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Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD)

10(2):219-224, maio-agosto 2018


Unisinos - doi: 10.4013/rechtd.2018.102.11

Entrevista

Pensar o Direito com Habermas? Entrevista de


Dominique Rousseau com Jürgen Habermas1
Thinking Law with Habermas? Dominique Rousseau
interview with Jürgen Habermas

Dominique Rousseau2
Université Paris 1, França
dominique.rousseau@univ-paris1.fr

No intuito de reconstituir as suas forças, a Não é se admirar, a priori, ver juristas apropria-
doutrina jurídica procura se inspirar em prestigiosos rem-se dos últimos escritos de Habermas. Sem dúvida,
autores estrangeiros de relevo. Uns invocam Schmitt, a sua formação e o seu percurso podem surpreender.
outros Müller, outros ainda Wittgenstein ou Austin, al- Herdeiro deslocado da famosa Escola de Frankfurt, cujo
guns Bobbio ou Ross... Cada um traduz o “seu” autor pensamento se alimentava tanto da filosofia quanto da
para colocá-lo na paisagem universitária. É aliás o caso sociologia, da história, da economia ou da psicanálise,
de Habermas, fartamente citado por uma espécie de Habermas, ele mesmo, confessou que era “leigo em di-
reflexo pavloviano, sendo que, na linguagem universitá- reito”. E esta confissão pode fortalecer a convicção dos
ria, destacam-se as palavras “deliberação”, “princípio de que duvidavam de que um não jurista pudesse trazer um
discussão”, e mais ainda, “espaço público”! A doutrina questionamento, conceitos, e reflexões, isto é, um saber
constitucional não é, decerto, a única a ser atingida pelo pertinente e útil para os juristas.Todavia, o fato de ele ter
que David Fonseca, que está preparando uma tese sobre confessado, após exame das sutilezas de diferentes ciên-
este assunto, chama de “efeito Habermas”; o professor cias sociais, o seu interesse pelo direito, pode também
Bodo Pieroth mostra, aqui, “a contribuição essencial à lisonjear os juristas, que são mais afoitos ao ver a sua
disciplina do direito constitucional alemão do livro Direi- disciplina negligenciada, olvidada, ou até mesmo abando-
to e Democracia”, livro este que o professor Michel Ro- nada.Tanto assim que Habermas confere ao direito uma
senfeld qualifica “de obra de referência”. E esta Revista função relevante na constituição e na vida das socieda-
ainda poderia ter acolhido juristas canadenses, belgas, des: não é ele somente um conjunto de técnicas ou de
italianos, espanhóis prestes a testemunhar a influência meios de governar, é antes, e sobretudo, “um medium de
dos trabalhos de Habermas sobre o pensamento consti- integração social”, e, decerto, o mais determinante no
tucional canadense, belga, italiano ou espanhol; o “efeito período contemporâneo, já que, diante do fracasso ou
Habermas” não é uma especificidade francesa; interessa do esgotamento dos demais mecanismos de integração,
ele o conjunto da comunidade jurídica. Já era tempo, o direito é o que “ainda traz alguns meios pra manter
portanto, de os juristas darem-se tempo para refletir unidas as sociedades complexas e centrífugas, que sem
sobre a natureza, a extensão, a realidade ou o valor des- isso se desagregariam”. E, não satisfeito de pôr o direito
te efeito. nesta posição vantajosa, Habermas reconstruiu uma te-

1
Tradução para o português de Thomas Passos Martins. Entrevista originalmente publicada como “Penser le Droit avec Habermas?”, Revue du Droit Public et de la Science
politique en France et à l’étranger, 123(6):1476-1486 (2007).
2
Professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Sorbonne. Université Paris 1. Institut des Sciences Juridique et Philosophique de la Sorbonne. Rue Malher,
9, 75181, Paris, França.

