You are on page 1of 16

Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

DO “EU” PARA O “OUTRO”: A ALTERIDADE COMO PRESSUPOSTO


PARA UMA (RE) SIGNIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

FROM THE “I” TO THE “OTHER”: ALTERITY AS A PRESUPPOSITION


FOR HUMAN RIGHTS RE-SIGNIFICATION

Por José Querino Tavares Neto*


e Katya Kozicki**

RESUMO: Cada vez mais se torna necessário ABSTRACT: Today it is very important that we
estudar os direitos humanos, sua normatização e study human rights – its juridical construction and
proteção, tomando a alteridade como instrumento protection – taking into account alterity as an
analytical instrument. It is necessary to be aware of
de análise. O reducionismo a qualquer realidade,
the risks involved in the reductionist perspectives
seja cultural, étnica, racial, religiosa etc., expõe-
about any reality: cultural, ethnical, racial or a
nos ao etnocentrismo e a uma visão limitada da religious one. This kind of reductionism put us in
diversidade culturas e da realidade. O conhecimento danger of ethnocentrism and a limited comprehension
da nossa cultura passa inevitavelmente pelo about cultural diversity and reality. The
conhecimento das outras culturas. A compreensão understanding about our culture is only possible
through the understanding of other cultures. The
do outro leva ao (re)conhecimento de que somos
comprehension of the other leads to the knowledge
uma cultura possível entre tantas outras, evitando
of that our culture is only one possibility among
a arrogância racial, econômica e política. Neste others. Through the other’s recognition we can
trabalho são analisadas as perspectivas de avoid the sense of racial, economics or political
Lévinas e Derrida sobre a questão do outro e do superiority. In this paper we present Lévinas and
eu (a relação face a face) com o objetivo de (re) Derrida’s perspectives of the other and the self (a
face-to-face relation) in order to re-think human
pensar o problema dos direitos humanos nas
rights in the contemporaries societies.
sociedades contemporâneas.
KEYWORDS: human rights; constitution; alterity;
PALAVRAS-CHAVE: direitos humanos; identity; diversity.
constituição; alteridade; identidade; diversidade.

** Mestre e Doutora em Filosofia do Direito e do


* Professor adjunto da Faculdade de Direito da Estado pela UFSC. Visiting Researcher Associate no
Universidade Federal de Goiás; do Mestrado em Direito Centre for the Study of Democracy, University of
da UNAERP e do Mestrado em Desenvolvimento Westminster, Londres, 1998-1999. Professora titular da
Regional das Faculdades ALFA. Estágio pós-doutoral Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Professora
em Direito Constitucional pela Universidade de Adjunta da Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora
Coimbra, bolsista CAPES. Bolsista da FUNADESP. do CNPq.

65
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

O Cristo do Corcovado desapareceu, política, agora já não mais no campo


levou-o Deus quando se retirou para a eternidade, universalista da ética moderna. Neste
porque não tinha servido de nada pô-lo ali.
Agora, no lugar dele, pressuposto – de que é possível e necessário –
fala-se em colocar quatro enormes painéis, reaproximar ética, direito e política, adotamos
virados às quatro direções do Brasil e do mundo, como premissa uma ética não-universalista e
e todos, em grandes letras, dizendo o mesmo:
um direito que respeite, uma justiça que cumpra.
fundada na idéia de alteridade, na qual o
(José Saramago) outro aparece como categoria central.
O problema do outro, ou a própria questão
O processo de formação da modernidade da alteridade, está no cerne das preocupações
é fortemente caracterizado pela ruptura entre dos mais importantes filósofos do século XX,
a ética e a política e compreendê-lo passa, e a partir dessas reflexões podemos buscar
necessariamente, por desvendar as condições novas formas de compreender a alteridade
de tal ruptura e o problema do sujeito em um mundo fortemente marcado pelo
moderno, tanto no campo da filosofia quanto processo de globalização.
no campo do direito, indagando quem é o Na mesma dimensão de importância se
sujeito de direito. Ao mesmo tempo, encontra o direito (principalmente o campo
compreender a construção teórica dos direitos teórico e normativo do direito constitucional
humanos e tentar desvelar novos caminhos e do constitucionalismo), que tendo por
para a sua realização pressupõe um resgate objeto a regulamentação das relações sociais,
do componente ético no qual se possa fundar opera numa perspectiva de prevenção/
e (ou) fundamentar a ação política e também repressão, uma vez que atua tanto na tentativa
a atuação do direito nas democracias psicopedagógica, ou ao menos deveria ser de
contemporâneas. Nesse sentido é que formação do ser humano para a consciência
entendemos a política e a democracia, e e efetivação da justiça; como na ação pós-
também a realização do justo no plano factual para efetivação do justo, do correto,
jurídico como devir ético: o direito e a política ou pelo menos sua clara intenção, sem nos
(ou a ação política) entendidos como o iludirmos, pelos riscos da grande possibilidade
momento privilegiado da decisão, a passagem de poder econômico. O Estado, como
do indecidível para o campo da práxis estrutura organizada de poder, desempenha a
consubstanciada em um momento de função de garantir entre os homens uma
julgamento, de crítica. Se entendermos o convivência ordenada de forma harmoniosa
direito e a política como criação artificial da e segura, sobretudo a de manter a paz e a
ordem – este momento do julgamento, segurança jurídicas.
capaz de gerar estabilidade em meio ao Numa sociedade claramente de auto-
caos – somos levados a indagar o que justifica regulação intensiva (ZIPPELIUS, 1997), na
ou legitima tal momento. Esta passagem – da qual está em causa a efetividade das
impossível decisão – undecidable – para o Constituições como instrumento regulatório
campo da ação/decisão necessita novamente e previdente, em contradição com a insistente
ser pensada em termos éticos, o que impõe perpetuação de uma sociedade profundamente
repensar a relação entre ética o direito e a incoerente pela concentração de riqueza, o

