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Robert Frost
PRÓLOGO
T á perdido?
– São Paulo, é? E desde quando você tem uma avó em São Paulo?
Ele se esforçou para fugir daqueles olhos verdes que pareciam ler
sua alma.
– Oras, a mãe do meu pai. Ela mora lá.
Achava que a resposta tinha acabado com o assunto, mas ela não
se deu por satisfeita.
Era tudo o que ele não queria. Sua mãe já tinha dito, sem
conseguir segurar o choro, que não iria participar daquilo, embora
entendesse as razões. Logo, acompanhá-lo até a rodoviária seria
pouco provável. E sem ela ficaria ainda mais difícil enganar a
menina.
Ele ainda não sabia, mas sua fuga e as consequências dela iriam
deixar marcas para o resto da vida. Não só nele, mas em todas as
pessoas que ele envolveu na sua decisão.
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
– Helena, você vai acabar sumindo de tão magra. Por que não
leva uma fruta pra comer no caminho?
– Acho que você devia dar uma chance pra ele, Lena.
– Bom dia, Dona Helena! Já disse que hoje você está ainda mais
bonita?
– Bom dia, Seu Carlos – respondeu Helena, sem olhar para ele,
mas com os olhos fixos no amigo.
– Quieta, Mariana!
– Ano que vem você completa dezoito anos e o delegado vai ter
menos paciência com você – continuou a mãe. Antes que você
passe alguns anos na cadeia, melhor arrumar um emprego. Vou
falar com teu pai, ele deve saber de alguém que esteja precisando.
– Sei não, mas acho que esse Floriano está tomando as tuas dores,
Lena – disse Célia certo dia.
– Não sei de onde você tirou isso, mas a última coisa de que
preciso é de dois marmanjos duelando por mim, se for o caso.
Não sendo, prefiro distância dos dois.
– Célia, que tal buscar um copo de água pra sua amiga do peito?
Entendeu que a parte final do bilhete era uma dica de que não
seria importunada. Mesmo assim, sentiu-se um pouco
decepcionada. Odiava bares, pois eles lembravam as brigas que
tinha assistido na comunidade, apesar de que o tal Galeto’s ficava
na “parte boa” do bairro, como costumavam dizer suas colegas de
trabalho. Por outro lado, se recusasse o convite, causaria no rapaz
a impressão de que era uma fresca. Deveria levar alguma amiga?
Ir sozinha não seria uma demonstração de interesse?
– Célia, por favor! Preciso que isso fique entre nós, então
controle-se!
– Que mundo pequeno, Floriano. O que você veio fazer nesse fim
de mundo? Jeito de falar, meninas. Não me levem a mal.
Helena olhou para a Célia, sem graça pela amiga ficar só.
Na segunda vez que saíram, dessa vez sem Célia, ele a pediu em
namoro.
– Sim, aceito.
CAPÍTULO V
A
lô!
– Floriano! Puxa, que alegria em ouvir tua voz. Achei que você
tivesse se esquecido da nossa existência.
– Sério? E o que é?
– Em setembro, dia 26. Mas vou querer que vocês venham pra cá,
Mariana. Ficaria muito dispendioso pra mãe e os irmãos dela irem
pra Goiás.
– Claro que nós vamos, quer dizer, vou ter que dar um cano na
Santa Casa, mas isso é o de menos. Peraí, a mãe quer falar com
você. Um beijo, e fala pra Helena que ela já mora no meu coração.
– Oi, Floriano. Tudo bem, meu filho? Que história mais maluca é
essa?
– Ainda assim, não é justo – um falsete na voz o fez saber que ela
estava prestes a chorar.
– Nossa, mãe, será uma benção ter a senhora aqui. A Helena vai
ficar bem feliz também.
– Combinado. Vou falar com teu pai quando ele chegar da cidade.
Na casa onde você vai morar tem telefone?
– Não, mas devo viajar nos próximos dias pra Santa Catarina.
Quando voltar eu ligo, pra atualizar as coisas.
– Se cuida, meu filho. E que Deus tenha piedade de nós.
