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Todas as citações bíblicas foram extraídas da ACF 2007 (Almeida Corrigida e Fiel)
publicada pela S.B.T.B. (Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil)
www.kalamoseditora.com kalamoseditora@gmail.com
Publicado no Brasil
2018
A DISTRAÇÃO
DO PECADO
Jorge F. Isah
Sumário
AGRADECIMENTOS
PRÓLOGO
INTRODUÇÃO
Preâmbulo
Autoria, data e destinatários
Conteúdo e Propósito
PARTE UM
SAUDAÇÃO
A Santidade Outorgada
PARTE DOIS
DEFESA DA FÉ
Exortação Necessária
Fé Regenerada
PARTE TRÊS
PARTE QUATRO
A SEMENTE DA DISTRAÇÃO
Incredulidade do Crente
A Distração do Pecado
Abandonando o Serviço
PARTE CINCO
A POMPA DO TRAIDOR
O Nexo da Impiedade
A Realidade do Pecado
PARTE SEIS
Inércia Espiritual
No Caminho de Caim
A Recompensa de Balaão
A Incoerência de Coré
PARTE SETE
A INFECÇÃO DO CORPO
A JUSTIÇA INQUIETANTE
A Parousia de Enoque
O Suicídio Espiritual
PARTE NOVE
A MARCA DA MALDADE
Tempos Difíceis
PARTE DEZ
NÃO À AUTOFILIA
Servos Inúteis
Autofilia
PARTE ONZE
PRESERVADOS EM CRISTO
Feitos à Imagem do Filho
A Restauração Prometida
Waldemar e Terezinha,
Não seria justo deixar de agradecer a algumas pessoas que foram de suma
importância para a conclusão deste livro:
Cristo os abençoe!
PRÓLOGO
É com grande alegria que entrego estas páginas ao leitor. Durante mais
um ano, após o término letivo, estive envolvido com este projeto de agrupar,
acrescentar e burilar os esboços servidos de aulas; algo por completo
inusitado para mim, havendo um determinado momento no qual considerei
quase impossível concluí-lo, dada a insatisfação com uma ou outra parte do
texto, mas que, pelo favor divino, foi possível chegar a termo, e um desejo,
por fim, realizado. Vê-lo, agora finalizado, é a demonstração da graça e
bondade divina para comigo.
Esta carta não recebe, entre a maioria dos cristãos, a devida atenção e o
reconhecimento a que faz jus e que deveríamos consagrar. Muitos a leem
superficial e rapidamente; talvez pela ideia de que, sendo o seu tamanho
limitado (apenas 25 versos), não contenha algo de importante e profundo, ou
uma doutrina bem elaborada, como se observa nas cartas paulinas. Nestas,
temos uma riqueza doutrinária exposta de maneira ampla e detalhada,
levando-nos a investigar seu conteúdo com muito mais disposição e
empenho, escrutinando-as meticulosamente, saboreando sua sabedoria e
profundidade em cada verso. Em contrapartida, quase negligenciamos as
poucas linhas de Judas, quando não as tratamos com falta de apreço em
nossos estudos, meditações e pregações, intensificando ainda mais, no
cristão, o desleixo. Abre-se, assim, uma lacuna nas Escrituras na qual
silenciamos a voz de Deus, impedindo-o de falar-nos através desse escrito.
Talvez o motivo seja o fato de ela ter sido uma das últimas cartas a
integrar-se ao Cânon Sagrado, sendo alvo de alguma disputa nos primórdios
do Cristianismo. Talvez, ainda, porque Judas se utilizou de fontes apócrifas
no texto, o que não significa, necessariamente, inverdade, porque em nada
contradiz e diverge da unidade sobrenatural da Escritura Sagrada. Pode ainda
ser que a máxima “tamanho não é documento” seja desprezada ao deparar-se
com ela e muitos considerem a carta sem relevância para os dias atuais, fato a
demonstrar, no mínimo, um desconhecimento monstruoso do quanto Deus
pode revelar aos seus filhos em escassas linhas, que, no entanto, exalam o
perfume bom e fundamental do Evangelho de Cristo.
Nela não há nada que divirja ou contradiga algo dito e descrito na Palavra
de Deus, tornando-a legítima, verdadeira e confiável integrante do Cânon
sagrado. Principalmente em seu aspecto firmemente exortativo e apologético,
na defesa da fé e no combate aos falsos mestres e doutrinas, a carta revela o
perigo real dos servos de Satanás que, ardilosamente, se infiltravam na igreja
a fim de compeli-la a sujeitar-se aos desejos do seu “mestre”: perverter a
graça e causar divisões entre os irmãos. Então, Judas, conclama e desafia-os a
batalhar pela fé, servindo ao único Senhor e Mestre, Jesus Cristo;
resguardando e protegendo-se, como “ekklésía”, dos ataques heréticos
promovidos pelos apóstatas que rejeitavam o Filho em princípios e na prática.
Autoria, data e destinatários
Pode-se afirmar que, pelo fato de Judas ter negado a Cristo, enquanto este
realizava o seu ministério terreno, achou por bem não se colocar como o seu
meio-irmão; em atitude humilde, não reivindicou o parentesco com o Senhor.
Porém, alguns apontarão o contrário, pois, ao revelar-se irmão de Tiago,
indiretamente reclama para si o parentesco com o Senhor, inferência com a
qual não concordo, visto ser-lhe mais prático, caso quisesse realmente
reivindicá-lo, fazê-lo sem que houvesse qualquer dolo ou culpa. Entretanto,
notadamente temos a sua preferência ou predileção por ser reconhecido como
“servo de Jesus Cristo”, de novo revelando a sua reverência e submissão ao
Senhor.
Por isso, não há como fugir à leitura sempre cuidadosa e meticulosa desta
mensagem, cujo conhecimento é indispensável a todo cristão, especialmente
em nossos dias, quando o mal parece interminável, e o desejo de realizá-lo,
uma compulsão, um fetiche moderno. Orientar-nos a enfrentar e derrubar as
ameaças impostas pelas hostes inimigas, que laboram incessantemente para a
destruição do Corpo, pelo qual Cristo morreu, é o cerne, o fundamento dessa
carta.
PARTE UM
SAUDAÇÃO
Misericórdia, e paz,
Há, ainda, outra condição, a de honra por ser servo. Interessante o fato de
no mundo (e não é uma visão apenas atual, mas uma visão que vem desde o
Éden) o homem acreditar-se independente e autônomo de Deus. Mesmo não
assumindo essa condição, no fundo, ele sempre tentou e sempre estará
empenhado em alcançar um estado de “dono do seu nariz”, acabando por
reforçar ainda mais a imaturidade e estupidez por onde caminhou e insistiu
em trilhar. Ledo engano; pois a verdadeira liberdade está em servir, em
cultuar[7] devidamente, e em gratidão, ao Deus misericordioso; cuja
lembrança nos é apontada:
Uma avaliação sincera de nossa vida pode nos expor a uma verdade
ignorada e inaceitável, a de estarmos muito distantes do padrão assumido por
Judas. Ele apresenta-nos uma dependência eterna, constante, necessária de
Cristo, refletida na humildade de considerar-se como tal, servo, sendo essa
humildade algo que desejamos manter afastado, pois queremos é reafirmar-
nos, em todos os sentidos, seja como um bom marido, bom profissional, bom
aluno... Não que isso seja errado, por favor, não confundam; acontece que
desejamos o reconhecimento de ser bom quando não nos movemos na
direção da bondade, não nos esforçamos em ser realmente aquilo que
queremos ouvir; e, novamente, o rótulo precede as atitudes, ao menos em
nossa mente diminuta e coração enganoso... Como seria ser um bom pai?
Como seria ser um bom profissional? Não é quem serve? Por exemplo, um
balconista, cujo atendimento é precário, tratando mal aos clientes, agindo de
maneira desleixada e indiferente, como se fizesse um grande favor em
cumprir com a sua obrigação; poderia ser considerado bom? Ele quer ser
achado como tal, e se sente como tal, mas não se empenha em sê-lo, pelo
contrário, o seu esforço está em evidenciar a sua inaptidão, o compromisso
com o inadequado, levando-o, a efeito, ao fracasso. As pessoas muitas vezes
querem um título sem fazerem jus a ele, sem merecê-lo, porque falta-lhes a
humildade para servir e o entendimento necessário para mudar.
A sua honra está exatamente em ser esse servo, não como alguém pego à
força, conduzido com violência e obrigado contra a vontade; não como
alguém conduzido a ferros ou iludido por algum interesse vão, mas
convencido de nada melhor ser-lhe possível, e mais necessário, do que viver
na submissão voluntária ao Senhor. A liberdade em Cristo representa
precisamente isto: fazer a sua vontade, mas também querer, desejar, ansiar,
por gratidão, fazê-la[10]. Esta vontade não se realiza pela coação, mas
persuadida pelo amor; o amor com o qual Cristo buscou, resgatou, libertou o
pecador cativo, trazendo-o até si, e tornando-o seu servo; mas muito mais
ainda, unindo-o eternamente a Deus, fazendo-o um consigo mesmo. É por
esse amor, e nada mais, que Judas foi feito servo de Jesus; e o faz querer
continuar a sê-lo. Ele não está sendo obrigado a servi-lo, mas a agir assim em
reconhecimento; porque é infinitamente melhor entregar a sua vida, viver na
dependência e fazer-se útil, empregando todos os esforços em prol do
Evangelho, como um escravo subitamente sábio reconhece o seu papel, em
quem se tornou, e no que deixou de ser: um desgraçado, e miserável, e pobre,
e cego, e nu[11].
Por isso, outro ponto, a não ser esquecido nem descuidado, é que servir a
Cristo traz consigo a mesma humildade e honra de sofrer com ele, pois o
sofrimento é marca distinta do cristão. Àquela época havia, como ainda há,
perseguições e mortes para os discípulos do Senhor; de forma que Paulo diz
ser ele a levar na carne as marcas de Cristo[13], o qual, sendo justo, foi
acusado e condenado e morto[14]. Ao se abrir mão do sofrimento, ou evitá-lo,
não estamos em sintonia com o evangelho e suas proposições sábias a dizer-
nos:
"Porque a vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer
nele, como também padecer por ele" (Fp 1.29).
Deus é quem chama e quem santifica a quem quer. É claro que isso nada
tem a ver com a ordem dada à igreja para chamar a todos os homens, sem
distinção, de entre todas as nações e povos, ao Evangelho. São coisas
distintas. Há o chamado universal para que todos ouçam as boas novas[16], e
esta é a missão da igreja, mas quanto aos que atenderão ao chamado geral,
eles serão alguns, muitos, uma multidão, mas não serão todos os homens,
pois essa é a evocação particular e específica de Deus, o cuidado de, no
universo de pessoas reprováveis e odiosas, chamar e capacitar o eleito[17] a
responder positiva e infalivelmente ao convite. Há um convite, mas não é um
convite recusável (considerando-se que, diferente de uma festa de casamento,
por exemplo, na qual podemos comparecer ou declinar, o chamado do
Espírito é irrevogável), de modo que o eleito responde com efetivo gozo e
decisão resoluta.
Existe uma ideia popular, e muito em voga em nossos dias, de a Bíblia ser
um livro que atinge todas as pessoas de uma mesma forma, mas isso não é
verdade. Vemos pessoas que têm conhecimento das Escrituras, alguns são
mestres, acadêmicos, eruditos, têm o hábito de lê-las, de estudá-las, mas
acabam por apropriar-se do que lhes é interessante e descartam o que não é;
relativizando muitas coisas, descrendo em outras, suspeitando, na maioria das
vezes, porque não as têm como a palavra divina inerrante. Em suas mentes é
impossível conceber Deus escrevendo a homens e mulheres (como prova do
seu interesse e cuidado); afinal, por que o faria sendo Deus? Ou é
inconcebível escrevê-las porque, em última instância, ele não existe, e o que
se tem como Escrituras são apenas palavras e linguajar pensado e escrito por
homens. Fica evidente que não são cristãos verdadeiros, assim como muitos
ocupantes dos bancos de igrejas também não o são, pois, o Evangelho não
produz, em si mesmos, a vida necessária para erguê-los das catacumbas
espirituais.
Logo, não há como entendermos esta carta como sendo destinada a todo o
mundo, mas especificamente para a igreja do Senhor, pois Judas dirige-se aos
“chamados, santificados em Deus Pai”; ou seja, apenas os invocados, os
atraídos por ele são os destinatários desta epístola. E há um propósito de
Deus no chamado: formar para si um povo escolhido antes da fundação do
mundo, antes de tudo ser o que é. Paulo remete-nos também a este chamado:
Olhando para trás, vendo o que éramos e, agora, o que somos, não há
como retroceder, como abandonar o caminho no qual estamos postos; voltar
seria como dar-nos, a nós mesmos, o atestado de ingratidão, de
irresponsabilidade, estupidez, incapazes não somente de discernir, mas de
julgar racionalmente. Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que
um homem acometido de insuficiência cardíaca, necessitando de um
transplante de coração, após recebê-lo e ter um novo sopro de vida, decidir
voltar atrás e querer restituído o velho e condenado coração. Você iria querê-
lo? Acho que não. Assim acontece com a regeneração, somos capacitados e
habilitados a compreender a diferença do passado para o presente, de maneira
a jamais querer aquele novamente. É como o soldado em tempo de paz: a
menos que seja psicopata ou louco, jamais desejará voltar aos campos de
batalha. Assim sendo, o homem natural não tem diante dos seus olhos a
opção, a possibilidade de escolha, mas uma via apenas e, se o Espírito não
operar nele, permanecerá nesse estado eternamente.
Se não fui por demais confuso, definiria da seguinte forma: Deus opera
em nós toda a sua deliberação, inexoravelmente, abrindo olhos, mente,
coração e alma para compreendermos a sua boa e perfeita vontade,
transformando-nos e persuadindo-nos, de maneira irresistível, ao ponto de
não podermos rejeitá-la. A sua bondade e amor são tamanhos que qualquer
possibilidade de rejeição em servi-lo significaria a incompreensão e, por
conseguinte, uma mente fechada, presa, guiada e dominada pelo pecado; uma
mente envolta em trevas onde a luz ainda não transpareceu. Essa é uma visão
geral daquilo a ser realizado infalivelmente pelo Senhor em nós, contudo
pequenos percalços acontecem no caminho. Somos forçados a parar algumas
vezes, a perder algum tempo, até mesmo recuar um ou dois passos na estrada,
a fim de retomarmos a trajetória devida e correta, mas nada impedirá a
conclusão da boa obra de Deus iniciada e a estabelecer-se em nós (Fp 1.6).
O Amor Que Preserva
Torna-se premente, mais uma vez, o autor revelar à igreja a sua condição
de sujeição e dependência extrema e necessária a Cristo, em uma ratificação
da humildade à qual os servos também são chamados. Somos aqueles que,
dados pelo Pai ao Filho, fomos “blindados”, selados, para uma vida eterna em
comunhão e serviço a Deus.
“E em nada vos espanteis dos que resistem, o que para eles, na verdade,
é indício de perdição, mas para vós de salvação, e isto de Deus. Porque a
vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer nele, como
também padecer por ele, tendo o mesmo combate que já em mim tendes visto
e agora ouvis estar em mim” (Fp 1.28-30).
“E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei
antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo... Portanto,
qualquer que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de
meu Pai, que está nos céus. Mas qualquer que me negar diante dos homens,
eu o negarei também diante de meu Pai, que está nos céus” (Mt 10.28; 32-
33).
“Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está
preparado desde a fundação do mundo” (v.34).
Alguns poderão inquirir: “Mas, por que então Deus nos exorta a manter-
nos firmes para não perdermos a coroa?” (Ap. 3.11; ver Ap. 17.14).
Hoje em dia é muito comum se ouvir dizer: “Irmão, deixa de ser crítico, o
importante é o amor!”. Ou: “Devemos amar os nossos irmãos ainda que
estejam no erro!”. Ou ainda, “Deus amou o mundo, por que não podemos
amá-lo também?”. E: “julgar é pecado!”. São frases aparentemente espirituais
e piedosas, mas que denotam pouco ou nenhum entendimento quanto à
gravidade do que acomete a igreja atual. A forma descuidada de se levar a
vida cristã, como um estilo de vida igual a qualquer outro, podendo coexistir
e interagir tranquilamente com as forças ansiosas por destruí-lo, simbolizam-
se nas frases prontas e autoritativas dos opinadores de plantão, aqueles
capazes de relativizar tudo menos a própria opinião.
O amor, por si só, é inclusivo. Posso amar uma pessoa ainda que ela não
me ame e posso ser amado por alguém sem que eu o ame. Porém, a verdade é
exclusiva, porque não se juntará ao erro ou engano, mas o revelará, a expor-
lhe o falso caminho. Por isso, Satanás se empenhou em destruir a verdade no
coração do homem. Desde o Éden, o seu trabalho incessante é com o objetivo
de desqualificar, relativizar e descontextualizar a verdade, a ponto de ela ser
desfigurada, descaracterizada e, por fim, anulada como um princípio
espiritual, racional e moral, sendo removida e substituída pela carnalidade, a
irracionalidade e pela má-fé ardilosamente tramada. Logo o mundo não quer
saber de absoluto, nem de verdade, pois, onde ela estiver, a fraude ficará
evidenciada, será denunciada e desmascarada, enquanto a mentira se torna a
opção mais servil, favorável e multifacetária aos intentos do seu autor.
Segundo Cristo:
“Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por
mim.(...) Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me
ama (...)” (Jo 14.6, 21).
Segundo João:
Tentar justificar qualquer atitude ou postura com base naquilo que não é
bíblico é uma tentativa de sustentá-lo através do engano. A mente humana é
prodigiosa em se autovalidar e o que muitos de nós têm feito é exatamente
isso, dar chancela a algo que não procede da vontade de Deus, mas
unicamente tem por significado nos justificar diante de nós mesmos e, de
certa forma, diante da Igreja e de Deus. Usar o argumento de que tal
procedimento não está proibido expressamente na Escritura não quer dizer
que ele seja autorizado. Nós ainda não nos acostumamos completamente com
a subserviência, o sujeitar-se ao nosso Senhor, e queremos propagar uma
liberdade que não temos. Onde está escrito que o escravo tem alguma
liberdade? Cristo nos comprou com o seu sangue para nos libertar do pecado
e da maldição do inferno, para habitarmos o seu Reino de glória e para que
tivéssemos uma íntima comunhão com ele. No entanto, em momento algum
ouve-se ou lê que temos liberdade para fazer isso ou aquilo à revelia da
Escritura. Iremos respeitar seus ensinamentos, a menos que não a
consideremos nossa regra de fé e vida; a menos que a desprezemos, não a
julgando como a fidedigna palavra de Deus; a menos que falemos da boca
para fora, porque não recebemos o amor da verdade para a salvação (2Ts
2.10); a menos que o nosso coração esteja tão arraigado às coisas do mundo
que a melhor das atitudes é a negligência e a desobediência. Seria isso uma
prova de amor ou de desamor? Não seria o mesmo que buscar justiça na
injustiça? Cristo em Belial? Fidelidade na infidelidade? Deus entre os ídolos?
(2Co 6.14-16). Ou, para ser mais claro ainda, verdade na mentira? Contudo,
conforme Tiago 1.16-18, fomos gerados pela palavra da verdade, para não
errarmos; porque “toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto,
descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de
variação” (v. 17).
O salmista escreveu:
O amor, como Paulo diz, é o maior de todos os dons. Usá-lo como escudo
para a desobediência, além de desamor e hipocrisia, é pecado. O amor
verdadeiro não é inimigo da verdade, nem a verdade inimiga do amor. Eles se
complementam; são manifestados na obediência a quem se ama, na forma em
que o serve, em como se sujeitará e o honrará. Palavras como edificar,
crescer, santificar e glorificar são indissociáveis, não andam separadas. Quem
espera ou acredita na desagregação entre o amor e a verdade é o crédulo no
impossível: crer que o Evangelho é uma farsa!
Porém, aquele que está na verdade não teme nem precisa temer o amor,
porque o amor perfeito lança fora todo o temor (1Jo 4.18); “de sorte que o
cumprimento da lei é o amor” (Rm 13.10).
PARTE DOIS
DEFESA DA FÉ
"Amados,
e exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos".
Exortação Necessária
Quando alguém diz: “Quem me ama, ama assim como sou!”, parece estar
proferindo uma máxima acomodada ao senso comum e que, via de regra,
tenta glamurizar os erros e enganos, fazendo-os parecer dignos e enlevados,
de tal modo que, como parte da essência humana, devem ser vistos em pé de
igualdade com tudo aquilo desejável e correto. De fato, colocando o amor
numa perspectiva divina, vemos que Deus, ao olhar para nós, não viu senão
pecado e depravação, inimizade e afronta, porém, mesmo assim, nos amou,
amou à perfeição. Por isso, como prova desse amor, resgatou-nos pelo sangue
de Cristo, para que um dia sejamos como ele, perfeito, virtuoso, imaculado.
Deus nos amou na eternidade, vendo, ao mesmo tempo, o que fomos, somos
e seremos; vendo o seu trabalho produzir homens e mulheres santos,
abandonando-se a si mesmos para assumirem o bem de que não dispunham,
como uma dádiva oferecida e conquistada na perfeição do amor divino e
recebida em gratidão.
Essa noção traz embutida em seu bojo muito mais do que uma
divergência temporal ou cultural, mas a negação de que a Bíblia seja um livro
inerrante e infalível, quanto mais uma obra de autoria sobrenatural e de
inspiração divina, resumindo-se, o seu relato a um simples conselho moral e
pessoal dentro de um esquema ou modelo eclesiástico ultrapassado,
antiquado e até mesmo desnecessário, em nossos dias, o qual pode ser
reconhecido e aceito ou não, sem significar danos maiores ao rebelde.
Portanto, com a intenção de inocentar o homem, o pós-moderno ou liberal
condena a Bíblia como falsa, ao menos no que ela tem de mais importante:
ser a fidedigna palavra de Deus.
- Ah, então o seu problema é fé, uma fé pequena que o faz crer apenas em
algumas frases, contidas no mesmo livro que você descrê, mas que,
maravilhosa e sobrenaturalmente, estão em perfeita harmonia com tudo o que
nele está escrito
Tento demonstrar que não faz sentido, não há lógica em não se crer no
todo, mas acreditar em uma de suas partes, porque se o todo é falso ou não é
completamente verdadeiro, como acreditar em partes pinçadas do todo e
torna-las verdadeiras? Ou o todo é completamente confiável, ou nenhuma
parte dele é; pois, nem mesmo a fé no Jesus que dizem crer é verdadeira,
posto estar em flagrante contradição com o livro que o revela. Entretanto, se
apegam a uma fé titubeante e irracional, que lhes formata a alma e os leva a
crer apenas e tão somente naquilo em que o seu julgamento pessoal advoga
como verdadeiro, tornando-se juiz de algo infinitamente superior e
incompreensível, em sua sobrenaturalidade, muito além do que a mente
poderia estabelecer por si mesma.
Então, pergunto:
Inquiro-o, novamente:
O autor escreve com diligência acerca da salvação comum, mas o que viria a
ser a salvação comum? Uma salvação reles, ordinária, partilhada e disponível
a todos? Ou estaria a falar de algo específico, exclusivo?
Há de se notar que a carta foi escrita para a Igreja e não tem como
objetivo comunicar-se com os de fora, ainda que a Bíblia o faça de maneira
extemporânea, mas sabendo sê-la redigida para os cristãos, os eleitos.
Alguém pode dizer ser um erro limitar a extensão da Palavra, mas é o próprio
Deus quem o faz, no sentido mais intenso e amplo daquilo entregue, dirigido
ao Corpo de Cristo, e, por sê-lo, excluem-se automaticamente aqueles não
pertencentes ao Corpo, operando sem que a vontade destes seja manifesta. Há
uma confusão entre o agir divino e humano, como se aquele dependesse deste
e a vontade de Deus estivesse sujeita à nossa; porém, com certeza o iníquo
não deseja pertencer ao Corpo, e a sua volição, aprisionada pelo pecado,
mantém-no atrelado à sua natureza de forma inescapável, em contínuo estado
de oposição ao Criador, mas em conformidade com a vontade do Criador,
que não o quer partícipe da Igreja, colocando as coisas em seu devido lugar:
se Deus não quer, não há quem queira; se ele não agir, não há quem o faça
em seu lugar; portanto, o homem somente abandonará a sua condição de
inimigo se Deus achegar-se a ele, demovendo-o da sua aversão,
restabelecendo a ordem na alma, tirando-lhe a venda a fim de ver a verdade,
somente possível na luz; do contrário, haverá apenas trevas, trevas e mais
trevas, onde o homem não pode ver nada, nem mesmo reconhecer a si
próprio.
Logo o autor não pode falar de algo comum a todos, e sim algo que não é
compartilhado pela maioria das pessoas. Seu foco é dirigido aos “amados”,
escrevendo-lhes porque, como Igreja, todos nós somos participantes da
mesma salvação especial, não como uma possibilidade, mas como uma
realidade inexpugnável, uma certeza infalível, pelo mérito exclusivo de
Cristo ao sacrificar-se na cruz, resgatando-nos da perdição e reconciliando-
nos com Deus. Podemos concluir que ele trata da salvação comum a si
mesmo e que também é compartilhada pelos eleitos, aqueles por quem o
Senhor morreu, comprando-os pelo seu próprio sangue (At 20.28),
ressaltando o caráter exclusivista e direcionado não a uma assistência
indefinida, vaga, mas a um corpo identificado pelas marcas produzidas pelo
Espírito, capaz de transformar a mente natural em espiritual: a mente de
Cristo (1Co 2.16).
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é
dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie”.
“Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o
Senhor dos Exércitos.” (Zc 4.6)
Esse tipo de fé não gera a certeza, nem faz o homem reconhecer a sua
dependência do Senhor, mas acaba por colocar em suas mãos o destino de
sua vida, no sentido mais grandiosamente espiritual (como uma pretensão,
não uma realidade). Desse modo, seres imperfeitos e volúveis têm uma
direção insegura e uma sina garantida: terminar entrando fatalmente no portal
do Inferno, se depender, mesmo que em algum aspecto, da sua disposição ao
bem, ao santo, à amizade sincera com Deus. Nota-se essa impossibilidade na
vontade humana de buscar a reconciliação com Deus e de manter-se intacto
na condição de pureza, necessária para a salvação. Assim como o etíope não
pode mudar a sua pele, nem o leopardo tirar as suas manchas, o homem não
pode ir a Deus se, primeiro, ele não for até o homem. Este só pode ir a Deus
pelo poder de Deus (Jr 13.23).
A fé dada aos santos tem o selo de garantia da Trindade, sendo que a não
citação ao Espírito pode ser inferida pelo simples fato de que a santificação é
sua obra. Mediante a fé, mesmo com nossas fraquezas, inconstâncias e
dúvidas, temos a segurança de não ser possível perder a salvação, uma vez
que nos é dada.
Ora, o cão e a porca não são ovelhas, eles têm uma natureza, e
mantiveram-na, voltando para as suas origens, em conformidade com aquilo
que não podiam deixar de ser e fazer, a fonte das suas satisfações, da
necessidade imprescindível de suas existências e natureza intransigível: o cão
ao vômito e a porca à lama.
Uma pessoa que se diz crente, mesmo durante muitos anos, e então
abandona a fé, “desviando-se”, age tal qual o cão e a porca voltando ao que
sempre foi e nunca pode deixar de ser; porque é, e não pode ser aquilo que
não é, sem Deus mudar-lhe a natureza. De outra forma, continuará o mesmo,
a despeito dos lacinhos, penduricalhos e enfeites colocados pelo seu
“senhor”.
Por algum tempo, a porca pode até se manter limpa, mas bastará uma
poça de lama, ou um charco, para ela se refestelar no limo e se deliciar na sua
sujeira.
A Fé dos Incrédulos Contra a Verdadeira Fé
Paulo nos alerta a tomarmos cuidado com esse tipo de pessoa, cujo
discurso é a insanidade em estado bruto e cujo raciocínio é um disparate
esmerilhado pela confusão, ininteligível:
Toda essa trama se parece, em muito, com o relato do Éden. Adão e Eva
eram livres, podiam fazer o que quisessem, onde quisessem, sem infringir
nenhuma lei ou norma. A exceção era não comer da árvore do bem e do mal.
Surge então a serpente, com sua lábia, com seus argumentos falaciosos,
distorcendo a verdade e colocando diante do casal uma realidade somente
possível em suas mentes ingênuas, mas cobiçosas. Estava instalado no mundo
o espírito revolucionário, aquele mesmo que defende a quebra da ordem em
nome do caos, da autoridade legal em nome da tirania postiça, da liberdade
em escravidão, e transforma a verdade em entulhos, lixões de mentiras.
O que não lhes fazia falta, nem lhes era necessário, a partir do discurso
enganoso da alimária – ardiloso, mas irracional –, desejaram ter e ser muito
além do que tinham e eram, quando podiam ter tudo e eram a obra-prima da
Criação. A sedução pelo objeto proibido, aquele fruto que assumira uma
aparência aprazível e desejável, sendo que até então não lhes aguçara a
cobiça, somente foi possível pelo palavrório astuto, capaz de persuadi-los,
entregando-os à desobediência, à ambição irreal, a uma fantasia. Assim, Adão
e Eva se viram aprisionados em sua própria vontade. Havia um único desejo
na serpente, fazer com que eles fossem enredados em seu discurso e
convencidos a pecarem, rebelando-se contra a única ordem divina que os
manteria sob os auspícios da graça. No fim das contas, o casal entregou a sua
resolução à vontade da serpente, tornando-a cativa ao desejo alheio, como se
fosse o seu próprio anseio. A liberdade anelada, ser igual a Deus, se tornou a
prisão mais penosa de se perder o prêmio ilusório e receber o castigo
genuíno. Ao invés de subir aos céus, desceram aos umbrais da miséria
humana.
É o que advoga, por exemplo, Richard Dawkins[40], ao propor o mesmo
tipo de libertação delirante: aprisionar o homem na sua vontade irresistível de
fugir da realidade e abraçar uma disposição insana que, dados os contornos
beligerantes e raivosos, constitui-se em uma iminente tragédia, primeiramente
individual, para depois se abrigar entre os seus pares, cauterizados pelo
sentido de revolução, e manter-se enclausurada pelo entorpecimento.
Tal qual as seitas, que têm como uma das características marcantes a
salvação e verdade apenas para quem está nelas, o materialismo/ateísmo
apela para o fim da intransigência religiosa, cujo antídoto é a... intransigência
antirreligiosa. Então, se abrirão as portas da liberdade para aqueles
iluminados entregues ao espírito “messiânico” de salvar o mundo, as pessoas
e a civilização do sobrenatural. Pois é o seu caráter extraordinário que impede
o homem de trilhar os seus próprios caminhos, de traçar os seus destinos, de
se ver livre de toda uma tradição e cultura centrada na divindade, no seu
governo e dependência. Urge voltar à simplicidade, mas ela se resume ao
retorno à vulgaridade, ao ordinário, como se uma flor murcha atolada no
esterco pudesse exalar o aroma de frescor e vivacidade perdidos, não o cheiro
sufocante de corrupção. Estando-se sob as ordens de Cristo, não se pode ser
livre. É preciso destituí-lo, tirar-lhe o cetro, arrancá-lo do trono, depô-lo a
todo custo.
Quando a cultura atual destina boa parte do seu tempo, esforço e dinheiro
em insuflar o homem na satisfação dos prazeres mais tolos, em nome de uma
excitação, euforia, ou o que comumente se chama de “adrenalina” (por sinal,
tudo hoje praticamente se resume a isso: alguns momentos de êxtase e
insanidade), pode-se perceber uma volta ao homem primitivo, ao qual, por
questão de sobrevivência, era necessário passar por perigos e ameaças, nunca
por prazer. Com raras exceções, eles sempre as evitavam, ainda que
soubessem reais e possíveis de ocorrerem em sua vida ou a qualquer
momento.
E como tal, não prescinde a fé, mas vive por ela... equivocadamente,
diga-se de passagem, posta num ídolo de barro. No caso de Esaú, o desejo
saciado, mas a alma afligida; no caso do homem moderno, o desejo é a
repetição constante dos apetites insaciáveis, da compulsão desmedida, da
desordem interior, que ao negar a fonte de água viva, Cristo, em seu
desespero, cava poços profundos em terreno árido, sem que o seu coração se
satisfaça, mas se mantenha sedento.
Com isto, não estou dizendo que todo ódio, raiva ou ira tem como
pressuposto o desconhecimento, mas que, mesmo para se odiar é preciso
haver um tipo de intimidade, se não for no trato, ao menos quanto aos atos e
informações necessárias a fim de se formar um juízo correto, e não se
entregar as conjecturas, a presumir de alguém aquilo que esse alguém não é.
O ódio, como um simples desejo (e me parece ser esse o ponto central dos
ateus e antirreligiosos), é o reflexo direto da imperfeição humana, incapaz de
amar, de entregar-se ao conhecimento verdadeiro, para abandonar-se ao
embuste, a uma imagem especulada, um delírio sofístico, onde uma ideia
subsiste apenas pelo desejo e não pelo conhecimento, que é o verdadeiro
desejo de travar intimidade, averiguando, distinguindo, honesta e
diligentemente, o âmbito de tudo o que envolve essa relação.
O homem não pode, por seus próprios meios, voltar ao que era, à
perfeição do momento em que as mãos do Oleiro o delineou. O homem só
poderia ser ainda mais aquilo que o desejo, como uma maldição, estabelecera
por castigo, punição, para o pecado. Cada vez mais, à medida em que as
gerações se sucediam, especializava-se no apuro da perversão, da
malignidade, do desprezo e oposição odiosa a Deus. O homem, por si
mesmo, estava condenado a uma vida de destruição, tragédias, e o destino de
caminhar até as profundezas da corrupção. Não havia esperança, nem
conforto, nem alívio nele, somente o alastramento da dor, das feridas,
produzindo maldade sobre maldade, aflição e angústia em uma existência
permeada pela incapacidade de voltar a si, ao que fora um dia; ao ponto de
essa volta sequer ser cogitada; não mais se lembrava do favor, da graça, da
benignidade, e da responsabilidade com a qual Deus cuidava do homem. Ele
se viu cada vez mais abandonado em si mesmo, e por si mesmo, sendo um
fardo, uma desgraça sem reparação.
O homem não podia viver para si ou por si; então, quanto mais distante
daquele homem criado à imagem divina, tanto maior o desejo de aniquilar o
Imago Dei em si, quanto mais autossuficiente e independente se considerava,
tanto mais abandonava o conselho divino em favor da sua falsa sabedoria,
quanto mais distante da ordem dada e mais próximo da desordem almejada,
tanto mais ingrato e tolo, quanto mais fora de si, do homem criado à
semelhança de Deus, mais odiosa e repulsiva parecia-lhe voltar ao homem
perfeito. A verdade concreta do homem insuficiente sem Deus trouxe à tona,
pelo desejo mítico, a realidade de que o mal fizera morada no homem e de
que a sua alma estava completamente entregue a um desejo perverso de
autonomia, o pesadelo da autojustificação sem que houvesse a menor chance
de reparação. Fatalmente condenado, o homem estrebuchava em seus últimos
estertores de vida. O desejo, como uma mentira na qual se fiou, afastava-o da
verdade que não produziu, mas que lhe cairia sobre a cabeça, como uma
sentença definitiva de morte. O castigo eterno não presumido, aproximava-se
à galope, a despeito da obstinada rebeldia de negá-lo, assim como negou a si
no passado, e o fazia novamente agora.
Foi Thomas Mann quem disse a seguinte frase: “Para quem está fora de si
nada parece mais detestável do que retornar a si mesmo”[44]. Ainda que ele
não esteja se referindo à questão ora apontada, ao menos de maneira
explícita, pode muito bem nos servir de analogia, quando confrontamos o
homem perfeito, Jesus Cristo, o segundo Adão, com o próprio Adão e a raça
humana. O homem sem a manifestação do poder do Espírito em sua vida é
apenas um teimoso, envolvido em sua própria teimosia de odiar e ter aversão
ao Homem perfeito que também é o Deus perfeito (e por ter a absoluta
perfeição). Assim, o homem natural e caído satisfaz-se no desejo alcançado
da imperfeição.
Ao não desejar o que deveria, ele nega, pelo próprio desejo, a autonomia
que diz ter, revelando o escravo que é, servo do pecado, sujeito a ele como o
mais submisso dos criados. Por isso, o cético se atreve a empreender a sua
cruzada “anti-Deus”, onde não existe apenas a inimizade contra o Criador,
mas a ferocidade arrogante de não reconhecer a própria destruição. Como
uma nuvem opaca a envolver seus olhos, diz odiar o que é incapaz de crer,
para entregar-se ao desejo de não crer, ou conhecer, e odiar como a afirmação
da própria ignorância. E se esse homem está a navegar em um mar de muitas
possibilidades, põe a sua segurança em um barco sem velas, motor, quilha ou
timão; está à deriva, e ainda se considerará o senhor do seu destino. Se a
graça de Cristo não o encontrar e o socorrer, não lhe restará outra coisa a
desejar além de mais ódio, contra todos, contra tudo, até mesmo contra si (o
ódio implícito que o faz entregar-se ao desejo explícito de rejeitar e negar a
realidade divina). No final, o ódio lhe bastará para fugir da obrigação de
encontrar-se naquele que é tudo, e pelo qual vivemos, nos movemos e
existimos. O desejo jaz nesse homem, obrigando-o a renunciar a qualquer
possibilidade de se tornar em o homem santo e perfeito, e a não cuidar de si.
E os subterfúgios que utilizará apenas o farão não reconhecer o crime, mas
não o impede de ser condenado como criminoso.
A campanha impetrada não tem contornos sutis, ainda que possa surgir
dissimuladamente sob o rótulo de “autoridade”, “academicismo” ou
“erudição”.
“Tenho-vos dito estas coisas para que vos não escandalizeis. Expulsar-
vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar
cuidará fazer um serviço a Deus. E isto vos farão, porque não conheceram
ao Pai nem a mim... Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no
mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (Jo 16.1-3,
33).
Pois, onde está o nosso inimigo? Se não o vemos, seja por estar
camuflado ou fingindo-se amigo? Contra quem lutaremos se não podemos
identificá-lo, reconhecendo, ao contrário, que todos são nossos amigos? Se
Cristo veio para revelar as trevas e destruí-las com a sua luz, por que dizemos
ver, ao nosso redor, uma bruma na qual não distinguimos um palmo à frente
do nariz? Se não somos perseguidos, nem escorraçados, ou presos e
condenados por nossa fé, é sinal de que somos aceitos pelo mundo, ou o
mundo está fazendo-se de tolerante e amigo para impedir-nos de combater o
bom combate e guardar a fé? (2Tm 4.7).
"Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede
prudentes como as serpentes e simples como as pombas" (Mt 10.16).
“Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de
mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de
homens” (Mt 15.8-9).
Então, como posso negar as leis e não negar o seu autor? Como se pode
afirmar o amor a Deus, rejeitando a sua palavra, e pretender cumpri-la? É
possível descumprir os preceitos e honrar o seu criador?... Subsiste uma
tentativa sutil de legitimar a mentira e a impostura, dizendo-se honrar aquele
que as proíbe e odeia.
Talvez, por isso, haja cada vez mais uma difusão da ideia de o crente não
precisar da sã doutrina, de ela ser coisa de homens, bastando um espírito
amoroso para se estar ligado a Deus (sendo o amor aqui o salvo-conduto para
o desleixo, a indolência, a inépcia, o engano, a dissolução, o pecado, a
heresia). Como nunca, tem-se intensificado o espírito na igreja de que os
sentimentos e emoções são o norte pelo qual o crente deve se guiar, numa
inversão de princípios absurda, na qual sinceridade e verdade se tornaram
sinônimas. Quase nenhuma doutrina deve ser defendida e, quando muito,
cabe a cada um saber em qual aspecto ela lhe é interessante ou não, deve ser
descartada ou não, sempre moldada ao apelo ou desejo pessoal; em uma
equação proporcional na qual, diminuindo o fervor e o estudo da Bíblia,
aumenta-se o número de crentes fracos, inseguros, supersticiosos, moldados
segundo os seus desejos e se tornando presas fáceis para as astúcias malignas.
Quando a igreja despreza uma ordem direta do Senhor de que o evangelho
deve ser proclamado e ensinado, fazendo-se discípulos (Mt 28.18-20), a
proximidade com o mundo será mais intensa e menos distinguível.
“Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz
frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar
frutos bons” (Mt 7.17-18).
Para eles, existe a verdade sem Deus ou Deus sem a verdade; mas a
verdade sem Deus não existe, nem Deus sem a verdade, porque a primeira
não passa de abstração, a loucura máxima a que o homem pode atingir,
enquanto a segunda é a blasfêmia em sua forma mais virulenta, a treva mais
densa na qual o homem pode penetrar; porque a verdade, para ser real e não
uma fantasia leviana, tem de provir de Deus, o qual é a única verdade (Jo
14.6).
Para eles, a verdade não precisa ser defendida nem proclamada, mas
escondida a sete chaves como um tesouro secreto do qual não se sabe o
esconderijo nem se tem o mapa. Outros alegam o fato de ela ser dependente
do veículo que a professa, ou seja, ela não existe em si mesma, mas a partir
da concepção e interpretação das pessoas, podendo um mesmo fato ser
verdadeiro para mim e falso para alguém ao meu lado. Porém, por que devo
aceitar essa concepção, rendendo-me ao argumento do seu promotor, se, em
favor de si mesma, ela não pode alegar nenhuma autenticidade, nenhuma
razoabilidade? De que seja verdadeira? Se não existe a verdade e tudo pode
ser moldado à minha intuição, como posso garantir que sou o que sou?
Mesmo sendo um demente, considerando-me um cão ou uma palmeira, a
despeito da minha incapacidade de reconhecer-me, ainda continuarei sendo o
mesmo homem, vivendo o delírio de ser um animal irracional ou vegetal.
Nada, a despeito dos meus esforços, me fará tornar-me qualquer um deles e
aos olhos de todos continuarei pertencendo à espécie humana. Não há
convenções que alterem isso, a menos que estejam desfocadas da realidade,
contaminadas pelo próprio vício de não desejarem ser o que são.
Para eles, a igreja não precisa da verdade. Como Paulo diz, eles não
suportarão a sã doutrina:
Somente Cristo pode nos libertar das ruinas, através do Evangelho. Sem
ele, tudo é permitido, mas nada possível; sem ele, a condenação é certamente
a mais pura verdade, a despeito de todas as negativas, suposições, dúvidas e
imposições, em nome da exaltação humana e do rebaixamento divino, de um
liberalismo intoxicado pelo ódio à verdade em detrimento dos princípios da
ortodoxia e ortopraxia cristãs.
Por fim, o autor aponta para algo que provavelmente já acontecia em sua
época, a descrença na divindade de Cristo. Ao afirmar que negam a Deus,
único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo, fica evidente que essa era uma
dúvida posta sem escrúpulos, de maneira atrevida, a fim de solapar as
características distintivas da igreja, pelos inimigos em seu seio.
Não entraremos nas várias heresias que tentam justificar a não divindade
de Cristo; esse não é o ponto abordado por Judas. De forma direta e objetiva,
ele alerta a igreja a não cair na perversão de negar a união do Filho com o Pai
e o Espírito em essência, natureza e propósito, na qual a honra e glória
destinadas ao Pai, também são do Filho, como do Espírito, pois os três são
um (Jo 5.7)[48]. Não são três manifestações ou estados de uma única pessoa,
mas três pessoas eternas, inseparáveis, porém distintas, sendo um único Deus.
E a verdade é que, ao tencionarem “criar” um outro Cristo, não se
aperceberam de que, acreditando terem algo, não tinham nada, pois ou Cristo
é o Filho de Deus, sendo o próprio Deus, ou tudo o que imaginam dele, como
um simples homem, mestre ou espírito elevado, se dissipa no ar como éter.
Mas, por que escreveu isto? Com qual objetivo? Este trecho não parece
deslocar-se do restante do verso, como algo a acrescentar pouco ou nada?
“E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma: temei
antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo. Não se
vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a
vontade de vosso Pai.” (Mt 10.28-29)
Ora, se nem um passarinho, por menor que seja, cai sem se manifestar de
forma objetiva e direta a vontade divina, podemos dizer o mesmo daqueles
homens iníquos a invadirem a igreja primitiva, intentando destruí-la? Estaria
o Senhor agindo descuidada e levianamente? A ponto de ver frustrado o seu
plano? Quanto a isso, o autor nega com vigor e veemência, pois eles haviam
sido antes escritos para esse fim.
Considero por bem ressaltar, mais uma vez, este ponto: a ação divina não
é passiva. Não é como se Deus visse que o homem se salvaria, se santificaria,
se esforçaria em entrar no Reino, o aceitaria e, então, somente então, Deus o
predestinaria e elegeria. Que eleição é essa onde o eleito é quem se
autopredestina? Onde o escolhido se escolhe e impõe a sua escolha por seus
próprios méritos para aquele que o predestinou? O que vem primeiro: a
predestinação ou o esforço do eleito em satisfazê-la e, por fim, vir a ser
predestinado? Seria o mesmo que dizer: alguém se afogou antes de entrar na
água.
Seguindo essa lógica, se Deus viu o que iria acontecer como algo certo,
uma vez que o previu, por que o determinaria, já que o fato é, em si mesmo,
exequível e não dependeu da sua vontade ou decisão para ser observado?
Nesse caso, Deus seria apenas um oráculo, o qual somente vislumbraria o
acontecido, sem nenhum controle sobre ele. Pelo contrário, o fato previsto
seria soberanamente livre, impedindo Deus de agir para mudá-lo, ainda que
não fosse de seu agrado. Isso não levaria à conclusão de que esse “Deus”
antes de ser pessoal é um “Deus” impessoal? E a predestinação, assim como
a eleição, não passaria de uma piada sem graça, um chiste, que tornaria esse
“Deus” uma mera testemunha a endossar forçosamente até mesmo o que lhe
contrariaria? De forma que a sua soberania seria duvidosa, e tudo, desde a
Criação, teria de ter outra explicação. Tudo, na verdade, não poderia vir da
vontade desse “Deus”, mas de outra força, pois o que ele faz é consentir que
cada evento ocorra como vislumbrado; assim, a sua vontade seria adequada a
cada evento, de tal forma que eles permaneceriam imutáveis. A vontade dele
se subordinaria à inexorável realização do ato antevisto, o que levaria à
quebra de outro atributo divino: a imutabilidade, já que os fatos, em si,
seriam imutáveis e Deus condicionaria ou flexibilizaria o seu governo
segundo a realidade soberana da vontade humana. Esta seria a mesma
vontade que dirigiria a história e levaria Deus apenas a validá-la, a endossá-
la, como uma posse indevida de algo que não lhe pertencesse intrinsicamente,
algo que pareceria seu e refletiria uma autoridade derivada.
Por todos os lados, o que temos aqui não é o Deus bíblico, mas alguém
impotente, escravo da visão; um “Deus” transitivo quando a revelação nos
apresenta o Deus intransitivo, completo e perfeito em si mesmo. Sem contar
o elemento “tempo”, no qual ele estaria preso ou condicionado.[53]
Porém, alguém pode questionar: Por que Judas tocaria nesse ponto
doutrinário sendo que o objetivo da sua carta é exortar a igreja a cuidar-se, a
defender-se do ataque dos inimigos e falsos mestres?
A SEMENTE DA DISTRAÇÃO
"Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que,
destruiu depois os que não creram; e aos anjos que não guardaram o seu
principado,
O que o autor relata nestes versos? Qual o ponto principal ao qual chama a
atenção? Ele nos lembra de fatos que aconteceram no passado e dos quais não
devemos esquecer. Quais? Você, caro leitor, pode citar dois dos mais
importantes, entre tantos? Darei um minuto para pensar...
Antes de dar a sua resposta, gostaria de fazer uma ressalva: Judas diz, no
verso 5, que a igreja deve se lembrar de algo e, com isso, ele não está dizendo
que proferirá novidade, como muitos parecem querer em nossas igrejas
ultimamente. As pessoas estão em constante busca pelo inesperado, pelo
desconhecido, sem o qual a vida parece não ter sentido; em que o curso
natural ou regular das coisas tem de ser quebrado, interrompido, a favor de
algo muitas vezes letal e destrutivo. Essa visão “meio hedonista” (e suicida,
em si mesma) de ligar novidade ao prazer, faz com as pessoas não tenham
gozo nem alegria em ouvir o evangelho se ele não tiver algo a motivá-las, a
mudar o curso regular da fé cristã (utilizando-se de parafernálias a alterar o
seu sentido real tornando-a algo insólito, artificial e antagônico), de modo a
deixa-las em um “clímax” ou surpreendê-las. Na verdade, não o ouvem
porque ele não é pregado, em boa parte dos púlpitos, e o que fica é apenas a
sensação de bem-estar, de conforto momentâneo diante de mais um
entretenimento exibido com o objetivo de distrair e manter a assistência
acomodada ao pecado, à inimizade com Deus, à rebeldia, conservando
intocado o estado de guerra entre o Bem e o Mal, e, assim, se acomodando
devidamente às fileiras malignas.
A exortação do autor de que não trará um fato novo, mas algo que seria
repetido, posto já lhes ter sido dito várias vezes, e do qual deveriam saber,
jamais esquecer, mostra que o Evangelho, mais do que uma busca desmedida
pelo inusitado, é o firmar-se naquilo estabelecido e ensinado, reiterado, e do
qual o cristão não se deve jamais afastar ou negligenciar, sob pena de faltar
com a verdade. Ao aumentarem as linhas inimigas, na luta insana do ímpio
contra Deus, revelam o quanto as novidades estão dissociadas do velho, puro
e bom evangelho de Cristo.
Porque não há outro fundamento a não ser Cristo; nem pedra, rocha,
castelo ou fortaleza que não seja Cristo; nem verdade, nem caridade, nem
intentos ou ações piedosas alheias a ele; pois ele é a pedra de esquina, a pedra
rejeitada pelos edificadores (Mt 21.42), e nenhum evangelho que se diga
autêntico pode dispensá-lo; por mais distinto e apreciável que seja, não
passará de embuste, engodo, fraude, como muitos, durante a história,
empenharam-se em defender e propagar na forma de heresias, certificando-se
de gastar, até as últimas forças, o arsenal de contrassensos e blasfêmias,
ideias divergentes daquelas entregues pelos profetas, apóstolos e Cristo,
visando enfraquecer e destruir a Igreja. Sendo o corpo do Senhor, não uma
mera instituição ou organização humana, ainda que muitas pertençam a ele, a
igreja foi encarregada de zelar pela sã doutrina, conduzida pelo Espírito a
ratificar a verdade e negar a mentira, a manter intacto aquilo que nos foi
entregue por Deus, como fonte de sabedoria, santidade e instrução para toda a
boa obra (2Tm 3.16-17).