66
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

que de fato está em xeque é a própria e Jacques Derrida – a relação do eu com o


sobrevivência deste tipo de Estado outro (face à face) e categoria da identidade,
Constitucional. O que nos ocupamos aqui é tendo em vista questionar quem é o
procurar entender em que medida, ou melhor, sujeito concreto cujo discurso dos Direitos
qual a chance de transcendência/sobrevivência Humanos visa proteger. Em seguida,
do Estado Constitucional ou sua superação passamos à reflexão sobre o Estado, e o
da nova ordem global. Nossa hipótese para a constitucionalismo, como possibilidade de
construção de uma sociedade mais coerente concretização daqueles direitos.
e justa passa pela valorização da alteridade
como categoria de análise como elemento
ALTERIDADE COMO ELEMENTO DE
cimentar. Dito de outra forma, a sobrevivência
COMPREENSÃO DA REALIDADE
do Direito Constitucional e, mesmo o
constitucionalismo, passa pela assimilação A temática da alteridade sempre ocupou
dos direitos humanos como liame, reserva, lugar privilegiado na problemática do
para a (re)construção da sociabilidade, e isso, conhecimento. Trata-se da relação que
numa dimensão local, regional e global. transcende a perspectiva de sujeito cognoscente,
Inicialmente, é importante salientar que,
que apreende a realidade como objeto
para superação das questões etnocêntricas1
cognoscível visto o conhecimento ser, de um
está a necessidade de reconhecimento das
lado, condicionado pelo sistema de valores
diferenças nas relações de gênero, étnicas,
de referência daquele que conhece e sua
raciais, religiosas, culturais, sociais etc.
capacidade cognitiva pelos sentidos; de outro,
A sociedade, no tocante a tais demandas, na
pela complexidade do objeto que se conhece
realidade depara-se com o encontro – que não
ou se dá a conhecer.
deve ser confronto – com o outro, com a
diferença. Esta é a questão fulcral da O argumento a ser explorado neste
problemática em relação à temática dos trabalho funda-se na premissa de que somente
direitos humanos e sua imbricação com o por meio de um compromisso ético com a
direito constitucional, que no tocante ao justiça e o reconhecimento de uma infinita
processo regulatório não pode prescindir nem responsabilidade para com o outro2 será
do Estado, sob pena de ilegalidade; nem da possível administrar a contingência e a
sociedade, sob pena de ilegitimidade. diferenciação típicas deste início de século,
Nesse sentido, pretendemos discutir sem que o reconhecimento delas implique
inicialmente – principalmente a partir das
construções teóricas de Emmanuel Lévinas 2
“Finalmente, os conceitos de “eu” (reflexivo) e
“outro” não devem ser entendidos como referindo-se a
entidades fixas mas, ao contrário, como designando
1
Visão que toma a própria cultura como centro e relações, respectivamente, de identidade, diferença ou
medida de toda e qualquer comparação, promovendo alteridade.” (ROSENFELD, Michel. Deconstruction and
com isso tanto a valorização da cultura do que observa legal interpretation : conflict, indeterminacy and the
como a desvalorização do que é observado, sempre a temptations of the new Legal formalism. Deconstruction
partir de um sistema de valores aceitos pela cultura and the possibility of justice, Cardozo Law Review, v.
daquele que observa. 11, n. 5-6, p. 1228, jul./aug. 1990).

67
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

negligência ética ou indiferença moral. outro. Para Lévinas4, a justiça define e é


Desde um verdadeiro compromisso com o definida por esta relação ética com o outro,
outro e de uma verdadeira busca pela justiça, em resposta ao sofrimento do outro, para
é possível criar sentido num universo sem com o qual o sujeito tem uma infinita
sentidos. A política, compreendida a partir da responsabilidade. Mas esta concepção ética
filosofia da diferença, está marcada por um de justiça também se coaduna com uma noção
compromisso ético inafastável para com política de justiça, no sentido de que toda
este outro. Porém, se a ética, entendida na relação ética é sempre situada em um
perspectiva de Emmanuel Lévinas, é afirmada determinado contexto sociopolítico, o qual
mediante essa relação com o outro, a implica diferentes concepções éticas, levando
passagem da ética para a política é marcada à necessidade da escolha entre estas, ou de
pela presença/chegada de um terceiro, uma decisão. Em Totalidade e Infinito a
significando “outros”, a multiplicidade de ética é entendida como uma relação de
responsabilidade, não totalizadora com o
sujeitos que fundam e constituem a polis.
outro. A relação do eu com o outro é
Partindo da obra de Emmanuel Lévinas,
notadamente uma relação de assimetria, de
Derrida considera ser a ética a primeira
radical desigualdade.5 A passagem da ética
filosofia, isto é, a ética como uma relação
para a política é caracterizada pela chegada
entre pessoas. A análise de Derrida situa a
de um terceiro, uma relação com todos os
ética na perspectiva da responsabilidade,
outros6. A relação com o outro é uma relação
tomando a própria linguagem e sua construção
de proximidade – face à face (face to face),
como uma resposta ao outro. Anteriormente
de responsabilidade que antecede qualquer
a qualquer decisão, a qualquer forma de
questionamento. Já a política importa na
mediação – seja a construção do discurso
responsabilidade por questionar, no sentido
político, seja a construção do discurso
de que indagação deve remeter à busca por
jurídico –, a desconstrução descortina a
dimensão da responsabilidade subjacente a
4
LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini. Paris:
estas construções. O momento ético dentro
Livre de Poche, 1990.
desta formulação pressupõe a responsabilidade 5
Nas palavras de Lévinas: “Na relação com o outro
para com o outro, uma afirmação infinita e este aparece para mim como alguém a quem eu devo
completa da alteridade; o outro que se afirma algo, em relação a quem eu sou responsável. Daqui a
assimetria da relação Eu/Você, uma relação de completa
em toda sua alteridade e a impossível diferença entre mim e você, porque toda a relação com
apreensão desta diferença. o outro é uma relação de responsabilidade.” LÉVINAS,
Emmanuel. Alterity and transcendence. New York:
A ética, tal como Lévinas3 a concebe,
Columbia University Press, 1999. p. 101.
coloca em questão minha liberdade e 6
“Mas a aparente simplicidade desta relação entre
espontaneidade, minha subjetividade, e o mim e você, na sua completa assimetria, é perturbada
pela chegada de uma terceira pessoa, quem aparece ao
lado do outro, ao seu lado. Esta terceira parte é também
3
A respeito conferir: CRITCHLEY, Simon. The o vizinho, o rosto, uma inatingível alteridade. Aqui, com
Ethics of Deconstruction. Derrida and Levinas. este terceiro, nós temos a proximidade de todos os
Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. homens.” Id ibid. p.101, grifos nossos.