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição
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oria do direito com base no princípio de discussão que entendimento do jurista positivista, desde que estes ca-
dá sentido à sua teoria crítica da sociedade. sos tenham sido decididos de acordo com as regras de
Na entrevista que Jürgen Habermas teve a fi- procedimento vigente – exercício do direito de emenda
neza de conceder à revista, esclarece ele o que cons- parlamentar em relação a um projeto de lei, debate em
titui, ao seu ver, a questão central do direito moderno: comissão e discussão pública durante a sessão, voto em
“de onde provém a força que gera a legitimidade do termos idênticos após instalação de uma comissão mista
processo democrático?”. Em outros termos, de forma parlamentar – e de acordo com os princípios do direito
mais explícita, a questão da legitimidade da legalidade. escrito – consentimento necessário da pessoa, identifi-
Sobre este assunto, cada um conhece as duas doutri- cação submetida à previa autorização do juiz judiciário,
nas digladiando, as quais sempre opõem os mesmos guardião das liberdades individuais – não teria como,
argumentos. A postura positivista remete a questão em direito, impugná-los. De resto, este mesmo jurista
da legitimidade para a filosofia, considerando que no positivista poderá criticar, e até mesmo condenar, esta
direito a legitimidade está absorvida pela e na legali- utilização da biologia como elemento de prova de uma
dade: é considerada legítima toda decisão tomada em filiação, mas não em nome do direito, e sim em nome da
conformidade com o sistema jurídico positivamen- ética, da filosofia, da religião ou de todos outros lugares
te estabelecido. A postura jusnaturalista não afasta a que não sejam o lugar jurídico. Esta dissociação é preci-
questão da legitimidade do âmbito da reflexão jurídica, samente o que os jusnaturalistas rechaçam, consideran-
considerando, desta forma, que as razões do direito do eles, sem dúvida, permanecer no campo do direito, e
não se esgotam pela e na legalidade: é considerada continuar a exercer o oficio de jurista, quando apreciam
legítima toda decisão tomada de acordo com a ideia a legitimidade dos testes DNA, verificando que estes
de justo. Ou seja, por um lado uma decisão legal é, respeitam não somente as regras da legalidade formal,
consubstancialmente, uma decisão legitima; por como também o princípio de justiça.
outro lado, uma decisão legal pode não ser legitima. Até aqui, a posição teórica de cada escola é cla-
Para os positivistas, a legalidade é o único critério da ramente identificada: seria, contudo, arriscado concluir
legitimidade de uma decisão; para os jusnaturalistas, a sobre a existência de uma posição prática tão clara.