– Passei toda a minha vida achando que estava pagando caro pelo
meu erro – disse, por fim, com um suspiro profundo. Só tive
alguns namoros relâmpagos, fugindo de um compromisso mais
sério quando percebia que a garota estava envolvida demais. Pelo
jeito, a conta só chegou agora.
– Sim, e você terá que dividir com a Helena, se não quiser pagar
essa sua conta com juros e correção.
Sua mãe levantou-se e foi até a cozinha, para que o filho não a
visse chorar.
– No fim das contas acho que Deus me ouviu, mãe. Daqui a quatro
anos nosso casamento estará mais sólido e a Helena poderá
encontrar uma solução que a gente não enxerga hoje.
Foi com esse ânimo que Floriano foi para o compromisso que
selaria seu destino.
Dete era a forma abreviada que seu pai usava para se referir à
mulher.
– Quem é Dete?
– Minha mãe.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO I
T á perdido?
– Hum, pois então deve ser uma decisão difícil, já que você está
há uns vinte minutos aí, parado, olhando pro nada.
– São vinte e três e trinta e cinco. Onde você vai é muito longe?
– Posso saber onde é isso? Quem sabe nem fica tão longe.
– Claro – e tirou o papel que sua mãe lhe dera do bolso de trás da
calça. Estendeu para a garota.
– Célia, Rua Professora Heloísa Carneiro, 86, apto 21, Vila Santa
Catarina. Só isso, não tem um telefone?
“Não, ela nem sabe que vim pra cá”, ele pensou, e disse em voz
alta:
– Sim, mas não falei o dia certo.
– Então tá, acho que é isso mesmo o que eu vou fazer – e estendeu
a mão para pegar o papel de volta. – A propósito, me chamo
Matheus, com tê agá. Obrigado pelas informações.
– Não, não pode. Tive uma ideia. Amanhã é meu dia de folga e
decidi ajudar você a encontrar o tal endereço. Vem, meu pai está
lá embaixo me esperando pra me levar pra casa. Ele tem uma
lanchonete no Mandaqui e o cozinheiro dormia num quarto em
cima, mas como ele pediu a conta e voltou pra Bahia, você pode
dormir lá.
“Não, vou procurar uma escola aqui e nunca mais voltar”, pensou,
e disse em voz alta:
– Meu pai é de boas, ele confia na filha que tem. E você não é um
assassino, né?
– Você não sente que está sendo meio que sequestrado pela minha
filha maluca?
– Bom dia, acho que desmaiei, porque não ouvi carro nenhum.
– Meu café da manhã sempre foi pão com manteiga e café com
leite. Às vezes minha mãe conseguia me fazer comer presunto e
queijo, mais uma fruta. O problema é que eu estava sempre
atrasado pra aula.
– Qual?
Na verdade a Célia nem sabia que ele iria aparecer na sua casa.
Sua mãe só se comunicava com a amiga por cartas, e as últimas
que trocaram tinha sido há dois meses. No momento da sua
decisão de fugir, nada disso foi levado em conta. Na sua cabeça
o plano era bem simples: pegaria o ônibus até São Paulo,
encontraria meios de chegar até o endereço que a mãe lhe dera,
contaria sua história para a Célia, que o adorava, ela entenderia
seu lado, tentaria convencê-lo a voltar para casa e ele soltaria a
bomba, que iria convencê-la de que ele estava absolutamente
certo em fugir.
– Bom, a gente vai até lá. Se ela não estiver em casa, a gente
pergunta pra algum vizinho se ela volta logo. Senão, é só deixar
um bilhete na porta avisando que vou voltar amanhã, se eu puder
passar mais uma noite aqui, lógico. Caso contrário, volto pra casa
– mentiu.
– Não, obrigado.
– Caminhoneiro....
– Ah, entendi.
– Claro que não, só penso que não precisa estudar pra ser um.
Basta ter a carteira de motorista certa. Agora, sério. Já decidiu o
que quer, para o caso de não ser caminhoneiro?
– Dezesseis.
– Venha, vamos para o final. Ali o vagão não fica tão cheio. As
pessoas preferem os do meio pra poderem sair mais rápido da
estação.
De fato, nas pontas não tinha muita gente. Uma ventania anunciou
a chegada do trem. Quando a porta se abriu, Angélica segurou seu
braço.