A caridade é como a cereja do bolo; o bolo não existe por causa dela; o
confeiteiro pode adorná-lo com qualquer outra fruta, morango, framboesa,
maçã, abacaxi, mas a cereja existe por causa do bolo. Assim a caridade (nada
a ver com ações sociais movidas pelo Estado ou organizações paracristãs[61])
existe pelo evangelho, e não o contrário. Qualquer evangelho que se
autodenomine “social” ou receba outra alcunha, seja anátema! Como Paulo,
disse:
“Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro
evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema. Assim, como já
vo-lo dissemos, agora de novo também vo-lo digo. Se alguém vos anunciar
outro evangelho além do que já recebestes, seja anátema... Porque se
estivesse ainda agradando aos homens, não seria servo de Cristo” (Gl 1.8-
10).
Resta-nos, portanto, não abandonar o ensino uma vez dado pelas mãos de
Cristo e dos apóstolos; ao fazê-lo, incorreremos no mais alto grau de traição,
tal qual os que, ouvindo a verdade, recusam-se a escutá-la, antes produzem
transtornos e equívocos motivados pela negação, intentando plantar em seu
lugar um artifício diabólico e nefasto, com o fim de levar muitos à destruição,
à permanência em um estado de rejeição a Cristo e consequente agravamento
da sua condição condenatória. À medida em que o tempo passa, cada vez
mais se é contaminado pela distração produzida pelo pecado.
“Quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto”, aponta para
um evangelho simples, mas exaustivo, sem malabarismos ou pirotecnia
linguística e estilística, resultando em aperfeiçoamento, fortalecimento e na
confirmação de que somos verdadeiramente filhos de Deus[63]. A introdução
de novas doutrinas, ou práticas alheias ao estabelecido, implicará em soberba
daqueles que resistem a Deus, o qual os julgará sem misericórdia.
Judas tem em mente lembrar aos irmãos algo ensinado e que, por
arrogância, incúria ou açodamento, perdeu-se, em parte ou no todo, e faz-se
necessário recordar, chamando-os novamente à verdade, ao evangelho, do
qual muitos se afastaram, ao darem crédito a malícia e astúcia, abandonando
a revelação para entregarem-se ao arremedo difundido por Satanás e seus
servos de que a verdade é relativa e pode ser apropriada por cada mente e
coração, segundo melhor lhe parece.
Ele não dirá nada de novo, nada bombástico, nada inusitado, apenas o
bom e velho evangelho de Cristo, pelo qual estamos presos, sendo libertados
da indiferença produzida pelo pecado, para uma glória imorredoura e eterna,
conscientes de que somente pela graça fomos alcançados, resgatados e
despertos para a nossa condição de iníquos e merecedores de condenação,
mas também para a realidade de santos, lavados no sangue de Cristo e
reconciliados com Deus, inocentados pelos méritos do Salvador, e, por ele,
aprazíveis e agradáveis ao Pai.
Incredulidade do Crente
Primeiro, a incredulidade.
Ele recorda que Deus libertou Israel do jugo egípcio, por meio de sinais
maravilhosos como as dez pragas (Ex 7.10-12,38); abriu as águas do Mar
Vermelho a fim de salvá-los e condenar o exército de Faraó (Ex 14.13-22);
deu-lhes a nuvem durante o dia e a coluna de fogo à noite guiando-os no
deserto inóspito e traiçoeiro (Ex 13.21-22); alimentava-os com o maná caído
dos céus todos os dias, sem que eles tivessem qualquer trabalho a não ser
recolhê-lo (Ex 16.4-5), além de tantas outras coisas pelas quais os israelitas
deveriam ser agradecidos e reconhecidos, alegrando-se no cuidado e favores
recebidos do Senhor; a prova do seu amor e graça. Entretanto, em vez de
glorificá-lo e reverenciá-lo pelo amor com que os agraciava, eles
murmuraram e se rebelaram inúmeras vezes, querendo, inclusive, retornar à
escravidão, voltar ao Egito (Nm 14.4), de onde os seus corações pareciam não
ter saído, nem aquelas terras abandonado suas almas miseráveis; levando o
Senhor a sentenciar que nenhum deles, após mais um ato de descrença e
rebeldia em Jericó, veria a terra prometida; todos os que tivessem mais de
vinte anos. Porém, a promessa seria estendida aos filhos deles e a Calebe e
Josué, os únicos entre os adultos a verem-na (Nm 14.26-37; 26.64-65).
“Não vos façais, pois, idólatras, como alguns deles, conforme está
escrito: O povo assentou-se a comer e a beber, e levantou-se para folgar. E
não nos forniquemos, como alguns deles fornicaram; e caíram num dia vinte
e três mil. E não tentemos a Cristo, como alguns deles também tentaram, e
pereceram pelas serpentes. E não murmureis, como também alguns deles
murmuraram, e pereceram pelo destruidor” (1Co 10.7-10).
E o que vem a ser um incrédulo? Será apenas aquele que não acredita,
não tem fé? Ou será aquele que, mesmo crendo em Deus como Criador e
Todo-poderoso (teísta), não quer se submeter à sua autoridade e recusa-se a
ser governado pela sua palavra? Como alguém pode se dizer crente ou filho
de Deus se despreza seus preceitos e anda segundo a vontade da própria
carne? Esse, ainda que frequente a igreja, participe dos seus trabalhos, e
cumpra as regras exteriores a fim de ser visto como um cristão, buscando
uma glória pessoal, mas interiormente rejeitando o evangelho, é mais do que
um hipócrita, ele é um incrédulo, presunçoso em sua superioridade de que
não precisa submeter-se a Deus, descumprindo a sua vontade.
O que temos aqui, e já foi dito, é que o homem rejeita a ideia do Deus
Vivo e Verdadeiro e por isso cria para si outro deus ou deuses, de forma que
o seu estado natural é de desobediência, de rebelião, de pecado. Sua mente e
coração foram obscurecidos, levando-o a cogitar e afirmar insanamente que
não há Deus ou que há muitos deuses, ou ainda que há outro deus; e assim o
conhecimento inato e inerente ao homem é anulado, com o objetivo de não o
glorificar. Não sem razão, a Bíblia chama o homem que vive à margem e à
parte de Deus de ímpio. A palavra “ímpio” origina-se do latim “impius”,
significando que esse homem é herege, incrédulo, que não respeita nem teme
o poder e a autoridade divinos. Certamente o termo pode ser usado por
qualquer religião para designar aquele que não a segue, que não se submete a
determinada fé ou a professa. Mas como o nosso interesse é o bíblico, ela nos
remete àquela pessoa que rejeita, despreza e peca contra o Deus santo, o Deus
bíblico. Todo aquele que tem o seu prazer em si mesmo não busca a Deus,
nem a sua justiça e o seu reino, é um ímpio ou incrédulo, como o salmista
diz:
“Pela altivez do seu rosto o ímpio não busca a Deus; todas as suas
cogitações são que não há Deus” (Sl 10.4).
Há um ditado que diz: nem tudo que reluz é ouro! Existem muitos metais
que reluzem: prata, cobre, aço, etc., mas suas características são distintivas do
ouro, o qual é particular em seus atributos, nos elementos que o constituem.
Guardadas as devidas proporções, pois se trata de uma analogia e nenhuma
analogia pode descrever fielmente a natureza divina, única, perfeita e
incomparável, Deus não pode ser distintivo e múltiplo na variedade de deuses
e cultos, na forma como os seus adoradores pressupõem. Ele não pode, ao
mesmo tempo, ser um e outro, e ainda outro, assim como o ouro não pode ser
nem prata nem cobre, ainda que eles estejam na categoria dos metais e
compartilhem algumas características. Por isso, a mente humana sempre
optou em criar vários deuses, a fim de que a sua inconstância e incoerência a
satisfaçam em todos os detalhes, em suas superficialidades, sem tocar nos
fundamentos, na essência caracterizada pela santidade e perfeição intrínsecas
a Deus. Ela acaba por se satisfazer na exceção, naquilo que corrompe o
sentido de humanidade, tornando esta antinatural, aberração, além de exibir a
pecaminosidade e imperfeição do ídolo, o artifício de sustentar uma empatia
entre a vontade e os anseios mais íntimos dos incrédulos, dos quais não pode
se desvencilhar, e a natureza em desalinho com a verdade.
Deus é um, único; ele é real! Dizer que há muitos deuses é dizer que não
há Deus nenhum. Dizer que existe um outro deus que supostamente se deu a
conhecer sobrenaturalmente, também é não crer nele; é negá-lo. Dizer que
todos os caminhos levam a Deus, é dizer que o errado é o certo, e o certo,
errado, de modo que, na prática, o homem não tem aonde ir e a verdade não
está nele, mas naquilo que pensamos dele. Mais uma vez, o homem quer
fazer-se autoridade, inclusive sobre Deus, e a ideia do ecumenismo[67] e do
universalismo[68] nada mais é do que o estratagema maligno de acomodar
todos os homens e seus pecados numa única cumbuca e assim levar a
humanidade à destruição. Mais do que isso, é pretender que Deus seja
igualmente tolo, como tolo é aquele que se aventura em uma crença genérica
e difusa, na qual o Senhor não passa de um deus lamuriante, a buscar ser
aceito de qualquer maneira pelo homem. Onde o Deus pessoal nada mais é do
que um observador estático e estanque, preso em uma redoma imposta pela
suposta autonomia do homem, na qual esse deus é apenas um provedor da
vida, não o seu mantenedor, e sem direito a dar pitacos ou gerir a sua
Criação. Debaixo do guarda-chuvas chamado “deus”, pelo mundo, estão
seguros da tempestade até mesmo aqueles que o negam veementes, como
prova do seu amor leniente, e, quanto mais rebelde, mais esse deus se esforça
em protegê-lo, em ampará-lo, sem que haja qualquer reciprocidade, sem que
essa relação ultrapasse a forma unilateral, provavelmente a estender-se por
toda a eternidade.
Com isso, estou a dizer que todas as crenças e religiões, todos os deuses e
não deuses, todas as formas humanas de cultuar, partem do conhecimento que
o homem tem de si mesmo ou da expectativa de quem ele seja para formatar
um ídolo. Parte-se sempre do homem para deus, da autorrevelação humana
para se definir o ser divino, o que é um gravíssimo erro, visto ele ser
conhecido somente pelo que revelou de si, e não por nossas suposições. Não
sendo nada mais do que capricho não buscar defini-lo, conhecê-lo, nos
aspectos em que nos é possível fazê-lo à luz da Escritura, qualquer
entendimento ou interpretação, fora do escopo revelacional das Escrituras,
será apenas e tão somente a autocontemplação humana: o reflexo no espelho
da alma.
E segundo a Bíblia?
As três definições não parecem harmônicas entre si? Paulo não está, de
certa forma, corroborando a definição semântica que os linguistas atribuem à
palavra fé? De que ela tem um valor pragmático-utilitarista, implicando na
legitimidade dos cultos e da vida cristã praticados atualmente pelos
evangélicos? Será...? O mesmo Paulo diz:
“Não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem;
porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas”
(2Co 4.18).
A questão está em muitos usarem “e a prova das coisas que se não veem”
como a necessidade de a fé produzir resultados visíveis e materiais, de tal
forma que se eles não aparecem, não há fé. Contudo, o que Paulo está a dizer
é: a fé é a prova das coisas que não se veem, porque andamos pela fé, não por
vista. A fé é a prova, o testemunho da vida cristã, e a vida cristã é a prova da
nossa fé:
Pois bem, o ponto é: tenho fé para ver, ou tenho fé para não ver? Se não
vir, não tenho fé, ou mesmo não vendo, mantenho intacta a minha fé? Há
uma “velha onda” que diz: posso tudo naquele que me fortalece, distorcendo
a mensagem bíblica a fim de atender aos interesses escusos do coração. Com
isso, querem dizer que, se tenho fé suficiente, posso tudo. No entanto, há de
se definir o que venha a ser fé suficiente; e muitos dirão que ela será
suficiente dependendo daquilo que se quer e se alcança, ou seja, o tamanho
do objeto, e consegui-lo é que definirá o tamanho da fé. Vejamos o verso em
que se baseiam:
Parece uma carta-branca dada por Deus para se ter o que quiser, bastando
escrever o que mais for aprazível, agradável? Porém, o que nos fala Paulo um
pouco antes?
Alguém pode dizer: Precisamos dos sinais para crer, assim como Cristo
deu sinais para que o povo cresse. Sim. Em parte, é verdade, pois o Senhor
fez muitos sinais para que acreditassem ser ele o Cristo:
“Porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de
Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31).
“Se eu não vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o meu dedo
no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira
nenhuma o crerei” (Jo 20.25).
“Põe aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos; e chega a tua mão, e põe-na
no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente. E Tomé, respondeu e disse-
lhe: Senhor meu, e Deus meu! Disse-lhe Jesus: Porque me viste, Tomé,
creste; bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.27-29).
Este relato não está na Bíblia à toa, sem um propósito, mas para que
creiamos, mesmo sem os sinais, mesmo sem os milagres estrepitosos; porque
a nossa própria vida já é um milagre, ainda mais se significar a eternidade ao
lado do nosso Senhor[71]. Mas nada disso acontecerá se não formos
resgatados das trevas pelo seu poder.
Cristo fez inúmeros milagres, tais como ninguém mais fez e viu, mesmo
assim eles foram insuficientes para salvar uma multidão de incrédulos.
Mesmo vendo-os, seus corações permaneceram duros, inflexíveis, diante de
tão gloriosa salvação. Por quê? Primeiro, os milagres não salvam. Segundo,
os milagres não nos fazem crer em Cristo. Terceiro, os milagres tornam-nos
inescusáveis diante de Deus, condenando a nossa incredulidade. Quarto, em
muitos casos, o homem busca neles a sua glória, não a de Deus. Como Paulo
escreveu:
Não esqueço jamais de dizer que a fé não é produzida pelo homem nem
por sua vontade, mas por Deus, conforme Efésios 2.8. Não havendo fé, não
existe o conhecimento de Deus e da sua vontade, restando apenas e tão
somente uma rejeição natural ao Senhor originada na incredulidade, pela
ausência da verdadeira e sobrenatural fé. Ao homem sem fé, a consequência é
a destruição, assim como muitos, no Êxodo, foram aniquilados.... Sobre isso,
falaremos um pouco mais à frente.
Assim, do mesmo modo, o autor nos lembra a respeito da queda dos anjos
que, vivendo na glória de Deus, se rebelaram, abandonando o seu principado
(entendido como sendo uma vocação ou ministério), desprezando a bondade
divina, em flagrante recusa do bem em favor do mal a habitar o espírito deles.
“Olhai, pois, que façais como vos mandou o Senhor vosso Deus; não vos
desviareis, nem para a direita nem para a esquerda” (Dt 5.32).
“Não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela
renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa,
agradável, e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.1).
Ora, o que vem a ser a boa, agradável e perfeita vontade de Deus, senão o
Evangelho em sua totalidade? Não basta ouvi-lo. Não basta lê-lo. Nem o
racionalizar. Decorá-lo. Ou espiritualizá-lo. Qualquer forma de reduzi-lo em
sua abrangência apenas nos afastará da sua mensagem e dos efeitos capaz de
produzir. Antes é necessário obedecer a ele, assim como o Senhor Jesus
obedeceu ao Pai, demonstrando o seu amor por ele. Ilude-se quem acredita
que qualquer tipo de amor é suficiente e significativo em si mesmo. Que
qualquer ardor, emocionalismo ou contemplação seja suficiente para agradar
ao Todo-Poderoso. Nada disto. O exemplo está naquilo que Cristo espera dos
seus discípulos, como prova do amor deles por ele:
Porque:
Isto é dito para a igreja, o povo de Deus, porque o mundo não pode
conhecer o Espírito de verdade, nem pode recebê-lo, “porque não o vê, nem
o conhece” (Jo 14.17).
Alguém pode dizer: devemos sofrer por amor ao próximo. Devemos amá-
lo como Cristo ama o pecador. É verdade; porém Cristo não ama a todos os
pecadores indiscriminadamente. Cristo não ama aquele que morrerá
obstinado em seu pecado. Cristo não ama aquele que escarnece e se exibe
acima da vontade de Deus, como se fosse maior do que Deus, levando uma
vida distante da verdade até a sepultura. Cristo não ama os que jamais se
arrependerão dos seus pecados. Muito menos os que se deliciam
continuamente em praticá-los. Cristo, ao contrário, abomina-os e os lançará
no tormento eterno, sem apelação. Cristo veio ao mundo para resgatar o seu
povo, morreu por ele e por ele ressuscitou. Alegar um amor divino indistinto
é apelar para a desordem de Deus que criou o mundo com propósitos claros e
definidos, assim como os vasos da ira foram preparados para a perdição (Rm
9.22) e “até o ímpio para o dia do mal” (Pv 16.4).
Um adendo:
A Bíblia diz que devemos amar aos nossos inimigos (Mt 5.44); da mesma
forma que nos ordena a abençoar os que nos perseguem (Rm 12.14). Mas isto
se refere especificamente a cada um de nós, como indivíduo, e não como
coletivo. É um chamado individual para cada um agir assim quando o objeto
de injustiça for a si mesmo, não o outro; ou seja, eu, Jorge, se sou perseguido,
caluniado, odiado, devo amar quem me persegue, calunia e odeia, porém isso
não quer dizer que devo proceder da mesma forma em relação a alguém que
perseguido, caluniado e odiado, não detém dos meios para se defender. Antes
devo denunciar o crime e o criminoso e sair em defesa do inocente. Sou
chamado a me entregar à morte por Cristo, mas não posso nem devo aceitar e
permitir que o outro seja morto, pois, agindo assim, estará evidenciado não o
amor, mas o desamor ao próximo. O amor pode permitir que eu sofra a
injustiça, mas jamais permitir que eu compactue com ela. São coisas distintas.
Devo sofrer o dano, mas jamais omitir-me diante daquele lesado pela ação
criminosa de um terceiro. Interessante é, normalmente, não aceitarmos o
dano, mas querer impô-lo aos outros; somos rápidos em nos defender e
negligentes quando se trata da defesa alheia. Devo entender que a minha ação
em impedir o mal está compreendida na providência divina de utilizar a
instrumentalização humana no sentido de fazer justiça.
Alguém pode argumentar: mas, nessa disputa, você está tomando partido
entre duas pessoas, as quais deve amar, sendo ambas o seu “próximo”. Nesse
caso, você não está sendo injusto? Penso que não. A atitude de injustiça
inicia-se com o criminoso, quem quebrou a lei e os princípios do evangelho,
agindo em desacordo com a palavra de Deus. Ao defender a vítima
posiciono-me em favor daquele que não desejou a desobediência, antes foi
atacado por ela. A própria lei secular garante ao cidadão o direito de, não
havendo autoridade constituída, sair em defesa da parte lesada e coibir a
agressão, impedindo o criminoso de alcançar o seu intento.
Fim do adendo.
“Os quais, conhecendo o juízo de Deus (que são dignos de morte os que
tais coisas praticam), não somente as fazem, mas também consentem aos que
as fazem” (Rm 1.32).
Viver no mundo não nos torna parte dele; temos de ser separados de suas
práticas e mesmo daqueles que a praticam sem pudor. Ao silenciarmo-nos,
assentimos, ainda que exteriormente, com a prática do mal. É o suficiente
para o ímpio ver reconhecida a sua legitimidade e permanecer na
transgressão. O nosso silêncio é a resposta que eles não precisam ouvir para
declararem moral o que Deus estabeleceu como imoral; pois, como o profeta
adverte:
“Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas
luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo! Ai dos que
são sábios a seus próprios olhos, e prudentes diante de si mesmos!” (Is
5.20-21)
Talvez a ordem dos fatos não seja precisamente essa, pois, ao rejeitarem a
Deus, também o fizeram em relação à sua vontade e daqueles colocados
como líderes do povo.
“Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem
semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne, da carne
ceifará a corrupção; mas o que semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida
eterna” (Gl 6.7-8).
Considero esta uma ótima definição do pecado, pois ela estabelece que
ele é algo completamente exterior a Deus, cuja natureza não se opõe
meramente ao pecado, como duas forças em disputa, mas o anula
completamente. A santidade divina como antídoto é capaz de eliminá-lo, sem
restar nada, de modo que sua deficiência é anulada por Deus em sua
perfeição. O pecado poderia ser entendido como uma reação radical a Deus, à
sua santidade, autoridade, essência e natureza, bondade e perfeição, justiça e
graça, numa tentativa pífia de tomar o seu lugar, substituindo-o por elementos
antagônicos, díspares e viciados, como se a falsificação pudesse, em algum
momento, revestir-se da autenticidade do Autor Supremo, do legítimo Senhor
de todas as coisas, a abalar-lhe o Reino e Trono, os quais são inatingíveis e
inexpugnáveis, por serem o lugar eterno do Deus eterno. A natureza divina
destrói e neutraliza qualquer investida do mal e do pecado, por serem estes a
adulteração e a falsificação do bem, incapazes de assumirem o caráter próprio
do original. Onde há ordem, é impossível a desordem. Onde há o bem, é
impossível o mal. Onde há santidade, não há pecado. Onde há justiça, não há
injustiça. Onde há vida, não há morte. Na origem, não existe incerteza. Na
unidade, não há dispersão. No eterno, não há o efêmero. Por isso o pecado é a
resistência ou a obstinação do homem em reconhecer a devida glória do
Altíssimo.
O mesmo não é possível em relação aos anjos caídos; para eles não existe
a regeneração, tal qual é ao homem. Como e por quê, somente Deus o sabe
segundo a sua santa vontade. Ao se rebelarem nos céus, Satanás e seus
asseclas assinaram definitivamente a sua sentença condenatória, sem defesa,
sem recursos, sem perdão. Afinal, o perdão compreende o arrependimento,
que os anjos caídos são incapazes de ter, já que o Espírito Santo, o doar deste
dom, não age neles, sendo-lhes reservada a escuridão. Algo peculiar é que, na
escuridão, não se consegue ver; por ela, tropeçamos, caímos, e, até mesmo,
pode-se morrer, dependendo de onde se está e para onde se cai. Ela é um
lugar de trevas, onde não há sequer uma réstia de luz e, no caso dos anjos
caídos, eles se tornaram para sempre escravos da escuridão. Uma escuridão
não criada, mas buscada, ansiada, pela natureza amotinada, estando todos que
se rebelam, por completo, sujeitos a ela. Essas trevas são tão densas, a
envolvê-los implacavelmente que, inebriados pela vaidade, lutam como
néscios contra Deus e seu Reino, gastando o seu tempo em aumentar, sobre si
mesmos, a ira divina, ao insistirem e persistirem no labor funesto de
combater a verdade, a vida, a razão, a santidade, a obediência e sujeição ao
Senhor. Com isso, amontoam sobre si, cada vez mais, o juízo de Deus, o
castigo como retribuição mais que merecida por sua arrogância, vaidade e
soberba, ao se colocarem ostensivamente contra o Altíssimo, levando consigo
uma multidão de estultos igualmente desobedientes, envoltos na mesma
escuridão, dando cabo ao plano doentio de se autodestruírem, enganando-se a
si mesmos, levando às últimas consequências as atitudes mais torpes como
desagravo à soberania divina.
A POMPA DO TRAIDOR
Tiago nos adverte, em sua carta, que cada um é tentado por sua própria
concupiscência, que trabalha na mente e, estando concebida, dá à luz o
pecado, o qual, consumado, gera a morte (Tg 1.14-15).
Sendo assim, farei uma pequena análise do texto de João 10.22 a 42,
averiguando uma forma muito comum de incredulidade, nos tempos do
ministério de Cristo, em Israel, o qual complementarei na seção IX, deste
livro, citando outras duas formas de ceticismo confundidas com a fé genuína.
Vamos, primeiro, ao trecho já citado, transcrito por completo para facilitar a
minha argumentação:
“Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste,
porque são teus” (Jo 17.9).
Não é uma possibilidade, mas uma certeza, inexorável, não podendo ser
alterada, anulada, ou extinta por qualquer força ou vontade, posto não haver
força ou vontade superiores ou condicionadoras de Deus. Cristo não nos deu
a possibilidade de sermos salvos, de virmos a ser salvos, num determinado
momento em que quiséssemos, caso quiséssemos, ou de continuarmos
perdidos, caso quiséssemos, porque sempre o queremos. Não há nada em nós
capaz de mudar isso, o fato de haver em nossas entranhas o mais ardoroso
desejo de mantermo-nos, para sempre, acorrentados ao desígnio de afastados
de Deus, conservar sobre o pescoço o cepo da condenação.
Não! Cristo nos salva e nos mantêm salvos; não por algum mérito
humano, mas por sua única e exclusiva virtude, a qual resumiu:
“Aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o
juízo” (Hb 9.27).
“‘Sois deuses’? (Sl 82.6); Pois, se a lei chamou deuses àqueles a quem a
palavra de Deus foi dirigida, e a Escritura não pode ser anulada, aquele a
quem o Pai santificou, e enviou ao mundo, vós dizeis: Blasfemas, porque
disse: Sou Filho de Deus?” (v.34-35).
Os judeus eram testemunhas oculares das obras que Cristo realizou e por
intermédio delas deveriam reconhecer que o Pai está no Filho, e o Filho no
Pai, numa prova cabal da unidade divina, da divindade e sobrenaturalidade do
ser de Cristo (v.38-39), e de que ninguém, a não ser ele, poderia realizar as
obras de Deus. No entanto, em sua rebelião exasperante, procuravam matá-lo
a todo custo. A obstinação dos seus corações em agir iniquamente
confirmava a sentença de Marcos 4.12:
Os judeus, como muitos hoje em dia (não somente judeus, mas a massa
humana quase unânime), estavam cegos, surdos e em profundas trevas.
Inflexíveis em seus pecados, insistentes em sua rebeldia, trazendo sobre si a
ira vindoura e a condenação eterna ao inferno, não descansaram enquanto não
mataram o Justo.