legitimidade é pensada como sendo, ao mesmo tempo, Com efeito, um jurista positivista, embora permane-
a fonte e a regra de julgamento da legalidade. cesse no campo do direito, poderia sustentar que os
Seria, sem dúvida, preciso apresentar cada uma testes DNA não estivessem conforme com os vários
destas duas posturas de acordo com as suas nuances princípios do direito escrito: com o princípio de igualda-
respectivas, sendo que cada autor pinta do seu modo o de, vez que acarretam uma discriminação jurídica entre
quadro do Direito e da lei. No entanto, consideradas de diversas filiações; com o princípio do respeito à vida
forma essencial, estas duas atitudes doutrinárias distin- privada e familiar, já que representam uma ingerência
guem-se pela resposta dada à questão que elas compar- na intimidade de uma família, arriscando comprometer
tilham, a de um algo exterior à lei. Para os positivistas, os laços familiares; com o princípio de razoabilidade já
o pensamento não é uma condição necessária à com- que configura uma ofensa aos princípios anteriormente
preensão e à legitimidade da lei, não estando situado o indicados, que é objetivamente desproporcional em re-
direito senão nas regras e soluções estabelecidas pelo lação à garantia de segurança esperada. Da mesma for-
legislador e o juiz (Terré, 1992). Para os jusnaturalistas, ma, um jurista jusnaturalista, ao buscar fora do direito
ao contrário, este algo exterior ao direito configura este a legitimidade da regra submetendo o reagrupamento
lugar de provem a razão jurídica destas regras e solu- familiar dos estrangeiros à prova da filiação genética das
ções positivas. Adotar uma ou outra destas posturas crianças, poderia encontrar na natureza o motivo do
impacta, evidentemente, o exercício do ofício de jurista, privilégio concedido à família natural em detrimento
bem como a maneira de contemplar uma questão que da família social, bem como na ideia de justiça a razão
está sendo objeto de um tratamento jurídico. A eutaná- de uma regra destinada a combater as fraudes na imi-
sia, a indenização das crianças nascidas com deficiência, gração. Por outras palavras, tudo se confunde, já que
o casamento e a adoção pelos homossexuais, são exem- a legitimidade da legalidade dos testes DNA pode ser
plos recentes sobre os quais positivistas e jusnatura- admitida ou contestada tanto do ponto de vista do di-
listas se opuseram, da mesma forma que dará ensejo a reito positivo quanto do direito natural; isso porque, no
novo embate entre eles o atual caso relativo à realiza- âmbito do direito natural, diferentes são as concepções
ção de testes DNA visando provar a filiação para que da natureza e da ideia de justiça, sendo também vários,
seja concedido o reagrupamento familiar. Conforme para o direito positivo, os princípios de direito a serem

