sido amplamente esmaga-
e depois com o lançamento do projeto Surgiram espaços de liberdade cultural res da Ásia Central, da Turquia e do das. Aproveitando o contexto pós-11 de
das novas “rotas da seda” (Belt and e religiosa, e uma esfera militante na- Ocidente, outrora pró-comunistas ou Setembro e a captura de elementos do
Road Initiative, BRI), de iniciativa do cionalista “anticolonial”6 se regenerou panturcas, com o objetivo de fomen- Movimento Islâmico do Turquistão
presidente Xi Jinping, a abertura do es- nas universidades e nos círculos inte- tar, dentro das organizações locais, Oriental por forças norte-americanas
paço da Ásia Central fez do Xinjiang um lectuais uigures. Após os anos de pros- uma luta pelos direitos humanos no durante sua intervenção no Afeganis-
trunfo na estratégia de projeção do po- crição da Revolução Cultural, parte da modelo tibetano. Essa estratégia não tão, as autoridades chinesas elabora-
der chinês na Ásia. Fazendo fronteira sociedade voltou-se novamente para o violenta ganhou definitivamente os ram a retórica das “três forças” (sangu
com o Paquistão, o Afeganistão e países islã e, no sul, reconstituiu uma rede de nacionalistas em 2004, quando suas shili): terrorismo, separatismo (étnico)
da ex-União Soviética, ele abriga um nó madraças na qual foram criados círcu- organizações se uniram e fundaram o e extremismo religioso. Assim, conse-
de eixos de transporte ferroviários, ro- los de talips (estudiosos da religião). Al- Congresso Mundial Uigur, sediado guiram colocar no mesmo saco círcu-
doviários e energéticos com os quais a guns defendiam a islamização das nor- em Washington. los democráticos nacionalistas ou au-
China conta para garantir seu abasteci- mas sociais e até a instauração de um No Xinjiang, à medida que a repres- tonomistas não violentos, interessados
mento e expandir sua economia em di- Estado islâmico independente. Foi o ca- são se espalhava, as tensões aumenta- em promover os valores do islã no
reção à Europa. A estabilidade desses so da tentativa de insurreição em Barin, vam. Multidões uigures enfurecidas campo social e político; jihadistas do
espaços vizinhos parece vital para o re- em 1990,7 de uma rede estruturada al- tomaram as ruas, como em Khotan, Movimento Islâmico do Turquistão
gime, que os considera terrenos muito guns meses antes, o Partido Islâmico do em 1995, e Yining, em 1997. Com o des- Oriental; e, mais amplamente, todos os
propícios, se não estiverem sob um cui- Turquistão Oriental. mantelamento das madraças do sul, espíritos contestatários.
dado rigoroso, para o desenvolvimento parte dos círculos islâmicos naciona- Nessa década, as redes do Movi-
do islamismo, ou de uma pesada in- listas consideravam que o partido esta- mento Islâmico do Turquistão Orien-
fluência norte-americana. va em guerra contra o islã e contra a tal, ou o que restava delas, recuadas no
Embora o Estado chinês tenha gra- Baseados na identidade islâmica dos uigures. Talips Vaziristão, assumiram o nome de Par-
dualmente consolidado sua soberania patologização do e algumas células nacionalistas mer- tido Islâmico do Turquistão (PIT),
na região, a lembrança de insurreições pensamento gulharam na clandestinidade. Eles for- após sua integração na internacional
que culminaram em breves episódios maram grupelhos defensores da ação jihadista da Al-Qaeda. Eles usaram as
de independência,5 a recorrência de
contestatário, esses violenta, até mesmo do terrorismo. En- redes sociais para incitar a violência.
rebeliões e, mais recentemente, a pro- dispositivos pretendem tre 1990 e 2001, de acordo com as auto- Embora a amplitude do monitora-
liferação de ações violentas, até atos “erradicar os vírus ridades chinesas, foram perpetrados mento da internet realizado pela Chi-
terroristas, causam preocupação. Esse ideológicos” “duzentos incidentes terroristas, com na dificulte o acesso a suas publica-
território centro-asiático de domínio 162 mortos”.8 Mas pouco a pouco esses ções, após um longo período de calma
turcófono, outrora chamado pelos grupos foram desmantelados. o sul do Xinjiang e sua capital, Urum-
geógrafos ocidentais de Turquistão Em março de 1996, o PCC estabele- qi, passaram por uma série de atenta-
Oriental, ou Turquistão Chinês, é mar- Em 1985, 1988 e 1989, em Urumqi e ceu uma lista de orientações rigorosas dos. Esta começou em 2008, com a
cado por fortes particularismos e por outros oásis, manifestações denun- para erradicar as atividades poten- aproximação dos Jogos Olímpicos, e
uma instabilidade que sempre preo- ciaram a colonização demográfica, a cialmente subversivas.9 Foram reali- ganhou impulso em 2009, quando vio-
cupou os imperadores chineses. discriminação e a desigualdade étni- zadas várias campanhas “Mão Pesa- lentas rebeliões opuseram uigures e
Quando os Qing quiseram fazer dele ca, e a falta de autonomia política. Li- da” (1997, 1999, 2001), levando ao hans em Urumqi,12 fazendo oficial-
sua “nova fronteira” (significado de deradas por associações estudantis, desenvolvimento de sessões de edu- mente 197 mortos – pelo menos três
xinjiang em mandarim), os círculos às vezes ao lado de círculos religiosos, cação patriótica, a uma proliferação quartos deles hans. A região ficou sob
nostálgicos da teocracia sufi, que, até elas degeneraram na depredação de de leis definindo o espectro das práti- forte pressão. A internet foi cortada
então, exerciam autoridade ali, fize- prédios públicos, especialmente no cas subversivas e a grandes ondas de durante vários meses, mas os ataques
ram da defesa do islã uma ferramenta início de 1989. Nesse ano, enquanto o prisões. O mesmo documento desta- se multiplicaram.
de mobilização contra um poder sino- Tibete era sacudido por violentos tu- cava a necessidade de incentivar a en- Alguns desses atos parecem ter si-
-manchu não muçulmano. No início multos em março e Pequim era abala- trada de pessoas da etnia Han no Cor- do premeditados por células ligadas
do século XX, passam a se distinguir da pelos eventos na Praça da Paz Ce- po de Produção e Construção. A ao PIT, como os ataques em Kashgar,
as áreas de predomínio nômade caza- lestial em junho, o partido temia que a questão era limitar severamente a em 2011, mas muitos deles, como
que e quirguiz, no norte e nas monta- situação saísse do controle no Xin- construção de mesquitas, impor líde- agressões com arma branca contra
nhas do Pamir, e oásis povoados de se- jiang, ainda mais quando a implosão res que tivessem “amor à pátria” na di- policiais ou civis, parecem mal prepa-
dentários uigures, no sul e no leste. da União Soviética abriu caminho pa- reção dos locais de culto e organiza- rados e cometidos por uma juventude
Após o colapso do império, em ra a independência de povos turcófo- ções religiosas, registrar todos os que simplesmente assistiu aos vídeos
1912, os sucessivos senhores da guerra nos primos dos uigures. indivíduos que tivessem alguma for- do PIT ou de outros movimentos jiha-
chineses enfrentaram o crescimento O retorno da ala conservadora do mação em escolas religiosas sem auto- distas. Muitas ações violentas choca-
de uma oposição autonomista ou se- PCC fez desaparecer, entre os círculos rização e tomar “severas medidas” pa- ram a opinião pública chinesa, às ve-
paratista inédita. Ela contava com autonomistas ou separatistas, qual- ra evitar que a religião viesse a intervir zes ultrapassando as fronteiras do
uma nova geração de militantes, re- quer esperança de negociação sobre as nos assuntos sociais e políticos.10 A Xinjiang: o atentado com um automó-
presentada, à direita, por um movi- políticas colocadas em prática na re- Anistia Internacional estima que fo- vel na Praça da Paz Celestial em outu-
mento panturco e, à esquerda, por gião. O partido, a Associação Islâmica ram feitas pelo menos 190 execuções bro de 2013 (cinco mortos, dois turis-
uma cena comunista apoiada e manti- do Xinjiang (uma organização de in- entre janeiro de 1997 e abril de 1999.11 tas e três atacantes), o da faca na
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 11

estação de Kunming, em março de mais baixo na escala social uma par- uma Família: funcionários hospe- do ao crescimento das tensões prepara
2014 (31 mortos e 143 feridos), e o de cela significativa dos uigures. Embora dam-se regularmente com os habitan- o caminho para novas explosões de
maio de 2014 em um mercado de o Estado garantisse mais da metade do tes, às vezes por vários dias, para iden- violência.
Urumqi (43 mortos e mais de noventa orçamento regional e por muito tempo tificar comportamentos subversivos,
feridos). Seguiram-se outros atenta- tenha permitido um crescimento de pressionar para que sejam feitas de- *Rémi Castets é doutor no Instituto de Estu-
dos de menor escala, e 2014 foi um ano dois dígitos por meio de investimentos núncias e realizar educação patrióti- dos Políticos (IEP) de Paris e diretor do De-
sombrio, com mais de trezentas víti- maciços, os uigures, com menos edu- ca. Mais de 1 milhão de funcionários partamento de Estudos Chineses da Univer-
mas do terrorismo, contra apenas um cação ou simplesmente discriminados estariam envolvidos, especialmente sidade Bordeaux Montaigne.
punhado por ano durante a primeira mesmo tendo diploma, não tiraram nas áreas rurais do sul.
década do milênio. grandes benefícios desse crescimento.
Mais ou menos ao mesmo tempo, ESTUDO DE COMPORTAMENTOS “INCOMUNS” 1 “‘Eradicating ideological viruses’. China’s campaign
a implantação do PIT no Afeganistão, Além disso, o Xinjiang tornou-se of repression against Xinjiang’s Muslims” [“Erradi-
ao lado do Talibã, e principalmente um vasto campo de teste das joias da cando vírus ideológicos”. A campanha de repres-
na Síria, onde conseguiu estabelecer Tais medidas têm vigilância high-tech e da segurança de
são chinesa contra os muçulmanos do Xinjiang],
Human Rights Watch, Nova York, 9 set. 2018.
redes, deixou os chineses ainda mais uma dimensão big data.18 Smartphones podem ser 2 Adrian Zenz, “‘Thoroughly reforming them towards a
preocupados. O envolvimento do PIT submetidos a verificação a qualquer healthy heart attitude’: China’s political re-education
intrusiva: campaign in Xinjiang” [“Uma verdadeira reforma em
no conflito sírio fez crescer seus efeti- momento nos postos de controle poli-
vos e seu apoio. Depois de mostrar
foi proibido ter a barba cial e nos diversos checkpoints monta-
busca de sentimentos saudáveis”: a campanha chi-
nesa de reeducação política no Xinjiang], Central
serviço em combate ao lado dos ou- considerada “anormal” dos ao longo das estradas. O extenso Asian Survey, Abingdon-on-Thames, set. 2018.
3 A dinastia Han durou de 206 a.C. a 220 d.C.; a Sui,
tros componentes da Frente Al-Nus- e usar o véu em locais sistema de vigilância por vídeo com de 581 a 618; e a Tang, de 618 a 907. Mas seu
ra, e agora de Hayat Tahrir al-Sham, públicos... reconhecimento facial foi aprimorado. domínio sobre o Xinjiang não necessariamente se
no noroeste da Síria, ele foi equipado A maioria dos uigures teve de entregar manteve ao longo de todo o reinado.
4 Essas brigadas, criadas em 1954 e mantidas sob
com material pesado e conseguiu seu passaporte, reduzindo a zero as es- comando militar, são responsáveis tanto por coloni-
mobilizar centenas de combatentes. peranças de quem sonhava em fugir zar como por proteger as fronteiras.
O PIT era uma ameaça aos interesses Como novo homem forte do país, o para o exterior. 5 Emirado de Kashgar de Yacoub Beg, entre 1864 e
1877; Emirado de Khotan, depois República Turca
chineses em algumas regiões onde presidente Xi prometeu erradicar pela Para o poder chinês, a questão não Islâmica do Turquistão Oriental em Kashgar, em
podia projetar ações – Paquistão, raiz a ameaça terrorista, redefinindo a é mais monitorar a sociedade e punir 1933-1934; República Pró-Soviética do Turquis-
Afeganistão, Oriente Médio –, mais abordagem de segurança. Organismos quem comete irregularidades. A coleta tão Oriental nos três distritos do norte do Xinjiang
entre 1944 e 1949.
do que no próprio Xinjiang. Na verda- de contraterrorismo foram reestrutu- de dados por meio da Plataforma Inte- 6 Dru Gladney, “Internal colonialism and the Uyghur
de, a sociedade uigur parecia pouco rados e colocados sob uma supervisão grada de Operação Conjunta, combi- identity: Chinese nationalism and its subaltern
inclinada a aderir à sua interpretação mais estreita do governo. O controle de nada com o estudo de comportamen- subjects” [Colonialismo interno e identidade uigur:
o nacionalismo chinês e seus sujeitos subalter-
rígida do islã, e a “Grande Muralha de minorias e assuntos religiosos, antes tos “incomuns”, tem o objetivo de nos], Cahiers d’études sur la Méditerranée orien-
Aço”13 desejada por Xi continuava a sob a responsabilidade de diversas ad- antecipar e classificar os indivíduos de tale et le monde turco-iranien (Cemoti), n.25, Pa-
limitar significativamente sua mar- ministrações, além de associações re- acordo com seu nível de lealdade e do ris, jan.-jun. 1998.
7 Formados no modelo afegão, os jihadistas batalha-
gem de manobra na China. ligiosas ditas “representativas”, pas- risco de segurança que representam. ram por mais de dez dias.
No entanto, para a população um sou ao encargo do centralizador Entre os numerosos critérios de identi- 8 “East Turkistan forces cannot get away with impu-
limite foi ultrapassado com a onda de Departamento do Trabalho da Frente ficação, figura a estadia em um dos 26 nity” [Forças do Turquistão Oriental não podem
sair impunes], People’s Daily, Information Office of
detenções e condenações (incluindo a Únida do Partido.15 países “de risco”.19 Falar com estrangei- State Council, Beijing, 21 jan. 2002.
pena capital), após as rebeliões de O aparato jurídico também foi re- ros ou com pessoas que tenham ido 9 Cf. “China: State control of religion, update number
2009. Para muitos, estava encerrada a modelado. Em novembro de 2014, a para o exterior, baixar o aplicativo de 1” [China: controle estatal da religião, dados atuali-
zados 1], Human Rights Watch, mar. 1998.
idade de ouro dos anos 1980, quando Assembleia da Região Autônoma do comunicação proibido WhatsApp, ter 10 “Devastating blows: Religious repression of
conflitos entre comunidades ainda Xinjiang já aprovara uma lei refor- barba, não beber álcool, não fumar, co- Uighurs in Xinjiang” [Golpes devastadores: repres-
podiam ter mediadores. O ressenti- mando as regulações religiosas regio- mer alimentos halal, guardar o Rama- são religiosa sobre os uigures no Xinjiang], Human
Rights Watch, 11 abr. 2005.
mento contra o poder central chinês se nais de 1994, com o acréscimo de de- dã, não comer carne de porco, querer 11 “China: Gross violations of human rights in the Xin-
transformou em um ressentimento zoito artigos para modernizar o dar aos filhos nomes muçulmanos jiang Uighur autonomous region” [China: brutais vio-
contra os hans, entendidos como colo- sistema de acreditação dos imãs, de considerados subversivos, como o do lações dos direitos humanos na região autônoma ui-
gur do Xinjiang], Anistia Internacional, 31 mar. 1999.
nizadores arrogantes que considera- controle das mesquitas e do que resta- profeta: são muitos os sinais suspeitos. 12 Ler Martine Bulard, “Quand la fièvre montait dans
vam os outros como indivíduos de se- va das estruturas de ensino religioso, Universitários renomados, artistas le Far West chinois” [Quando a temperatura subiu
gunda classe, cuja única opção era que já sofriam intensa vigilância.16 Em e até atletas famosos desapareceram no extremo oeste da China], Le Monde Diplomati-
que, ago. 2009.
submeter-se e sinizar-se, para se tor- 2017 foi lançado um novo pacote de de repente – possivelmente internados 13 Instalações de defesa construídas sob as monta-
narem aceitáveis. medidas em nome da luta contra o “ex- – ou foram postos em prisão domici- nhas. Cf. Tom Phillips, “China: Xi Jinping wants
O “viver juntos” proposto pelo go- tremismo religioso”. Para muitos mu- liar. Nos últimos meses, condenações ‘Great Wall of Steel’ in violence-hit Xinjiang” [Chi-
na: Xi Jinping quer “Grande Muralha de Aço” con-
verno central baseava-se em uma ho- çulmanos, tais medidas têm uma di- às vezes muito pesadas foram executa- tra violência no Xinjiang], The Guardian, Londres,
mogeneização demográfica e cultural mensão intrusiva: foi proibido ter a das. Por exemplo, o ex-diretor do Escri- 11 mar. 2017.
sinizadora e em um forte controle das barba considerada “anormal” e usar o tório de Supervisão Educacional do 14 Gardner Bovingdon, The Uyghurs in Xinjiang:
Strangers in Their Own Land [Uigures do Xinjiang:
instituições da região autônoma pelos véu em locais públicos... Xinjiang e o ex-reitor da Universidade estrangeiros em sua própria terra], Columbia Uni-
quadros hans. Enquanto a língua uigur As coisas ficaram ainda piores des- do Xinjiang foram condenados à morte versity Press, Nova York, 2010.
dava lugar ao mandarim nas escolas, e de que Chen Quanguo assumiu a fren- por “tendências separatistas”. Após ser 15 Jérôme Doyon, “Actively guiding religion under Xi
Jinping” [Empenho no controle da religião por Xi
o controle da polícia e da administra- te do PC local, em 2016, com as mes- preso em 2014, o economista e escritor Jinping], Asia Dialogue, 21 jun. 2018. Disponível
ção era incessantemente reforçado, a mas funções que exercia na região Ilham Tohti, uma das últimas figuras em: <http://theasiadialogue.com>.
implantação han seguia seu curso e autônoma do Tibete. Segundo Adrian críticas dos círculos intelectuais uigu- 16 “The modern Chinese State and strategies of control
over Uyghur Islam” [O Estado chinês moderno e
exacerbava na população local a sen- Zenz,17 o orçamento destinado à segu- res, foi condenado à prisão perpétua. suas estratégias de controle sobre o islã uigur], Cen-
sação de estar sendo afogada pelos rança explodiu. Forças policiais espe- As autoridades celebram a redução tral Asian Affairs, v.2, n.3, Washington, DC, 2015.
chineses.14 ciais e equipamentos de contenção de da violência nos últimos meses. Mas, 17 Adrian Zenz, op. cit.
18 Josh Chin e Clement Bürge, “Twelve days in Xin-
No início dos anos 2010, os hans re- revoltas foram reforçados. O recruta- mesmo na China, muitos observado- jiang: How China’s surveillance State overwhelms
presentavam 40% dos 22 milhões de mento atingiu o pico entre meados de res estão preocupados – embora não daily life” [Doze dias no Xinjiang: como o vigilante
habitantes da região (contra 6% em 2016 e de 2017, com mais de 90 mil po- ousem dizê-lo publicamente – com os Estado chinês domina a vida cotidiana], The Wall
Street Journal, Nova York, 19 dez. 2018.
1949), e os uigures, mais de 45% (con- liciais, doze vezes mais que em 2009, níveis de frustração gerados por essas 19 Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia, Azerbaijão,
tra 75% em 1949). Essa supremacia na com o objetivo de implantar uma an- políticas a longo prazo. Dirigentes lo- Cazaquistão, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iê-
administração e na economia, junto tena dos Escritórios de Segurança Pú- cais, imãs ou intelectuais que ainda men, Indonésia, Irã, Iraque, Líbia, Malásia, Nigéria,
Paquistão, Quênia, Quirguistão, Rússia, Somália,
com a desconfiança dirigida aos nati- blica em cada vila ou povoado. Chen querem aparar as arestas já não têm Síria, Sudão do Sul, Tailândia, Tadjiquistão, Tur-
vos, contribuiu para manter no ponto também fortaleceu o programa Como recursos para isso. A cegueira do Esta- quia, Turcomenistão, Uzbequistão.
12 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

AS CIÊNCIAS SOCIAIS A SERVIÇO DA “CONTRAINSURREIÇÃO”

Retrato do intelectual como soldado


Desde a invasão do Iraque em 2003, o Exército norte-americano vem financiando novas tecnologias
para detectar “insurgentes”. Baseadas nas ciências sociais e na coleta de dados digitais em massa, essas
ferramentas encontram aplicações muito além das zonas de guerra
POR OLIVIER KOCH*

fluenciar o curso dos conflitos: um im-


pulso de simpatia por um novo líder
contestador, por exemplo, ou, ao con-
trário, uma manifestação de antipatia
em relação aos exércitos de ocupação.
Para conseguir isso, esse radar combi-
na a análise de conversas on-line e a
análise de sentimentos. Ele identifica
os principais tópicos discutidos pelos
usuários da internet e os associa aos
sentimentos expressos. Dessa forma,
desenham-se “constelações de senti-
mentos-alvo”1 que o ocupante explora
então por meio de campanhas de pro-
paganda ou de operações psicológicas
(Psyop). Enquanto os radares que equi-
pam aeronaves e navios detectam cor-
pos em áreas de confronto, o Radar So-
cial busca penetrar a espessura
psicossocial das sociedades para nela
detectar mudanças em tempo real.
© Rodrigo Leão

O moral dos civis esteve no centro


das preocupações políticas e militares
e, portanto, das propagandas do Esta-
do, ao longo dos séculos XIX e XX.
Uma guerra, seja ela contrainsurre-
cional ou convencional, é difícil de ga-
nhar sem seu apoio, e as ciências so-
iante de uma tela, um soldado nascimento da cibernética. Ela se de- nhas, nem planícies, nem cursos de ciais e humanas têm sido usadas

D pilota um drone. A milhares de


quilômetros do centro de con-
trole, ele abre fogo contra pes-
soas no solo. Essa cena agora comum
acontece no Iraque, no Iêmen e na
senvolveu nos Estados Unidos durante
a Guerra do Vietnã (1955-1975) graças
a pesquisas realizadas no âmbito da
Agência para Projetos de Pesquisa
Avançada da Defesa (Darpa). Desde
água. Em vez disso, essas ferramentas
geolocalizam “insurgentes” em redes
sociais. O que os moradores fazem,
seus deslocamentos e seus relaciona-
mentos com outras pessoas são ras-
regularmente para tentar conquistá-
-lo. Seus conhecimentos foram mobi-
lizados para aperfeiçoar as técnicas
de persuasão. Psicólogos, sociólogos
ou cientistas políticos trabalharam
África como parte da luta contra a Al- então, o Exército vem usando compu- treados e visualizados nas telas de para desenvolver esse tipo de tecnolo-
-Qaeda no Magreb islâmico e contra o tadores e dados em massa para guiar controle. O inimigo (o “insurgente”) gia de controle das sociedades pelos
Boko Haram. armas e pilotar mísseis remotamente. aparece nesses mapas como o nó de Estados. Os instrumentos de radio-
Como identificar o inimigo? Os mi- Mas a ocupação do Iraque marca um uma rede que é preciso eliminar. grafia social que surgiram no Iraque
litares não têm mais como alvo um in- ponto de virada. De uma forma sem pertencem a essa tradição, mas dife-
divíduo identificado pela inteligência precedentes, o Pentágono mobilizou a “CONSTELAÇÕES DE SENTIMENTOS-ALVO” rem dela em pelo menos dois pontos.
humana, mas um estereótipo compor- computação conectada para guiar os Os softwares da contrainsurreição Há ali uma ambição, próxima à fanta-
tamental: uma estrutura de dados que exércitos no “terreno humano” – um se baseiam em modelos comporta- sia, de automatizar a detecção de in-
caracteriza um comportamento anor- eufemismo militar para designar a mentais cuja concepção e funciona- surreições e de instabilidades sociais.
mal. Se os analistas julgam que aquele população. mento recorrem a dois tipos de recurso: Máquinas e computadores são substi-
que corresponde a isso é perigoso, po- Em 2003, a guerra regular, após pesquisadores de ciências sociais, que tutos aqui para a análise humana. O
dem considerar sua “neutralização”. causar a queda do regime de Saddam examinam as sociedades autóctones, e tempo “real”, do imediatismo, deve
Muitas vezes, sua identidade e seu no- Hussein, deu lugar a um conflito assi- uma vigilância estreita das populações. substituir o longo tempo das observa-
me não são conhecidos antes que ele métrico que opunha as forças da coali- Em 2008, a Seção de Pesquisa e Enge- ções e da interpretação. Saem os espe-
seja condenado à morte. O que impor- zão internacional a grupos armados. O nharia do Departamento de Defesa cialistas que murmuram visões con-
ta, sobretudo, é a coleção de vestígios e Exército norte-americano ligou isso na criou um programa de modelagem do traditórias ao ouvido do senhor da
de dados em massa capazes de com- ocasião à arte da contrainsurreição já comportamento: o Human Socio-Cul- guerra: a automação colocou de lado,
por uma “assinatura” comportamen- colocada em prática no Vietnã. Com tural Behavior Modeling Program (HS- tanto quanto possível, os intérpretes e
tal: o que ele faz? Quem ele visita dia- uma dupla intenção tática: distinguir CB), no qual foi desenvolvido o projeto suas conjecturas. Em contrapartida,
riamente? Aonde vai? Programas de o combatente do não combatente e li- de Radar Social. Esse software processa ela mobiliza pesquisadores em ciên-
computador, em seguida, desenham mitar o apoio de civis a grupos arma- megadados extraídos dos meios de co- cias sociais e outros especialistas em
perfis e isolam aqueles que se desviam dos. Nessa lógica de guerra centrada municação, de redes sociais e da inteli- comportamento humano, que assina-
da norma. na população, os exércitos de ocupa- gência militar. Trata-se de detectar os lam regularidades observadas nas so-
A informatização do campo de ba- ção usaram um novo mapeamento so- movimentos de coração e da opinião ciedades, as quais serão convertidas,
talha remonta à década de 1940 e ao cial. Nele não constam nem monta- que, entre as populações, poderiam in- de perto ou de longe, em um algorit-
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 13

