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Um terrível engano

Eliseu Egídio Porto


Para minha esposa Márcia e meus filhos Guilherme e Poliana,
que são a minha fonte de inspiração
“Em um momento haviam dois caminhos a percorrer. Eu
escolhi o menos percorrido, e isso fez toda a diferença”.

Robert Frost
PRÓLOGO

T á perdido?

De pé, na plataforma, ele via o ônibus que o trouxera de


casa para o desconhecido sair do terminal. Conseguiu
refrear o impulso de tornar a embarcar e voltar, mas agora era
tarde demais. Ficou olhando para o local, agora vazio, como que
hipnotizado. Não se deu conta da passagem do tempo nem das
pessoas ao redor. Nas costas trazia a mesma mochila que o
acompanhava todos os dias para o colégio.

Colégio. Lembrava-se agora da história mal contada que havia


aplicado nos colegas.

– Vou passar as férias na casa da minha avó, em São Paulo –


dissera ele, na esperança de acabar com a curiosidade.

Alguns amigos acreditaram, outros não – especialmente a Júlia,


com quem tinha uma daquelas amizades na qual os amigos se
despedem com um selinho.

– São Paulo, é? E desde quando você tem uma avó em São Paulo?

Ele se esforçou para fugir daqueles olhos verdes que pareciam ler
sua alma.
– Oras, a mãe do meu pai. Ela mora lá.

Achava que a resposta tinha acabado com o assunto, mas ela não
se deu por satisfeita.

– Engraçado, estudamos na mesma escola há nove anos e nunca


soube dessa tua avó de São Paulo. Você não gostava dela antes?

– Que bobagem, Júlia! Claro que sim, a gente só não é tão


chegado. Minha outra avó mora aqui, então passo as férias sempre
com ela.

– Não precisa se irritar. Você vai sozinho?

– Não estou irritado. Sim, minha mãe vai me deixar na


rodoviária.

– Posso ir também? Até a rodoviária, quero dizer.

Era tudo o que ele não queria. Sua mãe já tinha dito, sem
conseguir segurar o choro, que não iria participar daquilo, embora
entendesse as razões. Logo, acompanhá-lo até a rodoviária seria
pouco provável. E sem ela ficaria ainda mais difícil enganar a
menina.

– Melhor não, Júlia. O ônibus sai muito cedo e não quero


sacrifícios.
– Sacrifício nenhum, bobinho. Mas tudo bem, se você não quer,
paciência.

Torceu para que ela não percebesse o suspiro de alívio.

A lembrança da conversa com a menina não diminuiu o peso que


sentia.

“Incrível como tudo parecia tão simples, não, Matheus?”, pensou,


sem sair do lugar.

Ele ainda não sabia, mas sua fuga e as consequências dela iriam
deixar marcas para o resto da vida. Não só nele, mas em todas as
pessoas que ele envolveu na sua decisão.
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I

H elena, como todas as garotas da comunidade, levava uma


vida de sacrifícios. Sua mãe era empregada doméstica e
tinha sempre pouco tempo para os filhos. O pai foi embora de
casa logo após ela nascer, deixando a mulher com um barraco
precário e algumas contas não pagas na quitanda. Helena era a
mais velha, tinha 15 anos e lutava para conseguir estudar e ajudar
a mãe no cuidado dos irmãos. Desde que o pai se mandou, e com
ele o dinheiro que compunha a maior parte da renda da casa, teve
que se virar com a venda de cosméticos porta-a-porta. O que
ganhava mal dava para suas próprias necessidades, mas era um
peso a menos nas costas da mãe. E ela havia decidido não acabar
como algumas de suas colegas, envolvidas com drogas ou filhos
precoces.

Quando completou dezoito anos e concluiu o segundo grau,


arrumou um emprego de caixa no supermercado do bairro. A mãe
deu graças a Deus, pois agora não precisava fazer faxina todos os
dias, dando uma trégua para o reumatismo. Acordava todos os
dias às seis horas, ajudava a arrumar os irmãos para a escola,
engolia um copo de café com leite, algumas torradas e saía
correndo, pois tinha que estar na porta do supermercado antes das
oito.

– Helena, você vai acabar sumindo de tão magra. Por que não
leva uma fruta pra comer no caminho?

– Eu como lá mesmo, mãe. Às nove tem pausa para o café.


Tchau, dá um beijo, muah!

Descia as vielas tortuosas até a avenida e andava três quadras até


o Supermercado Dois Irmãos. Se tivesse sorte conseguia passar
em frente da Transportadora Rápido Paranaense sem ser notada
pelo Carlão, caminhoneiro tão forte quanto abusado. Naquela
manhã ele não estava lá, embora vez ou outra aparecesse no
supermercado, comprasse algumas coisas e ficasse parado na fila
única, parecendo uma estátua, deixando a fila andar só para passar
pelo seu caixa. E era sempre a mesma conversa tosca:

– É impressão minha ou você está mais bonita hoje do que


ontem?

– Com certeza, impressão sua – ela respondia, revirando os


olhos.
– Parece que você não gosta muito de elogios, Dona Helena –
fazia questão de acentuar a palavra “dona”, como se aquilo fosse
a coisa mais engraçada do mundo.

– Não tenho nada contra elogios, Seu Carlos. – devolvia ela, na


mesma linha – Só nunca vi ninguém ficar bonita da noite pro dia.

Uma risada alta encerrava o assunto e a deixava ainda mais


envergonhada pela atenção que chamava.

– Acho que você devia dar uma chance pra ele, Lena.

– E eu acho que você devia parar de dizer besteiras, Célia.

Célia era a empacotadora. Baixinha, gordinha e com tendência a


sentir pena do mundo. Helena achava que ela estava na função
errada. Devia ter escolhido ser auxiliar de enfermagem.

No café, o assunto era o mesmo, o que a deixava ainda mais


entediada.

– Minha tia Sueli costuma brincar que quem casa com


caminhoneiro leva um par de chifres pra lua de mel.

– Viu? É disso que estou falando – disse Helena com a boca


parcialmente cheia e apontando a colega com a metade de uma
maçã.
– Gente, quanto preconceito! – Retrucou a fiscal de caixas –
Mania que vocês têm de generalizar as coisas. Helena, não se
deixe influenciar por isso.

– Isso é o de menos – respondeu Helena, atirando o que sobrou


da maçã no lixo. – Ele não provoca em mim nada além de
aborrecimento.

Num certo dia o Carlão apareceu no supermercado acompanhado


de um amigo. Repetiu-se a mesma cena. A fila andando; ele,
parado, deixando passarem na sua frente; o caixa dela livre; ele
se aproximando, já com o sorrisão no rosto.

– Bom dia, Dona Helena! Já disse que hoje você está ainda mais
bonita?

– Bom dia, Seu Carlos – respondeu Helena, sem olhar para ele,
mas com os olhos fixos no amigo.

– Esse é o Floriano. Acabou de chegar de Goiás e vai trabalhar


com a gente.

– Oi, bom dia – disse Helena, corando de leve.

– Bom dia – respondeu o Floriano, com um leve sorriso torto.


– Por enquanto ele vai dormir no alojamento da transportadora,
só até encontrar uma casa pra alugar – informou o Carlão,
torcendo para o assunto render.

– Tua família não veio com você?

– Não, Dona Helena, meus pais jamais se mudariam de Goiás. E


só tenho uma irmã, enfermeira no hospital regional da cidade
onde eles moram.

– Ah, enfermeira – retrucou Helena, olhando a empacotadora de


relance. – E pode tirar o “dona”. Isso é só uma brincadeira desse
seu amigo.

– Hum... – Começou a empacotadora depois que eles se foram.

– Quieta – devolveu Helena, sem graça.

A menina levantou as duas mãos, em sinal de rendição.


CAPÍTULO II

C om a testa colada no vidro do carro, Floriano observava as


plantações ao longo da estrada, que pareciam não ter fim.
Mesmo sendo essa a paisagem que ele contemplava desde que
nasceu, ela sempre o fascinava. Sabia que havia bilhões de
pessoas no mundo, e, no entanto, levava-se horas para encontrar
um vivente nessas paragens. Envergonhado, não olhava para sua
mãe ao volante, e nem precisava disso para saber que ela chorava
baixinho. Nesse dia ela estava inexplicavelmente calada. Nas três
outras vezes em que a cena se repetiu, teve que ouvir um sermão
por quase uma hora, que era o quanto durava o trajeto da pequena
delegacia da cidade até sua casa, na zona rural. O silêncio da mãe,
ao invés de ser um conforto, preocupava-o.

– Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mand...

– Quieta, Mariana!

A menina sentada no banco de trás deu um pulo de susto e apertou


a pequena boneca de pano no peito, como que para se proteger.
Não era comum a mãe ralhar com ela daquele jeito. Floriano, para
consolá-la, e ao mesmo tempo se desculpar pela atitude da mãe,
esticou o braço esquerdo para trás e fez um cafuné no pezinho da
irmã.

– Qualquer dia desses – começou sua mãe, rompendo o silêncio


–, você vai achar alguém mais valente do que você e eu vou ter
que te buscar num hospital. Ou no necrotério...

O filho havia herdado o temperamento do avô paterno. Sua sogra


contava-lhe histórias de arrepiar, das muitas vezes em que
tiveram que sair fugidos das fazendas onde trabalhavam e
moravam, só com a roupa do corpo, para não serem mortos por
jagunços contratados por gente que havia apanhado do marido.
Ambos, avô e neto, eram do tipo que não leva desaforo para casa.

– Ano que vem você completa dezoito anos e o delegado vai ter
menos paciência com você – continuou a mãe. Antes que você
passe alguns anos na cadeia, melhor arrumar um emprego. Vou
falar com teu pai, ele deve saber de alguém que esteja precisando.

A ideia o fez sorrir intimamente. Achava coisa de maricas ter que


ficar implorando por uns trocados para se divertir com os amigos.
Queria ter seu próprio dinheiro, pois trabalhando junto com o pai
como tratorista o máximo que conseguia era algum prêmio na
quermesse, quando tinha.
Algumas semanas mais tarde, apareceu um caminhoneiro na
fazenda procurando por um ajudante. Ele foi apresentado e aceito.
O serviço era relativamente leve, comparado com a sacaria de
cereais que ele estava acostumado a carregar para pôr no trator.

Trabalhou de ajudante até quase os dezenove anos, quando então


teve a chance de dirigir o próprio caminhão. Foi nessa época que
percebeu que não tinha mais se envolvido em confusões. Por
causa das viagens que fazia para fora de Goiás, sua cidade natal
passou a ser ponto turístico. Quando sua irmã completou
dezenove anos e começou um estágio de auxiliar de enfermagem
na Santa Casa, ele estava de mudança para o Paraná. Havia
conseguido emprego de motorista na Transportadora Rápido
Paranaense e, como a empresa só fazia a Região Sul e Sudeste,
não daria para dormir em casa durante as viagens.

A empresa concordou que ele dormisse no alojamento local até


conseguir alugar uma casa. O Carlão, motorista veterano e que o
havia indicado na transportadora, iria ajudá-lo nessa tarefa.

Naquele dia, ao voltar do supermercado, trazia, além de produtos


de cuidados pessoais e alguns alimentos, a imagem de uma garota
magra, dona dos olhos negros mais lindos que ele já tinha visto
na vida.
CAPÍTULO III

H elena não conseguia pegar no sono. A imagem daquele


rapaz moreno, musculoso e com expressão rude, porém
respeitosa, não lhe saía da cabeça. Sabia, por experiência própria,
que homens que passam dias fora de casa a trabalho, por mais
sérios que sejam, estão sujeitos às tentações da vida. Seu pai era
o exemplo acabado de um desses. Nunca imaginou que uma
pessoa tão pacata quanto ele pudesse arrumar um rabo de saia fora
do casamento. E, pior, abandonar tudo por isso.

– Homens são todos uns idiotas, isso sim. Só pensam no presente.


Quando adoecem e deixam de ser úteis, levam um belo pé na
bunda e correm para a segurança da ex-mulher – pensava ela, com
um misto de raiva e desprezo.

Esse pensamento a acalmou e o sono enfim chegou. Sonhou com


o pai correndo com ela nas costas, imitando um cavalo, no
campinho da comunidade. Acordou chorando e soube que aquele
dia seria uma droga.

A cena do primeiro dia em que o viu se repetiu por quase duas


semanas. Ele estava sempre junto com o Carlão, que parecia uma
babá com segundas intenções. Saiu várias vezes de mãos
abanando, indo até lá só com o pretexto de fazer companhia para
o colega e ter a oportunidade de mexer com ela. Numa dessas
oportunidades, ela percebeu certo ar contrariado na expressão
rude do rapaz. Pareceu-lhe que ele não achava a menor graça nas
brincadeiras do colega, e isso a deixou feliz.

– Sei não, mas acho que esse Floriano está tomando as tuas dores,
Lena – disse Célia certo dia.

– Não sei de onde você tirou isso, mas a última coisa de que
preciso é de dois marmanjos duelando por mim, se for o caso.
Não sendo, prefiro distância dos dois.

– Eu gostei dele. Parece ser um rapaz direito e responsável.

– Célia, no dia em que você não gostar de alguém, me avise, que


é pra eu vir de galochas – zombou Helena.

Numa sexta-feira, o rapaz colocou o dinheiro na mão dela, e


quando desdobrou para contar, achou um bilhete, que fingiu não
ver, guardando tudo na gaveta da máquina registradora.

– Célia, que tal buscar um copo de água pra sua amiga do peito?

Quando a garota saiu, ela abriu a gaveta, tirou algumas notas e


achou o bilhete. Leu, com o coração aos pulos.
“Amanhã vai ter uma dupla caipira de Goiás cantando no Galeto’s
Bar. Gostaria que você fosse, lá pelas sete da noite. Obs. O Carlão
viajou pra Santa Catarina.”

Entendeu que a parte final do bilhete era uma dica de que não
seria importunada. Mesmo assim, sentiu-se um pouco
decepcionada. Odiava bares, pois eles lembravam as brigas que
tinha assistido na comunidade, apesar de que o tal Galeto’s ficava
na “parte boa” do bairro, como costumavam dizer suas colegas de
trabalho. Por outro lado, se recusasse o convite, causaria no rapaz
a impressão de que era uma fresca. Deveria levar alguma amiga?
Ir sozinha não seria uma demonstração de interesse?

– Tua água, Lena.

– Obrigada, Célia. Tem algum compromisso pra amanhã à noite?

– Não, por quê?

– Que tal darmos um pulo no Galeto’s lá pelas sete? Vai ter um


pessoal de Goiás cantando lá. Gosta de música sertaneja?

– Nossa, amo música sertaneja! Como você ficou sabendo?

“Xi...”, pensou Helena, “e agora?”

Resolveu confiar na menina.


– Não comenta com ninguém, mas o Floriano me convidou.

Os olhos da garota ficaram marejados. Antes de ela começar a


chorar, Helena a repreendeu.

– Célia, por favor! Preciso que isso fique entre nós, então
controle-se!

– Desculpa, Lena. Tudo o que eu mais quero na vida é ver você


namorando um cara legal. Você merece.

– Ainda não sabemos se é ele esse cara legal, certo? De qualquer


modo, obrigada por se preocupar comigo. Então tá combinado. A
gente sai daqui às cinco, corre pra casa se arrumar e eu te encontro
no Fran’s Café às seis e meia, tudo bem? De lá até o Galeto’s dá
uns cinco minutos e eu quero chegar antes.

– Combinado, posso ir de jeans?

– Deve. Apesar da fachada chique, o lugar é bem informal. Estive


lá com o meu pai uma vez.

A lembrança anuviou-lhe o semblante.


CAPÍTULO IV

N ossa, você está linda, Lena. Aquele uniforme horroroso do


supermercado esconde uma gata.

– Obrigada, essa roupa também ficou ótima em você.

O Galeto’s era um daqueles barzinhos que combinam boa comida


com música ao vivo. O gosto do dono do lugar era bem eclético,
talvez mirando um público variado. Ali se apresentavam duplas
sertanejas, samba de roda, MPB e rock nacional. E tinha uma
distribuição de mesas que privilegiava o bate-papo, sem aquela
condição irritante que forçava os frequentadores a gritar se
quisessem ser ouvidos. Elas se dirigiram ao mezanino, onde as
mesas, dispostas junto à parede, deixavam um espaço para os
casais que quisessem dançar. Naquele horário o lugar estava com
poucos frequentadores, mas Helena sabia que mais para o início
da noite ficaria lotado, pois quando esteve ali com seu pai
precisaram aguardar por uma mesa. Ela escolheu uma de quatro
lugares próxima à grade, da qual era possível ver os músicos e a
entrada. Sua intenção era não ser surpreendida pela chegada do
rapaz. Estava apreensiva, por dois motivos: primeiro, não sabia
como o rapaz interpretaria o fato dela ter aceitado o convite tão
rápido, e, segundo, estava acompanhada da Célia. O início da
música a distraiu, e ela se deixou embalar pela voz da dupla, que
por sinal cantava muito bem.

Um garçom se aproximou para pegar os pedidos e ambas pediram


suco de laranja com hortelã. Como não sabiam o que o Floriano
pretendia comer, ficaram nas bebidas. Por volta das sete horas,
Helena viu o rapaz chegar. Ele passou pelos músicos, que o
cumprimentaram com um aceno de cabeça. Em seguida, trocou
algumas palavras com a hostess, que indicou o mezanino. Vestia
calça jeans e camisa social listrada, porém, disposta por fora da
calça e com as mangas puxadas acima dos cotovelos. Os sapatos
mocassim pretos completavam o conjunto, e quem o visse jamais
suspeitaria que fosse um caminhoneiro. Helena gostou do que viu
e tentou controlar o nervosismo quando ele subiu a escada. Ele se
aproximou, exibindo aquele sorriso torto que ela já conhecia, e
estendeu a mão para cumprimentá-las. Se o fato da Célia também
estar ali o desagradou, ele não deixou transparecer, e Helena
anotou mais um ponto a favor do rapaz.

– Espero não ter feito vocês esperarem muito – disse ele,


sentando-se na cadeira próxima à Helena.
– De jeito nenhum – Helena olhou para a Célia, que assentiu com
a cabeça. – Chegamos há uns quinze minutos.

Floriano ficou um tempo observando Célia, que sorria de forma


tímida. Por fim, disse:

– Ah, você é a garota que arruma nossas coisas. Aquele uniforme


deixa as duas bem diferentes.

– Foi o que eu disse pra Helena. Aquilo é horroroso!

– Bom, eu também fico bem esquisito no uniforme da


transportadora. Se fosse do tipo que usa a camisa aberta até o
umbigo, então, seria um completo desastre – brincou Floriano,
arrancando risos das garotas.

– Você sempre foi caminhoneiro? – Helena perguntou, levando o


copo à boca.

– Na verdade, não. Quando era mais novo eu vivia metido em


encrencas com meus amigos. Eu sempre ajudei meu pai na
fazenda onde a gente mora, mas depois da terceira vez que eu fui
parar na delegacia, minha mãe pediu que ele me botasse pra
trabalhar em outra coisa antes que eu aprontasse algo pior. Foi
quando arranjei emprego de ajudante de caminhão, e depois de
três anos, passei a motorista. Numa das viagens conheci o Carlão,
que me indicou para uma vaga na Paranaense. Como eles só
fazem Sul e Sudeste, tive que me mudar pra cá.

– Já conseguiu uma casa pra alugar?

– Sim, aluguei uma edícula com três cômodos a três quadras da


transportadora. Na frente mora um casal de idosos. A filha vive
no pé deles pra irem morar com ela no centro da cidade, mas eles
não querem dar trabalho, apesar de a moça morar sozinha.

O garçom se aproximou da mesa. Floriano pediu uma cerveja e


quis saber se elas já tinham comido. Diante da negativa, pediu
uma porção de frango frito à moda da casa.

Num dos intervalos, a dupla sertaneja subiu até o mezanino e se


aproximou da mesa deles. Um sentou-se na cadeira vazia e o
outro conseguiu um banquinho que estava ali por perto.

– Que mundo pequeno, Floriano. O que você veio fazer nesse fim
de mundo? Jeito de falar, meninas. Não me levem a mal.

– Consegui emprego na Paranaense e me mudei pra cá. E vocês,


como encontraram esse lugar?

– A filha dos donos conheceu a gente num restaurante em Caldas


Novas. Disse que gostou muito da nossa música e nos convidou
pra vir pra cá. Já que a gente tá na estrada, não custava nada
agradar a moça. Segunda-feira botamos o pé na estrada de novo,
até São Paulo.

Quando os músicos voltaram aos seus lugares e começaram uma


música lenta, Floriano, vendo que havia alguns casais dançando,
pediu meio sem jeito:

– Vamos dançar um pouco, Helena?

Helena olhou para a Célia, sem graça pela amiga ficar só.

– Vai dançar, Helena. Preciso ir ao toalete e essa é a deixa.

Helena se sentiu uma criança nos braços musculosos do rapaz.


Embora já tivesse namorado um garoto na escola, a correria e a
preocupação com a mãe tiraram dela o interesse por
relacionamentos. Acabara de completar vinte e um anos e a ideia
de casamento nem passava pela sua cabeça.

De repente, sabe-se lá por que, lembrou do Carlão. Embora suas


galanterias nunca passassem disso, o fato de vir a namorar o
amigo dele causou-lhe um frio no estômago. Deve ter
estremecido, pois Floriano perguntou:

– Está com frio, Helena? Se quiser eu peço pra desligarem um


dos ventiladores.
– Não, está bom assim. Sabe, eu percebi que você não acha muita
graça nas brincadeiras do Carlão.

A expressão do rapaz endureceu quando respondeu:

– Conheci a esposa do Carlão numa das viagens que fiz até


Londrina. É uma mulher batalhadora, e enquanto o Carlão passa
dias viajando, ela dá conta da casa e de duas crianças pequenas.
Detesto homens que não dão valor pra esposa e ficam paquerando
outras mulheres.

Helena se apaixonou por ele naquele momento. Uma sensação de


alívio e alegria inundou sua alma.

Na segunda vez que saíram, dessa vez sem Célia, ele a pediu em
namoro.

– Sim, aceito.
CAPÍTULO V

A
lô!

– Oi, Mariana, sou eu, Floriano.

– Floriano! Puxa, que alegria em ouvir tua voz. Achei que você
tivesse se esquecido da nossa existência.

– Jamais, mana. Estava numa correria danada pra arrumar um


lugar onde morar. Aliás, liguei aí na quinta passada. Ninguém
atendeu.

– Quinta passada? Ah, é verdade. Fomos pra Anápolis na minha


colação de grau na faculdade de medicina. Agora sou uma
enfermeira de verdade.

– Parabéns, Mariana. Sempre soube que você seria a estrelinha da


nossa família. Pena não poder estar lá. Mas estou ligando pra dar
uma boa notícia.

– Sério? E o que é?

– Vou me casar, Mariana.

– Eeeeeeeba! Viva! – A menina gritava do outro lado – Manhêêê,


o Floriano vai se casar. – Completou, feito uma doida.
– Como ela é, Floriano? É bonita, bacana? Não aceito qualquer
uma pro meu irmãozinho!

– Ela é linda, inteligente e tem um coração de ouro, Mariana.


Chama-se Helena e é caixa no supermercado perto de onde eu
moro.

– Quando vai ser? Você virá casar aqui, certo?

– Em setembro, dia 26. Mas vou querer que vocês venham pra cá,
Mariana. Ficaria muito dispendioso pra mãe e os irmãos dela irem
pra Goiás.

– Claro que nós vamos, quer dizer, vou ter que dar um cano na
Santa Casa, mas isso é o de menos. Peraí, a mãe quer falar com
você. Um beijo, e fala pra Helena que ela já mora no meu coração.

– Um beijo, Mariana. Te amo, irmãzinha.

Aguardou, apreensivo, ouvir a voz da mãe.

– Oi, Floriano. Tudo bem, meu filho? Que história mais maluca é
essa?

– Oi, mãe. Tava morrendo de saudades da senhora. O pai tá bem?

– Tá, sim. Trabalhando muito, como sempre. Floriano – sua mãe


baixou o tom de voz –, ela aceitou a condição?
– Não, mãe – esperou a reação, como ela não veio, continuou. –
Tenho medo de perdê-la. Sei que é uma decisão egoísta da minha
parte, mas não tenho como voltar atrás.

– Filho, você não pode comprometer o futuro de uma moça por


egoísmo. Aliás, ela é filha única?

– Não, tem mais dois irmãos, um com dezesseis e outro com


quatorze anos.

– Ainda assim, não é justo – um falsete na voz o fez saber que ela
estava prestes a chorar.

– Mãe, prometo resolver isso antes de me casar. Se ela me ama


tanto quanto eu a amo, poderá me perdoar.

– Assim é que se fala. Posso ir até aí uma semana antes? Gostaria


de ajudar você nas coisas mais simples.

– Nossa, mãe, será uma benção ter a senhora aqui. A Helena vai
ficar bem feliz também.

– Combinado. Vou falar com teu pai quando ele chegar da cidade.
Na casa onde você vai morar tem telefone?

– Não, mas devo viajar nos próximos dias pra Santa Catarina.
Quando voltar eu ligo, pra atualizar as coisas.
– Se cuida, meu filho. E que Deus tenha piedade de nós.

– Amém, mãe. Beijos.

Floriano desligou e saiu de um dos escritórios da transportadora


com um grande peso na alma. Estava com 31 anos e vinha
protelando se casar por não ter coragem de envolver alguém
naquela decisão idiota de adolescente. Seus dois amigos de
loucura tinham morrido num acidente estúpido de moto, sem dar
chance de dividirem a culpa. Mas não podia fugir para sempre.
CAPÍTULO VI

F loriano aguardava, próximo ao altar, a entrada da sua noiva.


Estava impecável dentro do smoking que alugara. Seu porte
atlético se destacava entre os padrinhos, escolhidos com base no
desejo de ambos. Carlão fazia as honras da escolha do noivo, e
Leonardo, como irmão da noiva, completava o conjunto.

Célia, melhor amiga de Helena – vertendo lágrimas como um


chafariz – e Mariana, irmã de Floriano, compunham o lado das
madrinhas. Sentados na primeira fila estavam os pais do noivo e
a Dona Bernadete, mãe da Helena. Quem olhasse para Floriano
jamais suspeitaria do misto de felicidade e apreensão que
animava seu espírito. Às vezes, uma leve sombra cobria seu
sorriso radiante, imperceptível para os presentes, exceto para sua
mãe.

Dona Inês havia chegado em Curitiba uma semana antes, como


prometera ao filho. Com seu jeito prático e decidido, supriu a casa
dos noivos com detalhes que passariam despercebidos se fossem
deixados para ambos. Helena, trabalhando de segunda a sábado
no supermercado, tinha pouco tempo para ir atrás do necessário,
enquanto Floriano tinha que encontrar espaço entre uma viagem
e outra. Ela visitou a mãe de Helena no primeiro dia e soube que
encontraria ali uma aliada importante na gestão de possíveis
conflitos. Embora com pouco estudo e com seu jeito humilde,
Dona Bernadete havia adquirido parte da educação e discrição,
além de um forte objetivo de vida, convivendo com as famílias
nas casas nas quais trabalhava como doméstica, conseguindo
transmitir esses valores aos filhos, sobretudo a Helena, que havia
herdado a inteligência do pai.