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escolhidos como referência, assim como as interpreta- nas e pelas instituições, se for ela garantida juridicamen-
ções dos enunciados a serem conferidas. te e se realizada por meios jurídicos. “Somente quando
O propósito de Habermas é de oferecer uma enveredada na via da institucionalização que possui uma
alternativa a esta oposição recorrente entre positivis- forma jurídica, esclarece Habermas, que o princípio da
mo e jusnaturalismo. Sustenta ele no seu livro Direito discussão haveria de tomar a forma de um princípio de-
e Democracia, que é impossível encontrar na Nature- mocrático, o qual, então, confere uma força legitimado-
za, no Sagrado ou em outra forma de transcendência, ra ao processo de instauração do direito”. Em segundo
o fundamento da validade das regras postas, bem como lugar, a sua abertura conflituosa. A discussão nunca foi
de se ver na positividade do direito um fato que é sufi- apresentada como esta prática angélica em que se de-
ciente para assegurar a sua legitimidade. Que todo ho- fendem argumentos de boa fé, fora das intenções ma-
rizonte metafísico tenha desaparecido das sociedades liciosas ou das manipulações; insere-se, ao contrário,
contemporâneas, que Deus, a Natureza ou a Sociedade numa rede de lutas entre diversos atores, que Haber-
permaneçam em silêncio – ou façam barulho demais – mas descreve no capítulo VII de Direito e Democracia, a
que o mundo seja desencantado, não significa que não discussão acolhe plenamente a desobediência cívica, e
haja mais nada para validar a lei e que os homens sejam sempre deixa em aberto a controvérsia, já que nunca
condenados à factualidade do direito. Inserindo, todavia, encerra definitivamente um conflito, sendo o conteúdo
a sua reflexão numa perspectiva pós-metafísica, Haber- normativo de uma regra regido pela ação legitimadora
mas só pode propor uma reconstrução da racionalidade de uma discussão, cuja característica principal é de per-
jurídica no horizonte do mundo prático dos homens, e manecer indefinidamente aberta.
não na verticalidade do mundo misterioso das formas. Destarte, o princípio de discussão cria uma
É neste limite programático – não se satisfazer com nova racionalidade jurídica que, para o pensamento
a factualidade do direito, sem, no entanto, reinventar habitual, gera um paradoxo, na medida em que sob a
uma metafisica jurídica – que ele faz do princípio de sua ação a racionalidade jurídica de uma regra, ao ser
discussão o modo de produção da legitimidade das re- produzida pela discussão nas formas do direito, resulta
gras legais. As fórmulas habermasianas são conhecidas: do fato de nunca ser transformada em fetiche, e de,
“são válidas estritamente as normas de ação sobre as portanto, sempre ser retomada pela discussão. Em ou-
quais todas as pessoas suscetíveis de serem implicadas, tros termos, deliberadamente mais acirrados, uma re-
de uma maneira ou de uma outra, poderiam chegarem gra é juridicamente racional quando integra, mediante
a um acordo enquanto participantes de discussões o seu modo discursivo de fabricação, que ela poderia
racionais” (Habermas, 1997, p. 123); “a legitimidade das ter sido e que ela, eventualmente, poderá ser outra:
regras depende da possibilidade de estas atenderem as pois, desta forma, assume ela o caráter necessariamen-
suas exigências de validade normativa pela discussão” te limitado da razão humana.
(Habermas, 1997, p. 44). De todas as tentativas filosóficas empreendidas
Pelo fato de ser o cerne da teoria do direito para resgatar o pensamento do direito da oposição re-
de Habermas, este princípio de discussão é também corrente entre positivismo e jusnaturalismo, a de Jürgen
o cerne das controvérsias doutrinais, como é o caso Habermas não é, talvez, “a melhor”. Não entanto, não é
neste volume da Revista com a contribuição de Olivier tampouco a pior, sendo portanto do interesse do jurista
Cayla. Em prelúdio a estes debates mais aprofundados, de sempre confrontar as suas certidões às questões que
seria, sem dúvida, exagerado considerar que o Haber- ela levanta.
mas tivesse uma concepção ingênua ou/e idealista da
discussão. Infere-se dos seus escritos, com efeito, que Entrevista com Jürgen Habermas
o princípio de discussão apenas desempenha este pa-
pel de legitimação desde que atendidas duas condições. Dominique Rousseau (D.R.): Há vários anos
Em primeiro lugar, a sua institucionalização: Habermas a sua reflexão versa sobre o Direito. Seu trabalho tem
nunca asseverou que fosse qualquer forma de discussão versado sobre problemáticas filosóficas, linguísticas, his-
que poderia realizar a função legitimadora; enfatizando tóricas, psicanalíticas, entre outras... Como é que acon-
a importância do direito, afastou ele as formas moral, teceu de debruçar-se sobre o Direito?
primária ou civil da discussão, de modo a unicamente Jürgen Habermas (J.H.): De fato, mantenho
escolher a forma jurídica. Ou seja, a discussão só pode interesse pelo direito desde 1957, quando, na ocasião
configurar um princípio de julgamento da legitimidade da preparação da introdução “Student und Politik”, in-
do direito estabelecido se esta discussão se desenvolver teressei-me à controvérsia travada no seio da teoria