mo. Seu trabalho para por aí; a máqui- ver a pesquisa aplicada à guerra cen- nes e torná-lo acessível a todos os Native Prospector para pesquisar po-
na assume então. trada nas pessoas. Com isso, o mundo membros do consórcio em um portal pulações no norte da África e na África
A automação da previsão foi colo- universitário tem contribuído ativa- on-line. O projeto foi concluído em Oriental. O objetivo era conter a ex-
cada em prática durante a contrain- mente para a criação da nova enge- 2013, mas a Global Cultural Knowled- pansão da Al-Qaeda na região. Em
surreição no Iraque. Como parte do nharia de dados socioculturais. Con- ge Network [Rede Global de Conheci- 2017, utilizando as mesmas tecnolo-
programa de modelagem do compor- duzida sob os auspícios da Minerva mento Cultural] (GCKN) assumiu as gias, a Navanti ofereceu seus serviços
tamento humano, o Pentágono está fi- Research Initiative [Iniciativa de Pes- rédeas em 2014. Essa organização visa para empresas que desejassem se de-
nanciando um sistema de alerta de cri- quisa Minerva], nome dado em home- “reunir toda a capacidade intelectual senvolver na região ou no Oriente Mé-
se iminente: o Integrated Crisis Early nagem à divindade romana da guerra dos Estados Unidos para as futuras dio. Outros estão convertendo as fer-
Warning System [Sistema Integrado de e da estratégia, essa militarização das missões do Exército orientando o co- ramentas inicialmente desenvolvidas
Aviso Antecipado de Crise] (Icews). Es- ciências sociais permitiu o financia- nhecimento sociocultural para a to- na ótica antiterrorista em ferramentas
se sistema explora dados sobre vários mento, dentro mesmo das universida- mada de decisões”.2 de marketing supostamente capazes
países e suas populações. O oráculo é des, de trabalhos sobre a sociologia e a de sondar a mente dos consumidores.
um autômato, uma máquina de pro- psicologia das redes “terroristas” e a GUERRA E MARKETING Criada em 2007 para fornecer ao go-
cessamento de dados agregados por modelagem de comportamentos este- Com essa virada cultural da guer- verno dos Estados Unidos “soluções
meio da mídia e das redes sociais. Nes- reotipados de “insurgentes”. Converti- ra, novos setores estão surgindo den- inovadoras em ciências sociais” – co-
sas previsões, apenas a gestão segura do aos imperativos táticos do Pentágo- tro do complexo militar-industrial. mo diz seu site –, em matéria de segu-
dos movimentos sociais conta. O justo no pela irresistível virtude dos dólares, Além da GCKN e do programa de mo- rança ou de defesa, a empresa NSI ex-
e o injusto não são pontos essenciais o mundo do conhecimento concordou delagem do comportamento humano, pandiu depois de 2011 sua clientela
nos mapas da vigilância automatizada. em transformar o contraterrorismo e a o departamento investe em “métodos para empresas comerciais. Afinal, ma-
O programa mapeia as sociedades do contrainsurreição, tarefas ligadas di- computacionais para modelar [...] sis- pear e prever “insurreições” envolve o
globo de acordo apenas com as polari- retamente ao Estado, em objetos de temas sociológicos”, em “análise cien- mesmo raciocínio de previsão com-
dades do estável e do instável. pesquisa científica. tífica de dados” e “desenvolvimento portamental do marketing.
No entanto, apesar de todas as tec- em algoritmo”.3 Essa reorientação A ocupação do Iraque funcionou
nologias usadas no Icews ou no Radar também é observada entre provedores como um laboratório no qual foram
Social, a previsão automatizada fun- privados. Criadora, desde 1958, de fer- experimentadas formas de controle
ciona mal. Como se trata de prever Além do mercado ramentas de defesa aérea, a Mitre Cor- social automatizado e capaz de fazer
distúrbios por meio dos discursos vei- poration, por exemplo, vem desenvol- previsões destinadas a rastrear “in-
culados pela mídia e pelas redes so-
militar e antiterrorista, vendo desde a segunda metade dos surgentes”. Esse modus operandi con-
ciais, ou a crise já está declarada (e, a detecção e a previsão anos 2000 programas de computador tinuou nos anos 2010 em outras zo-
portanto, a previsão é literalmente automatizadas da de análise de redes sociais em contex- nas de conflito, particularmente na
nula), ou se manifesta de outra forma, instabilidade social tos de contrainsurreição. Seu slogan: África Subsaariana. Eles estão agora
sem aparecer, nesse caso, nos radares “Resolver problemas para um mundo migrando para o campo civil: a enge-
dessas máquinas. Assim, as revoltas
seduzem os profissionais mais seguro”. Da mesma forma, a Ap- nharia de dados socioculturais, afi-
árabes de 2011 e 2012 escaparam dos de segurança tima, empresa especializada em “en- nal, não passa de uma modalidade de
radares algorítmicos, cujos progra- genharia centrada no ser humano”, gestão populacional.
madores parecem ignorar que as in- vem conduzindo desde 2006 uma série
surreições não começam no Facebook A mobilização dos saberes, no en- de pesquisas financiadas pelo Depar- *Olivier Koch é professor pesquisador.
ou no Twitter, mas off-line, em áreas tanto, vai além do quadro universitá- tamento de Defesa sobre detecção e
carentes, como foi o caso no Egito e na rio. Em 2011, o Cultural Knowledge previsão de comportamentos suspei-
Tunísia. Outra fraqueza do instru- Consortium [Consórcio de Conheci- tos usando estatísticas e ciências so- 1 Barry Costa e John Boiney, “Social Radar” [Radar
mento de medição: os meios de comu- mento Cultural] (CKC) foi criado para ciais computacionais. Social], Mitre Corporation, Mc Lean, Virgínia,
nicação escaneados por essas ferra- congregar pesquisas públicas e priva- A modelagem de comportamentos 2012. Disponível em: <www.mitre.org>.
2 “Global Cultural Knowledge Network” [Rede Glo-
mentas de computador nem sempre das. Pesquisadores especializados entra em uma fase industrial. Além do bal de Conhecimento Cultural]. Disponível em:
oferecem uma leitura fiel da realidade, atuam ali ao lado de especialistas que mercado militar e antiterrorista, a de- <https://community.apan.org>.
em particular quando são controla- trabalhavam com os mesmos assun- tecção e a previsão automatizadas da 3 “Socio-cultural analysis with the reconnaissance,
surveillance, and intelligence paradigm” [Análise
dos pelo regime em vigor ou por inte- tos em associações, indústrias priva- instabilidade social seduzem os pro- sociocultural com reconhecimento, vigilância e pa-
resses econômicos poderosos. das ou no Departamento de Defesa. O fissionais de segurança. Em 2013, a radigma de inteligência], Centro de Desenvolvi-
O Departamento de Defesa pôs em objetivo era colocar em rede o conhe- empresa norte-americana Navanti, mento de Pesquisa de Engenharia do Exército dos
Estados Unidos, 2014. Disponível em: <http://nsi-
prática vários projetos para desenvol- cimento sobre as sociedades autócto- por exemplo, desenvolveu o programa team.com>.
14 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

QUEM É ELLIOTT ABRAMS?

A sombria carreira do enviado especial


norte-americano à Venezuela
Há alguns anos, o cáustico Elliott Abrams amava apresentar-se como um velho sábio, um expert em diplomacia sempre
preocupado em dar sua opinião informada. Encarregado por Donald Trump de “restaurar a democracia na Venezuela”, ele voltou
aos negócios. Olhando sua ficha, os habitantes que vivem onde será sua missão podem começar a se preocupar...
POR ERIC ALTERMAN*

No início de sua carreira, a serviço


dos senadores democratas Henry
“Scoop” Jackson e Daniel Patrick Moy-
nihan, Abrams contribuiu com os es-
forços neoconservadores para conver-
ter o Partido Democrata dos anos de
1970 ao intervencionismo em situação
de guerra. Contudo, afastados dos al-
tos postos da administração pelo pre-
sidente Jimmy Carter, eles termina-
ram por mudar de lado. “Éramos de
fato excluídos. Obtivemos apenas um
cargo insignificante: negociador espe-
cial. Não para a Polinésia nem para a
Macronésia, e sim apenas para a Mi-
cronésia”, reclama Abrams.3 Depois de
construir um confortável ninho no
seio da administração Reagan, ele gra-
vitou rapidamente pelos altos escalões
© Daniel Kondo

do Departamento de Estado. Passou


pelo cargo de secretário de Estado ad-
junto às organizações internacionais,
depois – ironicamente – pelos “direitos
humanos” e, por fim, pelas questões
interamericanas. Nesse último cargo,
protegeu o secretário de Estado, Geor-
anúncio pelo secretário de Esta- De acordo com a revista Bloom- ge Shultz, de investidas de reagania-

O
MASSACRES E GENOCÍDIOS
do norte-americano, Mike berg, essa promoção revela um “giro”: A julgar pelo passado de Abrams, o nos desejosos de entrar em guerra com
Pompeo, da nomeação do neo- “suas posições são representativas de ano de 2019 corre o risco de ser desas- a União Soviética, envolvida em uma
conservador Elliott Abrams ao uma política externa que Trump con- troso para o povo venezuelano. Assis- série de conflitos na América Central.
posto de enviado especial à Venezuela, denava durante sua campanha – no- tente subalterno no Congresso antes de A extrema direita latino-americana
no dia 25 de janeiro de 2019, não pas- tadamente o apoio à Guerra do Ira- sua nomeação durante a administração nunca havia contado com um aliado
sou despercebido. A imprensa inter- que, que ele critica há tempos. Mas Reagan a uma série de cargos relaciona- norte-americano tão enérgico quanto
pretou a decisão de confiar a esse ho- Abrams, assim como o presidente, dos a direitos humanos na América Abrams. Mesmo quando a polêmica
mem a missão de trabalhar para a parece ter mudado”.1 Essa ideia de Central e ativo novamente na segunda girava em torno de massacres, como o
destituição do presidente Nicolás Ma- que “as pessoas mudam” figura igual- administração de George W. Bush, em dos milhares de camponeses inocen-
duro como uma declaração de inde- mente entre as explicações dadas por seguida desempenhou um papel mili- tes em El Salvador, Nicarágua, Guate-
pendência de Pompeo em relação ao Abrams para limpar sua participação tante no seio de um think tank, o Coun- mala e até no Panamá (que George H.
presidente Donald Trump. Seu desa- no escândalo do Irangate – quando a cil on Foreign Relations [Conselho de W. Bush terminou por invadir), ele
fortunado predecessor, Rex Tillerson – administração do presidente Ronald Relações Exteriores], e de várias organi- sempre soube como atuar como um
ex-CEO da ExxonMobil –, esperava de Reagan financiou seu apoio aos zações judaicas conservadoras. À exce- emissário que mascara a responsabili-
fato recrutar Abrams. Mas Trump se “contras” antissandinistas na Nica- ção de Henry Kissinger e Dick Cheney, dade de Washington perante jornalis-
opôs, apesar do lobby do doador de ex- rágua pela venda de armas secretas poucos altos funcionários norte-ame- tas, militantes pela justiça e até mes-
trema direita Sheldon Adelson – que a Teerã –, apresentado como insigni- ricanos fizeram tanto pela promoção mo vítimas.
parece conseguir tudo o que quer do ficante. Apesar de envolvido no caso, da tortura e de mortes em massa em Em março de 1982, o general guate-
presidente. O motivo da recusa? Abrams culpou dois promotores de nome da democracia. Depois do Iran- malteco Efraín Ríos Montt chegou ao
Abrams se uniu a outros neoconserva- dissimular informação no Congres- gate, sua progressão nas altas esferas poder por um golpe de Estado. Então
dores para criticar Trump durante a so. Ele foi expulso da ordem dos ad- da política externa norte-americana, secretário de Estado adjunto de direi-
primavera republicana de 2016. Até os vogados de Columbia, antes de ser beneficiária de um tratamento midiá- tos humanos, Abrams se apressou em
esforços do genro do presidente, Jared perdoado pelo presidente George H. tico que o faz passar por uma persona- felicitá-lo por ter “levado a progressos
Kushner, se revelaram em vão diante W. Bush. “Não acho que isso tenha a lidade respeitável, esclarece a realida- consideráveis” na questão dos direitos
de seu conselheiro na época, Steve menor importância. Não nos inte- de de seu pequeno mundo – em fundamentais e insistiu no fato de que
Bannon, que convenceu o chefe da Ca- ressa o que aconteceu em 1980, e sim particular sua falta de preocupação “o número de civis inocentes assassi-
sa Branca de que a reputação de “mun- o que acontece em 2019”, comentou pelos valores que os políticos norte-a- nados diminuiu progressivamente”.4
dialista” de Abrams o desacreditava. Abrams. 2 mericanos geralmente defendem. Ao mesmo tempo, contudo, segundo
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 15

um documento desclassificado, o De- veu uma carta descaradamente isso e não fazemos. Definitivamente manentes em 2009, conferindo-lhe
partamento de Estado recebia “alega- mentirosa ao redator-chefe. Chegou não foi uma operação do governo norte- uma legitimidade de “especialista”.
ções fundamentadas relacionadas a a citar um artigo imaginário, publi- -americano. [...] Se as coisas acontece- Esse prestigioso think tank somente
massacres em grande escala de ho- cado em um jornal que não existia, a ram dessa forma, se os norte-america- manifestou algum embaraço quando
mens e mulheres, crianças e indígenas fim de provar que esse assassinato nos foram mortos e seus aviões abatidos, sua nova equipe foi repreendida pelo
perpetradas pelo Exército em uma zo- havia sido, sim, reportado pelos é porque o Congresso não agiu [para fi- presidente Barack Obama por ter de-
na remota”. meios de comunicação. nanciar os ‘contras’]”, afirmou em ca- signado ao posto de secretário da De-
Isso não impediu que Abrams pe- Em 1982, o New York Times e o deia mundial. Diversas vezes, assegu- fesa Charles Hagel – um “antissemita”
disse ao Congresso que aprovasse o Washington Post publicaram arti- rou no Congresso que “a função do que “parece ter problemas com os ju-
fornecimento de armas aperfeiçoadas gos evocando um massacre cometi- Departamento de Estado [em termos de deus”, segundo o ex-presidente (Rádio
aos militares guatemaltecos, argu- do um ano antes por tropas forma- ajuda aos ‘contras’] não era arrecadar Pública Nacional, 7 jan. 2013). Ne-
mentando que “o progresso deve ser das e equipadas pelos Estados fundos, e sim de obtê-los do Congres- nhum membro parece, por outro lado,
recompensado e encorajado”. Em Unidos na região de El Mazote, em so”. Era tudo mentira. As entregas de ar- ter se incomodado por sua contribui-
2013, a Comissão pelo Esclarecimento El Salvador. Imediatamente se posi- mas eram financiadas pelo tenente Oli- ção nas manipulações eleitorais, mas-
Histórico, criada sob os auspícios das cionando em defesa dos assassinos, ver North e pela CIA. Quando fez essas sacres ou genocídios. Sua nomeação
Nações Unidas, reconheceria o gene- Abrams declarou diante de uma co- afirmações, Abrams retornava justa- ao Conselho de Relações Exteriores e,
ral Ríos Montt culpado por “atos de ge- missão no Senado que os artigos mente de Brunei, onde havia arrecada- atualmente, ao posto de enviado espe-
nocídio” durante o encontro dos Maias “não eram confiáveis” e que “visi- do fundos para os “contras”. Em 1991, a cial dos Estados Unidos à Venezuela
Ixil no Departamento de Quiché. velmente” se tratava de um “inci- revelação dessas falsificações lhe valeu denota a intenção dos conservadores
dente instrumentalizado” pelas uma condenação por dissimulação de em relação à política externa dos Esta-
CITAÇÕES IMAGINÁRIAS guerrilhas. Em 1993, a Comissão informação no Congresso. dos Unidos.
Promovido em 1985 ao posto de se- pela Verdade das Nações Unidas
cretário de Estado adjunto de questões concluiu que 5 mil civis foram “deli- LEGITIMIDADE DE “EXPERT” *Eric Alterman é jornalista.
interamericanas, Abrams não parava berada e sistematicamente” assas- Abrams não se envolveu com a admi-
de condenar as organizações que de- sinados em El Mazote. nistração de Bill Clinton, mas foi recru-
nunciavam os assassinatos em massa Em 1985, quando o ditador pana- tado por seu sucessor, George W. Bush,
perpetrados pelo general-ditador Ríos menho Manuel Noriega ordenou a para trabalhar no Conselho Nacional de
1 Jennifer Jacobs e Nick Wadhams, “‘Never Trum-
Montt, e depois seus sucessores, Oscar tortura e o assassinato por decapita- Segurança em questões relacionadas a pers’ can get State Department jobs with Pompeo
Mejía Víctores e Vinicio Cerezo Aréva- ção do guerrilheiro Hugo Spadafora, Israel e Palestina. Seu grande êxito na there” [Contrários a Trump podem conseguir tra-
lo. Em abril de 1985, a militante guate- Abrams interveio junto ao Departa- época, revelado pelo jornalista David balho no Departamento de Estado com Pompeo
lá], Bloomberg, Nova York, 31 jan. 2019.
malteca Maria Rosario Godoy de Cue- mento do Estado e diante do Con- Rose na Vanity Fair, foi impedir as elei- 2 Citado em Grace Segers, “US envoy to Venezuela
vas, dirigente do Grupo de Apoio gresso para impor o silêncio sobre es- ções de 2006 de terminarem com um go- Elliott Abrams says his history with Iran-Contra isn’t
Mútuo, uma organização que reunia se caso. “[Noriega] nos ajudou muito verno de coalizão entre Hamas e Fatah an issue” [Enviado norte-americano à Venezuela,
Elliot Abrams, diz que caso do Irã e os contras não
mães de desaparecidos, foi encontrada [...], ele não representa um verdadei- na Cisjordânia e em Gaza, conspirando é uma questão], CBS News, 30 jan. 2019.
morta em um carro acidentado com ro problema. [...] Os panamenhos com o segundo para obrigar o governo 3 Citado em Samuel Blumenthal, The Rise of the
seu filho de 3 anos e seu irmão. Não prometeram nos ajudar a combater eleito, dominado pelo Hamas, a se exilar Counter-Establishment. The Conservative Ascent
to Political Power [O levante do contrassistema. A
contente de apoiar a versão (pouco crí- os ‘contras’. Se você persegui-lo na em Gaza.6 Essa manobra selou uma divi- ascensão conservadora ao poder político], Union
vel) do regime de que havia sido uma justiça, não poderemos contar com são sem fim entre essas duas facções, Square Press, Nova York, 2008 (1. ed.: 1986).
fatalidade, Abrams perseguiu na justi- eles”, explicou.5 atualmente incapazes de negociar uma 4 Citado em Samuel Totten (org.), Dirty Hands and
Vicious Deeds. The US Government’s Complicity
ça os que tentaram abrir uma investi- Abrams estava envolvido no es- paz duradoura com Israel (se é que Israel in Crimes Against Humanity and Genocide [Ações
gação processual sobre o caso. Quando cândalo Irangate em vários níveis. estaria disposto a isso). Finalmente, se- violentas e mãos sujas: a cumplicidade do governo
o New York Times revelou uma carta Em 1986, um piloto mercenário nor- gundo uma investigação do jornal britâ- norte-americano em crimes contra a humanidade e
genocídios], University of Toronto Press, 2018.
aberta contestando os números do De- te-americano foi abatido enquanto nico The Guardian,7 Abrams teria enco- 5 Citado em Stephen Kinzer, Overthrow: America’s
partamento de Estado em relação aos transportava armas ilegais destina- rajado em 2002 o golpe de Estado militar Century of Regime Change from Hawaii to Iraq
assassinatos em massa, redigido por das aos “contras” nicaraguenses. na Venezuela contra o governo democrá- [Derrubada: o século norte-americano de mudan-
ças no regime, do Havaí ao Iraque], Times Books,
uma mulher ela mesma testemunha Abrams apareceu na CNN para cer- tico de Hugo Chávez (revertido após Nova York, 2006.
de uma execução sumária que havia tificar que o governo norte-america- imensa mobilização popular). 6 David Rose, “The Gaza bombshell”, The Hive, 3
ocorrido em plena luz do dia em Gua- no não estava de nenhuma forma Nenhum desses fatos impediu o mar. 2008. Disponível em: <www.vanityfair.com>.
7 Ed Vulliamy, “Venezuela coup linked to Bush team”
temala City sem que a imprensa di- envolvido com aqueles voos. “Seria Conselho de Relações Exteriores de aco- [O golpe na Venezuela ligado ao time de Bush],
vulgasse uma nota sequer, ele escre- ilegal. Não temos o direito de fazer lher Abrams entre seus membros per- The Guardian, Londres, 21 abr. 2002.
16 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

UMA DIREITA INTRANSIGENTE

O que quer a oposição na Venezuela?


Golpe de Estado, locaute, boicote das eleições... A ala radical da oposição venezuelana tentou de tudo para derrubar Hugo
Chávez e depois Nicolás Maduro. Agora que o caos social e político a favorece, ela sabotou as tentativas de diálogo com o poder
em 2018 e conta cada vez mais com uma intervenção norte-americana para atingir seus objetivos
POR JULIA BUXTON*

oderia o inimaginável ter ocorri- intervenção militar liderada por seus REVANCHE OU RECONCILIAÇÃO Sua influência nas diversas coalizões

P do na Venezuela? Uma oposição


paralisada pelos ressentimentos
e pelas divergências estratégicas
parece ter conseguido se unir. A ideia de
que a reeleição do presidente Nicolás
patrocinadores do Norte.
Apesar da união circunstancial den-
tro da oposição, uma pergunta perma-
nece: que país ela pretende construir?
No momento, ela não fornece nenhuma
Essa ala radical sempre considerou
que a participação em eleições tendia
a legitimar um poder autoritário, con-
tribuindo para fragilizar a democra-
cia. Em contato permanente com a
formadas pela oposição desde a eleição
de Chávez, em 1998, variou de acordo
com o peso relativo dos radicais. Quan-
do foi coroada de sucesso, como nas
eleições regionais de 2008 e nas elei-
Maduro em maio de 2018 carecia de le- resposta precisa. E por uma boa razão: diáspora que vive nos Estados Unidos, ções legislativas de 2010, sua estratégia
gitimidade ajudou a construir pontes divisões violentas continuam a separar ela desfruta de acesso privilegiado aos eleitoral inflou as velas “centristas”. As
para além dos antagonismos que até os oponentes de Maduro. Sua coesão, setores mais conservadores do apara- derrotas, como a de Henrique Capriles
então pareciam intransponíveis. Majo- apressadamente consolidada nos últi- to político norte-americano e, em par- contra Maduro nas eleições presiden-
ritariamente antimaduristas, os depu- mos meses, ameaça rachar quando se ticular, ao senador Marco Rubio, da ciais de 2013, galvanizaram os defen-
tados da Assembleia Nacional entraram trata de organizar o poder, distribuir Flórida. Com o apoio de think tanks sores do boicote às urnas, que prefe-
em entendimento para considerar que cargos e definir orientações. bem estabelecidos (Conselho das rem as mobilizações de rua.
o presidente tinha “usurpado” seu pos- Américas, Fundação Carnegie), bem A posição centrista está associada
to, o que justificava invocar a Constitui- como da ajuda significativa da Agência aos dois maiores partidos da oposição:
ção Bolivariana de 1999, que prevê que dos Estados Unidos para o Desenvol- Primeiro Justiça (PJ, 27 dos 109 assen-
o presidente do Parlamento tome as ré- A situação vimento Internacional (Usaid) e da tos da oposição na Assembleia) e Ação
deas do país. Portanto, no dia 23 de ja- parece favorável Fundação Nacional para a Democra- Democrática (AD, 25 assentos), ainda
neiro, Juan Guaidó autoproclamou-se cia (NED), essa equipe está inundando que alguns líderes tenham o tempo to-
“presidente interino” e estabeleceu pa-
às alas radicais, a mídia com suas admoestações em do feito um vaivém entre os dois. O PJ
ra si a tarefa de liderar um governo “de que extraem relação aos defensores do diálogo, nasceu de várias campanhas em favor
unidade nacional” encarregado de or- grande parte com seus apelos a uma intervenção de uma reforma política durante os
ganizar uma eleição presidencial no de seu apoio militar norte-americana e seus cená- anos 1990. Ele foi inscrito no registro
prazo máximo de um ano. Nos dias rios de transição. dos partidos políticos em 2000. O AD,
que se seguiram, ele foi reconhecido
do exterior Aproveitando a antipatia generali- por sua vez, continua sendo o maior
por cerca de cinquenta países, entre zada dos eleitores venezuelanos pelos partido histórico do país. Ele compar-
eles os Estados Unidos, o Brasil, o partidos centralizados, os radicais se tilhou o poder com a formação demo-
Equador e a maioria dos países da Eu- Podemos identificar esquematica- apoiam em “redes populares” com crata cristã Comitê de Organização
ropa Ocidental. mente três grandes tendências. A pri- contornos indefinidos, na mídia on-li- Política Eleitoral Independente (Co-
Muitas vozes, incluindo a do inte- meira gira em torno do Vontade Popu- ne e na mobilização de estudantes de pei), entre o retorno à democracia, em
lectual norte-americano Noam lar (VP), o partido de Guaidó, fundado uma linha mais dura, ainda que pouco 1958, e o início da Revolução Boliva-
Chomsky, denunciaram um golpe de por Leopoldo López (atualmente em numerosos. Mas eles estão pagando o riana, em 1999.
Estado.1 O ex-relator independente nas prisão domiciliar por incitação à vio- preço por seu elitismo. Oriundos de Nesse grupo, acredita-se que Ca-
Nações Unidas, Alfred de Zayas, acre- lência e conspiração durante motins grupos sociais privilegiados, educados priles, líder do PJ, rompeu com a estra-
dita que as sanções dos Estados Uni- em 2014),5 assim como María Corina nos Estados Unidos, com tez de ala- tégia inicial de boicote que permitira a
dos (que não pararam de endurecer Machado e Antonio Ledezma, adversá- bastro, seus líderes se distinguem dos Chávez dispor do poder nos níveis na-
desde 2017) significam “crimes contra rios de sempre do falecido Hugo Chá- venezuelanos que cultuaram Chávez. cional, regional e municipal entre
a humanidade”,2 já que agravam a si- vez. Os atores-chave da operação são Suas manobras para derrubar o presi- 2000 e 2006. Pragmático, ele estimulou
tuação econômica e social do país, por todos oriundos dessa nebulosa, cuja dente – sobretudo uma tentativa de a Mesa da Unidade Democrática
si só muito difícil.3 Mas a esperança de marca é sua imprecisão em torno de golpe em 2002 – foram vistas como (MUD), uma coalizão de oposição for-
que as pressões norte-americanas pre- suas convicções ideológicas, bem como tentativas desesperadas de uma mi- mada em janeiro de 2008, a assumir
cipitassem uma mudança de regime seu comportamento de clã. Com fraca noria de indivíduos ricos desejosos um posicionamento menos de direita.
fracassou. Apesar dos apelos à rebe- representação na Assembleia Nacional de impor suas preferências. Enquan- Sob seu impulso, os documentos da
lião, as Forças Armadas continuam (catorze assentos de um total de 167), o to a Revolução Bolivariana acumulou MUD continuaram a evocar a “neces-
fiéis a Maduro. A Rússia e a China tam- VP parece estar sozinho na manobra. sucessos em termos de redistribuição sária reativação” econômica, a “indis-
bém o apoiam, ainda que esta última Na oposição, esse partido encarna de riqueza e redução de desigualda- pensável reconstrução” democrática
tenha iniciado conversas com a oposi- a ala mais radical, a mais próxima de des entre raças, classes e sexos, a das instituições e a “urgência de uma
ção sobre a dívida de US$ 75 bilhões Washington, a mais desprovida de ba- aproximação dessa pequena equipe recomposição” social do país. Mas eles
que Caracas contraiu com ela.4 O con- se social e a menos aberta a compro- com os neoconservadores de Washin- também reconheceram o apoio popu-
vite para encontrar uma solução nego- missos. Se ocorresse a Guaidó a ideia gton contribuiu para lhes conferir a lar de que Chávez se beneficiava e a ne-
ciada, defendida pelo México e pelo de abrir a porta para uma reconcilia- imagem de um grupelho antinacio- cessidade de continuar com alguns de
Uruguai, cortou as asas de Guaidó. Im- ção com os venezuelanos – ainda nu- nal e antipopular. seus programas sociais.6
pulsionado por Washington, este últi- merosos – que defendem o chavismo, As outras duas alas do antichavis- As eleições legislativas de 2010 favo-
mo recusou convites para o diálogo, ele se arriscaria provocar a ira de seus mo se mostraram mais dispostas a receram a posição dos centristas. O epi-
preferindo exigir um agravamento das militantes, que seu partido se dedica a participar dos processos eleitorais, sódio cimentou a unidade da MUD em
sanções, sem descartar a ideia de uma fomentar há anos. dialogar e apostar na “reconciliação”. torno da candidatura de Capriles à elei-
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 17

tativas de passagem pela força de “al-


guns” membros da oposição, que se-
gundo ele pareciam estar dispostos a
transformar a população venezuelana
em “bucha de canhão”.11 Depois de
uma união de fachada nos dias que se
seguiram ao esforço de Guaidó, os crí-
ticos endureceram novamente, uma
vez que o objetivo inicial, a rápida der-
rubada de Maduro, não foi alcançado.
Em 15 de fevereiro, um artigo do Wall
Street Journal constatou que, apesar da
convicção do VP e de seus aliados nor-
te-americanos de que “o regime do
presidente Nicolás Maduro entraria
em colapso logo que Washington co-
meçasse a privá-lo de seus apoios mili-
tares para apressar sua partida, as coi-
sas não seguiram esse caminho”.12