Na conversa longa e sincera que Dona Inês teve com o Floriano,


não foi capaz de incutir-lhe a coragem necessária para revelar a
Helena sua condição, tamanho o medo que o rapaz tinha de perdê-
la.

– Floriano – disse-lhe sua mãe no dia em que chegou –, tem certas


decisões na vida que precisam ser tomadas porque comprometem
toda uma existência. O que você e seus amigos malucos fizeram
foi uma monstruosidade, e se aquele médico ainda fosse vivo, eu
mesma daria um jeito de cobrá-lo judicialmente. O infeliz morreu
cedo demais pro meu gosto, e seus amigos também. Mas você
está aqui, vivo e com saúde, graças ao bom Deus, mas prestes a
envolver outra pessoa na sua decisão. E se essa menina resolve
querer ser mãe dentro de pouco tempo? Como você vai fazer para
convencê-la a abrir mão de ter filhos?

Floriano ouvia, sentado no sofá recém-entregue pela loja, olhando


com ar de desalento para as mãos inertes. Sabia que a mãe tinha
razão. E sabia também que quanto mais tempo demorasse para se
decidir em contar sua condição para Helena, pior seria.

– Passei toda a minha vida achando que estava pagando caro pelo
meu erro – disse, por fim, com um suspiro profundo. Só tive
alguns namoros relâmpagos, fugindo de um compromisso mais
sério quando percebia que a garota estava envolvida demais. Pelo
jeito, a conta só chegou agora.

– Sim, e você terá que dividir com a Helena, se não quiser pagar
essa sua conta com juros e correção.

– Deus, me dá coragem, por favor!

Sua mãe levantou-se e foi até a cozinha, para que o filho não a
visse chorar.

Na véspera do casamento, ele a chamou num canto e disse-lhe


que havia conversado com Helena sobre ter filhos. Ela perguntou
se ele ficaria muito chateado se demorasse uns quatro anos para
engravidar. Queria fazer faculdade e achava injusto deixar a
criança com a mãe todas as noites.

– No fim das contas acho que Deus me ouviu, mãe. Daqui a quatro
anos nosso casamento estará mais sólido e a Helena poderá
encontrar uma solução que a gente não enxerga hoje.

– Você só ganhou um adiamento, filho. O que você vê como


solução não torna o problema menor.

Foi com esse ânimo que Floriano foi para o compromisso que
selaria seu destino.

A um sinal da moça que ajudava na cerimônia, o pequeno coro de


cantores oferecido pela igreja começou a entoar a Cantata 147 –
Jesus alegria dos homens, de Bach. Os presentes se levantaram e
Helena surgiu, vinda de uma sala lateral, se dirigindo para o
corredor central. Sua compleição magra estava disfarçada num
vestido com armação, estilo tomara que caia. Uma pequena tiara
prendia um véu de tule que lhe cobria as costas nuas, e um buquê
de botões de rosa vermelhas completava o conjunto.

Seu irmão mais velho, Oscar, de dezesseis anos, vinha ao seu


lado, dentro de um terno preto, camisa branca e gravata cinza.
Embora fosse cinco anos mais novo que Helena, era alguns
centímetros mais alto, além de mais gordo. Seu sorriso espelhava
o orgulho que sentia conduzindo a irmã numa ocasião tão
importante. Alguns dos seus amigos da escola troçavam dele, e
se ele percebia a presença deles, não demonstrou o menor
constrangimento, olhando fixamente em direção ao altar. Helena
sorria, cumprimentando levemente com a cabeça suas colegas de
trabalho, com os olhos negros cintilando de emoção.

A poucos passos do altar, Floriano se adiantou para se encontrar


com sua noiva. Cumprimentou o Oscar, que se empolgou e
abraçou Floriano como se quisesse impedi-lo de fugir,
provocando risos entre os presentes.

– Você está elegante, Oscar.

– Valeu – disse Oscar, e foi se acomodar perto da mãe.

– Você está linda, meu amor – sussurrou Floriano, recebendo em


agradecimento um sorriso encantador daqueles olhos nos quais
ele se perdeu no primeiro dia em que a viu.

– Caros amigos – começou o padre –, podem se sentar. Estamos


aqui hoje reunidos para celebrar o casamento de Dona Helena da
Costa Aguiar com o Senhor Floriano Peixoto.
Enquanto o padre continuava com a liturgia, ninguém percebeu
um senhor de meia idade entrar e se acomodar num dos últimos
bancos da igreja. O pai de Helena soube, através de um
entregador do supermercado, do casamento da filha e achou que
aquele seria um bom momento para rever a família que ele
abandonara anos antes.

No momento dos votos, Floriano tomou as mãos de Helena entre


as suas e fixou os olhos nos dela.

– Está muito nervoso? – cochichou Helena, sentindo as mãos


frias do rapaz.

– Só um pouco – respondeu ele, com aquele sorriso torto que


tanto encantava Helena.

Após ouvir o sim de ambos, o padre disse:

– Pode beijar a noiva.

Constrangidos pela presença dos familiares, beijaram-se


rapidamente, e mesmo assim ouviram os apupos dos mais
entusiasmados.

Ao cumprimentar Célia, Helena ficou com receio de que a amiga


fosse ter um treco, tamanha sua emoção.
– Parabéns, minha amiga. Hoje é o dia mais feliz da minha vida,
quer dizer, da sua, mas eu estou tão feliz que acho que vou
explodir.

– Obrigada, Célia. Você participou do início da minha felicidade,


e quero tê-la ao meu lado em todos os momentos felizes que, com
certeza, teremos.

Floriano abraçou sua mãe tempo suficiente para cochichar-lhe ao


ouvido:

– Não se preocupe, mãe. No fim, tudo vai dar certo.

Após os cumprimentos, o casal se encaminhou para a saída, com


os presentes atrás de si. Foi a poucos passos da porta que Helena
avistou seu pai.

“Meu Deus, como ele envelheceu”, pensou Helena. Desde que


seu pai foi embora, aquela era a segunda vez que o via em onze
anos.

Soltou-se do braço do Floriano para o abraçar. Mágoa e felicidade


se misturaram em seu coração, e ela não conseguiu conter o
choro. Ao afastar-se, por fim, seu pai chorava também, e ela se
deu conta de que nunca o tinha visto chorar antes.
– Fico feliz por você ter vindo, pai. Como soube do meu
casamento?

– Um dos entregadores do supermercado onde você trabalha


esteve no meu bairro e, sabendo que eu sou seu pai, me deu a data
e local. Quase não consegui chegar. Precisei arrumar uma
confusãozinha no hospital, mas graças a Deus cheguei a tempo.

– Hospital? Que história é essa de hospital, pai?

Sua mãe e seus irmãos se juntaram ao grupo, um tanto ariscos.


Ele aproveitou a ocasião para fugir da pergunta.

– Oi, Oscar. Oi, Leonardo. Puxa, como vocês cresceram! Oi,


Dete

Dete era a forma abreviada que seu pai usava para se referir à
mulher.

– Você está doente? O que aconteceu com aquele homem forte


que deixou a família pra trás? – Esse era o jeito da mãe de Helena.
Direta e reta. Helena, temendo um princípio de tumulto, interveio:

– Mãe, vamos para o salão. Lá o pai conta o que está acontecendo


– estendendo a mão para seu esposo, completou: – Vamos?
– Helena, tenho que voltar – seu pai apontou para um rapaz de
branco parado no último degrau da escada. – Me deram uma hora.
Aqui está o endereço do hospital.

Entregou um pequeno papel para a filha, segurou a mão entre as


suas e fixou nela os olhos tristes por alguns segundos.

– Desejo a vocês dois toda a felicidade do mundo, e tenho certeza


que esse rapaz será para você tudo o que eu não fui.

Helena o abraçou e cochichou-lhe ao ouvido: “assim que voltar


da viagem, vou até o hospital visitá-lo.”

Helena cumpriu sua promessa. Ao visitar o pai no hospital, ficou


sabendo que ele vinha lutando contra um câncer de próstata há
três anos. Os médicos a alertaram para esperar pelo pior e, de fato,
uma semana depois dessa primeira visita, seu pai faleceu.

A enfermeira que trocava o soro no seu momento final disse-lhe


depois que ouviu seu pai pronunciar um nome, junto com um
pedido de perdão.

– Quem é Dete?

– Minha mãe.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO I

T á perdido?

A pergunta o trouxe de volta. Virou-se e deu de cara com


uma garota, parada a pouco mais de um metro dele. Quase
da sua altura, vestia calça jeans, camiseta branca com estampa da
Minnie e tênis rosa. Um jaleco azul escuro completava o
conjunto. No pescoço, trazia um crachá com sua foto, onde ela
era retratada de cabelos curtos. Devia ser antiga, pois no momento
ela usava os cabelos quase na cintura.

– Não, não estou perdido. Só estava me decidindo sobre o que


fazer.

– Hum, pois então deve ser uma decisão difícil, já que você está
há uns vinte minutos aí, parado, olhando pro nada.

Perdido em pensamentos, ele não se deu conta da passagem do


tempo. Sem saber bem por que, perguntou, curioso:

– Como sabe que estou aqui há vinte minutos?


Como resposta, a garota virou-se e ele pode ler nas costas do
jaleco: AUXÍLIO AO USUÁRIO.
– Uma das minhas funções é justamente resgatar pessoas
perdidas, e como você desembarcou e não se moveu, achei que
não tinha ideia pra onde ir.

– Na verdade não tenho mesmo, ou melhor, tinha quando


embarquei em Curitiba. Só que um acidente na estrada atrasou
minha viagem em quase quatro horas, e agora acho que está tarde
demais pra ir até o endereço que minha mãe me deu.

A garota levantou os olhos para o grande relógio pendurado


acima da plataforma.

– São vinte e três e trinta e cinco. Onde você vai é muito longe?

– Sei lá, ainda não descobri. Só que ficar procurando um endereço


tarde da noite num lugar que nem sei onde fica não me parece
uma boa ideia.

– Posso saber onde é isso? Quem sabe nem fica tão longe.

– Claro – e tirou o papel que sua mãe lhe dera do bolso de trás da
calça. Estendeu para a garota.

– Podemos sair daqui? Essa área é de embarque e desembarque,


e não vamos fazer nem uma coisa e nem outra, certo?

Virou-se, e Matheus a seguiu para fora da plataforma. Ela


continuou andando, desviando-se das pessoas, e foi até uma
espécie de balcão. Contornou-o e ficou de frente para ele. Abriu
o papel amassado e leu alto:

– Célia, Rua Professora Heloísa Carneiro, 86, apto 21, Vila Santa
Catarina. Só isso, não tem um telefone?

– Não, essa mulher é uma amiga antiga da minha mãe. Elas


trabalharam juntas até a Célia resolver fazer um curso de
Cuidadora. Arrumou emprego pra cuidar de uma casal de velhos
que morava no mesmo quintal que nós. Quando a filha deles
resolveu se mudar pra São Paulo, trouxe os pais e a Célia veio
junto. A moça é Comissária de Bordo ou sei lá o quê. Só sei que
ela trabalha em aviões.

A garota ficou um momento olhando para o papel. Por fim, disse:

– Faz sentido. Acho que esse lugar é perto do Aeroporto de


Congonhas.

– E é longe daqui? – quis saber o Matheus.

– Bom, nem é tão longe, se tiver como chegar lá de metrô – olhou


de novo para o relógio pendurado próximo dali –, mas eu acho
que você devia deixar isso pra amanhã. Ela está te esperando?

“Não, ela nem sabe que vim pra cá”, ele pensou, e disse em voz
alta:
– Sim, mas não falei o dia certo.

A garota o estudou por um momento, como se estivesse decidindo


sobre o que fazer.

– Nesse caso – disse por fim –, eu te aconselho arranjar um lugar


onde dormir. Amanhã cedo você se informa melhor sobre como
chegar lá.

– Então tá, acho que é isso mesmo o que eu vou fazer – e estendeu
a mão para pegar o papel de volta. – A propósito, me chamo
Matheus, com tê agá. Obrigado pelas informações.

– Angélica, não tem de quê. Esse é o meu trabalho.

Ele virou e começou a se afastar dali, pensando onde poderia se


acomodar para passar a noite. Sua mãe lhe dera dinheiro
suficiente para ajudar a Célia nas despesas por um mês, e ele sabia
que se arrumasse um quarto barato em algum hotel, não faria
falta. Mas morria de medo de ser assaltado, e não tinha intenção
nenhuma de sair a procura de um hotel. Subiu a escada rolante até
o piso superior para comer alguma coisa. Depois, foi ao banheiro,
lavou o rosto, escovou os dentes e saiu em busca de um lugar
confortável para dormir. Andou por alguns corredores e viu uns
bancos, poucos metros depois da praça de alimentação, e que
terminavam numa parede.

“Aqui ninguém vai me incomodar”, pensou, enquanto ajeitava a


mochila para ser usada como travesseiro.

Havia dormido pouco no ônibus, ainda com as emoções num


turbilhão dentro de si. E quando a parada inesperada provocou
discussões acaloradas dentro do ônibus, ele percebeu que seria
impossível descansar.

Pegou no sono rapidamente, e sem pedir licença, a Júlia entrou


no seu sonho, perguntando, com aqueles olhos verdes fixos nos
dele, porque ele a enganara, dizendo que iria passar as férias na
casa de uma avó que não existia. Ele quis retrucar, dizendo que
ela não sabia de nada, mas ela afirmou que tinha conversado com
sua mãe. Ele perguntou por que ela estava se metendo na sua vida,
e ela ficou furiosa, batendo várias vezes no seu braço. Ele tentou
se esquivar, segurando a mão dela. Acordou assustado,
prendendo uma mão na sua.

– Matheus, sou eu. Calma. Pretende mesmo passar a noite nesse


banco duro?
Sentou-se rapidamente, ainda meio zonzo, e olhou para cima.
Angélica estava ali, de pé e sem o jaleco azul.

– Desculpe-me por ter acordado você. Vim comer um lanche


antes de ir pra casa e te vi aqui.

– Posso voltar a dormir? – ele perguntou, mal humorado.

– Não, não pode. Tive uma ideia. Amanhã é meu dia de folga e
decidi ajudar você a encontrar o tal endereço. Vem, meu pai está
lá embaixo me esperando pra me levar pra casa. Ele tem uma
lanchonete no Mandaqui e o cozinheiro dormia num quarto em
cima, mas como ele pediu a conta e voltou pra Bahia, você pode
dormir lá.

Sem entender absolutamente uma única palavra do que ela dizia,


ele resmungou:

– Valeu – e se preparou para deitar de novo.

– Matheus, vem, vamos pra minha casa. Entendeu o que eu disse?


Amanhã a gente procura a Célia juntos.

Talvez o nome familiar o trouxe de volta à realidade. Ele se


sentou, agora completamente acordado, esfregou os olhos e
resmungou:

– E por que cargas d’água você resolveu me ajudar?


– Sei lá, venha.

Ela pegou sua mochila e o ajudou a coloca-la nas costas.

– Pesadinha, hein? O que tem aí, sua bicicleta?

– Meus livros e cadernos.

– Ah, vai estudar durante as férias.

“Não, vou procurar uma escola aqui e nunca mais voltar”, pensou,
e disse em voz alta:

– Mais ou menos isso. Você se lembrou de combinar com teu pai?

– Meu pai é de boas, ele confia na filha que tem. E você não é um
assassino, né?

– Caramba, Angélica! De onde você tirou isso?

– Dos filmes. Tô brincando. É por ali.

Desceram a escada rolante, andaram por um corredor imenso e


saíram por uma porta lateral, que dava num estacionamento.
Angélica ia alguns passos na frente e ele a seguia, ainda se
perguntando no que aquilo ia dar.

Chegaram perto de um Palio prata, com um homem meio grisalho


ao volante. Angélica enfiou a cabeça pela janela e deu um beijo
no rosto do pai. Ele observava o rapaz, curioso.
– Pai, esse aqui é o Matheus, com tê agá. Ele estava meio perdido
e eu resolvi ajudar. A gente vai pra casa e amanhã vamos em
busca da amiga da mãe dele, lá pros lados do Aeroporto de
Congonhas. Ele vai dormir no quarto que era do Chicão.

A moça disse tudo isso enquanto abria a porta traseira, empurrava


o rapaz para dentro, dava a volta e se acomodava ao lado do pai.

O pai dela observou o rapaz pelo espelho retrovisor e perguntou:

– Você não sente que está sendo meio que sequestrado pela minha
filha maluca?

– Mais ou menos. A essas horas eu devia estar no terceiro sono


nos bancos do terminal. Acho que ela anda assistindo filmes
demais.

– Não quis deixar você chateado, mas é proibido dormir nos


bancos do terminal, a menos que estivesse esperando pelo teu
ônibus, o que não era o caso.

O pai da moça gostaria de fazer mais algumas perguntas, mas


achou melhor deixar para o dia seguinte. Então, perguntou para a
filha quais eram as novidades, e enquanto tagarelavam, Matheus
aproveitou para observar melhor a moça. Não era tão bonita
quanto a Julia, apesar que na sua opinião toda garota ruiva é linda,
mas tinha uma simpatia que a deixava mais bonita do que
aparentava. Perguntou para si mesmo se ela estudava, já que
trabalhava até tarde no terminal. Perdido em pensamentos, levou
um susto quando o homem freou defronte à uma lanchonete
fechada. Olhou no relógio, eram quase duas horas da manhã, e ele
tinha perdido completamente o sono.

– Chegamos – anunciou a garota, descendo e dando a volta para


ajudá-lo com mochila. Você vai gostar do lugar. Pelo menos é
bem mais confortável e seguro que o terminal.

Seu pai abriu uma pequena porta no meio de outra maior de


enrolar, entrou, desligou o alarme e acendeu as luzes. Esperou o
rapaz entrar, tornou a trancar a porta e foram para o fundo da
lanchonete.

– Está com fome? – Perguntou o pai da moça. – Se quiser a gente


prepara um lanche

– Não, senhor, muito obrigado. Comi no terminal.

– Vamos lá pra cima, então.

Subiram por uma escada caracol e saíram num corredor estreito,


no fim do qual havia uma porta. Abrindo-a, deram num quarto
espaçoso, com uma cama próxima da janela. Havia também uma
escrivaninha e um pequeno sofá, com o tecido meio gasto. Ao
lado esquerdo havia outra porta, que dava num banheiro.

– Aqui em cima não tem sensores de alarme, então você pode se


movimentar à vontade. Caso resolva descer, terá que desarmá-lo
antes. A Angélica vai escrever a senha num papel, mas eu chego
aqui por volta das seis horas. Provavelmente você ainda vai estar
dormindo.

– Melhor você tomar um banho, Matheus. Tem toalhas?

– Tenho, sim, Angélica. Obrigado pela acolhida. Num hotel eu


não me sentiria melhor. Peço desculpas se estiver dando algum
trabalho.

– Trabalho nenhum, rapaz. Descanse, amanhã cedo estaremos de


volta.

Matheus estendeu a mão e apertou a do pai da moça


vigorosamente. Fez o mesmo com a garota e desejou-lhes boa
noite.

Ficando sozinho, fez um reconhecimento no ambiente e achou


um pequeno guarda-roupas atrás de um recuo próximo da porta.
Guardou ali sua mochila e resolveu tomar um banho. Debaixo do
chuveiro quente, finalmente as lágrimas que ele vinha segurando
desde que entrou no ônibus em Curitiba correram pelo seu rosto
num choro de alívio.
CAPÍTULO II

M atheus acordou com o barulho da porta de enrolar. A


claridade na janela o fez saber que já era dia, e uma
olhada no relógio que estava debaixo do travesseiro confirmou
sua suspeita. Eram sete horas e ele agradeceu pelo fato de o pai
da moça se atrasar por uma hora. Ficou um tempo deitado,
olhando para o teto, pensativo e com os ouvidos nos ruídos que
vinham da rua. Ouviu um riso e reconheceu nele a voz da
Angélica. Levantou-se e se dirigiu ao banheiro para lavar-se.
Olhou sua aparência no espelho e concluiu que não seria uma boa
ideia aparecer na casa da Célia com a barba por fazer. Após
barbear-se, foi até a mochila e tirou dali uma camiseta limpa. Iria
usar a mesma calça jeans da véspera, pois não sabia quando teria
a oportunidade de lavá-la. Dobrou as roupas de cama, ajoelhou-
se próximo à escrivaninha e agradeceu a Deus por mais um dia,
obedecendo um ritual aprendido com sua mãe e seguido
religiosamente. Helena não era muito religiosa, mas uma vez uma
amiguinha da escola a convidou para visitar sua igreja, e foi ali
que ela aprendeu sobre a necessidade de dar graças por acordar
mais um dia com saúde. Quando abriu a porta do quarto para sair,
sentiu o aroma de café que vinha da parte de baixo e se lembrou
de casa. Desceu os degraus da pequena escada caracol e foi
recebido com uma saudação pelo pai de Angélica.

– Bom dia, meu jovem! Espero que tenha conseguido dormir.


Essa rua é bem movimentada, mesmo à noite.

– Bom dia, acho que desmaiei, porque não ouvi carro nenhum.

– Sorte sua. O Chicão vivia reclamando do barulho, né, Angélica?

– Só até a gente descobrir, naquela reforma em que ele teve que


ir lá pra casa, que os carros eram na verdade seus roncos. Bom
dia, Matheus. Sente-se naquela mesa que eu já te sirvo o café. O
que você costuma comer?

– Meu café da manhã sempre foi pão com manteiga e café com
leite. Às vezes minha mãe conseguia me fazer comer presunto e
queijo, mais uma fruta. O problema é que eu estava sempre
atrasado pra aula.

– Bom, como estamos de férias da escola, você vai comer o


cardápio da tua mãe, certo?

– Tudo bem. Se puder ser uma banana, eu agradeço.

Angélica preparou uma xícara grande com café com leite,


enquanto seu pai passava as fatias de pão numa chapa quente. Ela
distribuiu presunto e queijo em dois pratos, colocou numa
bandeja junto com o açúcar e levou até ele.

– Já trago o pão – disse ela, voltando para detrás do balcão.

Nesse momento chegou uma senhora de meia idade acompanhada


de uma garota. Ambas vestiam um avental vermelho com o nome
da lanchonete gravado no bolso.

– Bom dia, Seu Valdemar. Bom dia, Angélica.

– Bom dia, Dona Conceição. Bom dia, Juliana – disseram pai e


filha juntos.

A Juliana contornou o balcão e pôs-se a lavar alguns copos e


xícaras que estavam sobre a pia, enquanto sua mãe se dirigiu até
a cozinha, no fundo da lanchonete. A menina olhou na direção do
Matheus e dirigiu-lhe um sorriso tímido.

– Juju, esse aqui é o Matheus – disse Angélica, trazendo os pães


quentes numa outra bandeja. Trazia também uma xícara com
chocolate quente, uma banana e uma maçã. – Ele chegou ontem
de Curitiba e a gente vai procurar uma amiga da mãe dele perto
do Aeroporto de Congonhas – completou a moça, sentando-se
defronte ao rapaz.
A menina assentiu com a cabeça e continuou sua ocupação com
a louça.

– Se você quiser chocolate quente, depois eu trago, Matheus –


disse Angélica, enquanto preenchia suas metades de pão com
presunto e queijo.

– Não precisa, obrigado. Tem certeza que você quer mesmo ir


comigo procurar a Célia?

– Absoluta, senão eu teria deixado você dormir naqueles bancos


duros do terminal e ser importunado por um segurança.

Matheus olhou-a nos olhos e quis agradecer. Antes disso, ela


abriu um sorriso e disse:

– Além do mais, uma aventurazinha no meu dia de folga cai super


bem.

– Não entendi o porquê do seu dia de folga.

– É simples. Como eu trabalho das quatro da tarde até meia-noite,


tenho direito a um dia de folga na semana. Só não posso escolher
o dia, o que significa que você é um garoto de sorte.

“Serei mesmo?”, pensou Matheus. E observou em voz alta:

– Geralmente as pessoas usam o dia de folga pra descansar.


– Que nada, vou ter a vida toda pra descansar. Olha só, ontem
quando cheguei em casa dei uma olhada no guia rodoviário do
meu pai. Fiz um roteiro do nosso caminho, usando metrô e
ônibus, pra chegar na Vila Santa Catarina. Não vamos levar mais
do que duas horas até lá, incluindo uma pernada. Só tem um
pequeno problema.

– Qual?

– Você não tem mesmo o telefone da Célia? Como vamos saber


se ela vai estar em casa?

Na verdade a Célia nem sabia que ele iria aparecer na sua casa.
Sua mãe só se comunicava com a amiga por cartas, e as últimas
que trocaram tinha sido há dois meses. No momento da sua
decisão de fugir, nada disso foi levado em conta. Na sua cabeça
o plano era bem simples: pegaria o ônibus até São Paulo,
encontraria meios de chegar até o endereço que a mãe lhe dera,
contaria sua história para a Célia, que o adorava, ela entenderia
seu lado, tentaria convencê-lo a voltar para casa e ele soltaria a
bomba, que iria convencê-la de que ele estava absolutamente
certo em fugir.

– Matheus? – chamou a moça, estalando os dedos na sua frente.


Ele voltou à realidade e teve certeza de que ela estava certa. E
ficou mais chateado ainda por envolve-la numa idiotice daquelas.

– Bom, a gente vai até lá. Se ela não estiver em casa, a gente
pergunta pra algum vizinho se ela volta logo. Senão, é só deixar
um bilhete na porta avisando que vou voltar amanhã, se eu puder
passar mais uma noite aqui, lógico. Caso contrário, volto pra casa
– mentiu.

– Ótima ideia, e não vamos esquecer de deixar o telefone da


minha casa. Afinal, a gente não mora em cavernas. Quando você
quiser a gente sai. Quer mais café?

– Não, obrigado.

– Posso usar seu banheiro pra escovar os dentes?

– O banheiro é seu, Angélica.

– Mas você está hospedado lá. Peraí – e se levantou, recolhendo


as coisas e levando para o outro lado do balcão.

Subiu as escadas, levando sua bolsa, e voltou dez minutos depois.


Estava usando o mesmo perfume da Júlia, e ele teve vontade de
largar tudo e voltar para casa. A lembrança do motivo que o levou
a fugir tirou sua vontade, e ele subiu para usar o banheiro
enquanto a moça conversava com o pai.
– Vamos?

– Vamos. Pai, eu ligo de lá assim que chegarmos.

– Se cuidem. Espero que dê tudo certo, rapaz.

– Obrigado, com certeza vai dar, sim.

Saíram em direção à avenida onde pegariam o ônibus. O


comércio estava começando a abrir as portas, e muita gente
andava pelas calçadas, apressadas para o trabalho. Crianças e
jovens também transitavam por ali, em direção às escolas. Ao vê-
las, Matheus se lembrou da pergunta que queria fazer.

– Como você faz para estudar trabalhando à noite, Angélica?

– Estudo de manhã. Até o ano passado eu não sabia muito bem


que curso faria na faculdade. Daí, me decidi por Relações
Públicas. Gosto de interagir com as pessoas, sabe? E o emprego
no setor de Ajuda ao Usuário no terminal veio bem a calhar. Com
ele posso ir juntando algum dinheiro pra faculdade, caso não
consiga entrar numa universidade pública. E você, já se decidiu o
que vai ser na vida?

– Caminhoneiro....

– Hã? Como assim, caminhoneiro?!