Porém, aqueles aos quais o Filho revelou o Pai, entregues pelo Pai ao
Filho[81], esses creram no Filho (v. 42), receberam a salvação e participarão
da glória eterna, dada pelo Senhor, assim como recebida do Pai. Se há
alguém, o único, a revelar a face divina aos homens, este é Cristo, pois:
Porque é chegado o Reino dos Céus (Mt 3.2), e quem tem olhos para ver,
veja e creia, ao contrário daqueles acometidos pelo ceticismo, cujas almas
navegam as águas turvas e bravias da oposição e descrença a Deus[82].
A Realidade do Pecado
Apesar de ter o seu coração endurecido por Deus, Faraó também queria
endurecê-lo ou, ao menos, viu no endurecimento uma acolhida para a sua
atitude pecaminosa, como se ele deitasse em uma cama de pregos e se
refestelasse. Não há, na verdade, uma colaboração do homem com Deus, não
no sentido de o homem fazê-lo independente da vontade divina, de alterar o
decreto eterno[85] ou acrescentar dados ou circunstâncias não abarcadas no
plano divino; porém, não há como não reconhecer o fato de o homem querer,
desejar, ansiar e laborar, com intensidade para a causa do pecado, da
inimizade com o Criador.
Ainda não entendo bem como a coisa funciona, nem sei se entenderei,
mas, de alguma maneira inexplicável (ao menos, no momento), Deus
endureceu ativamente o coração de Faraó que, contudo, ansiou endurecer-se
também. Observem que se tratava-se da sua vontade, não do livre-arbítrio;
não façam confusão, por favor. O endurecimento do seu coração foi uma
ação humana, ordenado pela vontade divina, na qual o homem teve manifesta
a liberdade da sua vontade, de fazer e produzir aquilo que desejava, ao qual
estava inclinado por sua natureza. Não utilizo, em momento algum, o termo
liberdade no sentido de independência ou autonomismo de Deus, mas trato-o
como uma ação livre dentro de uma vontade cativa, sujeita à sua coação, ao
impulsioná-la para produzir aquilo que a vontade aprisionada tenciona e
almeja, satisfazer à carnalidade, sem qualquer alternativa a não ser fazê-lo.
CONCEITO UM
Com isso, alguém pode dizer: “Se Faraó não podia resistir à vontade
suprema, logo não pode lhe ser imputado nenhum pecado, pois não havia
como ele sair da ‘arapuca’ montada por Deus. Então, no dizer do próprio
Senhor, foi ele quem ‘forçou’ Faraó ao pecado, levando-o ao endurecimento
e a rejeitar as ofertas de Moisés”.
Outro ainda dirá: “Deus não mente!”. No que está coberto de razão.
Retrucarei, contudo, onde há mentira? Quer dizer que, ao não
compreendermos suficientemente a verdade, não encontrando uma solução
adequada, por nossa exclusiva incapacidade, Deus então está a mentir? A
Escritura está a mentir? Ou, é preferível, nesse caso, se criar uma resposta
falaciosa e em flagrante oposição ao que foi revelado, a fim de se pôr termo à
questão? Mesmo que a resposta esteja a anos-luz da verdade? E se esteja a
construir um outro “Deus”? A partir de uma solução que satisfaça apenas à
insignificância e o orgulho humanos?
Não estou a dizer que Deus nos ocultou o que revelou, mas nem tudo
revelado foi-nos explicado; como homens de fé, deveríamos apenas
reconhecer os enigmas como verdadeiros, posto provirem da boca divina, não
sendo mais nada necessário para acolhê-los. Este é um grande problema:
diante de um dilema insolúvel, ao invés de aceitá-lo, gasta-se energia e tempo
com explicações que não o justificam, criando um degrau ou degraus frágeis,
facilmente quebráveis, em uma escada instável, pronta a ruir, que não
sustenta a si mesma nem à ideia que tenta amparar[86].
Não se tem muito o que comentar, a não ser o fato do autor exprimir-se
com uma sucessão de conceitos equivocados e antibíblicos, com noções
alheias à fé cristã, baseando-se, mais uma vez, na crença da superioridade da
razão, que se mostra, especificamente nesse caso, em uma prova de
irracionalidade, e, mais do que isso, de uma espiritualidade capenga e
vacilante, reflexo da incredulidade, a mesma a destronar e aniquilar Faraó do
Egito.
Ora, todos os seres estão condicionados à sua natureza. Uma cobra não
voa, ainda que possa pular de um galho de árvore ao de outra árvore,
imitando um voo; um peixe não voa, ainda que possa elevar-se acima das
águas, imitando um voo; uma toupeira não voa, e nem pode imitar um voo;
então, o homem caído, contaminado pelo pecado até o reduto mais
desconhecido da alma, cuja existência, por meio de seus pensamentos,
atitudes e decisões, opõe-se deliberadamente contra Deus, poderia decidir a
favor da verdade? A favor de tudo aquilo a causar-lhe repulsa? Como poderia
o Senhor valer-se das decisões desse homem para traçar o seu plano? Seria o
mesmo que dar funções a um chimpanzé epilético de projetar um edifício e
entregar os seus rabiscos desconexos a um engenheiro para dar cabo da obra.
O engenheiro, no mínimo, se rirá dos planos do símio.
Esse homem, no fim das contas, é que se faz poderoso, pela debilidade
divina, numa nítida inversão de papéis. O resumo da tragédia é: Deus deixou
de ser Deus... Contudo, onde lemos que isso aconteceu? É possível Deus não
ser Deus? Negar a si mesmo? Ainda que queira? E, por que quereria? Para
que fôssemos livres? Mas, livres de quê ou quem? De Deus? Pode alguém ser
livre de Deus? Se pode, esse alguém é maior do que Deus. E, então, Deus
finalmente deixará de ser o que é, para ser o que não é, o que nunca foi e
nunca será! Parece, no entanto, que há um labor, um estado de persistência
humana, seja por ignorância ou violento rancor, de reputá-lo com algo que
não é, existindo apenas na mente senil e falseante do homem em querer
desnudá-lo e explicá-lo a partir de si mesmo, e não da própria revelação
divina.
Todas essas possibilidades são nada mais, nada menos do que o apogeu
da estúpida e vergonhosa dissimulação, na qual dizem amá-lo e reverenciá-lo,
quando o transformam em intruso, em um impostor, em seu próprio Reino.
Porém, não sendo a realidade, não passando de uma ilusão, visando guardar o
homem em si e para si, em um distanciamento perigoso da verdade,
subjugado ao autoengano, às diretrizes traçadas pelo coração libertino, a
afirmação: “eu sou de Deus”, ou “eu amo a Cristo”, nada mais é do que
honrá-lo com os lábios, enquanto o coração está tão distante que o objeto do
seu amor é um sofisma, a idealização ou projeção de si mesmo.
Nada disso é real, seja o seu “Deus” ou os seus sentimentos, mas apenas
uma acomodação do delírio aos anseios do homem natural, sendo este a causa
da farsa, que alimenta e sustenta a perturbação da alma, em um círculo
vicioso e interminável; se Deus não o interromper por derradeiro.
Não que ele esteja errado em dizê-lo. A Bíblia nos exorta a não endurecer
o coração! O verso 7, de Hebreus 3, diz:
“Se ouvirdes hoje a sua voz, não endureçais os vossos corações, como na
provação, no dia da tentação no deserto”.
É preciso, primeiro, ouvir a voz de Deus. Então, pergunto, quem está apto
a ouvi-la? O incrédulo ou o crente? O homem natural ou o espiritual? O eleito
ou o réprobo? O santo ou o ímpio? Como ficam passagens que dizem acerca
de Deus cegar o homem? De forma que, vendo, não vejam, ouvindo, não
ouçam, para não terem o entendimento?[90]
Pois bem, isso não pode ser somente presciência. Parece que sim, mas
não é; pois Cristo “viu” que em Tiro e Sidom se converteriam almas caso
operasse nelas os milagres, mas não os fez, a despeito da presciência, não
respeitando em nada o suposto livre-arbítrio daqueles homens. A questão está
afeita ao poder de Deus, de condenar tanto uma como outra cidade, não
segundo eventuais respostas positivas do homem, mas exclusivamente por
sua vontade decretiva e eletiva de lançar a sua graça e misericórdia sobre
aqueles que amou eternamente, e somente sobre eles. Naquelas, por não
operar ali os milagres que os levariam à conversão, mesmo considerando que
eles teriam olhos para ver, elegeu-as à condenação; e, nestas, por operar
milagres e cegar-lhes os olhos, a fim de não verem e não se converterem. Os
réprobos irão ao inferno porque Deus estabeleceu que eles iriam; da mesma
forma, os eleitos não irão porque Deus determinou que não fossem[91].
CONCEITO DOIS
Ao não mais restringir o mal na vida de Faraó (se é que havia restrição,
segundo o critério da graça comum), Deus impeliu-o a agir segundo a sua
vontade. Então, o próprio ato de restringir não seria uma forma de Deus
demonstrar a sua soberania e vontade expressas na vida de suas criaturas?
Afinal, o Senhor não restringiu a liberdade de Faraó? Implicando em dizer
que os pecados cometidos por Faraó foram controlados pelo Soberano, de
uma forma ou de outra, seja na restrição, seja na não restrição, para o
monarca egípcio realizar exatamente todo o plano estabelecido por Deus; não
havendo chances de não o fazer, e, ao fazê-lo, cumprindo o fixado e
estabelecido no decreto eterno.
No caso de Faraó, a não restrição foi específica para ele resistir em seu
desejo obstinado de não libertar o povo de Israel. Não se pode esquecer de
que havia um desejo sincero no monarca egípcio: ele não era uma marionete
ou robô nas mãos divinas, mas a sua vontade estava em harmonia com a sua
natureza réproba, de fazer o mal acima de tudo, e, especialmente, de afrontar
ao Soberano com a sua desobediência belicosa e deliberada; as vezes
travestida pela dissimulação; evidente nas decisões sumárias de operar contra
a sua própria palavra, desdizendo-se, não levando-a a termo, não cumprindo
o compromisso assumido diante de Moisés e Arão, mas também diante de
Deus.
“Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser
impedido” (Jó 42.2).
CONCLUSÃO
Por outro lado, somos levados a criar soluções onde elas não se
apresentam e a buscar socorro em disciplinas e matérias onde as dificuldades
não se equacionam nem diminuem. Várias ciências podem nos ajudar a
descrever melhor aquilo que Deus revelou, como a filosofia, a física, a
linguística e a retórica, por exemplo. No entanto, elas são incapazes de
solucionar aquilo que Deus revelou como sentença, porém, manteve ocultos a
explicação ou o sentido[96]. Por maior que seja o desafio, por mais méritos
que tenha o estudioso, por mais visível e lógico que se apresente o desfecho,
o que não foi revelado permanecerá como mistério e qualquer conclusão não
passará de investigação incerta e arriscada, de tentativa frustrada de entendê-
lo, mas não incapaz de transtorná-lo e gerar sérios e danosos problemas.
Como o próprio Senhor nos diz:
Por essas e outras, muitos fatos, na Escritura, são interpretados por meio
de contorcionismos mentais e malabarismos retóricos; uma maneira de turvar
a água límpida através de subjetivismos, de empolação, de redundâncias e
empáfia, quando a Bíblia é objetiva ao afirmar, reafirmar e confirmar, ser
Deus imutável (Tg 1.17), perfeito (Dt 18.13), santo (1Pe 1.16), soberano (Cl
1.16-17) e Senhor de todas as coisas e sobre todos (Sl 10.16).
Uma característica das heresias, dos falsos profetas e seus livros apócrifos
é a proclamação de algo exclusivo, insólito e moderno, completamente
divergente dos ensinamentos antigos, sem que haja qualquer conexão ou
unidade de princípios, esquivando-se da simplicidade e fidelidade das
doutrinas dos demais livros, ainda que realizem um esforço árduo em fazer a
heresia parecer-se com a verdade, através de mecanismos de associação ou
dissociação, manipulação do texto sagrado, reedição da história,
individualismo ou unilateralismo doutrinário e outros subterfúgios sutis,
porém diabólicos.
É possível Moisés ter sido arrebatado para céu, assim como Enoque e
Elias; porém a Escritura não assevera essa hipótese, apressando-se em
afirmar o destino do seu corpo, cuja morte se deu na terra de Moabe, onde foi
sepultado, em um vale, em frente de Bete-Peor (Dt 34.5-6). Estas
coordenadas, apresentadas pelo próprio Deus, em sua palavra, são evidências
do fim que levou o corpo de Moisés, não restando dúvidas.
Creio que essa disputa se deu pelo fato de o próprio diabo não saber a
localização da sepultura de Moisés. Pode ser que ele soubesse, mas Deus o
impediu de utilizá-la para os seus propósitos. São conjecturas, mas,
certamente, o fato de Judas relatá-lo em sua carta demonstra o caráter
verídico e factual do incidente.
Algo ainda mais importante do que a disputa, foi o não dito de Miguel a
Satanás. É sugestiva a exaltação do texto a algo não proferido pelo anjo,
revelando uma forma de conduta prudente e sábia, a qual não devemos
negligenciar, para não incorrer em pecado. É possível observar, nas redes
sociais, em artigos, vídeos, e em outros meios de comunicação, quão
imprudentes e temerários se tornaram os lábios do cristão. Não é difícil
encontrar teólogos, pastores e leigos projetando, em seus interlocutores,
diretos e indiretos, acusações e ofensas nada apropriadas para alguém
reconhecido publicamente como “servo de Cristo”. Se o anjo, do alto da sua
batalha contra o inimigo não se atreveu a fazê-lo, com qual direito se arvora
em detrator um crente?[97]
Por exemplo, nos são mostrados dois trechos nas Escrituras: o primeiro
está em Lucas 21, no qual os ricos lançavam suas ofertas na arca do tesouro,
enquanto uma pobre viúva deitava duas moedas no gazofilácio, as únicas de
que dispunha. Alguém, vendo aquela cena, poderia julgar pela aparência: os
ricos sinalizariam ser mais zelosos e fiéis ao darem mais dinheiro, sendo que
entregavam uma parte do muito que tinham.
“Em verdade vos digo que lançou mais do que todos, esta pobre viúva;
porque todos aqueles deitaram para as ofertas de Deus do que lhes sobeja;
mas esta, da sua pobreza, deitou todo o sustento que tinha” (Lc 21.3-4).
“‘Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador’. Eu digo que este
homem, e não o outro, foi para casa justificado diante de Deus. Pois quem se
exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado" (v.11-14).
E,
De forma alguma, Cristo proíbe o julgamento, pois ele mesmo nos exorta
a observar os frutos para se saber a procedência da árvore, ou seja, discernir,
avaliar, medir. Estas palavras são sinônimas de julgar, e ninguém parece ter
problema com elas, visto todo homem fazê-lo o tempo todo. A questão é:
estamos aptos a julgar corretamente? Segundo as Escrituras? Somos
chamados à prudência e diligência, a afastar-nos do pecado, do engano, e
aproximarmo-nos da santidade e bondade, vivendo uma vida na qual sejamos
luz em meio às trevas. Infelizmente, há uma boa dose de melindre neste
mundo, onde alguns termos e expressões são capazes de fazer aflorar a
irracionalidade e a teimosia em muitas pessoas, pois eles mexem exatamente
com a parte “negra” da alma, à qual estamos apegados, enraizados.
Afeiçoados a ela como a um troféu, exibimo-la sem o menor pudor,
considerando prova de sabedoria, quando não passa da mais vergonhosa
impostura.
Nesse caso, nem a igreja está livre da ação malévola dos inimigos de
Cristo, os quais têm se infiltrado com sagacidade em seus limites, trazendo
consigo a mesma desordem da alma que os norteia, redefinindo o bem em
mal, e este, naquele. Se nos é dado o dom ou capacidade de distinguir, de
estabelecer conveniente diferença entre as coisas e pessoas, por que raios não
se pode julgar, visto ser a mesma coisa? Qual o problema com a expressão?
Há uma carga de potencial distúrbio do espírito, a incomodar, ocasionando a
sua rejeição?
O caráter dessa punição, sendo eterna, somente pode ser sentenciado pelo
eterno, infinito e onisciente, no caso, o Juiz supremo, o único capaz de sondar
os corações e operar a salvação nos eleitos, condenando os réprobos. Ao
homem, em sua efemeridade, cabe-lhe julgar as coisas temporais; assim como
há diversos graus de castigos: os aplicados pelos pais aos filhos, pelos
professores aos alunos, pelos magistrados aos criminosos, em que o
julgamento não é somente uma possibilidade, mas é imprescindível, sendo
que, sem ele, a subversão à lei e a autoridade seriam incontroláveis, tornando
o mundo um rematado caos.
Uma pessoa a viver na impiedade pode, pelo poder de Deus, ser resgatada
da condenação mesmo tendo cometido pecados hediondos, pois Deus pode
salvar o pior dos pecadores, enquanto o melhor dos homens não pode se
salvar.
Pedro afirmou que o julgamento deveria começar pela igreja (1Pe 4.17); e
Paulo perguntou aos Coríntios se não havia ninguém sábio entre eles para
julgar os problemas entre os irmãos, ao invés de deixar as decisões nas mãos
de árbitros injustos (1Co 6.5). Portanto, Cristo está combatendo, com
veemência, a hipocrisia e não o juízo, o qual é instrumento do crente para
avaliar todas as coisas, não somente as ligadas ao mundo, mas também as
relacionadas à própria igreja, como guardião da sua identidade de noiva do
Senhor, defendendo a todo custo a santidade, a pureza doutrinária, o temor a
Deus[99]. Ou seja: todos os princípios bíblicos que nos foram entregues e todo
o relacionamento com o Criador devem ser pautados por discernimento,
sabedoria, avaliação e juízo, em assentir-se com o bem e a verdade,
repudiando o mal e a mentira.
Não concordo com esse conceito, pois, se assim fosse, não haveria uma
série de advertências quanto aos falsos profetas (muitos deles nominados por
toda a Bíblia), pois eles se enquadrariam no critério de estarem sendo
julgados. Se o julgamento é proibido, condenar a atitude maligna dos
fraudadores da fé estaria vedado e uma grande parte dos versos relacionados
a eles não deveria estar no texto sagrado, estando em contradição com a
sentença proferida por Cristo. Mas não é isso o que acontece, graças a Deus!
Chamar alguém, um comprovado ladrão, de gatuno, ou um fulano, declarado
mentiroso, de enganador, não é ser injusto, mas identificar a pessoa
subjugada pelo pecado, visando chama-la à realidade, mostrando a sua
condição de transgressor da lei e de inimigo de Deus e, também, protegendo
inocentes de uma eventual ação, no futuro, desses meliantes.
O pecado não tem vontade própria e não se realiza por si mesmo, como se
fosse uma entidade, uma manifestação espontânea de uma força autônoma e
independente do homem. O pecado somente se efetivará, tornando-se real, se
germinar e crescer na alma, gerando atitudes condenadas e reprovadas pela
Escritura. É claro, estou a falar de pecados como uma atitude, uma ação
pensada, maquinada e colocada em prática por um indivíduo. Não estou
falando do pecado como uma natureza herdada pelo homem, uma condição
inerente à nossa essência pós-Éden, mas consequência oriunda dela, na qual
todos os homens, sem exceção, são pecadores e condenáveis aos olhos
divinos. Nesse aspecto, seria redundante eu apontar para esse ou aquele
homem e dizer: “você é um pecador”; pois seria o mesmo que dizer: “você é
humano”, ou, “você é mortal”. No que se refere ao arrependimento, ninguém
o fará se não tiver consciência do seu pecado específico e se não houver uma
censura, de terceiros, a denunciar-lhe o vício.
O objetivo sempre será o de levá-lo, primeiramente, à contrição, à dor
profunda pela ofensa cometida contra Deus, e, em segundo lugar, contra si
mesmo e o próximo. Esse é o papel da igreja, como corpo, e do crente, como
membro do corpo: denunciar tudo o que atente contra a santidade e a
verdade. No entanto, reitero duas coisas: a primeira, que esse juízo está
ligado à questão do discernimento, a conhecer a diferença entre as pessoas,
entre as coisas, de maneira a não se misturar com nada que se oponha à fé
bíblica. Ou seja, a aplicação precisa se dar estritamente dentro do âmago
bíblico, uma relação na qual não existem tons cinzas, mas apenas preto no
branco. Aplicar conceitos psicológicos, pedagógicos ou relacionados com a
área comportamental acarretará na sua insuficiência.
Quanto ao caminhar na fé, dada uma vez aos santos, todos os crentes têm
o dever de zelar pela pureza da igreja, conforme nos é dado saber, pelo
Senhor:
E, por Paulo:
“Mas agora vos escrevi que não vos associeis com aquele que, dizendo-
se irmão, for fornicador, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou
beberrão, ou roubador; com o tal nem ainda comais. Porque, que tenho eu
em julgar também os que estão de fora? Não julgais vós os que estão dentro?
Mas Deus julga os que estão de fora. Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo”
(1Co 5.11-13)[101].
Outro ponto, citado por Cristo, refere-se a: “com o juízo que julgares
sereis julgados”, um alerta para a não vaidade e o não se encher de soberba.
Ao aplicar-se equivocadamente essa norma, o resultado será um julgamento
hipócrita, aquele no qual o seu proponente tem em vista acusar no outro o que
ele mesmo faz, mas não quer que os outros saibam que faz. Em outras
palavras, é a camuflagem perfeita para aparentar uma santidade que não tem,
escondendo a pecaminosidade arraigada à alma. O hipócrita, via de regra, é
incapaz de reconhecer em si mesmo o pecado, mas é ligeiro em apontá-lo no
seu semelhante, com vistas a desviar a atenção de si e lançá-la ao próximo. É
a tática de acobertamento, dissimulatória, em que a acusação é a defesa
imediata a afugentar a própria condenação. Entre outros, visa tirar o foco do
hipócrita e transferi-lo ao outro, com o nítido objetivo de esconder os seus
pecados através da exposição dos pecados alheios, num tipo de “máscara” da
condição libertina que se pretende esconder à incriminação alheia, quando a
culpa deveria cair, primeiro, sobre o acusador, na forma de confissão e
arrependimento.
“Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque
está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor" (Rm
12.19).
O anjo não se atreveu a fazer aquilo que não estava em sua alçada, fora
dos limites da sua competência, ainda que, porventura, quisesse, porque esse
não era o seu papel, nem a incumbência dada. Algo inglório seria assumir
uma prerrogativa exclusiva de Deus, numa tentativa de tomar-lhe o lugar à
força, nos mesmos moldes empreendidos por seu adversário. Certamente, ele
se lembrou da rebelião no céu, quando Satanás e os seus comparsas caíram,
sendo expulsos pelo mesmo motivo: desejar assumir o trono divino,
destituindo-o, caso houvesse, nessa tentativa, alguma possibilidade de êxito.
Satanás se enganou no próprio pecado, iludido com a ideia de que recebera
“poderes” suficientes para considerar-se vitorioso, em meio à mais flagrante
de todas as derrotas. Essa é uma das marcas vigorosas do pecado: fazer-nos
crer fortes enquanto caímos impotentes, sem qualquer força para nos
reerguermos, incapazes de redimirmos a nós mesmos. Por isso o Arcanjo,
temendo ofender ao seu Senhor, abriu mão de proferir uma condenação ao
réu dos réus.
No verso seguinte, temos a afirmação: “Estes, porém, dizem mal do que não
sabem”, revelando a completa ignorância dos homens em relação à verdade, à
realidade, e, sobretudo, ao conhecimento divino, que, em última análise, é a
verdade e a realidade, em seus aspectos mais absolutos, santos e eternos. São
tolos a acusar e proferir sentenças sobre o que não conhecem, o que lhes está
encoberto e que acusam pelo desvio de caráter, pela noção de estranhamento,
de incapacidade inerente à própria natureza humana a dominá-los, afastando-
os da sabedoria que vem dos céus, o que os leva a entregar-se alucinadamente
à loucura incontrolada de se opor a tudo o que é divino.
"Ai deles!
Se não há doutrina, nada nos foi ensinado, nada pode ser aprendido e, em
questão de fé, tudo é válido, ao mesmo tempo que o nada também o é. Se não
há doutrina, a nossa fé não existe; é como um castelo de areia em meio à
tempestade. Se não há doutrina, não somos cristãos, nem seguidores de
Cristo, pois ele não veio aqui passear ou exibir-se, mas ensinar, comunicar e
pregar a obediência e o zelo para com o Pai, revelando-nos a sua vontade.
Dizer que a Igreja Primitiva não se guiava por doutrina e que esta somente
veio à existência séculos depois, é um absurdo, não apenas algo sem sentido,
mas fruto da pior de todas as ignorâncias, a presunção de se autoimputar uma
autoridade pela mera contestação, pelo desconhecimento absoluto, pela
indução mentirosa de alterar a realidade, tentando suplantá-la pela negação
insustentável. É como provar a existência das aves alegando não haver aves
ou que aves existem pela falta de penas e plumas na atmosfera.
Há uma frase, supostamente dita por Adolf Hitler, que resume muito bem
o pensamento herético e diabólico desse pessoal: "Torne a mentira grande,
simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela".
Em Gênesis 4, lemos sobre Caim encher-se de orgulho e ira por Deus ter
aceito a oferta do seu irmão e rejeitado a sua. Ao invés de procurar agradá-lo,
sendo que para isso teria de reconhecer o seu erro (com o fim de
arrependimento; para somente então ter nova chance), ele voltou-se contra o
seu irmão (por conseguinte, contra o Criador, também), matando-o. Se
pudesse ler a sua mente, provavelmente encontraria o motivo do seu ódio a
Abel e a Deus na rejeição da sua oferta e de si mesmo, tendo o orgulho como
o estopim para a consumação de vários crimes. Ao matar Abel, Caim queria
Deus adequado ao seu padrão moral, demonstrando não estar disposto ao
contrário; atestando a sua loucura.