68
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

uma comunidade justa. A política é o devir Na justiça existe comparação, e o outro não
da ética (ainda que no inter-relacionamento tem nenhum privilégio em relação a mim.
Entre pessoas que adentram esta relação, uma
entre ética e política não exista uma relação outra relação deve ser estabelecida, que
de temporalidade, cronológica, no sentido de pressupõe a comparação entre eles, isto é,
que uma antecede ou sucede a outra, uma vez pressupõe, justiça e cidadania. Limitação
daquela responsabilidade inicial, a justiça
que a relação ética é uma relação que ocorre ainda assim marca uma subordinação do eu
em um espaço político). É com esta chegada, em relação ao outro. Com a chegada do
com a entrada em cena deste terceiro que se terceiro, o problema fundamental da justiça é
colocado, o problema do direito, que é sempre
inaugura ou se instala a esfera política: é esta
do outro.8
chegada (do terceiro) que, justamente, marca
a transição da ética para a política em Embora interdependentes e inter-
Lévinas. Pois aqui é que surge a questão do relacionados, direito, política e ética são
julgamento, a própria questão da justiça: estruturas distintas. O direito é geral, contém
“Quem é, nesta pluralidade, o outro por padrões gerais de conduta, enquanto a justiça
excelência? Como eu posso julgar? Como exige uma resposta singular, particular ao
caso em análise. De acordo com a concepção
comparar os outros – únicos e incomparáveis?”7
ética de justiça que se está considerando, a
Esta passagem é consubstanciada por uma
qual pressupõe uma infinita responsabilidade
transformação no próprio tipo de relação que
para com o outro, e tendo em vista que esta
se tem em mente: a relação ética caracterizada
jamais vai ser plenamente realizada, a justiça
pela completa diferença/assimetria; a relação
jamais se realiza no presente, se constituindo
política caracterizada pela reciprocidade/
sempre em um à-venir, algo por acontecer. A
igualdade entre os membros da sociedade.
justiça, compreendida como um compromisso
A relação de infinita responsabilidade entre
ético com o outro, não deixa de ter um
mim e você (you/toi) não supõe reciprocidade,
componente político, uma vez que este
uma vez que a minha responsabilidade
compromisso ético é sempre referido por um
perante o outro não pressupõe qualquer
contexto histórico-cultural e que o mesmo
correspondência (para Lévinas qualquer
leva à necessidade de decisões, as quais
correspondência ou reciprocidade excluiria
implicam agir. Uma possibilidade é a ação
a generosidade implicíta na idéia de
política, capaz de satisfazer à obtenção da
responsabilidade e a tornaria instrumental ou
justiça política. Outra possibilidade pode ser
utilitária). E é precisamente aqui que surge a
encontrada no universo jurídico, como
questão da justiça, como problema político e
cenário de regulamentação social e técnica
a partir dela se coloca a própria questão do
de solução de conflitos. É justamente neste
direito e da política:
cenário que se insere o questionamento sobre
Minha procura por justiça pressupõe uma
o sujeito de direito – não o sujeito em abstrato
nova relação, na qual todo o excesso de
responsabilidade que eu devo ter perante o e sim o sujeito concreto. Nesse sentido as
outro é subordinado à questão da justiça. palavras de João Cabral de Melo Neto:

7 8
Id.ibiden, p. 102. Id. Ibiden, p.102.

69
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

É difícil defender nem pergunta de onde vêm. A realidade


Só com palavras a vida socioeconômica mundial e seus marcos
(ainda mais quando ela é esta que vê, Severina)
estruturantes assumem o sujeito de direito e
o cidadão a partir de uma perspectiva de
É difícil defender, só com palavras, a
igualdade formal, o sujeito sem rosto e nem
vida. Eis o porquê de necessitarmos de um
identidade cujos direitos, em tese, são
direito que respeite, uma justiça que cumpra
salvaguardados nos limites concretos do
(como afirma Saramago na citação que
Estado de Direito. Mas essa perspectiva
abre este trabalho). Os direitos humanos,
formal não é suficiente para tornar os
como discurso e construção jurídica,
anônimos Joãos, Josés e Marias sujeitos
constituem um arcabouço importante mas não
concretos. Em primeiro lugar, é necessário
suficiente para que possamos efetivamente
que reconheçamos quem é este sujeito de
defender a vida, entendida esta não somente
direito, situando-o concretamente na
como existência física, em todas as suas
sociedade e individualizando a sua existência
manifestações concretas, mas entendida
concreta, única e singular.
também a partir das teias e tramas que nos
O (ou os) Severinos de quem nos fala o
tornam sujeitos únicos e atores sociais
poeta João Cabral devem ser tornados
diferenciados em nossas singularidades
concretos, para além da voz do poeta, e
e envolvimentos.
somente nessa perspectiva é que a enunciação
O discurso jurídico dos direitos humanos
jurídica dos chamados direitos humanos pode
deve ser pensado a partir da análise concreta
ganhar vida, para além de sua construção
de quem são os seus sujeitos e os marcos
retórica. Falar em direitos humanos pressupõe
concretos de sua existência. Acompanhando
que sejamos capazes de “ouvir a voz do
Chico Buarque, na letra de O Brejo da Cruz
outro” e acreditamos que o cenário
A novidade democrático é aquele que melhor se adequa
Que tem no Brejo da Cruz a esta perspectiva. E também neste cenário
É a criançada se alimentar de luz
se pressupõe a realização da igualdade, não
Meninos ficando azuis
E desencarnando a igualdade que anula o outro, esvazia a
Mas há milhões desses seres diversidade e a pluralidade, mas igualdade
Que se disfarçam tão bem como pressuposto de efetivação dos direitos.
Que ninguém pergunta
Como coloca Marilena Chauí: “a mera
De onde esta gente vem
declaração do direito à igualdade não faz
Se a vida não pode ser defendida com existir os iguais, mas abre o campo para a
palavras, as palavras talvez possam constituir criação da igualdade, através das exigências
um primeiro momento de reflexão sobre a e demandas dos sujeitos sociais. Em outras
própria vida e os meios de, talvez, defendê-la palavras, declarado o direito à igualdade,
efetivamente. Mas se o que buscamos é a a sociedade pode instituir formas de
defesa da vida, devemos pensar, primeiramente, reivindicação para criá-lo como direito real.
nos sujeitos concretos que a experimentam. (...) as idéias de igualdade e liberdade como
Estes sujeitos, tantos, que ninguém sabe e direitos civis dos cidadãos vão muito além

