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Na Argentina, falar da

ditadura e dos militares


que a conduziram é
motivo de desonra
País teve um dos regimes mais sanguinários do
continente, com ao menos 30.000 mortos
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Protesto em Buenos Aires reúne centenas de pessoas na Praça de


Maio no aniversário do golpe militar na Argentina, dia 24 de
março. EMILIANO LASALVIA AFP
Em 18 de setembro de 1985, o procurador Julio César Strassera
completou 52 anos. Uma coincidência o levou a ficar nesse dia
diante dos militares que logo eriam sentenciados por crimes
contra a humanidade cometidos durante a ditadura. Strassera
tinha trabalhado duro para conseguir a condenação de Jorge
Rafael Videla, Emilio Massera, Leopoldo Galtieri, Armando
Lambruschini e Orlando Agosti por criarem um plano repressivo
que deixou 30.000 vítimas, entre mortos e desaparecidos. O
argumento do promotor colocou um ponto na história argentina.
Strassera citou Dante Alighieri e chamou os responsáveis pelo
terrorismo de Estado de "tiranos que viveram de sangue e
rapinagem". E concluiu sua leitura com uma frase que ainda
produz calafrios nos argentinos: "Senhores juízes, nunca mais". O
tribunal teve que pedir à polícia que esvaziasse a sala, que
irrompeu eufórica.
Passaram-se 34 anos desde o julgamento da junta militar
promovido pelo Governo de Raúl Alfonsín (1983-1989). Strassera
citou no encerramento de suas considerações finais o Nunca
Mais que foi o título do relatório da Conadep, a comissão da
verdade liderada pelo escritor Ernesto Sábato e que registrou
quase 9.000 casos de assassinados e desaparecidos pela ditadura.
A cifra era provisória, compilada meses após o término do Governo
militar graças ao depoimento de sobreviventes e parentes das
vítimas. O trabalho da Conadep e, meses depois, o julgamento da
Junta Militar, colocou a Argentina na vanguarda da luta contra a
impunidade na América Latina. Esse exercício de memória e
justiça continua ativo no país sul-americano. O espírito do Nunca
Mais sobreviveu à passagem dos anos.
A última marcha, há uma semana, para lembrar o aniversário do
golpe de 24 de Março de 1976 – que pôs fim ao Governo
constitucional de Isabel Perón — e as vítimas da ditadura reuniu
dezenas de milhares de pessoas na Plaza de Mayo, em frente à
Casa Rosada, em Buenos Aires. Como todos os anos, os atos de
repúdio se repetiram nas escolas públicas, a imprensa dedicou
espaços à memória daqueles anos e os editores aproveitaram a
força do aniversário para publicar livros sobre o assunto.
Acontece que há pouco espaço para dúvidas na Argentina: a
ditadura e os militares que a lideraram são uma palavra feia,
ruim, neste país onde o terrorismo de Estado foi especialmente
sanguinário. Seus líderes já morreram, todos no ostracismo, sem
que sequer se saiba com exatidão onde estão seus túmulos. Não
há monumentos ou ruas que lembrem aqueles que certa vez foram
amos e senhores.
Na Argentina não existe o "videlismo", o "masserismo" ou o
"galtierismo", muito menos um partido militarista que supere a
insignificância ou um político que defenda esses anos em público.
Quem tiver aspirações eleitorais, faz melhor se guardar suas
opiniões.
O caminho da memória, no entanto, teve altos e baixos. As ações
judiciais contra as Juntas seguiram as leis de Obediência Devida e
de Ponto Final, aprovadas entre 1986 e 1987, após uma série de
revoltas militares nos quartéis. As duas leis puseram fim a novos
julgamentos e deixaram sob proteção os comandos médios e
baixos que, com a desculpa de terem cumprido ordens, haviam
sequestrado, torturado e assassinado. O então presidente Carlos
Menem deu um passo além nos anos 90 e assinou um indulto
para os chefes, que voltaram para suas casas. Mas as
organizações de Direitos Humanos logo encontraram uma brecha
no decreto de Menem e ativaram dezenas de causas por roubo de
bebês: a ditadura tinha idealizado um plano para entregar para
adoção as crianças nascidas nos centros de tortura de mães
assassinadas em seguida.
O roubo de bebês devolveu à prisão personagens como Videla,
mas ainda restavam dezenas de investigações congeladas pelas
chamadas "leis do perdão" promulgadas por Alfonsín. Durante o
Governo de Néstor Kirchner (2003-2007) tudo mudou. Em junho
de 2005, a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade de
ambas as normas e reativou dezenas de ações judiciais. O último
relatório da Promotoria de Crimes contra a Humanidade do
Ministério Público registrou 575 ações contra repressores, com
3020 imputados. Desde 2006, quando os casos foram reabertos,
até setembro de 2018, data da última estatística, os tribunais
argentinos proferiram 209 condenações contra 862 indiciados.
Outros 715 militares aguardam sentença. A história sombria da
ditadura está viva na Argentina.

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