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do Direito Público durante a República de Weimar. A D.R.: Se a legitimidade das regras de direito não
discussão que opunha então Hans Kelsen, Carl Schmitt, se baseiam no fato de terem sido adotadas pelos eleitos
Rudolf Smend e Hermann Heller, continuava ainda, de- do povo, nem sequer no fato de serem elas conforme a
pois da guerra, a determinar os temas da confrontação uma moral superior e exterior ao sujeito, o que poderia
entre Ernst Forsthoff e Wolfgang Abendroth (na oca- ser o fundamento não factual e não metafisico da legiti-
sião do congresso dos professores de Direito Públi- midade das regras de direito?
co, em 1952). A conferência inaugural que ministrei na J.H.: Penso que as revoluções na América e na
Universidade de Marburg trata do rompimento entre França, no final do século XVIIII, deram uma resposta
o direito moderno da razão e a tradição da política “performativa” à sua indagação. Na verdade, as demo-
de Aristóteles (que, na época, foi defendida por Leo cracias modernas não se distinguiam dos seus precur-
Strauss e, conforme os moldes de Hegel, por Joachim sores republicanos da Antiguidade pelo simples fato de
Ritter). Na minha obra “Theorie und Praxis” (1963), os irem ao extremo, e isso de forma igualitária e universal,
temas do direito natural e da revolução desempenham do conceito de autodeterminação, ao introduzir a nova
um importante papel, ao lado do tema marxista. Des- ideia de “soberania popular”. Destacam-se elas, antes
de a realização de “Strukturwandel und öffentlichkeit” de tudo, pela ideia de uma constituição jurídica desta
(1962), ocupei-me continuamente do Estado de direi- prática de autodeterminação: a soberania popular deve
to democrático, e sobretudo, das suas condições de primeiro ser constituída por uma lei fundamental que
legitimidade. Se eu não tivesse tratado a questão da garanta as mesmas liberdades para todos os cidadãos. O
legitimidade da legalidade, eu não teria tido, talvez, a próprio ato de outorgar uma constituição é concebido
motivação suficiente para aprofundar, mais tarde e de como um ato de formação da vontade democrática, mas
forma mais sistemática, meus conhecimentos na área enquanto prática guiada pela razão. A ideia da fundação
da teoria do direito, tal como o fiz a partir de meados de uma associação de parceiros em direito, livres e iguais,
dos anos oitenta. inscreve-se nela. Da mesma forma, faz parte dessa ideia
a condição previa, em nada trivial, que os participantes
D.R.: Os juristas e filósofos do direito dividem- já disponham dos meios do direito positivo. É, portanto,
-se, via de regra, em duas grandes escolas, os que pen- nesta perspectiva que, no que diz respeito à ideia de
sam que não há direito fora do direito estabelecido pelo “auto legislação razoável”, Rousseau e Kant reuniram
Estado, e os que alegam que o direito existe fora do Es- as duas fontes de legitimidade passiveis de nos conven-
tado. Pensa o senhor que é possível sair desta oposição cer e nos servir quanto às condições de um pluralismo
recorrente entre positivismo e jusnaturalismo? ideológico: a soberania do povo e o “reinado das leis”, e
J.H.: Sim. E é um dos meus objetivos em “Fakti- isso na forma que representa o direito moderno.
zität und Geltung”. Pois na Alemanha as duas escolas Se se pretender ultrapassar o positivismo jurídi-
fracassaram. De um ponto de vista político, foram prin- co e levar em consideração a legitimidade que uma or-
cipalmente os positivistas que, durante os anos vinte, dem jurídica democrática reivindica, não precisaríamos
defenderam a constituição democrática. Porém, devi- nem da religião, nem da metafísica. Bastaria implementar
do as suas teorias, lhes faltou argumento contundente o sentido performativo da prática constituinte, isto é,
quando foram obrigados, no limiar dos anos trinta, a responder passo a passo à seguinte pergunta: que direi-
criticar a transformação totalitária da constituição por tos devem os atores outorgar-se mutuamente para eles
maiorias eleitas. Face a tal insucesso, vivido antes da to- mesmos quando pactuaram, de comum acordo, realizar
mada de poder pelos fascistas, houve como reação, de- as suas intenções de uma comunidade política de pes-
pois da Segunda Guerra mundial, o uso do direito “supra soas livres e iguais, através os meios do direito positivo3.
positivo”. Mas este uso também não logrou êxito vez
que foi com fulcro no direito natural que a Corte cons- D.R.: Embora seja comum incluí-lo na linha de
titucional, recém-criada, justificou decisões reacionárias, pensamento de Rousseau e de Kant, o senhor parece
ao se referir a uma “ética dos valores” da época. O di- substituir o modelo do contrato social por aquele do
reito natural clássico pode ser instrumentalizado para acordo celebrado por meio da discussão. Qual diferen-
finalidades duvidosas, já que se pode conferir qualquer ça há entre “contrato social” e “acordo celebrado por
tipo de coisa ao valor “natural”. meio da discussão”?