70
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

de sua regulamentação jurídica formal. dos movimentos sociais, minorias, e não


Significam que os cidadãos são sujeitos de podem ser vistos como concessão, mas
direitos e que, onde tais direitos não estejam emancipação. Outro fator preponderante,
garantidos, tem-se o direito de lutar por eles nesta ótica, é a necessidade do direito, em sua
e exigi-los. É esse o cerne da democracia.”9 acepção mais ampla, ser compreendido como
E acreditamos também ser este o cerne da reflexo deste processo. O direito é regulatório
construção dos direitos humanos. e, portanto, não emancipatório de per si.
Não se pode olvidar a grande contribuição
do Direito, seja de ordem formal, moral,
DIREITOS HUMANOS E ALTERIDADE:
ética, política etc., mas transferir-lhe o
UMA CONCILIAÇÃO POSSÍVEL
caráter emancipatório é usurpação da
A juridicidade, a sociabilidade e a missão precípua da sociedade em seus mais
democracia pressupõem uma base diversos segmentos.10
jusfundamental incontornável, que começa A despeito de considerarmos os direitos
nos direitos fundamentais da pessoa e acaba humanos e fundamentais positivados como
nos direitos socais. (CANOTILHO, 2006, 146). inalienáveis, apesar de não absolutos, não
Postas essas questões, nossa intenção e devemos nos esquecer que estes direitos, em
aproximarmos a discussão dos direitos sua qualidade de universalidade, devem ser
humanos e sua possibilidade hermenêutica considerados de forma paradigmática e
para uma sociedade de alteridade. Dito de limitadores que, no dizer de Canotilho, (2004,
p. 135), representam “(…) uma concepção
outra forma, nosso liame passa pela
política do direito e da justiça informadora
necessidade de considerarmos a alteridade
dos princípios de direito e práticas
como elemento cimentar para a (re)construção
internacionais”. Evidentemente que na
de uma sociedade mais humana. Por mais
perspectiva da alteridade devemos ter em
recorrente que pareça, na prática essa
mente que os direitos humanos devem ser
perspectiva não tem se efetivado, pelo simples
relativizados em sua pretensa universalidade,
fato de nos acostumarmos com a perpetuação
considerando-se o risco de carga etnocêntrica.
das aparências e não de essências. Os direitos
Exatamente a idéia de universalidade traz em
humanos não podem continuar como arriscado
sua essência a própria condição de exclusão,
e ardiloso movimento reflexo, mas, numa
mesmo que na tentativa de inclusão, uma
inversão do curso, projeções de alteridade vez que estamos tratando de conflito de
permanentes e de políticas públicas. civilizações, contracultura etc.
Os direitos fundamentais, são, acima de Nesse sentido, Santos (2006) parece engendrar
tudo, fruto de conquistas históricas dos mais uma proposta que vise a uma alternativa
diversos setores da sociedade, nomeadamente,
viável. Nas palavras do próprio autor,

9 10
CHAUÍ, Marilena. A sociedade democrática. In: Para um maior aprofundamento da discussão,
Introdução ao Direito Agrário. Curso de Extensão sugerimos o texto de SANTOS, Boaventura de Souza.
Universitária, Série O Direito Achado na Rua, v. 3. Poderá o direito ser emancipatório? In: Revista Crítica
Brasília: Editora UnB, 2002, p. 334. de Ciências Sociais. n.º 65, maio de 2003, p. 3-77.

71
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

A minha tese é que, enquanto forem concebidos qua non, no campo da construção teórica e
como direitos humanos universais em proteção dos direitos humanos, não passa de
abstracto, os direitos humanos tenderão a
uma sublevação de expectativas. De um lado,
operar como localismo globalizado e, portanto,
como uma forma de globalização hegemónica. enquanto não houver uma alteração nos
Para poderem operar como de cosmopolitismo estatutos, e, portanto, da ontologia e teleologia
insurgente, como globalização contra- das Nações Unidas, e conseqüentes alterações
hegemónica, os direitos humanos têm que ser
de ordem estrutural, inclusive sua localização
reconceptualizados como interculturais.
Concebidos como direitos universais, como geográfica, padeceremos de efetividade e
tem sucedido, os direitos humanos tenderão legitimidade dos direitos humanos universais;
sempre a ser um instrumento do «choque de de outro, a urgência de o Ocidente (re)
civilizações» tal como o concebe Samuel
considerar sua superioridade e prepotência
Huntington (1993, 1997), ou seja, como arrma
do Ocidente contra o mundo («the West cultural. Não se trata de concorrência pelo
against the rest»), como cosmopolitismo do monopólio mas de concorrência para
Ocidente imperial prevalecendo contra finalidade em face do esgotamento, hoje
quaisquer concepções alternativas de dignidade
observado, das metanarrativas e da ausência
humana. Por esta via a sua abrangência
global será obtida à custa da sua legitimidade de referencial emancipatório, decorrentes
local. Pelo contrário, o multiculturalismo principalmente da pulverização do poder e
emancipatório, tal como eu o entendo e do processo de globalização.
especificarei adiante, é a pré-condição de uma
A Declaração dos Direitos do Homem e
relação equilibrada e mutuamente potenciadora
entre a competência global e legitimidade do Cidadão, da ONU, é o grande documento
local, os dois atributos de uma política contra- político-ideológico, mas não elucidatório, da
hegemónica de direitos humanos no nosso discussão contemporânea dos direitos
tempo. (SANTOS, 2006, p. 409)
humanos. Mesmo assim podemos afirmar sua
O que se coloca é a dificuldade de contribuição, juntamente com o avanço do
representatividade instrumental e legítima processo integratório europeu (relativizado
pelo Estado na sua função precípua ocidental atualmente), para a institucionalização e
de irradiação de normas (GALTUNG, 1998) e, internacionalização dos direitos humanos
numa projeção internacioanal, a Assembléia como elemento-chave de interpretação das
Geral das Nações Unidas, principalmente sociedades do pós-Guerra.
com a Declaração Universal dos Direitos do O ponto nevrálgico, ou mesmo de
Homem e documentos reflexos. Ao menos estrangulamento da problemática, está no
merece reservas a pretensa representação Estado e sua proximidade com a sociedade
universal das Nações Unidas, quer pela sua civil organizada, evidentemente que se
composição, quer pela projeção excessiva, levando em conta os demais mecanismos de
para não dizer autoritária, do Conselho de representação social local, regional e global.
Segurança da ONU e sua famigerada É que ali se trava a gestão dos direitos
composição e regimento. Da importância das humanos e sua possibilidade de efetivação,
Nações Unidas e dos Estados para a efetivação seja pela via democrática, que não depende
dos direitos humanos não há qualquer em princípio de fatores externos, como
equívoco, mas projetar-lhes condição sine coercitiva e (ou) convencimento pela via