Tal qual uma criança birrenta e mimada, disposta a fazer qualquer coisa
para satisfazer o seu desejo, rebelando-se contra a autoridade dos pais, não
aceitando os seus limites e os limites estabelecidos por seus progenitores ou
guardiões, Caim deu vazão a toda a sua rebelião juvenil, não aprovando os
termos estabelecidos por Deus, insurgindo-se contra o Criador e a criação, ao
consumar a vingança contra Abel. Assim, Caim viu-se derramando o sangue
inocente, pelo capricho do orgulho, pela insensatez da afronta (numa tentativa
de reparar uma agressão inexistente), opondo-se à justiça e retaliando contra
alguém que, supostamente, o prejudicou, quando ele era, em si mesmo, o seu
prejuízo, desonra e vergonha.
Caim foi, via de regra, seguindo o exemplo de seu pai, Adão, o primeiro
vitimista pós-Éden. Considerando-se injustiçado, não viu outro meio de
reparar a suposta injustiça a não ser atacando e destruindo aquele que foi o
alvo da justiça, o seu irmão. Em seu coração, não havia intenção de seguir os
princípios e valores invocados pela qualidade e caráter do Justo e Santo, nem
de se exercitar neles, mas de trilhar o caminho da paixão desenfreada, louca e
ilegítima por si e de si mesmo, punindo o inocente, fazendo-se juiz, quando
não passava de réu de condenação e morte.
A maioria tem por explicação o fato de o sacrifício de Abel ter sido com
sangue e o de Caim não; levando-se a crer que a escolha pelos primogênitos
das suas ovelhas e das suas gorduras (indicando morte, sacrifício de
inocentes, sangue derramado), remetiam ao futuro. Seriam como “sombras” a
indicar o sacrifício de Cristo, na cruz do Calvário, o Primogênito de Deus, o
Cordeiro imaculado, inocente, cujo sangue derramou para a salvação de
muitos, para terem seus pecados expiados; algo a acontecer milhares de anos
depois.
Entendo essa conclusão como sendo parcialmente correta. Ela aponta para
a necessidade de morte, como forma de se pagar os pecados, ao mesmo
tempo que ela é consequência deles, sendo o justo quem remirá o seu povo e,
somente assim, cada um dos eleitos será purificado de suas iniquidades e
libertado da condenação. Desse modo, serão inocentados quando não
passavam de criminosos, pelo santo e inocente a levar a culpa sobre si mesmo
daqueles antes condenados. Não parece uma contradição? Nós, pecadores
miseráveis e abjetos, fomos feitos santos e impolutos pelos méritos do
verdadeiro Santo, Cristo, o qual, para justificar-nos perante Deus, carregou
sobre si a imundícia, o horror e sórdido pecado, recebendo o castigo em
nosso lugar, justificando-nos, inocentando-nos, pelo amor infinito com que
nos amou. E não havia outro jeito, nem há! Se não fosse pela sua graça e
misericórdia, estaríamos no inferno irremediavelmente, contando o tempo de
adentrar aos umbrais do lago de fogo; no entanto, graças a Deus, por seu
Filho, que nos liberta dessa sina desastrosa, e pelos seus méritos exclusivos
nos transporta das trevas para a luz, do sofrimento eterno para uma vida
eternamente guardada no seu amor e graça!
Não havia por que Caim desobedecer à ordem direta de Deus, não
sacrificando um cordeiro para recolher hortaliças, frutas e legumes (ainda que
fossem as melhores, mais bonitas e saborosas), e levá-las em seu lugar.
Seguindo o curso natural de suas atividades, a razão das ofertas está na
vivência de ambos, nos dons e capacidade dadas por Deus, distinguindo-os.
Daquilo produzido, e que tinham por ofício, inerente às suas vidas e
faculdades, dispuseram como oblação, sem poderem agir de outra maneira;
não podendo Caim dar outra coisa que os frutos do seu trabalho, assim como
Abel acabaria por empreender o mesmo[108].
Paulo nos diz que, mesmo se o homem fosse capaz de cumprir a lei, não
seria justificado, e não poderia exigir coisa alguma de Deus; sobretudo nós
que carregamos, como o personagem “Cristão” de John Bunyan, um saco de
cheio de pecados às costas (Rm 3.19-20). Se não somos gratos, se o nosso
coração não estiver transbordante de graça, o que somos? Se o único motivo
é a satisfação do orgulho, da arrogância e injustiça, não somos mais
merecedores da misericórdia de Deus, fazemo-nos abomináveis diante dele,
fazendo jus à eterna condenação, e atraindo a sua ira. E toda a rebeldia, seja
em qual nível estiver, será sempre uma maneira inequívoca de revelar o
quanto somos hostis a quem será sempre merecedor de toda a honra, e do
qual somos devedores.
Outra defesa, advogada por muitos para Abel, é a de ser justo, por isso
sua oferta foi justificada diante de Deus, ao contrário daquela entregue por
seu irmão. E isso é uma verdade. Deus aceitou o seu sacrifício porque ele
ofereceu algo maior do que Caim (Hb 11.4), pela fé; e se a fé é um dom de
Deus (Ef 2.8), o próprio Senhor propiciou-o a dar, na medida correta,
exatamente aquilo que lhe seria agradável.
Não é interessante pensar que Caim poderia ser Abel? Se houvesse uma
roleta a determinar aleatoriamente a personalidade e a identidade das
pessoas? Poderia ser ele a pastorear ovelhas, enquanto o caçula lavraria a
terra, mudando o curso da história, a partir da troca dos personagens? No
entanto, aprouve a Deus, em sua soberania, predestinar Abel e Caim para
cumprirem os seus eternos desígnios, de maneira a transcorrerem os
acontecimentos assim como havia planejado; remetendo à questão apontada
no item “b”: a primogenitura foi “tirada” de Caim e entregue a Abel, assim
como também o foi em relação a Esaú e Jacó, muito antes de eles haverem
nascido e pecado, como afirma o apóstolo Paulo, em Romanos 9.10-14.
“Atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para
a sua oferta não atentou” (Gn 4.4-5)
Ao matar o seu irmão, Caim queria, pelo seu ato, comunicar ao Senhor,
mandar-lhe uma mensagem: “Não se agradou da minha oferta? Nem de mim?
Pois bem, agora terá de se contentar comigo, pois não terá outra a ser-lhe
oferecida; não há mais Abel, nem o sacrifício de Abel, ambos morreram. Ou
se agradará de mim ou de mais ninguém”.
“Não sei; Por acaso sou guardador do meu irmão?” (v. 9).
(Fim da pausa)
Ainda paira uma dúvida: Não seria Deus injusto por rejeitar a oferta de
Caim, sem lhe mostrar o padrão adequado? Nesse caso, Caim não seria
desobediente e não poderia fazer nada a respeito, já que o seu conhecimento
era limitado? A questão não é se Caim obedeceu ou não, mas se Caim
agradou ou não (o texto não fala em obediência, no primeiro momento, mas
em satisfação). E não agradou. Coube a Abel comprazer o Senhor, mesmo
desconhecendo também o padrão desejado, o que, no geral, mostrou-se mais
do que justo. Importa saber a desaprovação divina em relação a Caim, depois,
a sua oferta; importa saber Deus rejeitar a Caim, antes mesmo de desaprovar
a oblação; pois, como diz o texto:
Assim, Deus se agradou de Abel e não do seu irmão, de tal forma que
Abel, desde antes do seu nascimento, estava predestinado a ser o pastor de
ovelhas e a sacrificá-las, e a tomar-lhes a gordura, e oferecê-la como o
aprazível bom perfume ao Senhor. Da mesma forma, Caim foi predestinado a
ser um lavrador, a tomar dos frutos da terra para ofertar-lhe, irar-se, matar o
seu irmão, ser amaldiçoado e apascentar a si mesmo, seguindo o mesmo
caminho trilhado pelo maligno.
Pode-se dizer que a alusão de Judas se refere ao desejo íntimo dos falsos
profetas em “matar” aos que eles chamavam “irmãos”? E, também, ao fato de
que Caim, ao matar Abel, tencionava punir a Deus por não ter sido ele o
escolhido?
“Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E
agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua
mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua
força; fugitivo e vagabundo serás na terra” (v. 10-12).
“Assim diz Balaque, filho de Zipor: Rogo-te que não te demores em vir a
mim. Porque grandemente te honrarei, e farei tudo o que me disseres; vem
pois, rogo-te, amaldiçoa-me este povo” (v.16-17).
“Ainda que Balaque me desse a sua casa cheia de prata e de ouro, eu não
poderia ir além da ordem do Senhor meu Deus, para fazer coisa pequena ou
grande; agora, pois, rogo-vos que também aqui fiqueis esta noite, para que
eu saiba o que mais o Senhor me dirá.” (v. 18-19).
Ora, muitos apontarão para uma nova prova de sabedoria de Balaão, e até
mesmo para o seu espírito piedoso. Se isso, supostamente, aconteceu na
primeira recusa, agora temos uma disposição contrária, de desafio a Deus.
Por quê? Sendo a palavra do Senhor somente uma, e sendo imutável assim
como ele é, por que o profeta haveria de consultá-lo novamente acerca de
uma decisão já deliberada? Não lhe era suficiente a resposta dada por Deus
na primeira vez? Somente o espírito de desobediência, ainda que velada,
dissimulada, poderia levar Balaão a repetir a consulta. Se lhe fora ordenado
não acompanhar os moabitas e amaldiçoar os judeus, por quais motivos ele os
receberia e os mandaria esperar? Não seria mais prudente e correto tê-los
despachado e recusado a nova proposta? A sua falsa piedade e obediência
dissimulava o seu real intento e propósito, algo que a insistência dos moabitas
havia despertado, ou melhor, estimulado em seu coração.
Se não bastasse Deus já lhe ter ordenado anteriormente o que fazer, ele
voltou a consultá-lo, numa clara indisposição à ordem recebida e, pior, de
insistência obstinada, teimosia inflexível. E o que é isso, senão o desejo
de impor a sua vontade diante de Deus, ao invés de se curvar a ela?
O profeta não pode ser condenado sozinho, pois, de maneira igual, nos
empenhamos em sobrepor o nosso desejo sobre o de Deus, numa luta insana
para sermos aceitos e reconhecidos como merecedores de seu favor,
acreditando ser tudo possível debaixo da expressão de sinceridade, de
motivação piedosa. Há uma nítida inversão de valores, uma distorção da
realidade, na qual nos fazemos de sábios em meio a provas cabais de
estultícia, como se Deus pudesse mudar seus desígnios perfeitos e santos
apenas para satisfazer-nos, bajular-nos, numa tentativa de buscar o nosso
afeto, e ser aceito por nós.
À primeira vista, não parece injusta a ira de Deus? Não foi esta a sua
ordem? De que ele fosse com os enviados de Balaque, e fizessem exatamente
aquilo negado, da outra vez? Balaão não agiu conforme a ordem recebida? E
ela não era um indubitável sinal de consentimento? Não é assim que, muitos
de nós, querendo o pecado, buscando o pecado, alimentando-o
sequiosamente, esperamos alcançar o consentimento divino para as ações que
ele reprova? Na ilusão de ele endossar a desobediência?
E,
“Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por estas coisas vem a
ira de Deus sobre os filhos da desobediência” (Ef 5.6).
Ora, Balaão, como muitos de nós, foi seduzido pelo pecado, pela revolta,
ainda que o próprio Deus o tenha alertado a não proceder assim. Incitado pelo
coração corrupto e a ideia de haver alguma possibilidade de demover, de
mudar a vontade divina, quanto mais motivado se sentia, com a perspectiva
dos favores e dádivas do rei, mais se insuflava à rebelião, a ponto de não ser
mais possível controlá-la, uma ideia fixa, como um tesouro conquistado, de
abarcar o ilícito, ambicionando o que não lhe era permitido. Quase é possível
vislumbrar os seus saltinhos de efusão logo após Deus lhe dizer: Vá, se
queres ir!
Ele estava cegado pelo seu desejo, a ponto de não ver os “sinais” da sua
insubordinação, persistindo no engano; e a cada desvio da jumenta, ele
respondia negativamente, irando-se contra o animal, espancando-o, e
retomando ao caminho erradio (Nm 22.25).
“Pôs-se num lugar estreito, onde não havia caminho para se desviar nem
para a direita nem para a esquerda. E vendo a jumenta o anjo do Senhor,
deitou-se debaixo de Balaão” (Nm 22. 26-27)
Balaão teve, enfim, os olhos abertos. Viu o anjo do Senhor e a sua espada
desembainhada na mão, “pelo que inclinou a cabeça, e prostrou-se sobre a
sua face” (Nm 22.31). Apesar da aparente reverência[113], não se pode
esquecer ou deixar de entender que o Senhor se agradará de nós apenas
naquilo em que formos obedientes. Não será qualquer coisa a satisfazê-lo,
mesmo estando envolta no mais profundo estado de sinceridade; mesmo
sendo lógica e aceitável, ou respaldada por sentimentos afetuosos; se estiver
em oposição à vontade revelada de Deus, não o agradará, e quem o fizer,
estará em pecado.
Jesus prosseguiu:
“Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de
mim” (Mc 7.6).
No entanto, esse não foi o caso de Balaão. Após curvar-se diante do anjo
do Senhor, e ouvi-lo dizer que saiu como seu adversário, pois seu caminho
era perverso (Nm 22.32), assumiu ter pecado, sem haver a real disposição de
abandoná-lo; antes, o anelava como a um bem precioso, na incapacidade de
abortar o seu intento. Observe-se que o assumir é uma constatação, uma
demonstração exterior, não representando o necessário arrependimento, não
demonstrando o convencimento interior do vício, da transgressão, e a
necessidade de mudanças no caráter. Desse modo, Balaão insistiu em seu
plano, mesmo reconhecendo a desobediência; e, num descaramento
inominável, abusando cada vez mais da paciência divina, disse:
E Deus, o que fez? Entregou Balaão à sua sanha injusta, à sua própria
corrupção e destruição:
“Certo é que Deus não ouvirá a vaidade, nem atentará para ela o Todo-
poderoso” (Jó 35.13).
Balaão não pôde amaldiçoar Israel; mas conforme o seu coração ímpio,
usando de outro estratagema, de uma prática sutil, desferiu um novo golpe à
nação judaica (provavelmente para obter os favores de Balaque e incitar o
Senhor à ira contra o seu povo; unindo o útil ao agradável): levou os israelitas
a pecarem contra Deus, comendo dos sacrifícios da idolatria e fornicando
com as moabitas. Não inusitadamente, o Senhor chama essa maneira de
proceder de:
Além de ser abatido à espada por Balaque e seus príncipes, morto pelos
filhos de Israel, como o Senhor ordenara (o mesmo que acometerá a todos
aqueles que persistem na desobediência, acreditando-se impunes e
abusadores da justiça), ele trouxe para si mesmo a condenação terrena, sendo
o culpado por boa parte da incredulidade e desobediência da nação israelita,
do próprio juízo eterno e de um lugar assegurado no Inferno.
Oremos para que em nosso coração não haja engano, nem nos deixemos
ludibriar por pessoas, práticas e doutrinas antibíblicas, ainda que envoltas em
pretensa piedade, sabedoria e sujeição a Deus, mas que são antíteses ao
Evangelho de Cristo, nas quais não há salvação, apenas destruição, e, por fim,
morte.
A Incoerência de Coré
“Por que, pois, vos elevais sobre a congregação do Senhor?" (Nm 16.3)
“Porventura pouco é que nos fizeste subir de uma terra que mana leite e
mel, para nos matares neste deserto, senão que também queres fazer-te
príncipe sobre nós? Nem tampouco nos trouxeste a uma terra que mana leite
e mel, nem nos deste campo e vinhas em herança; porventura arrancarás os
olhos a estes homens? Não subiremos” (Nm 16.13-14).
Nada pelo que passaram, até aquele instante, serviu-lhes de ensino. Viam
apenas o propósito de seus corações, esquecendo-se da humilhação, sujeição
e escravidão, no Egito. Ao afirmar viverem no paraíso, às margens do Nilo,
negavam a realidade da vida de servidão, e o desejo insano de voltar ao
cativeiro; diante do deserto onde estavam, rejeitavam as promessas divinas,
mas também tudo que ele havia proporcionado ao seu povo, a liberdade, a
esperança, a fé, o sustento, uma nova existência onde a única exigência seria
confiar na sua vontade, rendendo-se, não à tirania do déspota, mas ao amor
misericordioso, à bondade infinita e ao cuidado providente do Senhor.
Interessante notar, nesse ponto, que todo o Israel apoiou o motim de Coré,
ajuntando-se à porta da tenda da congregação, contra Moisés e Arão. Deus
ordenou que estes se afastassem, pois iria destruir os demais; no que foi
dissuadido pelos irmãos que, prostrados, clamaram:
Um adendo:
Perguntará alguém: Por que Deus disse que aniquilaria todo o povo e
voltou atrás em sua decisão, após o pedido dos irmãos, dando-lhes nova
chance?
Terceiro, Deus não poderia, jamais, ser derrotado pela união maligna de
demônios e homens, quanto mais pela insurreição de um dos grupos. O
Inferno existe como prova de não ser possível qualquer união contra Deus,
pois tanto anjos, quanto homens caídos estarão eternamente sob a sua ira. Era
necessário demonstrar para o povo que suas escolhas definiriam o resultado
de suas vidas. Se amassem, vivendo pelo Espírito e a serviço do Senhor, tudo
cooperaria para o bem, mesmo diante dos dissabores e infortúnios (Rm 8.28).
O contrário, inclinar-se para a carne, resultaria em morte, posto ser inimizade
contra ele (Rm 8.6-7).
“Nisto conhecereis que o Senhor me enviou a fazer todos estes feitos, que
de meu coração não procedem. Se estes morrerem como morrem todos os
homens, e se forem visitados como são visitados todos os homens, então o
Senhor não me enviou. Mas, se o Senhor criar alguma coisa nova, e a terra
abrir a sua boca e os tragar com tudo o que é seu, e vivos descerem ao
abismo, então conhecereis que estes homens irritaram ao Senhor. E
aconteceu que, acabando ele de falar todas estas palavras, a terra que estava
debaixo deles se fendeu. E a terra abriu a sua boca, e os tragou com as suas
casas, como também a todos os homens que pertenciam a Coré, e a todos os
seus bens. E eles e tudo o que era seu desceram vivos ao abismo, e a terra os
cobriu, e pereceram do meio da congregação” (Nm 16.28-33).
A INFECÇÃO DO CORPO
são nuvens sem água, levadas pelos ventos de uma para outra parte;
Referindo-se aos falsos mestres, Judas diz que "são manchas em vossas
festas de amor, banqueteando-se convosco, e apascentando-se a si mesmos
sem temor" (v. 12). Não há outro significado tácito no verso, a não ser o
explicitado pelo autor, de uma conduta não cristã, por parte deles, mas
também o de uma atitude de desprezo ao cristianismo, quase uma devoção
aniquiladora, por essas “manchas”. Eles estão no nosso meio, dizem-se um de
nós e, em alguns momentos, se parecem conosco, agem como se fossem
como nós, mas não são dos nossos, porque suas práticas levam o escândalo à
Igreja, e se mostram desprezíveis, imoderados e ofensivos, a trazerem
discórdia e divisão, quando o objetivo das festas era o contrário, apontando
para a comunhão, a unidade fraternal, na qual os crentes congraçavam-se não
pelo excesso, mas pela prudência, pela moderação, um sinal nítido do fiel.
“Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos
céus, e na terra, e debaixo da terra, e
toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus
Pai.” (Fp 2.10-11)
“Não é boa a vossa vanglória. Não sabeis que um pouco de fermento faz
levedar toda a massa? Purificai-vos, pois, do fermento velho, para que sejais
uma nova massa, assim como estais sem fermento. Porque Cristo, nossa
páscoa, foi sacrificado por nós. Por isso façamos a festa, não com o fermento
velho, nem com o fermento da maldade e da malícia, mas com os ázimos da
sinceridade e da verdade” (1Co 5.6-7).
Tudo começa com algo aparentemente sem importância, porém quanto
mais se está conformado a ela mais se desce os degraus da impiedade. É
como uma avalanche: pequena e quase inofensiva em seu início, torna-se
volumosa e destruidora à medida que lhe são acrescentados mais pecados.
Como o salmista assegurou-nos:
“Recebendo o galardão da injustiça; pois que tais homens têm prazer nos
deleites cotidianos, manchas são eles e máculas, deleitando-se em seus
enganos, quando se banqueteiam convosco” (2Pe 2.13).
Não sei, mas a nossa geração tem sido omissa, individualista e covarde
em vários aspectos, especialmente no auxílio ao próximo. E a recusa da
maioria em ser advertida faz com que muitos declinem de exortar, como se a
delicadeza, a omissão e a transigência com o mal, o engano e o pecado não
fossem práticas reprovadas pela Escritura, além de serem o atestado
comprobatório de um cinismo insuspeitado travestido de bondade e inclusão,
atendendo aos ditames do “politicamente correto”, uma praga secular a
dominar o ambiente cristão.
Em segundo lugar, o zelo para com a Igreja[121] não pode nos tornar fariseus
e homens que, sem amor, não sabem conviver com as diferenças. A defesa da
fé pode prescindir do amor e da piedade para com o próximo? Até que ponto
deve se chegar na defesa da fé?
Estar com eles e permitir que estejam em nosso meio é uma acintosa
infração, um descaso, para com a comunidade dos santos. Faz-se necessário
salientar que isso nada tem a ver com os incrédulos e a vida alheia à igreja,
no sentido de estar proibida a comunicação com “os de fora”. A exortação
bíblica é de não permitirmos esse estado de coisas na Igreja, em seu interior,
pois aqueles que assim agem são agentes da destruição, do escândalo e da
dissensão; como tais, não fazem parte do Corpo, antes buscam a sua morte.
As chances de esses homens ímpios se converterem é pequena, ainda que não
esteja em nosso âmbito cogitá-la ou negá-la. Tal qual Paulo escreveu aos
hebreus, é impossível que eles sejam:
Não, não é desses que desejo falar, mesmo gastando algumas linhas com
eles, mas da Igreja verdadeira pela qual Cristo morreu. Vivemos momentos
conturbados que, no mínimo, nos levam a uma espécie de indecisão, mesmo
para os que procuram e querem servir a Deus. O mundo rejeitou
definitivamente qualquer opção de ouvir e obedecer à sabedoria divina. Pelo
contrário, tem prazer em se rebelar contra ela. Desprezam a Escritura e a sua
Lei; zombam do seu poder e glória; consideram-se sábios em sua arrogância,
pretensão e devassidão, quando não passam de tolos e loucos, porque:
Questionei-me por que a Igreja estava esperando para agir, como se uma
parte substancial dela não estivesse vivendo as agressões, torturas,
perseguições e tantos outros crimes culminando na morte de milhares de
irmãos ano após ano, mundo afora. Por que mantemos uma atitude de inércia,
passividade, enquanto o mundo e o diabo querem nos destruir?
“Tu me cercaste por detrás e por diante, e puseste sobre mim a tua mão”
(Sl 139.5).[123]
“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua
alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o
primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes”
(Mc 12.30-31).
“Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o
Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6).
“Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós, me odiou a
mim.
Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas porque não sois
do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.
Lembrai-vos da palavra que vos disse: Não é o servo maior do que o seu
senhor. Se a mim me perseguiram, também vos perseguirão a vós; se
guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa” (Jo 15.18-20).
Não quero dizer que devemos esperar o próximo voo à Marte, mas, antes
de pegarmos em armas (aqui representando todo e qualquer método de
defesa, ainda que retórico), urge pregar e ensinar o Evangelho. Porque, se
como Igreja sofreremos, se essa for a vontade de Deus, que seja em
obediência, pregando e testemunhando a Cristo. De que adianta a apologia
sem Cristo? Não estaremos negando o que somos e voltando ao que éramos?
Ou tememos padecer, de modo que o sofrimento é nosso maior pesadelo, não
a desobediência?
“No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (Jo
16.33).
Ou:
“Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra
os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.
Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia
mau e, havendo feito tudo, ficar firmes” (Ef 6.12-13).
“São nuvens sem água, levadas pelos ventos de uma para outra parte”.
A dureza com que devem ser tratados esses homens não é injustificada,
nem excessiva, ou desproporcional. Certamente várias foram as tentativas de
admoestá-los e levá-los ao arrependimento (Tg 5.19-20). Foi-lhes descrito o
estado de insubmissão a Deus, o fato de que estavam a satisfazer os seus
deleites e nada mais. Foram-lhes proferidas palavras brandas de correção,
admoestando-os piedosamente (Gl 6.1), mas não se arrependeram, persistindo
em agravarem-se ainda mais no erro, extrapolando por completo o
significado de malícia, impiedade e degradação da alma; insistindo na difusão
de falsas doutrinas, na imoralidade, na perversão, no desprezo à santidade,
negando e escarnecendo-se da verdade. Somos exortados a apartar-nos e não
nos misturarmos com todo aquele que anda desordenadamente e não caminha
segundo a tradição, segundo a fé, para que se envergonhem (2Ts 3.6;14-15).
Paulo alerta-nos a assim proceder em “nome de nosso Senhor Jesus Cristo”,
e fazendo-o, estamos investidos da sua autoridade, delegada expressamente
pela sua pena, guiada pelo Espírito Santo de Deus.