© Reuters / Marco Bello


Mais uma vez, a incapacidade da
oposição de chegar a um acordo sobre
uma estratégia de tomada do poder
colocou em segundo plano sua fraque-
za principal: o fracasso em propor um
projeto político coerente e capaz de
convencer a maioria dos cidadãos. En-
Juan Guaido, líder da oposição venezuelana que se autodeclarou presidente do paístodeclarou presidente do país quanto Maduro ainda consegue mobi-
lizar parte da população, a persistên-
cia das lógicas de clã na oposição
ção presidencial de 2012. O candidato ciar aos mandatos que exerceu após No mesmo ano, a MUD implodiu. compromete a busca de uma solução
adotara então um programa de centro- acusações de corrupção, tornou-se o Maduro acabava de criar a Assembleia pacífica para a crise atual.
-esquerda: promover a iniciativa priva- opositor mais temido do campo cha- Nacional Constituinte (ANC) para
da e levar em conta as questões sociais. vista, elevado à categoria de herói nas contornar o órgão legislativo tradicio- *Julia Buxton é professora de Política Com-
A evolução não teve nada de anedótico alas mais radicais da oposição. Esse nal, nas mãos da oposição, cuja legiti- parada da Universidade Centro-Europeia de
para alguns membros da oposição que status lhe rendeu as humilhações do midade ele contestava sob o pretexto Budapeste, Hungria.
anteriormente tinham pleiteado a per- poder e uma pena de prisão. Em tal de suspeitas de compra de votos que
da de peso de um Estado considerado contexto, Capriles representava aos pesavam sobre três deputados do esta-
1 “Open letter by over 70 scholars and experts con-
obeso, o retorno a uma economia de olhos dos mais desenfreados nada do do Amazonas. A ANC não foi reco- demns US-backed coup attempt in Venezuela”
mercado e a privatização da economia, mais que um melro um pouco insípido nhecida nem pelos Estados Unidos [Carta aberta de mais de setenta acadêmicos e
aí incluído o setor petrolífero. Enquanto comparado ao tordo López. Uma nova nem pela Organização dos Estados especialistas condena tentativa de golpe apoiada
pelos Estados Unidos na Venezuela], 24 jan. 2019.
os radicais falavam apenas de proces- convergência de entendimento, no en- Americanos (OEA). A situação parecia Disponível em: <opendemocracy.net>.
sos judiciais contra membros do gover- tanto, logo permitiria unir as duas po- favorável às alas radicais, que extraem 2 Michael Selby-Green, “Venezuela crisis: Former
no, Capriles enfatizava a reconciliação e sições opostas, sob a forma de uma fu- grande parte de seu apoio do exterior. UN rapporteur says US sanctions are killing citi-
zens” [Crise na Venezuela: ex-relator da ONU diz
a unidade nacional. são das estratégias: uma insurreição Mas cinco governadores eleitos sob a que as sanções dos EUA estão matando cida-
apoiada na reivindicação de um pro- bandeira da MUD finalmente presta- dãos], The Independent, Londres, 26 jan. 2019.
“BUCHA DE CANHÃO” cesso eleitoral. ram juramento diante da nova assem- 3 Ler Renaud Lambert, “Venezuela, les raisons du
chaos” [Venezuela, as razões do caos], Le Monde
Em 2012, Chávez venceu com facili- Nas eleições legislativas de 2015, a bleia. Mais uma vez, apareceram as Diplomatique, dez. 2016.
dade, com uma margem de 11%, mas MUD ganhou com 56% dos votos, ob- fraturas na oposição. 4 Kejal Vyas, “China holds talks with Venezuelan
sua morte em 2013 precipitou outra tendo a maioria dos assentos. Mas, se As fileiras dos partidários da via opposition on debt, oil projects” [China mantém
conversações com a oposição venezuelana sobre
eleição, que Capriles perdeu por ape- por um lado os membros da coalizão eleitoral aumentaram com o reforço dívida, projetos de petróleo], The Wall Street Jour-
nas 0,7% contra Maduro. Essa sucessão entraram em acordo sobre a necessi- dos chavistas – às vezes ex-ministros nal, Nova York, 12 fev. 2019.
de fracassos, no entanto, fortaleceu o dade de chegar ao poder, por outro eles do presidente desaparecido – e, mais 5 Ler Alexander Main, “Au Venezuela, la tentation du
coup de force” [Na Venezuela, a tentação do gol-
domínio dos radicais. Novamente, Ca- não elaboraram nenhum plano para genericamente, de militantes socialis- pe], Le Monde Diplomatique, abr. 2014.
priles mergulhou na sombra de López quando estivessem lá. Além de seu de- tas que a corrupção, o autoritarismo e 6 “Lineamentos para el programa de gobierno de
na esteira de disputas de tal forma vio- sejo declarado de derrubar Maduro o caos econômico levaram à ruptura. unidad nacional (2013-2019)” [Diretrizes para o
programa de governo da unidade nacional (2013-
lentas que a revista Foreign Policy acre- “dentro de seis meses”, suas reivindi- Na eleição presidencial de maio de 2019)], MUD, Caracas, 23 jan. 2012.
dita que elas despertaram na mídia “a cações se resumiam à libertação de 2018, eles apoiaram a candidatura de 7 Roberto Lovato, “The making of Leopoldo López”
mesma excitação que as séries nacio- “prisioneiros políticos” – em particu- Henri Falcón. Este sofreu as mais for- [A construção de Leopoldo López], Foreign Policy,
Washington, DC, 27 jul. 2015.
nais água com açúcar da televisão”.7 lar López – e à suspensão de alguns tes críticas até dentro da oposição: 8 Idem.
Descrito por um telegrama do De- dos programas sociais mais populares María Corina Machado descreveu seu 9 Yesibeth Rincón, “Crecen los ‘ni ni’ ante falta de
partamento de Estado norte-america- do país. Em um contexto de caos eco- esforço de conciliação como “repug- soluciones a crisis” [Crescem os “nem nem” diante
da falta de soluções para a crise], Panorama, Ma-
no em 2011 como “pronto a aguçar di- nômico, escassez e insegurança de- nante e indigno”.10 Maduro o venceu racaibo, 2 jan. 2017.
visões”, “arrogante, vingativo e faminto senfreada, as prioridades dos parla- com 68% dos votos e uma participação 10 Orlando Avendaño, “Machado sobre candidatura
por poder”, mas dotado “de uma popu- mentares de novo não foram ao raquítica de 46%. O novo fracasso dos de Henri Falcón en presidenciales de Maduro: ‘Es
repulsiva e indignante’” [Machado sobre candida-
laridade a toda prova, de carisma e de encontro daquelas da população. Ao moderados deixou inebriados os radi- tura de Henri Falcón nas presidenciais de Maduro:
talento para a organização”,8 López se longo desse período, as pesquisas de cais, na primeira fila dos quais está um “É repugnante e ultrajante”], PanAm Post, 5 mar.
juntou ao partido Um Novo Tempo opinião atestaram a ascensão em po- certo Juan Guaidó. 2018. Disponível em: <espanampost.com>.
11 “Quién es el enemigo de la Asamblea Nacional?”
(UNT), outra divisão do AD formada der dos “nem nem”, isto é, daqueles A autoridade deste último na nebu- [Quem é o inimigo da Assembleia Nacional?], 13
em 1999, que se dedicou sobretudo a que rejeitam tanto o poder madurista losa da oposição permanece, no en- jan. 2019. Disponível em: <henriquecapriles.
soprar as brasas das mobilizações es- quanto a oposição. Segundo as pes- tanto, frágil. Poucos dias antes do dis- com>.
12 David Luhnow e Juan Forero, “Risk of stalemate
tudantis do final dos anos 2000. Ele quisas, esse grupo representava quase curso em que se autoproclamou mounts in Venezuela” [Risco de impasse cresce na
fundou o VP em 2009. Forçado a renun- metade da população em 2017.9 presidente, Capriles denunciou as ten- Venezuela], The Wall Street Journal, 15 fev. 2019.
18 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

SEGURANÇA PÚBLICA

O pacote de Moro nasce velho


Moro sugeriu que juízes possam extinguir penas de policiais que alegarem que mataram por estarem submetidos
a “violenta emoção, escusável medo ou surpresa”. Pergunto: se o cabo que matou Hélio justificasse que atirou porque
se sentiu surpreendido, seria justo que ele não fosse responsabilizado?
POR MARCELO FREIXO*

á havia anoitecido quando Jho- agentes sob o argumento de combater

J nata Alves, de 16 anos, saiu da


casa do tio, no Morro do Borel,
na Tijuca, para voltar para a Usi-
na, na zona norte carioca, onde vivia
com a mãe e os quatro irmãos. Ele fora
a criminalidade. É uma contradição
horrenda. O argumento prático pode
ser assim resumido: se a violência po-
licial resolvesse, o Brasil seria o país
mais pacífico do mundo.
buscar saquinhos de pipoca para a fes- Os problemas relativos à legítima
ta junina da creche do caçula, que defesa não se restringem às ações poli-
aconteceria no dia seguinte. Mas Jho- ciais. A proposta prevê que os mesmos
nata nem sequer conseguiu sair da fa- argumentos valham para civis. Faça-
vela. Quando descia o morro, foi assas- mos um exercício de fabulação. Imagi-
sinado com um tiro de pistola na ne um jovem de família humilde, mo-
cabeça disparado por um PM da UPP rador de uma cidadezinha do interior
do Borel. O policial teria confundido os do país. Nesse mesmo município vive
pacotes de pipoca com drogas. O crime um próspero fazendeiro. E, sempre
ocorreu no dia 30 de junho de 2016. que passa pelo farto pomar do latifun-
História semelhante se repetiu dois diário, nosso protagonista lança os
anos depois, em 17 de setembro de olhos compridos para as árvores car-
2018, no Morro do Chapéu Mangueira, regadas de tangerinas. De vez em

© Daniel Kondo
favela da zona sul do Rio. O garçom quando, ele pula a cerca e pega algu-
Rodrigo Serrano foi assassinado a tiros mas frutas. Revoltado, o fazendeiro
por um PM que confundiu o guarda- um dia dispara e mata o rapaz. Caso a
-chuva que ele carregava com um fu- proposta de Moro estivesse valendo, o
zil. A execução de Rodrigo lembra a assassino poderia alegar que agiu sob
morte do supervisor de supermercado “violenta emoção” e não ser punido.
Hélio Ribeiro, de 47 anos, assassinado agentes de segurança pública não se- mos a responsabilidade do Judiciário, À exceção do desfecho trágico, o re-
no Andaraí no dia 19 de maio de 2010 jam responsabilizados por homicídios que entre 2005 e 2007 arquivou 99,2% lato é inspirado em fatos. Matéria da
por um cabo do Batalhão de Opera- cometidos sob argumentos tão subjeti- dos processos sobre homicídios ocor- BBC News Brasil de 16 de janeiro de
ções Especiais (Bope) enquanto insta- vos certamente nos levará a uma situa- ridos em operações, segundo pesquisa 2019 contou a história do período em
lava um toldo na laje de sua casa. O po- ção nefasta: mais acobertamento de do sociólogo Michel Misse. que as famílias Bolsonaro e Paiva, do
licial achou que a furadeira que Hélio execuções, impunidade e aumento da Discursos populistas e modifica- deputado Rubens Paiva, desaparecido
segurava era uma metralhadora. violência policial. Foi o que aconteceu ções legais que incentivam maior vio- durante a ditadura militar, conviveram
O pacote apresentado pelo minis- no Rio de Janeiro, no governo Marcello lência policial não valorizam a polícia em Eldorado Paulista, em São Paulo. O
tro da Justiça, Sérgio Moro, com medi- Alencar (1995-1999), com a chamada nem seus profissionais. Eles fazem jovem que surrupiava tangerinas era
das para supostamente enfrentar a gratificação faroeste: policiais eram apenas que trabalhadores da seguran- Bolsonaro. E o fazendeiro, o patriarca
violência me fez recordar as histórias premiados por bravura, o que levou ça se lancem numa guerra insana, ma- Jaime Paiva, que chegou a escalar um
de Hélio, Jhonata e Rodrigo. Isso por- agentes a matar e a morrer mais, sem tando mais e morrendo mais, porque vigilante para desencorajar os meni-
que, ao abordar a legítima defesa, Mo- que isso reduzisse a criminalidade. na guerra é matar ou morrer. E, no nos. Se o jovem Bolsonaro tivesse sido
ro sugeriu que juízes possam extinguir Moro tem dito que o pacote estabe- nosso caso, não há nem haverá vence- atacado pelo fazendeiro, que benefí-
penas de policiais que alegarem que lece segurança jurídica ao definir as dores, muito menos avanços na dimi- cios isso traria à segurança? Nenhum.
mataram por estarem submetidos a circunstâncias em que o policial pode nuição da criminalidade. Outro exemplo. Pensemos numa
“violenta emoção, escusável medo ou agir. Não é verdade, pois se trata, no Segundo o Anuário Brasileiro de mulher que é frequentemente agredi-
surpresa”. fim das contas, de segurança jurídica Segurança Pública, em 2017 a polícia da pelo marido, mas nunca registrou o
Pergunto: se o cabo que matou Hé- para a prática de execuções. Até por- matou catorze pessoas por dia em todo crime – ninguém sabe o que ocorre em
lio justificasse que atirou porque se que não existe vácuo legal em relação à o país, totalizando 5.144 homicídios – sua casa. Se num dia ela resolver reagir
sentiu surpreendido, seria justo que legítima defesa. A legislação atual pre- um aumento de 20% em relação a 2016. aos ataques e for morta pelo cônjuge, o
ele não fosse responsabilizado? Você vê que não há crime quando o policial No mesmo ano, 367 policiais foram as- homicida poderá alegar que agiu sob
concordaria que o PM que disparou à usa a força de maneira proporcional, sassinados, um por dia, em média. A “violenta emoção” e não ser punido.
queima-roupa contra Jhonata tivesse inclusive de forma letal, para proteger polícia matou e morreu muito, e isso No que se refere à segurança públi-
sua pena extinta caso dissesse que a própria vida ou a de outra pessoa. não teve nenhum efeito sobre a redu- ca, Moro comete o erro elementar de
agiu sob “violenta emoção”? Ou que o Ao contrário do que dá a entender a ção da violência, como demonstram os apostar em iniciativas que fracassa-
policial que confundiu o guarda-chu- proposta de Moro, não há perseguição dados gerais de homicídios de 2017, ram ao longo dos últimos anos e nos
va de Rodrigo com um fuzil não fosse a policiais que matam em serviço, e quando ocorreram 63.880 assassina- levaram ao descalabro que vivemos
punido porque alegou que naquele sim leniência do Ministério Público e tos, 3% a mais do que no ano anterior. hoje. Isso não ocorre somente em rela-
momento estava submetido a “escusá- do Poder Judiciário. Fui relator da CPI Existem duas questões, uma de ção à medida que abre brechas para o
vel medo”? dos Autos de Resistência na Assem- fundo ético e outra de fundo prático. agravamento da violência policial. O
Medidas como essa não diminuirão bleia Legislativa do Rio de Janeiro Do ponto de vista da ética, o Estado ministro propôs modificações legais
a violência. Pelo contrário. Permitir que (Alerj), encerrada em 2016. Ali, indica- não pode encobrir crimes de seus para, em suma, prender mais e soltar
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 19

menos. A consequência dessa escolha frentamento ao crime organizado: pe- facilita-se que mais pessoas adquiram
é óbvia: o sistema prisional, que já é dimos o indiciamento de 226 pessoas; armas. Do outro, abre-se brecha jurídi-
caótico, vai explodir. E não é preciso possibilitamos a prisão dos chefes das ca para que assassinatos sejam enqua-
ser especialista em segurança para quadrilhas, entre eles deputados e ve- drados como legítima defesa.
concluir que o fato provocará efeito readores; apresentamos à União, ao Permitir que mais pessoas se ar-
contrário ao esperado: a violência ten- estado e ao município do Rio, bem co- mem pode até reduzir a sensação indi-
derá a aumentar por meio do fortale- mo aos três poderes, 58 propostas para vidual de insegurança, mas não dimi- O olhar da cidadania
cimento de facções criminosas cujas combatê-las de forma inteligente e efi- nuirá a violência. O decreto é tão
bases estão no sistema penitenciário. caz, mas pouco se avançou. demagógico e ineficaz quanto o estí-
O Comando Vermelho e o Primeiro Por que essa omissão? Talvez por- mulo à violência policial e ao encarce-
Comando da Capital (PCC) não surgi- que as milícias, que não são problema ramento em massa. Na prática, o pre-
ram e se organizaram nas ruas, mas exclusivo do Rio de Janeiro, interessem sidente Jair Bolsonaro está declarando
dentro das cadeias e graças à barbárie
dentro delas. Medidas que agravem a
a muita gente. Ao contrário do tráfico,
milícia é uma máfia bastante enfro-
a falência do Estado no trato do pro-
blema e repassando aos indivíduos, Na luta
superlotação tornarão a situação ain- nhada nas estruturas do Estado. Mili- que não têm nenhum preparo para tal,
da mais delicada. cianos conseguem transformar seu a responsabilidade de enfrentar o cri-
O país precisa discutir de maneira
menos populista o sistema prisional.
domínio territorial em capital eleito-
ral. Em outras palavras, o projeto das
me. Se policiais morrem aos montes ao
serem surpreendidos por bandidos, pela
Entulhar pessoas em masmorras e milícias é econômico e político. É o Es- que será dos cidadãos comuns?
submetê-las a maus-tratos em celas tado leiloado. As quadrilhas ajudam a Presidi a CPI do Tráfico de Armas e
superlotadas pode satisfazer nossos eleger vereadores, deputados, prefei- Munições na Alerj em 2011. Constata-
sentimentos imediatos de vingança,
mas não nos ajuda a melhorar as con-
tos, senadores. Por isso, chama a aten-
ção que Moro trate o assunto de forma
mos à época que o problema maior
não está nas fronteiras, mas nas armas
construção
dições da segurança. Por uma razão tão ligeira, mesmo diante de tanta in- fabricadas no Brasil e que foram des-
muito simples: as prisões não são um formação produzida. viadas para a ilegalidade dentro do
mundo à parte da realidade; a violên-
cia dentro delas alimenta a violência
Na realidade, o pacote não é sobre
segurança pública, mas sobre o pro-
território fluminense – elas correspon-
deram a 82% das apreensões entre
de uma
nas ruas. Não se reduz a criminalidade cesso e a execução penal, que, apesar 2000 e 2010. Assim, ampliar a circula-
simplesmente encarcerando em mas- de serem assuntos correlatos, estão ção de armamentos significa também
sa. Vejamos os dados: entre 1990 e
2016, a população penitenciária cres-
longe de dar conta da complexidade do
problema. Não há uma linha, por
fortalecer o mercado clandestino que
alimenta a violência, diminuindo in-
sociedade
ceu 707%, chegando a 726 mil. A cri- exemplo, sobre o que fazer para me- clusive o preço, já que aumenta a ofer-
minalidade diminuiu? Meu argumen- lhorar o setor de inteligência das polí- ta. Moro também se omite sobre isso.
to não é só humanitário, ele também é
fruto de uma preocupação prática
cias, algo fundamental para reverter-
mos a baixíssima taxa de elucidação
Sabemos que o poder público não
tem conseguido apresentar soluções
mais justa,
com a eficácia do sistema. Os presídios de crimes contra a vida. O jornal O reais para o crescimento da criminali-
brasileiros são lugares caros para tor- Globo publicou em 18 de fevereiro que dade. Mas não podemos deixar que
nar as pessoas piores.
Evidentemente, criminosos que re-
apenas 0,5% da verba de segurança
nos estados e no Distrito Federal foi in-
nossa angústia, por mais compreensí-
vel que seja, nos leve a namorar medi- solidária e
presentam riscos à vida das pessoas vestida em inteligência. No governo fe- das populistas num salvacionismo ilu-
precisam ter a liberdade restringida. deral, o volume foi de apenas 9%, em sório de recrudescimento da ação
Mas esse não é o perfil majoritário da
população carcerária, até porque a ta-
média, nos últimos cinco anos. Moro
ignorou essa questão.
policial, endurecimento penal, facili-
tação do acesso a armas e extinção de sustentável.
xa de homicídios elucidados no Brasil O ministro também passou longe garantias constitucionais. Precisamos
é baixíssima. Segundo o Levantamen- das urgentes melhorias nas condições de mais diálogo e políticas responsá-
to Nacional de Informações Peniten- de trabalho dos agentes de segurança veis. Afinal, existem propostas concre-
ciárias (Infopen) de junho de 2016, pu- e do aprimoramento das instituições tas a serem discutidas, algumas delas
blicado pelo Ministério da Justiça, policiais: treinamento adequado; va- apresentadas aqui.
crimes contra a vida, como homicídio lorização da carreira e dos salários pa- Infelizmente, Moro elaborou esse
e latrocínio, correspondem a 14% dos ra que os trabalhadores não precisem pacote sem nenhum debate anterior e Quartas, às 17h,
detentos. Além disso, em 2017 havia recorrer a bicos, algo que está na ori- permanece resistindo a conversar Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
247,8 mil pessoas presas sem julga- gem das milícias; promoção da saúde com pessoas e entidades que acumu-
Ribeirão Preto: 107,9 FM)
mento definitivo, o que equivale a 37% no trabalho, principalmente no que se lam experiência sobre o tema e muito
da população carcerária. refere à saúde mental por causa dos al- poderiam contribuir. Sem a abertura
Além de apostar no que fracassou, tos níveis de estresse; revisão das jor- ao diálogo e a viabilização da partici- Quartas, à meia-noite
Moro se omite sobre a ausência de po- nadas de trabalho extenuantes, essen- pação da sociedade, não conseguire-
TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
líticas de ressocialização, como se não cialmente dos praças, para que eles mos avançar, principalmente num
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
fossem centrais para a segurança pú- tenham mais tempo para a família e o Congresso dominado pelo lobby da in-
blica. De acordo com o mesmo In- lazer; integração das polícias esta- dústria das armas. A bancada da bala
fopen, apenas 12% dos detentos brasi- duais e federal; definição dos papéis não tem nenhum compromisso com a
leiros estudam e somente 15% de cada ente federativo no trato da se- redução da violência – nela prevalece
trabalham. Ao passar ao largo desse gurança pública – como viabilizar o somente a lógica econômica em detri-
problema, o pacote mostra que a polí- cumprimento das responsabilidades mento da vida das pessoas, inclusive
tica para o sistema prisional continua dos municípios, do estados e da União, dos policiais lançados à guerra e dos
observatorio3setor
sendo não ter política alguma. como manda a Constituição? Esses cidadãos mais angustiados e propen-
O ministro também se equivoca ao desafios receberam de Moro somente sos a acreditar em ilusões armadas. Se
tratar as milícias de maneira superfi- o silêncio. aprovadas como estão, as propostas
cial, assemelhando-as ao narcotráfico. Esta análise não poderia deixar de do ministro para a segurança pública observatorio3setor
Não se enfrentam milicianos e trafi- fora a relação das propostas do ministro agravarão ainda mais nosso drama.
cantes com as mesmas estratégias. com o decreto presidencial que na prá-
Presidi a CPI das Milícias na Alerj em tica liberou a posse de armas de fogo. A *Marcelo Freixo é professor de História e www. observatorio3setor.org.br
2008. O trabalho foi um marco no en- combinação é explosiva. De um lado, deputado federal (Psol-RJ).
20 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE

Políticas da morte e seus fantasmas


As economias e as dinâmicas de massacre concreto e simbólico que atravessam o mundo contemporâneo e, de modo muito
especial, o contexto brasileiro deixam em seu rastro muitos corpos insepultos e uma esteira de silêncios e apagamentos de
variadas ordens. Confira o segundo artigo do dossiê “Estado de choque”, série de seis análises que publicaremos até julho de 2019
POR ADRIANA VIANNA*

Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chama- aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios
dos simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de con-
paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder flitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente
político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobili- dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que
zam técnicas de fazer sumir, parte integrante de uma ampla maquinaria de produção de marcam as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por
direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.

[...] os que sabem é importante notar que ele não cobre ganham a singularização do rosto de gue que deixam nas paredes enchar-
o que aqui se passou ou extingue tudo o que foi visto, sabido menino em camisa escolar, como no cadas da casa ou nos caminhos por
devem dar lugar àqueles e experimentado. caso de Marcus Vinícius, assassinado onde desceram; há os registros buro-
que pouco sabem, As economias e as dinâmicas de na Maré em 2018. A presença de sua cráticos que buscam desencarná-los e
ou menos que pouco. massacre concreto e simbólico que mãe, Bruna Silva, segurando a camisa há as categorias discursivas que tin-
E por fim nada mais que nada [...] atravessam o mundo contemporâneo escolar suja de sangue rompeu a invisi- gem as posições e perspectivas políti-
Wisława Szymborska, e, de modo muito especial, o contexto bilização que cobriu todos aqueles que, cas dos que as escolhem. Nunca é rápi-
“Fim e começo”, Poemas, brasileiro deixam em seu rastro muitos ao contrário do menino que seguia pa- do ou simples fazer que a guerra seja
Companhia das Letras. corpos insepultos e uma esteira de si- ra a escola, podiam permanecer no esquecida e se possa deitar no chão
São Paulo, 2011. lêncios e apagamentos de variadas or- campo dos “suspeitos” ou possíveis com o capim entre os dentes, como no
dens. Como argumenta Vera Telles no “envolvidos”. Assim como Bruna, tan- verso final do poema de Szymborska.
primeiro artigo deste dossiê, vivemos tas outras mães, Dalva, Ana, Debora, As operações em torno do dizer ou
esquecimento, como nos diz o “sob a égide das obsessões securitárias Edna, Ana Paula, Fátima, Fatinha, Vera não dizer, do recordar ou do esquecer

O poema de Szymborska, é maté-


ria não apenas do trabalho do
tempo, mas também das mãos
que removem os entulhos que ficaram
no meio do caminho como marcas físi-
e da lógica bélica e militarizada de ges-
tão das populações indesejadas”.1 Nes-
se quadro, os mortos continuamente
borrados sob a capa da irrealização
que termos como “traficante” ou “ter-
e muitas mais, vêm carregando as fotos
de seus filhos para as ruas e para den-
tro das malhas do Estado, buscando
romper o apagamento dessas mortes e
dessas vidas. Basta, porém, confron-
não são exatamente binárias, porém.
Elipses, alegorias, gestos, ambivalên-
cias e silêncios de grande capacidade
expressiva inscrevem-se nos mean-
dros das coisas que parecem findas,
cas da guerra: vigas a serem erguidas, rorista” produzem são figuras parado- tarmos as estatísticas para perceber- mas que talvez nunca o sejam. Acom-
portas que precisam ser postas em xais da hipervisibilização e do apaga- mos que se trata de um percentual panhando há alguns anos redes mili-
seus caixilhos, vidros estraçalhados a mento. Seguem sem nomes, apenas muito pequeno diante daqueles que tantes de familiares de pessoas mortas
serem repostos. Em meio a tantas tare- como “suspeitos”, tornados indistintos seguem anônimos. por forças policiais, vejo nas imagens
fas de refazer a vida ordinária – o var- em corpos racializados e territorializa- Em 2018, no Rio de Janeiro sob in- em torno da maternidade algo que su-
rer, o limpar, o cozinhar e o cozer – es- dos como negros, periféricos, favela- tervenção militar, foram registradas pera em muito o potencial de uma me-
tão também a remoção dos corpos e dos, estrangeiros. Sua singularização é oficialmente 1.532 mortes cometidas táfora. A dor no útero que não cessa, o
mesmo a abertura das vias para que impossibilitada não por qualquer se- por policiais. Este ano de 2019 mal co- cheiro de menstruação que acompa-
por elas passem os caminhões que os melhança de fato entre eles, mas por meçou e os números seguem impres- nhou a mãe todo o dia antes de saber
levam. E, mais que tudo, o sepulta- estar assentada nas imagens espec- sionantes: cento e sessenta mortos da morte do filho, a ligação espiritual
mento não só de corpos, mas de seus trais que os contornam: o selvagem, o apenas no mês de janeiro,4 incluindo a que não se rompe porque a carne cha-
vestígios e mesmo de suas lembranças. outro incivilizado, o bárbaro. Como brutal execução de quinze pessoas no ma, o sangue puxa e a condição mater-
Limpar, polir, deixar de falar. Substi- lembra Fanon, são aqueles que habi- Morro do Fallet, sendo dez delas em na se faz perene. É no corpo e por meio
tuir a narrativa por gestos e reticências tam a cidade do colonizado, espaço on- uma mesma casa. Se movimentos so- do corpo que circula esse vínculo que
que, ao mesmo tempo que lembram, de vivem e morrem não se sabe como.2 ciais se empenham em denunciar e a morte não desfaz e que, sobretudo, o
parecem querer afastar a lembrança. Para combatê-los não deve haver evitar o apagamento dessas ações bru- soterramento estatal sob categorias
O fim e o começo que dão título ao economia material ou discursiva, uma tais sob o manto dos registros variados administrativas como “auto de resis-
poema não estão assegurados pelo ar- vez que é o próprio excesso que garante de “confronto”, um deputado recém- tência” e similares não consegue en-
mistício, mas são fruto desse trabalho o sucesso das tecnologias de terror co- -eleito – o mesmo que fez questão de se cerrar. Carne, espírito, memória e afe-
íntimo e coletivo de não lembrar, de lonial.3 Máscaras com imagens de ca- exibir rasgando a placa em memória to criam uma copresença entre mortos
fazer esquecer, de deixar que o ruído veira; blindados que entram nos terri- da vereadora Marielle Franco – defen- e vivos que tem forte alcance político.
dos dias e o passar das gerações pro- tórios favelados anunciando que de a homenagem aos policiais encar- É por essa copresença que são cos-
duza o fim em meio a novos começos. vieram buscar almas; rastros de san- regados da ação. Afinado a ele, o gover- turadas memórias privadas e espaço
Se o silenciar pode ser condição fun- gue que têm de ser lavados por vizi- nador do estado, Wilson Witzel, público, produzindo ruídos no silên-
damental de refazer tanto a vida cole- nhos. Tiros que vêm às centenas do declarou de imediato que a ação poli- cio que cerca suas mortes. As mães
tiva quanto as vidas individuais, pro- céu, dos blindados aéreos que ceifam cial era legítima. Há muitos corpos a apresentam-se como figuras do trau-
tegendo não só os corpos, mas também vidas que permanecem anônimas em serem removidos e há também dispu- ma político, marcadas pelo que a an-
os laços de afeto e a própria sanidade, sua maioria e que às vezes, só às vezes, ta em torno de suas marcas. Há o san- tropóloga Grace Cho denomina de
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 21