72
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

diplomática e valorativa. Nossa hipótese já tão debatidas como a cubana, mas


assume a importância do Estado como geopolíticas residuais em estado de afirmação
articulador primordial dos processos de e a pouca efetividade da ONU paralisada
conscientização e efetivação dos direitos facilmente pela própria natureza11. Assim, a
humanos em conjunto com a sociedade tão sonhada democracia birmanesa parece
civil, tendo a alteridade como referencial esbarrar na necessidade de o processo se
hermenêutico. desenrolar no domínio do Estado – com suas
É fato que não podemos excluir a contradições internas – e na possibilidade da
vertente internacional, aliás, cada vez mais organização de Estados como elemento que
crescente na problemática dos direitos confere legitimidade.12
humanos. O ponto não é este. Parece-nos Tendo em vista o alto grau de complexidade
plausível a crescente afirmação da jurisdição e diferenciação das sociedades contemporânea,
internacional dos direitos humanos, o que bem como o processo de globalização e
consideramos não apenas viável e inevitável, transformação da noção clássica de soberania
mas, principalmente, necessário e urgente. estamos, pela primeira vez na história,
Mas é na esfera do Estado que se efetiva passando por um processo de conscientização
concretamente sua implementação, ainda mais – forçada – dos riscos do fim do Estado e do
se levarmos em conta as inúmeras deficiências nosso “mundo” (conceito absolutamente
de um sistema internacional fundado na limitado da realidade em que estamos
legalidade/legitimidade das Nações Unidas inseridos). Em face da sociedade de riscos
como pretensa representatividade universal. compartilhados (BECK,1998, 2006), coloca-se
Dito de outra forma, qual seja o argumento na ordem do dia o tema do meio ambiente,
fulcral deste, precisamos fortalecer o Estado do desenvolvimento sustentável, da jurisdição
como interlocutor privilegiado com a internacional para os crimes contra a
sociedade civil e demais atores locais,
regionais e globais, visando à efetivação dos
11
Referimo-nos ao já tão desgastado processo
direitos humanos na ordem global atual, seja
decisório das Nações Unidas e seu Conselho de
na dimensão do respeito aos direitos humanos Segurança que precisam de reformas urgentes.
negativos, seja na dimensão dos direitos 12
Essa problemática não está afeita apenas à já
humanos positivos. combalida ONU, mas presente nas mais diversas formas
de organizações de Estados que padecem de legitimação
O recente caso do Mianmar é altamente
estatutária, como o MERCOSUL, União Européia etc.
esclarecedor. É no Estado que está concentrada O exemplo europeu é sintomático desta dificuldade. Por
a crise de representatividade, do poder, da meio de referendo, França e Holanda votaram contra a
Constituição Européia, colocando novo tempero nas
legitimidade/legalidade. Evidentemente
pretensões de efetivação confederativa européia. Talvez
que são fundamentais os mecanismos de o processo careça de elementos objetivos que justifiquem
pressão internacional para uma mudança de a suposta democratização do(in)democratizável, uma vez
que trata-se de um tratado de Estados-membros, e,
mentalidade no país. Mas isso pode não ter portanto, merece reservas a este tipo de consulta. A questão
o efeito desejado, nem mesmo após embargos é recorrente, visto que a problemática da proposta de uma
e sanções econômicas e mesmo militares. Isto Constituição para União Européia passa pela necessidade,
ou não, de democratizar o processo. Mas se não há um
porque não estamos apenas diante de questões povo europeu, como falar em democracia.

73
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

humanidade, e de forma muito contundente citação sobre Ferrajoli, “En la atualidade, los
os direitos humanos como categoria de derechos humanos ya no son solo un límite
análise hermenêutica para as dimensões interno del poder soberano, sino que se han
econômica/política/cultural/social/jurídica no constituido en un límite sustentado en el
início deste novo século. derecho internacional y que llega a modificar
A alteridade provoca uma nova jurisdição el concepto mismo de soberanía del Estado”.
que, apesar de ainda estar em formação, O que se ressalta é a necessidade de
já passa a contar com novos centros controle hermenêutico sensorial das sociedades
decisórios, sobretudo por meio da jurisdição contemporâneas por meio da categoria dos
constitucional e do surgimento de tribunais direitos humanos. Esta perspectiva põe em
internacionais, os quais vêm promovendo causa o processo de globalização descendente
um processo de desterritorialização dos (FALK, 1999) 13 , visto não ser possível
direitos humanos (MORAIS, 2002). Isso é tratamento unânime das condições materiais
resultado, principalmente, da impotência e imateriais de cada sociedade.
do Estado em julgar e administrar estas Nesse diapasão, apresenta-se-nos em
demandas (muitas vezes por ser o próprio sintonia fina a contribuição de Lévi-Strauss
Estado o principal agente violador de certos (1980). O sentido das sociedades contemporâneas
direitos) ou, em outros casos, pela luta pelo precisa ser recolocado nos trilhos da unidade
poder no seu interior – regimes, revoluções, da organização social, em que a diversidade
ausência institucional, guerras etc. se afirma no todo, nomeadamente no outro,
Concordamos com Arnauld (2006, p. 76) como elemento referencial de estruturas
que o conceito de mundialização não se sustenta preexistentes. Assim, os direitos humanos
nesta sociedade de riscos compartilhados e como categoria de análise ganham luz
com um grau de controle diferente. O que se própria, como possibilidade e necessidade de
verifica é a transferência de competências, transcendência realística da ordem global
devastadora e subordinatória dos valores, pela
como no caso do Tribunal Interamericano de
descentralização do poder econômico e
Direitos Humanos, o Tribunal Europeu dos
inclusão do outro como componente cimentar
Direitos do Homem, o Tribunal Africano de
da sociedade.
Direitos Humanos e dos Povos. A ONU, a
Assim, o Direito Constitucional nacional
despeito de suas limitações e desvios, servia
e global (CANOTILHO, 2006), apresenta-se
de precoce controle de legalidade e
como instrumento essencial e regulatório que,
legitimidade política. Agora, porém, temos
com a participação da sociedade em suas
uma clara jurisdição internacional que, com
múltiplas representações (HÄBERLE, 2002),
sua institucionalização, vem promovendo um
converge os interesses no interior do Estado,
engessamento da agenda local e regional,
vinculado ao poder originário. Esta nova
reflexo da preponderância da agenda
internacional. Por isso a recorrência ao
discurso dos direitos humanos – que como 13
O autor denomina Globalização descendente
projeto emancipatório permite a realização aquele “conjunto de forças e de perspectivas legitimadoras
situado, em vários aspectos, fora do alcance efectivo da
da alteridade – como contraponto na sociedade autoridade territorial que alistou a maioria dos governos
global. No dizer de Prado (2007, p. 6), em como parceiros tácitos” (1999, p. 221).