Ora, qual de nós, por mais fiel que seja, admite reagir assim, em um
mundo em completo disparate, desviado da palavra de Deus? Onde a verdade
e a moral são afrontas, a mentira e a ofensa atrevida não envergonham nem
contrariam? Já que vivemos em um século cuja influência mundana tem
moldado o “viver cristão”, de forma que a nossa ação seja sempre a de
passividade e lassidão para com o pecado, podemos ousar combatê-lo? Não
em um prostíbulo, em uma reunião de criminosos, ou numa seção de
sadomasoquismo (nada nos impede de fazê-lo pacificamente, mas não
considero uma atitude prudente), mas em nossas próprias vidas, na vida dos
irmãos, na Igreja... Teríamos coragem?
Alguém, por fim, dirá: “Mas, se estamos no mundo, como não viver no
mundo? Podemos prescindir das coisas boas do mundo e viver como um
amish[125], afastado de tudo e todos, como os monges medievais também
viviam? Se essa fosse a vontade de Deus, ele não nos teria arrebatado quando
da nossa conversão?”
Conheço casos de pessoas, e eu mesmo cheguei a ser uma delas, nas quais
não havia sinais de vida cristã, tal a profusão de literatura, música, filmes e
outras formas de arte seculares decadentes, depreciativas, inundadas de
perversão e ceticismo, muitas vezes acompanhadas pelo álcool, fumo e outras
drogas, como complementares a uma vida sem traços de Cristianismo, quase
uma volta ao vômito. Seus interesses estavam focados em tantas coisas
distintas da vida cristã que as tornavam “quase ex-crentes”. A disposição para
varar a noite em shows, campos de futebol, mesas de boteco, saraus, salas de
cinema e o “footing” em shoppings, não tinham a mesma correspondência em
relação à frequência aos cultos, em orações, na leitura e meditação da Bíblia,
na evangelização. De alguma maneira, a associação com o mundo inverteu-
lhes o sentido e a motivação; ao invés de iluminar e salgar o mundo, foram
absorvidos, sugados, pelo buraco negro das trevas.
Eles são homens sem curso, sem destino certo, podendo estar hora aqui,
hora acolá, vivendo na incerteza e angústia de suas próprias convicções[128],
como um macaco pulando de galho em galho, sem pouso firme, sem um
abrigo seguro. Misturando-se, sem fixar raízes, estão afeitos a todo o vento de
doutrinas, sujeitos a todo o tipo de ideologia. Acreditando-se “iluminados” e
pródigos em sapiência, incitavam o proselitismo ao erro, enveredando-se
mais e mais nele, ao ponto de não serem mais capazes de distinguir entre o
falso e verdadeiro. Havia tal confusão em suas mentes que a nitidez
necessária para se distinguir o certo do errado incapacitava-os de reconhecer
a verdade, ao passo que os tornava facilmente persuadidos pela mentira. E
assim, cegos de soberba e vaidade, não conseguiam perceber a própria
ignorância e ruína, levando-os à obsessão de arregimentarem um séquito de
estúpidos fascinados com a insensatez. São como aquele homem que
construiu a sua casa na areia:
A JUSTIÇA INQUIETANTE
para fazer juízo contra todos e condenar dentre eles todos os ímpios,
e por todas as duras palavras que ímpios pecadores disseram contra ele.
Cristo não terá o seu retorno retardado ou impedido por Satanás ou outro
qualquer; porém, como ele estabeleceu a sua volta somente após o
surgimento do anticristo para, com o assopro da sua boca, desfazê-lo e
aniquilá-lo com o esplendor da sua glória (2Ts 2.8), cumprindo-se assim o
seu desejo santo e perfeito, resta-nos orar e ansiar por esse dia, clamando em
alto e bom som, “Maranata, Senhor Jesus”, para estarmos com ele por toda a
eternidade. Então, se cumprirá o plano definitivo de fazer-nos um consigo
mesmo, de sermos transformados à sua imagem e semelhança, como foi
estabelecido previamente, muito antes da fundação do mundo. Foi como
aprouve a Deus fazer, e assim será, para a sua glória e louvor, e para o nosso
gozo inefável.
Sabemos que Cristo é a verdade (Jo 14.6), sendo o objeto de ira e aversão
dos que têm ódio e desprezo a Deus, preferindo iludir-se com a mentira,
enrodilhando-se em enganos e buscando levar outros ao mesmo estado de
delírio e condenação.
“Assim será a minha palavra, que sair da minha boca; ela não voltará
para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a
enviei” (Is 55.11).
Deparei-me com este versículo, ao final de um texto, a tutelar a
perspectiva de um mundo melhor, no futuro, um mundo sempre a prosperar
até o dia em que todos, ou quase todos, se converteriam a Cristo, no dizer de
um teólogo[131]. Sempre, tão logo chegamos ao fim da leitura de uma defesa
pós-milenarista, somos questionados sobre a mudança de postura, de
abandonarmos o que chamam de “pessimismo escatológico” para assumir o
que denominam de “otimismo escatológico”, a ponto de uma série de textos
perderem completamente o sentido ao serem analisados pelas lentes
microscópicas da pós-milenaridade. A acusação visa, primeiramente, atacar a
nossa autoestima, fazendo-nos parecer crentes de segundo escalão, não
espirituais e de pouca fé. Mesmo reconhecendo a invalidade do argumento,
camuflado de uma superioridade dissimulada, mas ainda assim presente no
discurso, não foi uma nem duas vezes que me senti atingido por essa falácia,
pela arrogância atirada em rosto como se fosse piedade.
“O poder de Deus para salvação de todo aquele que crê” (Rm 1.16).
Sei que estou a nadar contra a maré deste século, mas não se pode dizer
que nem mesmo a música tem poder evangelístico, como costumeiramente é
apregoada pelos sábios atuais, crédulos de que há poder em um pouco de
emoção, transformando-a em razão, em compreensão e arrependimento (a
menos que seja com extensos trechos bíblicos, como os Salmos). O mesmo se
dirá do teatro, como outros querem, e por mais verdadeira ou verdades
contenha a peça, ela ainda estará incrivelmente distante da verdade e
realidade do Evangelho. Talvez ele apresente extensos trechos bíblicos, quem
sabe, um monólogo; porém, a assistência, hoje, está mais preocupada com a
diversão, e nada disso, no padrão mundano, tem as feições de divertimento.
Nem o cinema pode fazer isso, a menos que seja mais auditivo do que visual,
o que se torna um empecilho, caso o projeto vingue, já que as pessoas estão
mais interessadas em movimentos e barulhos, como perseguições e
explosões, do que uma história verdadeira, contada com correção, tampouco
um discurso, a menos que esteja impregnado por extensas citações e
passagens bíblicas; o mesmo vale para quase todas as formas de arte e,
algumas delas, em relação ao evangelho, não significarão muita coisa, como a
pintura, escultura... Em relação à dança, nem é preciso falar da completa
ineficácia como meio de evangelismo.
O poder de Deus está na palavra, sendo ela o único meio de se proclamar
a verdade[132] e fazê-la chegar ao conhecimento do perdido. Há de se
entender a pregação como nem sempre trazendo frutos de obediência e
reconciliação com Deus, significando que nem todos que ouvirem o
Evangelho estarão aptos a se arrependerem, a compreenderem sua
mensagem, pois falta-lhes o agir do Espírito Santo. Sem ele, jamais
assimilarão as Boas-Novas, receberão a fé necessária para crerem e serem
regenerados e salvos, pois não há, em si mesmos, virtude a satisfazer a justiça
divina, a quitar o preço de uma dívida impagável, a qual somente é possível
por Cristo, sendo por ele fomentada. Afinal, os réprobos não têm suas vendas
tiradas, permanecendo os olhos vendados à luz, a tropeçarem nas tênues
sombras da escuridão de suas almas. Se o Senhor não operar por completo no
homem, nada será possível a ele, a não ser transitar forçosamente na inata
ignorância, na pretensão de vislumbrar algo, em si, enquanto se está imerso
no mais denso nevoeiro da ignorância.
Por isso está escrito a respeito de Cristo, sem o qual, e por sua exclusiva
vontade, nada pode ser feito. Se ele não quiser, não há quem queira; se
quiser, todos quererão:
O fato de o verso de Isaías 55.11 falar muito mais do que a maioria quer
ouvir, demostra quão difícil, mesmo para o crente, é compreender e aceitar as
verdades bíblicas, especialmente se elas mancham ou maculam de alguma
maneira o ego humano, colocando o homem em seu devido lugar: na
inaptidão completa, na total incapacidade de alcançar a paz com Deus, de
aceitá-lo e viver para a sua glória, por seus próprios méritos, pois o seu
opróbrio e mácula impedem-no de sequer cogitar uma reconciliação, quanto
mais operá-la. Em sua arrogância, autonomismo e presunção, ele não
encontrará motivos para buscá-lo, a não ser como parte da sua própria
satisfação, como uma virtude inerente a si, cuja conclusão está em harmonia
com o seu valor intrínseco, de reconhecer-se o único habilitado a busca-lo e
encontra-lo. Como já disse, o melhor homem do mundo não pode salvar-se a
si mesmo, mas Cristo pode salvar o pior dentre toda a humanidade.
O texto profético está a nos dizer que a palavra de Deus nunca voltará
vazia. Mas em qual sentido? Apenas do ponto de vista positivo? De
absolvição do ímpio? Definitivamente, não!
“Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” (Jo 3.18).
“O Senhor fez todas as coisas para atender aos seus próprios desígnios,
até o ímpio para o dia do mal” (Pv 16.4).
“Porque também a nós foram pregadas as boas novas, como a eles, mas
a palavra da pregação nada lhes aproveitou, porquanto não estava
misturada com a fé naqueles que a ouviram” (Hb 4.2)[133].
“Para o fogo que nunca se apaga, onde o seu bicho não morre, e o fogo
nunca se apaga” (Mc 9.43-44).
Não havia fronteiras, muros, abismos ou outra separação entre ele e eu;
havia apenas um ponto, eu. Ele, na melhor das hipóteses, estava sobreposto a
mim, como se fosse um ponto dentro do outro. Em alguns momentos,
considerava-o fora de mim, externo, mas apenas como uma emanação do
meu interior, alguém a poder distanciar-se sem, contudo, afastar-se, pois a
sua origem estava onde eu estivesse, por onde passasse, como se o seu
pensamento não pudesse se desvencilhar do meu, a sua imagem estivesse
guardada em mim, e, fora de mim, havia o reflexo de quem ele era: eu
mesmo.
Se nada disto lhe diz respeito, você não passa de um tolo! Convencido,
pretencioso, abestalhado! Não é salvo. E permanece sob a ira de Deus.
Se não houver aquele dia, em que numa ínfima fração de tempo você se
viu como realmente é e foi movido irresistivelmente pelo Espírito Santo a ser
como Cristo, você ainda está morto em seus delitos e pecados. De nada
adiantará espernear, alegar inocência, porque a obra de salvação é
completamente de Deus, e o homem bom que você se considera não poderá
auxiliá-lo em nada. Tudo é dele para o eleito; tudo é dele pelo eleito; e
somente assim se estabelece a sua glória, de ser aquele por quem somos
resgatados, vivificados, achados, não em nós, mas nele, por ele e para ele.
Deus se move de tal maneira em nossa direção, que somos atraídos necessária
e integralmente para ele. O seu conselho eterno se realiza no tempo, não
agora, mas na expiação proposital e limitada do Filho, a cabeça, pelo seu
corpo. Corpo este que foi destinado para a vida eterna, em sua presença,
apenas e exclusivamente por sua vontade, a despeito de todos os esforços
empreendidos pelo homem de minimizar os feitos e méritos divinos, seja por
uma teologia corrompida e herética, seja por uma vida descuidada e
incrédula. Tal atitude culmina na expressão verdadeira de que, quanto mais
ansiamos e nos convencemos do nosso autogoverno, mais patente e
inconteste está o nosso fracasso.
“Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para
que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado”
(Rm 6.6).
O réprobo somente faz produzir provas contra si, infringindo a Lei Divina
tantas vezes quanto a sua mente é capaz de se deleitar na marginalidade. Por
isso, muitos se recusam a crer no Inferno e na condenação. Afinal, não foram
regenerados, e se não foram, como acomodar os seus pecados ao Evangelho?
Não tem jeito! É impossível! Então usarão de artifícios para desqualificá-lo,
distorcê-lo, pervertê-lo ou recriá-lo. Certamente, assim agiram os falsos
mestres também no tempo da Igreja Primitiva, insuflando-a à mentira,
desviando-a da verdade, introduzindo-a no mais obscuro e letal ensinamento
às avessas da luz da revelação, onde a soberba e a arrogância obstruíam a sua
visão, compreensão e a possibilidade de reconhecimento da verdade.
Assim é o ímpio.
O cadáver que a chuva molha.
O Suicídio Espiritual
Mesmo os maus não têm do que se preocupar. No fim das contas “Deus”
consertará tudo, e a maldade será recompensada pela impossibilidade de não
haver bondade, como uma “vitimazinha”, a “coitadinha”, que não tinha
consciência da sua perversidade, já que a ignorância quanto ao bem é o salvo-
conduto para se aperfeiçoar na prática do mal e escapar impune, ileso.
Nascer e viver no mal é uma boa desculpa para não fazer o bem e
continuar andrajoso pelos caminhos dissolutos. E tem funcionado, pois nunca
o mal foi tão amado, contemporizado e minimizado entre os cristãos, como se
não existisse e não passasse de uma fuga da realidade ou uma ilusão mental.
O contrário, conforme imaginam, se não bastasse ser irreal, é visto como
prova do amor à humanidade, a profusão da benignidade como se fossem
gotas aplicadas homeopaticamente em uma entidade do tamanho do Oceano
Pacífico. No fim das contas, isso se resume a uma esquizofrenia fugidia na
qual a verdade é o lapso pessoal em reconhecer-se como pecador e inimigo
de Deus, para se fazer merecedor por um tipo de bondade lúdica, quase um
chiste, onde as evidências são de uma alma egoísta e pretenciosa.
De forma que Deus falou, nos últimos tempos, pelo Filho, o qual é o
resplendor da sua glória e a expressa imagem da sua pessoa, a quem
constituiu herdeiro de tudo (Hb 1.1-3).
Ora, mas há os que tentam invalidar a Escritura dizendo que Cristo não se
nomeou Deus e os autores inspirados jamais o proclamaram como tal. Eles
tentam nadar contra a maré, da mesma forma que um defunto pedalaria um
“velotrol”, subindo uma montanha-russa. Absurdo dos absurdos! Em suas
presunções, logram-se sábios quando não passam de loucos (Rm 1.21-22).
Para tanto, têm de rejeitar a inteligência, a lógica, a verdade, a fim de se
entregarem às artimanhas mais vis capazes de engendrar o espírito humano e
aprisioná-lo em uma redoma escura e apertada, na qual tem contato tão
somente consigo mesmo, sua limitação, e um coração disposto a leva-los à
negação da verdade inevitável.
1- “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus” (Jo 1.1);
3- “Eu e o Pai somos um. Os judeus pegaram então outra vez em pedras
para o apedrejar... não te apedrejamos por alguma obra boa, mas pela
blasfêmia; porque, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo” (Jo 10.30-31,
33);
4- “E quem me vê a mim, vê aquele que me enviou” (Jo 12.45);
9- “Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito
Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele
resgatou com seu próprio sangue” (At 20.28);
10- “Dos quais são os pais, e dos quais é Cristo segundo a carne, o
qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém” (Rm 9.5);
O fato de Cristo vir buscar e salvar o que se havia perdido (Lc 19.10)
implicará automaticamente na condenação dos que não forem salvos e
mantêm-se dispersos no pecado. Não é difícil entender por que, ao ver deles,
é necessário desqualificá-lo, diminuí-lo, para, primeiro, anular o Juízo de
Deus, depois a redenção e, então, propor, à revelia da Bíblia, uma obra cujo
valor é apenas moral (sendo que um princípio imoral anula qualquer sentido
de moralidade), um exemplo de coragem, coerência e desprendimento para
todos os homens e seu esforço autorredentivo.
A MARCA DA MALDADE
Mais uma vez, o autor refere-se à igreja como amados, exortando-os sobre a
necessidade de lembrarem-se do que fora dito e predito pelos apóstolos de
Cristo e pelo próprio Cristo em um passado recente. Há uma reiteração
daquilo exprimido no verso 5, o fato de não se esquecerem da doutrina
entregue-lhes pelos santos de Deus, não abandonando suas mentes, não as
entregando ao desprezo por tudo aquilo revelado em tempos anteriores.
Antes, devem cultivar, como bons agricultores, os ensinamentos sagrados,
protegendo-os dos ataques inimigos, daqueles desejosos em destruí-los. Isso
vai de encontro à tradição apregoada por alguns, uma tradição maleável,
transitória, a qual se diz verdade pela boca dos homens, mas nunca pelos
“lábios” divinos, mudando ao sabor dos ventos e dos tempos, sendo
substituída por outra verdade de valor relativo, como uma resposta humana
ao grito interior avesso ao absoluto. Tal relativização visa a impedi-los de
darem frutos e de propagarem os ensinamentos da igreja, de serem
norteadores para uma verdadeira vida cristã. Uma vida na qual o cristão seja
capaz de abraçar a verdade, através da qual cada um dos eleitos se tornará
cada vez mais feito à semelhança, à estatura do nosso Senhor. Igualmente,
trata-se de uma vida na qual o homem não pode ser apenas um palpiteiro, um
palrador, capaz de se envolver em muitos estudos, em muitas conjecturas, em
destilar o seu conhecimento de quase tudo, ou de nada, se necessário. O
incrédulo, pelo contrário, sempre duvida, em última instância e no mínimo,
mesmo estando a autonomear-se um incansável “caçador de verdades”. No
entanto, ao encontrá-la, reluta bravamente, pois a pura e simples
concordância pela fé, passada pelo crivo racional, parece-lhe inconcebível e
muito distante da irracionalidade praticada e um tanto distante da razão na
qual os hereges de todos os tempos se empenham e exercitam à exaustão.
- Ora, porque ele não quer... Ao menos, do jeito que imaginamos ser.
Ele continuou:
- Sim, respondi, e quem lhe disse que ele não está fazendo o melhor? O
problema é que esperamos apenas “boas” intervenções, no sentindo mais
humano do termo, quando todas as suas intervenções são boas, ainda que nos
pareçam más... Paulo não diz isto em Romanos?
- Bem que não podia haver as heresias.... Elas são a porta por onde muitos
vão para o inferno, e deixam outros bem próximos da entrada...
- Concordo, mas pense: esse não pode ser o instrumento de Deus para
purificar e santificar o seu povo? E, também, o instrumento para condenar os
ímpios? De qualquer maneira, bendigo a Deus pelas heresias e os heréticos,
pois, sem eles, a verdade não resplandeceria, e os santos não se ajuntariam.
Com isso não estou a dizer que, vez ou outra, as forças do mal não
vençam uma batalha aqui e acolá. A história nos mostra muitas delas onde o
triunfo inimigo acontece, lançando dúvidas sobre o efetivo e providencial
cuidado divino à igreja: a idolatria cresce; o destemor de Deus arrefece; a
infidelidade do homem se fortalece; o não arrependimento cauteriza a alma; e
a introdução de conceitos e doutrinas alheias ao Evangelho conquista
corações néscios; mentiras que atingem o status de verdade são proferidas e
defendidas por enganadores sagazes, que ludibriam os incautos com suas
palavras empoladas e cheias de malícia. Entretanto, engana-se quem tem
como incerto o zelo divino pelo seu povo; a expansão da impiedade é selo
visível da atuação satânica neste mundo, mas também é a marca invisível da
sua condenação, assim como daqueles engajados em sua causa, a inimizade
recalcitrante, chamando para si mesmos a ira vindoura.
Mas, então, se a igreja não será derrotada pelas hostes de Satanás, por que
muitas delas sucumbiram ao falso ensino, tornando-se igrejas do mal?
Não tenho por objetivo tecer um tratado sobre cristologia, porque o foco é
outro. Apenas julguei necessário este adendo para não pairarem dúvidas
quanto a quem devemos honra e glória e louvor, mesmo quando diante do
espelho concluímos pela nossa beleza e majestade (não entenda como uma
afirmação, mas como uma provocação, por favor), que, contudo, é obra das
mãos divinas, da qual somos receptores e nunca fomentadores; da qual somos
agraciados e jamais doadores.
Desta forma, sabemos que os ataques malignos não pouparão nem mesmo
o ambiente eclesiástico, e que, no mundo, esperam-nos coisas igualmente
piores, indicando ao lado de quem estamos, por que estamos. O objetivo
disso tudo é sermos arrastados para longe, à uma distância tão segura que
garanta a não realização da obra de Cristo em nós. Cristo nos garantiu que
seremos bem-aventurados, a despeito da guerra que o mundo trava contra
nós; a despeito da dor e aflição e injustiça com que o mundo nos vê e
persegue, existe a segurança, a esperança e o gozo nas palavras daquele que
nos capacita a torná-las vivas, ansiadas, em cada membro do seu corpo:
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça,
porque deles é o reino dos céus; bem-aventurados sois vós, quando vos
injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por
minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos
céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós” (Mt
5.10-12).
Alguns dirão que uma ideia, seja qual for, existe em si mesma
ontologicamente enquanto parte do ser, no que posso concordar, sem,
contudo, ser verossímil. Se ela pertence apenas àquele ser, pouco me
interessa o seu conteúdo e suas consequências. Mas, se é algo a se disseminar
e a construir um padrão aleatório, a indispor-se com a verdade, arrastando-a
para o limbo da irracionalidade, a ideia se autoimplode, tornando-se
autocontestável. Por isso a Bíblia exemplifica, em várias passagens, a
associação dos tolos em proporem e seguirem suas tolices, sintetizadas por
Isaías:
“Porque os guias deste povo são enganadores, e os que por eles são
guiados são destruídos” (9.16).
“Logo tu és Rei?”
“Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a
fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a
minha voz”.
Pilatos retrucou:
“Que é a verdade?”.
Como Pilatos, muitos não querem ouvir. Contentam-se com uma suposta
verdade que se revelará aniquiladora; contentam-se consigo mesmos; com
tudo o que são e imaginam ser, com tudo o que podem fazer ou imaginam
fazer, sem perceberem que estão “não-sendo” e “não-fazendo”, ou se são e o
fazem, é para a perdição. Afinal, sem Deus, há apenas o homem incompleto,
abandonado e autoprivado pela humanidade, entregue ao castigo e ao
sofrimento autoinfligido. Assim são descritos:
“Como o cão torna ao seu vômito, assim o tolo repete a sua estultícia”
(Pv 26.11)
Certa vez, conversando com uma pessoa querida, perguntei-lhe quem era
Jesus. Ao que me respondeu:
- Por que, não? Se política, sexo, esportes, moda e tantas outras coisas são
importantes e discutíveis, algo que se relaciona com a sua alma não é?
- Não penso nisso... Nem quero pensar. São coisas que não me interessam
conhecer! – disse, enfática.
O apóstolo diz:
“Ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho
além do que já vos tenho anunciado, seja anátema. Assim como já vo-lo
dissemos, agora de novo também vo-lo digo. Se alguém vos anunciar outro
evangelho além do que já recebestes, seja anátema” (Gl 1.8-9)
A forma como os “ais” são proferidos mostra a nítida ira do Senhor para
com aqueles homens. Não há por que ser diferente, visto a Bíblia revelar a
soberana autoridade de Cristo para salvar e também para condenar. E é esse o
caso. Cristo está julgando os principais. Ele não se refere a eles como amigos,
mas como inimigos. Parece que, de certa forma, para alguns, se ele os está
julgando, está agindo injustamente. Mas, lembremo-nos de três coisas:
2-A ira divina é santa. Ela é o reflexo da sua justiça. Portanto, dizer que
Cristo, ao mesmo tempo que se ira e condena o ímpio, o faz em amor ao
objeto da sua ira e condenação é, no mínimo, uma contradição. O problema é
que se espalhou pelo mundo a ideia de um Deus que ama a todos, sem
discriminação, quando, na verdade, Deus ama aquele que lhe obedece; aquele
que cumpre os seus mandamentos, que foi regenerado e lavado no sangue do
seu Filho amado; aos que o amam, anseiam e desejam ardentemente lhe
servir e a ele se sujeitar, os eleitos, pelo qual morreu e se entregou para que
fossem salvos. Quem se atreverá a rogar por aquele que Deus condena? Ao
fazê-lo, não estará questionando a sua justiça e santidade? E tentando se fazer
como ele? O “aí” de Cristo é uma assertiva inexorável, da qual não se pode
escapar, provando a inimizade e diametral oposição entre a santidade divina e
o transgressor indisposto a abdicar do seu mimo, o pecado.
3-Deus é justo e não pode ser questionado por ninguém. Foi o que Ele
disse a Jó:
Isso não quer dizer, no entanto, que Cristo não tenha outro objetivo em
mente. O alvo do seu amor está implícito na maneira de condená-los, e, desta
forma, todos os eleitos lerão e ouvirão as suas palavras como alerta para não
incorrerem no erro, repetindo o exemplo dos fariseus, mas com o fim de
afastarem-se deles, de seus comportamentos insidiosos e da devoção fingida.
Enquanto condena os hipócritas, nas mesmas exortações alerta às suas
ovelhas a indisporem-se com o mal ou qualquer aparência do mal,
empenhando-se em produzir o oposto daqueles feitos realizados pelos líderes
de Israel. Em outras palavras, Cristo revela-nos toda a sordidez e vilania dos
fariseus e escribas, condenando-as, para que nós visualizemos o erro,
saibamos do desagravo de Deus a quem os comete e nos afastemos de suas
práticas. Sobretudo, não nos contentemos em ser servos de aparência, mas em
verdade, não buscando na glorificação mundana aquilo somente encontrado
na obediência a Deus, no serviço a ele, o culto racional, significando que toda
a glória a ele somente é devida.