– Espere um pouco. As pessoas vão correr em busca de um lugar
vazio. Parecem um bando de idosos.
– Ele nunca foi com a gente – uma sombra cobriu o seu rosto e
ele se calou.
– Venha, a gente tem que sair pelo outro lado. Você está
decorando o caminho?
– Nossa, isso levanta até defunto. Ainda bem que já são quase
nove horas e não deve ter ninguém dormindo.
– Minha mãe e ela trocavam cartas, mas eu mesmo não falo com
ela desde que se mudou pra cá. Por quê? – Ele começou a sentir
uma sensação ruim no estômago.
1
TAP Transportes Aéreos Portugueses – Companhia aérea com sede em
Lisboa.
– Sinto muito, Matheus, sinto muito, mesmo.
“Tava na cara que isso não ia dar certo. Fui um idiota, fazendo as
coisas sem pensar. Bem que a minha mãe falou que seria um salto
no escuro, já que ela nem sabia se a Célia ainda morava no mesmo
endereço.”
“Por que será que as pessoas boas morrem tão cedo? Tem tanta
gente ruim nesse mundo que fica por aí, enchendo o saco dos
outros até ficar gagá. A Célia era quase um anjo. Deve ser isso,
um anjo que voltou pro céu. Podia pelo menos ter vivido mais um
pouco e me ajudar a sair dessa enrascada. Coitada, melhor não.
Ela ia morrer mesmo era de pena da minha mãe quando soubesse
de tudo. Agora eu tô na roça. Voltar pra casa, nem pensar, mas
onde eu vou ficar? Nossa, podia ter sido pior! E se a Angélica não
tivesse me trazido pra cá? Essa garota é incrível. Catar um
desconhecido num terminal de ônibus e trazer pra casa. Vai ver,
é o anjo da Célia cuidando de mim. Obrigado, Deus. Fico te
devendo mais essa.”
– Pai! Vai assustar o Matheus! Não liga pra ele, Matheus. Quer
ajudar a gente aqui?
– Cansado, rapaz?
– Que proposta?
– Bom, isso é o de menos. Você vai ficar aqui ou vai lá pra minha
casa?
– Posso ficar aqui? Vou me sentir melhor. Você não sabe como
estou feliz por isso.
– Como você quiser. Engraçado, acho que estou mais feliz do que
você! Pai! O Matheus aceitou, eu não disse?
“No final das contas, acho que acabou sendo melhor do que eu
esperava. Por mais que a Célia gostasse de mim, ela já tinha os
pais da moça pra cuidar. E quando eu dissesse que não ia mais
voltar pra casa depois das férias, eles não iriam aceitar. Aqui, não.
Tenho certeza que a Angélica vai me entender. E se o tal Chicão
morava aqui e trabalhava com o Seu Salvador, por que eu não
posso também?”
– Alô?
– Mãe, sou eu. Tudo bem? Acordei você?
– Tenho fé em Deus que um dia tudo isso vai acabar. Teu pai
esconde algum segredo, e para piorar eu acho que a mãe dele
também sabe, só que ela está sendo covarde e não quer me contar.
E a Mariana fica no meio da guerra, sem saber pra qual lado
torcer. Ah, antes que eu me esqueça. Aquela tua amiga ruiva
esteve aqui hoje.
– Júlia!
– E?
– E, nada. Eu disse que no fim do mês você estaria de volta e
poderiam até casar, se quisessem.
– Mãe!
Júlia. Lembrou-se de que não tinha pensado nela uma única vez
depois que retornaram da casa da Célia. Agora, deitado na sua
cama, a imagem da menina preencheu sua mente. Se sentia mal
em ter mentido para ela, e mais ainda depois de saber que ela tinha
conseguido arrancar a verdade da sua mãe. Sorte sua que ela não
ficou sabendo que as férias eram, na verdade, uma desculpa para
a sua fuga de casa. Casar, sua mãe tinha dito. Lembrou-se de
quando, ainda na primeira série, queria que a menina prometesse
se casar com ele quando crescessem. E riu de novo com a resposta
dela: eu não, e se você ficar feio quando crescer? Lembrou-se da
Angélica. Embora fossem quase da mesma idade, o fato de ela ser
dois anos mais velha e já ter um pouco da experiência de um
adulto despertava nele um sentimento que teria por uma irmã
mais velha, se tivesse uma. Apesar que ele tinha sentido uma
coisa boa nas duas vezes em que ela o abraçou. Proteção?