74
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

concepção de Estado vem sendo denominada chamado “constitucionalismo evolutivo”; na


de Good Governance e, para Chevallier (2005, substituição do esquema hierárquico-
p. 145), “O direito de governança não deve, normativo do direito constitucional por
portanto, ser percebido como um substituto um sistema multipolar de “governance”
ao direito clássico: na realidade, a governança constitucional (CANOTILHO, 2006, p. 283).
“associa, segundo modalidades infinitas, O ponto premente é que o sujeito
direito “duro” (hard law), escrito, com efeitos paradigmático do Estado constitucional
claros, e direito “mole” (soft law), móvel, mudou. O Estado-nação traveste-se de novas
evolutivo”. O que nos parece evidente é a formas, merecendo uma (re)adequação
urgência de modelos alternativos à rigidez constitucional à nova ordem, exatamente
centralizadora dos Estados, numa nova para salvaguardar-se em seu núcleo
composição de forças no interior dele com os essencial, ante os novos sujeitos da ordem
movimentos sociais e uma pluralidade de global que, em preservando os aspectos
atores sociais. Sob a coordenação desse essenciais das cartas políticas dos Estados,
novo grupo de agentes, deve ser reforçada a deverá atuar como interlocutor, articulador/
moderador/regulador de estatutos mais
importância do Estado de Direito na
abrangentes e eficientes para o tratamento
composição de interesses para uma agenda
de questões que transcendem as fronteiras
comum em torno da priorização do meio
tradicionais do Estado, mormente aquelas
ambiente, do desenvolvimento sustentável,
ligadas aos direitos humanos (CANOTILHO,
da transparência da coisa pública e dos
2003, p. 1370), ao meio ambiente e ao direito
direitos humanos como componente
penal e à Jurisdição Transnacional.
hermenêutico condicionante da esfera pública
O problema de fundo e mediato de maior
e privada.
importância está consubstanciado na
A este propósito, Richard Falk (1999,
necessidade de atualização epistemológica,
p.252) propõe a globalização ascendente, a
metodológica e paradigmática, envolvendo a
qual preconiza a convergência de interesses
releitura do direito constitucional num
difusos no interior do Estado-nação e este
referencial crítico e interdisciplinar, tendo os
como interlocutor/mediador entre a sociedade
direitos humanos, o meio ambiente e o direito
civil local e a sociedade civil global.
penal internacional como categorias de
Esse fenômeno vem sendo designado de
análise do próprio direito, na função de
constitucionalismo moralmente reflexivo
instrumental regulatório14 nas sociedades
(CANOTILHO, 2006, p. 125-9). Este movimento,
contemporâneas.
consciente das dificuldades de um Estado
garantista, propõe uma nova leitura do
constitucionalismo à luz da nova ordem 14
Acolhemos a sugestão de Chevallier (2003),
global, sustentado na “superação do esquema pela qual a regulação funciona nas sociedades
contemporâneas de maneira associada a elementos
paradigmático Constituição-Estado; na teleológicos numa estreita relação com a governança –
necessidade de ultrapassar as teorias de meio de legitimação dos poderes estabelecidos e motor
de mudança política –, visto que prevalece a noção de
“momentos constitucionais” isolados e
conjunto e, portanto, de superação de concorrência do
únicos e apreender o sentido e os limites do poder pela confluência de interesses.

75
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

Vivemos sob o efeito contundente da direitos humanos, sobretudo pela confusão,


emergência dos direitos humanos como no sentido jurídico, entre jurisdição efetiva
categoria de análise para a própria (re) de um lado e desvio de finalidade, de outro.
afirmação do Estado no âmbito de uma O que queremos dizer é que o grau de
sociedade global 15 e sua necessidade/ interesse pela efetividade jurisdicional dos
legitimidade/possibilidade/disposição, tanto direitos humanos esbarra na ausência de
em apresentar-se como articulador, defensor interesse do Estado, tanto pelos poucos
e operacionalizador dos direitos humanos, benefícios políticos que representa aos
bem como principal sujeito respeitador gestores, como pelo Estado ainda se constituir
(LIORENTE, 2006, p. 206). no principal violador dos direitos humanos.
Nisso se concentra uma das grandes Assim, a jurisdição, tão imperiosa e
dificuldades no processo de efetivação dos contundente em outras áreas (como a
tributária, administrativa, penal etc.), padece
ainda de efetividade no âmbito dos direitos
15
Segundo Ulrich Beck, o fenômeno da globalização humanos. Que o Estado ainda se constitui no
comporta dimensões distintas, mas intimamente
maior detentor de condições contributivas
relacionadas. Beck diferencia três tipos de dimensões no
fenômeno. “Por Globalismo entiendo la concepción para efetivação dos direitos humanos, dada
según la cual el mercado mundial desaloja o sustituye al suas condições institucionais e relacionais no
quehacer político; es decir, la ideología del dominio del
mercado mundial o la ideología del liberalismo. Ésta âmbito interno e externo, parece crível; o que
procede de manera monocausal y economicista y reduce não se evidencia é a eficiência de suas ações
la pluridimensionalidad de la globalización a una sola
dimensión, la económica (...) (1998, p. 27). La
e mesmo capacidade de controle e gestão
Globalidade significa lo siguiente: hace ya bastante desta emergente causa. Dito de outra maneira,
tiempo que vivimos en una sociedad mundial, de manera
o Estado tem se demonstrado carecedor de
que la tesis de los espacios cerrados es ficticia. No hay
ningún país ni grupo que pueda vivir al margem de los legitimidade no tratamento dos direitos
demás.(...). Así, “sociedad mundial” significa la totalidad humanos, justamente por ser o maior violador
de las relaciones sociales que no están integradas en la
política del Estado nacional ni están determinadas a deles ao longo da história, não somente de
través de ésta (1998, p. 28). Por su parte, la Globalización, forma efetiva, mas também como cúmplice
significa los procesos en virtud de los cuales los Estados
nacionales soberanos se entremezclan e imbrican
silente das inúmeras violações.
mediante actores transnacionales y sus respectivas Em face de uma nova ordem global, que
probabilidades de poder, orientaciones, identidades y
impõe processos desintegradores e nefastos,
entramados varios” (1998, p. 29).
Existe uma mútua interdependência entre as distintas emerge a questão dos direitos humanos (sem
globalizações e, deste modo, não podem ser reduzidas a que nos esqueçamos de outras necessárias
apenas uma dimensão. Encontramos na proposta de
Globalismo de Beck, liame privilegiado em nossa demandas – como o meio ambiente, o direito
proposta de análise; nomeadamente, pela irrupção deste penal internacional16 etc...), que transcendem
modelo subordinatório do Estado-nação e seu documento
político delimitatório/programático essencial, a
Constituição, aos desígnios do mercado.
16
Ora, entendemos o processo de globalização em suas Reportamo-nos aqui ao direito penal em sua
possíveis dimensões (Santos, 2005, p. 26), numa lógica de tendência de internacionalizar e institucionalizar os
inclusão e não de exclusão de efeitos. Isto significa o caráter crimes contra a humanidade, sobretudo pela incapacidade
dinâmico da vida social pós-moderna numa dialética local/ de o Estado lidar com esta problemática, tendo em vista
global, alterando todas as relações: intimidade versus que normalmente os autores praticarem este tipo de crime
publicidade com conexões de grande amplitude. no exercício do poder público ou em sua função. Também