– Tô brincando, Angélica. Meu pai é caminhoneiro, e quando era
criança, sempre que alguém me perguntava o que eu ia ser quando
crescer, eu respondia: caminhonelo, qui nem u papai.

– Ah, entendi.

– Você tem alguma coisa contra caminhoneiros?

– Claro que não, só penso que não precisa estudar pra ser um.
Basta ter a carteira de motorista certa. Agora, sério. Já decidiu o
que quer, para o caso de não ser caminhoneiro?

– Ainda não. Tenho mais dois anos pra pensar no assunto.

Angélica deu sinal e um ônibus parou. Embarcaram e foram se


acomodar na parte traseira. Todos os assentos estavam ocupados,
embora o veículo não estivesse tão lotado.

– Dois anos? Que idade você tem, Matheus?

– Dezesseis.

– Sério?! Pois ontem quando te vi deitado naqueles bancos achei


que já fosse de maior. Hoje em dia os rapazes não parecem muito
seguros em viajarem sozinhos. Nesse caso, você tem uma
autorização do Juizado de Menores, certo?

– Se eu não tiver uma você vai me denunciar? – Gracejou ele.


– Com certeza. Outra das minhas atribuições é recolher garotas e
garotos fujões.

“Pois eu sou um garoto fujão com uma autorização do Juizado”,


pensou ele.

– E você, que idade tem?

– Acabei de completar dezoito. Me formo no colégio esse ano.


Vamos descer? A estação do metrô fica na rua lateral.

Quando o ônibus parou, quase todas as pessoas que estavam nele


desceram e também se dirigiram à estação de metrô.

Angélica entrou na frente dele e foi andando com desenvoltura


até as bilheterias. Ele percebeu que aquilo devia fazer parte da
rotina da moça. Compraram seus bilhetes e desceram dois lances
de escadas rolantes até a plataforma. Que estava lotada, por sinal.

– Venha, vamos para o final. Ali o vagão não fica tão cheio. As
pessoas preferem os do meio pra poderem sair mais rápido da
estação.

De fato, nas pontas não tinha muita gente. Uma ventania anunciou
a chegada do trem. Quando a porta se abriu, Angélica segurou seu
braço.
– Espere um pouco. As pessoas vão correr em busca de um lugar
vazio. Parecem um bando de idosos.

Um rapaz vestido com terno e gravata ouviu o que ela disse e


sorriu, concordando.

– Vamos para o fundo, que é o espelho da plataforma. Ficar perto


da porta, para alguns, é questão de vida ou morte, eu acho.

Quando o trem começou andar, Matheus se agarrou numa barra


de ferro e soltou um suspiro. Angélica o observava, com ar
divertido. Passado um tempo, perguntou:

– Vai me dizer que você nunca andou num desses antes.

– Nunca. Isso aqui tá mais pra um foguete. Nunca andei num


foguete também, mas acho que a sensação deve ser a mesma.

– Bom, então vá se acostumando. Se a Célia não estiver em casa,


você vai ter que voltar amanhã, só que sozinho. Por falar nisso,
você não esqueceu nada lá na lanchonete?

– Não, tirei pouca coisa da mochila.

– Vocês homens são bem práticos. Nunca que minhas roupas de


uma temporada fora iriam caber nessa sua mochila. A
maquiagem, talvez, e alguns sapatos.
– Eu e minha mãe viajamos alguma vezes pra Caldas Novas. A
mala dela pesava uma tonelada. E o engraçado era que algumas
roupas nem saiam da mala. Embora lá fosse quente como o
inferno deve ser, ela insistia em levar blusas. Talvez achando que
Goiás fosse frio como o Paraná.

– Bom, pra isso teu pai tem um caminhão, certo?

– Ele nunca foi com a gente – uma sombra cobriu o seu rosto e
ele se calou.

Angélica percebeu, e se ficou curiosa para saber o motivo,


conteve-se. A estação deles era a próxima, e ela achou que esse
era um bom motivo para ficar calada.

Desceram na estação Conceição e Angélica consultou o mapa dos


arredores. Queria saber onde pegar o ônibus até a Vila Santa
Catarina que os deixasse o mais perto possível da rua onde a Célia
morava.

– Venha, a gente tem que sair pelo outro lado. Você está
decorando o caminho?

– Mais ou menos, mas quem tem boca vai à Roma.

O ônibus os deixou na Rua Tamoios e eles andaram uns dez


minutos até a Rua Professora Heloísa Carneiro, 86. O prédio onde
a Célia morava só tinha três andares, e o apartamento 21 ficava
no meio. Como não tinha uma portaria, teriam que tentar o
porteiro eletrônico grudado no portão. No momento em que
chegaram na frente do prédio, viram uma aeromoça saindo. Ela
achou que eles deviam morar ali e manteve o portão aberto.

– Obrigada – disse Angélica com um sorriso, enquanto lia


discretamente o nome escrito na placa dourada presa na roupa da
moça.

Depois que entraram, já no hall, ela perguntou:

– Sabe se o nome da tal comissária é Bianca?

– Sinceramente, não. Só conheço os pais dela. Quando era


criança, fui várias vezes na casa deles, mas a filha morava sozinha
no centro da cidade.

– Bom, vamos subir. Lá a gente descobre.

Subiram os dois lances de escada até o segundo andar e pararam


na porta do 21.

– Preparado? – Perguntou Angélica.

Ele respondeu com um sorriso torto, o que ela interpretou como


um “sim”.
Ela apertou a campainha, e tomaram um susto com o barulhão
produzido.

– Nossa, isso levanta até defunto. Ainda bem que já são quase
nove horas e não deve ter ninguém dormindo.

Como ninguém atendeu, passado um tempo Angélica apertou a


campainha de novo. E mais três vezes depois.

Ao invés da porta do 21 se abrir, eles ouviram a do 23 sendo


destrancada. Uma garota que aparentava ter quase dois metros de
altura botou a cabeça para fora e gritou, mal humorada:

– Ei, vocês pretendem ficar o dia todo tocando essa droga de


campainha?

Angélica, que estava acostumada a lidar com gente grossa o dia


todo no trabalho, abriu um grande sorriso e foi em direção da
moça. Ela vestia um pijama de flanela com estampa de ursinhos
e trazia no alto da cabeça um tapa-olhos preto. Angélica percebeu
que a moça dormia durante o dia e na mesma hora soube que se
tratava de outra aeromoça.

– Puxa, desculpe-nos por ter te acordado. Você deve ter acabado


de chegar de algum voo e deve estar super cansada. Agimos feito
dois idiotas que acabaram de chegar do norte. Pode nos perdoar,
por favor?

Essa era sua tática de desarme. Valorizar o outro e reconhecer o


próprio erro. Isso, mais o fato da moça também lidar com pessoas,
diminuiu a tensão.

– Tudo bem – disse ela. – Desculpem a grosseria, mas é que estou


só o pó, depois de ter ficado dezoito horas no ar.

Nisso, levantou os olhos e viu o tapa-olhos, que arrancou da


cabeça num gesto rápido, vestindo-o no pulso direito, como uma
pulseira.

– Muito prazer, meu nome é Angélica e esse é o Matheus, com tê


agá. Ele veio de Curitiba passar uns dias das férias escolares na
casa da amiga da mãe dele, a Célia. Só que a gente não tem o
telefone dela, por isso viemos sem avisar.

– Francesca – disse a moça, estendendo a mão para os dois. Célia,


você disse?

– Sim – respondeu o Matheus. – Ela trabalhava como cuidadora


de um casal que morava no nosso quintal e era praticamente
minha segunda mãe.
– Há quanto tempo você não fala com ela, Matheus? – Quis saber
a Francesca.

– Minha mãe e ela trocavam cartas, mas eu mesmo não falo com
ela desde que se mudou pra cá. Por quê? – Ele começou a sentir
uma sensação ruim no estômago.

– Infelizmente a Célia faleceu há pouco mais de um mês. Ela foi


atropelada por um motociclista na Avenida Santa Catarina. Ficou
quase uma semana na UTI, mas não resistiu aos ferimentos.
Minha amiga, Nina, veio pra cá com os pais e a Célia por ter
arrumado emprego na TAP1. Como eles ficariam sozinhos devido
aos voos internacionais dela, se mudaram pra Portugal. Parece
que os pais vieram de lá há alguns anos e deixaram parentes. O
apartamento está vazio. Sinto muito, Matheus. Você está bem?
Quer entrar e tomar uma água?

Angélica olhou rapidamente para o rapaz. Ele estava branco como


a parede do corredor, olhando fixamente para o nada. Angélica já
tinha visto aquela expressão antes. Sem pensar direito, e talvez
movida pelo pesar, foi até ele e o abraçou.

1
TAP Transportes Aéreos Portugueses – Companhia aérea com sede em
Lisboa.
– Sinto muito, Matheus, sinto muito, mesmo.

O rapaz desabou de vez, num choro incontido. Não se importou


de fazer isso na frente das duas garotas. Angélica o amparava,
sem dizer nada, apenas passando a mão direita levemente nas suas
costas.
CAPÍTULO III

P ermaneceram calados durante toda a viagem de volta.


Angélica observava aquele garoto sentado num banco do
metrô, perpendicular ao seu, e sentia uma tristeza imensa. Podia
imaginar sua dor, pois ela também tinha passado por situação
parecida. Sua mãe morreu quando ela completou oito anos, e
mesmo depois de quase uma década, não conseguia se acostumar
com o vazio. Seu pai se casou de novo dois anos depois, e ela se
dava bem com a madrasta, mas todas as datas comemorativas
eram para ela um martírio. Uma vez, no terminal, viu uma mulher
no meio da multidão e seu coração veio parar na boca. A
semelhança com sua mãe era tão assombrosa que ela precisou
fazer um esforço imenso para não correr atrás dela.

Por alguma razão, ela desconfiou que a vinda do rapaz estava


associada com algum problema sério na família. Perita em
observar as pessoas, conseguia identificar emoções e sentimentos
pelos gestos e atitudes delas. “Expressão corporal”. Esse era o
nome que ela tinha aprendido num livro de autoajuda que leu
quando completou treze anos.
Decidiu que não deixaria o rapaz voltar para casa naquele mesmo
dia. Iria tentar convencê-lo a dormir mais uma noite no quartinho
da lanchonete, e quem sabe, um pouco mais calmo, ele se abriria
com ela. Sua vida social se resumia ao pai e à madrasta, já que
não tinha um namorado a quem dar explicações. E seu pai
confiava plenamente nela, então, se conseguisse convencer o
rapaz, ele não se oporia. Veio um pensamento rápido na sua
mente, que a fez sorrir levemente, mas ela o afastou, um tanto
encabulada.

O cansaço do rapaz, somado ao copo de água com açúcar


oferecido pela Francesca, fizeram efeito. De olhos fechados, ele
começou a cabecear de sono. Por fim, pegou a mochila que estava
no chão, entre seus pés, colocou-a sobre o colo e se debruçou
sobre ela. Como ele estava sozinho no banco, a cada freada e
arrancada do trem ele era jogado de um lado para o outro. A
pessoa que dividia o banco com Angélica se levantou e desceu na
Sé.

– Matheus, senta aqui comigo.

O rapaz olhou para ela e se jogou ao seu lado, voltando a pegar


no sono em seguida. Próximos da estação Santana, ela o chamou.

– Matheus, chegamos. Fim da linha.


Pegaram o ônibus até o Mandaqui e vinte minutos depois
entravam pela porta da lanchonete. O pai de Angélica não estava
lá.

– Juju, cadê meu pai?

– Saiu. Disse que ia até o Mercado Municipal e já voltava. Isso


foi há umas duas horas.

– Matheus, você está cansado, e com razão. Foi dormir tarde


ontem e acordou muito cedo hoje. Come alguma coisa e depois
você sobe pra dormir um pouco, e mais tarde a gente se fala.

– Obrigado, mas eu tô sem fome

E se virou, indo em direção à escada.

– Ah, Matheus! – Chamou Angélica. – O que você acha de ligar


pra tua mãe e avisar que está tudo bem?

– Mais tarde eu ligo. Ontem, um pouco antes de deitar nos bancos


lá do terminal, eu liguei de um orelhão e avisei que já tinha
chegado. Se eu ligar agora ela vai querer que eu pegue o primeiro
ônibus de volta. E eu não tô a fim de brigar com ninguém.

Virou as costas e subiu. Abriu a porta do quarto, jogou a mochila


dentro do pequeno guarda-roupas, chutou o tênis para um canto e
se jogou na cama. Acordou levemente mais tarde, ao ouvir um
ruído, mas não se virou, voltando a dormir. Foi um sono sem
sonhos, de tão cansado que estava.

Por volta das dezenove horas, ele acordou. Olhou no relógio e


tomou um susto. Havia apagado por oito horas, e sua barriga
roncava. Ficou de costas, olhando para o teto e repassando os
acontecimentos do dia. Se viu diante de um dilema.

“Tava na cara que isso não ia dar certo. Fui um idiota, fazendo as
coisas sem pensar. Bem que a minha mãe falou que seria um salto
no escuro, já que ela nem sabia se a Célia ainda morava no mesmo
endereço.”

A lembrança do que tinha acontecido com a Célia provocou novas


lágrimas quentes, que escorreram pelo rosto e foram molhar a
fronha do travesseiro.

“Por que será que as pessoas boas morrem tão cedo? Tem tanta
gente ruim nesse mundo que fica por aí, enchendo o saco dos
outros até ficar gagá. A Célia era quase um anjo. Deve ser isso,
um anjo que voltou pro céu. Podia pelo menos ter vivido mais um
pouco e me ajudar a sair dessa enrascada. Coitada, melhor não.
Ela ia morrer mesmo era de pena da minha mãe quando soubesse
de tudo. Agora eu tô na roça. Voltar pra casa, nem pensar, mas
onde eu vou ficar? Nossa, podia ter sido pior! E se a Angélica não
tivesse me trazido pra cá? Essa garota é incrível. Catar um
desconhecido num terminal de ônibus e trazer pra casa. Vai ver,
é o anjo da Célia cuidando de mim. Obrigado, Deus. Fico te
devendo mais essa.”

Olhou para o lado e viu um copo cheio de suco de laranja sobre a


escrivaninha. Sentou na cama e viu o restante da comida. Havia
ali um prato com dois sanduiches de pão de forma com presunto
e queijo. Num outro prato estavam duas bananas nanica grandes.

“Isso deve ser coisa da Angélica. Ainda bem, eu ia morrer de


vergonha em ter que descer e pedir comida. Bom, apesar que eu
vou pagar por isso numa boa.”

Após devorar tudo aquilo, entrou no banheiro para tomar um


banho. Lavou a cueca no chuveiro e pendurou-a no box. Achou
que devia lavar também a camiseta, mas pensou melhor. Levaria
um tempão para secar. Melhor lavar no tanque lá perto da
cozinha. Ali tinha um varal numa área aberta e secaria mais
rápido. A cueca, não. Ficou com vergonha de deixar sua roupa
íntima à vista da Dona Conceição.

Às vinte horas ele desceu até a lanchonete. Algumas mesas


estavam do lado de fora, distribuídas na calçada em frente, onde
alguns rapazes e moças bebiam cerveja. A Juliana já tinha ido
embora e atrás do balcão estavam a Angélica e seu pai. Na
cozinha, a Dona Conceição preparava porções de bolinhos de
bacalhau fritos em pequenas tigelas.

– Olá, dorminhoco – brincou a Angélica. – Conseguiu descansar?

– Até demais. Obrigado pelo lanche, quanto é? – Disse ele,


pegando a carteira no bolso de trás da calça.

– Nossa, e não é que ele é rico? – Brincou o pai da Angélica. –


Calma, rapaz. Não precisa pagar nada agora. Conversa depois
com a Angélica e ela vai te contar que tem grandes planos pra
você.

– Pai! Vai assustar o Matheus! Não liga pra ele, Matheus. Quer
ajudar a gente aqui?

– Claro, o que eu faço?

– Toma aqui o avental que era do Chicão, deve servir em você.


Tá com cheiro de cozinha, mas foi bem lavado. Viu? Até que você
ficou bem nele. Agora, pega essas comandas e vai distribuindo os
pedidos nas mesas. A número 1 é aquela onde a gente comeu hoje
cedo, então é só ir contando na sequência. Lá fora estão da seis
até a dez. Fácil, né? Ah, bota aqui essa caneta no bolso. Você vai
precisar dela.
Matheus foi pegando as encomendas e distribuindo nas mesas.
Algumas pessoas pediam mais coisas, que ele anotava nas
comandas e riscava o que já tinha sido servido. Meia hora depois
já tinha pegado o jeito da coisa, e foi assim até ás vinte e duas
horas, quando o pai da Angélica fechava a lanchonete.

Assim que os últimos clientes foram embora, o pai de Angélica


levou a Dona Conceição até a casa dela, ali perto. Quando voltou,
Matheus já tinha guardado todas as mesas e cadeiras que estavam
na calçada no fundo da lanchonete, varrido o lixo que jogaram no
chão e colocado tudo em sacos pretos.

– Cansado, rapaz?

– Que nada, me diverti à beça. Isso aqui é bem legal. A propósito,


ninguém me falou como o senhor se chama.

– Salvador. Nunca salvei ninguém, mas tenho esperança de fazer


jus ao nome um dia.

– Legal, e obrigado por ter me acolhido hoje. Amanhã eu vou dar


um jeito de ir embora.

– A Angélica me contou o que aconteceu. Angélica! – Chamou a


moça, que estava na cozinha. – Acho que você deve conversar
com ele sobre a tua ideia, antes de irmos embora.
– Ah, claro. Por favor, Matheus. Poderia sentar comigo naquela
mesa?

Sentaram-se, e Angélica deu uma olhadela na direção do pai,


antes de começar.

– Matheus, estive pensando sobre tudo o que aconteceu desde que


te vi parado na plataforma, sem saber o que fazer. Não sei bem o
porquê, mas desde aquele momento eu tive a impressão de que
você está tentando fugir de alguma coisa. Seja lá o que for, não é
da minha conta, e tudo estaria resolvido se nessa hora você
estivesse na casa da Célia. Só que você não está lá, e já que deu
tudo errado, que tal considerar a proposta que tenho pra te fazer?

– Que proposta?

– Olha só, você e eu estamos de férias na escola. Eu tenho o meu


trabalho, então pensei em tentarmos uma experiência que vi em
alguns filmes. Nos EUA, os rapazes e moças arrumam algum
trabalho temporário durante as férias, coisas leves, tipo
balconistas em lanchonetes ou cortar a grama do jardim dos
vizinhos. O que você acha de ficar aqui durante as tuas férias
ajudando meu pai? Ele te paga um salário por isso, lógico, você
não vai trabalhar de graça. Daí, quando as férias acabarem, você
volta pra casa. Que tal? Ah, e se você preferir, pode continuar
ocupando o quarto lá em cima, ou ir lá pra casa, tanto faz.

Matheus ficou parado, olhando nos olhos dela por um longo


tempo. Estava considerando o que havia acabado de ouvir, e teve
a certeza de que Deus estava lhe dando uma chance de pensar
melhor na sua decisão. Ficar ali por um mês seria tempo
suficiente para ele criar coragem e contar para a moça que sua
intenção era nunca mais voltar para casa. Daria um jeito de se
matricular na mesma escola onde ela estudava e terminaria o
segundo grau. Quem sabe não teria a sorte de estudarem na
mesma faculdade?

– Você está me deixando encabulada...

– Aceito – disse, por fim. – E não precisa me pagar nada. Trouxe


dinheiro pra ajudar a Célia nas despesas da casa, então vou usar
esse dinheiro pra me manter aqui.

– Bom, isso é o de menos. Você vai ficar aqui ou vai lá pra minha
casa?

– Posso ficar aqui? Vou me sentir melhor. Você não sabe como
estou feliz por isso.
– Como você quiser. Engraçado, acho que estou mais feliz do que
você! Pai! O Matheus aceitou, eu não disse?

– Ótimo, e ele vai pra casa com a gente?

– Não, ele prefere ficar aqui mesmo.

– Então tá, seja bem-vindo à nossa casa, Matheus. Espero que se


divirta nas suas férias, se é que isso pode ser chamado de férias,
né Angélica?

– Obrigado, Seu Salvador. Por tudo.

– De nada, meu rapaz. Vamos, Angélica?

Angélica pegou sua bolsa, deu a volta no balcão e se aproximou


do rapaz. Pensou por um momento e por fim o abraçou.

– Boa noite, Matheus. Amanhã a gente está de volta.

– Boa noite, Angélica – respondeu, feliz com o abraço. Era a


segunda vez que ela fazia isso e ele sempre se sentia mais seguro
depois.

Foram embora, enquanto o rapaz subiu as escadas, após ter


apagado as luzes da parte debaixo e acionado o alarme. Entrou no
quarto e foi até a cama, onde tirou o tênis e calçou chinelos.
Depois, entrou no banheiro para escovar os dentes. Ao terminar,
ficou um longo tempo se olhando no espelho.

“No final das contas, acho que acabou sendo melhor do que eu
esperava. Por mais que a Célia gostasse de mim, ela já tinha os
pais da moça pra cuidar. E quando eu dissesse que não ia mais
voltar pra casa depois das férias, eles não iriam aceitar. Aqui, não.
Tenho certeza que a Angélica vai me entender. E se o tal Chicão
morava aqui e trabalhava com o Seu Salvador, por que eu não
posso também?”

Feliz com esse pensamento, se lembrou da mãe. Achou que era


sua obrigação ligar para ela e contar o que tinha acontecido com
a Célia e como ele se ajeitaria ali. Mas, para isso, ia precisar de
um orelhão, e ele estava trancado na lanchonete. Será que o pai
da Angélica não iria se importar de ele fazer um interurbano?
Bom, no dia seguinte avisaria a Angélica da ligação e no fim do
mês pagaria pela ligação.

Desarmou o alarme e desceu até a parte de baixo. Acendeu


algumas luzes e foi até o telefone, discando o número da mãe.
Será que ela estaria dormindo? Afinal, já passava das vinte e três
e trinta.

– Alô?
– Mãe, sou eu. Tudo bem? Acordei você?

– Matheus! Graças a Deus você ligou. Estava quase morrendo de


tanta preocupação! Está tudo bem, meu filho? Já encontrou a
Célia? Ela aceitou ter você aí por um mês?

– Mãe, estou bem, sim. Mas os planos mudaram um pouco. Tenho


uma coisa chata pra te contar.

Relatou tudo o que tinha acontecido, desde o encontro com a


Angélica até a morte inesperada da Célia. Ouviu sua mãe chorar
do outro lado linha e o coração apertou de tristeza. Esperou ela se
acalmar para continuar. Antes disso, ela perguntou:

– Matheus, você já comprou sua passagem de volta? Eles te


deixaram dormir aí mais essa noite, mas saiba que são estranhos.
Eles não têm nenhuma obrigação de cuidar de você por mim.

– Mãe, eu não vou voltar, e a senhora sabe disso, A gente já tinha


decidido isso, lembra? E tem uma coisa que eu não te contei. A
Angélica ficou chateada por não ter dado certo o lance da Célia e
me convidou pra passar as férias aqui. Tem um quarto aqui na
lanchonete que serviu pra um funcionário do pai dela morar, mas
ele voltou pra Bahia. Então ela e o pai me pediram pra ficar aqui.
Além disso, eu vou ajudar eles na lanchonete. Já comecei hoje e
foi super legal.

– Matheus, férias terminam, e se você não quiser perder o ano vai


ter que se matricular em algum colégio daí. E se não der certo? E
se eles não aceitarem a transferência que você levou daqui? E,
além disso, quem garante que irão concordar em ter você aí sabe
Deus até quando? Filho, por melhores que as pessoas sejam, e eu
acredito que você encontrou uma família assim, você só tem
dezesseis anos. É muita responsabilidade para eles, você já
pensou nisso?

– Mãe, apesar de eu ter ficado chateado com a morte da Célia, se


for ver bem, no fim das contas acabou sendo melhor. Lá eu teria
que conviver com o vô Antônio e a vó Candinha, além da Célia.
E quando a filha deles voltasse pra casa nas folgas, seria mais uma
pra me aturar. Aqui eu vou ficar sozinho e não vou encher o saco
de ninguém. E sobre o colégio, eu vou dar um jeito de ir até onde
a Angélica estuda, sem eles saberem, e ver se os documentos que
eu trouxe daí vão servir. De uma coisa eu tenho certeza, mãe. Não
quero mais morar na mesma casa com meu pai, ou sei lá o que ele
é meu.

– Ou seja, você continua desconfiando da tua mãe...


– Não, mãe, eu nunca desconfiei de você, por isso mesmo é que
eu não quero mais ver a cara dele. O que eu quis dizer é que um
pai não age com um filho como ele agiu. Se você conhecer a
Angélica e o pai dela, vai me entender.

– Tenho fé em Deus que um dia tudo isso vai acabar. Teu pai
esconde algum segredo, e para piorar eu acho que a mãe dele
também sabe, só que ela está sendo covarde e não quer me contar.
E a Mariana fica no meio da guerra, sem saber pra qual lado
torcer. Ah, antes que eu me esqueça. Aquela tua amiga ruiva
esteve aqui hoje.

– Júlia!

– Essa, e ela não acreditou em uma vírgula do que eu disse. Você


já viu como ela olha para a gente, com aqueles olhos verdes de
gata dela? Até parece que ela está olhando para alguém dentro de
nós, sei lá. A verdade é que acabei confessando que você foi
passar as férias na casa da Célia, e não na casa da tua avó paterna.
Daí, ela perguntou, sem nem mesmo piscar: e o que mais a
senhora está me escondendo?

– E?
– E, nada. Eu disse que no fim do mês você estaria de volta e
poderiam até casar, se quisessem.

– Mãe!

– Claro que foi uma brincadeira, só para ela baixar a guarda e


parar de me encarar. Deu certo. Ela riu e pediu o endereço da
Célia, dizendo que ia mandar uma carta. Só que agora não terá
ninguém lá para te entregar a carta dela.

– Não se preocupe, mãe. Lembra da Francesca, que a gente


acordou de tanto tocar a campainha? Então, a Angélica deixou o
telefone daqui com ela e pediu que se chegasse mais alguma
correspondência pra Célia, era pra ela avisar a gente. Aliás, já
tinha umas lá com ela, mas como não era de ninguém que eu
conheço, a Angélica achou melhor trazer pra cá e queimar.

– Essa moça parece ser bem esperta...

– Ela é esperta, mãe. Igual a você, e bondosa também. Bom, vou


desligar, mãe. Anota o telefone daqui. Só não deixa o Floriano
saber.

– Te amo, filho. Tanto, que você não imagina.

– Também te amo, mãe. Assim que as coisas se ajeitarem aqui,


eu vou até aí com a Angélica. Acho que ela ia gostar de te
conhecer. Só precisa ser num dia em que o Floriano estiver bem
longe.

– Deus te abençoe, Matheus. Te cuida, meu filho.

– Amém, mãe, pode deixar.