“perda da perda”.5 A impossibilidade do”, “terrorista” ou mesmo “suspeito” pela qual jamais tiveram quaisquer es-
de realizar plenamente o trabalho do – termos que parecem descrever algo crúpulos em fazer, por nada, verter seu
luto soma-se à ruptura brutal com o que em verdade encobrem, que simu- sangue”.8 Se seguirmos esse raciocí-
futuro imaginado, acalentado, confi- lam dizer enquanto impedem que se nio, a ruptura da placa como “restau-
gurando um trauma que, ainda se- diga. Que falam de corpos negros, de ração da ordem” não deixa de fazer
gundo Cho, não se localiza apenas no territórios de favela, de uma ordem de parte de uma batalha por meio dos
passado, mas se movimenta também controle da riqueza e do poder atraves- mortos e, mais que isso, por meio da
em direção ao futuro, sendo transmi- sada pelas punições corporais. Um busca por ressuscitar alguns mortos e
tido transgeracionalmente e espraian- mundo em que a disciplina do traba- sepultar definitivamente outros. Ou,
do-se, portanto, para circuitos maio- lho nunca esteve desembaraçada nem indo além, de uma batalha pela opor-
res. Não poucas vezes ouvi, seja em do suplício – as surras públicas, as hu- tunidade de festejar a matança como
falas públicas, seja em falas mais ínti- milhações – nem do controle domésti- parte central de nossa matriz colonial
mas, essas mulheres contarem não só co e discricionário. de dominação, controle e acumulação
dos filhos mortos, mas também dos Talvez uma das coisas mais ator- de poder.
netos que não chegariam a ter. Esse fu- doantes no Brasil hoje seja justamente Recentemente, já em 2019, soube-
turo perdido segue com elas, corre lidar com a equação ética e estética -se que o deputado exibia metade da
misturado ao presente, inscreve-se no que se alardeia sem pudores em torno placa rompida em seu gabinete na As-
cotidiano como uma espécie de devir desses tropos coloniais que tão pro- sembleia Legislativa estadual. Como
ao avesso. São aniversários que se acu- fundamente nos conformam enquan- troféu ou, mais precisamente, como
mulam e idades que se cumprem sem to sociedade. O gozo com o suplício, a fetiche, ela ali condensava camadas de
serem cumpridas de fato. Mas são defesa estridente da execução sumá- sentido, saturava-os pela exibição
também outras datas que se amon- ria, a vociferação do desejo de “banir” exaustiva, pelo excesso, pela obsceni-
toam: das audiências realizadas e não as diferenças indesejadas mostram- dade. Mas os sentidos, como os fantas-
realizadas, dos julgamentos que raras -nos que há uma aposta cênica de mas, não se deixam aprisionar tão fa-
vezes chegam, das mortes de outros grande rentabilidade política que en- cilmente. Em resposta à placa rasgada,
meninos que trazem de volta ao corpo volve diretamente os modos como li- foram feitas e distribuídas na mesma
as mesmas sensações de quando eles, damos coletivamente com vida e mor- praça (que segue não sendo chamada
os seus, se foram. te ou, para ser mais precisa, com vivos de Floriano), mais mil placas. O rosto
Essas presenças fantasmáticas não e mortos, e, consequentemente, com de Marielle permanece estampado em
devem ser pensadas apenas no âmbi- seus vestígios, marcas e presenças. muros, em silhuetas, projetado em
to das relações familiares ou dos afe- Em outubro de 2018, o deputado imagens, corporificado nas três mu-
tos diretos. Elas se inscrevem como que agora enaltece os policiais da lheres negras de sua mandatA que fo-
tecnologias de governo em territórios maior chacina em mais de uma década ram eleitas e em mais tantas e tantas
© Daniel Kondo

inteiros, passam por gerações, reen- no Rio de Janeiro protagonizava a já outras que a têm como referência. A
carnam nas novas mortes, nas chaci- mencionada cena de rasgar a placa em exacerbação do desejo pela morte co-
nas, nas imagens replicadas que não homenagem a Marielle Franco. Repli- mo forma de governar territórios e po-
dão conta dos números chocantes que cada estratégica e exaustivamente em pulações negros, periféricos e favela-
configuram as estatísticas oficiais. Fa- diversas mídias, a fotografia encenava dos – a cidade do colonizado, o sertão,
zem-se presentes sob a forma de me- uma batalha política e estética com o “lá” – que transparece na legitima-
dos, cuidados, vergonhas e raivas que fortíssimas marcas de gênero, sexuali- ção das chacinas ou na “restauração”
conduzem os vivos em suas andanças dade, raça, classe e territorialidade. da ordem pode e deve ser entendida
pelo mundo. O silêncio em torno des- Carne, espírito, Vestindo camisetas com as imagens do como parte da geomancia colonial de
ses mortos é, em verdade, ensurdece- então candidato Jair Bolsonaro, os dois que fala Mbembe. São atos que se pre-
dor. Como no caso de tantas outras fi-
memória e afeto homens brancos sorriam triunfantes tendem divinatórios, imaginando ler
guras contemporâneas, sejam os criam uma com a placa rasgada nas mãos. Em seu nos sinais o mundo que, em verdade,
prisioneiros sujeitos à detenção inde- copresença entre apoio nos meios de comunicação veio buscam reencenar exaustivamente.
finida em Guantánamo ou os refugia- mortos e vivos que Flavio Bolsonaro, defendendo que sua Um chamado ao passado que se pre-
dos que não podem retornar nem se- atitude visava apenas “restaurar a or- tende futuro. Mas esse não é o único
guir em frente, esses vivos-matáveis
tem forte alcance dem”,6 trocando o nome da vereadora, mundo possível, da mesma forma que
existem em condição de irrealização político mulher negra, lésbica, favelada e de os mortos monumentalizados não são
contínua. Estão presentes e não estão. esquerda, covardemente assassinada os únicos que permeiam nosso mun-
São evocados de maneira espectral em 14 de março desse mesmo ano, pe- do. E os mortos, como os vivos, não pa-
quando se fala na necessidade de eli- lo que seria a placa original. A praça ram quietos.
miná-los, formando um corpo coleti- ção, a que envolve a impossibilidade voltaria, assim, a ser a Praça Floriano,
vo e sem rosto definido que se mate- de reconhecer que exista de fato perda homenageando o marechal Floriano *Adriana Vianna é professora do Programa
rializa de súbito naqueles que foram nessas vidas ceifadas. Essa natureza Peixoto, que permanece ali imobiliza- de Pós-Graduação em Antropologia Social
(ou devem ser) alvo de snipers e dro- ambígua de perda não perdida é o que do sob forma de estátua, mesmo que do Museu Nacional – UFRJ.
nes, em uma fantasia de tons simulta- garante sua presença espectral, como ninguém conheça por esse nome a fa-
neamente futuristas e nostálgicos. Ou algo que, mesmo que não descrito ple- mosa Cinelândia.
que, em uma evocação animalizante namente, está sempre presente e pres- Achille Mbembe, ao discorrer so- 1 Vera Telles, “A violência como forma de governo”,
e desumanizadora, devem ser “abati- tes a irromper quando uma cena pare- bre os monumentos coloniais, propõe Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2019.
2 Frantz Fanon, Os condenados da terra, Editora da
dos”, ou, ainda, que caem sufocados ce puxar outra mais subterrânea. O que estes pertencem a um “duplo uni- UFJF, Juiz de Fora, 2005.
por seguranças terceirizados na porta corpo sufocado no chão. O corpo ata- verso da necromancia e da geoman- 3 Michael Taussig, Xamanismo, colonialismo e o ho-
de um supermercado. Bandido bom é do ao poste e espancado. A mulher chi- cia”,7 estando, portanto, atravessados mem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura,
Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1993.
bandido morto, reza o bordão, mas sa- coteada pelo policial. Imagens que simultaneamente pela celebração 4 Dados do ISP – Instituto de Segurança Pública do
bemos que a necropolítica também guardam outras imagens em si, en- constante aos mortos e pela tentativa Rio de Janeiro, www.isp.rj.gov.br.
pode se tornar necrodestino na medi- capsulando e insinuando um longo de adivinhação do futuro por meio das 5 Grace Cho, Haunting the Korean Diaspora. Sha-
me, secrecy and the forgotten war [Assombrando
da em que é sua morte que os produz rastro de relações historicamente marcas que deixam na terra. Diz-nos a diáspora coreana. Vergonha, segredo e a guerra
inequivocamente como bandidos. construídas de dominação. Uma vez ainda que “essas estátuas funcionam esquecida], University of Minnesota Press, 2008.
A natureza do silêncio que os cerca mais, sugiro que pensemos na força como ritos de evocação dos defuntos, 6 Exame, 4 out. 2018.
7 Achille Mbembe, Crítica da razão negra, N-1 Edi-
não está na falta de informações ou produtiva e ao mesmo tempo críptica aos olhos dos quais a humanidade ne- ções, 2018, p.226.
notícias, mas em outro tipo de interdi- de termos como “traficante”, “envolvi- gra nunca contou para nada – razão 8 Ibidem, p.227.
22 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

200 MILHÕES DE GREVISTAS CONTRA NARENDRA MODI

Na Índia,
os “bons dias”
vão ter de esperar
Entre abril e maio, 850 milhões de indianos irão às
urnas escolher os membros da Câmara, que por sua vez
designará o próximo primeiro-ministro. Ninguém arrisca
qual será o impacto eleitoral das greves gerais que
sacudiram o país em janeiro, uma das mais poderosas
manifestações populares dos últimos anos
POR NAÏKÉ DESQUESNES*

© Daniel Kondo
nquanto o Bharatiya Janata sentava mais que 1,2% do PIB em 2018 putes Act), de 1947, também permite uma plataforma comum, e aqueles afi-

E Party (BJP), o partido naciona-


lista hindu no poder, busca re-
novar suas chances nas urnas na
primavera, as ruas não esperaram: em
8 e 9 de janeiro, em toda a Índia, entre
– e o da educação – 0,6% do PIB.2 O do
Programa de Assistência ao Emprego
Rural, o subsídio para cantinas escola-
res, que fornecia uma refeição grátis
para todas as crianças, planos de água
que fábricas que empregam até tre-
zentos funcionários decidam o fe-
chamento administrativo sem auto-
rização do governo (contra cem
funcionários anteriormente). “Agora,
liados a diversas forças comunistas
eram, como sempre, a maioria. Mas a
central social-democrata, o Congresso
Nacional Sindical Indiano (Intuc), foi
colocada em primeiro plano, apenas
150 milhões e 200 milhões de pessoas potável e missões para a alfabetização 86% da indústria está nessa condição para dar credibilidade como força de
deixaram o trabalho para sobrecarre- estão também em processo de corte. e pode, portanto, explorar livremente oposição ao Partido do Congresso, ao
gar as cidades com sua cólera. Ônibus Também estão sendo questionadas os trabalhadores graças a essa cláu- qual está ligado. Já a oposição comu-
nas garagens, bancos fechados, crian- as 44 leis nacionais sobre o trabalho, sula”, comenta Amarjeet Kaur, secre- nista – o PCI, o Partido Comunista In-
ças em idade escolar em férias força- que introduziram a semana de traba- tária-geral do Congresso dos Sindica- diano Marxista (PCI-M) e o Partido
das, rodovias bloqueadas, imagens do lho de 48 horas – oito horas de trabalho tos da Índia (Aituc), filiado ao Partido Comunista Indiano Marxista-Leninis-
primeiro-ministro queimadas: em to- por dia, um dia de descanso por sema- Comunista da Índia (PCI). Os contra- ta (PCI-ML) – não está preparada para
da parte, a economia foi perturbada. na – e a obrigação de uma autorização tos com duração determinada, antes forjar um movimento político comum
Dezenas de ativistas foram detidos pe- administrativa para as demissões eco- reservados à indústria têxtil, foram que representaria as aspirações dos
la polícia e trabalhadores foram grave- nômicas; um patamar de proteção ar- estendidos a todos os setores, em no- mais desfavorecidos: trabalhadores,
mente feridos, com fraturas expostas e rancado com muita luta no momento me da flexibilidade. mulheres, muçulmanos, populações
golpes na cabeça, particularmente no da independência, fruto de um com- E mais: a lei trabalhista diz respeito tribais, dalits.
estado do Rajastão. promisso com os empregadores e as apenas ao setor formal, ou seja, 7% da Enquanto isso, os intelectuais mili-
“Os bons dias estão chegando”, forças reformistas, e muito invejado população ativa, ele próprio com um tantes – estudantes, professores, jor-
proclamava em 2014 o slogan de cam- pelos vizinhos asiáticos. As leis serão índice de sindicalização de apenas nalistas etc. – sofrem pressões e pri-
panha de Narendra Modi, o atual pri- substituídas por quatro regras que re- 2%. Outros setores permanecem mui- sões. Um “macarthismo à moda
meiro-ministro. Cinco anos depois, os duzem os direitos dos empregados em to difíceis de organizar. No entanto, a indiana”, para retomar as palavras do
dias ruins não parecem prestes a ter- favor dos empregadores e entravam as greve de janeiro viu a convergência, escritor Anand Teltumbde, assediado
minar. É verdade que o crescimento, liberdades sindicais: tão logo seja vo- modesta, mas cada vez mais visível, do pela polícia.3 Muitos, inclusive na es-
de mais de 7%, permaneceu robusto, tada a Emenda 2018 à lei de 1926 (India setor público e do setor informal (tra- querda radical, esperam a vitória nas
dando origem a recentes cumprimen- Trade Union Act), as autoridades re- balhadores da construção civil, traba- eleições da primavera de uma coalizão
tos do FMI.1 Mas os números do de- gionais terão novos poderes de inge- lhadores domésticos, condutores de liderada pelo Partido do Congresso,
semprego são tão calamitosos que, rência nos sindicatos, tanto para seu riquixá e taxistas...). Sem mencionar símbolo de um neoliberalismo com
desde 2016, o Ministério do Trabalho reconhecimento oficial como em seus os camponeses e os empregados do se- uma face mais humana...
não divulga mais estatísticas. Jovens conflitos internos, os quais poderão tor agrícola.
migrantes vindos do campo estão in- arbitrar. Por exemplo, no Rajastão, que No entanto, essa ampla mobiliza- *Naïké Desquesnes é jornalista.
chando os centros urbanos, prontos serve como um laboratório para a polí- ção pode realmente ameaçar as forças
para aceitar tudo. Até quem tem diplo- tica do governo central, será preciso antissociais no comando do país? Na-
ma encontra dificuldade para conse- haver 30% de sindicalizados em uma da menos seguro que isso. A Índia está
guir emprego. Em 2018, a companhia empresa (contra 15% hoje) para que acostumada a grandes marchas sim- 1 “India’strong economy continues to lead global
growth” [A forte economia da Índia continua a lide-
ferroviária abriu 63 mil vagas – 19 mi- um sindicato possa ser reconhecido. bólicas e greves gerais; a de janeiro é a rar o crescimento global], FMI, Washington, DC, 8
lhões de pessoas se candidataram! terceira do quinquênio Modi, depois ago. 2018.
Modi iniciou a privatização do se- EFICIÊNCIA INCERTA das de setembro de 2016 e de setembro 2 Business Standard, Nova Déli, 4 fev. 2018.
3 Anand Teltumbde, “McCarthyism in Modi’s India”
tor ferroviário e dos bancos. Já cortou A “simplificação” da lei sobre os de 2015. Dessa vez, cerca de uma dúzia [Macarthismo na Índia de Modi], Jacobin, 23 out.
o orçamento da saúde – que não repre- conflitos na indústria (Industrial Dis- de sindicatos se reuniu em torno de 2018. Disponível em: <www.jacobinmag.com>.
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 23

PROTESTOS DOS BÁLCÃS À HUNGRIA

Revoltas na periferia da Europa


Desde 8 de dezembro, milhares de sérvios se manifestam todo fim de semana contra o regime de Aleksandar Vucic.
Na Albânia, estudantes fazem tremer o governo social-democrata de Edi Rama, enquanto a cólera aumenta na Hungria de
Viktor Orbán. Para além das diferenças nacionais, as populações da Europa Central se mobilizam contra as mesmas políticas
POR JEAN-ARNAULT DÉRENS E SIMON RICO*

Sérvia está oferecendo a si mes- lançando mão tanto da repressão quan- ajuda direta para cada trabalho criado viaram unidades policiais especiais

A ma uma nova primavera no in-


verno. Como em 1996-1997,
quando dezenas de milhares
de cidadãos protestaram contra o re-
gime de Slobodan Miloševic, os cor-
to do clientelismo.
“Esse movimento está reduzindo o
medo. Na Sérvia, as pessoas receiam
perder o emprego se criticarem o regi-
me... Essa é a capa de chumbo que está
em sua fábrica de Leskovac...2 Nessas
oficinas de mão de obra, que estão au-
mentando nos Bálcãs, a legislação tra-
balhista é geralmente desconhecida, a
flexibilidade é sistêmica e a renda real
para expulsar aqueles que ainda que-
riam colocar velas na neve. Há muito
apoiado pelos ocidentais, Dodik3 não
hesita em denunciar qualquer crítica a
seu poder como uma tentativa de “de-
tejos serpenteiam pelas ruas de Bel- rachando”, avalia a jornalista Jovana dos empregados dificilmente excede sestabilização” da entidade sérvia. A
grado todos os sábados. Surgido em 8 Gligorijevic, do semanário Vreme, um 200 a 300 euros por mês. estratégia é compartilhada pelos par-
de dezembro de 2018, o protesto con- dos últimos títulos da oposição. “Os Em dezembro, a Albânia experi- tidos nacionalistas bósnios e croatas:
tra a política autoritária e antissocial países da União Europeia, embora sai- mentou os maiores protestos estudan- todos entram em acordo para fomen-
do presidente Aleksandar Vucic agora bam muito bem como Vucic governa a tis desde a queda do comunismo. O tar crises permanentes, fazendo reinar
se estende a todas as cidades do país. Sérvia, pensam, no entanto, que ele é o aumento da mensalidade escolar, que um clima de medo cujo único propósi-
Em Belgrado, a longa coluna faz uma único capaz de garantir a estabilidade desencadeou essas reações, é conse- to é marginalizar qualquer protesto.
parada em frente à sede da Radiotele- do país e da região. Entendemos que quência de uma lei – adotada no ano Os cidadãos de todos os países dos
visão da Sérvia (RTS), símbolo do con- não podemos contar com o apoio de- anterior pelo governo social-democra- Bálcãs estão cansados dessa retórica
trole do poder sobre os meios de co- les.” Desse ponto de vista, a situação ta de Edi Rama e saudada pela União nacionalista e bélica. Desde o movi-
municação. Entre as reivindicações não é muito diferente daquela que pre- Europeia – que previa a colocação em mento dos plenums na Bósnia e Herze-
que unem o movimento: conseguir valecia em 1996: na época, logo após a concorrência das universidades e sua govina em 20144 até o início da não
“cinco minutos de tempo no jornal da assinatura dos Acordos de Paz de Day- abertura ao mercado. Rama, que che- concretizada “revolução das cores” na
RTS”... Os manifestantes também exi- ton, que em dezembro de 1995 haviam gou ao poder em 2013, só conhece uma Macedônia em 2016, a mesma aspira-
gem a verdade sobre o assassinato do colocado um fim à guerra na Bósnia e receita para “modernizar” a Albânia: a ção profunda é expressa em todos os
opositor sérvio do Kosovo, Oliver Iva- Herzegovina, Slobodan Miloševic tam- das parcerias público-privadas, fonte lugares: o fim da marginalização eco-
novic, morto em 16 de janeiro de 2018, bém contava com o apoio dos ociden- de enriquecimento rápido para um nômica e social na Europa e a possibi-
ou ainda sobre a renúncia do ministro tais. Estes esperam que Vucic resolva a círculo de empresários próximos do lidade de viver decentemente em seu
do Interior. questão do Kosovo, concluindo um Partido Socialista (PS). país. Porque o êxodo continua. Muitos
“Faz trinta anos que os cidadãos da acordo “histórico” com seu homólogo O descontentamento estudantil te- sonham em ir para a Europa Ociden-
Sérvia são forçados a tomar as ruas para de Pristina, Hashim Thaçi. O chefe de ve como alvo explicitamente essa mu- tal, mas têm de parar na Hungria, na
exigir liberdade e justiça. Este movi- Estado sérvio excede na arte de au- dança, rejeitando com o mesmo ímpe- Eslováquia ou na República Tcheca,
mento é nossa última chance, caso con- mentar as apostas com eles, mostran- to os dois partidos que se sucedem no países que se transformaram nos últi-
trário este país desaparecerá”, lançou do sua proximidade com a Rússia de poder desde a queda do regime comu- mos anos em periferias manufaturei-
no final de janeiro Branislav Trifunovic. Vladimir Putin, que ele recebeu com nista stalinista em 1991: o PS e seu “ir- ras, com a proliferação de fábricas ter-
O ator arregimenta a multidão no início grande pompa em meados de janeiro. mão inimigo” de direita, o Partido De- ceirizadas oferecendo aos empresários
de cada cortejo de Belgrado, acrescen- Vucic acelerou sobretudo a virada mocrata (PD). Após um quarto de ocidentais salários reduzidos e uma lei
tando um aviso severo aos líderes dos neoliberal da economia sérvia, des- século em que se denegriu tudo que trabalhista muito “flexível”... A revolta
partidos – divididos – da atual oposição mantelando a lei trabalhista desde era público, enquanto o setor privado contra essas políticas poderia muito
parlamentar, que, de resto, se mostram sua chegada aos negócios, em 2012, era adornado com todas as virtudes, bem se espalhar por toda essa região,
discretos. “As pessoas rejeitam todos os como vice-presidente do governo. muitos observadores viram no movi- cujos cidadãos não suportam mais ser
partidos que estiveram no poder, man- “Queremos viver em um país nor- mento estudantil o surgimento de vistos como europeus de segunda
chados por casos de corrupção”, reco- mal. Hoje, todo mundo busca o exílio uma geração “pós-transição”. Rama classe, destinados à exploração e con-
nhece Borko Stefanovic, chefe da Es- porque é impossível encontrar um em- teve de recuar, cedendo a várias rei- denados ao declínio.
querda da Sérvia (Levica Srbije), que prego ou iniciar um negócio sem ter a vindicações estudantis e demitindo
sofreu um ataque com barras de ferro, carteirinha do Partido Progressista”, ex- metade de seu governo em 28 de de- *Jean-Arnault Dérens e Simon Rico são
em 23 de novembro, o qual serviu como plica-nos um estudante de Belgrado, zembro de 2018. Enquanto a Albânia jornalistas no Courrier des Balkans.
estopim do movimento. com o colete amarelo do serviço de ma- não deixa de ver partir suas forças vi-
A rejeição vai ainda mais longe: os nutenção sobre os ombros. Como todos vas – os albaneses lideram os pedidos
1 Ler Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin, “Cet
vários partidos da oposição “democrá- os países balcânicos, a Sérvia é atingida de asilo na França –, os estudantes em exode qui dépeuple les Balkans” [O êxodo que
tica”, no poder nos anos 2000, levaram a por uma nova onda de emigração que revolta exigem poder viver e trabalhar despovoa os Bálcãs], Le Monde Diplomatique,
cabo políticas neoliberais semelhantes toma ares de êxodo.1 O governo da pri- em seu país. jun. 2018.
2 Cf. Nikola Radic, “Serbie: les Sud-Coréens de
àquelas seguidas por Vucic hoje. Oriun- meira-ministra Ana Brnabic continua a Na Republika Srpska, a “entidade Yura (re)délocalisent en Albanie [Sérvia: os sul-co-
do da extrema direita racista e belicista, alardear um crescimento em alta e a sérvia” de uma Bósnia e Herzegovina reanos de Yura transferem suas empresas (de
e que há uma década se converteu em criação líquida de empregos. Mas esses ainda dividida, milhares de pessoas novo) da Albânia], Le Courrier des Balkans, 26 set.
2018.
defensor da integração europeia, o novo resultados só são obtidos com muita rotineiramente desafiam o regime de 3 Presidente da Republika Srpska de 2010 a 2018,
senhor de Belgrado controla o país, ajuda pública a empresas estrangeiras, Milorad Dodik a exigir justiça e verda- Milorad Dodik foi eleito membro da presidência co-
apoiando-se em um círculo restrito de que captam esses incentivos antes de de para David Dragicevic, jovem as- legiada da Bósnia e Herzegovina em outubro de
2018, mas continua a ser o senhor indiscutível da
pessoas que lhe devem favores e são por partir para outros lugares. O exemplo sassinado em circunstâncias obscuras entidade sérvia, mesmo não mais exercendo um
ele protegidas. Despojados de qualquer mais recente: a empresa de cabos de na noite de 17 para 18 de março de mandato eletivo.
referência ideológica e ansiosos por en- energia sul-coreana Yura, que transfe- 2018. No final de dezembro, as autori- 4 Ler Jean-Arnault Dérens, “La Bosnie enfin unie...
contre les privatisations” [A Bósnia finalmente uni-
riquecer rapidamente, seus tenentes co- riu parte de sua produção para a Albâ- dades proibiram todas as reuniões, da... contra as privatizações], Le Monde Diplomati-
locaram o país sob um rígido controle, nia depois de receber 7 mil euros em prenderam dezenas de pessoas e en- que, mar. 2014.
24 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

AS ELITES DIANTE DOS “COLETES AMARELOS”

A filosofia do desprezo
Desde sua posse, o presidente francês, Emmanuel Macron, associou diversas vezes as classes populares
a um grupo de preguiçosos incultos e chorões. Assim, ele rompe com a duplicidade dos últimos chefes de
Estado em relação aos menos favorecidos: compreendê-los no discurso, mas negligenciar suas reivindicações,
e, sobretudo, ignorar a dominação estrutural de que são objeto
POR BERNARD PUDAL*

“J
e vous hais, compris?”:1 um dos
slogans escritos com caneta hi-
drográfica em muitos coletes
amarelos condensa em uma fór-
mula a atitude de Emmanuel Macron e
a célebre frase do general De Gaulle,
modelo exemplar do discurso duplo
dos políticos. Para além das múltiplas
reivindicações sociais e fiscais dos
“coletes amarelos”, se há uma cons-
tante, é sua convicção de que as “elites”
desconhecem suas condições de exis-
tência, seu modo de vida e, ainda por
cima, os desprezam. Nas rotatórias das
estradas em que os manifestantes se
reúnem, nos lembramos constante-
mente das “pequenas frases” com as
quais Macron revelou sua visão do “po-
vo” francês: trabalhadores “analfabe-
tos”, destinatários de contribuições so-
ciais que custam “uma grana alta”,
“preguiçosos”, “cínicos”, “extremistas”,
“pessoas que não são nada”, “basta
atravessar a rua para conseguir um
emprego” etc.