76
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

as categorias de análise tradicionais do Estado Contra essa concepção de exclusivismo


e do direito. do direito no Estado, ou dito de outra
Uma das possíveis e conseqüentes forma, do Estado como detentor do
relações de propostas analíticas dos direitos monopólio do direito, surgem novos atores
humanos como categoria de análise para que contribuem diretamente na formação e
uma sociedade de alteridade é sua estreita e validação do direito.
imbricada relação com democracia. Por A discussão dos direitos fundamentais está
isso, podemos afirmar que seu surgimento posta na necessidade – e (ou) possibilidade
como proposta de construção analítica da conciliatória – entre a visível e importante
realidade, e possibilidade de (re)afirmação e valoração do indivíduo na crescente
sustentabilidade – social, jurídica, política, judicialização dos mecanismos de proteção
somente se possibilita na equação entre estes dos direitos humanos de um lado, e de outro,
elementos condicionantes. A probabilidade a emergente e urgente postulação comunitária
de (re)afirmação dos direitos humanos em fundada na concepção social do ser humano.
processos políticos autoritários decresce Sem nos furtarmos ao reconhecimento
diametralmente na mesma medida que sua das origens liberais das acepções de direitos
possibilidade afirma-se em processos humanos (que de certa forma foram
democráticos. Evidentemente que democracia fundamentais na afirmação do indivíduo em
não significa necessariamente eficácia de face do Estado e da própria sociedade),
direitos humanos e nem sua inversa situação, verificamos a inevitabilidade da emergência
ineficácia, sobretudo pelo forte teor ideológico de conciliação com o aspecto social,
que subjaz nesta problemática. comunitário dos direitos humanos e isto nos
Um dos mais sensíveis e emergentes coloca frente a frente com o tema da limitação
núcleos de resistência ao processo de dos direitos humanos, ou pelo menos, o seu
globalização descendente (FALK, 1999), é o (re)dimensionamento teórico-prático, sob
despertar dos direitos humanos como pena de desfiguração da própria concepção
categoria de análise. Cada vez mais se fala originária dos direitos humanos.
nos direitos humanos, como núcleo essencial
do direito constitucional, como instrumento CONSIDERAÇÕES FINAIS
legitimador para a própria sobrevivência,
Cada vez mais se torna necessário estudar
relevância e justificativa do Estado.
os direitos humanos, sua normatização e
proteção, tomando a alteridade como
não devemos nos esquecer da dificuldade de tratamento instrumento de análise. Se nos prendermos
do tráfico internacional de drogas, de órgãos, pessoas, apenas a uma realidade, seja cultural, étnica,
escravidão etc., além dos crimes econômicos, fronteiriços,
racial, religiosa etc., corremos o risco de
terrorismo, sexuais etc. É a questão da jurisdição
internacional, polícia internacional etc., amenizada com nos tornarmos cegos em relação à cultura
a aprovação do Estatuto e criação do Tribunal Penal do outro, mas também míopes em relação
Internacional, mas conservando-se a querela reincidente
e recorrente da não adesão de todos os Estados,
à nossa própria cultura e realidade.
mormente os EUA. O conhecimento da nossa cultura passa,