Júlia. Lembrou-se de que não tinha pensado nela uma única vez
depois que retornaram da casa da Célia. Agora, deitado na sua
cama, a imagem da menina preencheu sua mente. Se sentia mal
em ter mentido para ela, e mais ainda depois de saber que ela tinha
conseguido arrancar a verdade da sua mãe. Sorte sua que ela não
ficou sabendo que as férias eram, na verdade, uma desculpa para
a sua fuga de casa. Casar, sua mãe tinha dito. Lembrou-se de
quando, ainda na primeira série, queria que a menina prometesse
se casar com ele quando crescessem. E riu de novo com a resposta
dela: eu não, e se você ficar feio quando crescer? Lembrou-se da
Angélica. Embora fossem quase da mesma idade, o fato de ela ser
dois anos mais velha e já ter um pouco da experiência de um
adulto despertava nele um sentimento que teria por uma irmã
mais velha, se tivesse uma. Apesar que ele tinha sentido uma
coisa boa nas duas vezes em que ela o abraçou. Proteção?
Segurança? Não sabia muito bem o que era, e nem deu tempo de
saber, porque caiu num sono profundo e só acordou às seis horas.
Tinha combinado com o Seu Salvador em acordar mais cedo e já
deixar a máquina de café aquecendo a água. Às seis e meia ele
ouviu um carro parando na rua e, logo depois, pai e filha entraram
na lanchonete.
CAPÍTULO IV

J úlia era a caçula de uma família de imigrantes alemães. Seus


avós tinham chegado da Alemanha pouco antes do término da
Segunda Guerra Mundial e se estabelecido no Rio Grande do Sul.
O motivo era que ali se concentrava uma grande quantidade de
famílias alemãs e eles, como colonos, conseguiram um lote de
terra para cultivar. O pai de Júlia era o mais velho dos filhos do
casal e tinha cinco anos quando eles chegaram. Não teve grande
dificuldade para aprender o novo idioma e, inteligente que era,
sempre terminava o ano letivo como primeiro da classe. Ao
ingressar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul para
cursar medicina, conheceu outra garota, filha de imigrantes como
ele, e se casaram dois anos após se formarem. Ele escolheu a
Pediatria e ela, a Obstetrícia, e acabaram por montar um
consultório onde trabalhavam juntos, em sociedade com mais um
amigo pediatra.

Pouco antes da Júlia nascer, eles acabaram se mudando para


Curitiba e montaram outro consultório na cidade. Helena estava
grávida do primeiro filho e a mãe de Júlia fez o seu pré-natal e
parto. A diferença de idade entre seu filho e a Júlia era de dois
meses, e Helena batizou o filho com o nome do avô dela, só
trocando a grafia. Achou que o filho seria motivo de gozação se
o registrasse como Matthäus. Todo mundo achou estranho o
Floriano não dar palpite nenhum sobre o nome do garoto, e mais
estranho ainda ele não ter ido ao hospital buscar a esposa, que
teve que ir para casa com os pais da Célia.

A amizade entre Júlia e Matheus começou de uma forma


dolorida, pelo menos para ele. Cansado de ver os amiguinhos
zombarem da menina, que era chamada de cabelo de fogo,
ferrugem e o que mais a imaginação infantil permitisse, ele se
envolveu numa briga em defesa dela. Para azar dele, o menino
era mais forte e, se a professora não interviesse, acabaria com um
braço quebrado. Júlia se encheu de admiração por aquele garoto
franzino e passou a ser sua companhia na hora do lanche. A
amizade já durava nove anos, e embora negassem, eram vistos
como namorados. Ambos tinham grandes planos profissionais
para o futuro, pelo menos até os doze anos. Ela queria ser ou
médica, ou aeromoça, ou atriz. Ele queria ser caminhoneiro,
como o pai, ou bicheiro.

– Bicheiro, Matheus?! – Estranhou a menina.

– Sim, ouvi o Carlão falar pro meu pai que isso dá muito dinheiro.
– Que eu saiba isso dá é cadeia, isso sim.

Ao voltar da casa da Helena naquela tarde, Júlia estava


convencida de que tinha alguma coisa errada naquela história, e
ela iria descobrir, de um jeito ou de outro. Foi até o consultório
dos pais e, quando teve uma chance, abordou a mãe.

– Mãe, você tem falado com a Helena, mãe do Matheus?

– Sobre?

– Sobre tudo, oras. Ela te contou alguma coisa sobre ele e o pai?

– Júlia, a vida particular das minhas pacientes não é da minha


conta. Eu não sou psicóloga, lembra?

– Lembro, claro, mas vocês são amigas, e geralmente as amigas


são confidentes.

– Nem todas.

– Você está escrevendo algo muito importante? Gostaria que


olhasse pra mim, por favor.

Sua mãe colocou a caneta sobre o receituário e encarou a filha.


Sabia que ela detestava conversar com as pessoas sem conseguir
olhá-las nos olhos, pois achava que isso era uma forma de fugirem
das suas perguntas, ou de esconderem coisas importantes.
– Por que você está me fazendo essas perguntas, Júlia?

– Lembra daquele dia em que eu achei esquisito o Matheus chegar


na escola com os braços cheios de marcas roxas? E que ele mentiu
pra mim, dizendo que tinha brincado com o pai de luta livre?

– Lembro, mas que eu saiba só você achou que ele mentiu.

– Não, mãe, eu não achei. Tive certeza. Qual pai brinca de luta
livre com o filho e deixa marcas roxas nele?

– Júlia, o pai do Matheus parece meio que com o super-homem,


talvez não saiba medir a própria força.

– Não senhora. Se meu pai brincasse comigo de luta livre e me


deixasse toda roxa, eu ia contar pro Matheus feliz da vida,
inclusive ia me vangloriar dizendo que eu tinha ganhado a luta.
Pois os olhos dele se encheram de lágrimas, e eu tenho certeza de
que não eram de felicidade.

A mãe ficou encarando a filha por uns instantes, olho no olho, e


percebeu que seria impossível enganá-la.

Anne-Sophie sabia parte da história de Helena, e se não soubesse


de tudo, nem era por não serem íntimas, mas pela vida agitada de
ambas. No entanto, ela e o marido, Klaus, desconfiavam de que
tinha algo errado ali. Embora soubessem que o pai de Matheus
adorava a esposa, às vezes ele parecia que tinha um surto
psicótico e pouco faltava para agredi-la. E num desses momentos
andou descontando sua raiva no menino. Klaus, como pediatra da
família, tentava entender o porquê do garoto ser tão agitado, em
vão. Helena se fechava em concha e desconversava, tentando
demonstrar alegria e afirmar que o pai amava o filho.

– Júlia, sei que você tem um grande carinho pelo Matheus, e sei
também que você faria de tudo para ajuda-lo, se fosse o caso, mas
nós não temos o direito de entrar nos problemas das pessoas sem
que elas queiram. Não sei se você me entende, mas, mesmo eu
sendo amiga da mãe dele, ela não se abre comigo, o que significa
que alguma coisa no relacionamento deles causa uma dor que ela
não quer dividir com ninguém.

– Certo, mas o que você sabe que eu também posso saber?

A médica deu um suspiro profundo e soltou a bomba:

– Helena desconfia, sem nem mesmo saber o porquê, que o


Floriano rejeita o filho.

Júlia, que estava debruçada sobre a escrivaninha da mãe, afastou-


se, lentamente, e recostou-se na cadeira, sem desgrudar os olhos
dela.
– E por isso ele fugiu...

– O quê?!

– Vim da casa da Helena agora, mãe. Antes de viajar, o Matheus


veio com uma conversa de que ia passar as férias na casa da avó
em São Paulo. Claro que ele mentia, mas eu fingi que acreditei só
pra gente não se separar brigados. Hoje a Helena tentou me passar
a mesma conversa, só que ela fugia de mim o tempo todo, e por
fim, acabou confessando que ele foi mesmo é pra casa da Célia,
aquela amiga dela do supermercado, que se mudou de mala e cuia
com os pais da Nina.

– E por que você falou que ele fugiu?

– Porque ela caiu num choro desesperado. Nenhuma mãe chora


daquele jeito se tiver certeza de que no final das férias vai ter o
filho de volta, não acha? E além disso, quando se acalmou, tentou
disfarçar, dizendo que a gente podia se casar quando ele voltasse.
Você conhece alguém que tenha se casado com dezesseis anos?
CAPÍTULO V

om dia, Matheus! – Cumprimentaram pai e filha.

B – Bom dia, Angélica, bom dia Seu Salvador.

– E aí, Matheus. Como se sente no seu primeiro dia de férias? Se


é que isso pode ser chamado de férias, né?

– Pra mim será, Seu Salvador. Aliás, das que eu passei até hoje
essa vai ser a mais legal de todas.

– Hum, otimista esse seu amigo, Angélica. Vamos tomar café?


Prepare o que você quiser pra comer, enquanto eu faço o café e a
Angélica põe o leite pra esquentar.

Angélica passou por ele e cochichou:

– Se você quiser eu preparo dois sanduíches como aqueles de


ontem, Matheus. E você faz o suco de laranja.

– Tudo bem, Angélica. No começo eu vou ficar meio perdido,


mas assim que eu pegar o jeito vou me virar sozinho.

Pouco tempo depois chegaram a Dona Conceição e a filha


Juliana.
– Bom dia, Angélica, bom dia, Seu Salvador. Ora, ora, temos um
novo funcionário? – Brincou a Dona Conceição.

– Vocês já conhecem o Matheus, né? Ele veio passar as férias em


São Paulo na casa de uma amiga da mãe dele, mas como ela
viajou, ele decidiu ficar aqui. Vamos fazer essas férias dele serem
as mais divertidas de todas, né Juju?

– Gosta de bicicletas, Matheus? A gente faz trilhas aos domingos


na Cantareira. Quando a Angélica está de folga ela vai com a
gente.

– Gosto sim, Juliana. E também sou bom no skate. Se quiserem


aprender eu posso ensinar as duas.

E assim Matheus preencheu sua primeira semana em São Paulo.


No domingo fez trilha, de bicicleta, com os amigos da Juliana e
da Angélica na Serra da Cantareira, e ajudou as meninas a
tentarem se equilibrar no skate que ele trouxera de casa. Depois
de alguns tombos que as deixaram cheias de hematomas,
acabaram pegando o jeito.

Uma semana depois da sua chegada, numa tarde de quarta-feira,


o telefone tocou na lanchonete e a Juliana atendeu:

– Alô?
– Oi, Angélica?

– Não, é a Juliana. A Angélica já foi trabalhar. Quem quer falar


com ela?

– A Francesca. E o Matheus, ele está por aí?

– Tá sim, peraí. Matheus! Telefone. Pra você.

Matheus, que estava dispondo as mesas na calçada, entrou e foi


até onde ela estava.

– Quem é, Juju?

– Uma tal de Francesca – respondeu a menina, entregando o fone


na mão dele.

– Oi, Francesca, tudo bem?

– Oi, Matheus, tudo. É rápido, porque senão perco meu voo.


Chegou uma carta aqui pra você, de Curitiba. É de uma tal de
Júlia, conhece?

– Conheço, sim, Francesca.

– Legal, vou ficar uma semana no ar, então você pega com o Seu
Henrique, zelador. Ele mora no apartamento onze. Beijos.

– Beijos, Francesca, e obrigado.


Seu coração batia descompassadamente quando desligou. Deve
ter mudado de cor, pela reação da Juliana.

– Está tudo bem, Matheus? Alguma notícia ruim?

– Hã? Ah, não, Juju. Tá tudo bem. Chegou uma carta pra mim na
casa da Célia. Amanhã à tarde vou lá buscar, se o Seu Salvador
me der umas três horas.

Provavelmente a Júlia devia ter conseguido arrancar da mãe dele


o endereço da Célia, pensou. De qualquer modo, daria uma
resposta e passaria o endereço da lanchonete. Pegava mal ficar
saindo do trabalho só para buscar cartas.

No dia seguinte, assim que pai e filha chegaram, ele fez o pedido.

– Seu Salvador, chegou uma carta de Curitiba na casa da Célia.


Posso sair lá pelas três horas e ir buscar? Como vou responder
com o endereço daqui, essa deve ser a primeira e a última.

– Não se preocupe, Matheus. Esse é o horário de menor


movimento, como você já deve ter percebido. Só que às seis
começa a chegar o pessoal do Happy Hour, então, que tal você
sair um pouco mais cedo?

– Boa ideia, saio às duas, então.


Quando sentou com a Angélica para tomarem o café da manhã,
ela perguntou:

– É da tua mãe, Matheus?

– Não, Angélica, de uma amiga minha da escola.

– Ah, então é da Júlia.

Ele fitou os olhos nela sem entender. Quando ele havia


mencionado o nome da amiga?

– Lembra daquela noite no terminal, quando te acordei pra vir pra


cá? Você agarrou a minha mão e disse, zangado: “Para, Júlia está
me machucando.”

– Ah, é mesmo. Sonhei que estávamos discutindo e ela dava socos


no meu braço.

– Hum, então deve ser aquele tipo de amizade que termina em


namoro – Angélica brincou, piscando um olho.

– Não a nossa. Somos amigos desde a primeira série, mas apesar


de estudarmos na mesma escola estadual eu sempre soube que
pertencemos a mundos diferentes.

– Como assim, Matheus?


– Meu pai é caminhoneiro e minha mãe, gerente num
supermercado, e só chegou lá depois que terminou a faculdade.
Os pais da Júlia são médicos em Curitiba e têm uma condição
financeira bem melhor que a nossa. Com certeza eles têm planos
para a filha caçula e eu não faço parte deles.

– E como foi que o grande sábio Matheus chegou a essa


conclusão?

– Não sou sábio, Angélica, apenas conheço meu lugar.

– Pois eu discordo. Você não está sendo muito inteligente,


desculpa. Aliás, está se menosprezando. A condição dos teus pais
pode não ser tão boa quanto a dos pais dela, mas isso não significa
que são seres inferiores e que pertencem a mundos diferentes.
Vivemos todos no mesmo mundo, Matheus. O que difere uma
pessoa da outra é a força de vontade e o caráter. E nós já
superamos aquela fase onde os pais decidiam o futuro dos filhos.
E sem nem mesmo conhecer essa Júlia, pelo tempo que vocês
estão juntos e o fato dela se importar em te escrever, só mostra
que jamais esse tipo de pensamento seu passou pela cabeça dela.

Matheus ficou um longo tempo olhando aqueles olhos


inteligentes. Que sorte a dele, pensou. Além da mãe, tinha mais
duas garotas espertas que se preocupavam com ele. Mas a
Angélica estava enganada, pelo menos até saber a sua história. Os
pais da Júlia jamais iriam permitir que a filha se envolvesse com
um garoto fujão.

– Você está me deixando encabulada de novo, Matheus.

– Desculpa. Às vezes viajo pra fora de onde estou e perco a noção


do tempo. Obrigado pelas palavras de incentivo. Você vai gostar
da Júlia, se um dia a conhecer. Vocês duas se parecem. Não
fisicamente, porque ela é ruiva, mas no jeito de ser.

– Nossa, acho as ruivas e os albinos as criaturas mais incríveis


que Deus criou! Tenho uma amiga albina na escola, e não
conheço nenhuma garota tão inteligente quanto ela.

– Bom, já conversamos demais. O trabalho nos espera.

– Quer que eu vá com você até lá?

– Não precisa, Angélica. Só se você quiser, mas eu decorei o


caminho e consigo me virar.

– Então tá, se precisar é só dizer.

Matheus fez todo o trajeto como no primeiro dia. Só se atrapalhou


na volta, porque esqueceu de qual lado da plataforma pegava o
metrô até Santana. Perguntou para uma senhora que levava a neta
pelo braço e ela lhe indicou o lado certo. Estava ansioso para ler
a carta da Júlia, mas se conteve até chegar na lanchonete, com
medo de se atrapalhar e descer na estação errada.

Guardou a carta no bolso do avental e se pôs a trabalhar. Já eram


quase dezessete horas, e ele sabia que dali a pouco a lanchonete
ficaria lotada de fregueses. Às vinte e duas e trinta a maioria dos
clientes já tinham ido embora, e Matheus começou a recolher as
mesas da calçada. Quarenta minutos depois estava no chuveiro,
como sempre, lavando sua cueca.

Vestiu um pijama que ganhou da Célia e sentou-se à escrivaninha


para ler a carta da Júlia. Tomava só uma folha e tinha o cheiro do
perfume que ele tanto gostava.

Curitiba, 10 de julho de 1995.

Olá, Matheus. Tudo bem? São dez horas da noite, está chovendo
pra caramba aqui e fazendo um frio dos diabos. Disseram que
amanhã deve nevar no Interior, e sorte minha que meus pais
decidiram passar quinze dias das férias no Rio. Se fizer sol, como
eu espero que faça, vou torrar na areia até ficar parecida com
uma lagosta. Sorte mesmo tem meus irmãos, lá na Austrália.

Estive na tua casa na quinta passada, conversando com a Helena.


Como eu já sabia, ela confirmou que você não tem avó nenhuma
em São Paulo. Você já viu uma mãe desesperada, Matheus? Eu
já, quando meu pai disse pra uma mulher lá no consultório que o
filhinho dela estava com pneumonia e que teria que ser internado
ás pressas. E vi de novo, conversando com a tua mãe. Seja qual
for o motivo que você arranjou pra fugir de casa – e não me
venha dizer que eu estou maluca – tua mãe não merece isso,
sabia? Nenhuma mãe merece, principalmente a Helena.

Se você for aquele garoto inteligente por quem eu me apaixonei,


você vai pegar o primeiro ônibus pra Curitiba e a gente vai tentar
resolver as coisas juntos. Se não, você só será mais um daqueles
covardes, que fogem dos problemas ao invés de enfrenta-los. Sei
que estou sendo dura, e não vou pedir desculpas por isso. Não
dessa vez.

Até breve, Matheus.

Te amo.

P.S. Tua mãe autorizou a gente se casar quando você voltar. Ela
não é um amor?
CAPÍTULO VI

C erta vez, numa partida de vôlei na escola, ele subiu junto


com outro aluno para bloquear a jogada da equipe
adversária na rede. A bola veio baixa demais e explodiu na sua
testa, e ele já desceu caindo. Ficou uns três minutos zonzo, sem
conseguir parar de pé. A sensação que ele teve após ler a carta foi
a mesma.

Atordoado, olhava para o papel em suas mãos, tentando entender


qual o significado daquelas palavras. Pousou a folha sobre a
escrivaninha e se levantou, indo até a janela do quarto. Alunos de
uma escola próxima desciam a rua em pequenos grupos, falando
alto e brincando. Passou um carro com o volume do rádio no
máximo, e um dos rapazes que estava no banco de trás colocou a
cabeça para fora, para mexer com as meninas.

Não sabe quanto tempo ficou parado ali. Afastou-se da janela e


foi até a escrivaninha novamente. Ficou olhando para a carta, com
medo de pegá-la.

De repente, algumas frases começaram a se desenhar na sua


mente. “Você já viu uma mãe desesperada, Matheus?” Sim, ele
já havia visto uma, a sua própria, no dia em que começou a
colocar suas coisas dentro da mochila. Helena tinha perguntado o
que era aquilo, e a resposta que ele deu atingiu-a como um raio.
Chorou convulsivamente por quase quinze minutos, e quando
parou, caiu num estado de letargia que o assustou. Por muito
pouco ele não desfez a mala e foi se jogar nos braços da mãe.
Como um alarme, a dor no antebraço esquerdo surgiu de forma
lancinante, fazendo-o se lembrar do que estava fugindo.

“E você, Júlia. Já viu um filho desesperado? Muito


provavelmente não, já que você e seus irmãos têm todo o amor
que uma mãe e um pai costumam dar aos seus filhos. Não a culpo
por não me entender, e até compreendo que me chame de
covarde. Você não sabe metade da minha história. Você me ama,
então? Taí, esse é um bom motivo pra me perdoar.”

Afastou-se e foi na direção do banheiro. Olhou-se no pequeno


espelho embutido na parede e teve vontade de chorar. Conteve-
se, porém, e disse em voz alta:

– Chega de chorar, Matheus. Agora é hora de ser homem e


assumir as consequências do que você fez. E para isso você
precisa ser forte. Lembre-se que você tem a Angélica e o pai dela.
Duvido que eles não te darão razão quando souberem de tudo.
Reconfortado com a súbita coragem, escovou os dentes e se jogou
debaixo das cobertas. Sonhou com a mãe. Ela o havia colocado
dentro do carrinho do supermercado e corria pelos corredores, e
a risada dele quase o acordou.

– Bom dia, Matheus!

– Bom dia, Angélica. Ué, cadê teu pai?

– Foi bem cedinho ao Mercado Municipal comprar o necessário


para o fim de semana e deve chegar perto da hora do almoço.
Bom dia, Juliana, bom dia, Dona Conceição. Chegaram cedo
hoje.

– A Juliana tem dentista de tarde, Angélica. Vou adiantar as


coisas pra sair um pouco mais cedo.

– Ah, tudo bem. Está com dor de dente, Juliana?

– Não, só vou ver se posso usar aparelho.

– Hum, que chique. Parece que isso vai virar moda, esse ano.

A menina riu e foi lidar com o que tinha ficado da louça do dia
anterior. Sabe-se lá por que, mãe e filha nunca tomavam o café
da manhã na lanchonete. Preferiam toma-lo em casa, talvez na
companhia da família.
Angélica preparou o seu e o do Matheus, como fazia todas as
manhãs, e foram sentar-se na mesma mesa de sempre.

– Dormiu bem, Matheus? Está com um ar cansado.

– Mais ou menos. Meu sono é repleto de sonhos, e eu acordo no


meio da noite agitado.

– Hum, andou trocando socos com a Júlia, de novo? – Brincou


Angélica, dando a piscadinha característica dela.

– Por incrível que pareça, não.

– Ué, por que incrível que pareça?

– A carta dela me deixou chateado. Ela misturou coisas boas com


ruins, e o resultado foi só uma tremenda chateação. Achei que
teria pesadelos.

– Vocês se conhecem há quanto tempo, mesmo?

– Desde que entrei na escola, e já são nove anos. Sabe como


ficamos amigos?

– Não, me conta.

– Os meninos chamavam ela de cabelo de fogo, casca de banana,


ferrugem e outros apelidos, pelo fato de ser ruiva. Um dia aquilo
me encheu e eu parti pra cima de um gordo chato. O gordinho era
mais forte que eu e quase quebrou meu braço. Sorte minha que a
professora entrou na sala e nos separou. Na hora da merenda a
Júlia se aproximou de mim e disse: “Oi, Matheus. Posso sentar
com você? Sabia que você é meu herói?” Eu quase morri de
vergonha quando começaram a gritar: namorado, namorado,
namorado!

Angélica quase engasgou com o chocolate quente. Com lágrimas


nos olhos pela força que fez para não rir com a boca cheia, disse:

– Nossa, Matheus. Taí uma história super divertida, daquelas que


a gente guarda pra um dia contar pros netos!

– Pois é.

– Não se esqueça de responder a carta dela, Matheus. Tem uma


agência dos correios dentro do terminal. Eu posso levar pra você.

Esse era o problema. Ele tinha decidido não responder ainda, pelo
menos até contar para a Angélica da sua decisão de não voltar. E,
sem saber se eles o aceitariam ou não, queria manter o endereço
atual em segredo, inclusive da sua mãe. Só que aquela não era a
hora ainda de contar, então desconversou.

– Legal, vamos correr que já tem clientes no balcão.


Quinze dias após sua chegada, entendeu que precisava cuidar da
sua matrícula, se não quisesse perder o ano. Tinha trazido os
documentos que a escola de Curitiba informou que ele iria
precisar. Porém, alertaram-no:

– Cada Estado tem suas regras sobre transferências,


Matheus. Pode ser que queiram algum documento a mais, ou pode
ser que não. Só lá é que você vai descobrir. Quer dizer então que
a tua família decidiu morar em São Paulo? – Perguntou a moça
da secretaria.

– Sim – mentiu –, e meu pai só vai chegar de viagem perto


da nossa mudança.

Se a garota acreditou na história, ele não ficou sabendo,


mas acabou indo para casa com tudo o que acharam necessário.
Só precisava convencer a mãe a assinar.

A lembrança da tormenta que houve no dia trouxe de volta


sua dor no estômago, e quando começou a separar os documentos,
percebeu que estava tremendo.

A Juliana estudava na mesma escola da Angélica, só que


à noite, e isso foi a sua sorte. Tinha certeza que a Angélica iria
fazer um monte de perguntas quando ele tentasse se informar
sobre o endereço. No caso da Juliana, pareceu uma curiosidade
banal.

Só precisava encontrar uma ocasião para sair e ir até lá


sem despertar suspeitas. E a ocasião chegou, de uma forma
inesperada. A Juliana tinha ficado de exame em uma matéria e
precisava comparecer na escola durante o dia para fazer a prova,
junto com outros alunos. Como a Dona Conceição não podia
deixar a cozinha para acompanhar a filha, pediram ao Matheus
que fosse com a menina. Era tudo o que ele precisava. Enquanto
a moça foi fazer a prova numa sala única com um monte de gente,
ele se dirigiu à secretaria.

– Oi, boa tarde. Me chamo Matheus e minha família está


de mudança pra São Paulo. A gente vai morar nesse bairro, então
eu precisava fazer minha matrícula aqui. No primeiro colegial à
noite.

– Então será uma transferência? Você está vindo de qual


cidade?

– De Curitiba, Paraná.

– Posso ver os documentos que você trouxe de lá?

– Claro, tá tudo aqui.


A moça da secretaria pegou o envelope que ele estendeu e foi até
uma mesa. Enquanto ela tirava tudo dali de dentro e colocava em
ordem, ele fazia figa. E começou a transpirar por causa do
nervosismo.

– Moça, posso beber água?

– Claro, no fim do corredor à direita.

Após matar a sede, aproveitou para fazer um reconhecimento nas


instalações. O prédio onde ficava a escola em Curitiba tinha uma
arquitetura totalmente diferente daquela. Essa parecia um
caixotão, ele pensou.

“Bom, pelo menos tem uma quadra coberta. E que arquibancada


mixuruca, credo. Onde será que é a sala da Angélica? Deve ser lá
em cima. Será que dá tempo de eu subir? Melhor não, vai que a
Juliana termina a prova e sai me procurando por aí e vai dar na
secretaria.”

Voltou para lá e, quando a moça o avistou, disse:

– Bem, Matheus. Está tudo aqui, só que como você quer estudar
à noite, vai precisar de uma autorização assinada pelo teu pai.

Ele gelou. O suor começou a voltar, e antes que chamasse


atenção, perguntou:
– Moça, meu pai é caminhoneiro e estará fora até o começo do
mês que vem – mentiu. – Não pode ser a minha mãe? Ou alguém
que seja responsável? Meu tio, por exemplo, eu tenho um tio que
mora aqui.

A garota se virou e perguntou para uma senhora que estava no


fundo da sala:

– E aí, Dona Carmem, pode ser o tio dele? Ou a mãe?

– Pode, claro. Desde que assuma a responsabilidade por ele, tudo


bem.

– Então tá – disse a moça. – Você precisa trazer assinado antes


do início das aulas.

Quando ele já ia dar graças a Deus pela grande sorte, uma voz
soou atrás dele:

– Ué, Matheus, você vai estudar aqui?

Era a Juliana.
CAPÍTULO VII

-J Uliana?! Nossa, como você foi rápida. Já fez o exame?

– Já sim, e além de não tá muito difícil, eu só preciso de


um ponto e meio.

– Puxa, ainda bem. Em qual série você está?

– Na oitava. Ano que vem vou pro primeiro colegial. E você, vai
estudar em qual série?

– Eu? Ah, vou continuar o primeiro colegial.