Segurança? Não sabia muito bem o que era, e nem deu tempo de
saber, porque caiu num sono profundo e só acordou às seis horas.
Tinha combinado com o Seu Salvador em acordar mais cedo e já
deixar a máquina de café aquecendo a água. Às seis e meia ele
ouviu um carro parando na rua e, logo depois, pai e filha entraram
na lanchonete.
CAPÍTULO IV
– Sim, ouvi o Carlão falar pro meu pai que isso dá muito dinheiro.
– Que eu saiba isso dá é cadeia, isso sim.
– Sobre?
– Sobre tudo, oras. Ela te contou alguma coisa sobre ele e o pai?
– Nem todas.
– Não, mãe, eu não achei. Tive certeza. Qual pai brinca de luta
livre com o filho e deixa marcas roxas nele?
– Júlia, sei que você tem um grande carinho pelo Matheus, e sei
também que você faria de tudo para ajuda-lo, se fosse o caso, mas
nós não temos o direito de entrar nos problemas das pessoas sem
que elas queiram. Não sei se você me entende, mas, mesmo eu
sendo amiga da mãe dele, ela não se abre comigo, o que significa
que alguma coisa no relacionamento deles causa uma dor que ela
não quer dividir com ninguém.
– O quê?!
– Pra mim será, Seu Salvador. Aliás, das que eu passei até hoje
essa vai ser a mais legal de todas.
– Alô?
– Oi, Angélica?
– Quem é, Juju?
– Legal, vou ficar uma semana no ar, então você pega com o Seu
Henrique, zelador. Ele mora no apartamento onze. Beijos.
– Hã? Ah, não, Juju. Tá tudo bem. Chegou uma carta pra mim na
casa da Célia. Amanhã à tarde vou lá buscar, se o Seu Salvador
me der umas três horas.
No dia seguinte, assim que pai e filha chegaram, ele fez o pedido.
Olá, Matheus. Tudo bem? São dez horas da noite, está chovendo
pra caramba aqui e fazendo um frio dos diabos. Disseram que
amanhã deve nevar no Interior, e sorte minha que meus pais
decidiram passar quinze dias das férias no Rio. Se fizer sol, como
eu espero que faça, vou torrar na areia até ficar parecida com
uma lagosta. Sorte mesmo tem meus irmãos, lá na Austrália.
Te amo.
P.S. Tua mãe autorizou a gente se casar quando você voltar. Ela
não é um amor?
CAPÍTULO VI
– Hum, que chique. Parece que isso vai virar moda, esse ano.
A menina riu e foi lidar com o que tinha ficado da louça do dia
anterior. Sabe-se lá por que, mãe e filha nunca tomavam o café
da manhã na lanchonete. Preferiam toma-lo em casa, talvez na
companhia da família.
Angélica preparou o seu e o do Matheus, como fazia todas as
manhãs, e foram sentar-se na mesma mesa de sempre.
– Não, me conta.
– Pois é.
Esse era o problema. Ele tinha decidido não responder ainda, pelo
menos até contar para a Angélica da sua decisão de não voltar. E,
sem saber se eles o aceitariam ou não, queria manter o endereço
atual em segredo, inclusive da sua mãe. Só que aquela não era a
hora ainda de contar, então desconversou.
– De Curitiba, Paraná.
– Bem, Matheus. Está tudo aqui, só que como você quer estudar
à noite, vai precisar de uma autorização assinada pelo teu pai.
Quando ele já ia dar graças a Deus pela grande sorte, uma voz
soou atrás dele:
Era a Juliana.
CAPÍTULO VII
– Na oitava. Ano que vem vou pro primeiro colegial. E você, vai
estudar em qual série?
– Nossa, que legal. A Angélica vai ficar feliz de saber que você
também vai estudar aqui.