O alvo da sua ira (e quem pode alegar injustiça divina na ira santa de
Cristo?) é a liderança judaica e seus seguidores; o alvo do seu amor, os
eleitos, podendo ser mesmo alguns desses líderes e seguidores, caso tenham
se arrependido, após ouvirem a voz, a exortação, do Santo.
Quem lhe deu olhos para ler? A mente para entender? O espírito para
discernir? E a vontade para obedecer? Quem lhe revelou o pecado? E a
salvação? Quem lhe deu a vida? Ou será que foi um deles a entregar-se na
cruz por seus pecados? Ou, onde estava quando Deus fundou a terra (Jó
38.4)?
Paulo está nos dizendo que tudo é pela graça e misericórdia de Deus;
nada do que somos ou temos é fruto do nosso valor, mas é gerado em nós por
Cristo. Então, por melhor que eu seja, por mais bem situado social e
financeiramente, por mais poder e prestígio que tenha, nada disso foi me
dado por mérito, mas por graça; o que me torna duplamente responsável pela
forma como decido usar o que me foi entregue por Deus e pela maneira justa
ou injusta de reconhecer-lhe ou não o favor. Fazendo-o em sabedoria, guiado
pelo Espírito, serei instrumento de justiça, do contrário, de injustiça. E toda
injustiça será castigada, condenada, parafraseando Nelson Rodrigues[145].
“Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas
que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar,
adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio? Tu, que te
glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?” (Rm 2.21-23).
Para isso, é necessário reter a palavra da verdade, algo que o fariseu não
consegue fazer. É-lhe um exercício impossível de per si, uma vez que,
rejeitando a graça divina, nega-se o poder de reter a palavra, cumprindo-a. É
preciso humilhar-se, o que significa considerar os outros superiores a si
mesmo; não atentar para o que é propriamente seu, mas também para o que é
dos outros (Fp 2.3-4). Para que isso aconteça, Cristo deve crescer, formar-se
em nós, enquanto diminuímos e finalmente morremos para nós mesmos (Jo
3.30; Gl 2.20), pois o nosso velho homem foi crucificado com ele para
desfazer o corpo do pecado, a fim de que não sirvamos mais ao pecado (Rm
6.6), e vivamos, enfim, completamente para a glória de Deus.
Cristo nos deu o exemplo: o maior se fez menor, para ser exaltado
soberanamente.
Tempos Difíceis
Paulo inicia falando dos tempos trabalhosos que sobreviriam nos últimos
dias (v.1). Esta é uma nítida evidência de que estamos diante de uma
profecia. Muitos alegarão que ele está a predizer um futuro distante, o que é
verdade. Mas, em especial, ele escreveu a Timóteo, o seu “verdadeiro filho
na fé” (1Tm 2), ou simplesmente “meu amado filho” (2Tm 1.2), com o
objetivo de instruí-lo e exortá-lo a permanecer na “fé não fingida que em ti
há” (2Tm 1.5). Portanto, Timóteo estava sendo alertado quanto aos filhos de
Satanás que se infiltrariam e provavelmente já estavam infiltrados na Igreja, a
fim de perverter o Evangelho, causando estragos à fé. Como dupla profecia,
ela serviu de alerta tanto para Timóteo e os irmãos da Igreja Primitiva, quanto
para todos os crentes em todos os tempos. Logo é um aviso para nós também,
o qual não pode ser negligenciado nem desprezado.
O estado final deles é tal qual Pedro relatou em sua segunda epístola:
prometem liberdade quando são servos da corrupção. Após terem escapado
da depravação do mundo, pelo conhecimento do Senhor Jesus, envolvem-se
novamente nela:
“E vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro.
Porque melhor lhes fora não conhecerem o caminho da justiça, do que,
conhecendo-o, desviarem-se do santo mandamento que lhes fora dado; deste
modo sobreveio-lhes o que por um verdadeiro provérbio se diz: o cão voltou
ao seu próprio vômito, e a porca lavada ao espojadouro de lama” (2Pe 2.20-
22)[148].
“Se introduziram alguns, que já antes estavam escritos para este mesmo
juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de Deus, e
negam a Deus, único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo” (v. 4).
Por que não são notados? E se são, por que a igreja se permite ser
envenenada? Alertada pelos sinais a denunciarem a apostasia, silencia-se,
cúmplice?
4- Porque a igreja desistiu de batalhar pela fé uma vez dada aos santos
(Jd 3); e decidiu não resistir mais, ao banquetear-se com o inimigo,
recebendo o galardão da injustiça (2Pe 2.13), e apascentando a si mesma sem
temor (Jd 12).
5- Por fim, o amor esfriou de tal maneira que tanto Deus como o próximo
se tornaram insignificantes diante do desejo humano de autossatisfação e
aceitação, em um mundo constantemente descontente consigo mesmo e
irreconciliável com quem quer que seja.
Via de regra, nos dias atuais, boa parte da igreja tem se bandeado para
uma união perigosa e destruidora com o mundo, sendo que não é ela a
influenciá-lo, mas o contrário. A igreja tem se mundanizado e secularizado de
tal forma que em muitos continentes, em especial o europeu e americano, boa
parte delas fechou as suas portas, pois o nível de atração e sedução
apresentado não alcançou os mesmos patamares oferecidos pelo mundo.
Além disso, convenhamos, em termos de diversão, no sentido mais baixo e
inconsequente possível - em harmonia com a grande maioria das pessoas,
entregues aos anseios do próprio ventre -, a igreja nunca poderá disputar, de
igual para igual, com o mundo. É uma competição desigual, na qual a
“amizade” funciona apenas em prol da destruição eclesiástica e a prevalência
do secularismo.
Ao amar mais as trevas do que a luz (Jo 3.19), sua escolha pelo suicídio
institucional e espiritual tornou-se evidente, resultando no sepultamento em
meio às festivas comemorações mundanas por sua supressão. A consequência
foi a transformação da sociedade ocidental, fundada pela tradição judaico-
cristã, em uma sociedade pós-cristã, sedimentada na crença ateísta-
materialista, terreno propício para os inimigos do homem implantarem suas
loucuras de modo a destruí-lo, como uma doença oportunista ataca
mortiferamente um enfermo e debilitado organismo. Se há uma falência
moral, ética e espiritual do homem moderno, essas forças se encarregam de
destruir o pouco que lhe resta: o corpo.
Os inimigos dizem “paz, paz, quando não há paz” (Jr 8.11) e arruínam-
na de dentro e por dentro. Desfraldamos a bandeira branca ao inimigo,
convidamo-lo para celebrar o armistício; chegamos mesmo a deixar que
governe a nossa casa. Entregamos nossas armas, deixamos que desfrute dos
nossos tesouros para, como bem-treinado terrorista e espião, atacar sutilmente
e deteriorar a sã doutrina e a vida cristã, introduzindo fraudulentamente os
desvios, os subornos que induzirão a um motim incontrolável na igreja. Paulo
descreveu-os em minúcias:
“Porque tudo o que dantes foi escrito, para o nosso ensino foi escrito,
para que pela paciência e consolação da Escrituras tenhamos esperança”
(Rm 15.4).
Não se deve desprezar o inimigo, mas deve-se saber que, por Cristo, ele
já foi e está vencido (Cl 2.15).
Judas alertou não somente o seu povo, mas todo o povo em todos os
tempos, quanto aos detratores da fé, os corrompidos que, travestidos de
ovelhas, são lobos vorazes a dispersar o rebanho. Não há neles nada além de
um discurso confuso, duvidoso e capaz de plantar no seio da igreja apenas a
desordem e o ceticismo. Como já vimos, Satanás, em vez de combater a
igreja de fora, com aqueles que odeiam frontalmente o cristianismo, decidiu
espalhar seus asseclas pela igreja. Vendo que o primeiro método não trazia os
resultados almejados (como um bom pragmático, Satanás acredita piamente
em resultados e metas alcançadas), e baseando-se na experiência do Éden e
pós Éden (a sua veia empirista é definitiva), ele inverteu sua estratégia, a fim
de tirar a força transformadora da igreja, em primeiro lugar, e destruí-la, em
segundo. Como um bom incrédulo, esqueceu-se, contudo, de que Cristo
morreu por sua igreja, e por ela viveria.
NÃO À AUTOFILIA
“Na qual todo edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no
Senhor, no qual também vós juntamente sois edificados para morada de
Deus no Espírito” (Ef 2.20-22).
Contudo, muitos tentam pôr a sua fé em um Cristo que nada tem a ver
com o verdadeiro, o Cristo bíblico. Apelam para conceitos externos à
Escritura, de foro exclusivamente íntimo, para referências apócrifas, para a
tradição e um sem-número de afirmações completamente adversas ou
estranhas à Revelação Especial. Por isso a fé não pode ser depositada na
pessoa errada; qualquer crença em um Cristo não bíblico é negá-lo, o
verdadeiro, e, por conseguinte, negar a própria fé. É interessante como se vê
pessoas afirmarem ter uma fé em Cristo, mas desconhecerem os seus
ensinamentos ou, em alguns casos, rejeitarem-nos como não sendo dele,
quando o são. A ignorância faz o tolo se orgulhar de seus palpites ou opiniões
infundadas, sem respaldo bíblico, sem aceitação pela igreja, em completa
dissonância com tudo o que é santo e verdadeiro. Em sua soberba e
pretensão, ele despreza todos os sinais a apontarem a sua fé como uma
distorção e uma negação do cristianismo. Apega-se a uma religião incapaz de
levá-lo ao verdadeiro Deus, conservando-o na idolatria, na construção de uma
fé fundada como uma casa na areia, um edifício a ruir diante da primeira
confrontação com a realidade absoluta do Filho de Deus e seu evangelho.
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é
dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; porque somos
feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus
preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).
A fé nos é dada por Deus, de modo que não há obras meritórias possíveis
de levar-nos à fé, para que nenhum de nós glorie-se de si mesmo. Então o
apóstolo diz algo ainda mais claro, que somos feitura de Deus, ou seja, feitos
por ele, não no sentido de criaturas meramente, assim como as pedras,
plantas, animais e a humanidade de maneira geral, mas feitos filhos, co-
herdeiros de Cristo e santos à sua imagem e semelhança. Somente este trecho
já seria suficiente para desmoronar toda e qualquer possibilidade de
autoexaltação do homem, já que não fizemos nada para merecer o favor de
Deus, mas, pelo contrário, o que somos, foi pelo poder daquele que nos fez
como tal. Complementando, Paulo afirma que fomos criados em Cristo, ou
seja, o novo homem somente pode nascer em Cristo e jamais fora dele. Não
há chance de eu, por mim mesmo, pelo meu esforço, crer para somente então
ser transformado. Não há como definir com exatidão como e quando se dá a
criação do novo homem, o homem regenerado, porém, evidencia-se a
impossibilidade de qualquer fé ou crença em Cristo surgir fora ou antes de
sermos criados nele. A fé pode ser simultânea, no que acredito, ou vir
imediatamente após essa criação, a do novo nascimento, mas jamais antes:
Neste ponto, farei um aparte. O conceito do “salvo uma vez, salvo para
sempre”, tem a ideia falsa e distorcida e capciosa, aventada por muitos, de
que isso acontece porque o homem “autorizou” Deus a preservá-lo da
condenação. Ora, essa visão é abominável! O homem, do qual o salmista diz
não proceder bem algum e em quem reside apenas a imundície (Sl 53.1-3),
não seria capaz de desejar e almejar algo tão santo quanto a preservação do
pecado e da condenação, como a busca pela santidade, como a obediência e o
serviço a Deus, desejando ansiosamente a sua vontade estar conformada à
vontade do seu Senhor. Não, não é possível ao homem, que em sua natureza
está em oposição a tudo quanto é santo e bom, reivindicar algo que somente
vem para si, e posteriormente emana de si, a partir do Eterno e Santo. Ou
seja, todo o bem produzido pelo homem tem origem no próprio Bem, Deus.
Agora, vem a seguinte dificuldade: por que então Judas alertou a igreja
quanto à possibilidade de apostasia, proposta pelos falsos mestres, se somos
preservados por Deus? Por que a Bíblia insiste em alertar-nos de algo no qual
jamais cairemos?
“Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa
obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo” (Fp 1.6).
É Deus quem iniciou a boa obra, não nós; é ele quem a aperfeiçoará, não
nós, até o dia glorioso de Cristo. Deus age no homem, pelo poder do Espírito
Santo, nos capacitando, instruindo, disciplinando a fim de, numa linha
crescente e contínua, sermos aperfeiçoados à estatura do Senhor. Com isto
não estou a dizer que não haverá percalços, tropeços e quedas, pois eles
acontecerão. Entretanto, a obra de santificação realizada por Deus é um
aprendizado, no qual os erros significarão lições a fim de sermos
pedagogicamente orientados a evitá-los. Sim, pode parecer loucura, mas até
mesmo os pecados cometidos após a conversão são utilizados por Deus para
o nosso aperfeiçoamento; seja na lição de humildade em que reconhecemos
as fraquezas e insuficiências que nos levariam à exaltação; seja no ódio ao
pecado; seja na dependência e entrega total dos nossos desígnios àquele
unicamente sábio, perfeito e santo para nos guiar em meio aos tortuosos
caminhos da vida, nos conduzindo certeira e firmemente até o dia em que
alcançaremos a estatura de Cristo.
Como um pedagogo, Deus nos instrui mediante a sua palavra como agir
diante de um mundo perdido e caído da sua graça, em declaração explícita de
inimizade. É ele quem nos capacita às boas obras? Sim. É ele quem realiza as
boas obras? Sim, e não. Elas foram preparadas para nós por ele, mas nós é
que andamos nelas; pelo seu poder, mas também pelo nosso querer. Se antes
a vontade do homem era conduzida pelo pecado, agora ela é conduzida pelo
Espírito. Ele nos guia e impulsiona a querer sempre agradá-lo, ainda que, vez
ou outra, isso não aconteça, pois ainda estamos, de certa maneira, sob a
influência do pecado, não como o dominador absoluto, mas como aquele
derrotado que insiste em uma última investida e pode levar à baixa de um ou
outro soldado inimigo. O pecado vencerá algumas batalhas em nossa vida,
mas a guerra foi definitivamente vencida por Cristo. É isso que precisamos
entender. A vitória é dele, e somos o seu troféu, mas a impressão que temos é
de ainda não sermos completamente dele, quando, na verdade, sempre fomos.
Por isso, oramos no Espírito, não como uma forma de convencer a Deus
da nossa vontade, mas como a sua vontade cumprindo-se em nós. Paulo diz
que o Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis, ajudando-nos
em nossa fraqueza:
“Porque não sabemos o que havemos de pedir como convém” (Rm 8.26).
Terceiro, Deus nos quer aqui, como servos a realizar a sua obra, com
todas as dificuldades e os percalços inerentes a ela, em um mundo
contradizente. Como testemunhas de Cristo, falamos a um mundo perdido
coisas incompreensíveis, não por sabedoria ou sinais, mas pelo poder do
Evangelho, que é sabedoria e presença divinas. Alegar que não há sentido em
fazer aquilo que se deve fazer, ou supor que isso em nada nos aperfeiçoaria,
visto a impossibilidade de se perder a salvação, é uma forma desesperada de
encontrar algum mérito onde não há. Ao chamar-nos de servos inúteis, o
Senhor disse que “fizemos somente o que devíamos fazer” (Lc 17.10), nem
mais, nem menos, apenas o necessário. Logo, não há glória e merecimento
em fazer o que é ordenado. Tratando-nos como o que éramos, seres caídos e
enfermos, o Senhor mantém-nos de pé e saudáveis, ensinando-nos, muitas
vezes, a nos levantar e a evitar certos perigos.
“Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós,
sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8);
E, ainda:
“Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: que Deus enviou seu
Filho unigênito ao mundo, para que por ele vivamos” (1Jo 4.9).
“Aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam
comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque tu me amaste
antes da fundação do mundo” (Jo 17.24).
Cristo nos amou eternamente e é pelo seu amor que seremos preservados,
pois o amor do Pai pelo Filho é o mesmo que está em nós, levando o Senhor
a guardar-nos, recebidos nele e através dele pelas mãos do Pai, sem que
nenhum de nós possa se perder ou perecer (Jo 17.12; 26) ou achar-se como
um convidado que perdeu o convite e foi barrado na festa. Sim, usando esta
analogia, a Bíblia nos revela estar o convite nas mãos de Cristo, o qual nos
faz entrar nos lugares celestiais e ali nos assentar e nos fartar com as infinitas
bênçãos concedidas por Deus.
Primeiro, vamos definir a palavra santo, que quer dizer separado. Como
Deus é santo, ele é separado de toda a sua criação. Existe a ideia errônea e
antibíblica de que a criação é a extensão de Deus, como se tudo o que veio a
existir pelo poder da sua palavra fizesse parte dele. Esta visão é pagã,
comumente chamada de panteísmo (grego: pan, “tudo”, + theós, “deus”), a
qual define ser Deus o todo e o todo Deus; uma espécie de universalidade dos
seres formando a divindade, onde o conjunto de todas as criaturas, materiais e
espirituais, a sua totalidade, compõem a unidade de Deus. O problema dessa
doutrina é que a criação e o Criador se confundem e se fundem, assim como
o infinito e o finito, o material e o espiritual, o que leva ao conceito de tanto
um como outro serem autocriados ou poderem ser criados por outra força.
Mas toda essa confusão é fruto de mais uma artimanha do maligno, sempre
promovendo a mentira, o qual:
A Bíblia nos revela o contrário: toda a criação, seja para o bem ou mal,
material e espiritual, está separada de Deus, não é uma “extensão” dele, nem
subsiste e vive nele, mas é sustentada e sobrevive por ele; bem diferente do
sistema proclamado pelos pagãos, anacrônico à Bíblia. Com isso, nega-se que
a criação existe, vive e se mantém pelo poder de Deus, segundo a sua
vontade, e nada além disso.
“Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se
subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás
também” (Sl 139.7-8).
O que a Escritura diz, com clareza, é o fato de Deus estar em todos os
lugares; não há recôndito inalcançável para ele, o que, no entanto, é
diametralmente oposto à ideia de ele ser tudo, e tudo ser ele:
Então Deus está separado de toda a criação, ainda que ela seja
consequência do seu atributo de onipotência. Porém, como Deus é perfeito,
puro e justo, é distinto da criação, que não possui a perfeição, a pureza e a
justiça divinas, sendo imperfeita, impura e injusta, se olharmos para tudo o
que existe depois da Queda.
As obras de Deus não são Deus, ainda que existam por e para Deus.
Logo, são pertencentes e sujeitas a ele (tanto para nascer, como viver e
morrer), sem que possam “contaminá-lo”, antes é o Senhor quem as santifica
ou não, segundo a sua soberana vontade.
Por isso a Bíblia afirma que todos pecaram e destituídos estão da glória
de Deus (Rm 3.23). Há uma separação natural entre o Criador e as criaturas
em virtude de suas naturezas distintas, agravada pelo pecado, distanciando as
criaturas ainda mais do Senhor. Por isso, do ponto de vista temporal, Deus se
aproximará daquelas salvas eternamente por Cristo e jamais se achegará
àquelas eternamente destinadas à perdição.
Do ponto de vista atemporal, Deus sempre estará próximo do eleito,
mesmo que, no tempo, ele ainda não seja convertido, pois a salvação
aconteceu no tempo, mas foi decretada na eternidade. Graças a ele, Cristo, o
Cordeiro sem pecado, o qual morreu na cruz e ressuscitou para levantar um
povo para si, diante de Deus, manter-nos-á mais alvos e mais brancos do que
a neve (Sl 51.7), sem nenhuma mácula, santos como santo é o nosso Deus:
“Porquanto está escrito: Sede santos, porque eu sou santo” (1Pe 1.16).
O dilema persiste: o homem não pode se tornar santo nem Deus ter
comunhão com o pecador. Logo Deus, que está fora do tempo, já nos tem
como santos, porque fomos santificados eternamente. Ao promulgar o
decreto eterno, sendo o Senhor imutável e garantindo que toda a sua vontade
se realizará infalivelmente, “pois nenhum dos teus propósitos pode ser
impedido” (Jó 42), mesmo sem ainda existir, o eleito já está salvo, já é santo.
A vontade e decisão em eleger um povo para si não aconteceu no tempo, nem
se deu necessariamente nele e por ele, mas muito antes de Deus o criar.
Também escolheu a forma de como o processo ocorreria, e, por nossas
limitações, tomássemos consciência da pecaminosidade natural, do estado
degradante, da morte iminente e incontestável caso ele não tivesse nos
escolhido. Pois a santidade divina é que nos impede de permanecer no
pecado, transformando pecadores em santos, aos nossos olhos, porém aos
seus olhos já fomos santificados pelo sacrifício de Cristo, muito antes de o
Senhor morrer na cruz.
Certo é que somos nós a alcançar a santidade, não é Deus quem a alcança
por nós; já que ele é e sempre foi santo e não precisa alcançar nada. Ele é e
sempre foi o perfeito Senhor do universo. Deus nos capacita, nos habilita e
transforma para sermos santos, constituindo-nos parte do corpo do seu Filho
Amado, o qual é a cabeça. Assim, seremos um com todos os escolhidos, os
quais são justificados exclusivamente por Deus. A obra é dele, mas nós é que
somos feitos santos e mantidos santificados, portanto devemos sempre buscá-
la, clamar ao Senhor que nos transforme a cada dia, para que a boa obra seja
concluída.
Ao fim, como o próprio Senhor disse, seremos um com ele, assim como o
Pai é um com o Filho (Jo 17.21). Seremos separados para ele, por intermédio
dele, para a sua glória; definitivamente afastados do pecado, da morte, da
corrupção e do mal. Não se trata de panteísmo, mas do cristianismo bíblico,
porque as criaturas destinadas à perdição estarão irremediavelmente
separadas de Deus, na eternidade, ao contrário de nós.
- Exortar e edificar uns aos outros (1Ts 5.11, Hb 3.12-14). Exortar é uma
palavra que traz vários significados: aconselhar, persuadir; animar, encorajar,
incitar, sempre em relação à uma vida de fé genuína e santa ao serviço de
Deus;
Estes são princípios estabelecidos por Deus para o seu povo caminhar em
unidade e santidade, cumprindo o seu mandamento de amar ao próximo
como a si mesmo e levando a cabo o seu projeto de ajuntar para si um povo.
Na verdade, o ensino que temos, de amar o próximo mais do que a nós
mesmos, é superior, muito superior. Afinal, foi assim que Cristo agiu, o
Santo, o Justo, o Perfeito, o Eterno, ao entregar-se, sacrificar-se, fazendo-se
um de nós, para resgatar criaturas caídas, para reconciliar inimigos com Deus.
Ele nos amou com um amor superior, levando-o à cruz para que fôssemos
libertos do pecado e condenação: a morte eterna e definitiva. Devemos ter em
mente sempre o outro, especialmente o irmão, caminhando com ele, lado a
lado, em meio às tribulações, tristezas, sofrimentos e dores infligidas pelo
mundo, sustentando-nos mutuamente. Por isso, somos admoestados a orar,
exortar, instruir-nos em reciprocidade, além de carregarmos os fardos duros e
pesados uns dos outros, de forma que ele se torne mais leve para o irmão, o
qual também nos auxiliará a diminuir o peso das nossas cargas.
Sabemos que é pelo poder de Cristo, por sua bondade e misericórdia, que
recebemos o consolo e o alívio nas atribulações, pois, sem ele, nada seríamos
ou poderíamos realizar, a não ser conformarmo-nos com a condição de
perdidos, de rebeldes, um estado sequer detectado por nossa mente
deteriorada e à deriva em meio à perversidade da alma. Contudo, é
estimulante saber do interesse dos irmãos pelo nosso sofrimento e dores. Que
cada um, segundo o dom distribuído pelo Espírito, esteja disposto a
reconhecê-las como também sendo suas, já que os membros colaboram,
individualmente, para o bem de todo o corpo.
Creio também serem essas orientações dadas para não nos preocuparmos
além do necessário com os nossos problemas. Esse é o caráter pedagógico do
auxílio, não nos deixar entristecer em exagero, mais do que a tristeza
convém, além de, em certa medida, podermos nos alegrar no zelo e sustento
para com o irmão aflito. Parece contraditório, mas o sofrimento do outro nos
pode tirar do círculo vicioso em que muitas vezes nos encontramos, um
círculo não raramente vitimista, no qual a autopiedade, o “coitadismo”, nos
invade. Em meio aos problemas triviais e corriqueiros do dia-a-dia, temos a
dimensão exata da fragilidade e de como supervalorizamos as mazelas e
aflições. Igualmente, a nossa tristeza com a dor e angústia alheias pode
tornar-se alegria para o sofredor, ao não se reconhecer sozinho e abandonado
em sua luta, fortalecendo-o de forma que também somos fortalecidos. Na
física, este princípio seria chamado de “lei da ação e reação”, na qual o amor
e a piedade atribuídos retornam-nos de forma equivalente: o amor fraternal!