– Nossa, que legal. A Angélica vai ficar feliz de saber que você
também vai estudar aqui.

No final do corredor, perto da porta de saída, tinha outro


bebedouro, e ele achou que seria uma boa ideia tomar um gole da
água antes de pensar no que responder. Estava numa tremenda
enrascada. Para todos os efeitos, ele estava em São Paulo a
passeio, curtindo as férias, e depois voltaria para Curitiba. Nesse
caso, como justificar para a Angélica o fato de estar se
matriculando na escola onde ela estudava? Sabia que teria que
contar para ela a sua intenção, mas não hoje. Enquanto enchia a
barriga de água, tentou pensar numa saída que não despertasse a
desconfiança na garota.

Quando se endireitou e foi ao encontro dela, que o esperava no


primeiro degrau, teve um lampejo.

– Promete que não vai contar nada pra Angélica ainda, Juliana.
Não sei se a mudança dos meus pais para cá vai dar certo, e eu
queria fazer uma surpresa. Se a coisa der errado, a gente só vem
no final do ano, e nesse caso eu vou ter que cancelar a matrícula,
entende?

– Claro, Matheus. Tudo bem, eu sou boa em guardar segredos.


Mas se a Célia não tivesse morrido, você não ia estudar perto da
casa dela? Pra onde vocês vão se mudar?

“Essa não”, pensou.

– A gente não tinha se decidido sobre o local. Então daria na


mesma lá ou aqui.

“Será que colou?”

– Vou torcer para que seja aqui. Adorei aprender a andar de skate
com você, e a Angélica também. Seria muito legal a gente
continuar sendo amigos.
Sentiu um pouco de remorso por estar mentindo tanto, mas de
fato sua ideia original seria convencer a mãe a vir embora
também, assim que ficasse claro que ele não iria mais voltar para
Curitiba. Na primeira visita que ele esperava que a mãe fizesse,
iria convencê-la a ficar. O único problema é que ele sabia que ela
adorava o Floriano e jamais se separaria dele.

Quando chegaram de volta na lanchonete, Angélica já tinha saído


para o trabalho, e ele deu graças a Deus.

– Não esquece, Juju. É segredo nosso – cochichou no ouvido da


menina, que sorriu e balançou a cabeça em sinal de entendimento.

Na penúltima semana do mês, ele resolveu escrever duas cartas,


uma para a mãe e outra para a Júlia. A da Júlia seria uma espécie
de despedida. Já a da mãe, um convite.

São Paulo, 23 de julho de 1995.

Querida Júlia. Espero que ao receber essa carta você pense em


tudo o que passamos juntos nesses nove anos. Eu me lembro de
cada momento, desde a surra que levei daquele gordo pra te
defender, até as injeções que você me aplicou no consultório do
teu pai. Como eu não morri, então você pode tentar a carreira de
médica, que você leva jeito.
Fiquei triste e ao mesmo tempo feliz com a tua carta. Não mereço
que uma menina linda, inteligente e bondosa como você se
apaixone por mim. Você só descobriu isso agora? Pois saiba que
eu me apaixonei por você no dia em que perguntou se podia
tomar seu lanche comigo, depois da surra. Lógico, era uma
paixão de criança, afinal a gente tinha apenas sete anos.

E fiquei triste porque você acaba de ganhar um amigo covarde.


Minha avó Dete me ensinou a nunca reclamar dos nossos
problemas com os outros. Meu avô foi embora de casa e deixou
ela com três crianças pequenas, e ao invés dela ficar se
lastimando, foi à luta e venceu. Você não sabe nem a metade das
coisas que eu passei desde que nasci, e não vou te contar agora.
Sei que você sempre gostou do meu pai e não ia acreditar mesmo.
Então você vai saber um dia, mas não por mim.

Não sei o que vai acontecer comigo daqui pra frente. Só Deus
sabe. O que eu sei e tenho certeza é que não vou mais voltar pra
casa. Tomara que a gente volte a se encontrar um dia, e se você
conseguir me perdoar, poderemos tentar ser pelo menos amigos.

Também te amo, Júlia.

Matheus.
P.S. Você ia ficar linda de noiva.

São Paulo, 23 de julho de 1995.

Querida mamãe. Acabei de escrever uma carta pra Júlia.


Infelizmente acho que tudo o que havia entre nós acabou. E isso
é mais um motivo pra eu odiar o Floriano. Por ele ter se
comportado todos esses anos como um monstro, eu perdi as duas
pessoas que eu mais amo no mundo.

Na semana passada eu fui fazer a minha matrícula na escola aqui


perto. Deu tudo certo, ou melhor, quase. Me deram uma
autorização pra um responsável assinar, e eu vou pedir pro pai
da Angélica fazer isso. Já que eu vou ficar morando aqui com
eles, nada mais justo, não acha? Quer dizer, se eles aceitarem, é
lógico.

Gostaria muito que você viesse me visitar, mamãe. Ainda não


conheci a madrasta da Angélica, mas pelo que ela fala, deve ser
uma pessoa boa. Você pode ficar hospedada lá na casa deles, e
vai ver o quanto o pai da Angélica gosta dela.

Quero que você saiba, se é que ainda não sabe, que eu confio
totalmente em você. Nunca passou pela minha cabeça que você
tivesse traído o Floriano. O que acontece é que ele não gosta de
mim e ponto.

Dê um beijo na vó Dete, e fala pro Oscar e pro Leonardo virem


pra São Paulo. Tem um lugar muito legal aqui perto pra gente
andar de skate e de bicicleta.

Te amo, mamãe.

Matheus.

P, S. A Júlia já sabe que eu fugi, então você não precisa mais


tentar enganar ela. Sei que é impossível, mas quem sabe você
consegue convencê-la a não me odiar.

No dia seguinte Angélica levou as duas cartas para pôr no correio.


O próximo final de semana seria o penúltimo das férias, então
eles foram ao Horto Florestal no sábado e, no domingo, na Serra
da Cantareira. A Angélica teve a feliz ideia de fazerem um
piquenique, e a madrasta dela também foi. Matheus acertou ao
contar para a mãe na carta sobre a suspeita da bondade da mulher.
Dona Valentina era um amor de pessoa. Também tinha ficado
viúva muito cedo, mas, diferente do Seu Salvador, não teve filhos.
Ela ficou tão feliz em saber que o Matheus estava passando as
férias na companhia da Angélica e do marido, que tentou de todas
as formas convencer o rapaz a ir passar a próxima semana na casa
deles.

Ele não aceitou, por um motivo muito sério. A próxima semana


seria decisiva na sua vida. Era quando ele teria que contar para a
Angélica e o pai dela sua intenção de não voltar para Curitiba.
“Se com os dois já vai ser difícil, imagina tendo a participação da
madrasta da Angélica”, pensou ele.

A folga da Angélica cairia na próxima terça-feira, então ele


decidiu que seria nesse dia que teria a sua conversa eles. Ficou
tão nervoso com a expectativa que começou a sofrer uma diarreia
das piores. Na terça-feira de manhã, a Angélica teve que leva-lo
ao posto de saúde do bairro. Suspeitava que fosse alguma virose
que o rapaz tivesse pegado, mas o médico descartou essa
possibilidade, receitando um litro de soro, que ele tomou na hora,
e comprimidos para conter a diarreia

– Será mesmo, Matheus, que você não comeu nada que te fez
mal?

– Não, Angélica. Se fosse, todo mundo lá na lanchonete também


estaria passando mal.
– Bom, isso é verdade. Se não é virose...ah, já sei, Matheus! Você
só está ansioso porque vai pra casa! E mais ainda porque vai rever
a namorada!

– Quem dera...

– Hã?

– É, Angélica. Pode ser isso mesmo, só a namorada que não. A


gente não namora. Somos só bons amigos.

– Bom, das melhores amizades é que nascem os grandes amores,


certo? Pelo menos é o que eu vejo nos filmes. Opa, vou chamar a
enfermeira. Teu soro acabou.

De volta à lanchonete, ele tomou uma canja de galinha que a Dona


Conceição tinha preparado. Com o aumento do movimento no
fim da tarde, acabou se esquecendo do compromisso da noite, e
foi só quando começou a recolher as mesas da calçada que o
pavor retornou.

– Seu Salvador, será que o senhor e a Angélica poderiam subir


comigo até o quarto onde eu durmo? Gostaria de tratar um
assunto com vocês.

– Desde que não seja para pedir a mão da minha filha em


casamento, tudo bem.
– Pai! Não tem graça.

– O assunto é sério, mas nem tanto assim.

– Ok, meu rapaz. Vamos lá.

Pai e filha se acomodaram no velho sofá, enquanto ele pegou a


cadeira da escrivaninha e colocou-se defronte deles.

– Bom, gente. Acho que a minha diarreia é consequência do


nervosismo que estou sentindo, então, se eu precisar correr até o
banheiro, vocês não reparem.

– Nossa, você está me assustando, rapaz. Não vai ter polícia no


meio não, né?

– Pai, o Matheus não sabe que você tá brincando e isso só vai


deixar ele mais nervoso ainda. Relaxa, Matheus. Não começa
ainda – Angélica deu um pulo do sofá. – Vou buscar água pra nós.

Voltou com três copos de água mineral, deu um para cada um e


voltou a se sentar.

– Pronto, Matheus. Estou super empolgada com a história que


você vai nos contar.
Matheus abriu a tampa de alumínio do copo e percebeu que estava
tremendo. Fez um esforço danado para não derramar a água no
chão. Bebeu metade do copo e pigarreou.

– Bom, pessoal. O que eu vou contar não é uma coisa muito


bonita, e se no fim da história as coisas não saírem como eu
gostaria, eu vou entender. Minha mãe conheceu o meu pai,
trabalhando no supermercado do nosso bairro. Ele tinha acabado
de chegar de Goiás e estava morando num alojamento da
transportadora onde era motorista. Saíram algumas vezes e depois
resolveram se casar. Minha mãe tinha vinte e um anos e queria
fazer faculdade, então eles ficaram quase cinco anos sem pensar
em ter filhos. Um pouco antes de se formar, ela engravidou de
mim. E pelo que ela me contou, foi nessa época que o meu pai
mudou de comportamento.

Ele parou de falar e tomou um gole de água.

– Ela começou a achar que tinha alguma coisa errada assim que
recebeu a notícia da gravidez. Todo homem fica feliz em saber
que vai ser pai, mas ele foi viajar pra Santa Catarina e ficou quase
quinze dias fora. Quando voltava das viagens, ele passava a maior
parte do tempo no bar, bebendo com os amigos. Minha mãe conta
que ele não se embriagava, e nem maltratava ela. Só ficava lá, no
canto dele, pensando a noite toda. Ninguém entendia nada do que
estava acontecendo, e quando minha mãe insistia para ele se abrir,
ele dava um abraço apertado nela, ficava um tempão olhando
dentro dos olhos dela e saia de casa. Quando eu nasci ele estava
viajando, pra variar. A mãe da Júlia fez o parto e estranhou meu
pai não estar lá, mas como sabia que ele era caminhoneiro, deixou
passar.

– E assim o tempo foi passando, e quando eu completei um ano,


os pais dele apareceram lá em casa. O pai e a irmã dele fizeram a
maior festa comigo, mas a minha avó bombardeou a minha mãe
com um monte de perguntas sobre o trabalho, sobre a faculdade,
sobre os amigos dela, e sempre longe do marido e da filha. Minha
mãe achou aquilo tudo muito estranho, e quando eles foram
embora, caiu a ficha. Ela disse que chorou horrores e foi visitar a
mãe, e contou pra minha avó o que tinha descoberto. Meu pai e a
mãe dele acham que eu sou filho de outro cara, pode?

Tomou outro gole de água e fez um esforço enorme para não


chorar. Angélica aproveitou para passar as mãos nos olhos e
limpar as lágrimas que escorriam pelo rosto, e o Seu Salvador
esfregava as mãos sobre os joelhos.
– E por que ele acha isso, Matheus? Você não se parece com ele?
– Perguntou o Seu Salvador.

– Não faço a menor ideia, Seu Salvador. Que eu saiba, um homem


que se sente traído simplesmente abandona a mulher. Pois ele
adora minha mãe, dá pra entender? Pra piorar, eu puxei mais pro
lado da minha mãe. Dizem que só a minha forma de sorrir é
parecida com a dele. O problema mesmo sou eu, e essa
desconfiança é só um pretexto.

– Não pode ser, Matheus – disse a Angélica, secando mais uma


vez os olhos. – Essa história de só ele e a mãe desconfiarem tá
muito estranha. Deve ter acontecido alguma coisa que só os dois
sabem, e você é só a vítima do crime.

– Filha, acho que aqueles filmes que você assiste tá perturbando


tuas ideias. Que raio de crime é esse que você está falando?

– É só força de expressão, pai. Continua, Matheus.

– Bom, nada disso seria problema pra mim se as coisas não


tivessem tomado o rumo que tomou. Meu pai não gosta de mim?
Paciência, minha mãe me ama de verdade e eu não vou viver com
eles pra sempre. Acontece que por três vezes no mês passado ele
chegou meio bêbado em casa. Na primeira vez, eu deixei cair uma
caneca que ele tinha ganhado dum jogador do time do Goiás no
chão e quebrou. Ele torceu meu braço com tanta força que, se a
minha mãe não gritasse, ele teria quebrado. E isso se repetiu por
mais duas vezes. Na escola eu tinha que mentir que tinha brincado
de luta livre com ele, vejam só. Só que no último domingo do
mês, a cena se repetiu. Ele torceu de novo meu braço, só que dessa
vez minha mãe não estava em casa. O que doeu mais não foi a
torção, mas o que ele falou: “Vai lá reclamar com o teu pai, seu
moleque”. Foi nesse dia que eu tomei a decisão de fugir de casa
e nunca mais voltar. Falei isso pra minha mãe e ela implorou pra
que eu não fizesse nenhuma loucura. Só que se eu ficasse lá, mais
cedo ou mais tarde iria acontecer alguma coisa pior, então eu
decidi vir morar com a Célia, que era pra mim uma segunda mãe.
Infelizmente ela morreu.

Terminou de tomar a água e ficou rodando o copo vazio nas mãos.


Tinha medo de encarar os dois, e mais medo ainda do que eles
iriam falar. Depois de um longo silêncio, o Seu Salvador
pigarreou e começou a falar.

– Sinto muito por tudo isso que você está passando, Matheus.
Aquele dia que a Angélica te encontrou no terminal e decidiu te
trazer pra cá pode ser considerado um milagre, sabia? E quando
ela me contou que a amiga da tua mãe, a Célia, tinha morrido e
você não tinha mais onde ficar, confesso que eu tive um
pensamento egoísta.

– Papai...

– Calma, eu explico. O Chicão tinha ido embora e eu não


consegui encontrar ninguém em quem confiasse pra trabalhar e
morar aqui, e quando ela me contou aquilo eu pensei: quem sabe
esse rapaz não gostaria de trabalhar aqui durante as férias? Até lá
eu acho alguém. Por que eu disse que foi um milagre? Porque a
Angélica veio me perguntar exatamente isso, se eu concordava
em você ficar aqui. Só que agora a situação mudou, Matheus. E,
antes de eu te dar minha opinião, quero que você me responda
uma coisa. Se você não puder ficar aqui, pra onde você vai?

– Pra qualquer lugar, menos pra minha casa. Peço desculpas por
envolver o senhor e a Angélica nessa história. Nunca imaginei
que a coitada da Célia fosse morrer tão nova.

– Na verdade, Matheus, as consequências da tua decisão


afetariam a Célia da mesma maneira que nos afeta. Eu explico.
Você é menor de idade, ou seja, qualquer coisa que você decida
fazer, vai precisar da autorização dos teus pais. Tanto que você
deve ter viajado com uma autorização do Juizado de Menores
assinada pela tua mãe, não é?

– É verdade.

– Então, isso significa que se quiser morar conosco, até completar


dezoito anos você precisa ter uma autorização dos teus pais por
escrito. E quem garante que a tua mãe vai concordar? Pode ter
certeza, como dois e dois são quatro, que ela só concordou em
você viajar por causa das férias. Se ela tiver certeza de que você
não pretende mesmo voltar, ela pode muito bem vir te buscar
acompanhada da polícia. Pelo menos é o que eu faria, caso a
Angélica desse na telha de fugir, mesmo já sendo de maior.

– Até parece que ela faria isso. Vocês se amam como pai e filha,
já eu...

– Você e a tua mãe não se amam como mãe e filho?

– Claro.

– E no entanto você fugiu de casa devido às circunstâncias da vida


que você tem com o teu pai. Poderia acontecer com a Angélica a
mesma coisa, se eu tivesse me casado com uma megera depois
que a mãe dela morreu. Mas isso são só suposições, Matheus, o
fato é que nós temos só essa semana para tomar uma decisão.
Gosto muito de você, pode crer, e a Angélica também, mas não
podemos consertar um mal causando outro maior ainda, entende?

– Entendo, claro, foi o que eu disse no começo. Sabem qual é o


meu sonho? Minha mãe se mudar pra cá, pra longe do Floriano.

– Duvido, Matheus – disse a Angélica. – Você mesmo confessou


que eles se amam. O que precisamos descobrir é o que só teu pai
e a mãe dele sabem. Sou capaz de jurar que tem um caroço
gigante no meio desse angu. Nossa, tive uma ideia! Por que você
não vai visitar teus avós paternos e tenta descobrir? Eles moram
em Curitiba mesmo?

– Não, Angélica. Eles moram em Goiás.

– Nossa, longinho, hein? Mas ainda assim é uma boa ideia. Se


você perder uma semana de aula, sempre vai poder repor depois.
Pena eu não poder ir junto. Gosto tanto de uma história de
suspense...

– Sabe, Matheus, no fim das contas o gosto da Angélica por


filmes de suspense podem servir pra alguma coisa. Avós
geralmente morrem de amores pelos netos, e você pode tirar
vantagem disso. No bom sentido, lógico. Bom, tá ficando tarde e
temos que descansar. Pense um pouco mais nas possibilidades.
Temos ainda cinco dias pra encontrar uma saída.

Dizendo isso, Seu Salvador se levantou e a filha o acompanhou.


Ele se aproximou do rapaz, colocou as mãos nos seus ombros e
disse:

– Boa noite, Matheus. Obrigado por confiar em nós. Deus há de


nos dar a ponta desse novelo. Até amanhã.

– Obrigado, Seu Salvador. Até amanhã.

Angélica se aproximou, parou perto dele, meio encabulada, e por


fim se decidiu.

– Boa noite, Matheus – disse, abraçando-o. – Dorme com Deus.


Tenho fé que tudo vai ficar bem.

Matheus a beijou no rosto e respondeu:

– Amém. Obrigado por tudo, Angélica. Teu nome combina com


você. Você é mesmo um anjo que Deus mandou pra me ajudar.

Quando a menina se afastou, estava chorando de novo.


CAPÍTULO VIII

A sexta-feira chegou, e com ela a preocupação sobre como


seria passar o último final de semana das férias em São
Paulo. Se quisesse começar as aulas na segunda-feira, na mesma
escola da Angélica e da Juliana, teria que levar a tal autorização
assinada pelo Seu Salvador naquele dia. E esse era o maior
problema, já que não tinham encontrado nenhuma saída que não
fosse voltar para casa. Angélica sentiu a preocupação do rapaz
durante o café da manhã. Sempre tão falante, dessa vez ele ficou
o tempo todo calado, só respondendo o que ela perguntava.
Cabisbaixo, fazia montinhos com as migalhas do pão, com a
cabeça apoiada numa das mãos. Quando a Juliana chegou, ele
teve um sobressalto, ao se lembrar da tal surpresa que disse que
faria para a Angélica.

– Bom dia, Matheus – sussurrou a menina quando ele levou a


louça para perto da pia. – Já contou pra ela?

– Shhhhh, ainda não, Juliana. Não deixa ela escutar. Você tem o
telefone da escola?

– Minha mãe tem, quer que eu pegue com ela?


– Não, pode deixar. Mais tarde eu cuido disso.

O dia transcorreu sem nada de novo. Por volta das quinze horas,
o pai da Angélica levou a filha para casa, como todos os dias. Ela
tomava banho e trocava de roupa antes de o pai deixa-la no
Terminal Rodoviário.

Ao sair, ela chamou o Matheus e a Juliana e perguntou o que eles


achavam de fazer outro piquenique no domingo.

– Legal, Angélica, eu topo – disse a Juliana.

– E você, Matheus, já decidiu se vai viajar no domingo à tarde ou


na segunda-feira? Se for no domingo, a gente faz o piquenique de
manhã.

– Não sei ainda, Angélica. Tenho que resolver umas coisas hoje,
e dependendo de como for, eu decido e te falo amanhã cedo.

– Tudo bem, então. Tchau, Matheus, tchau Juju – deu um beijo


no rosto da menina e entrou no carro do pai, que a esperava
estacionado em frente da lanchonete.

Matheus foi até a cozinha, assim que eles saíram, e perguntou


para a Dona Conceição se ela tinha o telefone da escola da
Juliana.

– Tenho, sim, Matheus. Por que você precisa dele?


“Ai, ai, ai”, pensou, sem ter imaginado antes que história
inventar.

– No dia em que eu fui lá com a Juliana, eu vi um anúncio que


me interessou. Sobre bolsas de estudo no Exterior – disse ele.

Pelo menos isso era verdade. Enquanto zanzava pelo corredor, leu
um anúncio sobre bolsas de estudo, mas não era daquela escola,
e sim de uma Escola Técnica Federal.

Deu certo. A Dona Conceição abriu uma pequena bolsa e tirou de


dentro uma caderneta.

– Anota aí – disse ela, recitando os algarismos.

Matheus foi até o telefone que ficava perto do caixa e discou o


número que tinha anotado.

– Alô? – Falou uma voz feminina do outro lado da linha.

– Oi, aqui é o Matheus. Eu estive aí na semana passada pra fazer


uma transferência e me pediram pra levar uma autorização
assinada por um responsável. Será que eu poderia levar no
primeiro dia de aula? Meu pai viajou e só volta no domingo.

– Um momento, por favor – a mulher colocou o fone sobre a mesa


e ele ouviu uma conversa ao fundo.
Passado um tempo ele ouviu passos, seguidos de alguém pegando
o fone de volta. A mulher ainda falou mais alguma coisa com
outra pessoa, e por fim voltou a falar com ele.

– Olha, Matheus, o certo seria você trazer esse documento ainda


hoje, mas se não for possível, e como você vai estudar à noite,
precisa vir na segunda-feira bem cedo, que é pra dar tempo da
diretora assinar toda a papelada, viu?

– Ah, legal, eu dou um jeito de sair do serviço e vou até aí, pode
ficar tranquila. Muito obrigado pela força.

– Não tem de quê, bom fim de semana.

– Obrigado, pra você também.

Bom, essa parte estava resolvida. O pior ainda estava por vir, que
seria convencer o Seu Salvador a deixa-lo ficar mais uns dias até
ele conseguir convencer também a mãe.

Por volta das dezesseis horas, o Seu Salvador retornou para a


lanchonete. Contou que a Angélica tinha combinado outro
piquenique no domingo e levaria algumas amigas do trabalho. Só
precisava saber dele se compraria a passagem de volta para
Curitiba no domingo à tarde ou de manhã.
Isso e mais a preocupação com a tal autorização acabaram por
abatê-lo de vez. Fazia as coisas de forma mecânica, sem o
entusiasmo de sempre, e o Seu Salvador percebeu.

– Não fique tão preocupado, Matheus. No fim, tudo vai se


encaixar, você vai ver.

Deu um sorriso triste e continuou seu trabalho, colocando as


mesas do lado de fora da lanchonete. Perto das dezoito horas, ele
entrou para buscar as bebidas encomendadas por alguns rapazes.
Enquanto estava abaixado, ouviu alguém fazer um pedido.

– Por favor, uma coca-cola com gelo e limão.

Sem se voltar, pegou a coca-cola, colocou-a sobre o balcão e


abriu. Depois voltou-se para apanhar o copo, cortou duas rodelas
de limão, colocou-as dentro do copo e juntou duas pedras de gelo.

Colocou o copo sobre o balcão e perguntou:

– Mais alguma coisa? – Foi só então que levantou os olhos para


olhar o freguês.

Seu coração parou de bater, ele teve uma vertigem e se agarrou


na pia de aço inoxidável.

De pé, com as duas mãos fortes apoiadas sobre o balcão, estava o


Floriano. Com a visão turva pela vertigem, Matheus olhou aquele
rosto familiar sem compreender muito bem o que estava vendo.
Depois de um curto espaço de tempo, distinguiu as feições do pai.
Reconheceu os cabelos um pouco longos, a barba por fazer e o
sorriso meio torto. As únicas coisas estranhas para ele era um
corte feio na testa, ainda em processo de cicatrização, e as
lágrimas, que escorriam pela face do pai indo cair sobre o balcão.

– Floriano? – Disse ele, e desmaiou.


TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO I

A té receber a carta do seu filho, Helena não acreditava na


seriedade do propósito dele. No seu entendimento, aquilo
não passava de uma reação normal de um adolescente genioso.
Mesmo após a conversa que teve com ele por telefone, logo no
segundo dia da sua partida, sequer passou pela sua cabeça que
aquilo era sério. A carta veio derrubar suas convicções e pela
primeira vez uma sensação de pânico a tomou. Apertando a carta
contra o peito num gesto crispado, seus olhos vagavam pela sala,
sem se fixar em ponto algum.

– Meu Deus, isso não pode ser. Como vou suportar viver sem meu
filho? Uma vez eu já perdi meu pai, que abandonou a família por
causa de outra mulher, e agora isso? Como eu pude ser tão cega
assim, em não perceber o quanto a indiferença do Floriano estava
afetando o estado psicológico do Matheus?

Eram perguntas para as quais ela não encontrava resposta, pelo


simples fato de nunca imaginar que passaria por aquilo. Precisava
compartilhar sua dor com alguém. Via nisso uma espécie de tábua
de salvação. Lembrou-se de Anne-Sophie e decidiu que precisava
dos conselhos dela. Ligou para o supermercado onde trabalhava
como gerente e comunicou que não voltaria ao trabalho naquela
tarde, pois iria passar numa consulta médica. Quarenta minutos
depois, entrava no consultório da amiga.

A recepcionista a saudou, toda alegre:

– Boa tarde, Dona Helena. Como tem passado?

– Estou bem, graças a Deus, Suzi. Só estou com uma dorzinha


chata de cabeça, mas nada que uma boa conversa com a minha
amiga não resolva – disse ela, tentando aparentar normalidade.

– Que bom, ela está com uma paciente no momento, mas depois
a próxima consulta está marcada só para às 15h. Assim que ela
sair, você pode entrar.

Helena se sentou numa das poltronas confortáveis, apanhou uma


revista e folheou-a, como um autômato.

Após alguns minutos que estava ali, ouviu a porta se abrir e uma
mulher com uma barriga enorme sair, acompanhada do marido.
Anne-Sophie os levou até a porta e endereçou um sorriso à amiga
quando a viu.

– Helena, que surpresa agradável. Entre, por favor.


Helena entrou e esperou a médica fechar a porta para se sentar.
Desabou sobre a cadeira e caiu num choro convulsivo e
desesperado. Anne-Sophie se aproximou e pousou ambas as mãos
sobre seus ombros, num gesto confortador. Aos poucos Helena
foi conseguindo se acalmar, e após um tempo só se ouvia seus
soluços entrecortados.