– Promete que não vai contar nada pra Angélica ainda, Juliana.
Não sei se a mudança dos meus pais para cá vai dar certo, e eu
queria fazer uma surpresa. Se a coisa der errado, a gente só vem
no final do ano, e nesse caso eu vou ter que cancelar a matrícula,
entende?
– Vou torcer para que seja aqui. Adorei aprender a andar de skate
com você, e a Angélica também. Seria muito legal a gente
continuar sendo amigos.
Sentiu um pouco de remorso por estar mentindo tanto, mas de
fato sua ideia original seria convencer a mãe a vir embora
também, assim que ficasse claro que ele não iria mais voltar para
Curitiba. Na primeira visita que ele esperava que a mãe fizesse,
iria convencê-la a ficar. O único problema é que ele sabia que ela
adorava o Floriano e jamais se separaria dele.
Não sei o que vai acontecer comigo daqui pra frente. Só Deus
sabe. O que eu sei e tenho certeza é que não vou mais voltar pra
casa. Tomara que a gente volte a se encontrar um dia, e se você
conseguir me perdoar, poderemos tentar ser pelo menos amigos.
Matheus.
P.S. Você ia ficar linda de noiva.
Quero que você saiba, se é que ainda não sabe, que eu confio
totalmente em você. Nunca passou pela minha cabeça que você
tivesse traído o Floriano. O que acontece é que ele não gosta de
mim e ponto.
Te amo, mamãe.
Matheus.
– Será mesmo, Matheus, que você não comeu nada que te fez
mal?
– Quem dera...
– Hã?
– Ela começou a achar que tinha alguma coisa errada assim que
recebeu a notícia da gravidez. Todo homem fica feliz em saber
que vai ser pai, mas ele foi viajar pra Santa Catarina e ficou quase
quinze dias fora. Quando voltava das viagens, ele passava a maior
parte do tempo no bar, bebendo com os amigos. Minha mãe conta
que ele não se embriagava, e nem maltratava ela. Só ficava lá, no
canto dele, pensando a noite toda. Ninguém entendia nada do que
estava acontecendo, e quando minha mãe insistia para ele se abrir,
ele dava um abraço apertado nela, ficava um tempão olhando
dentro dos olhos dela e saia de casa. Quando eu nasci ele estava
viajando, pra variar. A mãe da Júlia fez o parto e estranhou meu
pai não estar lá, mas como sabia que ele era caminhoneiro, deixou
passar.
– Sinto muito por tudo isso que você está passando, Matheus.
Aquele dia que a Angélica te encontrou no terminal e decidiu te
trazer pra cá pode ser considerado um milagre, sabia? E quando
ela me contou que a amiga da tua mãe, a Célia, tinha morrido e
você não tinha mais onde ficar, confesso que eu tive um
pensamento egoísta.
– Papai...
– Pra qualquer lugar, menos pra minha casa. Peço desculpas por
envolver o senhor e a Angélica nessa história. Nunca imaginei
que a coitada da Célia fosse morrer tão nova.
– É verdade.
– Até parece que ela faria isso. Vocês se amam como pai e filha,
já eu...
– Claro.
– Shhhhh, ainda não, Juliana. Não deixa ela escutar. Você tem o
telefone da escola?
O dia transcorreu sem nada de novo. Por volta das quinze horas,
o pai da Angélica levou a filha para casa, como todos os dias. Ela
tomava banho e trocava de roupa antes de o pai deixa-la no
Terminal Rodoviário.
– Não sei ainda, Angélica. Tenho que resolver umas coisas hoje,
e dependendo de como for, eu decido e te falo amanhã cedo.
Pelo menos isso era verdade. Enquanto zanzava pelo corredor, leu
um anúncio sobre bolsas de estudo, mas não era daquela escola,
e sim de uma Escola Técnica Federal.
– Ah, legal, eu dou um jeito de sair do serviço e vou até aí, pode
ficar tranquila. Muito obrigado pela força.
Bom, essa parte estava resolvida. O pior ainda estava por vir, que
seria convencer o Seu Salvador a deixa-lo ficar mais uns dias até
ele conseguir convencer também a mãe.