3
Neste contexto, permito-me remeter-vos para um ensaio em que resumo, em poucas páginas, as ideias desenvolvidas no capítulo III de “Faktizität und Geltung”
(Habermas, 2001, p. 146-151).

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J.H.: “O estado de natureza” é unicamente po- igualitária e da força obrigatória do Direito. Mas antes
voado de egoístas esclarecidos/individualidades egoístas de tudo, aproveita-se ele – o processo democrático –
esclarecidas que tomam decisões inteligentes de acordo do potencial racional de uma forma de comunicação,
com as suas preferências pessoas. Desta forma, o con- institucionalizada pelo Direito, que se adapta à mobi-
trato social, concebido com base no modelo do direito lização e ao livre-câmbio de sujeitos, de tomadas de
privado – isto é, um acordo geral de cada um com to- posição e de informações, e que dá lugar, na esfera pú-
dos –, só pode ratificar uma convergência já existente blica, ao limite, sem obrigação, de oferecer o melhor
entre os interesses específicos de cada um e os inte- argumento possível.
resses, igualmente egocêntricos, dos demais. Este con- A vontade democrática não pode simplesmente
senso configura um “modus vivendi” incerto, já que as justificar a sua legitimidade pelas normas fundamentais
constelações de interesses podem mudar em qualquer da constituição, pois esta deve ela mesma ser realizada
momento. Hobbes resolveu essa dificuldade pela forma por meio de um processo democrático. É por isso que
da submissão dos cidadãos num regime absolutista. In- se considera o processo de criação como uma iniciativa
versamente, Rousseau e Kant resolveram esta dificulda- não somente inclusiva, como também discursiva. Além
de com base nos critérios de equidade que levam cada de que, presume-se que o constituinte é ciente des-
uma das partes contratantes a somente regulamentar tas duas condições, improváveis e retrospectivamente
os interesses desejados por elas. Ao mesmo tempo que imaginadas num estado de natureza, que só podem ser
debatem, e com a intenção de submeter a si próprios às preenchidas parcialmente e duradouramente cumpridas
leis convencionadas, os participantes do acordo recor- num mundo real por meio de uma institucionalização
rem à razão prática; não somente ao utilizá-la de forma jurídica adequada.
pragmática e inteligente, como também de forma nor-
mativa (de um ponto de vista ético, jurídico e moral). D.R: Na sua reflexão sobre a democracia, o direi-
to assume um papel especialmente importante. Como é
D.R.: O princípio de discussão está, portanto, que o senhor considera este papel em relação a outros
no cerne da sua teoria do direito! Como é que este elementos, como a religião, o social, as mídias, etc.?
princípio pode estar no fundamento da legitimidade do J.H.: O direito moderno desempenha, que eu
direito? saiba, pelo menos quatro funções em que não pode ser
J.H.: Tocamos aqui a questão central: de onde substituído por outras mídias. Os direitos se adaptam
provém a força que gera a legitimidade do processo de- às liberdades individuais. Tanto é assim que o direito
mocrático? Percebemos que uma decisão democrática moderno determina o seguinte princípio: tudo o que não
é ilegítima quando viola uma destas duas condições: ou for explicitamente proibido é permitido. Este princípio
a decisão não inclui todos aqueles suscetíveis de serem derruba a moral que, por sua vez, parte do princípio dos
afetadas por ela, ou as decisões não dependem de um deveres, e que só deduz os direitos pela reciprocidade
processo de discussão baseado na razão. A junção entre que estes mantenham com os deveres. Este princípio
uma participação de todos, iguais em direitos, com uma deflagra, também, grandes energias, por exemplo no
racionalidade suposta, construída sobre a estrutura da mundo da economia, através dos atos pelos quais cada
formação da opinião e da vontade, é o tipo de combina- um age no seu próprio interesse. Por outro lado o direito
ção que explica o crédito de legitimidade atribuído ao moderno, por ser ratificado pelo Estado, configura
processo democrático. Ademais, essas duas condições um meio de repertoriar e de tornar obrigatórias
só podem ser garantidas, de um ponto de vista social e determinadas exigências de ordem moral. Com efeito,
material, mediante uma institucionalização jurídica do um direito que circule na totalidade da sociedade só
processo. Ou seja, por um lado, pela participação po- isenta cada um dos seus membros de forma limitada a
lítica universal, pela representação equitativa, por uma realização de um comportamento moral esperado, ou
regulamentação pormenorizada das responsabilidades o cumprimento das obrigações que devemos respeitar
políticas, por delegações, etc. ; por outro lado, por uma no âmbito das nossas relações pessoas com os outros.
formação da opinião pluralista no espaço público e um Ademais, o direito, fixado pelo legislador político,
controle do poder pelas mídias, por uma preparação à pode ser modificado em qualquer momento. Através
tomada de decisão por meio da concertação no seio desta flexibilidade que, evidentemente, não é ilimitada
das instituições legislativas, jurisdicionais, governamen- no âmbito da totalidade jurídica, o direito moderno
tais, administrativas, etc. O processo democrático se aparece como um meio de organizar e de moldar a
nutre, como qualquer outra ação legal, da estrutura realidade política. Sob a forma do direito constitucional,