© Flavia Bomfim
À eterna pergunta “O que é o po-
vo?”, o presidente responde: “São
aqueles que se devem educar, até mes-
mo reeducar, aqueles que são refratá-
rios, que se devem guiar, aqueles que
se queixam em vez de tomarem conta tacionam de qualquer maneira ou não socialmente necessária à sua missão. têm de lidar. É prometer colocar um
de si mesmos e assumirem responsa- respeitam as medidas de segurança. E é essa filosofia do desprezo que os fim na “fratura social”, como fez Jac-
bilidade, aqueles que, com muita fre- Eles condenam práticas como o roubo “coletes amarelos” recusam. ques Chirac em seu tempo, ou abraçar
quência, ‘não são nada’”. (incluindo de eletrodomésticos em re- o ponto de vista daqueles que “só po-
Não saberíamos agradecer-lhe o feitórios ou de equipamentos), as brin- FALTA DE TRAQUEJO POLÍTICO dem contar consigo mesmos” – tão nu-
suficiente por ter expressado de forma cadeiras infantis (passar graxa na ma- A cristalização de um ressentimen- merosos nas classes populares que
tão grosseira a filosofia social do mun- çaneta das portas, encher capacetes to como o atual contra Macron resulta muitas vezes essa infelicidade é enca-
do a que ele pertence, do mundo em com água), a sujeira (nas pias e ba- em parte da fraqueza de seu capital rada como um “ponto de honra” –,
que ele se formou, uma filosofia social nheiros), a devassidão moral (a exibi- político. Ele foi eleito graças a uma comprometendo-se a apoiar seus es-
geralmente eufemizada ou reservada ção de fotografias eróticas nos banhei- combinação de circunstâncias: dois forços, à maneira de Nicolas Sarkozy,
aos círculos de seus pares. É essa mes- ros e a leitura de revistas pornográficas presidenciáveis, François Hollande e que isentou de imposto as horas extras
ma visão que Cédric Lomba, por nos refeitórios) e a imprevidência (a François Fillon, sem condições de ven- e não parava de elogiar aqueles que “se
exemplo, encontra em seu estudo das alta proporção de trabalhadores que cer; uma Frente Nacional no segundo levantam cedo”. “Sei que aconteceu de
fábricas de Cockerill, na Bélgica, sub- têm deduções por dívida na folha de turno que obrigou muita gente a votar eu magoar alguns de vocês com mi-
metidas por mais de trinta anos a su- pagamento).2 em Macron por falta de opção; uma nhas afirmações”, admitiu Macron.
cessivos planos sociais. Os gestores e Esses executivos “que falam mais abstenção maciça (10,5 milhões de Essa falta de traquejo político tam-
os engenheiros se opõem ali aos tra- que a boca”, como diz um trabalhador, pessoas no primeiro turno das elei- bém caracteriza muitos deputados do
balhadores que eles têm por missão têm todo o interesse em alimentar es- ções presidenciais; 24,5 milhões no partido no poder, A República em Mar-
dirigir, enviar para a pré-aposentado- sa visão uniformemente negativa dos primeiro turno das eleições legislati- cha (LRM). Como destacou Christophe
ria ou deslocar. Durante as reuniões operários como grupo social, evitando vas)... É um político sem traquejo polí- Le Digol, dos 521 candidatos do LRM
ou refeições, eles regularmente evo- o transtorno que poderia resultar de tico que chegou ao poder. nas eleições legislativas de 2017, 281
cam o arcaísmo dos trabalhadores, um entendimento mais realista. Qual- Ter traquejo político é, pelo menos, nunca haviam exercido um mandato.
sua intransigência, as paralisações de quer desejo de entender iria minar sua tentar “enquadrar” com uma retórica Todo o recurso de que dispunham era
trabalho por ninharias, sua agressivi- crença na legitimidade de sua partici- mais ou menos eficaz as humilhações um capital social que pouco os predis-
dade diante das reestruturações, mas pação ativa nas reestruturações in- sociais que se inflige, fingir simpatizar punha a compreender os “coletes ama-
também sua imaturidade e sua imora- dustriais. O desprezo e o mal-entendi- com o sofrimento dos mais pobres, relos”: eles pertenciam às categorias
lidade quando “gritam”, ameaçam, es- do condicionam, assim, a cegueira com as dificuldades com que muitos socioprofissionais mais elevadas, eram
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 25

líderes empresariais, exerciam uma escolar. Em vez de dissertar sobre as signer industrial”, por outro o apresen- loucos, os imigrantes, os doentes, os
atividade de consultoria...3 As discus- chamadas fraturas culturais que tava a seus conhecidos como “toneiro prisioneiros, os estrangeiros em nossa
sões entre “coletes amarelos” testemu- opõem graduados e não graduados, [sic] alguma coisa”. Esse torneiro-fre- casa, na casa deles, antes de sua pro-
nham sua forte percepção desse necro- trabalhadores braçais e não braçais, sador estava convencido de que nos fissão, durante sua vida, após sua apo-
tério social. Como a parlamentar Élise ou, em outras palavras, aqueles que se- Correios, quando as pessoas se diri- sentadoria. Esse louco sonho de hege-
Fajgeles, que não tem a menor ideia, riam “fechados” e aqueles que seriam giam a ele, elas “não o olhavam”...7 monia escolar é o fruto paradoxal da
nem mesmo aproximada, do valor do “abertos”, aqueles que teriam um espí- Uma das dimensões das culturas po- ‘revolução’ de maio de 1968, que dedi-
salário mínimo (CNews, 3 dez. 2018). rito crítico e aqueles que seriam priva- pulares reside nesse pensamento que cou a função de ensinar à limpeza dos
Ou a ativista pró-Macron que alegava dos dele, as vítimas da globalização e interpreta o tempo todo os mil signos, banheiros. A prostituta não está can-
que “não se pode morar em um univer- seus beneficiários, seria melhor levar detalhes ou anedotas, afirmações ou sada, como um moloch feminino que
so extraordinário, com o gramado, as em conta o que provoca essa época de atitudes corporais pelas quais, como se fortalece com armas viradas contra
montanhas, uma vista incrível, e ter “escolarização total”5 em um sistema na situação colonial, a “individualida- elas. A Alma Mater fortalece a ditadu-
um hospital ao lado e uma farmácia no escolar não apenas desigual, mas aci- de” lhe é negada. No entanto, nossa vi- ra dos peões”.9
térreo de casa”.4 Você tem o campo, ma de tudo dedicado à manutenção da da social multiplica situações em que Se por um lado é necessário se opor
não venha reclamar... Sem traquejo, ordem social. as classes populares estão em intera- ao assédio simbólico do qual são víti-
eles dizem o que pensam. ção desigual com outros grupos so- mas as classes populares tentando en-
De “classes perigosas” a “multidões ciais: na agência de emprego do gover- tender as racionalidades que determi-
furiosas”, de “maus pobres” a “escória”, no, na administração pública, nas nam suas visões de mundo e suas
de “desclassificados” a “marginais”, a Não importa o esforço relações com os professores de seus fi- práticas, de outro não se trata de forma
conceituação de desprezo pelas classes que os professores lhos, nas relações conflituosas com to- alguma de inventar um “povo” ideal,
populares tem uma longa história. Mas, dos aqueles que simbolizam para eles que simplesmente não existe. As clas-
se ela legitima aos olhos dos gestores, e possam fazer, o desgosto de suas práticas. ses populares, como tantos trabalhos
de muitos outros, suas múltiplas em- o mundo da escola recentes10 demonstraram, estão em
preitadas de reeducação e de enquadra- não poupa hoje em dia CLASSES POPULARES ENCURRALADAS plena reconfiguração e não formam de
mento, não é sem efeitos perversos. Ela os filhos das classes Essa percepção tem sido afirmada maneira alguma um bloco homogê-
os proíbe, em particular, de entender as e transformada há meio século, com a neo. No entanto, hoje como ontem, é
racionalidades que são a base do estilo populares generalização – inacabada, caótica e do trabalho político de representação11
de vida popular. Foi, aliás, a insensibili- segregacionista – do ensino médio e que resultarão as relações de força no
dade em relação ao lugar ocupado pelo superior, e com a crença cada vez mais seio das quais elas inscreverão seu fu-
carro no cotidiano de porções inteiras Não importa o esforço que os pro- compartilhada no desaparecimento turo, para pior ou para melhor.
das classes populares – insensibilidade fessores possam fazer, o mundo da es- das classes populares, quando na ver-
baseada em uma dupla incompetência, cola não poupa hoje em dia os filhos dade estas representam mais da meta- *Bernard Pudal é professor de Ciência Políti-
política e social – que foi sancionada pe- das classes populares, forçados a se de da população... O campo político, ca da Universidade Paris Ouest Nanterre La
la explosão do movimento dos “coletes submeter à ordem das legitimidades em todos os seus componentes, tem Défense. Autor, com Claude Pennetier, de Le
amarelos”. Multiplicação de radares, culturais e enviados, na sua falta, à sua ele próprio se estruturado cada vez Souffle d’Octobre 1917. Pourquoi ont-ils cru
velocidade limitada a 80 km/h, aumen- “miséria” moral e cultural. Uma das mais sobre essa negação, a ponto de au communisme? [O sopro de outubro de
to no preço da gasolina, imposto cha- dimensões da generalização da edu- que somente os membros das classes 1917. Por que eles acreditaram no comunis-
mado de “ecológico” sobre os combus- cação secundária e superior, um pro- altas e das classes médias intelectuais, mo?], Éditions de l’Atelier, Ivry-sur-Seine, 2017.
tíveis, controle técnico mais caro e mais cesso histórico de longo prazo que se e seus interesses, mesmo contraditó-
rigoroso, restrições ao diesel: ao reduzir acelerou consideravelmente desde os rios, estão agora ali representados, en-
1 “Eu os odeio, entendem?” – trocadilho com a fa-
a liberdade de deslocamento, foi toda anos 1980, não é outra senão a apren- quanto as classes populares são rele- mosa frase do general De Gaulle, “je vous ai com-
uma economia material, de lazer e de dizagem por muitos de sua indignida- gadas à inexistência. Essa orientação pris” [“eu entendi vocês”].
sociabilidade, especialmente nos cha- de. Foi isso que ressaltou Pierre Ber- foi até mesmo reivindicada em 2011, 2 Cédric Lomba, La Restructuration permanente de
la condition ouvrière. De Cockerill à ArcelorMittal
mados mundos rurais, que o poder in- gounioux, escritor de esquerda e em um relatório da Fundação Terra [A reestruturação permanente da condição de tra-
conscientemente perturbou. Tomadas professor universitário: “Em vez dos Nova que propunha à esquerda socia- balho. De Cockerill a ArcelorMittal], Le Croquant,
por um presidente arrogante e interpre- benefícios esperados, eles [os estudan- lista fazer o funeral de seu “povo”.8 O Vulaines-sur-Seine, 2018.
3 Christophe Le Digol, Gauche-Droite: la fin d’un
tadas por aqueles que foram afetados tes] tiraram disso lucros bastante me- Partido Comunista Francês (PCF), que clivage? Sociologie d’une révolution symbolique
como uma negação adicional de seu ser díocres e o sentimento de indignidade por muito tempo conseguira dignifi- [Esquerda-direita: o fim de uma divisão? Sociolo-
social, essas medidas dirigidas ao auto- que é sua modalidade subjetiva. A ex- car as classes populares, sobretudo “a” gia de uma revolução simbólica], Le Bord de l’Eau,
Lormont, 2018.
móvel liberaram uma raiva até então periência é hereditária. Quem quer classe operária, não consegue mais 4 “Le moment Meurice”, France Inter, 3 dez. 2018.
contida, ou não muito visível, que se que conclua o sexto ano, aos 11 anos de desempenhar esse papel. Entaladas 5 Joanie Cayouette-Remblière, L’École qui classe.
atualizou e cristalizou na rejeição, na idade, sem estar familiarizado com os entre um pensamento conservador 530 élèves du primaire au bac [A escola que clas-
sifica. 530 alunos da escola primária ao ensino mé-
exigência de renúncia de Macron. valores e as práticas da escola, é con- fiel à sua tradição e uma esquerda con- dio], Presses Universitaires de France, Paris, 2016.
Qualquer grupo social ergue fron- denado a ser lembrado todos os dias, vertida à doutrina econômica da direi- 6 Pierre Bergounioux, École: mission accomplie [Es-
teiras simbólicas para valorizar as qua- várias vezes ao dia, de sua insuficiên- ta, as classes populares não sabem a cola: missão cumprida], Les Prairies Ordinaires,
Paris, 2006.
lidades de que considera ser depositá- cia, de sua mediocridade”.6 Não se me- que santo recorrer. 7 Paul-Henry Chombart de Lauwe, Maurice Combe,
rio, para avaliar nessa medida os de provavelmente a que ponto o “fra- A extrema direita fascista finge Henri e Paule Ziegler (dir.), Nous, travailleurs licen-
comportamentos dos grupos dos quais casso escolar” pode humilhar, em abraçar esse ressentimento. O imi- ciés. Les effets traumatisants d’un licenciement
collectif [Nós, trabalhadores demitidos. Os efeitos
procura se diferenciar, acima ou abai- especial porque, como eliminação grante não é o único inimigo que ela traumáticos de uma demissão coletiva], 10/18, Pa-
xo, e interpretar a visão que estes últi- adiada ou mascaradas relegações es- oferece a ele como alimento. Os pro- ris, 1976.
mos têm dele. Desse ponto de vista, as calonadas, ele agora acompanha o fessores, os “jovens meio intelectuais, 8 Olivier Ferrand, Romain Prudente e Bruno Jeanbart,
“Gauche: quelle majorité électorale pour 2012?”
classes populares sofrem um tratamen- conjunto do percurso. meio de esquerda”, as “elites” (palavra [Esquerda: que maioria eleitoral para 2012?], Fun-
to convergente de todos aqueles que as Essa negação pode se infiltrar nas empregada com uma geometria variá- dação Terra Nova, Paris, 10 maio 2011.
tomam por “objeto”, na escola, no tra- situações mais cotidianas. Já nos anos vel), os ecologistas, os militantes sin- 9 Jean-Marie Le Pen, Mémoires. Fils de la nation
[Memórias. Filhos da nação], Muller Éditions,
balho, em seus lugares de residência, 1960, o sociólogo Paul-Henry Chom- dicalistas..., todos são igualmente ini- Paris, 2018.
em seu lazer, na vida social mais co- bart de Lauwe entrevistou trabalhado- migos que ela mira por meio de suas 10 Cf. Yasmine Siblot, Marie Cartier, Isabelle Coutant,
mum. Essa redução do outro popular res altamente qualificados que ha- diversas mobilizações. O ódio à esco- Olivier Masclet e Nicolas Renahy, Sociologie des
classes populaires contemporaines [Sociologia
ao status de “objeto ruim” estrutura o viam acabado de ser demitidos. Eles la, aliás, atinge picos nas Memórias de das classes populares contemporâneas], Armand
conjunto de nossa vida social. sentiram que não tinham nenhuma Jean-Marie Le Pen: “Depois de ter au- Colin, Paris, 2015.
Pierre Bourdieu sempre nos lem- importância. Um deles observou que mentado a idade e o nível das escolari- 11 Cf. Lorenzo Barrault-Stella e Bernard Pudal, “Re-
présenter les classes populaires?” [Representar
brou da necessidade de questionarmos sua madrasta, se por um lado estava dades obrigatórias, pretende-se ensi- as classes populares?], Savoir/Agir, n.34, Vulai-
os efeitos simbólicos de nosso sistema orgulhosa de um de seus genros, “de- nar os deficientes profundos, os nes-sur-Seine, dez. 2015.
26 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

Se “atraso”, “reforma” e “abertura” constituíram as palavras-chave do pensamento dominante dos últimos trinta anos,
as fake news parecem resumir sua obsessão atual. Um fio vermelho une, aliás, os dois períodos: apenas as notícias falsas
que visam ao partido da reforma e da abertura deixam indignados os jornalistas profissionais e os líderes liberais. Nos Estados
Unidos, na Alemanha e na França, estes últimos estão elevando a luta contra esse tipo de notícia ao status de prioridade política.
“A ascensão das notícias falsas”, explicou Emmanuel Macron em sua fala à imprensa em janeiro passado, “hoje é totalmente
gêmea desse fascínio nada liberal.” Durante esse tempo, a desinformação tradicional prosperou. Seu eco repercutido o tempo
todo lhe confere um caráter de verdade – sem estimular o ardor das agências de checagem.

FAKE NEWS OFICIAIS

Viagem
nas falsas
verdades
POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT*

BERNARD-HENRI LÉVY convida “as pessoas da web a propor o os iranianos aceitaram o acordo”. E é nal, relata o caso iraniano entre mui-
Colunista do Le Point, Bernard- texto, o vídeo, a obra cujo poder de ver- por isso que, segundo ele, a Pérsia mu- tos outros – Santo Domingo tornou-se
-Henri Lévy iguala todos aqueles que dade ou de comicidade destruiria as dou de nome para se tornar o Irã, terra Ciudad Trujillo; Esmirna, Izmir; Ch-
lhe desagradam – a lista é infinita – a fake news mais nocivas”... dos arianos. ristiania, Oslo etc. Basta dizer que a
nazistas.1 Em dezembro de 2010, feliz Significa, para Bernard-Henri Lévy, Vários especialistas do Irã recla- força probatória do pedaço de texto
demais para checar o fato, ele confun- correr um risco... Em vez de recordar a maram imediatamente, a tal ponto (150 palavras) ao qual Bernard-Henri
diu o jornalista do Le Monde Diploma- lista de suas imposturas – uma página que, alguns dias depois, BHL invocou Lévy se agarra como um mexilhão à
tique Bernard Cassen com o panfletá- deste jornal não seria suficiente2 –, va- outros, e alguns destes, horrorizados sua rocha é nula. Seu autor está morto,
rio antimuçulmano de extrema direita mos nos limitar às suas últimas palha- por estarem envolvidos nessa perigosa e nosso autoproclamado especialista
Pierre Cassen. O semanário recusou a çadas. Sua obra L’Empire et les cinq rois farsa, desmentiram as análises que o em Irã não é capaz de citar precisa-
publicação de um direito de resposta; [O Império e os cinco reis] acaba de ser cronista lhes atribuiu.3 Publicada em mente sua prova, já que a informação
ele foi condenado a fazê-lo pela 17a Câ- traduzida nos Estados Unidos, no mo- fevereiro passado, a edição em inglês do New York Times, destinada a seus
mara Correcional (acórdão de 23 de mento em que os líderes daquele país de seu livro acrescenta em consequên- leitores que eram viajantes frequentes,
abril de 2013), a qual, destacando “a procuram sufocar o Irã. Ano passado, cia um elemento de prova que o autor foi publicada em 26 de janeiro de 1936,
insuficiência de rigor e a falta de subs- jornalistas ou colunistas franceses tão considera irrefutável: “um artigo do e não em 26 de junho de 1935.4
tância” de Bernard-Henri Lévy preocupados com a precisão e a checa- New York Times de 26 de junho de E qual é a relação, de fato, entre a
(“BHL”), “a gravidade e a virulência” gem dos fatos quanto Patrick Cohen 1935”. Mas o artigo em questão fala de decisão do xá de 1935 e a atual Repúbli-
de sua difamação, considerou que “o (na Europe 1, em 30 de março), Ali Bad- uma “sugestão” da embaixada alemã, ca Islâmica do Irã, alvo dos Estados
benefício da boa-fé não poderia ser dou (na France Inter, num 1o de abril) e sem basear essa explicação da mudan- Unidos, da Arábia Saudita e de Israel?
concedido” e também impôs ao Le Laurent Ruquier (na France 2, em 7 de ça de nome – a propósito, bastante va- Uma ligação clara, de acordo com BHL:
Point o pagamento de 3.500 euros de abril) o deixaram vender “uma história ga – em nenhuma fonte. De qualquer o aiatolá Ruhollah Khomeini teria se
multa. No entanto, no mesmo jornal, o incrível que muito poucas pessoas co- forma, ele certamente não falou, como recusado a retomar o nome “Pérsia”
mesmo falsificador lançou a ideia, em nhecem”. Em 1935, contou o ensaísta, afirmou BHL, “em uma ordem de Ber- quando assumiu o poder porque havia
© Allan Sieber

7 de fevereiro, de um hall of shame “a Alemanha nazista ofereceu aos per- lim para a embaixada iraniana que foi ao seu redor três “teóricos que viviam
(hall da vergonha), que “listaria em sas o acordo do século. Ela disse a eles: transmitida ao xá”. E esse artigo do no fascínio absoluto pelo pensamento
tempo real as fake news que fossem ‘Vamos fazer [...] uma ótima aventura New York Times, publicado na seção heideggeriano”. Como ele sabe? Graças
mais globalmente devastadoras”. BHL comum, vamos dominar o mundo’. E Viagens-Cruzeiros-Excursões do jor- a “um dos cinegrafistas do meu filme,
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 27

um intelectual curdo iraniano dotado pós-nacional”, ou ainda: “O objetivo nânia-Palatinado, o qual saudou “a lu- é ‘a única mídia audiovisual respeitá-
de uma sólida cultura filosófica”. do processo de unificação europeu é a ta engajada em favor da ideia europeia” vel’”. Existem apenas dois problemi-
Desde 1978, todos os presidentes superação dos Estados-nação”. Haja! por parte do falsificador.8 nhas na citação da France Inter. Pri-
franceses, sem exceção, receberam e “Não só não existe prova alguma de meiro, não é um artigo do Le Monde
ouviram Bernard-Henri Lévy. Uma que essas frases foram pronunciadas, FRANCE INTER Diplomatique, mas do blog de Frédéric
vez que agora ele elogia Macron com a como elas contradizem diametral- Em 7 de fevereiro, Nicolas Demo- Lordon no site do Le Monde Diplomati-
regularidade de um metrônomo, este mente o que Hallstein de fato afir- rand e Léa Salamé, cuja antipatia pelos que. Segundo, seu texto foi falsificado.
último faria bem em lhe confiar uma mou.”5 Definitivamente inventivo, o “coletes amarelos” é evidente, recebe- Lordon na verdade escreveu isto: “A
missão de averiguação das fake news. ensaísta-romancista também disse ram na France Inter um professor do vergonha do jornalismo francês é me-
que Hallstein, em 1958, pronunciou Collège de France, Patrick Boucheron, dida por esse paradoxo totalmente
ROBERT MENASSE seu primeiro discurso como presiden- que também não gosta muito dos ma- inesperado de a RT ter se tornado qua-
Escritor austríaco, vencedor do te da Comunidade Econômica Euro- nifestantes. Os três também comun- se a única mídia audiovisual respeitá-
Prêmio do Livro Alemão em 2017 pela peia em Auschwitz. “É um fato”, mar- gam no ódio às notícias falsas. Duran- vel!”. Graças à principal rádio pública
obra La capital [A capital] (Verdier, telava Menasse, ansioso para te a entrevista, Boucheron defendeu a francesa, o “paradoxo totalmente
2019), Robert Menasse luta por uma demonstrar quanto “a Comissão Euro- “pequena insurrecional” dos intelec- inesperado”, o “quase” e o ponto de ex-
Europa livre dos arcaísmos nacionais. peia é a resposta para Auschwitz”. Era tuais favoráveis aos “coletes amarelos” clamação (destinados a enfatizar o pa-
Mas o romancista também é um en- falso.6 e citou um desses negociadores, espe- radoxo inesperado) desapareceram.10
saísta que há anos detalha suas con- Para Winkler, essas adulterações cialista em movimentos populares: Uma semana depois, Demorand só
vicções em artigos publicados pela im- são “produto de uma visão pós-factual “Achei interessante ouvir Gérard Noi- precisa lembrar as virtudes de sua pro-
prensa de referência em língua alemã. da história”.7 Fake news ainda mais riel dizer: ‘É uma jacquerie’ [revolta fissão para os ouvintes de seu progra-
Assim, em um texto inflamado escrito graves porque, apesar das advertên- camponesa do século XIV], enquanto ma matinal: “Estamos lidando com
em coautoria com um cientista políti- cias do historiador, elas são regular- outros historiadores medievalistas di- jornalistas, pessoas cujo negócio prin-
co e intitulado “Viva a República euro- mente retomadas por figuras políticas ziam: ‘Não, não é a jacquerie’”. No en- cipal é produzir fatos verificados e hoje
peia”, publicado em 24 de março de e intelectuais, como o fez, em novem- tanto, algumas semanas antes, Noiriel fazer a checagem dos fatos para lutar
2013 no Frankfurter Allgemeine Zei- bro passado, Manfred Weber, presi- havia sido questionado se a “compara- contra o fluxo de notícias falsas”.
tung e, no mesmo dia, nas colunas do dente do grupo conservador no Parla- ção do movimento dos ‘coletes amare-
Die Presse sob o título “Manifesto para mento Europeu e candidato à los’ com as jacqueries ou pujadismo *Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é
a fundação de uma república euro- presidência da União Europeia. [movimento corporativista com ten- da direção do Le Monde Diplomatique.
peia”, Menasse escreve: “O primeiro No início deste ano, a notícia falsa dências reacionárias da classe média]
presidente da Comissão Europeia, de que os signatários do tratado fran- era justificada. E ele respondeu: “Ne- 1 Ler Serge Halimi, “Tous nazis” [Todos nazistas], Le
Walter Hallstein, um alemão, decla- co-alemão de Aix-la-Chapelle de 22 de nhuma dessas referências históricas Monde Diplomatique, dez. 2007.
2 Ler nosso volumoso dossiê on-line “L’imposture Ber-
rou: ‘A abolição da nação é a ideia eu- janeiro último pretendiam entregar a realmente tem sentido. Falar, por
nard-Henri Lévy” [A impostura Bernard-Henry Lévy].
ropeia’”. Antes de adicionar, numa Alsácia-Lorena à Alemanha foi imedia- exemplo, de jacquerie em relação aos Disponível em: <www.monde-diplomatique.fr>.
bravata: “Uma frase que nem o atual tamente negada pela mídia francesa, e ‘coletes amarelos’ é tanto um anacro- 3 Ardavan Amir-Aslani, “N’en déplaise à BHL, la
Perse n’est pas devenue l’Iran pour faire plaisir à
presidente da Comissão nem o atual seu autor, um deputado europeu do nismo quanto um insulto. [...] A gran-
Hitler!” [“Sem ofensa a BHL, a Pérsia não se tor-
chanceler alemão ousariam pronun- partido Debout la France, ridiculariza- de jacquerie de 1358 foi uma explosão nou o Irã para agradar a Hitler!”], L’Opinion, Paris,
ciar. Sem dúvida, eles nem ousam do. Finalmente destacadas e levadas a desesperada de mendigos prestes a 23 maio 2018.
4 Oliver McKee Jr., “Change of Santo Domingo to
pensar nisso. E, no entanto, essa frase sério pela imprensa alemã mais de um morrer de fome, num contexto marca-
Trujillo City recalls others” [Mudança de Santo Do-
é a verdade, mesmo que ela tenha sido ano após serem lançadas, as fake news do pela Guerra dos Cem Anos e pela mingo para a cidade de Trujillo lembra outras], The
esquecida”. Problema: Hallstein, que de Menasse não abalaram nem os jor- peste negra”.9 New York Times, 26 jan. 1936.
5 Heinrich August Winkler, Zerbricht der Westen?
morreu em 1982, nunca pronunciou nalistas franceses, que não pouparam Em seguida foi a vez da revista de Über die gegenwärtige Krise em Europa und Ame-
essa frase. elogios a elas, nem o próprio falsário. imprensa da France Inter. Claude As- rika [O oeste está quebrado? Sobre a atual crise na
Em outubro de 2017, o grande his- “Do ponto de vista científico, as aspas kolovitch dedicou uma grande parte à Europa e na América], CH Beck, Munique, 2017.
6 Patrick Bahners, “Menasses Bluff” [O blefe de Me-
toriador Heinrich August Winkler ex- foram um erro”, admitiu este último denúncia das fake news de Donald nasses] e “Fall Menasse. Psicopathologue” [A
pressou suas dúvidas no semanário após ter invocado um filósofo relativis- Trump e da mídia russa, e então emen- queda de Menasse. Psicopatológico], Frankfurter
Der Spiegel e desafiou Menasse a citar ta para justificar sua falsificação (Die dou: “E, no Le Monde Diplomatique, o Allgemeine Zeitung, 2 e 6 jan. 2019.
7 Der Spiegel, Hamburgo, 21 out. 2017
fontes. Em vão. Na esteira de outras Welt, 5 jan. 2019). Em 19 de janeiro, ele teórico do movimento Nuit Debout, 8 Der Spiegel Online, 7 jan. 2019.
observações atribuídas por Menasse a recebeu a Medalha Carl-Zuckmayer, Frédéric Lordon, acha que [o canal 9 Le Monde, 28 nov. 2018.
Hallstein, destaca-se: “O objetivo é e uma distinção literária outorgada pelo russo] RT, mesmo fazendo uma propa- 10 Depois de ser denunciada nas redes sociais, essa
falsificação desapareceu da retranscrição da crô-
continua sendo organizar uma Europa ministro-presidente da região da Re- ganda putiniana um pouco excessiva, nica no site da France Inter.
28 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

REFAZER A UNIÃO

Estratégia europeia para a esquerda


Mais do que sobre os problemas comuns da União Europeia, as eleições de maio do bloco justapõem 27 votações
sobre política interna. Na maioria dos Estados, os eleitores pronunciam-se sobretudo contra ou a favor do governo local.
Mas a margem de manobra desses poderes é bastante reduzida pelos tratados continentais.
Nessas condições, o que fazer? E para a esquerda, como escapar?
POR FRÉDÉRIC LORDON*

m fantasma assombra a esquer- com as deslocalizações sem controle, dade política não pode ser malfeita o Eis, então, como se encontra o im-