– Meu Deus, isso não pode ser. Como vou suportar viver sem meu
filho? Uma vez eu já perdi meu pai, que abandonou a família por
causa de outra mulher, e agora isso? Como eu pude ser tão cega
assim, em não perceber o quanto a indiferença do Floriano estava
afetando o estado psicológico do Matheus?
– Que bom, ela está com uma paciente no momento, mas depois
a próxima consulta está marcada só para às 15h. Assim que ela
sair, você pode entrar.
Após alguns minutos que estava ali, ouviu a porta se abrir e uma
mulher com uma barriga enorme sair, acompanhada do marido.
Anne-Sophie os levou até a porta e endereçou um sorriso à amiga
quando a viu.
– O Floriano já sabe?
– Não, porque eu disse que ele foi passar as férias com a Célia.
Faz oito dias hoje que está na estrada, e sabe o que é pior? Talvez
ele desse graças à Deus.
– A Célia não te ligou para saber o que fazer? Como será que ela
está lidando com isso, Helena?
– E por que você tem tanta certeza de que ele não quer mais
voltar?
– Porque ele se matriculou na mesma escola dessa garota e até já
deu uma autorização para o pai dela assinar como responsável por
ele.
– E qual é?
– Que tal a Júlia viajar com você? Eles sempre foram tão amigos
e pode ser que a minha filha ajude você a convence-lo a voltar
para casa.
– Saiba que você sempre pode contar comigo para qualquer coisa
que precisar, Helena.
Por volta das quinze horas ele chegou em Curitiba e dirigiu até
sua casa, na periferia da cidade. Estacionou o caminhão em frente
ao portão e entrou em casa. Como sabia que Helena trabalhava
até as dezenove horas no supermercado, decidiu tomar um banho
e descansar até ela chegar. Pouco antes das dezessete horas ele
acordou com um ruído na sala. Passados alguns instantes a porta
do quarto se abriu sem ruído e ele viu a mulher pôr a cabeça para
dentro e se afastar, tornando a fechar a porta. Ficou feliz em saber
que ele tinha chegado mais cedo, pois assim poderiam conversar
e, se ela concordasse em viajar com ele, daria tempo de ela avisar
no trabalho.
“Sim, e você terá que dividir com a Helena, se não quiser pagar
essa sua conta com juros e correção.”
Por fim, decidiu que a única coisa certa que ele tinha feito naquela
noite foi se lembrar de ligar para a sogra e pedir para que ela
corresse em casa, pois a filha precisava dela urgentemente.
– Claro, né, Dona Dete. Tudo bem com a senhora? Posso falar
com a Helena?
– Eu estou bem, meu rapaz, mas a Helena está de cama. Faz dois
dias que tem febre, e aquela doutora amiga dela esteve aqui e
disse que é “istréis” e eu sei lá que bicho é esse.
– Como assim, de cama? Então eu posso falar com ela, por favor?
– Não, não pode, porque ela ainda tá dormindo por causa dos
remédios que a doutora deu. Ah, peraí, ela tá me chamando.
– Floriano, sou eu, Helena. Ouça bem o que eu vou te falar, por
favor. Você só tem uma maneira de entrar dentro dessa casa de
novo, e vai ser quando vier acompanhado do nosso filho, ouviu?
M
moravam.
eio aturdido com o ultimato dado pela mulher, entrou no
caminhão e se pôs a caminho da fazenda onde os pais
– Como?
– Graças a Deus está tudo bem com você, Floriano. Sente alguma
dor, além do ferimento da cabeça? Não conseguimos saber se
você quebrou algum osso.
– Ok, Mariana. Você ligou para a Helena? Minha mãe já sabe que
estou aqui?
– Alô?
– Helena?
– Não, a mãe dela. Ele precisou ir passar por uma consulta com
aquela amiga médica dela e só vai voltar mais tarde. Quem é?
– Que bom que está tudo bem com ele. Minha filha não anda lá
muito boa das ideias e se o marido morrer a gente não sabe o que
vai ser dela.
– Não, Dona Bernadete, fique tranquila, viu? Está tudo bem com
ele. Um beijo.
Que história era aquela da Helena não estar bem das ideias?