77
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

inevitavelmente, pelo conhecimento das Finalmente, fundamental é a mudança de


outras culturas. Enquanto acreditarmos que mentalidade: de um hábito de violência e
nossa cultura é a referência única, em força, devemos nos esmerar no uso da
detrimento das demais, corremos o risco do persuasão dos valores e da dignidade humana
etnocentrismo que parece ter sido recriado como categorias de análise para a nova
nas novas versões extremistas religiosas, sociedade global.
culturais, políticas, ideológicas, as quais Postas essas questões, fica evidente a
vêm desafiando nossa sociedade neste início questão dos direitos humanos e sua
de milênio. possibilidade hermenêutica para uma
Acreditamos que a melhor forma de sociedade de alteridade. Dito de outra forma,
buscar uma nova articulação de forças no nosso liame passa pela necessidade de
cenário global (e, conseqüentemente, mais considerarmos a alteridade como elemento
eficácia à proteção dos direitos humanos) seja cimentar para a (re)construção de uma
mediante a compreensão e o respeito ao outro, sociedade mais humana. Por mais recorrente
ao mesmo tempo em que a alteridade seja que pareça, na prática esta perspectiva não
tomada efetivamente como pressuposto de
tem se efetivado, pelo simples fato de nos
(re)organização das relações humanas.
acostumarmos com a perpetuação das
A compreensão do outro não apenas leva ao
aparências e não de essências. Os direitos
reconhecimento de que somos uma cultura
humanos não podem continuar como arriscado
possível entre tantas outras, mas evita a
e ardiloso movimento reflexo, mas, numa
arrogância racial, cultural, econômica,
inversão do curso, projeções de alteridade
política e religiosa; esta última, elemento-
permanentes e de políticas públicas.
chave explicativo, jamais justificador da
lógica própria do terrorismo17.
REFERÊNCIAS
O projeto social merece ser pensado na
perspectiva da identidade que se constrói a ARNAULD, André-Jean e DULCE, Maria José
partir do reconhecimento e da compreensão Farinas. Sistemas jurídicos: elementos para um
da pluralidade e heterogeneidade, não como análisis sociológico. 2.ed. Madri: Universidad
Carlos III de Madri: Boletín oficial, 2006.
negação da individualidade, mas, muito mais,
como sua afirmação e respeito. BECK, Ulrich. Qué es la globalización: falacias
O olhar social precisa passar pela del globalismo, respuestas a la globalización.
Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998.
discussão conceitual do eu que se afirma
no outro, que não implica negação da CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
“Brancosos” e Interconstitucionalide:
individualidade do alter ou da coletividade,
itinerários dos discursos sobre a historicidade
para a conceituação do nós, como parte da
constitucional. Coimbra: Almedina, 2006.
mesma realidade.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
A governança do terceiro capitalismo e a
constituição social. In. CANOTILHO, José
17
Sobre esta discussão, ver Morikawa (2006). A
Joaquim Gomes e STRECK, Lenio Luiz (Org.).
autora traz interessante contribuição para elucidação
sobre a (in)aplicabilidade do Direito Internacional
Entre Discursos e culturas jurídicas. Coimbra:
Humanitário na problemática do terrorismo. Editora Coimbra, 2006, p. 145-154.

78
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma
de direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, teoria interpretativa da cultura. In:
2004. A interpretação das culturas. Rio de janeiro:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; Direito Zahar, 1978.
Constitucional e Teoria da Constituição. HOBSBAWM, Eric John Earnest. Rebeldes
Coimbra: Almedina, 2003. primitivos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
CARDOSO, O. R. Sobre o pensamento 1978.
antropológico. Rio de Janeiro: Tempo JAEGER. W. Paidéia: a formação do homem
Brasileiro/CNPq, 1988. grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CHAUÍ, Marilena. A sociedade democrática. In:
JOHNSON. A. G. Dicionário de sociologia:
Introdução ao Direito Agrário. Curso de
guia prático da linguagem sociológica.
Extensão Universitária, Série O Direito Achado
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
na Rua, v. 3. Brasília: Editora UnB, 2002.
LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia.
CHEVALLIER, Jacques. A Governança e o
São Paulo: Brasiliense, 1978.
Direito. In: Revista de Direito Público da
Economia. PDPE, ano 1, n. 1, jan./mar. Belo LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini. Paris:
Horizonte: Fórum, 2003. p. 129-146. Livre de Poche, 1990.
CRITCHLEY, Simon. The Ethics of LÉVINAS, Emmanuel. Alterity and
Deconstruction. Derrida and Levinas. transcendence. New York: Columbia University
Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. Press, 1999.
CUVILLER, A. Pequeno vocabulário da língua LÉVIS-STRAUSS. Aula inaugural. In:
filosófica. São Paulo: Companhia Editora Desvendando máscaras sociais. 2.ed.
Nacional, 1976. Organizado por Alba Zaluar Guimarães.
DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980.
à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,
LIORENTE, Francisco Rubio. Derechos
1971.
Fundamentales, Derechos Humanos Y Estado de
EVANS-PRITCHARD, E. E. História do Derecho. In: PAGÉS, Juan Requejo (Coord.). La
pensamento antropológico. Lisboa: Ed. 70, Rebelión de las Leyes – Demos y nomos: la
1981. agonia de la justicia constitucional.
FALK, Richard. Globalização predatória: uma Fundamentos: Cuadernos monográficos de
crítica. Portugal: Instituto Piaget, 1999. teoría del Estado, Derecho Público e História
Constitucional. Espanha: Junta General Del
FRANCO, Augusto. Reforma do Estado e do Principado de Asturia, 2006. p. 205-233.
Terceiro Setor. In: PEREIRA, Luiz Carlos
Bresser, WILHEIM, Jorge e SOLA, Lourdes. MARCONI. M. A. & PRESSOTO. Z. M. N.
(Org.). Sociedade e Estado em transformação. Antropologia: uma introdução. São Paulo:
São Paulo: UNESP; Brasília: ENAP, 1999. Atlas, 2001.

GALTUNG, Johan. Direitos Humanos – uma MARTÍNEZ, Gregorio Peces-Barba. Curso de


nova perspectiva. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. Derechos fundamentales: Teoria Geral.
Universidad Carlos III de Madri, Boletín oficial
GRÜN, Ernesto. Las globalizaciones jurídicas.
del Estado: Madri, 1999.
In: Revista FACULTAD DE DERECHO E
CIENCIAS POLÍTICAS. Vol. 36, n. 105. MELLO. Luiz Gonzaga. Antropologia cultural:
Medellín: Colômbia, Julio-Deciembre, 2006. iniciação teoria e temas. Petrópolis: Vozes,
p. 323-338. 2000.

79
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do the temptations of the new Legal formalism.
Estado e da Constituição e a transformação Deconstruction and the possibility of justice,
espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Cardozo Law Review, v. 11, n. 5-6, jul./aug.
2002. 1990).
MORIKAWA, Márcia Mieko. Repensar o direito SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática
internacional humanitário e o humanitarismo. do tempo: para uma nova cultura política.
In: Boletim da Faculdade de Direito. Vol. Porto: Edições Afrontamento, 2006.
LXXXII, Coimbra: Universidade de Coimbra,
SANTOS, Boaventura de Souza; Poderá o
2006. p. 538-535-568.
direito ser emancipatório? In: Revista Crítica de
PRADO, Maximiliano, D. Limitación de los Ciências Sociais. n. 65, maio de 2003. p.3-77.
Derechos Humanos. Algumas consideraciones
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado.
teóricas. Revista Chilena de Derecho. Vol. 34,
Tradução Karim Praefke e Aires Coutinho.
n.1, p. 61-90, 2007.
Coordenação e prefácio de J. J. Gomes
ROSENFELD, Michel. Deconstruction and Canotilho. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste
legal interpretation : conflict, indeterminacy and Gulbenkian, 1997.

80

You might also like