Anne-Sophie contornou a mesa e sentou-se em sua cadeira,


apoiando os cotovelos sobre a mesa e sustentando o rosto entre as
mãos. Helena enxugava os olhos num lenço rosa e soltava
suspiros, num gesto de infinito cansaço.

– Gostaria que eu pedisse um copo d’água pra você, Helena?

Recebeu um gesto de negação com a cabeça como resposta. Por


fim, olhou para a amiga e sussurrou:

– O Matheus fugiu de casa, Anne-Sophie...

– A Júlia me contou, mas eu não acreditei, até você confirmar.

– Ela é uma menina perspicaz e inteligente. Para ser sincera, não


sei se eu não acreditava mesmo ou só estava me enganando.

– O Floriano já sabe?
– Não, porque eu disse que ele foi passar as férias com a Célia.
Faz oito dias hoje que está na estrada, e sabe o que é pior? Talvez
ele desse graças à Deus.

– A Célia não te ligou para saber o que fazer? Como será que ela
está lidando com isso, Helena?

– A Célia morreu, Anne-Sophie. Foi atropelada por uma moto e


não resistiu. O Matheus está morando num quartinho em cima de
uma lanchonete do pai da Angélica.

– E quem é essa Angélica?

– Pelo que eu entendi, trata-se de uma garota que trabalha num


terminal rodoviário auxiliando as pessoas que chegam de viagem,
sei lá. No dia em que o Matheus chegou em São Paulo, estava
muito tarde para ele ir até a casa da Célia. Ia dormir no terminal
mesmo, até o dia seguinte, mas a Angélica o levou para a
lanchonete do pai. No dia seguinte foi que ele ficou sabendo da
tragédia com a minha amiga. E a tal moça o acabou convencendo
a aproveitar as férias ganhando algum dinheiro trabalhando com
eles.

– E por que você tem tanta certeza de que ele não quer mais
voltar?
– Porque ele se matriculou na mesma escola dessa garota e até já
deu uma autorização para o pai dela assinar como responsável por
ele.

– Desculpe-me, Helena, mas ninguém que tenha um mínimo de


senso de responsabilidade acolheria um rapaz de menor que fugiu
de casa. Isso pode dar até cadeia para eles, sabia? Duvido que o
pai da moça assinou a tal autorização.

– Pois se eles não concordarem em acolher o Matheus, será pior


ainda. Se ele já decidiu que não vai voltar para casa, para onde
ele vai, Anne-Sophie? – Disse Helena, e de novo o choro
desesperado a tomou.

– Calma, minha amiga. Vamos pensar um pouco, quem sabe a


gente encontra uma solução.

Após um tempo em silêncio, Helena voltou a falar.

– Vou pegar o primeiro ônibus para São Paulo, é isso o que eu


vou fazer. Simplesmente não posso deixar meu filho fugir de casa
e viver tranquila com isso. Tenho que trazê-lo de volta, de um
jeito ou de outro.

– Bom, Helena, nesse momento essa é a única solução viável.


Você tem o endereço da tal lanchonete?
– Tenho sim. A menos que ele esteja tentando me enganar, o
endereço está no envelope onde veio a carta que ele me escreveu.

– Tive uma ideia, vamos ver se você concorda.

– E qual é?

– Que tal a Júlia viajar com você? Eles sempre foram tão amigos
e pode ser que a minha filha ajude você a convence-lo a voltar
para casa.

– Seria maravilhoso se ela aceitasse me acompanhar, Anne-


Sophie. Muito obrigada por se envolver tanto nos meus
problemas. Não sei o que seria de mim sem vocês.

– Então está combinado. Hoje à noite eu vou falar com a Júlia e


amanhã cedo eu te ligo. Quando você está pretendendo viajar?

– Não posso sair de casa sem avisar meu marido da minha


intenção. Ele sempre liga para dizer onde está e para onde vai. Se
ele me ligar amanhã, eu aviso que vou buscar o Matheus e volto
no mesmo dia.

– Fico feliz que você tenha encontrado uma solução, Helena,


Agora é pedir a Deus que o Floriano ligue o quanto antes, porque
as férias escolares estão acabando.
– Assim espero, minha amiga – disse Helena, e se levantou. Deu
a volta na mesa e abraçou a amiga, beijando-a no rosto – Ainda
bem que tenho você.

– Saiba que você sempre pode contar comigo para qualquer coisa
que precisar, Helena.

Despediram-se mais uma vez na porta e Helena voltou para casa,


com o coração um pouco mais leve.
CAPÍTULO II

N a última entrega que fez em Santa Catarina, Floriano


recebeu uma proposta que o deixou feliz da vida. A
empresa precisava mandar uma máquina para Goiás e perguntou
se ele não aceitaria fazer o frete. Teria que passar em São Paulo,
no Porto de Santos, carregar o equipamento e transporta-lo até
Aparecida de Goiás. Pediu um tempo para responder e em
seguida foi até um telefone público para ligar para a
Transportadora Rápido Paranaense. Falou com o gerente de
logística sobre a proposta e perguntou o que ele achava. O gerente
gostou da ideia de ele não voltar com o caminhão vazio, porém,
calculou o custo do frete e disse que só seria interessante de
pagassem aquele valor. De volta à empresa, passou o custo para
o responsável pela encomenda, que após regatear um desconto,
topou que ele fizesse o serviço.

“Ótimo”, pensou ele, “vou aproveitar para visitar meus pais.”

Desde que tinha se casado com a Helena, aquela seria a terceira


vez que veria a família. Seus pais não eram muito de viajar, e ele
próprio tinha pouco tempo para passeios. Pensou em passar em
casa e levar a esposa, que com certeza ficaria feliz em visitar os
sogros. E torceu para que o Matheus não tivesse voltado de São
Paulo. Ao pensar no garoto, seu coração endureceu.

“Minha covardia em esconder da Helena o que eu fiz junto com


aqueles dois malucos me transformou num corno manso. O mais
engraçado é que, como dizem por aí, mulher de caminhoneiro é
que vive sendo chifrada. Mas por que eu tenho tanta dúvida de
que aquele moleque não é mesmo meu filho? Não consigo
acreditar que a Helena tenha tido a coragem de me trair com
algum colega da faculdade, como pensa a minha mãe. Qualquer
pessoa seria capaz de ver o quanto ela me ama.”

Já tinha pensado nisso um milhão de vezes nesses dezesseis anos,


mas nunca chegava à nenhuma conclusão. Na última vez em que
ele tinha perdido a cabeça com o garoto, decidiu que iria
confrontar a mulher, porém, assim que ficava frente a frente com
aqueles olhos negros tão sinceros e serenos, sua culpa gritava
dentro dele e acabava por se refugiar na bebida num bar junto
com os amigos.

Por volta das quinze horas ele chegou em Curitiba e dirigiu até
sua casa, na periferia da cidade. Estacionou o caminhão em frente
ao portão e entrou em casa. Como sabia que Helena trabalhava
até as dezenove horas no supermercado, decidiu tomar um banho
e descansar até ela chegar. Pouco antes das dezessete horas ele
acordou com um ruído na sala. Passados alguns instantes a porta
do quarto se abriu sem ruído e ele viu a mulher pôr a cabeça para
dentro e se afastar, tornando a fechar a porta. Ficou feliz em saber
que ele tinha chegado mais cedo, pois assim poderiam conversar
e, se ela concordasse em viajar com ele, daria tempo de ela avisar
no trabalho.

Levantou-se, vestiu um robe azul e cinza e saiu do quarto. Helena


estava sentada no sofá, lendo o que ele julgou ser uma receita.

– Oi, meu amor, que surpresa agradável. Saiu mais cedo do


trabalho?

Sem responder, Helena se levantou, passou os braços ao redor do


seu pescoço e o beijou demoradamente. Depois, pousou a cabeça
no peito musculoso do marido e começou a soluçar.

– Helena – disse o Floriano, afagando as costas da mulher –, o


que aconteceu?

– Nosso filho fugiu de casa, Floriano – disse Helena, com o choro


entrecortado.

“Teu filho, Helena”, pensou Floriano, apertando a esposa ainda


mais.
Passado um tempo, ele a conduziu até o sofá, fazendo-a sentar-se
e sentando-se ao seu lado, ainda com os braços ao redor dela.

– Leia essa carta, Floriano. O correio entregou hoje cedo.

Floriano tomou o papel da mão dela e leu, enquanto Helena o


observava fixamente. Ao terminar a leitura, Floriano se levantou
e deu uns passos pela sala, indo até uma estante de livros. Ali
ficou parado, olhando para um porta-retratos com a foto de ambos
do dia do casamento. No seu desespero, não conseguia encarar a
mulher, e de repente se lembrou da conversa que tinha tido com
a sua mãe naquela mesma sala, há mais de vinte anos.

Lembrou-se de ter dito na ocasião que a conta do erro cometido


na adolescência estava chegando naquele dia, em que ele se
preparava para se unir à sua esposa trazendo um segredo que o
oprimia e angustiava. E se recordou da resposta da mãe:

“Sim, e você terá que dividir com a Helena, se não quiser pagar
essa sua conta com juros e correção.”

Se Helena não tivesse engravidado pouco antes de se formar, ele


teria tido o tempo necessário para contar para a esposa que ele
nunca poderia ser pai natural de um filho. E então, quem sabe a
esposa o perdoaria por ele ter tomado uma decisão tão idiota sem
a participação dela. Mas agora, além do filho ter fugido, ela sabia
que o garoto acreditava que ele não era seu pai. Aliás, ele mesmo
havia dito isso na última vez que o agrediu: “Vai reclamar com o
teu pai, moleque.”

Sentiu os braços da esposa enlaçando sua cintura e a cabeça dela


nas suas costas.

– Floriano – disse Helena após um tempo –, por que o Matheus


disse na carta que tem certeza de que eu não te traí?

Floriano se voltou lentamente, pousou as mãos fortes sobre os


ombros de Helena, olhou dentro daqueles olhos em que se perdeu
para sempre e sussurrou:

– Helena, sei que você nunca vai me perdoar e eu não te culpo


por isso. Eu fiz vasectomia quando tinha dezesseis anos.

Ainda entorpecido pelo choque, Floriano corria com seu


caminhão na BR-116 rumo a Goiás. Tinha colocado o rádio do
caminhão no último volume para tentar afugentar da sua cabeça
qualquer pensamento que o levasse à loucura. O som do grito de
Helena ainda repercutia em seu cérebro, e a imagem dela caída
no tapete da sala se misturava à paisagem da estrada iluminada
pelos faróis da enorme carreta em alta velocidade. Não conseguia
chegar numa conclusão se sua atitude de sair correndo e deixar a
esposa no estado de choque em que ela se encontrava tinha sido
acertada, ou se deveria ter ficado lá e tentado sofrer os efeitos da
borrasca.

Por fim, decidiu que a única coisa certa que ele tinha feito naquela
noite foi se lembrar de ligar para a sogra e pedir para que ela
corresse em casa, pois a filha precisava dela urgentemente.

Já amanhecia quando ele entrou no Porto de Santos para carregar.


Mais dez horas depois, na metade do caminho, parou para
descansar. Mais quinze horas na estrada, descansando a cada
quatro horas, chegou ao seu destino. Passou a noite num sono
agitado dentro do caminhão e, logo cedo, depois de descarregar a
máquina, saiu em direção à Itaberaí, onde esperava encontrar um
pouco de consolo e paz nos braços da mãe.

Antes de se pôr de novo na estrada, ocorreu-lhe que não tinha


tentado conversar com a esposa, como sempre fazia, ligando para
ela todos os dias para informar onde estava. Esqueceu que a
esposa estaria trabalhando naquele horário e ficou feliz quando
alguém atendeu ao telefone.
– Alô? – Disse uma voz feminina e ele não reconheceu nela a voz
da Helena.

– Oi, é o Floriano. Quem está falando?

– Bernadete, Floriano, a tua sogra, lembra?

– Claro, né, Dona Dete. Tudo bem com a senhora? Posso falar
com a Helena?

– Eu estou bem, meu rapaz, mas a Helena está de cama. Faz dois
dias que tem febre, e aquela doutora amiga dela esteve aqui e
disse que é “istréis” e eu sei lá que bicho é esse.

– Como assim, de cama? Então eu posso falar com ela, por favor?

– Não, não pode, porque ela ainda tá dormindo por causa dos
remédios que a doutora deu. Ah, peraí, ela tá me chamando.

Floriano ouviu, apreensivo, um sussurro de conversa e, logo em


seguida, o fone sendo trocado de mãos.

– Floriano, sou eu, Helena. Ouça bem o que eu vou te falar, por
favor. Você só tem uma maneira de entrar dentro dessa casa de
novo, e vai ser quando vier acompanhado do nosso filho, ouviu?

Antes que ele pudesse responder, o fone foi posto no gancho,


ficando apenas um bipe irritante ao fundo.
CAPÍTULO III

M
moravam.
eio aturdido com o ultimato dado pela mulher, entrou no
caminhão e se pôs a caminho da fazenda onde os pais

Na sua memória veio a imagem daquela noite fatídica, na qual ele


e mais dois amigos beberam além da conta, como sempre faziam
nas baladas. Semanas antes, um colega que frequentava uma
outra turma foi obrigado a casar-se, aos 17 anos, por ter tido o
azar de engravidar uma menina filha de gente influente. Foi um
alvoroço que veio perturbar a paz do lugar, pois moravam ali
famílias tradicionais, que não aceitavam de forma nenhuma o
sexo antes do casamento, tão comum nas outras cidades com
população maior.

Numa noite de bebedeira, os três entraram no pronto-socorro da


Santa Casa em busca de um médico. Inventaram uma história
cabeluda para a recepcionista, que depois de ameaçar chamar a
polícia, caso fosse mentira, preencheu as fichas de atendimento e
deixou-os sentados perto do banheiro, para o caso de resolverem
vomitar. Quando o médico chamou um deles, entraram os três.
– Doutor – falou o Matias, com a voz engrolada –, o senhor
precisa ajudar a gente. Sabe o Baltazar, aquele mané que teve de
casar tão cedo? Então, a gente não quer passar por aquilo.

O médico só ouvia, com vontade de botar os três para fora da sala


a pontapés. Conteve-se, porém.

– Digam logo qual é o problema. Tenho mais o que fazer e não


posso deixar as pessoas esperando.

– Tá tirando uma da gente? São duas horas da manhã, doutor. Lá


fora só tem moscas – disse o Floriano, e desatou a rir.

– É o seguinte, doutor. A gente que cortar a coisa pra não fazer


filho. Não a coisa mesmo, o senhor sabe, só aquilo que não deixa
ter filhos – disse o Leonardo, moreno com quase dois metros de
altura.

O médico deve ter visto naquilo uma forma de punir os rapazes


pela indelicadeza de o terem tirado de uma soneca para encher-
lhe a paciência.

– Ah, os rapazes querem fazer vasectomia, é isso? E onde está a


autorização assinada pelos pais de vocês?

– Sem essa de autorização, doutor. Todo mundo sabe que o


pessoal faz um monte de maracutaia sem autorização. Só fala
quanto vai custar, e a gente paga – retrucou o Matias, como se
fosse o prefeito da cidade.

– A gente quem, mané? – Perguntou o Floriano.

– Eu pago, depois vocês se viram pra me devolver.

– Calma, rapazes – disse por fim o médico, agora tendo certeza


de que havia encontrado uma forma de castigá-los. – Essa cirurgia
é de graça. Controle de natalidade, sabe?

– Hã? – Disseram os três juntos.

– Isso mesmo. Esperem aqui, vou chamar o enfermeiro e a gente


resolve tudo já. Mas antes vocês precisam assinar um termo de
responsabilidade. Sabe como é, não quero os pais de vocês me
atormentando depois.

– Claro – disse o Leonardo. – Mais que justo.

O médico saiu da sala e voltou pouco depois, trazendo um


enfermeiro com ele. Um de cada vez foi colocado atrás de um
biombo e teve a calça e a cueca baixados pelo enfermeiro, que
mordia o lábio inferior na tentativa de conter o riso. O médico
calçou um par de luvas, passou um líquido amarelo no saco
escrotal do primeiro, encostou o bisturi, fez uma pequena incisão,
encostou um chumaço de algodão, tirou, mostrou para o rapaz o
algodão ensanguentado e pediu para o enfermeiro dar os pontos e
fazer o curativo.

Terminado o trabalho, desejou-lhes sorte no amor e os botou para


fora da sala, recomendando que não fizessem nenhum esforço e
nem andassem a cavalo por uma semana. O enfermeiro perguntou
ao médico:

– E se eles engravidarem alguém, doutor, na confiança de que


estão estéreis?

– Milagre, meu filho, milagre!

Infelizmente, o Matias e o Leonardo morreram sem terem a


chance de provar do milagre, e o Floriano carregou aquilo por
anos, até ter a coragem de contar para a mãe.

Há vinte e dois quilômetros da cidade, por volta das onze horas


da manhã, um caminhão vindo em sentido contrário desviou de
uma carroça na pista e se perdeu, vindo de frente ao seu
caminhão. Ele ouviu um estrondo e, de repente, uma escuridão o
envolveu.
CAPÍTULO IV

A ssim que terminou a faculdade de medicina em Anápolis,


onde cursou Enfermagem, Mariana foi promovida a chefe
de enfermagem no Hospital Regional de Itaberaí. Ali conheceu
seu marido, o médico Fernando Albuquerque, especializado em
cardiologia, com quem tinham uma filha de dez anos, Sofia, e um
menino de doze, Lucas.

Pouco antes do meio-dia, o telefone na chefia de enfermagem


tocou e, quando Mariana atendeu, a telefonista do hospital disse:

– Dona Mariana, é do Corpo de Bombeiros, posso passar?

– Claro, por favor. Alô?

– Oi, aqui é o doutor Felipe, paramédico da unidade móvel dos


bombeiros. Atendemos a uma ocorrência de acidente entre dois
caminhões, há uns vinte quilômetros daí, e estamos com um dos
motoristas na ambulância a caminho do hospital. Infelizmente o
motorista do outro caminhão veio a óbito no local. Por favor,
preparem uma equipe na emergência e incluam um ortopedista e
um neurologista. Não sabemos ainda a extensão dos ferimentos,
mas pela dificuldade em remover o ferido, deve ter alguma
fratura.

Cada vez que Mariana tinha notícias de acidentes de trânsito


envolvendo caminhões, ficava com o coração na mão ao se
lembrar do irmão. Naquela manhã seu receio de repetiu, mas ela
pensou ser improvável que fosse o Floriano, afinal de contas ele
nunca vinha para aqueles lados do país. Correu a fim de orientar
a equipe, passando na sala do neurologista e na do ortopedista no
caminho. Cinco minutos depois, a equipe estava a postos na
entrada do pronto socorro, e mais quinze depois ouviram o
barulho estridente da sirene se aproximando.

A ambulância vermelha dos bombeiros entrou na doca e a porta


se abriu rapidamente. O pessoal do hospital auxiliou a equipe da
ambulância a baixar a maca até o solo, e enquanto corriam com o
ferido pelos corredores até a sala de emergência, Mariana pegava
o prontuário médico que lhe foi entregue pelo paramédico.

– Ele está desde quando desacordado?

– Nós o sedamos, porque ele estava em choque. No local do


acidente, além dos dois caminhões, só encontramos um
carroceiro. E quem ligou pra nós foi o motorista de um carro que
passava pelo local. Acredito que entre chegarmos lá e retirar o
ferido e trazê-lo pra cá, já se passaram uns quarenta minutos.

– Ele falou alguma coisa antes de ser sedado?

– Marlene, ou algo assim. Deve ser alguma parente dele, eu acho.

– Ok, doutor, obrigado pelas informações e mais ainda pelos


primeiros socorros.

– É só o nosso trabalho, doutora. Tenho que voltar pra lá. A


polícia deve estar no local e precisa de nós.

Mariana foi até a sala de emergência, onde a equipe analisava os


danos do acidentado e cuidava dos sinais vitais. Uma máscara de
oxigênio estava sobre seu rosto e alguém tinha conectado um
frasco de sangue num dos braços musculosos do rapaz, além do
soro no outro braço.

– Alguma fratura? – Ela perguntou.

– Aparentemente, não – respondeu o ortopedista. – Mas um


exame radiológico deve tirar nossas dúvidas.

– Sinais vitais estáveis, frequência cardíaca baixa devido à


sedação, mas esse corte profundo na testa me preocupa um pouco
– disse o neurologista. – Apesar de o exame das pupilas não
acusar nenhuma lesão cerebral.
– Já sabemos o nome dele? – Perguntou Mariana.

– Não, não veio nenhum documento com ele. Provavelmente os


policiais devem trazê-los depois, como de praxe – respondeu uma
das enfermeiras.

Mariana se aproximou da cabeça do acidentado e não conseguiu


distinguir suas feições, enquanto uma enfermeira limpava
cuidadosamente o sangue que se tinha espalhado no rosto e
cabelos do rapaz.

– Levem-no para a sala de cirurgia – disse o neurologista. –


Precisamos suturar esse corte da testa dele.

Mariana voltou para seu posto de enfermagem assim que o


paciente subiu, quase no mesmo instante em que dois policiais
rodoviários entraram pelas portas do hospital. Perguntaram algo
para as recepcionistas e em seguida foram andando pelo corredor
até onde ela estava:

– Bom dia, doutora – disseram os dois ao mesmo tempo, e ela


sempre achava engraçado o fato de algumas pessoas pensarem
que todo mundo que veste um jaleco branco é médico.

– Bom dia, sou a enfermeira-chefe, em que posso ajuda-los?


– Viemos do local do acidente entre os caminhões. Soubemos que
o motorista que sobreviveu está aqui e viemos trazer os
documentos dele.

– Pois não, poderiam entrega-los para mim?

O policial que aparentava ser o mais velho estendeu-lhe uma


carteira, ao mesmo tempo em que apontava para o nome bordado
no bolso do avental dela.

– Engraçado, vocês têm o mesmo sobrenome, Peixoto.

Mariana gelou um pouco, mas logo afastou a ideia de ser o irmão.


Pegou a carteira da mão do policial, abriu e desabou sobre a
cadeira.

– Meu Deus, Floriano! Mas o que ele estava fazendo aqui?

– Como?

– Meu irmão é caminhoneiro, mas viaja somente de Curitiba para


o sul do país. Ninguém nos avisou que ele vinha pra cá.

– Sentimos muito, doutora. De qualquer forma, a gente gostaria


de conversar um pouco com o teu irmão. Ele vai sobreviver, né?
– Hã? Ah, sim, se Deus quiser ele vai ficar bem, sim. Obrigada.
Assim que ele estiver consciente, o que deve acontecer entre hoje
e amanhã, os senhores poderão falar com ele.

– Obrigado, voltaremos amanhã então.

Mariana ficou olhando a foto do irmão. Quando foi a última vez


que tinha falado com ele pessoalmente depois do casamento dela?
Sem saber muito bem o motivo, seus pais não eram de visitar o
irmão. Enquanto os netos que ela lhes deu tinham toda a atenção
dos avós, Matheus, filho do Floriano, não tinha sequer seu nome
mencionado. E ela só conseguia falar com a Helena nas vezes em
que tinha ligado para a casa deles.

E agora ele estava ali, e ela começou a chorar ao pensar na


possibilidade do seu irmão querido quase morrer num acidente,
longe de tudo e de todos. Deveria avisar seus pais? Ou ligar para
a Helena? Pensou melhor e achou que deveria aguardar pelo
menos até seu irmão acordar e poder falar com ele.

Levantou-se e se dirigiu até o terceiro andar para ver o irmão.


Entrou na sala de cirurgia no momento em que estavam
terminando o curativo enorme na sua testa. Perguntou como
tinham sido os últimos quinze minutos.
– Correu tudo bem, Mariana. Não houve nenhum dano
neurológico, e fraturas, se existem, não conseguimos descobrir.
Não tem nada de hemorragia interna ou externa, e esperamos que
ele volte à consciência nas próximas horas. Sabemos quem ele é?

– Sim, sabemos. É meu irmão, Floriano.


CAPÍTULO V

F loriano despertou e perguntou onde estava e o que tinha


acontecido. Foi lhe dito que ele havia sofrido um grave
acidente e que estava no Hospital Regional de Itaberaí. Apesar
dos ferimentos, ele estava bem, disseram, e podia ir para casa dali
uns dois dias.

– Avisaram minha esposa que eu estou aqui? Alguém ligou para


os meus pais?

Minutos depois, Mariana entrou no quarto e abraçou o irmão.


Ficaram ali um longo tempo, abraçados e chorando.

– Graças a Deus está tudo bem com você, Floriano. Sente alguma
dor, além do ferimento da cabeça? Não conseguimos saber se
você quebrou algum osso.

– Você não imagina minha felicidade em te ver aqui, minha


irmãzinha. Não é uma tremenda sorte a minha vir parar justo no
hospital onde você trabalha? Não, não sinto nenhuma dor muito
forte, além do peito e da coxa direita. Cadê o outro cara? O
motorista do outro caminhão?
– Não sabemos ainda, Floriano – mentiu Mariana. – Hoje vieram
até aqui uns policiais rodoviários trazer teus documentos.
Disseram que vão voltar mais tarde ou amanhã para fazer
perguntas.

– Ok, Mariana. Você ligou para a Helena? Minha mãe já sabe que
estou aqui?

– Não, Floriano. Esperei primeiro ter certeza de que você estava


bem. Agora que já sei, vou descer e avisar todo mundo.

Mariana telefonou para os pais, disse que o Floriano tinha sofrido


um acidente grave na estrada, mas que ele estava bem. Talvez
pudesse ir para a casa deles no dia seguinte. Fez o mesmo com a
Helena, só que quem atendeu ao telefone foi a mãe dela.

– Alô?

– Helena?

– Não, a mãe dela. Ele precisou ir passar por uma consulta com
aquela amiga médica dela e só vai voltar mais tarde. Quem é?

– Oi, Dona Bernadete. É esse seu nome, né? – Diante da resposta


afirmativa, continuou. – Aqui é a Mariana, irmã do Floriano.
Avisa a Helena que ele sofreu um acidente na estrada perto daqui,
mas que já está tudo bem. Provavelmente amanhã ele terá alta e
poderá em breve ir para casa,

– Que bom que está tudo bem com ele. Minha filha não anda lá
muito boa das ideias e se o marido morrer a gente não sabe o que
vai ser dela.

– Não, Dona Bernadete, fique tranquila, viu? Está tudo bem com
ele. Um beijo.

Que história era aquela da Helena não estar bem das ideias?
Mariana sempre achou Helena uma pessoa super inteligente, e
aquilo só podia ser o jeito de a mãe dela falar que a filha estava
com alguma indisposição.

Uma hora depois, seus pais apareceram no hospital, perguntando


pelo filho.

– Está tudo bem com ele, mamãe, deve descer para o quarto daqui
a pouco. Aguardem até as quatorze horas, que é quando as visitas
aos pacientes serão liberadas. Mãe, você tem falado com a Helena
ultimamente?

– Não, nem lembro quando foi a última vez que falei com ela. Por
quê?
– Não sei, a mãe dela disse que ela está se tratando por não estar
muito bem das ideias. Sei lá o que ela quis dizer com isso.