U da: a Europa. Ele assombrará os


“coletes amarelos” a partir do
momento em que eles se colo-
carem concretamente a questão das
políticas alternativas – o que, de fato, já
reconquistar a possibilidade de auxí-
lios do Estado: tudo isso, que passa ne-
cessariamente por uma política de jus-
tiça social, tornou-se formalmente
impossível em razão dos tratados.
bastante para impedir a si mesma de
decidir novamente a respeito da moe-
da, do orçamento, da dívida ou da cir-
culação de capitais, ou seja, para am-
putar voluntariamente políticas que
passe europeu:
1. Subtrair, como fazem os tratados, os
conteúdos substanciais de algumas das
mais importantes políticas públicas,
nas deliberações de uma assembleia or-
é o caso. É que toda a ideia de fazer “Refaçamos, então, os tratados!” têm um peso maior sobre a situação dinária, para perenizá-las em tratados
“outra coisa” está condenada a se cho- De acordo com a “Europa social”, “o material das populações. Mas os trata- que respondem apenas a procedimen-
car com o muro dos tratados. Afrouxar euro democrático” é a ilusão de mu- dos são perfeitamente funcionais para tos extraordinários de revisão, é uma
as políticas de austeridade que des- dança que permite à “esquerda incon- o outro pequeno número que, ao con- anomalia que desqualifica radicalmen-
troem os serviços públicos, acabar sequente” rejeitar mais uma vez o mo- trário, segue o projeto que mal escon- te qualquer pretensão democrática.
com a anomalia democrática de um mento de enfrentar o problema de perenizar políticas econômicas fa- 2. Somente uma revisão dos tratados
Banco Central independente sem a europeu. De Yanis Varoufakis (ler seu voráveis a um certo tipo de interesse. apropriada para instituir um verdadei-
menor legitimidade política, desfazer artigo na p.30) a Benoît Hamon, pas- Com um adicional, para encerrar a ro Parlamento, ao qual seriam dados
as estruturas que permitem a domina- sando por Raphaël Glucksmann, todo questão: o investimento desequilibra- todos os domínios de decisão atual-
ção das finanças sobre as empresas e mundo quer “refazer os tratados”. Di- do específico de um país que se diz há mente fora de alcance de qualquer no-
sobre os governos ao acabarem com a gamos logo a eles: nada será refeito. mais de meio século que a ortodoxia va deliberação soberana, está total-
© Adão

concorrência realmente deformada Os tratados só são um “erro” para monetária e orçamentária é sua única mente à altura do projeto de tornar a
(pelo dumping social e ambiental) ou os que consideram que uma comuni- muralha contra o nazismo... Europa democrática.
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 29

3. Infelizmente, do jeito que vão as coi- justamente ela que, mais do que qual- peu”, ao qual se trata de dar a consis- mente abandonadas; é preciso dar a
sas, uma revisão como essa seria obje- quer outra, é atormentada pelos senti- tência de uma perspectiva histórica. todas essas ações uma amplitude iné-
to de, no mínimo, uma recusa categó- mentos de medo, sublimados no hu- Trata-se do que é possível reapro- dita, reuni-las em um discurso de al-
rica: a da Alemanha. É que justamente manismo europeu e em posturas ximar dos povos europeus por outras cance histórico e, para lhe dar mais
ela condicionou sua participação no internacionalistas abstratas que lhe vias que não sejam a da economia: crédito, prever novas e visíveis expres-
euro à perenização de sua ortodoxia permitem, acredita, ocupar o primeiro estudos universitários e, por que não, sões institucionais. Aliás, expressões
nos tratados. Se fosse minoria nesse lugar – qualquer que seja o preço eco- liceus, artes, pesquisa, oficinas siste- necessárias, pois ele precisará de uma
assunto, ela preferiria a integridade de nômico e social (para os outros). É jus- máticas de traduções cruzadas, histo- instância que decida áreas, volumes e
seus princípios a pertencer à União. tamente ela, entretanto, que não para riografias desnacionalizadas, tudo é distribuição das intervenções. O que
O dilema sobre o qual a “esquerda de buscar no “euro democrático” e em bom para ser intensamente “europei- pode ser senão uma Assembleia? De
europeia democrática” vai ter de chegar seu “Parlamento” uma resolução fan- zado” – e, por isso, “europeizante”. imediato, qualquer outra coisa dife-
a um acordo é o seguinte: democratizar tástica para suas contradições inter- Entretanto, não se é obrigado a rente do “Parlamento do euro”, simu-
(realmente) o euro supõe refazer os tra- nas. E, então, é com ela, como observa continuar no registro das interven- lacro democrático destinado a acober-
tados, mas refazê-los significará sem Palombarini, que, para sua infelicida- ções em direção à “Europa da cultura”, tar a irremediável falta de democracia
sombra de dúvida a saída da Alema- de, uma estratégia política de esquer- da qual se sabe bem que classes sociais da união monetária.
nha... e a quebra do euro. Obviamente, da deve contar. são suas principais beneficiárias. Na No ponto em que nos encontramos,
quando a realidade é extremamente di- Como, então, manter um arco de realidade, a Europa tem um famoso é possível começar a esperar que, mes-
fícil de ser enfrentada, há sempre a solu- forças que reúna desde classes popu- passivo a absorver junto às classes po- mo a burguesia educada que se vê co-
ção do refúgio no sonho – no caso, aca- lares, que experimentam em primeira pulares. Ela teria um grande interesse mo a melhor em matéria de inteligên-
lentar “o euro democrático”. mão o desgaste das políticas europeias em se lembrar disso, não em nome de cia, quando, na verdade, é na maior
e, por isso, são menos atormentadas uma economia do perdão ou da reden- parte das vezes uma confusa ilusão po-
INTERNACIONALISMO SEM NEOLIBERALISMO com preciosos escrúpulos do euro- ção, mas porque decisivamente existe lítica, possa compreender que é urgen-
No entanto, para os que aceitam peísmo, até a burguesia educada de es- seu próprio interesse político em ter te salvar a Europa dela própria e que
ver a contradição e escolhem as políti- querda, cuja sensibilidade ferida faz de essas classes com ela – sua hostilidade, isso só será feito à custa de uma mu-
cas progressistas contra o fetichismo qualquer ideia de romper com a Euro- perfeitamente embasada, digamos, dança radical. Porém, não por alguma
do euro, o problema não é menos agu- pa um motivo de crise histérica? Não não terá sido sua cicatriz lancinante “transformação” da moeda única, con-
do. Assim, para Stefano Palombarini,1 há a menor dúvida de que às primeiras desde o Tratado de Maastricht? Se, en- genitamente, e durante muito tempo
a perspectiva de saída do euro não po- será preciso dar a saída do euro, pois tão, essa nova Europa, desembaraçada ainda ordoliberal, mas precisamente
deria ser vista nos limites do bloco elas vivem o problema concreto. Já à se- do euro, quiser restabelecer algum por seu próprio abandono. A Europa
eleitoral de esquerda atualmente gunda é preciso reservar um trata- vínculo com essas classes, ela terá in- não ganhará novamente os favores dos
constituído, do qual algumas frações mento especial – ou seja, encontrar al- teresse em se dirigir muito diretamen- povos que lhes entregaram tudo o que
clamam pelo “recuo nacional” diante go para lhe conceder. te a elas – e fundamentalmente em sua ela os impediu até agora. E principal-
do enunciado dessa única ideia. Em que consistiria, portanto, a con- linguagem: aquela, concreta, da inter- mente o direito democrático funda-
De certo ponto de vista, ele tem ra- tribuição do internacionalismo real venção financeira. Para ela, não há for- mental de experimentar, de avaliar, de
zão. O debate da esquerda sobre o eu- para a resolução do dilema europeu ma mais simples de tornar desejável tentar outra coisa. Com a retirada da
ro, desde 2010, mostrou suficiente- para a esquerda? Em não deixar a clas- que se substituam os Estados em de- camisa do euro, tudo é possível de no-
mente que divisões ele atravessava. E se educada órfã da Europa e lhe dar clínio, abandonados por ela durante vo, evidentemente de acordo com a au-
é exatamente esse reflexo à flor da pele uma perspectiva histórica europeia de todo o reinado da moeda única: gran- todeterminação soberana de cada or-
que testemunha a persistente quime- mudança. Ou seja, convencê-la de que des programas de recuperação dos ganismo político. E uma vez que se
ra do “outro euro”, com a qual o desas- abandonar seu objeto transnacional, o bairros afastados, planos de melhoria trata de pensar em uma estratégia para
tre grego não bastou para acabar – e euro, não a priva de tudo, permite-lhe dos meios de comunicação digitais, a esquerda: reavaliação das finanças
cujos erros obstinados em busca do ainda acreditar no que ela ama acredi- fundos de reindustrialização, finan- de mercado, socialização dos bancos,
“Parlamento do euro” são a expressão tar e no que, de certo ponto de vista, ela ciamento de redes de educação popu- maior poder acionário, propriedade
mais patética. Aliás, a questão euro- tem razão de acreditar: de forma muito lar e apoio às organizações associati- social dos meios de produção...
peia é exatamente se ele é o único obs- geral, o esforço de descentralizar os vas são as ideias que faltaram e com as É bem possível explicar aos mais
táculo que fez oposição à retirada de povos nacionais, de aproximá-los o quais a Europa conseguiria seriamen- inquietos que persistir na via do euro
Hamon em favor de Jean-Luc Mélen- máximo possível, a começar, logica- te recuperar uma “notoriedade”. E, co- significará o túmulo de qualquer espe-
chon após o primeiro turno das elei- mente, pela escala europeia. Mas tam- mo as ideias não devem faltar, os meios rança da esquerda; que a ideia de uma
ções presidenciais de 2017, exatamen- bém não de qualquer maneira nem a também não. Na verdade, é aqui que se comunidade política europeia não de-
te por preferir a humilhação a uma qualquer preço, isto é, deixando passar, vê a diferença entre as palavras ao léu manda, portanto, ser retirada da pai-
vitória da esquerda. sem refletir, esse desejo internaciona- e a consistência de um projeto político, sagem; que ela poderá ser salva, con-
Ora, existe toda uma parcela da lista bem fundamentado nas piores cuja ambição se mede muito clara- tanto que seja consentido lhe oferecer
opinião da esquerda que, desaprovan- proposições do economismo neolibe- mente pelos recursos que utiliza, ava- suas condições de possibilidade histó-
do, às vezes com veemência, os con- ral – o internacionalismo da moeda, do liados muito simplesmente de acordo rica, como o coroamento de uma longa
teúdos particulares das políticas euro- comércio e das finanças. com um objetivo quantitativo global aproximação, mas desta vez realmen-
peias e as obrigações que delas Sem reduzir o esforço para conven- indicando uma trajetória a médio pra- te “cada vez mais estreita”, entre os po-
resultam sobre a conduta das políticas cê-la de que não haverá “outro euro”, zo visando a uma meta orçamentária vos do continente, para o qual o “novo
nacionais, se revolta também contra a que “o euro democrático” não existirá, de 3% e, em seguida, por que não, de projeto europeu”, desintoxicado do ve-
ideia geral, no entanto consequente, de é preciso então dizer para a classe edu- 5% do PIB europeu – em vez do ridícu- neno liberal da União atual, enfim,
romper com o euro. Essa parcela dis- cada, que em boa parte, de fato, tem a lo 1% de hoje. fornecerá seu tempo, seus meios e
cursa repetidamente contra a “Europa sorte de uma hegemonia de esquerda Não a partir do nada e como se ne- suas possibilidades.
austeritária”, mas, logo que lhe é pro- em suas mãos, que ela não tem de re- nhuma dessas coisas ainda não exis-
posto sair dela, responde: “De maneira nunciar ao europeísmo genérico que a tissem – Erasmus [European Region *Frédéric Lordon é economista e filósofo.
alguma!”. Enquanto esse impasse segura pelo coração. E, portanto, lhe Action Scheme for the Mobility of Uni- Diretor de pesquisa no Centre National de la
continuar sem solução, a esquerda não fazer uma nova proposta sobre esse versitary Students (Plano de Ação da Recherche Scientifique (CNRS) e autor de
chegará ao poder. assunto – uma proposta suficiente- Comunidade Europeia para a Mobili- La Condition anarchique [A condição anár-
É que terá sempre o que fazer com a mente forte para substituir a promessa dade de Estudantes Universitários)], quica], Seuil, Paris, 2018.
classe educada, que é o ponto nevrál- em decadência do euro, pela qual a Fundo Europeu de Desenvolvimento
gico dessa situação. Acreditando ser a burguesia de esquerda continua, no Regional (Feder) etc. Mas é preciso
ponta de lança da racionalidade na so- entanto, a se interessar porque tem um ampliar consideravelmente seu cam- 1 “Face à Macron, la gauche ou le populisme?”
[Diante de Macron, a esquerda ou o populismo?],
ciedade, essa classe é, de fato, seu pon- enorme medo do vazio. A promessa de po e também os destinatários, princi- blog de Stefano Palombarini, 10 jul. 2017. Disponí-
to de incoerência por excelência, pois é uma espécie de “novo projeto euro- palmente as classes até agora total- vel em: <https://blogs.mediapart.fr>.
30 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

REFAZER A UNIÃO

Por uma “Primavera Europeia”


em maio
A eleição do próximo Parlamento Europeu acontece entre os dias 23 e 26 de maio. O quadro geral é sombrio:
as condições do Brexit permanecem confusas, a relação com os Estados Unidos é marcada pelas humilhações deliberadas
de Washington, a extrema direita vai de vento em popa e a esquerda não chega a um acordo sobre um projeto europeu
POR YANIS VAROUFAKIS*

crise financeira planetária de A VIDA PODE MELHORAR NAS REGRAS ATUAIS

A 2008 – a de 1929 de nossa gera-


ção – desencadeou uma reação
em cadeia em toda a Europa. Em
2010, ela já tinha destruído os alicerces
da zona do euro, levando os membros
O movimento DiEM25 retoma a
análise de Lenin: os muros que entra-
vam a livre circulação das pessoas e
das mercadorias são uma resposta
reacionária ao capitalismo. A resposta
do establishment a transgredir suas socialista consiste em derrubar os mu-
próprias regras a fim de salvar os in- ros, permitir ao capitalismo se auto-
vestimentos de seus amigos banquei- destruir enquanto organizamos a re-
ros. Em 2013, a ideologia neoliberal, sistência transnacional à exploração.
que até então tinha legitimado a tec- Não são os migrantes que roubam os
nocracia oligárquica da União Euro- empregos dos trabalhadores locais,
peia, espatifou-se, após ter jogado na mas as políticas de austeridade dos go-
miséria milhões de pessoas aplicando vernos que se inscrevem na luta de
políticas oficiais: o socialismo para os classes engajada em benefício da bur-
detentores do capital financeiro e uma guesia nacional.
austeridade implacável para o maior Esse é o motivo pelo qual não per-
número de pessoas. Essas políticas fo- mitimos que uma forma “alijada” de
© DiEM25

ram conduzidas tanto pelos conserva- xenofobia contamine nosso progra-


dores quanto pelos sociais-democra- ma. Como diz Slavoj Žižek, o naciona-
tas. Durante o verão de 2015, a renúncia Yanis Varoufakis em reuinão do DiEM25 em Lisboa lismo de esquerda não é uma boa res-
do governo do partido Syriza, na Gré- posta para o nacional-socialismo.
cia, teve como consequências a divi- guida, convidamos outros movimen- Esse debate não é novo. Em 1907, Nossa posição sobre os novos imigran-
são e a desmoralização da esquerda. tos e partidos para enriquecer e criar Morris Hillquit, fundador do Partido tes defende igualmente dois pontos:
Ela acabou com a esperança efêmera conosco nossa “Primavera Europeia”, Socialista da América, propôs uma nos recusamos a fazer uma triagem
de ver progressistas que surgiram das primeira lista transnacional de candi- resolução visando acabar com “a im- entre migrantes e refugiados e deman-
ruas e das praças modificarem as rela- datos que defendem um programa co- portação deliberada de mão de obra damos à Europa que os deixem entrar
ções de força na Europa. mum de escala europeia. Antes da dis- estrangeira a baixo custo”, defenden- (#LetThemIn).
Desde então, a cólera exacerbada cussão desse projeto, a esquerda deve do que “os migrantes constituíam, Companheiros de diversos países
pelo desespero deixou um vazio, rapi- encarar de frente dois pontos cruciais sem estar conscientes disso, um veio nos consideram utópicos. Segundo
damente preenchido de um extremo a que a dividem e enfraquecem um pou- de furadores de greve”. O novo, hoje, eles, a União Europeia não pode ser
outro da Europa pela misantropia or- co os progressistas em todo o conti- é que uma boa parte da esquerda pa- reformada. Se eles tiverem razão, a
ganizada por uma Internacional na- nente: o problema das fronteiras e a rece ter se esquecido da crítica muito melhor resposta dos progressistas é
cionalista que encanta o presidente questão da União Europeia. viva de Lenin, formulada em 1915 trabalhar para o “Lexit”, ou seja, uma
norte-americano Donald Trump. Uma coisa muito curiosa ocorreu nestes termos: “Acreditamos que não campanha da esquerda para uma de-
Chumbada por um establishment que nos últimos anos: um grande número é possível ser internacionalista e ao sintegração controlada da União? Eu
lembra cada vez mais a infeliz Repúbli- de cidadãos de esquerda foi levado a mesmo tempo favorável a tais restri- guardo com emoção uma lembrança
ca de Weimar, assim como pelo racis- pensar que fronteiras abertas prejudi- ções... Esses socialistas, na realidade, de minhas intervenções na Alema-
mo que as forças deflacionárias engen- cavam a classe operária. “Jamais fui são chauvinistas”. nha diante de salões lotados no dia
dram, a União se fende. A chanceler favorável à liberdade de instalação”, Em um artigo de 29 de outubro de seguinte da capitulação do Syriza pe-
alemã se dirige para a saída, o projeto afirmou diversas vezes Jean-Luc Mé- 1913, Lenin forneceu o contexto: “Não rante Angela Merkel e a Troika.2 As
europeu do presidente francês se mos- lenchon (do movimento França Insub- há dúvida alguma de que somente a pessoas presentes explicaram que o
tra natimorto e as eleições para o Par- missa). Fazendo uma intervenção no pobreza extrema pode obrigar as pes- que havia sido feito na Grécia não ti-
lamento Europeu no próximo mês de Parlamento Europeu em julho de 2016 soas a abandonar sua terra natal e que nha sido em nome delas, em nome do
maio oferecem a última oportunidade sobre a questão dos trabalhadores os capitalistas exploram os trabalha- povo alemão. Eu me lembro de como
para os progressistas terem peso no ní- deslocados provisoriamente para ou- dores imigrantes das maneiras mais elas ficaram aliviadas em saber que o
vel pan-europeu. tro país da União Europeia, ele decla- vergonhosas. Mas somente os reacio- DiEM25 tinha feito um apelo para
Desde seu nascimento, em 2016, o rou que, cada vez que um deles chega, nários podem se recusar a ver o signifi- criar um movimento transnacional a
Movimento pela Democracia na Euro- “rouba o pão dos trabalhadores que se cado progressista dessa migração mo- fim de tomar o controle de institui-
pa 2025 (DiEM25) teve como objetivo encontram no lugar” – afirmação pela derna das nações. O capitalismo atrai ções da União – Banco Europeu de
aproveitar essa chance.1 Em um pri- qual, posteriormente, pediu descul- massas de trabalhadores do mundo Investimento (BEI) e Banco Central
meiro momento, preparamos nosso pas, mesmo que sua análise quanto inteiro. Ele quebra as barreiras e os Europeu (BCE) – e de redesenvolvê-
programa, o “New Deal for Europe” aos efeitos das migrações sobre os sa- preconceitos nacionais e une os traba- -las de acordo com os interesses de
[Novo Acordo para a Europa]. Em se- lários internos não tenha mudado. lhadores de todos os países”. todos os cidadãos.
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 31

Tenho também na memória a ale- simo prazo, mesmo com as regras e as uma alta competência técnica, aplicá- coerência. Tomemos, como exemplo, o
gria de nossos companheiros alemães instituições existentes. Em segundo, veis considerando as regras existentes estado do Partido da Esquerda Euro-
quando lhes foi apresentada a ideia de delinear a transformação dessas insti- da União, e uma ruptura radical com a peia atualmente. Como seus membros
lançarem, para as eleições europeias, tuições e, ao mesmo tempo, planejar o austeridade e com a lógica de “salva- podem batalhar pelos votos dos eleito-
candidatos gregos na Alemanha e can- processo para a convocação de uma mento” imposta pela Troika. Além dis- res no próximo mês de maio se, na
didatos alemães na Grécia. Trata-se de Assembleia Constituinte que, a longo so, prevê instituições que preparem o Grécia, é representado por um partido
mostrar que nosso movimento é trans- prazo, levaria a uma Constituição Eu- terreno para um futuro europeu pós- que, quando no governo, implemen-
nacional, que ele entende se apropriar, ropeia democrática pela qual todos os -capitalista. É o caso de uma proposta tou o mais brutal programa de austeri-
aqui e agora, das instituições da ordem tratados existentes serão substituídos. de socialização parcial do capital e dos dade da história do capitalismo e, em
neoliberal. Não para destruí-las, mas Em terceiro, demonstrar como os me- lucros provenientes da automatiza- países como a França e a Alemanha,
para colocá-las a serviço de um núme- canismos que introduziremos desde o ção: o direito de grandes empresas um grande número de seus dirigentes
ro maior de pessoas em Bruxelas, Ber- primeiro dia poderão nos ajudar a jun- operarem na União será subordinado é eurocético?
lim, Atenas e Paris. Em toda parte. tar os cacos se, apesar de todos os nos- à transferência de uma porcentagem Amigos de esquerda bem intencio-
Agora, imagine o que, ao contrário, sos esforços, a União se desintegrar. de suas ações para um novo Fundo Eu- nados nos perguntam por que o DiEM25
teriam sentido se eu lhes tivesse feito o Muitos são os que falam da impor- ropeu de Ações. Os dividendos dessas não faz uma aliança com o movimento
seguinte discurso: “A União não é re- tância da transição ecológica. Mas eles ações financiarão, em seguida, uma França Insubmissa, encabeçado por
formável e deve ser dissolvida. Nós, os não dizem de onde virá o dinheiro renda básica universal a ser paga para Jean-Luc Mélenchon e, na Alemanha,
gregos, devemos nos voltar para nosso nem quem a planejará. Nossa resposta todos os europeus, independentemen- com o movimento Aufstehen, liderado
Estado-nação e tentar construir o so- é clara: entre 2019 e 2023, a Europa te de outros benefícios sociais, seguro- por Sahra Wagenknecht e Oskar Lafon-
cialismo lá. Vocês deverão fazer o mes- precisa investir 2 trilhões de euros nas -desemprego etc. taine. A razão é simples: porque nosso
mo aqui na Alemanha. Em seguida, tecnologias verdes, na energia solar, dever é construir a unidade que tenha
uma vez que tivermos ganho, nossas eólica etc. Propomos que o BEI emita UNIÃO DA ESQUERDA É CRUCIAL como base um humanismo radical, ra-
delegações se encontrarão para discu- durante quatro anos um volume de Outro exemplo da radicalidade de cional e internacionalista. Isso signifi-
tir a colaboração entre nossos novos bônus suplementares da ordem de 500 nossas propostas: a reforma do euro. ca um programa radical comum para
Estados progressistas soberanos”. Sem bilhões de euros. Ao mesmo tempo, o Antes de mergulharmos nas mudan- todos os europeus e uma política em
dúvida alguma, nossos companheiros BCE anuncia que, se o valor desses ças a serem feitas nos estatutos do favor de uma Europa aberta que consi-
alemães teriam perdido seu entusias- bônus cair, ele os comprará no merca- BCE, temos um projeto de criar uma dera as fronteiras como cicatrizes no
mo e voltado para casa desanimados do secundário de títulos. Consideran- plataforma digital pública de paga- planeta e dá boas-vindas aos imigran-
com a perspectiva de enfrentar o esta- do esse anúncio e a superabundância mentos em todos os países da zona do tes. Essa é a plataforma mínima.
blishment alemão enquanto alemães e de poupanças em todo o mundo, o euro. Os contribuintes terão possibili- Nosso apelo à unidade se baseia em
não como membros de um movimen- BCE não terá de desembolsar um úni- dade, então, de comprar créditos fis- uma ideia simples: o DiEM25 convidou
to transnacional. co euro, uma vez que todos os títulos cais digitais utilizáveis para efetuar todos os progressistas para serem
Se minha análise estiver correta, serão imediatamente vendidos. Com transações entre eles ou para pagar fu- coautores de nosso “New Deal for Eu-
pouco importa saber se a União é refor- base no modelo da Organização Euro- turos impostos com um desconto rope”. Nosso apelo foi ouvido. Généra-
mável ou não. O que conta é levar adian- peia de Cooperação Econômica (OE- substancial. Esses créditos serão feitos tion-s (França), Razem (Polônia), Al-
te proposições concretas sobre o que fa- CE) – precursora da Organização para em euros, mas somente poderão ser ternativet (Dinamarca), Democrazia e
remos com as instituições europeias. a Cooperação e o Desenvolvimento transferidos entre contribuintes de Autonomia (Itália), MeRA25 (Grécia),
Não proposições extravagantes ou utó- Econômico (OCDE) –, criada em 1948 um mesmo país, o que impedirá bru- Demokratie in Europa (Alemanha),
picas, mas descrições completas de para distribuir os créditos do Plano tais fugas de capitais. Wandel (Áustria), Actúa (Espanha), Li-
quais seriam nossas ações esta semana, Marshall, uma nova Agência Europeia Ao mesmo tempo, os governos po- vre (Portugal) se juntaram a nós. Ou-
no próximo mês e no ano que vem, con- de Transição Ecológica canalizará es- deriam criar uma quantidade limitada tros estão prestes a fazê-lo. Juntos,
siderando as regras atuais e os instru- ses fundos para projetos “verdes” em desses euros fiscais e destiná-la aos ci- constituímos a coalizão “Primavera
mentos existentes. Por exemplo, como todo o continente. dadãos que passam por dificuldades Europeia”, que lançará candidatos pa-
redefiniremos o papel do mal denomi- Cabe observar que essa proposta básicas ou para financiar projetos pú- ra as eleições no próximo mês de maio.
nado Mecanismo Europeu de Estabili- não necessita de nenhum imposto no- blicos. Os euros fiscais permitiriam Nossa mensagem para o establish-
dade (MEE), como reorientaremos a vo, pois se baseia em um título euro- aos governos sob pressão estimular a ment europeu autoritário é a seguinte:
política chamada de “flexibilização peu existente (por exemplo, os bônus demanda, diminuir sua dívida e, en- resistiremos a vocês por meio de um
quantitativa” (quantitative easing) do do BEI) e é plenamente legal de acordo fim, reduzir a força esmagadora do programa radical, que é bem mais so-
Banco Central Europeu, como finan- com as regras em vigor. O mesmo BCE e evitar o custo de uma saída ou fisticado tecnicamente que o de vocês.
ciaremos imediatamente e sem novos ocorre com outras propostas de nosso de uma desintegração do euro. A longo Nossa mensagem para os xenófo-
impostos a transição ecológica ou uma “New Deal” sobre as medidas a serem prazo, essas plataformas digitais pú- bos fascistas: combateremos vocês em
campanha de luta contra a pobreza. tomadas imediatamente. Por exemplo, blicas de pagamento poderão consti- todos os lugares.
Por que propor um programa tão nosso fundo antipobreza. Propomos tuir um sistema regulado de euros es- Nossa mensagem para nossos com-
detalhado? Para mostrar para os eleito- que bilhões de lucros do Sistema Euro- pecífico a cada país, que funcionará panheiros da esquerda europeia, do
res que existem soluções, mesmo no peu de Bancos Centrais (SEBC), prin- como uma câmara de compensação movimento França Insubmissa etc.:
interior de regras estabelecidas para cipalmente os lucros dos ativos no internacional. Seria uma versão mo- podem contar com nossa infindável
servir aos interesses do 1% mais favo- contexto de flexibilização quantitati- dernizada da visão de John Maynard solidariedade, na esperança de que,
recido. Evidentemente, ninguém – e va, sejam utilizados de modo a garan- Keynes do que veio a ser o sistema de um dia, nossos caminhos vão se con-
sobretudo nós – espera que as institui- tir alimentação, habitação e energia Bretton Woods, mas que infelizmente vergir a serviço de um humanismo ra-
ções da União se juntem às nossas pro- para todos os cidadãos. ele não estava mais vivo para ver. dical e transnacional.
posições. O que queremos é que os elei- Outro exemplo é nosso plano de Para resumir, nosso “New Deal for
tores vejam o que poderá ser feito em reestruturação da dívida pública da Europe” é um projeto global para: a) *Yanis Varoufakis é economista, ministro
lugar do que é feito, de modo que eles zona do euro. O BCE servirá como me- redesenvolver, com perspicácia, de das Finanças da Grécia entre janeiro e julho
desmascarem o establishment sem se diador entre os mercados financeiros e acordo com os interesses da maioria, de 2015 e fundador do Movimento pela De-
voltarem para a direita xenófoba. É a os Estados para reduzir o fardo de sua as instituições existentes; b) fazer o mocracia na Europa 2025 (DiEM25).
única maneira, para a esquerda, de su- dívida total sem precisar emitir moeda planejamento de um futuro pós-capi-
perar seus limites atuais e construir e sem que a Alemanha tenha de pagar talista, radical e verde; c) nos preparar-
uma grande coalizão progressista. ou garantir a dívida pública dos países mos para recuperar a saúde da União 1 O ano de 2025 corresponde ao prazo final fixado
O “New Deal for Europe” tem exa- mais endividados. Europeia se ela sofrer um colapso. pelo movimento “Para fazer que a Europa se torne
tamente esse objetivo: em primeiro lu- Como mostram esses exemplos, A esquerda tem dois inimigos: a de- plenamente democrática e funcional”. [Nota da re-
dação.]
gar, mostrar que a vida da maioria dos nosso “New Deal” faz uma combina- sunião e a incoerência. A união é cru- 2 FMI, Banco Central Europeu e Comissão Euro-
cidadãos pode ser melhorada a curtís- ção entre medidas que necessitam de cial, mas não deve ser feita à custa da peia. [Nota da redação.]
32 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