Mariana sempre achou Helena uma pessoa super inteligente, e
aquilo só podia ser o jeito de a mãe dela falar que a filha estava
com alguma indisposição.
– Está tudo bem com ele, mamãe, deve descer para o quarto daqui
a pouco. Aguardem até as quatorze horas, que é quando as visitas
aos pacientes serão liberadas. Mãe, você tem falado com a Helena
ultimamente?
– Não, nem lembro quando foi a última vez que falei com ela. Por
quê?
– Não sei, a mãe dela disse que ela está se tratando por não estar
muito bem das ideias. Sei lá o que ela quis dizer com isso.
“Será que o fato do Floriano ter vindo para casa e a mulher estar
ruim das ideias tem alguma coisa a ver com aquela história lá
dele?”, pensou sua mãe, apreensiva.
– Boa tarde, Sr. Floriano. Que bom que está tudo bem com o
senhor. Podemos fazer algumas perguntas?
– Claro que não. Eu nem tinha almoçado ainda. O outro cara está
bem?
Floriano se lembrou que era para a Helena estar ali, caso ela não
tivesse recebido a carta do filho e eles não tivessem se visto pela
última vez de forma tão trágica. A lembrança trouxe novas
lágrimas aos seus olhos e ele se deu conta da sorte que tivera.
– Floriano – disse sua mãe –, a Mariana ligou pra tua casa e falou
com a mãe da Helena. Ela disse que a filha está se tratando por
não estar muito bem das ideias. Que história é essa, filho? Tem a
ver com aquilo?
Floriano concluiu que ter sobrevivido foi uma chance que Deus
estava lhe dando para consertar as bobagens que tinha feito.
Agora que a Helena sabia do seu ato impensado e do filho ter
fugido de casa, não tinha mais porque esconder do pai e da irmã.
Então, começando pelo dia fatídico em que entrou naquele
mesmo hospital com o Leonardo e o Matias, revelou sobre a
vasectomia. Diante do ar cada vez mais espantado e atônito do
pai e da irmã, contou que escondeu aquilo da Helena, que
pretendia falar tudo assim que ela terminasse a faculdade, mas
que a mulher apareceu grávida meses antes de se formar, da sua
suspeita de que ela o tinha traído, da rejeição imposta ao menino,
dos maus tratos e da sua fuga de casa, até a confissão dele e da
síncope da mulher.
Floriano Peixoto
– Alô?
– Oi, Floriano. Tua irmã ligou aqui anteontem e falou pra minha
mãe que você tinha sofrido um acidente, é verdade? O que
aconteceu?
– Claro que eu tenho, mas onde você está? O que pretende fazer,
Floriano?
– Tudo o que for necessário para voltar para casa com o nosso
filho e poder te abraçar de novo.
– Eu quero ir junto com você, Floriano. Depois de tudo o que
aconteceu, quem garante que você vai conseguir convence-lo a
voltar para casa? Por favor, não me negue isso.
– Ok, meu amor. Faremos como você quiser. E, além disso, tenho
algo para te mostrar que vai acabar de uma vez por todas com
essa situação terrível.
Helena leu a declaração que ele assinou e virou o papel, onde leu
a do médico. De repente começou a rir, de forma meio histérica.
Floriano se assustou com a reação da mulher.
– Devem estar bem, eu acho. Eu, com certeza, estaria feliz da vida
se estivesse na Austrália. Não vejo a hora de encontrar o Matheus,
sabia? Tenho umas contas pra acertar com ele.
– Não tem por que agradecer, minha amiga. Vou ficar aqui
torcendo para dar tudo certo – Anne-Sophie abraçou a amiga e
aproveitou para cochichar-lhe no ouvido. – Quando você voltar,
quero que me conte o que fez para deixar teu marido tão feliz!
– Bom, não sei se essa é uma boa ideia, mas se você acha que sim,
então está combinado. Só não diga nada pra ele sobre o motivo
de estar aqui até a gente chegar, por favor.
– Deixa, Juliana. Vou levar ele lá pra cima, chama tua mãe!
– Por favor, senhor – disse o Floriano. – Esse menino é o meu
filho. A mãe dele está no carro e eu vou busca-la.