“Será que o fato do Floriano ter vindo para casa e a mulher estar
ruim das ideias tem alguma coisa a ver com aquela história lá
dele?”, pensou sua mãe, apreensiva.

– Tatiane, por favor. Poderia procurar uma ficha em nome de


Floriano Peixoto? Meu irmão, assim como eu, passava por
consultas aqui desde que nasceu. Podemos usar a mesma ficha,
inclusive para saber se ele tem alergia a algum medicamento.

– Ok, Mariana. Será que está aqui ou no arquivo morto?

– Não sei. Veja aqui primeiro e depois vamos pensar em outros


lugares. Vou subir até o quarto do meu irmão com os meus pais.
Você pode levar a ficha, por favor? Daqui a pouco eu te ligo
informando o número do quarto.

Quando se preparava para subir, os policiais rodoviários


apareceram de novo, perguntando se o rapaz tinha acordado. Ao
saberem que sim, foram levados até o Floriano.

– Boa tarde, Sr. Floriano. Que bom que está tudo bem com o
senhor. Podemos fazer algumas perguntas?

– Boa tarde, obrigado. O que os senhores querem saber?


– O senhor consegue se lembrar de alguma coisa antes do
acidente?

– Tudo o que me lembro é de uma carroça vindo do lado esquerdo


em sentido contrário ao meu. Logo depois surgiu um caminhão
na mesma direção. O cara desviou da carroça e, não sei bem o
porquê, se perdeu e veio na minha direção. Só me lembro de ter
freado e depois de um estrondo, tudo escureceu.

– O senhor tinha ingerido alguma bebida alcoólica no almoço?

– Claro que não. Eu nem tinha almoçado ainda. O outro cara está
bem?

– Não, infelizmente ele veio a óbito no local. Sorte sua estar


sozinho, senhor Floriano. Ele praticamente destruiu o lado do
passageiro do teu caminhão.

Floriano se lembrou que era para a Helena estar ali, caso ela não
tivesse recebido a carta do filho e eles não tivessem se visto pela
última vez de forma tão trágica. A lembrança trouxe novas
lágrimas aos seus olhos e ele se deu conta da sorte que tivera.

– Bom, por enquanto é só. Caso o senhor venha a descobrir novos


fatos que possam contribuir para a nossa investigação, é só ligar
nesse número.
Os policiais foram embora e a Mariana subiu com os pais.
Floriano chorou de alegria quando os viu entrarem no quarto. Se
sentia um felizardo em estar naquele hospital e não em qualquer
outro no fim do mundo, longe da família.

Mariana ligou na central de enfermagem e disse que quando a


Tatiane encontrasse a ficha do irmão era para levar no quarto 202.

– Floriano – disse sua mãe –, a Mariana ligou pra tua casa e falou
com a mãe da Helena. Ela disse que a filha está se tratando por
não estar muito bem das ideias. Que história é essa, filho? Tem a
ver com aquilo?

– Aquilo o quê, mãe? – Perguntou a Mariana.

Floriano concluiu que ter sobrevivido foi uma chance que Deus
estava lhe dando para consertar as bobagens que tinha feito.
Agora que a Helena sabia do seu ato impensado e do filho ter
fugido de casa, não tinha mais porque esconder do pai e da irmã.
Então, começando pelo dia fatídico em que entrou naquele
mesmo hospital com o Leonardo e o Matias, revelou sobre a
vasectomia. Diante do ar cada vez mais espantado e atônito do
pai e da irmã, contou que escondeu aquilo da Helena, que
pretendia falar tudo assim que ela terminasse a faculdade, mas
que a mulher apareceu grávida meses antes de se formar, da sua
suspeita de que ela o tinha traído, da rejeição imposta ao menino,
dos maus tratos e da sua fuga de casa, até a confissão dele e da
síncope da mulher.

– Floriano – começou a irmã –, qual é o nome daquele médico?

– Pouco importa, Mariana – disse sua mãe. – Ele já morreu. E os


dois outros irresponsáveis também. Lembra do bêbado que
atropelou dois garotos numa moto no trevo da Praça Brasil?

Alguém bateu na porta e entrou. A enfermeira Tatiane tinha


encontrado a ficha do Floriano. Entregou, pediu licença e saiu.
Mariana confirmou o nome do irmão e começou a ler as
anotações que os médicos tinham feito durante as consultas dele.
Dores de ouvido, começo de bronquite, alergia a benzetacil,
picada de insetos, tombos de bicicleta, tudo estava ali, como um
passado que voltava aos poucos. Mariana percebeu uma folha
grampeada no verso da ficha e abriu. Ali estava uma espécie de
declaração, que ela leu em voz alta.

Itaberaí, 11 de maio de 1960

Eu, Floriano Peixoto, declaro ser de minha livre e espontânea


vontade que me submeto nessa data à cirurgia de vasectomia,
isentando o Dr. Miguel de Santa Cruz de qualquer
responsabilidade civil e criminal decorrente do meu ato.

E, por assim estar de acordo, dou fé.

Floriano Peixoto

Testemunhas: Matias de Sá, Leonardo Tobias e enfermeiro José


de Souza e Silva

Estavam ali as devidas assinaturas, tanto a do Floriano quanto as


das demais testemunhas. Após um silêncio tão pesado que quase
se podia pegar com as mãos, o Floriano balbuciou, meio zonzo:

– Mariana, tem mais alguma coisa escrita atrás.

Mariana virou a folha e leu:

Itaberaí, 11 de maio de 1960,

Eu, Dr. Miguel de Santa Cruz, médico plantonista do Hospital


Regional de Itaberaí, declaro para os devidos fins que nessa data
realizei uma falsa cirurgia de vasectomia no Sr. Floriano Peixoto
e em mais dois amigos seus, a fim de puni-los por comparecerem
nesse hospital embriagados e causando tumultos à ordem
pública.
Caso essa declaração se torne de conhecimento das partes
envolvidas, e na eventualidade dos mesmos tornarem-se pais,
esse papel deve ter valor legal para comprovação da paternidade
e isenta seu declarante de qualquer ação judicial.

Assinatura e carimbo CRM: Dr. Miguel de Santa Cruz

Testemunha: Enfermeiro plantonista José de Souza e Silva


CAPÍTULO VI

F loriano ligou para casa de um posto de combustível em São


José do Rio Preto, já dentro do Estado de São Paulo. Não
tinha ligado antes por saber do ultimato dado pela mulher e, além
disso, não queria usar seu acidente para despertar nela alguma
compaixão.

– Alô?

– Helena? Sou eu.

– Oi, Floriano. Tua irmã ligou aqui anteontem e falou pra minha
mãe que você tinha sofrido um acidente, é verdade? O que
aconteceu?

– Não se preocupe mais com isso, meu amor. Eu estou bem,


graças a Deus, e tudo o que eu quero nesse momento é descobrir
onde o Matheus está. O endereço dele está no envelope da carta?
Você ainda tem o envelope com você?

– Claro que eu tenho, mas onde você está? O que pretende fazer,
Floriano?

– Tudo o que for necessário para voltar para casa com o nosso
filho e poder te abraçar de novo.
– Eu quero ir junto com você, Floriano. Depois de tudo o que
aconteceu, quem garante que você vai conseguir convence-lo a
voltar para casa? Por favor, não me negue isso.

Floriano sabia que a mulher tinha razão. Mesmo tendo a


declaração do médico atestando que tudo não tinha passado de
um terrível engano, anos de desprezo e indiferença, além dos
maus tratos, podiam ter despertado no rapaz uma grande aversão
por ele.

– Você tem razão, Helena. Vamos todos juntos.

– Sim, e isso inclui a Júlia também. Antes de você voltar para


casa, a Anne-Sophie e eu havíamos decidido que o melhor a fazer
seria ir até São Paulo conversar com o Matheus. E ela sugeriu que
a filha fosse junto comigo, já que eles sempre foram tão unidos.

– Ok, meu amor. Faremos como você quiser. E, além disso, tenho
algo para te mostrar que vai acabar de uma vez por todas com
essa situação terrível.

Helena desligou o telefone e lágrimas de felicidade inundaram


seus olhos. E seu coração se encheu de uma esperança que ela
nunca tinha sentido antes.
Já era quase de madrugada quando ela ouviu um carro parando
em frente ao seu portão. Tinha passado por um sono agitado até
então, ansiosa pela chegada do marido. Júlia ficou numa alegria
tão grande ao saber que viajaria com eles para São Paulo no dia
seguinte, que isso também contribuiu para a sua insônia.

Helena levantou-se e foi até a sala para abrir a porta ao marido.


Floriano entrou, olhou longamente para ela e não se conteve mais.
Correu até a esposa e a abraçou como se tivesse medo de que
fosse perde-la para sempre.

– Floriano – disse Helena, baixinho –, você está quase quebrando


meus ossos...

– Desculpa, meu amor. Te machuquei?

– Não. Ufa, agora sim posso respirar um pouco.

– Venha até aqui – disse o Floriano, levando-a pela mão até o


sofá, onde se sentaram. – Helena, a conversa que vamos ter agora
deveria ter acontecido há vinte e um anos, quando decidimos nos
casar, mas fui um tremendo covarde, e por isso sofremos tanto até
agora, e o Matheus mais ainda.

E, começando pelo dia em que entrou no hospital regional da sua


cidade natal, contou à mulher toda a sucessão de enganos
decorrentes de uma punição imposta por um médico irritado.
Contou-lhe da sua infelicidade ao evitar relacionamentos mais
sérios por se achar estéril e da sua angústia ao saber que ela tinha
engravidado. Helena ficou sabendo que tinha se casado com um
homem que a amava tanto, a ponto de aceitar uma possível
traição, mas que não conseguia sentir o mesmo amor pelo filho
que ela tinha gerado.

– Eu precisei quase morrer, Helena, para descobrir que tudo não


tinha passado de uma farsa daquele médico. E se tivessem jogado
meu prontuário fora, morreria com essa dúvida. Mas Deus me deu
uma nova oportunidade, depois de ter pagado tão caro pela minha
inconsequência, e eu quero te pedir perdão por todos esses anos
de sofrimento que eu causei.

Helena só ouvia e chorava, sem conseguir entender muito bem


tudo aquilo. E, qualquer que fosse o sentido daquelas palavras,
descobriu que não tinha em seu coração nenhuma mágoa pelo
marido. Só um imenso amor.

– Floriano, esse seu corte está doendo muito? Está sangrando e


molhando o curativo, você viu?
– Não, Helena. Nenhuma dor seria maior do que a que eu sinto
pelo nosso filho – e, tirando o papel que trouxe de Goiás, estendeu
para a esposa.

Helena leu a declaração que ele assinou e virou o papel, onde leu
a do médico. De repente começou a rir, de forma meio histérica.
Floriano se assustou com a reação da mulher.

– Tá tudo bem, Helena?

– Desculpe-me, Floriano – ela disse, entre risos. – Mas você


acreditou mesmo que um médico teria coragem de esterilizar três
adolescentes?

– Sei lá, Helena. A gente tinha tomado todas, e ele mostrou um


algodão ensanguentado, e o enfermeiro deu até uns pontos na
gente.

– Seus amigos se casaram também, Floriano? Se sim, você


precisa dar um jeito de encontra-los. Eles ficarão felizes em saber
que podem ser pais, se é que já não são...

– Não, Helena, infelizmente os dois morreram num acidente de


moto. Um motorista bêbado matou os dois, e minha mãe disse
que esse tal de Dr. Miguel também já morreu.
– Nossa, Floriano, quanta tragédia. Sinto muito pelos garotos.
Bom, só o que eu tenho a dizer é que nunca tive qualquer dúvida
de que o Matheus é teu filho. Mas entendo a tua dúvida, e fico
feliz por você não ter me abandonado.

Floriano a tomou nos braços de novo e murmurou, comovido:

– Você nunca vai conseguir se livrar de mim, sabia? E amanhã,


ou daqui a pouco, sei lá, vamos buscar nosso filho.

Anne-Sophie chegou na casa deles por volta das dez horas,


trazendo uma Júlia empolgadíssima com a viagem. Depois de ter
passado quinze dias tostando no Rio de Janeiro, apareceu com um
bronzeado se descamando e deixando ver a pele alva por baixo.

– Olha só, Helena. Estou trocando de casca, como uma cigarra.


Oi, Floriano, o que aconteceu com a tua testa?

– Olá, Júlia, me envolvi num acidente lá na minha cidade natal.


Como estão os teus irmãos?

– Devem estar bem, eu acho. Eu, com certeza, estaria feliz da vida
se estivesse na Austrália. Não vejo a hora de encontrar o Matheus,
sabia? Tenho umas contas pra acertar com ele.

– Júlia, pegou a maleta pequena que estava sobre o banco de trás?


– Peguei sim, mãe. Já está ali no fundo, junto com as coisas da
Helena. E aí, pessoal, vamos botar o pé na estrada? Tchau, mãe.
Eu ligo quando chegar lá.

– Anne-Sophie, muito obrigada por deixar a Júlia ir com a gente.


Tenho certeza de que o Matheus ficará muito feliz.

– Não tem por que agradecer, minha amiga. Vou ficar aqui
torcendo para dar tudo certo – Anne-Sophie abraçou a amiga e
aproveitou para cochichar-lhe no ouvido. – Quando você voltar,
quero que me conte o que fez para deixar teu marido tão feliz!

Helena piscou-lhe um olho e entrou no carro.


CAPÍTULO VII

H elena agradeceu aos céus pela feliz ideia que Anne-Sophie


teve de mandar a filha junto com eles. Júlia era uma garota
extremamente inteligente e divertida, e as histórias que ela foi
contando pelo caminho fizeram com que Helena esquecesse
completamente o motivo da viagem. Seus temores só retornaram
quase seis horas depois, já próximos da Marginal Pinheiros, em
São Paulo.

Quando saíram da Marginal Pinheiros e entraram na Marginal


Tietê, Floriano achou que seria mais fácil encontrar a rua da
lanchonete se perguntasse num posto de combustível. O frentista
só sabia como chegar em Santana, mas disse-lhe que o bairro do
Mandaqui era lá perto, e seria fácil achar o endereço se voltassem
a se informar por lá.

Pouco antes das dezoito horas, seguindo a orientação dada por um


taxista, Floriano encontrou a rua que seu filho escreveu no
envelope da carta que mandou para a mãe como sendo o endereço
da lanchonete. Quase no meio da rua, avistaram algumas mesas
na calçada e concluíram que era ali.

– Helena, queria te pedir um favor, se você me permitir.


– Pois não, Floriano, e qual é o favor?

– Não sabemos ainda se o Matheus está mesmo ali, então eu


gostaria de ir até lá sozinho, pra perguntar. Depois eu volto aqui
e vocês duas farão uma tremenda surpresa pra ele, que tal?

– Bom, não sei se essa é uma boa ideia, mas se você acha que sim,
então está combinado. Só não diga nada pra ele sobre o motivo
de estar aqui até a gente chegar, por favor.

Floriano concordou e desceu do carro, indo na direção da


lanchonete. Apenas duas mesas na calçada estavam ocupadas
com alguns rapazes e moças, que ele conclui serem estudantes de
alguma escola por ali. Quando entrou na lanchonete, viu seu filho
abaixado atrás do balcão, pegando garrafas de cerveja de dentro
de uma geladeira. Ao fundo estava um homem de pé, no caixa,
conversando com um freguês, e junto da pia ele viu uma garota
que lavava alguns copos e os depositava sobre uma bandeja sobre
o balcão.

– Por favor, uma coca-cola com gelo e limão – ele pediu.

Seu filho não respondeu nada. Apenas endireitou-se, foi até a


geladeira do outro balcão de onde pegou uma garrafa de coca-
cola, abriu e colocou sobre o balcão sem olhar para ele. Voltou-
se e apanhou um dos copos que a garota tinha posto sobre a
bandeja, apanhou um limão que estava dentro de uma cesta de
metal, cortou ao meio e tirou duas fatias de uma das metades.
Colocou-as dentro do copo, abriu de novo a geladeira sob o
balcão e tirou dali uma forma com cubos de gelo. Flexionou a
forma e algumas pedras caíram sobre um pequeno balde de
alumínio. Ele usou um pegador de metal e colocou três pedras
dentro do copo, levando-o em seguida até o freguês, e ao
perguntar se ele queria mais alguma coisa, seus olhos cruzaram
com os do pai.

Floriano, enquanto seu filho preparava seu pedido, tinha se


apoiado sobre o balcão e não conseguia conter a emoção por ver
o filho. Sem se preocupar com algumas garotas que cochichavam
numa mesa atrás dele, se pôs a chorar baixinho, e as lágrimas
escorriam pela face com a barba por fazer e iam cair no balcão.

Seu filho balbuciou: “Floriano?!”, e caiu sobre o estrado.

O barulho que o filho produziu ao cair chamou a atenção da moça,


que gritou – “Matheus!” – e também do homem do caixa. Ambos
correram até o rapaz e tentaram levanta-lo, mas o homem afastou
a garota.

– Deixa, Juliana. Vou levar ele lá pra cima, chama tua mãe!
– Por favor, senhor – disse o Floriano. – Esse menino é o meu
filho. A mãe dele está no carro e eu vou busca-la.

Sem esperar resposta, Floriano saiu apressado da lanchonete, mas


se lembrou que não podia de jeito nenhum alarmar a esposa, então
diminuiu as passadas e se aproximou da janela da Helena.

– Helena, vamos até lá. O Matheus se assustou ao me ver e precisa


da tua ajuda, vem.

Helena saltou do carro e começou a correr em direção à


lanchonete, com a Júlia correndo atrás.

Floriano trancou as portas e se virou, pensando: “Meu Deus,


como a Helena disse, aquilo não foi mesmo uma boa ideia”.

Alguns curiosos tinham deixado suas mesas e barravam a entrada


da lanchonete, pelo que Helena precisou pedir licença e ao
mesmo tempo empurrar um ou outro. Uma garota estava saindo
do balcão e ela a interpelou.

– Por favor, cadê o meu filho?

– O Seu Salvador levou ele lá pra cima, e a minha mãe também


subiu. Venha, é por aqui.

Juliana subiu os degraus da estreita escada caracol tendo Helena,


Júlia e Floriano nos seus calcanhares. Ela andou pelo pequeno
corredor e entrou no quarto, onde o Seu Salvador estava de pé, ao
lado da cama em que tinha deitado o Matheus, e a Dona
Conceição estava sentada na beirada da cama, dando algo para
ele cheirar.

Helena se aproximou e viu o filho. Ele estava um pouco pálido e


de olhos fechados, mas ela não quis se intrometer no trabalho da
mulher. Passados alguns segundos, Matheus voltou a si e quis se
levantar, envergonhado. Dona Conceição o ajudou a sentar-se e
ele viu a mãe, o pai e Júlia, que torcia as mãos, aflita. Baixou a
cabeça, levou as mãos ao rosto e começou a chorar baixinho.
Helena sentou-se ao seu lado, passou o braço esquerdo sobre ele
e puxou sua cabeça sobre o seu ombro. Enquanto enfiava os dedos
da mão direita nos cabelos do rapaz, ela falava, baixinho:

– Está tudo bem agora, meu filho querido. Estamos todos aqui
com você, até a Júlia, você viu? – Disse Helena, lançando um
sorriso em direção à menina, que aparentava estar mais calma.
Obrigada por ajuda-lo, senhora? – Perguntou Helena.

– Sou a Conceição, mãe da Juliana. E não precisa agradecer. A


gente adotou esse menino, né, Seu Salvador?

Seu Salvador concordou com a cabeça, com o cenho franzido.


Não conseguia entender o que aquele monte de gente estava
fazendo na sua lanchonete, e ficou mais preocupado ainda ao se
lembrar que a lanchonete estava abandonada.

– É, ran, ran – começou ele. – Alguém pode me dizer o que está


acontecendo aqui?

O Floriano estendeu-lhe a mão, dizendo:

– Pedimos desculpas por invadir seu comércio, Seu Salvador. Eu


me chamo Floriano, aquela é minha esposa, Helena, e essa
menina linda aqui é a Júlia, amiguinha de infância do nosso filho.

– Muito prazer, Seu Floriano. Tenho muito o que conversar com


vocês, mas não agora. Tenho que descer e impedir que saqueiem
minha lanchonete, se é que vocês me entendem. Vamos, Juliana?
Sua mãe pode ficar aqui, se quiser.

– Não, Seu Salvador, o menino já está em boas mãos. Vou descer


também. Desliguei o fogo, mas tem muito bolinho pra fritar
ainda.

Os três saíram do quarto e se dirigiram para a escada. A Juliana


voltou, deu uma piscadela divertida em direção ao Matheus e
fechou a porta do quarto. Júlia se acomodou no sofá e o Floriano
puxou a cadeira da escrivaninha para perto da cama.
– Você quase me matou de susto, Floriano – disse o Matheus,
num tom ofendido. – Não podia ter ligado antes?

– Podia sim, Matheus, você tem toda razão, e eu peço desculpas.


Só que aconteceu tanta coisa nesses últimos dias que a gente foi
tomando as decisões meio que sem pensar direito.

– O que aconteceu com a tua testa?

– Um acidente com outro caminhão. Fui visitar meus pais e


aconteceu, pouco antes de chegar lá. Por sorte me levaram para o
hospital onde a minha irmã é enfermeira. Tirando o corte na testa,
o resto está inteiro.

– Oi, Júlia. Achei que você ainda estava no Rio de Janeiro. Aposto
como partiu de você a ideia de me pregarem uma peça.

– Não se julgue tão importante, Matheus. A gente só veio te levar


pra casa – disse a menina, observando nos olhos dele o efeito das
suas palavras.

– E quem disse que eu vou pra casa?

– Ninguém precisa falar disso agora, filho. Temos muito o que


conversar e não queremos prejudicar aquele senhor, como é
mesmo o nome dele? – Perguntou Helena.
– Salvador – respondeu o Matheus. – E isso me lembra que estou
no meu horário de trabalho – disse ele, se levantando. – Podem
ficar aqui, se quiserem, ou descer pra comer alguma coisa.

– Vamos todos descer e comer o que tiver, já que estamos só com


o almoço no bucho – disse o Floriano, na sua linguagem de
caminhoneiro.

Matheus assumiu seu papel, distribuindo os pedidos nas mesas,


enquanto os três, Helena, Floriano e a Júlia, acomodavam-se
numa mesa fora da lanchonete. Matheus foi até eles com o bloco
de comanda nas mãos.

– Vão comer o quê? Temos lanches, salgados e, se quiserem,


comercial com peixe frito.

Helena pediu um sanduiche tipo bauru, Júlia pediu um x-bacon


“dos grandes”, mesma escolha do Floriano. Júlia pediu também
um suco de laranja, Helena também quis suco de laranja, só que
com hortelã. Como não tinha hortelã, ficou só na laranja mesmo.
Floriano perguntou se a sua coca-cola com gelo e limão ainda
estava disponível.

– Está, sim. Só isso? Ok, aguardem uns minutos.

Quando Matheus se afastou, Júlia fez uma observação.


– Ele já quase faz parte desse lugar. Acho que o Matheus
encontrou sua vocação, e com certeza é melhor que bicheiro.

– Que história é essa de bicheiro, Júlia? – Perguntou Helena.

– Ele disse tempos atrás que se não fosse caminhoneiro como o


Floriano, seria bicheiro. Ouviu o Carlão dizer que isso dá
dinheiro.

– É verdade, e dá cadeia também – disse o Floriano.

Matheus chegou com as bebidas e voltou logo depois com os


lanches. À medida que as horas foram passando, a lanchonete
começou a encher, e ele corria de um lado para o outro, atendendo
as mesas. Seu Salvador se juntou à essa tarefa, alternando entre
os pedidos e o caixa.

– Será que eu posso ajudar o Matheus? – Quis saber a Júlia.

– Melhor não, Júlia. O homem pareceu ficar bem descontente


com a nossa chegada. Tomara que ninguém tenha saído sem
pagar, no meio da confusão que o Floriano causou.

As horas se passaram rapidamente, e perto das vinte e duas horas


as últimas pessoas começaram a deixar o local. O Floriano, para
disfarçar a ansiedade, foi ajudar o filho a recolher mesas e
cadeiras da calçada, enquanto a Júlia deu um jeito de recolher
copos e garrafas.

Helena arranjou uma vassoura e se pôs a limpar a calçada,


recolhendo o lixo num cesto enorme próximo da entrada.
Terminado o serviço, Seu Salvador chamou todo mundo para
dentro.

– Vou levar a Dona Conceição e a Juliana pra casa. Aguardem


aqui dentro, que eu volto logo.

Helena aproveitou o tempo de espera para lavar a louça que


estava sobre a pia e o Floriano foi ajudar o filho a guardar as
garrafas nos engradados. Júlia se acomodou numa das mesas e
observava, divertida, a família trabalhando.

O som de um motor anunciou a chegada do Seu Salvador. Ele


entrou, fechou a porta e disse:

– Podemos subir até o quarto do Matheus? Gostaria de trocar


umas palavras com vocês.

Ali chegando, Seu Salvador pigarreou e começou a informa-los


sobre o que fariam a seguir.

– Minha filha e eu ficamos sabendo da história do Matheus, da


sua intenção de fugir de casa e ir morar com a Célia, que Deus a
tenha num bom lugar. Minha filha se preocupou muito com o seu
infortúnio e o trouxe para passar as férias escolares aqui e ver se
conseguia convencê-lo a voltar para casa. Agora vocês chegaram
e penso que devem ter muita coisa para conversar, então, vamos
todos para a minha casa. Vocês vão passar essa noite lá e amanhã
poderão decidir sobre o que fazer. Matheus, você poderia juntar
teus pertences, por favor? Acredito que a tua estadia nesse quarto
terminou.

– Pois eu penso que não, mas agora não é hora de falar disso. Vou
apanhar minhas coisas. Pode me ajudar, mamãe?

Helena recolheu as coisas que ele tinha deixado no banheiro,


enquanto a Júlia espiava debaixo da cama. Sua experiência em
viagens a treinou contra esquecimentos de calçados e chinelos.
De fato, tirou dali um par de chinelos e entregou para o amigo.
Depois de uma inspeção no guarda-roupas, Matheus concluiu que
estava tudo ali.

– Ah – disse ele –, tem uma camiseta e uma calça pendurada lá


embaixo, no varal.

Enquanto eles desciam, Seu Salvador trancou o quarto e apagou


as luzes. Matheus foi até a pequena lavanderia atrás da cozinha,
recolheu uma calça e uma camiseta, que dobrou e colocou dentro
da mochila.

– Vamos, então? Vocês vieram de carro? Não vi nenhum aqui por


perto.

– Ah, sim. Tive a péssima ideia de vir até aqui mais cedo sozinho,
então o carro está parado no outro quarteirão – respondeu o
Floriano, meio sem graça.

– Ótimo, minha casa fica no Horto Florestal, e não é muito longe.


É só me seguirem.

Seu Salvador apagou as luzes, ligou o alarme e trancou a pequena


porta de metal. Enquanto entrava no carro e manobrava, o
pequeno grupo desceu a rua. Pouco depois, estavam a caminho
da casa dele. Matheus ia calado no banco traseiro, ao lado da
Júlia, que estava surpreendentemente quieta.

– Cansado, filho? – Quis saber Helena.

– Um pouco, mãe. Durante o dia aquilo é tranquilo. Só fica mais


agitado mesmo depois das dezoito horas, que é quando o pessoal
chega pro happy hour. É assim que eles chamam, um nome
elegante pra bebedeira.
– Cadê a Angélica? – Perguntou Helena, lembrando-se da moça
que recolheu seu filho dos bancos de um terminal de ônibus.