QUANDO O TRIBUNAL SE FAZ DE PSICÓLOGO

A justiça transfigurada pelas vítimas


Desde sempre, a intensidade dramática de certos casos criminais desafia a serenidade da justiça. Essa tensão própria
do processo penal cresce com a deificação contemporânea das vítimas. O tribunal não precisa mais simplesmente punir
um culpado, ele deve reparar os sofrimentos. Assim, vítimas tornam-se procuradores, e as penas ficam mais pesadas
POR ANNE-CÉCILE ROBERT*

o que está acontecendo nos Estados


Unidos e no Canadá, fico espantado
com a evolução que acelerou o endure-
cimento dos costumes penais e peni-
tenciários. A vítima, diretamente pre-
sente nas comissões, pode ser ouvida
mesmo em um debate sobre uma revi-
são de pena”, conta o magistrado fran-
cês Denis Salas. “Ela também pode
produzir um vídeo, dar qualquer in-
formação, com a seguinte legitimida-
de, que merece reflexão: ‘A sentença é
muito pequena, vista a gravidade do
crime que eu sofri’.”2 O tribunal se
torna um local de reconhecimento
dos sofrimentos, mesmo que a ex-
pressão das vítimas não provoque de
maneira nenhuma um avanço na
busca pela exatidão dos fatos e não
contribua para determinar a respon-
sabilidade do acusado.
O processo não é mais simplesmen-
te o espaço em que a sociedade decide
sobre o destino reservado a um indiví-
duo sobre o qual pesam suspeitas; ele
deixa de ser principalmente o meio pa-
ra que a sociedade reflita sobre o risco
potencial que um indivíduo apresenta
para a coletividade. O tribunal se torna
um espaço de expressão, de gestão e,
principalmente, de reparação do sofri-
mento das vítimas. E nada é mais peri-
goso para o equilíbrio dos debates do
or muito tempo, as vítimas e seu Pouco a pouco a vítima se torna o a condução do processo vai se voltar que adotar a dor como um critério de

P sofrimento foram negligencia-


dos por uma justiça que tinha
por objetivo prioritário sancio-
nar o criminoso e proteger a socieda-
de. Progressivamente, elas viram seus
elemento central do processo, que, no
entanto, tem como função principal
julgar o acusado. E ela é cada vez mais
solicitada, mesmo estando numa posi-
ção difícil para conseguir apreciar se-
contra ela, cedo ou tarde.”
Criada em 1998 pelo Estatuto de
Roma, a Corte Penal Internacional
(CPI) é exemplar dos processos em an-
damento. O processo prevê que a víti-
avaliação da culpa. Uma velhinha que
tem seu gato assassinado, único ser vi-
vo que lhe fazia companhia, vai sofrer
muito. Mesmo uma pena pesada não
estará à altura de sua dor. No entanto,
direitos serem reconhecidos e o surgi- renamente os fatos. Os testemunhos, ma participe ativamente da adminis- ressalta Éric Dupond-Moretti, “o pro-
mento de um estatuto, o que tornou principalmente se são impressionan- tração da prova. Sua contribuição não cesso penal não é o anexo de um con-
possível, em muitos casos, uma repa- tes, aumentam o risco de perturbar a se limita mais às fronteiras probató- sultório de psicologia nem um escritó-
ração mais justa do dano sofrido. Os reflexão dos jurados e de alterar seu rias do desenvolvimento, explica a ad- rio de Talião”.
movimentos feministas e as associa- julgamento a respeito de uma pessoa vogada Francesca Maria Benvenuto.1 “O tribunal”, acrescenta, “se reúne
ções humanitárias contribuíram mui- cujo futuro está em jogo. “É legítimo Diante da CPI, ela apresenta elemen- para julgar um indivíduo a quem a so-
to para isso nas duas últimas décadas. que a vítima tenha todo o seu espaço tos de prova com o objetivo de explicar ciedade pede explicações por um cri-
Seus esforços permitiram que o Con- no processo. Mas não se deve ceder à e justificar a lesão sofrida, mas tam- me do qual é acusado. O objetivo é es-
selho da Europa adotasse diversos re- tentação de transformá-la, segundo os bém para estabelecer a culpa do acu- te: um homem diante do julgamento
latórios sobre a ajuda e a indenização termos do decano Jean Carbonnier, sado. Este se encontra, a partir de en- da comunidade de homens. O sistema,
que as vítimas podem, a partir de ago- ‘de sujeito passivo do delito em agente tão, diante de dois acusadores: não por mais imperfeito que seja, foi con-
ra, receber. Na França, esse foi o objeto marcial da repressão’”, advertia o ex- existe mais igualdade das armas. cebido assim, para substituir a prática
da lei de 15 de junho de 2000. O Cana- -presidente da Corte de Apelação de da vingança individual.”3 A centralida-
dá, por sua vez, dispõe desde 2015 de Paris, Jacques Degrandi, em um dis- NARRATIVAS ESPETACULARES de da vítima e a intensidade do baru-
um código dos direitos das vítimas curso de 2013. “Atenção! Progressiva- Ainda que a justiça nunca tenha si- lho midiático propagado em torno de-
que garante a estas um lugar na admi- mente, a vítima se torna o centro do do totalmente impermeável aos movi- la podem perturbar a serenidade da
nistração da justiça. Elas são ouvidas processo penal e de suas consequên- mentos de opinião, ritmados pela mí- justiça. “Em média, cada reportagem
independentemente de sua contribui- cias [...] Levar longe demais uma lógica dia que adora notícias populares, essa sobre uma notícia a respeito de um cri-
ção para a manifestação da verdade. que lhe dá, mesmo que indiretamente, tendência se generaliza. “Quando vejo me divulgada nos jornais televisivos
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 33

das 20 horas aumenta em 24 dias a du- Francesca Benvenuto conclui que o medidas de proteção necessárias fo- disposições regulamentares que, se-
ração das penas pronunciadas no dia processo penal internacional se apro- ram acusados de todos os males, inclu- gundo ele, contribuíram para a defi-
seguinte pelos tribunais”, estima o xima cada vez mais de um percurso te- sive os que iam para além deles, como ciência permanente de seu pai, vítima
Instituto das Políticas Públicas de Pa- rapêutico. Segundo alguns juristas, a as consequências da fúria da natureza. de um acidente do trabalho.
ris.4 A vítima, real ou presumida, des- justiça seria uma “etapa na necessária Os magistrados insistiram no dano so- Quando o sofrimento vem de uma
via o julgamento judiciário. Circuns- reconstrução da vítima”,7 e o novo lu- frido pelas vítimas, sem consideração ordem social ou das lógicas de um sis-
tâncias atenuantes e princípio de gar obtido no processo, uma “primeira séria das cadeias causais, e difamaram tema que privam uma pessoa de seus
individualização das penas se apagam resposta pertinente a seus múltiplos as pessoas em questão. O veredicto, direitos fundamentais, a ação se im-
em proveito de sanções pesadas quase traumas”.8 acompanhado de considerações mo- põe, e não a compaixão. A transferên-
automáticas. rais, foi pesado: o ex-prefeito de La Fau- cia do favor popular do herói para a ví-
O erro judiciário do qual foi vítima te-sur-Mer, especialmente, foi conde- tima diz muito sobre o dolorismo atual
Loïc Sécher encontra sua origem na nado a quatro anos de prisão em e o sentimento de impotência que o
emoção suscitada pelo testemunho de E nada é mais regime fechado, uma pena de uma se- acompanha. Os cidadãos se estimam
sua alegada vítima. Acusado de estu- veridade inédita para um delito não in- tão despossuídos dos meios de agir em
pro por uma adolescente, esse traba-
perigoso para tencional, já que a sanção mais pesada seu cotidiano e sobre seu destino que
lhador agrícola foi inocentado, depois o equilíbrio dos até então tinha sido de dez meses de se sentem mais próximos de uma pes-
de anos na prisão, pelo novo testemu- debates do que adotar prisão com sentença suspensa. Em se- soa que sofre o mal do que daquela que
nho da mesma mulher, agora maior de a dor como um gunda instância, a sanção foi final- luta para vencê-lo.
idade, que reconheceu ter inventado mente reduzida para dois anos de pri-
tudo. Como no caso de Outreau, em
critério de avaliação são com sentença suspensa por *Anne-Cécile Robert é jornalista do Le
que diversas pessoas foram condena- da culpa “homicídios involuntários”. Monde Diplomatique.
das erroneamente por pedofilia, a A pressão penal exercida sobre os
justiça encontrou as maiores dificul- eleitos pela palavra das vítimas tam-
dades em voltar atrás sobre uma de- Os eventuais desvios de processo bém pode ser percebida como uma
cisão equivocada, tomada sob in- penal se revelam ainda mais fáceis compensação à sua irresponsabilida-
fluência de narrativas tão imaginárias quando o crime é grave ou quando o de política crescente: nas democracias
quanto espetaculares, e com a preo- dano sofrido (por exemplo, quando de representativas em crise, a justiça se
cupação, bem legítima, de proteger um acidente de transporte que fez de- torna um meio de atingir os dirigentes
menores de idade.5 Nem é preciso di- zenas de vítimas) é imenso. Instala-se que as instituições deixam fora do al-
zer que as simplificações midiáticas, facilmente não apenas a ideia de que o cance. A Constituição da Quinta Repú- 1 Francesca Maria Benvenuto, “La Cour pénale in-
ternationale en accusation” [A Corte Penal Interna-
o culto do “tempo real” e as redes so- castigo deve ser à altura do dano, mas blica, por exemplo, concede poderes cional em acusação], Le Monde Diplomatique,
ciais não favorecem a serenidade de que é preciso encontrar um culpa- importantes para o presidente e sua nov. 2013.
nesses casos delicados. do, mesmo quando não há. As catás- maioria parlamentar, mesmo que es- 2 Denis Salas, “Le couple victimisation-pénalisation”
[A dupla vitimização-penalização], Nouvelle Revue
Em nome do sofrimento, autêntico, trofes naturais nem sempre têm res- tes tenham sido eleitos em condições de Psychosociologie, v.2, n.2, Paris, 2006.
das vítimas, esquece-se o princípio de ponsáveis diretos ao alcance da justiça, calamitosas, como foi o caso em 2017, 3 Éric Dupond-Moretti (com Stéphane Durand-
individualização das penas, essa con- pois aqueles que causam o aquecimen- quando Emmanuel Macron conse- -Souffland), Directs du droit [Diretas do direito],
Michel Lafon, Paris, 2018.
quista das sociedades democráticas to global raramente vivem nos locais guiu apenas 43,61% dos inscritos no 4 Aurélie Ouss e Arnaud Philippe, “L’impact des mé-
graças à qual se julgam os atos, mas onde suas consequências se sentem segundo turno da eleição presidencial, dias sur les décisions de justice” [O impacto da
também uma pessoa, com sua história com mais força. enquanto a abstenção nas eleições le- mídia sobre as decisões da justiça], Instituto de
Políticas Públicas, nota IPP n.22, jan. 2016. Dispo-
e suas características. Mas, ouve-se en- No entanto, as vítimas reclamam gislativas atingia 57,36% dos inscritos. nível em: <www.ipp.eu>.
tão como refutação, o criminoso se por “justiça”. Depois das inundações As leis adotadas em tais circunstân- 5 Ler Gilles Balbastre, “Les faits divers, ou le tribunal
abstrai da humanidade; por conse- assassinas causadas pela tempestade cias não são igualmente aplicadas em implacable des médias” [As notícias populares, ou
o tribunal implacável da mídia], Le Monde Diplo-
quência, a sociedade pode se abstrair Xynthia na costa oeste da França, em todas as áreas (fiscal, social, securitá- matique, dez. 2004.
dela também. Com a única diferença, 2010, o tribunal, sob a pressão dos ria etc.). A responsabilidade dos eleitos 6 Philosophie Magazine, n.116, Paris, fev. 2018.
replica Dupond-Moretti, que “não basta queixosos e da mídia, deu provas de deixa então o terreno eleitoral e passa 7 “Nicole Guedj: ‘Non, je ne suis pas inutile’” [Nicole
Guedj: “Não, eu não sou inútil”], Le Monde, 30 set.
bater no autor de um crime para dimi- uma extrema severidade perante os para o terreno penal. Foi assim que o 2004.
nuir a dor das vítimas. Não é no tribunal acusados. Os eleitos locais que tinham escritor Édouard Louis censurou pes- 8 Julian Fernandez, “Variations sur la victime et la jus-
que se vive o luto, é no cemitério”.6 dado a autorização de construção ou a soalmente o presidente Jacques Chi- tice pénale internationale” [Variações sobre a víti-
ma e a justiça penal internacional], Amnis, Aix-en-
Por sua longa observação do de- quem se censurava, por vezes legiti- rac, o primeiro-ministro Alain Juppé e -Provence, jun. 2006. Disponível em: <https://
senrolar dos processos da CPI, Maria mamente, por não terem tomado as o ministro Xavier Bertrand, sobre as journals.openedition.org/amnis/>.
34 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

A CRISE POLÍTICA QUE DIVIDE A ÁFRICA

No Congo, o candidato
derrotado... é eleito
Organizadas com dois anos de atraso, as eleições na República Democrática do Congo resultaram em um arranjo político
sem relação com a realidade das urnas. Esse epílogo suscitou divisões inéditas na África. Eclipsando as habituais reações
da “comunidade internacional”, tais fraturas lançam luz sobre as transformações políticas do continente
POR FRANÇOIS MISSER*

xcepcionalmente, a manipula- sultados”. Por sua vez, a União Africa-

E ção das eleições gerais de 30 de


dezembro de 2018 na República
Democrática do Congo (RDC)
abriu uma fratura na África: de um la-
do, aqueles que queriam fazer prevale-
na manifestou suas reservas e anun-
ciou sua intenção de enviar para
Kinshasa, em 21 de janeiro, uma dele-
gação conduzida por seu presidente, o
chefe de Estado ruandês Paul Kagamé.
cer a verdade das urnas; do outro, Única voz discordante, e não me-
aqueles que, com a África do Sul à fren- nos importante, nesse concerto de
te, privilegiaram a decisão “soberana” reações céticas: a do presidente sul-
do país. Inédita, essa divisão revela as -africano, Cyril Ramaphosa, que ime-
novas relações de força no continente diatamente felicitou os partidos con-
e os debates que o atravessam. goleses por terem garantido um
O anúncio dos resultados provisó- processo eleitoral pacífico “sem inge-
rios pela Comissão Eleitoral Nacional rência nem pressões”. Em 14 de janeiro,
Independente (Ceni) em 10 de janeiro o ministro sul-africano das Relações
suscitou imediatamente a polêmica. Exteriores e da Cooperação, Lindiwe
Depois de ter pedido uma nova con- Sisulu, apelava para que a “comunida-
tagem dos votos, a União Africana te- de internacional” “respeitasse os pro-
ve de se inclinar diante do veredito cessos internos legais”. Em 20 de janei-
do Conselho Constitucional de 20 de ro, véspera da visita anunciada de uma
Eleições presidenciais na República Democrática do Congo
janeiro de 2019. Contra a evidência, delegação da União Africana, a Corte
Félix Tshisekedi, candidato da coali- Constitucional Congolesa apitava o
zão Rumo à Mudança (CACH – Cap riu entrar em acordo com aquele que se brem com um véu de pudor as mani- fim do jogo, proclamando a vitória de-
pour le Changement), foi proclamado encontrava no segundo lugar, confian- pulações eleitorais,2 uma circunspec- finitiva de Tshisekedi. Logo após a Áfri-
vencedor com 38,57% dos votos, à do a ele sua cadeira, enquanto eleições ção inabitual acolheu esse arranjo ca do Sul, todos os países africanos en-
frente do candidato da outra coalizão legislativas, organizadas ao mesmo improvável. Um debate a distância a tão reconheceram o novo chefe de
de oposição, Lamuka [“Acordem”], tempo e validadas pela Ceni, acorda- respeito da atitude a ser adotada co- Estado congolês.
Martin Fayulu (34,8%) e do sucessor vam aos partidários do presidente uma meçou a existir entre as autoridades Chocante do ponto de vista dos va-
do presidente Joseph Kabila, Emma- confortável maioria de mais de trezen- congolesas, as organizações continen- lores democráticos, essa vitória do fa-
nuel Ramazani Shadary (23,84%), ao tos deputados em quinhentos. tais e potências regionais como a Áfri- to consumado se explica pela história
final dessa eleição uninominal com Menos brilhante e carismático que ca do Sul. Nesse diálogo interafricano, movimentada e dolorosa da RDC. O
um único turno. seu pai, Étienne Tshisekedi, figura da as críticas sobre os números oficiais país não conheceu uma alternância
Diante desse resultado, não pode- vida política congolesa morto em 2017, emitidas pelo ministro francês das Re- democrática desde sua independên-
ria haver dúvida. Entretanto, relatório Félix Tshisekedi parecia mais maleável lações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, cia, em 1960, um ano antes do assassi-
publicado em 18 de janeiro pela bem que seu concorrente que se encontrava foram rapidamente colocadas em se- nato do primeiro-ministro Patrice Lu-
informada e respeitada Conferência em primeiro lugar. Sem recursos fi- gundo plano. mumba pelos serviços secretos belgas.
Episcopal Nacional dos Bispos Congo- nanceiros nem diplomas, ele tinha ten- Depois da publicação dos resulta- Segundo a Constituição, Kabila – no
leses (Cenco)1 revelou, na base de uma tado diversas vezes uma aproximação dos provisórios, em 10 de janeiro, Ed- poder desde 2001 – deveria ter deixado
amostra representativa de 13,1 mi- com o campo de Kabila. Fayulu, por gar Lungu – presidente da Comunida- o poder em dezembro de 2016, mas a
lhões de eleitores, um pódio bem dife- sua vez, antigo executivo da ExxonMo- de de Desenvolvimento da África eleição presidencial foi adiada por
rente (Fayulu, 62,11%; depois Tshise- bil, com uma carreira política sem Austral (CDAA), da qual faz parte a dois anos, oficialmente em razão de
kedi, 16,93%; e, por fim, Ramazani comprometimentos – nem com o regi- RDC, e chefe de Estado zambiano – “problemas materiais”.3 Em tal con-
Shadary, 16,88%). O método utilizado me de Joseph Mobutu (que reinou no emitiu publicamente “sérias dúvidas” texto, a manutenção, mesmo que con-
para essa contagem provou-se correto país de 1965 a 1997) nem com a dinas- e estimou “que uma recontagem per- testável, do resultado pode aparecer
em Gana (em 2011 e em 2016), na Nigé- tia dos Kabila –, parecia incontrolável. mitiria que se tranquilizassem tanto os como um alívio... enquanto se espera
ria (em 2011 e em 2015), na Tunísia (em O apoio que lhe davam duas personali- vencedores quanto os perdedores”. Ao por dias melhores.
2014), assim como em Burkina Faso e dades muito populares – Moïse Ka- mesmo tempo, Denis Sassou Nguesso Diante do imperativo democrático,
© Monusco / Sylvain Liechti

na Costa do Marfim em 2015. tumbi, ex-governador de Katanga, e – presidente da Conferência Interna- foi a preocupação em manter a estabi-
Jean-Pierre Bemba, ex-vice-presidente cional sobre a Região dos Grandes La- lidade da RDC que ganhou no final.
UM ARRANJO IMPROVÁVEL – aumentava ainda mais sua capacida- gos (CIRGL), da qual a RDC também é Por seu tamanho e sua situação no co-
O resultado oficial foi na verdade de de perturbação. A escolha do poder membro, e dirigente do Congo-Brazza- ração do continente, esse país tem, de
negociado no último momento entre se impôs rapidamente. ville – aconselhou em Kinshasa a “con- fato, para toda a África, uma impor-
Kabila e Tshisekedi. Confrontado ao Fato novo: em um continente onde siderar uma recontagem dos votos a tância capital, ainda maior pela im-
fracasso de seu sucessor, Kabila prefe- as autoridades frequentemente co- fim de garantir a transparência dos re- portância de seus recursos. Maior fon-
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 35

te de água do continente, dotada do bro de 2018 mais de 400 mil pessoas, na sabotagem da reunião organizada ções, ela prefere deixar esse papel para
maior potencial hidrelétrico, maior maioria congoleses, quando de uma pela França em 4 de janeiro sobre as as organizações sub-regionais.
produtor mundial de cobalto, produ- operação batizada de Transparência. eleições na RDC, impedindo a ado- A implicação da União Africana nas
tor importante de cobre, ela poderia se Oriundo da etnia dos Lubas do Ka- ção de um comunicado comum. Pre- eleições congolesas representa então
tornar “a Arábia Saudita do lítio”, o saï, Tshisekedi suscita no país a espe- tória recebeu o apoio dos dois outros uma tentativa inédita (mas abortada)
metal empregado na fabricação das rança de uma regulamentação pacífi- membros africanos dessa instância de resolução da crise, sem dúvida liga-
baterias dos carros elétricos. Mas esse ca dessa crise. No final de janeiro, da ONU: a Costa do Marfim e a Guiné da à personalidade de seu presidente,
gigante econômico ainda carrega as menos de uma semana depois da pos- Equatorial. Kagamé. O chefe de Estado ruandês
feridas dos dois conflitos que o des- se do novo presidente, cerca de seis- não é um grande fã de Kabila. Ele o cri-
truíram em 1997 e em 2002. Implican- centos milicianos, reconhecíveis pelo A ÁFRICA DO SUL SE DEFENDE tica principalmente por acolher os re-
do os Estados vizinhos (Ruanda, lenço vermelho que lhes cinge a cabe- Essa atitude não está isenta de um beldes hutus em seu território. Foi sem
Uganda e Angola, em especial), mas ça, depuseram armas: fuzis AK47, fu- certo cinismo. O arranjo com Tshise- dúvida para conseguir seu apreço que
também os mais distantes (Namíbia, zis de caça, machados, bastões, flechas kedi mantém em efeito a influência de Kabila entregou ao poder de Kigali o
Chade e Zimbábue), eles são significa- e até mesmo fetiches ou amuletos. Kabila. Durante dezoito anos, o presi- coronel Ignace Nkaka, porta-voz das
tivamente qualificados como “guerras Vinte vezes menos povoado do que dente congolês foi um parceiro cômo- Forças Democráticas de Libertação da
mundiais africanas”. a RDC e seus 80 milhões de habitan- do para a África do Sul. Em 2013, um Ruanda (FDLR), e o tenente-coronel
Os países limítrofes conservam o tes, o Congo-Brazzaville vigia como se tratado internacional concedeu à Théophile Abega, responsável pelas
pavor de que uma degradação da situa- fosse leite fervente a situação do outro companhia sul-africana de eletricida- informações militares da organização
ção de segurança e humanitária na lado do Rio Congo, atemorizado pelo de Eskom mais de 2.500 megawatts rebelde, ambos presos em 15 de de-
RDC provoque um afluxo de refugia- fantasma de uma onda de refugiados provenientes da futura barragem de zembro pelo Exército congolês em Bu-
dos em seus territórios. E seus temores que o afundaria. A vontade de contro- Inga III,5 ou seja, mais da metade de nagana (Kivu do Norte).
não são infundados. Nas províncias de lar os fluxos migratórios já se traduziu sua potência. Kabila outorgou a diver- No fim das contas, todo mundo,
Kivu, a instabilidade provocada por na expulsão brutal de mais de 179 mil sas empresas sul-africanas autoriza- tanto na África como fora dela, se aco-
uma miríade de grupos armados, na- cidadãos da RDC em situação ilegal na ções petroleiras sem licitação. Uma moda com a vitória de um candidato
cionais e estrangeiros, mas também Operação Mbata ya Bakolo [“o tapa delas obteve duas concessões na Bacia que provavelmente não conseguiu
por elementos indisciplinados das dos mais velhos”], em 2014. Esse te- do Congo, invadindo o Parque Nacio- mais do que 17% dos votos. Mas será
Forças Armadas da República Demo- mor foi despertado novamente em de- nal da Salonga. Segundo fornecedor que a população congolesa vai aceitar
crática do Congo (FARDC), é tal que as zembro de 2018 pelos enfrentamentos comercial da RDC, em diversos produ- o que Fayulu qualificou como um “gol-
operações eleitorais não puderam dos Yumbi, na província de Mai-N- tos, depois da China, a África do Sul pe eleitoral”?
acontecer em todo o território. Nas dombe, onde as operações eleitorais protege sua posição. Quase todo o co-
circunscrições de Beni e de Butembo, foram também suspensas. Ao menos bre e o cobalto congoleses transitam *François Misser é jornalista.
no Kivu do Norte, a eleição simples- 890 habitantes teriam sido assassina- ainda pelos portos sul-africanos, ape-
mente não aconteceu. No Kivu do Sul, dos e 16 mil pessoas se refugiaram no sar da concorrência crescente dos cor-
os rebeldes burundeses das Forças Na- Congo-Brazzaville, segundo o Alto Co- redores de Benguela, em Angola, e de 1 Ler “L’Église congolaise contre Kabila” [A Igreja
congolesa contra Kabila], Le Monde Diplomatique,
cionais de Libertação (FNL) enfrentam missariado das Nações Unidas para os Walvis Bay, na Namíbia. abr. 2018.
de tempos em tempos o Exército oficial Refugiados (Acnur). Essa mesma preo- Para a União Africana, o desenlace 2 Ler Tierno Monénembo, “En Afrique, le retour des
de Bujumbura. Os trabalhadores hu- cupação de prevenir um êxodo prove- da novela congolesa é incontestavel- présidents à vie” [Na África, o retorno dos presi-
dentes à vida], Le Monde Diplomatique, dez. 2015.
manitários estimam o número de des- niente da RDC existe em Ruanda, que mente uma afronta. Em 2002, quando 3 Ler Sabine Cessou, “Transition à haut risque en
locados internos em mais de 4,5 mi- hospedaria, no final de dezembro de sucedeu à Organização da Unidade République démocratique du Congo” [Transição
lhões, 1,3 milhão apenas na região do 2018, mais de 79 mil refugiados congo- Africana (OUA), criada em 1963, ela de alto risco na República Democrática do Con-
go], Le Monde Diplomatique, dez. 2016.
Grande Kasaï, no centro do país, onde leses, chegados em diversas ondas.4 afirmou que “eleições transparentes e 4 “République du Congo. Les expulsions collectives
os enfrentamentos com as FARDC te- Nesse jogo, a África do Sul joga críveis constituem um elemento-cha- de ressortissants de la RDC pourraient constituer
riam feito 3 mil mortos desde 2016. Al- sua própria partida. Ao validar o pro- ve que permite a garantia do direito des crimes contre l’humanité” [República do Con-
go. As expulsões coletivas dos cidadãos da RDC
gumas centenas de milhares de habi- cesso eleitoral congolês, ela reafirma fundamental e universal do governo poderiam constituir crimes contra a humanidade],
tantes do Kasaï fugiram para Angola, seu vínculo ao princípio da soberania participativo e democrático”.6 Ela pre- Amnesty International, 2 jul. 2015.
onde as concessões de diamantes das dos Estados e uma diplomacia hostil vê inclusive missões de observação 5 Ler François Misser, La Saga d’Inga. L’histoire des
barrages du fleuve Congo [A saga de Inga. A his-
províncias do Lunda Norte e do Lunda à ingerência de tipo imperialista. encarregadas de avaliar a indepen- tória das barragens do Rio Congo], L’Harmattan/
Sul foram invadidas pelos garimpeiros Eleita membro não permanente do dência das comissões eleitorais nacio- Museu Real da África Central, Paris/Tervuren (Bél-
congoleses. Invocando o direito de Conselho de Segurança da ONU para nais, o bom desenrolar das eleições e a gica), 2013.
6 Declaração dos princípios regentes das eleições
proteger seus recursos minerais, Luan- 2019-2020, ela contribuiu, em nome utilização dos fundos públicos. No en- democráticas na África, OUA/UA, Durban, 8 jul.
da expulsou entre setembro e dezem- do princípio de não ingerência, com a tanto, na prática, na maioria das situa- 2002.
36 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