– Está tudo bem agora, meu filho querido. Estamos todos aqui
com você, até a Júlia, você viu? – Disse Helena, lançando um
sorriso em direção à menina, que aparentava estar mais calma.
Obrigada por ajuda-lo, senhora? – Perguntou Helena.
– Oi, Júlia. Achei que você ainda estava no Rio de Janeiro. Aposto
como partiu de você a ideia de me pregarem uma peça.
– Pois eu penso que não, mas agora não é hora de falar disso. Vou
apanhar minhas coisas. Pode me ajudar, mamãe?
– Ah, sim. Tive a péssima ideia de vir até aqui mais cedo sozinho,
então o carro está parado no outro quarteirão – respondeu o
Floriano, meio sem graça.
Angélica ficou muda. Sem saber ainda muito bem por que, seus
olhos se encheram de lágrimas, e ela virou o rosto para o pai não
perceber.
– Você acredita que o tal Floriano, que o Matheus acha que não é
o pai dele, apareceu como um fantasma gigante lá na lanchonete
hoje e quase matou o rapaz de susto? Ele desmaiou e teve que ser
levado lá pra cima. Sorte que a Conceição sabia como reanimar
gente e trouxe o coitado de volta.
– Boa noite, Dona Valentina! Ora, ora, então temos visita? – disse
ela, deixando a bolsa sobre um aparador de metal e dirigindo-se
em direção das pessoas reunidas na sala, que se levantaram todas
juntas.
– Ele ficou uma fera, mas no fim, concordou. Disse que faria a
cirurgia de graça, que era para atender a um tal de controle de
natalidade. Chamou um enfermeiro, fez a gente assinar uma
declaração tirando a culpa de cima dele e começou a cirurgia. Fez
um corte naquele lugar, mostrou pra gente o algodão cheio de
sangue e mandou o enfermeiro costurar. Deu algumas
recomendações sobre não fazer esforço nem andar a cavalo por
quinze dias. Quando a bebedeira passou, caiu a ficha sobre a
besteira que eu tinha acabado de fazer. Infelizmente, o Matias e o
Leonardo acabaram sendo atingidos em cima de uma moto por
um motorista bêbado, e morreram. Eu guardei segredo daquilo
por anos, até que um dia, quando minha mãe achou que eu estava
passando da idade de me casar, contei pra ela o que tinha feito.
Se fosse mais novo, teria tomado uma surra, tamanha a raiva que
ela ficou. Bom, pra resumir, eu decidi que não me casaria, ou só
faria isso se encontrasse alguém que não quisesse ter filhos. Só
que conheci a Helena e me apaixonei perdidamente. Decidi que
me casaria com ela, estéril ou não, mas fui um covarde em não
ter coragem de contar pra ela sobre a minha situação, apesar da
insistência da minha mãe. Tudo ia muito bem, até que um dia ela
me contou, feliz da vida, que estava grávida.
– Sério?!
– Sim, prendeu minha mão e resmungou essas palavras. Como eu
estaria de folga no dia seguinte, me candidatei para ajudá-lo a
encontrar o endereço da Célia. Ele foi conosco para a lanchonete,
onde passou a noite. É um lugar sossegado, e servia de dormitório
para um antigo funcionário do meu pai.
– Por quê?
– Sei bem o que é isso, Angélica. Talvez você não saiba, mas uma
vez o Matheus se envolveu numa briga com um garoto que tinha
o dobro do tamanho dele, pelo menos na largura, pra me defender.
Mas foi só quando resolvi escrever uma carta pra ele, tentando
convence-lo a voltar, que descobri o quanto eu o amo. Qual de
nós será a feliz escolha dele, né, Angélica?
– Não haverá escolha nenhuma, Júlia. Isso já foi feito há muito
tempo, e ele escolheu você. Vamos dormir?
– Pensei muito essa manhã, quando acordei. Fico feliz que tudo
tenha se resolvido, que não há mais dúvidas sobre a paternidade
do Floriano e tudo o mais. Acontece que algumas coisas também
já se resolveram por aqui. E, além disso, não posso deixar o Seu
Salvador na mão.
– O que é?
FIM