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o direito moderno constitui, finalmente, uma junção D.R.: Toda ideia de democracia precisa de insti-
entre a moral e a política, elemento indispensável para tuições para se realizar sob pena de não passar de uma
a ordem democrática e jurídica. Esta ordem assenta-se mera ideia. Por exemplo, a democracia representativa
no acordo dos cidadãos, adquirido sem restrição, sendo realiza-se por meio do regime parlamentar e da separa-
que esses cidadãos podem identificar-se, por suas livres ção dos poderes. Quais instituições tem imaginado para
vontades, com os princípios fundamentais do sistema o que o senhor chama de “democracia radical”?
político a que pertencem (é por isso, por exemplo, que J.H.: Uma “democracia radical” significa, para
considero delicado tornar o voto obrigatório). Por fim, mim, melhor realizar o objetivo que Estado de direito e
podemos esperar dos cidadãos que reconheçam os democrático deveria cumprir desde o início, quer seja,
“constitucional essenciais” (princípios fundamentais da avançar mais na exploração do conteúdo normativo do
constituição) no sentido de uma “ethics of citizenship” “sistema dos direitos” devido às condições históricas.
(uma ética da cidadania), porque, e na medida em que, os Vejo também formas mais eficientes de uma participa-
princípios da constituição expressam conteúdos de uma ção política, bem como uma representação mais ade-
ordem puramente moral na linguagem do direito posi- quada, que em caso algum aniquilará as estruturas já co-
tivo. Por exemplo, na forma dos direitos fundamentais nhecidas de uma organização da separação dos poderes
clássicos, que possuem um conteúdo exclusivamente e das suas interdependências. No entanto, hoje, somos
moral embora representem, num aspecto formal, direi- antes confrontados com o problema de uma defesa da
tos fundamentais tutelados pela via judicial. substância democrática dos sistemas de ordens existen-
tes. Minha interpretação, baseada na teoria da discussão,
D.R.: Lhe é comumente atribuída uma visão idí- que propus sobre um “design” geral dos Estados demo-
lica da discussão. Qual a sua resposta a estas críticas? cráticos, no “Faktizität und Geltung”, busca evidenciar
J.H.: Penso que estas críticas desconhecem o o objetivo democrático destas instituições. Parece-me
conjunto complexo do sistema política dos quais os que este sentido está se perdendo num processo de
processos de concertação e de decisões, especificadas globalização que desloca o equilíbrio entre o mercado,
às suas funções, fazem parte. É assim que, por exemplo, o poder político e a solidariedade no seio da sociedade
a vida política pública, em que prevalecem os meios de de uma forma unilateral em prol da economia. Neste
comunicação social, com os seus diversos atores, to- contexto, poderia me referir aos seguintes exemplos: a
dos envolvidos numa estratégia, representa apenas um comercialização das mídias, as lutas eleitorais, cada vez
elemento, embora relevante, no meio de um processo mais políticas, enquanto os partidos ganham dimensão
democrático complexo que se ramifica entre a socie- nacional, a falta de controle democrático de decisões
dade civil e o eleitorado, os grupos de interesses dos que, devido a um deslizamento das competências no
sistemas funcionais da sociedade e as instituições do nível europeu e internacional, fogem do debate públi-
Estado (como os tribunais e os parlamentos, as admi- co, ou a privatização de alguns setores, outrora sob o
nistrações e os governos). Mesmo em condições ide- poder da soberania do Estado, como os transportes pú-
ais, continuando com o mesmo exemplo, este circuito blicos, a energia, a saúde, até mesmo o exército em caso
de comunicação caótico da vida política pública têm de guerra (no Iraque, os Estados Unidos usam menos
como único objetivo garantir que os temas relevantes as suas forças armadas do que as forças de segurança
e as informações necessárias sejam discutidos, que so- privada). E constato também o fato de que o Estado
luções adequadas sejam propostas, e que as tomadas está sendo sacrificado em nome da segurança interior!
de posição que delas resultam sejam explanadas com
os seus argumentos pró e contra. O dever da delibe- Referências
ração política, que vai além de tudo isso, esperamos
que seja apenas cumprido pelos órgãos deliberativos HABERMAS, J. 1997. Droit et Démocratie. Paris, Gallimard, 667 p.
que, como os parlamentos ou os tribunais, funcionam HABERMAS, J. 2001. Der demokratische Rechtsstaat – eine parado-
xe Verbindung widersprüchlicher Prinzipien. In: J. HABERMAS, Zeit de
de acordo com um regimento estrito, e desempenham Übergänge. Frankfurt am Main, Suhrkamp, p. 146-151.
diversas funções, ao aplicar os princípio da distribuição TERRÉ, F. 1992. Le positivisme juridique et Kant. Philosophie politique,
das tarefas. n° 2, p. 159-167.

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