ENTREVISTA

“Sociedade brasileira é hipócrita e


preconceituosa”, diz Ney Matogrosso
Aos 77 anos, ícone da cultura nacional fala ao Le Monde Diplomatique Brasil sobre momento político do país,
relação com as drogas e religião
POR GUILHERME HENRIQUE*

“N
ão falo de política”, afirmou nectados, ainda que nem todos este- Como foi aquela situação com o MBL, Durante seu documentário, você diz
Ney Matogrosso ao sentar-se no jam à mostra. O Le Monde Diplomati- em que o Kim Kataguiri tirou uma foto que é no palco que você se liberta.
sofá de seu amplo apartamento que Brasil foi ao seu encontro para com você e postou nas redes sociais? Da minha loucura, porque sempre
na zona sul do Rio de Janeiro, puxar uma das pontas. Foi um episódio bobo; tentaram me temi a loucura. Estou falando isso do
em uma tarde abafada de fevereiro. A usar naquele momento. Mas entrei na Secos & Molhados, que foi um mo-
frase saltou da boca do artista como se LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL justiça e ele foi obrigado a tirar qual- mento de catarse pra mim. Eu não ti-
fosse um bom-dia, acompanhada por – Há uma frase no seu livro de memó- quer referência ao meu nome nas redes nha um rosto, lembre-se disso... Quan-
um semblante amistoso, mas firme. rias que diz que “a parte masculina ou dele. Uma bobagem, porque depois de do deixei de ter um rosto, algo jorrou
Vestindo branco da cabeça aos feminina que as pessoas enxergam em três ou quatro dias ninguém lembrava de dentro de mim. Enfrentei todo o
pés, as pernas cruzadas, cercado por mim é reflexo delas próprias”. Como, mais. É que ali estava no calor da situa- medo da loucura que eu tinha.
quadros, Ney Matogrosso não está por meio do seu trabalho, é possível fa- ção, e ele se guiou por uma entrevista
preocupado em agradar ninguém. zer uma análise da sociedade? que eu tinha dado para um jornal es- Da loucura em que sentido?
“Não sou hipócrita”, diz algumas ve- NEY MATOGROSSO – Sempre achei a trangeiro sobre ser a favor ou contra o Vou te dar um exemplo: nas déca-
zes ao longo da conversa. A máxima sociedade brasileira muito preconcei- impeachment da Dilma. Disse que, se das de 1950 e 1960, eu andava de ôni-
de não falar de política acaba rapida- tuosa e hipócrita. Sempre me coloquei houvesse culpa, ela deveria sair. Mas eu bus diariamente. Ia pagar para o tro-
mente, ao esclarecer que nenhum contra a hipocrisia, assumindo a ver- não torcia pela queda dela, como não cador e ele dizia que não tinha troco.
partido político lhe interessa e que só dade desde a primeira entrevista que torço pelo mal desse que está aí [Bolso- Antes disso acontecer, eu já imaginava
a liberdade vale a pena. dei. Não sabia o que dizer, mas tinha a naro]. Não sou assim. Posso discordar, a seguinte cena: vou entrar no ônibus,
Em seu livro de memórias (Ney Ma- certeza de não querer viver escondido mas respeito o voto das pessoas. o trocador vai dizer que não tem troco,
togrosso – Vira-lata de raça), lançado como muitos artistas brasileiros vi- e eu me via pendurado no corrimão
no fim de 2018, Ney se define como li- viam à época, ocultos atrás de uma enfiando o pé na cara dele, quebrando
vre e subversivo. Ninguém há de es- fachada. Isso não me interessava, tudo. Era muito louco, e eu tinha hor-
quecer o que ele, João Ricardo e Ger- porque seria compactuar com a hipo-
“Quando se parte ror disso se concretizar.
son Conrad fizeram no início dos anos crisia. Desde o começo digo a verda- do pressuposto
1970, com o Secos & Molhados. “Eu su- de, sabendo que não teria rabo para de que você tem um Aí veio a cara pintada do Secos &
bia no palco querendo trepar com as as pessoas pisarem. Antes que elas partido, é preciso Molhados.
pessoas”, relembra. Aos 77 anos e qua- falem de mim, eu já falei tudo. Fui com tudo. Eu era muito agressi-
se meio século de carreira, a forma de
aceitar todos oserros vo, então talvez precisasse exercitar a
reivindicar mudou: “Quando vejo a Sobre isso de artistas se esconderem, daquele partido e falar agressividade. Temia a agressividade,
notícia de que 50 milhões de brasilei- tenho a impressão de que os artistas de mal dos outros” e ela foi exercitada via arte. Acho que
ros estão abaixo da linha da pobreza, antigamente se expunham mais, tal- todas as pessoas, em todas as profis-
eu canto ‘Tem gente com fome’ no meu vez pelo período político. Qual é sua sões, deveriam praticar qualquer tipo
show”, salienta. avaliação do período atual? de arte. A doutora Nise da Silveira sa-
O já conhecido estilo provocador e Existe uma novíssima geração que Recentemente, você disse que “não cou isso. Colocar sua loucura para fora
autêntico ganha força a cada análise. A contesta o tempo todo. Não sou uma queria ser âncora do medo ao falar pela arte, ultrapassar os limites e im-
sociedade, para ele, vive um período pessoa acomodada também. Estou fa- do Brasil”. pedimentos das fantasias negativas.
delicado, na linha tênue entre o temor zendo um show que as pessoas estão Sim, porque todo mundo estava
e o atraso. “Não quero ser âncora do considerando político, mas não há po- apavorado, e eu não quero ter medo. E aí você chega à década de 1980 com
medo e não saberia viver desse jeito”, lítica partidária. Quando vejo a notícia Nunca tive medo de nada, por que vou shows mais formais, de terno...
esbraveja. de que 50 milhões de brasileiros estão me agarrar no medo neste momento? Mas não foi pra limpar a barra, e
Ao vasculhar a própria história, abaixo da linha da pobreza, eu canto sim por uma necessidade de experi-
Ney Matogrosso vai se desvencilhan- “Tem gente com fome”, e isso não sig- Como você se blinda? mentar aquilo.
do das camadas que o formam. Fala do nifica que eu esteja defendendo parti- É você se colocar mentalmente.
uso de drogas com naturalidade. O do político, porque nenhum deles me Não tenho medo, e aí? Isso não signifi- Mas em que momento, depois do Secos
amor e a loucura parecem ter a mesma interessa nem nunca me interessa- ca que eu esteja imune a nada. Mas eu & Molhados, essa loucura que apare-
importância, sem que nenhum dos te- ram. Quero ter liberdade para falar de não quero ficar nessa energia de te- cia por meio da arte acabou?
mas seja discutido com pudor. “Desde todas as coisas. Quando se parte do mor. Isso é um atraso, péssimo. Não A arte é útil pra mim até hoje. É o que
o começo digo a verdade, sabendo que pressuposto de que você tem um par- saberia viver desse jeito. me realiza como ser humano, e eu não
não teria rabo para as pessoas pisa- tido, é preciso aceitar todos os erros saberia ser outra coisa senão artista.
rem”, ressalta. daquele partido e falar mal dos outros. Mesmo em tempos de ditadura?
Entre memórias e revelações, Ney Então prefiro não ser de nenhum par- Mesmo naquele período. Se eu ti- Mas não pra exorcizar loucura.
Matogrosso faz de sua vida um grande tido. Sou um ser humano que pretende vesse medo, não tinha nem mostrado Não pra exorcizar loucura, mas,
novelo. Fios longuíssimos estão co- usar a liberdade de expressão. a cara. naquele momento, foi. Era um mo-
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 37

Como o público responde a seu com-


portamento no palco, antes e agora?
No começo peguei umas barras
bem pesadas, de agressão. Mas, a par-
tir do momento em que eu fui mudan-
do, isso foi se alterando também. Hoje
em dia não quero agredir ninguém,
quero acariciar. Antigamente queria
trepar com todos eles. Minha sorte foi
nunca ter reprimido nada, mesmo que
fosse agressividade.

Você está cantando “A Cara do Brasil”


no seu show, que diz: “A gente é torto
igual Garrincha e Aleijadinho / Nin-
guém precisa consertar / Se não der
certo a gente se virar sozinho / decerto
então nunca vai dar”. Essa é nossa si-
na? Há quem acredite que precisamos
criar algo enquanto país.
Sim, concordo com ele. Mas, para
isso, precisamos voltar lá atrás, respei-
tar os índios, os negros, a natureza.
Porque há, por exemplo, uma dívida
histórica com os negros que ainda não
foi resolvida. A gente precisa entender
© Guilherme Henrique

qual é nosso jeito, mas não sei se vive-


rei pra ver. Enquanto o Brasil que eu
idealizo não acontece, vou vivendo
minha vida, me distanciando desses
focos de podres poderes.

Como você avalia a presença da mi-


mento de extrema violência do gover- pécie de ritual. Droga era um veículo pulo do gato pra eles. Esse pensa- nistra Damares Alves, com um dis-
no, e eu fui muito agressivo. Entrava para alcançar outro estágio. Tomei o mento te leva a independer de qual- curso evangélico, no ministério que
no palco agredindo antes de dar santo-daime por um ano e meio nos quer igreja ou religião. Seu relaciona- contempla direitos humanos e temas
oportunidade para alguém me agre- anos 1980 e parei porque estava fican- mento com Deus é direto. Ele não é relacionais a religião e sexualidade?
dir. Via fotos daquele período e não do meio acelerado. um senhor que fica lá no céu apon- Bom, primeiro de tudo, o Estado é
entendia como poderia ser eu, por- tando o dedo para mim dizendo que laico. Nenhuma religião deve coman-
que não me reconhecia na época do No livro, você diz que se considera uma eu errei. Deus, para mim, é um prin- dar nada. Isso já é errado.
Secos & Molhados. Não sabia que pessoa estranha para a média da cípio amoroso.
aquilo estava dentro de mim, porque população. E o Bolsonaro?
aí o assunto é o inconsciente. Era algo Porque penso esse tipo de coisa Qual foi seu pulo do gato? Moderou um pouco o discurso.
que vinha e eu deixava acontecer, que estou te falando [risos]. As pessoas Entender que quem comanda é o Espero que ele entenda que existe
protegido por uma máscara que for- nem atinam para essas possibilidades. coração, não a cabeça. Compreendi is- muita coisa para se preocupar no
talecia o resto. Acredito no que não vejo, sou muito so ao tomar o daime. Tudo ia para mi- país. E não adianta achar que os gays
intuitivo e acredito na minha intuição. nha cabeça, e eu ficava esquematizan- vão acabar, porque as pessoas nas-
Como o uso de drogas aparece nessa Acredito em vida em outros planetas. do tudo, julgando, “que gente esquisita, cem e continuarão nascendo. Se ele
história? É ridículo acharem que somos o ápice esses crentes”. Em determinado mo- não está informado, que saiba: nin-
As drogas aconteceram antes do de todos os universos e da criação. Es- mento, pensei: “Idiota, para de olhar guém vira nada, as pessoas nascem
Secos & Molhados. No dia que come- tamos longe disso e de qualquer ápice. para fora e olha para dentro de você”. desse jeito. Deixa cada um viver sua
çou minha carreira no grupo decidi Se o ápice destrói seu hábitat, rouba, Árduo trabalho, tá? Até que um dia en- vida e vai governar. Não se meta na
que não deveria usar nada no palco. assassina, que ápice é esse? tendi que não estava na cabeça e co- vida de ninguém.
Fumei maconha uma única vez para mecei a exercitar isso. Este é o pulo do
fazer um show, na primeira vez que fo- gato que ninguém dá: você tem que se Há uma entrevista sua recente à Folha
mos a Belo Horizonte. Lembro de estar guiar pelo seu coração. Eu não era de S.Paulo em que você questiona esse
em um campo de futebol e alguém da
“Enquanto o Brasil amoroso com as pessoas, não sabia re- papel de ser o representante do movi-
plateia falou “bota pra quebrar, Ney, que eu idealizo não ceber carinho. mento gay. Por que você acha que as
porque nós não podemos”. É a única acontece, vou Na minha casa, ninguém nunca se pessoas o colocam nesse lugar?
memória do show. Eu não gosto de não vivendo minha vida, beijou. Saí de casa aos 17 anos e fui vi- Porque talvez eu tenha sido o pri-
ter memória. ver minha vida independente, fosse meiro que teve coragem de se expor.
me distanciando tendo o que comer ou não. Optei por Não vejo por outro ângulo. Eles estão
Você acha que seria um artista dife- desses focos de ser livre e nunca me fiz de coitado. Is- me ouvindo falar há 45 anos sobre tu-
rente sem utilizar drogas? podres poderes” so me endurecia, porque estava sozi- do, e será que ainda não entenderam
Não sei, porque, como nunca subi nho contra o mundo. Depois, com o minha mensagem? Ou não querem
no palco sob efeito de nada, minhas daime, fui entendendo que poderia entender? É conveniente. Eu apoio to-
experiências foram anteriores ao Se- ser mais manso, mesmo discordando dos os movimentos. Eu sou muito mais
cos. Estou falando de LSD puro, que Por que não refletimos sobre isso? de tudo. É uma questão de amor pró- que isso, não me satisfaço só com isso
abre as portas da percepção. Não é Porque não somos ensinados, não prio, outra coisa que as pessoas não e penso muito além disso.
usar droga para dançar em boate. Eu ia falam disso na escola. Porque nossos entendem. Gostar de si, se respeitar.
para praias desertas no final da déca- pais não incentivam e porque eles Devo ter limites, ainda que sejam
da de 1960, com roupa branca, uma es- também não sabiam. Não deram o mais elásticos [risos]. *Guilherme Henrique é jornalista.
38 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2019

MISCELÂNEA

livros internet
POLÍTICAS NOVAS NARRATIVAS DA WEB
TERRITORIAIS, Sites e projetos que merecem o seu tempo
EMPRESAS E
COMUNIDADE –
O NEOEXTRATIVISMO
A CRISE E A GESTÃO SEM AÇÚCAR
DO VALOR EMPRESARIAL Antonio Rodríguez Estrada é um fotógrafo ma-
DE TROCA DO “SOCIAL” drilenho entusiasta da alimentação saudável. A
Robert Kurz, Henri Acselrad (org.), forma que encontrou para juntar suas paixões
Consequência Garamond foi um projeto em que tira fotos de alimentos
ao lado do que seria a quantidade de açúcar
em cada um deles, empilhada em torrões. A

O público brasileiro ganha tradução inédita de um


texto fundador da crítica do valor (wertkritik),
assinado por aquele que foi seu principal expoente,
A ruptura da barragem da mina Córrego do Feijão, da
empresa Vale, colocou em discussão toda a estru-
tura de regulação dos impactos de grandes empreen-
indústria de alimentos, sem dúvida, é uma das
responsáveis pela epidemia de obesidade nos
países ocidentais. Um alerta antes de entrar
Robert Kurz. O ensaio A crise do valor de troca foi dimentos. Esse desastre político revelou, mais uma vez, no site: talvez você pense duas vezes antes de
publicado originalmente em 1986 no primeiro nú- o descaso com que empresas mineradoras tratam as comprar um refrigerante, um achocolatado ou
mero da revista Marxistische Kritik – o editorial do populações locais, ignorando os alertas de defensores um iogurte.
número acompanha o volume como anexo. Vemos de direitos socioambientais e deixando ao abandono as <www.sinazucar.org>
nesse texto como o pensamento de Kurz ganhou próprias vítimas dos desastres, como já sabido no caso
impulso por meio da observação das transforma- da Samarco. O que o livro pretende discutir são as polí-
ções históricas do capitalismo, que o autor tinha sob ticas empresariais adotadas para lidar com as comuni- DETOX DIGITAL
seus olhos: “o objetivo deste texto consiste em apre- dades atingidas por seus projetos extrativos. Se essas Em meia hora, ou menos, por dia, você estará
sentar [...] o limite lógico absoluto e o limite histórico comunidades são desconsideradas em seus direitos a caminho de uma vida digital mais saudável
do capital como consequência do mais recente e após os desastres, o que dizer das políticas “sociais” das e sob controle. Essa é a proposta do Data
qualitativamente novo estágio de socialização capi- empresas adotadas antes deles? Em que medida as Detox Kit, feito pelo Glass Room London em
talista” (grifo meu). políticas empresariais com relação às comunidades não 2017, com a curadoria do Tactical Technology
As crises advindas ao longo da década de 1970 estariam comprometendo a capacidade da sociedade Collective e apresentado pela fundação Mo-
anunciavam o fim da concertação econômico-esta- de debater livremente as condições de implantação de zilla – essa mesma, do navegador Firefox. A
tal que parecia ter estabilizado as contradições da tais negócios e de prevenir seus riscos? Em que medida ideia é que você perceba a intersecção entre
sociedade capitalista. Entre essas crises, destaca- as atividades empresariais destinadas a antecipar e pre- tecnologia, direitos humanos e liberdades ci-
va-se a do trabalho, o desemprego em massa como tensamente “resolver” os conflitos desencadeados por vis, e como tudo isso faz parte do seu dia a
consequência do processo de automatização das ta- seus empreendimentos não estariam neutralizando, em dia na rede. Segurança digital, privacidade e
refas produtivas, agora alçado a novo patamar quali- seu nascedouro, as condições democráticas de ocupa- ética dos dados não são levados muito a sério
tativo com a invenção da microeletrônica. Enquanto ção dos territórios, no respeito aos direitos básicos das em nenhuma parte do mundo, e talvez menos
muitos se limitavam a discutir essas transformações populações atingidas por tais projetos e na prevenção ainda no Brasil. Um bom começo é você saber
sob o limitado prisma da política, Kurz debruçou-se de desastres? quais são suas pegadas digitais.
sobre a cientificização do trabalho para entender Os trabalhos reunidos nessa coletânea discutem <https://datadetox.myshadow.org>
suas contradições mais profundas. Percebeu, então, tanto a expansão dos projetos extrativos no mundo
que as transformações em curso traziam o apare- como o poder excepcional assumido pelas empresas
cimento de uma forma de trabalho materialmente multinacionais da mineração na esfera política, ao pon- TREEPEDIA
produtivo, porém improdutivo quanto à criação de to de elas interferirem nas atribuições próprias aos Restam poucos governantes no mundo que
valor. Essa modificação histórica tornava mais visível Estados-nação e nos modos de vida das comunidades ainda duvidam do aquecimento global. Assim,
aquela que seria a contradição essencial da história atingidas. As interferências nas máquinas estatais são cidades no mundo todo têm buscado aumen-
do capital: “a contradição entre produtividade mate- aquelas que têm resultado na facilitação imprevidente tar suas áreas verdes, com diferentes estra-
rial, por um lado, e o caráter do valor ou de merca- da concessão de licenças de instalação e operação, tégias – não apenas para salvar a espécie
doria, por outro”. em adequações casuísticas da legislação ambiental, humana, mas porque trazem incontáveis be-
Nascia assim uma teoria crítica que percebia na dis- na diminuição do valor de multas, na precarização das nefícios e qualidade de vida aos habitantes. O
crepância entre a forma-valor e a produtividade mate- ações de fiscalização etc. A gestão empresarial do “so- Massachusetts Institute of Technology (MIT)
rial o limite objetivo do capitalismo. Assente na redução cial”, associada a discursos de “governança”, “respon- criou um índice capaz de comparar o verde
do trabalho vivo, a expansão da produção significaria sabilidade social” e “investimento social privado”, tem, visto nas cidades do mundo. Ele mede a área
inversamente uma redução constante da massa de por sua vez, configurado formas de “governo indireto” verde no nível nas ruas, e não parques e gran-
mais-valia, razão pela qual a teoria de Kurz se tornaria que tendem a enfraquecer a disposição do Estado e des bosques urbanos. Por enquanto, apenas
cada vez mais uma teoria da crise – bastante distinta da sociedade civil de discutir e influir na concepção algumas cidades do mundo estão mapeadas.
das antigas teorias do colapso – e que vemos se de- dos projetos de mineração, assim como no tipo de de- São Paulo é uma delas, com 11,7% no Green
senvolver no segundo texto que compõe esse volume: senvolvimento que eles encarnam. Essas questões de View Index. A título de comparação, Nova York
“Tudo sob controle no navio a pique: superacumulação, grande atualidade são, nesse livro, discutidas tendo por tem 13,5%; Amsterdã, 20,6%; e Paris, 8,8%.
crise da dívida e política” (1989). O livro é o primeiro base estudos de caso da empresa Vale e de outras <http://senseable.mit.edu/treepedia>
de uma série de novas traduções de Robert Kurz que empresas mineradoras no México, na Argentina, no
sairão pela editora. Peru e na República Democrática do Congo.
[Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
[Gabriel Ferreira Zacarias] Professor do Departa- [Gustavo Schiavinatto Vitti] Geógrafo e douto- professor de Jornalismo na ESPM, mestre em
mento de História da Universidade Estadual de Cam- rando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/ Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
pinas (Unicamp). UFRJ). torando em Design na FAU-USP.
MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE
BRASIL

Roteiro da resistência diplomatique


Parabéns, Silvio! Belo editorial. Precisamos de Ano 12 – Número 140 – Março 2019
uma imprensa realmente livre e que seja capaz de www.diplomatique.org.br

resistir ao golpe que foi dado à nossa democracia e DIRETORIA


contra os direitos constitucionais. Não vamos Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Silvio Caccia Bava
aceitar o fascismo. É preciso resistir. A principal Diretores
VENEZUELA, ESTADOS UNIDOS E FRANÇA
forma de resistência será com o povo na rua. Será 2 Chegar ao fundo do poço... e continuar cavando?
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Rubens Naves
necessário, a cada momento em que algo fira direi- Por Serge Halimi
tos individuais ou coletivos, ir à praça pública. De- Editor
Luís Brasilino
nunciar. Gritar. Não ter medo. A principal arma do EDITORIAL
povo, juntar-se e ir para a rua em todas as cidades
3 A guerra contra os diferentes Editor-web
Por Silvio Caccia Bava Cristiano Navarro
do nosso país.
Uacai Lopes CAPA Editores de Arte
4 Notas para entender os militares brasileiros na atualidade
Adriana Fernandes e Daniel Kondo

Por Alexandre Fuccille Estagiária


Somente para meus olhos Taís Ilhéu
Por que o sistema educacional brasileiro
Por Lucas Pereira Rezende
nunca adotou Paulo Freire na prática? Revisão
A educação nas Forças Armadas Lara Milani e Maitê Ribeiro
Ora, não há o que estranhar. O tipo de educação Por Ana Penido
que interessa à plutocracia é a que forma analfabe- Gestão Administrativa e Financeira
Arlete Martins
tos políticos, pessoas conformadas com o sofri- UM MILHÃO DE PESSOAS JÁ PASSARAM PELOS
mento, nunca uma educação para a liberdade, co-
9 CAMPOS DE REEDUCAÇÃO Assinaturas
A repressão contra os uigures no controlado mundo do Viviane Alves
mo pregava o Freire. Simples assim.
“sonho chinês”
José Mário Ferraz Por Rémi Castets Tradutores desta edição
Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
AS CIÊNCIAS SOCIAIS A SERVIÇO DA
O que querem os militares brasileiros?
12 “CONTRAINSURREIÇÃO” Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Retrato do intelectual como soldado
Casamento esse que está fadado ao fracasso. Já po- Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Por Olivier Koch Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
demos ver os primeiros atritos entre o Ministério Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
da Agricultura, representando o intervencionismo VENEZUELA Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau

estatal, e o Ministério da Fazenda, levando o


14 A sombria carreira do enviado especial norte-americano Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
neoliberalismo. Por Eric Alterman Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
O que quer a oposição?
Rodrigo Santos Assessoria Jurídica
Por Julia Buxton
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

SEGURANÇA PÚBLICA
Edição 139
18 O pacote de Moro nasce velho
Escritório Comercial Brasília
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Por Marcelo Freixo Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
Parabéns, Le Monde Diplomatique Brasil! Desde
que conheci o teor de suas reportagens não parei Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE
mais de ler. Continuem esclarecendo, informando 20 Políticas da morte e seus fantasmas
da associação Palavra Livre, em parceria com o
Instituto Pólis.
nesse teor de comprometimento. Embora haja um Por Adriana Vianna
Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
segmento cego às notícias sérias, sigam informan- São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
200 MILHÕES DE GREVISTAS CONTRA
do quem busca não só leitura, mas conhecimento. 22 NARENDRA MODI
Tel.: 55 11 2174-2005
diplomatique@diplomatique.org.br
Lizete Rizzotto Tonello www.diplomatique.org.br
Na Índia, os “bons dias” vão ter de esperar
Por Naïké Desquesnes Assinaturas
Capa sensacional, como sempre, e conteúdo igual- assinaturas@diplomatique.org.br
mente bom. PROTESTOS DOS BÁLCÃS À HUNGRIA Tel.: 55 11 2174-2015

Bruno Henrique
23 Revoltas na periferia da Europa
Impressão
Por Jean-Arnault Dérens e Simon Rico Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Todo começo de mês eu fico na expectativa da ca- AS ELITES DIANTE DOS “COLETES AMARELOS” Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
pa do Diplô. Sempre fantástica. 24 A ilosoia do desprezo
MISTO
Davi de Carvalho Por Bernard Pudal

FAKE NEWS OFICIAIS


26 Viagem nas falsas verdades
Intelectuais de internet chegam ao poder: Por Serge Halimi e Pierre Rimbert Distribuição nacional
a luta de classes do saber DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
O que pensar de um país que considera nossos REFAZER A UNIÃO EUROPEIA Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –

professores e professoras bandidos, que vibra ao


28 Estratégia para a esquerda Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
Por Frédéric Lordon
ver esses profissionais sendo massacrados pela po- LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
Por uma “Primavera Europeia” em maio
lícia, mas defendem a greve dos caminhoneiros, Por Yanis Varoufakis Fundador
Hubert BEUVE-MÉRY
“pois são pais de família e trabalhadores”? Como
se os professores não tivessem família ou não tra- QUANDO O TRIBUNAL SE FAZ DE PSICÓLOGO Presidente, Diretor da Publicação

balhassem. Essas eleições confirmaram que a ig-


32 A justiça transigurada pelas vítimas
Serge HALIMI

Por Anne-Cécile Robert Redator-Chefe


norância e a imbecilidade dominam este país! Philippe DESCAMPS
Otto Mendes A CRISE POLÍTICA QUE DIVIDE A ÁFRICA
34 No Congo, o candidato derrotado... é eleito
Diretora de Relações e das
Edições Internacionais
Anne-Cécile ROBERT
Por François Misser
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas Le Monde diplomatique
críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
ENTREVISTA
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e,
se necessário, resumidas para a publicação.
36 “Sociedade brasileira é hipócrita e preconceituosa”, diz
secretariat@monde-diplomatique.fr
www.monde-diplomatique.fr
Ney Matogrosso
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus Por Guilherme Henrique Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37
autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5
do periódico. eletrônicas.
MISCELÂNEA
38 ISSN: 1981-7525
Capa: © Rodrigo Leão
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V IVEMOS TEMPOS DIFÍCEIS. TEMPOS DE DISPERSÃO,


PERPLEXIDADE, CONFUSÃO E DISSEMINAÇÃO DE MENTIRAS.
NUNCA FOI TÃO DIFÍCIL COMPREENDER O MUNDO. NUNCA FOI
TÃO IMPORTANTE FORTALECER O JORNALISMO CRÍTICO E
INDEPENDENTE.

A PARTIR DE MARÇO O LE MONDE DIPLOMATIQUE ESTARÁ COM


SUA CAMPANHA DE ARRECADAÇÃO NO CATARSE. QUEREMOS
ASSEGURAR A CONTINUIDADE DESTE TRABALHO DE
COMUNICAÇÃO E EXPANDIR O JORNALISMO DE QUALIDADE
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