– Ela está trabalhando. Daqui a pouco o Seu Salvador vai lá


buscar ela no terminal. Ela trabalha das dezesseis à meia-noite.

– Vocês estão namorando? – Quis saber a Júlia.

– Claro que não, tonta. E se estivéssemos?

Recebeu um murro no ombro como resposta.

Seu Salvador manobrou o carro diante de uma casa enorme, numa


esquina. Abriu o portão e fez sinal para o Floriano segui-lo.
Saíram do carro e foram em direção à uma porta aberta, que servia
de moldura para a mulher do Seu Salvador.

– Boa noite – disse ela, se adiantando e cumprimentando Helena


com um beijo no rosto. Fez o mesmo com a Júlia, apertou a mão
do Floriano e beijou o Matheus – Oi, Matheus. Nossa, que rosto
cansado. O Salvador está te explorando?

– Imagina, Dona Valentina. É que hoje é sexta-feira e foi bem


corrido lá.

– Entrem, por favor – disse a mulher, indicando a porta.


Eles entraram e se acomodaram nos estofados indicados pela
dona da casa.

– Querem tomar alguma coisa, uma água, ou suco, talvez?

– Não, Dona Valentina, não se incomode. Acabamos de comer lá


na lanchonete – respondeu Helena. – E nos perdoe por aparecer
tão tarde na tua casa.

– Imagine, aqui todo mundo deita tarde. Daqui a pouco o


Salvador vai buscar a Angélica e ninguém dorme até ela chegar.

Seu Salvador tinha se acomodado numa cadeira estofada do outro


lado da sala e aproveitou a deixa.

– Sei que vocês têm muito o que conversar. Se quiserem, podem


fazer isso enquanto minha mulher e eu vamos buscar nossa filha.

– Não, Seu Salvador – disse o Floriano. – Vocês estão há um mês


cuidando do nosso filho, e como o senhor mesmo disse na
lanchonete, também já sabem de parte da história dele e o que o
motivou a vir pra cá, então nada mais justo que também fiquem
sabendo do motivo de termos viajado até aqui. Aliás, pelo que a
Helena me disse no caminho pra cá, seria bom que a tua filha
também estivesse presente, né, Helena?
– Com certeza, e confesso que não vejo a hora de conhecer a
Angélica.

– Então tá – disse o Seu Salvador, batendo as mãos nos joelhos e


se levantando. – Vou buscar minha filha e já volto.
CAPÍTULO VIII

S eu Salvador ouvia as notícias da noite no rádio do carro, mas


seus pensamentos estavam na família que tinha deixado na
sua casa. Acostumado a lidar com o público, se encantou com a
Helena logo de cara, e concluiu que o Matheus era um rapaz de
sorte em tê-la como mãe. Já o pai, parecia uma montanha
desastrada de músculos. Como alguém maltrata um filho a ponto
de fazê-lo fugir de casa e depois, sem mais nem menos, aparece
como uma assombração na frente dele, sem avisar? Se o menino
tivesse alguma doença cardíaca, concluiu, teria empacotado com
o susto. E a menina ruiva era a criaturinha mais linda que ele já
tinha visto até então, e deu graças a Deus que a filha não tinha por
que concorrer com ela pelo amor do Matheus.

Tão pensativo estava que deu um pulo, quando Angélica enfiou a


cabeça pela janela e o beijou.

– Nossa, papai, assustei você? Estava olhando na minha direção,


então achei que tinha me visto.

– Estava tão longe daqui, Angélica, ou melhor dizendo, estava lá


em casa – disse ele, quando a filha se acomodou no banco e
fechou a porta.
– Hum, e o que tem de novidade lá em casa?

– A família completa do Matheus, Angélica, e mais a namorada


dele, eu acho.

Angélica ficou muda. Sem saber ainda muito bem por que, seus
olhos se encheram de lágrimas, e ela virou o rosto para o pai não
perceber.

– Você acredita que o tal Floriano, que o Matheus acha que não é
o pai dele, apareceu como um fantasma gigante lá na lanchonete
hoje e quase matou o rapaz de susto? Ele desmaiou e teve que ser
levado lá pra cima. Sorte que a Conceição sabia como reanimar
gente e trouxe o coitado de volta.

Angélica só ouvia, pensando em como seria sua reação quando


chegasse em casa. Namorada, disse seu pai? Seria a tal da Júlia
que o Matheus falou?

“E o que você tem com isso, Angélica? Eles cresceram juntos, e


juntos estão a vida toda, e você é só a garota do terminal que
cuidou dele nesses trinta dias”, pensou ela, tentando não soluçar.

Seu pai continuava falando sobre os visitantes inesperados, mas


ela não ouvia. Seus olhos se fixavam nas luzes de mercúrio dos
postes da rua, que filtradas pelas lágrimas, formavam pequenos
cristais prateados.

Aproveitou para enxugar o rosto rapidamente quando seu pai


desceu para abrir o portão da garagem. Baixou o quebra-sol e se
olhou no espelho. Detestaria entrar em casa com os olhos
borrados.

Seu Salvador fechou o portão e ambos se dirigiram para a porta


de entrada, que estava aberta e com a Dona Valentina, de novo,
fazendo as vezes de um quadro. Angélica cumprimentou a
madrasta com um beijo e tentou aparentar alegria.

– Boa noite, Dona Valentina! Ora, ora, então temos visita? – disse
ela, deixando a bolsa sobre um aparador de metal e dirigindo-se
em direção das pessoas reunidas na sala, que se levantaram todas
juntas.

– Oi, Matheus, que cara de sono – disse ela, beijando o rosto do


rapaz pela primeira vez. Em seguida foi até a Helena.

– Oi, Angélica, boa noite. Então você é o anjo que cuidou do


nosso filho esse tempo todo? – disse Helena, e abraçou a garota,
comovida. De repente, começou a chorar um choro silencioso e
reconfortante. Um sentimento de imensa gratidão invadiu seu
peito e ela soube que seu coração estaria unido ao da garota para
sempre. Afastou-se e pegou o rosto de Angélica entre as mãos. –
Você viverá no meu coração para sempre, Angélica.

Angélica enxugou as lágrimas, que agora escorriam pelo seu rosto


em liberdade, com as costas das mãos, e se dirigiu ao gigante, que
ela concluiu ser o tal Floriano.

– Oi, e o senhor é o pai do Matheus, né?

Floriano abraçou a garota, que quase sumiu entre seus braços


musculosos, e a apertou contra o peito, sem se importar que o pai
dela também estava ali. Não conseguiu falar nada, apenas deitou
o rosto sobre a cabeça dela.

– Não consigo respirar... – Ela disse, e todos começaram a rir.

Depois de se soltar do Floriano, foi até a Júlia e sorriu


timidamente para aqueles olhos verdes incríveis.

“Deus, como ela é linda!”, pensou, antes de abraça-la.

“Ela se apaixonou pelo Matheus”, pensou a Júlia, e sorriu para o


amigo do outro lado da sala.

– O Matheus já te falou que eu acho os ruivos as criaturas mais


extraordinárias que Deus criou?
– Veja só, Angélica – disse a Júlia, arrancando um pedacinho da
pele do braço, bronzeado pelos quinze dias tostando debaixo do
sol do Rio de Janeiro. – A coisa extraordinária está trocando de
casca, como as cigarras.

Novas risadas, e todos se sentaram. Angélica se acomodou no


braço do sofá, perto da Helena.

– Quer dizer então que todo mundo vai participar do piquenique


que faremos no domingo? – disse ela, tentando quebrar o clima
meio tenso que se instalou.

– Infelizmente, não, Angélica – disse a Helena. – Amanhã, ou


melhor, hoje mesmo, temos que voltar para Curitiba, senão perco
meu emprego. Estou há três dias sem aparecer no supermercado,
e mesmo tendo avisado que estaria cuidando de problemas
pessoais, não convém abusar. Mas esteja certa de que viremos
aqui de novo visitar vocês. Bom, acho que o Floriano tem algo
para nos contar, né, querido?

Floriano pediu um copo de água, que foi servido pela Angélica, e


bebeu todo o conteúdo antes de começar a falar.

– Antes de mais nada, quero agradecer de coração a gentileza que


vocês tiveram em acolher o Matheus. Creio que a Helena tem esse
mesmo sentimento, e também peço perdão por ter sido o causador
de toda essa confusão. O que vou contar aqui só é de
conhecimento da minha esposa, e se no fim da história houver
algum sentimento de revolta da parte do nosso filho, eu vou
entender. Quando eu tinha a idade do Matheus, vivia me
envolvendo em confusões e brigas. Me achava o bonzão da
cidadezinha em que morava, e várias vezes minha mãe foi me
buscar na delegacia. Até que um dia, eu e mais dois amigos
ficamos sabendo que um rapaz da cidade tinha sido obrigado a se
casar, aos dezessete anos, por ter engravidado a filha de um
comerciante. Não sei aqui, mas lá no interior de Goiás isso é
quase um crime. A gente, com medo de passar pela mesma
situação, tomamos todas numa noite, e de madrugada chegamos
embriagados no hospital regional, pedindo pra falar com o
médico de plantão. A moça da recepção ameaçou chamar a
polícia, então inventamos uma história cabeluda de doença grave.
Por fim, fomos atendidos pelo tal médico, e contamos nossa
intenção de cortar aquilo que gera filhos.

Esperou as risadas cessarem antes de continuar.

– Ele ficou uma fera, mas no fim, concordou. Disse que faria a
cirurgia de graça, que era para atender a um tal de controle de
natalidade. Chamou um enfermeiro, fez a gente assinar uma
declaração tirando a culpa de cima dele e começou a cirurgia. Fez
um corte naquele lugar, mostrou pra gente o algodão cheio de
sangue e mandou o enfermeiro costurar. Deu algumas
recomendações sobre não fazer esforço nem andar a cavalo por
quinze dias. Quando a bebedeira passou, caiu a ficha sobre a
besteira que eu tinha acabado de fazer. Infelizmente, o Matias e o
Leonardo acabaram sendo atingidos em cima de uma moto por
um motorista bêbado, e morreram. Eu guardei segredo daquilo
por anos, até que um dia, quando minha mãe achou que eu estava
passando da idade de me casar, contei pra ela o que tinha feito.
Se fosse mais novo, teria tomado uma surra, tamanha a raiva que
ela ficou. Bom, pra resumir, eu decidi que não me casaria, ou só
faria isso se encontrasse alguém que não quisesse ter filhos. Só
que conheci a Helena e me apaixonei perdidamente. Decidi que
me casaria com ela, estéril ou não, mas fui um covarde em não
ter coragem de contar pra ela sobre a minha situação, apesar da
insistência da minha mãe. Tudo ia muito bem, até que um dia ela
me contou, feliz da vida, que estava grávida.

Pediu mais um copo de água, para ter tempo de conter a emoção


e a dor da lembrança.
– Imaginem como eu fiquei – disse ele, depois de um tempo de
cabeça baixa – sabendo que tinha feito uma cirurgia para não ter
filhos e recebo a notícia da gravidez da mulher que eu mais amo
nesse mundo. Meu mundo veio abaixo, mas eu pensei: você foi
um covarde em esconder dela que era estéril, então seja um
covarde e corno, que são coisas que combinam. Desculpem-me
se estou tratando de um assunto desses na frente de três crianças,
Matheus, Júlia e Angélica. Vocês são adolescentes, lógico, mas
essa história é pesada demais, até pra mim.

– Bom, decidi que não iria me separar da minha esposa, até


porque ela tinha sido a mais prejudicada na história. Mas não
consegui amar o filho dela, que era assim que eu pensava, que era
filho dela, apenas. Comecei a passar mais tempo longe de casa do
que precisava, só para não ver o menino. Só que ele cresceu e se
tornou um adolescente, e a negação acabou em ira, até que acabei
agredindo o Matheus por três vezes.

Já que todos estavam chorando, ele não se envergonhou de chorar


também. Aliás, a vergonha que estava sentindo era tanta que só o
amor que sentia pela esposa o impedia de sair correndo porta
afora.
– Vou abreviar a história, porque estou sentindo náuseas e acho
que vocês também. Quando liguei pra casa durante uma viagem
e a Helena me disse que o Matheus tinha vindo pra São Paulo
passar as férias com a Célia, eu soube que ele tinha fugido. Não
disse nada a ela, mas eu tive certeza disso, sabem por quê? Porque
era o que eu faria se estivesse no lugar dele. Só a morte deve ser
pior do que a rejeição. Só que até quinze dias atrás, a Helena não
sabia do meu problema. Numa viagem que fiz até Goiás, passei
em casa para leva-la comigo. Ela tinha acabado de receber uma
carta do Matheus, em que ele dizia o que sentia em relação a mim,
e sua decisão de nunca mais voltar. Foi nesse dia que eu contei
pra ela que tinha feito vasectomia – esse é o nome da cirurgia –
quando era garoto. A reação dela me deixou atordoado, a ponto
de achar que fosse enlouquecer. Fui viajar sozinho e, já perto da
minha cidade natal, um caminhão desgovernado entrou na lateral
onde a Helena estaria, se tivesse ido viajar comigo. Vi naquilo a
providência de Deus, e mais ainda quando descobri que tinha sido
levado ao hospital onde a minha irmã é enfermeira. Quando meus
pais foram me visitar, minha mãe soube que a Helena não estava
bem e perguntou se seria “aquilo” o motivo. Daí tive que contar
pro meu pai e pra minha irmã a besteira que tinha feito. Só que,
como diz o ditado, Deus escreve certo por linhas tortas. Minha
irmã pediu que lhe trouxessem a minha ficha de quando eu
passava em consulta naquele hospital e achou grampeada nela a
folha que eu vou ler pra vocês.

Tirou do bolso a folha que continha a sua autorização para a


cirurgia e a declaração do médico dizendo que tudo não tinha
passado de uma farsa. Podia sentir a sensação de alívio que tomou
conta do ambiente depois que ele leu a frente e o verso do papel.
Sem conseguir encarar os presentes, ficou olhando para as
palavras, como que se perguntando o que elas estavam fazendo
ali. O que viria a seguir? Seria odiado? Ou pior, teria que aceitar
o mesmo sentimento de desprezo que o filho sofreu? Sua
salvação, ou absolvição, veio de onde menos se esperava.

Matheus deu uma tossida nervosa e perguntou:

– Terminou, Floriano? – diante da concordância de cabeça do pai,


prosseguiu: – Eu nunca tive dúvidas de que sou teu filho, sabe por
quê? Porque eu tenho certeza absoluta de que jamais a minha mãe
trairia alguém, seja lá quem for. E no fundo, no fundo, eu acho
que você também tinha essa certeza. Só que se eu estivesse no teu
lugar, pensaria o mesmo, afinal a coisa da cirurgia foi tão real,
pelo que você disse. Sabe o que mais me dói, no fim das contas,
Floriano? É por não ter sido capaz de fazer você me amar, apesar
de tudo. Eu sentia o desprezo, mas achava que a culpa era minha,
então procurava ser o melhor aluno e o melhor filho que um pai
gostaria de ter. Fico feliz por você ter resolvido essa questão com
a minha mãe, mas não tenho como prometer que você terá em
mim um filho. A gente pode tentar ser amigos, e quem sabe a
coisa evolui, quando curarmos todas as nossas feridas, né?

– Tudo o que eu venho pedindo a Deus desde que soube desse


papel é que Ele nos conceda a felicidade de ter você de volta. E
espero que esse mesmo Deus me dê a alegria de um dia ouvir você
me chamar de pai.

– Bom, pessoal – disse o Seu Salvador. – Me sinto privilegiado


por fazer parte de uma história com final feliz tão bela como essa.
Confesso que não vinha conseguindo dormir direito depois que o
Matheus nos falou que não tinha a intenção de voltar pra casa.
Como eu disse a ele no dia, se a minha Angélica, por qualquer
que fosse o motivo, resolvesse fugir de casa, eu acho que morreria
no dia seguinte, de desgosto. Penso que agora podemos dormir
com o coração mais leve, e com a certeza de que amanhã será um
novo dia. Minha esposa já preparou os quartos onde vocês irão
dormir, e se quiserem tomar um banho antes, temos toalhas
limpas.
CAPÍTULO IX

A casa do Seu Salvador era uma construção antiga e grande,


com quatro quartos, incluindo o que era destinado à
empregada. Como eles não tinham essa pessoa na casa, o local foi
transformado numa espécie de quarto de estudos da Angélica, que
passava horas ali estudando, e para não incomodar os pais,
acabava dormindo por lá mesmo. Foi nesse quarto que Matheus
foi instalado, e ele podia sentir a presença da menina em todos os
objetos. Quando deitou a cabeça no travesseiro, morto de
cansaço, seu sono foi embalado pelo perfume dela, que tinha se
impregnado na fronha.

Júlia ficou no mesmo quarto da Angélica, para onde o Seu


Salvador levou o sofá-cama que ficava no seu quarto. Floriano e
Helena ocuparam o outro quarto da casa, destinado às visitas. O
efeito de algumas horas na estrada, viajando, somado às fortes
emoções pelas quais tinham passado, fizeram-nos cair num sono
profundo e sem sonhos.

Angélica também queria pegar logo no sono, mas sua


companheira de quarto tinha algumas perguntas. Na sua cabeça,
podia ser que na manhã seguinte não tivesse tempo de faze-las, e
eram importantes. Muito importantes.

– Angélica, como foi que você esbarrou no Matheus?

– Ele estava meio perdido lá no terminal onde eu trabalho. Vi


quando desceu do ônibus e, ao invés de fazer como todo mundo
e sair da plataforma, ficou lá parado. O ônibus foi embora de novo
e ele continuou lá, parado e olhando para o nada. Perguntei se ele
estava perdido e ele me disse que não, só tinha chegado tarde
demais para ir procurar a Célia, que até então eu não sabia de
quem se tratava.

– E como ele acabou na sua lanchonete?

– Quando subi pra tomar um lanche antes de ir embora, eu o


avistei deitado numa fila de bancos atrás da praça de alimentação.
As normas do lugar não permitem que pessoas durmam nos
bancos, então eu fui até lá para acorda-lo. Quando mexi com ele,
advinha o que ele disse?

– Não faço ideia.

– “Para, Júlia, está me machucando”.

– Sério?!
– Sim, prendeu minha mão e resmungou essas palavras. Como eu
estaria de folga no dia seguinte, me candidatei para ajudá-lo a
encontrar o endereço da Célia. Ele foi conosco para a lanchonete,
onde passou a noite. É um lugar sossegado, e servia de dormitório
para um antigo funcionário do meu pai.

– Eu vi, é bem ajeitado mesmo – diante do olhar de surpresa da


Angélica, ela explicou. – Foi pra lá que o teu pai levou o Matheus,
depois do Floriano quase ter matado ele de susto.

– Ah, bem, no dia seguinte fomos procurar a Célia e descobrimos


que ela tinha morrido. Conversei com o meu pai na volta e sugeri
do Matheus passar as férias ganhando algum dinheiro. Daí fiz o
convite dele ficar e ele aceitou. Mas eu já sabia que ele ia aceitar.

– Por quê?

– Porque eu sabia que ele estava fugindo de alguma coisa. Talvez


você não vai entender, mas no meu trabalho eu sou treinada para
descobrir adolescentes fujões. É só saber fazer as perguntas certas
e ler as respostas nos olhos deles.

– Eu ia me dar bem nisso...

– Tinha esperança de que no fim ele se abriria comigo e nós


encontraríamos uma maneira de convence-lo a voltar pra casa.
Pois foi exatamente o que aconteceu, mas graças a Deus vocês
chegaram.

– E quando foi que você se apaixonou por ele?

Angélica ficou um tempo parada, olhando dentro daqueles olhos


verdes. Não ficou chateada com a pergunta, mesmo porque não
tinha maldade nenhuma nela. E, sendo verdade, por que negar?

– Aos domingos, depois do meu pai fechar a lanchonete, o


Matheus ia comigo e com a Juliana no Horto Florestal andar de
bicicleta. Depois de um tempo, ele começou a ensinar a gente a
andar de skate. E foi numa dessas aulas que eu quase levei um
tombo feio, se ele não tivesse me amparado. Isso e mais o seu ar
de desamparo na volta da casa da Célia, dentro do metrô,
despertou em mim um carinho imenso por ele. Não sei dizer se
isso pode ser chamado de paixão. Não é engraçado, como a gente
escolhe alguém pra cuidar de nós como se fosse nosso herói?

– Sei bem o que é isso, Angélica. Talvez você não saiba, mas uma
vez o Matheus se envolveu numa briga com um garoto que tinha
o dobro do tamanho dele, pelo menos na largura, pra me defender.
Mas foi só quando resolvi escrever uma carta pra ele, tentando
convence-lo a voltar, que descobri o quanto eu o amo. Qual de
nós será a feliz escolha dele, né, Angélica?
– Não haverá escolha nenhuma, Júlia. Isso já foi feito há muito
tempo, e ele escolheu você. Vamos dormir?

Quando a Helena, o Floriano e a Júlia acordaram de manhã, só


encontraram a Dona Valentina na casa.

– Ué, cadê todo mundo?

– Já foram trabalhar, senhor Floriano. Meu marido deixou um


recado aqui pra vocês – disse a Dona Valentina, estendendo um
bilhete.

“Venham tomar o café da manhã na lanchonete. O Matheus


insistiu em vir pra cá”.

Despediram-se da dona da casa, e depois que Helena trocou os


números de telefone com ela, saíram em direção à lanchonete.
Vários trabalhadores estavam ali tomando o café da manhã, mas
conseguiram se acomodar na mesa que a Angélica sempre usava
com o Matheus, no fundo da lanchonete.

Como no dia anterior, Matheus se ocupou dos pedidos deles,


como se nada tivesse acontecido. A Angélica levou a comida até
a mesa e os cumprimentou.

– Bom dia, pessoal! Conseguiram dormir bem? Você está com


um ar cansado, Helena. Está se sentindo bem?
– Estou sim, Angélica. Acho que o peso de tudo o que passamos
caiu sobre os meus ombros só agora. Mas, graças a Deus, tudo se
encaminha para um final feliz, né, Floriano?

– Hã? Ah, sim, com certeza – disse o Floriano, que estava


observando o trabalho do filho. – Estou um pouco preocupado em
como vamos embora.

– Ué, pelo mesmo caminho em que viemos, amor – disse a


Helena.

– Você não entendeu. O Matheus age como se nada tivesse


mudado.

– Ah, é por isso? – Perguntou a Angélica. – Não se preocupem.


Ele fica tão envolvido com o trabalho que parece alheio a tudo.
Na hora de partir, ele será o primeiro a cair fora, vocês vão ver.
Já sabem a que horas pretendem viajar?

– Tão logo seja possível, Angélica. Estamos muito longe de casa,


e a Júlia está conosco.

Por volta das nove horas o movimento diminuiu, e o Matheus


juntou outra mesa a deles e se sentou, com a Angélica ocupando
o outro lado.
– Preciso contar uma coisa pra vocês – disse ele. Como ninguém
falou nada, continuou. – Eu já fiz a minha matrícula na mesma
escola onde a Angélica e a Juliana estudam. Só falta levar uma
autorização assinada por um responsável, que antes de tudo
acontecer, seria o Seu Salvador.

Um silêncio pesado caiu sobre a mesa. Ninguém sabia se aquilo


era só informação ou uma decisão. Até que a Júlia se manifestou.

– Matheus, essa história que você está contando terminou ontem,


lembra? Daqui a pouco nós vamos embora, e eu tinha certeza de
que você viria conosco. Me enganei?

– Pensei muito essa manhã, quando acordei. Fico feliz que tudo
tenha se resolvido, que não há mais dúvidas sobre a paternidade
do Floriano e tudo o mais. Acontece que algumas coisas também
já se resolveram por aqui. E, além disso, não posso deixar o Seu
Salvador na mão.

Júlia, durante todo o tempo em que o Matheus falava, observava


a reação da Angélica com aquelas palavras. Na conversa que
tiveram antes de dormir, ela ficou com a impressão de que a moça
tinha mais maturidade do que ela e o Matheus juntos, e sua
esperança vinha dali. Se a paixão dela pelo seu amigo falasse mais
alto, estariam perdidos. Não se decepcionou.
– Matheus – começou a Angélica, pondo uma das mãos sobre as
dele –, agora é o momento em que você precisa usar mais a razão
do que o coração. Vocês estão começando a construir uma nova
vida familiar hoje, e todo mundo vai precisar ajudar nessa
construção. Durante dezesseis anos você carregou um fardo
muito pesado, e ele foi tirado das tuas costas ontem, quando o teu
pai abriu o coração e nos mostrou o quanto ele quer recuperar o
tempo perdido. Escolas existem em todo lugar, e lá, inclusive,
você não vai precisar de matrícula. E meu pai vai ficar muito feliz,
mesmo perdendo um funcionário tão aplicado. Resumindo, você
precisa renunciar ao que tinha planejado e voltar com eles pra
casa.

Matheus ficou um longo tempo olhando para aqueles olhos tão


sinceros. Já tinha feito isso outras vezes, mas agora ele via algo
mais ali. Via uma expressão carregada de amor por ele e soube
que, se alguém estava renunciando ali, era ela. E viu também as
lágrimas brotando aos poucos, inundando os olhos e escorrendo
pela face da amiga. Levou a mão dela aos lábios e beijou-a,
ternamente.
EPÍLOGO

A s despedidas foram demoradas e cheias de emoção. Ali


estava se formando um vínculo que duraria para sempre, e
Helena iria fazer de tudo para que fosse assim. Júlia, sempre tão
brincalhona, estava se segurando para não chorar, mas só
conseguiu até abraçar a Angélica.

– Vou amá-lo enquanto viver – cochichou ela no ouvido da outra.


– Por mim e por você. Eu gosto de escrever cartas. Posso escrever
pra você, Angélica?

– Claro, terei imenso prazer em recebe-las. E prometo que vou


responder todas – respondeu Angélica. Em seguida abraçou o
amigo, que significava tanto para ela.

Matheus beijou-lhe os cabelos e disse, comovido:

– Angélica, já disse uma vez e repito. Você é um anjo que Deus


mandou pra cuidar de mim. Obrigado por tudo, minha amiga
querida. Quero que me prometa que vai passar as férias de
dezembro na nossa casa com a tua família. E leve a Juju também.
Promete?
– Gostaria muito, Matheus, mas não posso prometer. Me inscrevi
num concurso de bolsas de estudos no Canadá pelo colégio, e se
eu ganhar vou ficar um ano fora. Mas se não der certo eu vou,
com certeza. Também quero que me prometa uma coisa.

– O que é?

– Que você vai se esforçar pra chamar o Floriano de pai. Um dia


você também terá filhos, então verá a alegria que irá sentir quando
ouvi-los te chamarem de pai. Promete?

Matheus tomou o rosto dela entre suas mãos e disse, depois de


dar um beijo na sua testa.

– Prometo, Angélica, por você.

Quando o carro deles virou a esquina e desapareceu, Seu Salvador


ouviu um soluço atrás de si. Virou-se e tomou a filha nos braços.

– Um dia você vai encontrar um garoto tão especial quanto o


Matheus, filha. E sabe por que eu sei disso? Por que Deus sabe
que você merece.

FIM

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