Com isto, não estou a proclamar a inexistência da igreja, aquela por quem
Cristo morreu, mas, como Judas, alerto para uma deterioração progressiva
dos princípios norteadores e fundamentais da fé cristã, o ensinamento de
Cristo e dos apóstolos, sem os quais a igreja sucumbirá como uma árvore
podre ou sem raízes. Infelizmente, boa parte da igreja tem se especializado
em absorver as inovações, práticas ou táticas mundanas numa tentativa
tresloucada de se fazer mais relevante. Para alguns, a relevância está em
terem o reconhecimento do mundo, seja do ponto de vista intelectual, moral
ou cultural, demonstrando pouca ou nenhuma convicção da fé, em um
titubear perigoso e mortal, no qual a vontade expressa de Deus, o ensino de
Cristo e dos apóstolos e a sua realização na igreja, no decorrer dos últimos
vinte séculos, parece muito pouco diante de todos os holofotes lançados sobre
a vivência não cristã. Como se esta fosse de qualidade superior, ela seduz
aqueles pouco familiarizados com a Escritura e a história da igreja, as quais
desprezam sem conhecimento, querendo substitui-las pela ineficácia daquilo
que se provou incompetente, mas sem atestar a validade da Escritura e da
igreja. Seja pelo desleixo comum do homem moderno com as coisas de Deus,
seja pela sedução a tudo que o afasta do Altíssimo, acreditam na efemeridade
e relativismo das “novas verdades” em detrimento da perene e absoluta
verdade, Cristo e suas Boas Novas. Erguem um altar ao autossacrifício, onde
o homem se imolará quantas vezes for necessário para demonstrar o quanto
está morto para Deus, sem estar vivo para si mesmo ou para o mundo. Nunca
a afirmação de que “o mundo inteiro jaz no maligno” (1 Jo 5.19) foi tão
apropriada para identificar uma boa parte da igreja cristã no presente século,
cuja associação com o paganismo, a imoralidade e o secularismo a tem
transformado em significativo meio de diversão e distração na direção do
pecado, na desobediência e inobservância dos preceitos divinos e em um
veículo de propagação e difusão do anticristianismo, do antibiblicismo, da
pós-modernidade, da libertinagem. Em suma, a igreja secularizada faz uma
oposição desembaraçada e escancarada a tudo que se refere a Deus, na ilusão
de que, agradando a si mesmo e a seus pares, quem sabe, Deus também se
agrade.
A parábola dos talentos assevera mais fortemente este ensino (Mt 25.14-
30 cf. Lc 12.42-48), no sentido de sermos mordomos das dádivas divinas, e
quanto mais ele as derrama sobre nós, mais devemos honrá-lo, produzindo os
frutos proporcionais à sua bondade, misericórdia e graça[155]. Ou seja, somos
ordenados a cuidar com amor, empenho e dedicação de tudo o que dispomos
e que nos é ofertado graciosamente. Não o fazer implicará em omissão,
negligência e desobediência, tendo por consequência a ordem proferida pelo
Senhor:
“Não veio sobre vós tentação senão, humana, mas fiel é Deus, que não
vos deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o
escape, para que a possais suportar” (1Co 10.13).
Tornou-se comum, entre os crentes, proferir frases como a abaixo, com ares
de sapiência e autoridade autoinvestidas, mas não passando de um arremedo
inexplicável para algo não entendido, ou simplesmente distorcido:
Essa mesma originalidade fez Adão e Eva caírem; fez Caim matar seu
irmão Abel, fez os homens construírem a Torre de Babel; desprezarem os
alertas de Noé quanto ao julgamento divino através do dilúvio; matarem os
profetas que proclamavam a Palavra de Deus; convenceu Davi a assassinar
covardemente um soldado a fim de adulterar com sua esposa; fez os
descrentes crucificarem Cristo; perseguirem a igreja e matarem os santos;
implementarem heresias, corrupções e formatarem os “antievangelhos”, com
o nítido objetivo de dispersar o rebanho do Senhor, como se fosse possível
espalhar aquilo ajuntado por ele, pelo poder do seu sangue na cruz (At 20.29).
E nós? Podemos pedir para que os irmãos nos imitem assim como
imitamos a Cristo? Ou nossa consciência entra em polvorosa, correndo
apressada a dizer-lhes: “Não, não façam isso! Olhe apenas para o Senhor!”?
Na verdade, quando alguém afirma: “Não olhe para mim, olhe para
Cristo”, está rejeitando, em seu coração, o próprio Evangelho; está se
colocando vergonhosamente como alguém que não precisa seguir exemplos e
nem mesmo pode ser um. Considera-se autossuficiente, como alguém que
pode recusar qualquer conselho, exortação ou ensinamento, pois não se deve
olhar para mais ninguém. Nisso, muitos acabam erroneamente por segui-lo...
Contudo, Deus é um desconhecido para essa espécie de crente, o que nos
levará, inevitavelmente, à seguinte pergunta: como esse “super-homem”
pode olhar com exclusividade para o Senhor, conhecê-lo e à sua vontade, se
não se enquadra nas características de Paulo? Afirmando, com todas as letras,
não ser preciso imitá-lo?
É possível?
Não se segue ninguém, porque assim pode-se viver como quiser, à revelia
da Escritura, da unidade da igreja, sem que nada nem ninguém o leve a imitar
Cristo. A independência e a liberdade cristãs implicam em conhecer ao
Senhor e a sua vontade, empenhando-se em obedecer-lhe, cumprindo e
realizando-a. Ao contrário de muitos, a advogar uma “liberdade” livre de
Deus, engana-se o homem a supor-se independente em si, repetindo aquele
velho e surrado chavão dos prisioneiros: “Eu penso por mim mesmo, não sigo
ninguém; não sou como o boi em meio à boiada”. Tolo! Não sabe que a sua
alma está aprisionada, cerceada, limitada, ao pecado a habitá-lo? Pelo pecado
a dominá-lo? Esquece-se de ter uma mente contaminada, escravizada pela
iniquidade, e, como resposta, fará a vontade dela, a qual controla e orienta
sua mente e desejo? A simples ideia de autonomia da vontade é a
demonstração de como a mente trabalha em favor do pecado, iludindo-o com
a falsa afirmação de não estar preso, quando suas mãos e pés balançam bolas
de chumbo ligadas por correntes, arrastando-as em meio aos gritos de: “sou
livre!”. Como a minha sábia mãe dizia: “O pior cego é o que não quer ver!”.
Mas como enxergar, se há uma neblina a ofuscar-lhe as vistas, brumas densas
a mantê-lo na escuridão, enquanto repete, como um mantra, o jargão: “Sou
livre; eu vejo!”? Como, certa vez, me disse um irmão: “O desejo de
autonomia de Adão levou-o à prisão”. E todos os homens, depois dele,
aspiraram ao mesmo e alcançaram o que não queriam. No entanto, tornou-se
inevitável, pela desobediência a Deus e a rebeldia injetada no coração, serem
“donos dos próprios narizes”; culminando na afirmação divina, nos tempos
de Noé:
“A terra, porém, estava corrompida diante de Deus, e cheia de
violência. Viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a
carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra” (Gn 6.11-12).
Ao anular a si mesmo, não estou a dizer que você deve deixar de ser
quem é, o que é verdade em vários aspectos, mas deixar o Espírito
transformá-lo em algo melhor, muito melhor, moldá-lo segundo a sua santa
vontade. Pois é a natureza humana, perdida e deturbada no Éden pós-Queda,
a ressurgir com vida da morte, tornando-se de novo como o Adão antes do
pecado, não em um estalar de dedos, como em um passe de mágica, mas em
um processo a culminar na pureza e santidade do homem criado à imagem e
semelhança de Cristo. Desse modo, o homem torna-se capaz de deleitar-se,
comprazer-se, e, finalmente, encontrar o verdadeiro homem perdido no
paraíso terrestre, mas encontrado no homem santo, imaculado, Jesus, cuja
imagem começou a formar-se no ato da conversão e se consolidará quando da
sua segunda vinda, em glória e poder, para levar a sua igreja e, com ela, na
eternidade, viver.
Desta forma, o nosso amor estabelece-se com Deus pela gratidão por se
humilhar, encarnar, viver, sofrer e morrer a morte maldita e humilhante pela
sua igreja, seu povo, do qual somos participantes. Assim, Cristo restitui-lhe o
amor na devoção, servidão, obediência a ele, Senhor e fidalgo das nossas
almas, mas, também, ao próximo, ao se fazer uma entrega voluntária, sem
benefícios, às vezes assumindo todos os prejuízos, porque assim nos alegra
viver, à semelhança do nosso Redentor.
Não seguir os homens naquilo em que são bíblicos, fará seguir os que não
são bíblicos naquilo em que são diabólicos. Essa não é a vontade de Deus,
mas somente outra forma de o mal aprisioná-lo ainda mais.
Soldados na Guerra Virtuosa
A palavra grega para salvar, usada pelo autor, é “sõzõ”, a qual tem vários
significados, tal qual sua sinônima em português. No contexto da carta,
entendo-a como expressão de “socorrer”, “auxiliar”, “acudir”, em
conformidade com o verso 22, no sentido de sustentação dos mais fracos,
daqueles claudicantes, vacilantes na fé, pelos mais maduros e experimentados
espiritualmente. A referência não é ao convertido, ao homem regenerado pelo
Espírito, mas àqueles que, estando na igreja, ainda não conheceram a graça e
a misericórdia divinas, permanecendo em seu estado caído. Diz respeito
também aos inconversos fora da igreja, homens vivendo segundo o padrão
mundano.
Se, envoltos na tolice, na estupidez, fomos levados das trevas à luz, pela
pregação e ação do Espírito Santo, por que outros também não podem receber
da mesma graça maravilhosa? Não há desculpas! Se por um lado é dever
denunciar os falsos mestres, é também obrigação resgatar da mentira, da
escuridão, irmãos que, como nós, vagavam (e ainda vagam) desorientados,
perdidos, em um mundo achado somente em sua desordem e vergonha.
Deus nos vestiu de túnicas brancas, mais alvas do que a neve, pelos
méritos exclusivos do seu Filho, substituindo as manchadas de carmesim, tal
qual os homens naturais se encontram, incapazes de notarem a corrupção do
seu estado. Por isso necessitam desesperadamente de Cristo, sendo que não
há como reconhecê-lo a não ser através da sua palavra e do nosso
testemunho, asseverando que tudo aquilo falado, não somente falamos, da
boca para fora, mas porque o coração está cheio da verdade, a ponto de exalar
da nossa pele e dos poros o seu bom Perfume. Devemos manifestar em todo
lugar a fragrância do seu conhecimento, mostrando que nada é imprescindível
a não ser ele, o Senhor (2Co 2.14-15).
“Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do
Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em
santificação do Espírito, e fé da verdade;
Para o que pelo nosso evangelho vos chamou, para alcançardes a glória de
nosso Senhor Jesus Cristo.
Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas,
seja por palavra, seja por epístola nossa.
E o próprio nosso Senhor Jesus Cristo e nosso Deus e Pai, que nos amou, e
em graça nos deu uma eterna consolação e boa esperança,
Console os vossos corações, e vos confirme em toda a boa palavra e obra
(2Ts 2.13-17)
PARTE ONZE
PRESERVADOS EM CRISTO
“Ora,
Amém”
Feitos à Imagem do Filho
O fim de tudo é a sua glória: ele não quer nada menos do que isso, o seu
nome louvado por toda a criação e, em especial, pelo seu povo. Nisso está o
culminar grandioso de toda a sua obra esplêndida e magnífica, revelada pelo
seu poder, sabedoria, perfeição e santidade. Este é o objetivo final de Deus
para a sua Criação, devendo ela o exaltar, revelando-o como Senhor bendito e
glorioso de todas as coisas.
Tal qual um escultor não se confunde com a sua obra (mesmo alguns
reputando ser isso possível), visto a obra existir como objeto dependente, não
tendo o necessário para se auto gerar, ela não se confunde com ele, não é ele,
nem pode sê-lo, antes, carece da habilidade manual do artífice, consequência
da sua vontade e labor. Ainda que reproduza elementos distintos do seu autor,
como a aptidão, inteligência, engenhosidade, estilo, podendo, até mesmo, ser
uma síntese do criador, um reflexo da sua personalidade, por exemplo, ela é
uma obra, uma criação, não tem vida própria, e se sustenta apenas naquele
que a levou a existência.
Nenhuma obra permanece por si mesma. Ela existe pelo seu criador, o
qual, mesmo morto, faz-se presente nela e vive através dela: não nela, mas
através dela reconhecemos a sua genialidade, sua sensibilidade, seu intelecto,
precisão, vigor, ou seja, capacidade artística ou de criação. Mesmo alguém
desconhecendo a autoria da Mona Lisa, ao vê-la, perguntará, o óbvio: Quem
a pintou?... Porque ela não engendrou a si mesma, e, na verdade, vive às
custas do seu autor, na dependência dele, enquanto durar, para ser o que é,
não sendo nada além daquilo elaborado pelo trabalho e realização da mente e
ação do seu criador.
Acontece ser esta a resposta para outra pergunta, não aquela formulada no
início, mesmo podendo ajudar em sua delineação.
Uma pausa:
Tudo no universo tem por objetivo revelar a Deus. O homem foi criado
para isso. A Lei, entregue a Moisés, também. Porém, somente Cristo, o Filho
Amado, foi quem o revelou (Jo 1.18). Muito antes de os céus e terra
surgirem, estava determinado que o Verbo se encarnaria, se faria homem
como nós, para que Deus nos fosse manifestado, conhecido. Muito antes de
Adão cair, estava certo que Cristo viria ao mundo, pois somente assim seria
possível conhecer o Pai na plenitude do Filho, “o qual, sendo o resplendor da
sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa” (Hb 1.3) mostrou-nos a si
mesmo, Deus!
Novo parênteses.
Quando Paulo diz que com Cristo padecemos para que sejamos
glorificados, descreve-nos exatamente o acontecido ao Senhor. Era necessário
que o seu sangue fosse derramado para haver paz, e:
“Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos
céus, e na terra, e debaixo da terra. E toda a língua confesse que Jesus
Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.10-11).
Portanto, assim como Cristo, devemos padecer até o fim, seja na entrega
do espírito impiedoso à morte, seja na entrega do corpo temporal ao martírio,
na acolhida do bem, na mitigação do mal, a fim de sermos como ele é,
glorificados na vida temporal e eterna, por nossa sujeição, não à força, nem
por imposição, mas pelo seu amor e graça eternos.
Esta foi a resposta que dei, naquela ocasião, ao meu interlocutor. Deus
nos quer e sempre nos quis semelhantes ao seu Filho Amado, de forma que
tudo, desde o seu início, muito antes de criar céus e terra, tinha isto por certo:
fazer um povo que em tudo fosse da mesma qualidade, tendo a virtude das
virtudes, a santidade de Cristo, e pudesse reconhecer-se nele, como imagem
agora perfeita, santa e imaculada, assim como ele é. Assim como desfruta do
amor do Pai, também o desfrutamos, o lograremos, pela sua bondade infinita.
Somos participantes em tudo de que o Senhor também participa, a fim de que
ele seja tudo em todos. Nem menos, porque a perfeição e santidade somente
podem ser na medida exata de Cristo. Nem mais, porque é impossível
qualquer variação naquele que é, e se faz conhecido como o “Eu sou”.
Não entrarei nos meandros escatológicos, ainda que não seja possível
furtar-me de todo em adentrá-lo. Mais do que a discussão sobre os “fins dos
tempos”, quero revelar a minha imensa alegria com a esperança, a certeza da
concretização dessa promessa, como a de todas saídas das penas dos autores
inspirados por Deus, de a nossa paz estar firmada, concebida de maneira
nítida e real em Cristo, o Renovo (Is 11.1), a quem o profeta se referiu,
exaltando-o, muitos séculos antes do seu nascimento:
“Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo
sangue de Cristo chegastes perto. Porque ele é a nossa paz” (Ef 2.13-14).
Não uma paz meramente retórica, alcançada por meios humanos; uma paz
enganosa, apoiada em subterfúgios, em malabarismo semânticos, em
distorções da realidade, em eufemismos culturais e sociais; não uma paz
fomentada em gabinetes e discussões infindáveis e inócuas; não uma paz pela
força, conquistada pelos quartéis e tropas, somente possível como conquista
de uns sobre os outros. Tampouco uma paz que humilha e corrompe, destrói e
expropria a alma; não uma paz a custo de arames farpados, grilhões,
perseguições e morte; não uma paz impossível ao homem, mas exequível, em
plenitude, pela pessoa do mediador entre Deus e os homens, Jesus homem. A
paz a nos alcançar é verdadeira, não se resumindo a promessas vazias e
delírios de perfeição ideológica calcados na imperfeição, na deformação de
um sistema convulsivo onde se tenta criar a partir da destruição. Não é uma
paz que existe como fomento, nem como desarranjo civilizatório, a barbárie
por fingimento. A paz estabelecida por Cristo está no amor ao seu povo, um
amor sem oscilações, sem o sobe e desce emocional característicos da
humanidade, uma humanidade caída, incapaz não somente de construir uma
paz verdadeira, mas de sequer desejá-la, pois não a conhecendo, não se é
capaz de busca-la. Quando muito, atiram a esmo na esperança de acertar o
alvo, tal qual um cego dispara seu estilingue em meio a um tiroteio. Isso está
muito distante e muito diferente da humanidade santa e perfeita do Filho
Amado de Deus, que, à medida que o conhecemos, leva-nos a buscar a paz, a
experimentá-la. Afinal, ele é a paz e o único capaz de revelá-la, trazendo o
seu sentido real, como uma dádiva a envolver toda a nossa alma, arrancando-
nos a aflição e a intranquilidade belicosa. A paz cavalga nos lombos do amor,
sendo que esse amor não somente é a resposta correta a uma pergunta, mas a
causa e o provedor da paz, num tempo vindouro em que a sua glória e
esplendor nos envolverão como em um abrigo hospitaleiro, aconchegante e
seguro.
Por isso, cada vez mais entendo o quanto é proibitivo se agir segundo os
padrões do mundo, segundo as diretrizes traçadas pelas mentes envoltas em
escuridão. O objetivo é que não sejamos confundidos com eles e venhamos a
tatear os umbrais da rebeldia, do desprezo à sanidade, tornando-nos loucos,
como eles em sua demência, em cujas almas a insensatez impera. Caso
contrário, nos esquecemos de que:
“Ninguém pode pôr outro fundamento além do que já está posto, o qual é
Jesus Cristo” (1Co 3.11).
A sabedoria do mundo tenta nos enrodilhar, nos atrair com palavras doces
e aparentemente inofensivas, quando o objetivo é nada mais do que nos
destruir e fazer com que nos alinhemos aos esquadrões do mal, de modo a
tornar-nos loucos para Deus. O que isso quer dizer? Que daremos mais
importância para aquilo que Deus tornou loucura e desprezaremos o que fez
sabiamente: salvar os crentes pela loucura da pregação (1Co 1.21)!
No entanto, nós podemos fazê-lo, uma vez que nos foi dado alcançar a
graça e a fé pela pregação da Palavra e recebemos o Espírito de Deus, para
conhecer o que nos foi entregue gratuitamente por ele. Assim, está ao alcance
do cristão discernir bem:
Então, temos uma prévia do que poderá ser a eternidade, como nos diz o
profeta Isaías no início deste texto.
“Na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus
como as que estão na terra... com o fim de sermos para louvor da sua glória,
nós o que primeiros esperamos em Cristo” (Ef 1.10, 12).
Pois bem, o seu amor pode ser visto de duas maneiras, não se esquecendo
de que o esquema abaixo não se refere, em hipótese alguma, nem está
relacionado, ao conceito arminiano ou pelagiano de graça, mas estritamente à
cosmovisão calvinista:
Voltando à graça comum, por que não podem “os favores” ao ímpio
serem simplesmente a providência divina em ação, mesmo que Deus os
abomine, porém cumprindo o seu decreto ou plano eterno nas causas
secundárias envolvidas no projeto maior e necessárias para a sua execução?
Por que ele tem de amá-las, para usá-las conforme a sua vontade, na
execução do seu projeto? Muitas vezes, esses “favores” servirão para
endurecer o coração do ímpio, que em sua soberba e incredulidade honrará a
si mesmo ou a outro ídolo, não reconhecendo os méritos a quem de direito
pertencem, levando-o ainda mais para longe de Deus. Ao agir assim,
denuncia-se a ingratidão e a recusa em confessar a autoridade e bondade do
Criador. Não pode Deus utilizar a prosperidade de um ímpio para abençoar
um eleito? Nesse processo, ainda que o eleito esteja em débito com o ímpio,
não é ao Senhor que ele glorificará sempre, sabendo que a causa primeira da
bênção é o próprio Deus?[173]
Então, confrontado mais uma vez pela palavra de Deus, a bendita palavra
revelada, dada-nos para que, por meio dela e da ação do Espírito Santo
sejamos santificados, e cada dia mais semelhantes a Cristo, senti a minha
miséria e quão dependente sou da graça e misericórdia divinas. Afinal, o
principal e, por que não, único objetivo do crente nesta vida é ser como é o
Senhor. Não por algum mérito que haja em nós, nem por algum esforço, mas
pelo exclusivo poder e graça de Deus em nos transformar de miseráveis
pecadores em santos redimidos por seu Filho Amado.
O impacto ao lê-lo foi o de cair e rolar escada abaixo vinte andares até um
fosso profundo. Foi o de pular do avião sem paraquedas. A sensação de ser
perfurado, no abdome, por mil floretes ao mesmo tempo. Senti-me tão
miserável em toda a minha pecaminosidade, na ofensividade insidiosa contra
Deus, que os olhos marejaram, e lágrimas rolaram pelo rosto, envergonhado e
magoado comigo mesmo, pelo número de males praticados, pelo ataque
injurioso a ele. Duro, ainda, foi reconhecer atos cometidos, mesmo depois da
conversão, como um “revival” do velho homem tentando se reerguer das
catacumbas, sabendo que causam tristeza ao Espírito e que todos os alertas
não são suficientes para nos blindar da transgressão.
Ah, dor, como o meu coração está ferido e sangra por uma fidelidade
impossível, por uma santidade inatingível para o homem, insuficiente em si
mesmo de abarcá-la com a atenção e o desejo suficientes ao qual merece,
como a expressão sincera da adoração justa ao Santo dos santos!... A reação
foi a de ter os ossos quebrados, esmagados. Então, curvei-me, quedei-me
contrito, em silêncio, diante da santidade divina e da minha iniquidade; da
sua perfeição e dos meus vícios; da sua misericórdia e meus delitos; da sua
graça e minha miséria.
“Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem
algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem.
Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço...
Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm
7.18-19;24).
Como disse, outras vezes, não há tons cinzas na Escritura. Ela é preta e
branca, pois a luz dissipa as trevas, não tentando contemporizá-la, nem
assumindo o padrão de tolerância, muitas vezes, erroneamente, confundido
com a piedade. A tolerância visa a pacificar uma guerra, permitindo ao
inimigo manter-se intocado; esperando a situação se resolver por um acordo,
no qual a parte mais fraca, as trevas, seja reconhecida no mesmo patamar da
luz, como iguais, inclusive no direito à existência, enquanto um simples
facho ilumina por completo a escuridão, ruindo-a, demolindo-a.
Não é raro ver que esse tipo de pensamento enfraquece o forte, tira-lhe a
capacidade e a autoridade de revelar a debilidade alheia, seja na ideia, no
conceito, na aplicação, nos resultados. Assim, ele se resigna a fracassar na
vitória antecipadamente declarada, como se não a quisesse, como se a derrota
fosse mais honrosa e desejada. Há uma facilitação dos cristãos na atuação do
mal neste mundo, de tal forma cegados pelo ideal de fracasso que o vencido
se surpreende de ainda estar em pé e avançando para o front adversário, sem
muita reação e disposição contrária.
“Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra
os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais” (Ef.
6.12).
Pode ser que a nossa loucura nos leve a acreditar em uma eternidade
isenta de punição, um mundo em que um Deus complacente, criado à nossa
imagem e semelhança, perdoará todas as nossas iniquidades sem haver
contrição, arrependimento, como se estivesse obrigado a fazê-lo, sujeitando-
se ao “poder” emanado do homem, de condicioná-lo à sua vontade. Porém,
ainda que vivamos um delírio contínuo e continuado, gastando energia,
recursos e tempo em constantes deleites; ainda que o sonho nos mantenha
entorpecidos e o medo de acordar nos faça supor um pesadelo adiado
indefinidamente, mas que virá inexorável; ainda que se acredite na salvação
sem regeneração; tudo isto é motivo de lamento e choro, quando formos
colocados frente a frente com o Deus santo e toda a nossa imundícia nos for
exibida e lançada em rosto. Se nos gastarmos ainda mais nos deleites,
negligenciando os sinais, as advertências do evangelho, o lamento e o choro
serão eternos, a perdurarem assim como o fogo inextinguível do inferno. É
melhor chorar e lamentar agora, enquanto há tempo, enquanto o dia do Juízo
ainda não chegou.
Muitos dirão: mas isso é indigno! Não se deve rebaixar, pois a vontade de
Deus é nos exaltar. Acontece que, infelizmente, essa visão é o resultado do
autonomismo, de uma autoexaltação absurda, pois como poderia o homem
glorificar a si mesmo diante de Deus? Apenas o insano galgaria tal desejo. O
pecado é a loucura em sua forma mais virulenta, mais hostil, mais diabólica,
mais destrutiva de o homem tentar ou imaginar-se em pé de igualdade com o
Criador, capaz de dizer-lhe, sem qualquer pudor: sou dono do meu nariz e
sigo o meu desejo, apesar de ti!
Ah, louco! Débil! Suicida! O não conhecimento de Deus faz com que
esse homem desconheça a si mesmo e se ache digno e merecedor de alguma
atenção, de algum favor, quando nem mesmo a sua existência lhe deveria ser
concedida, se o critério fosse o seu valor. É graças a Deus que, por sua
misericórdia infinita, homens perversos e desobedientes vivem. Suas vidas
deveriam ser para a glória do Altíssimo, mas gastam-se os anos em um
endeusamento próprio, em erguer um trono de palha e areia para si mesmos,
um trono incapaz de sustentar-lhe o peso da alma, sem desmoronar, onde
suas consciências estão constantemente os acusando.
O homem quer ser exaltado sem ser rebaixado, sem ser preciso descair
em seu orgulho, em seus caprichos. Contudo, é o que o Senhor diz?
“Se alguém cuida ser alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si
mesmo” (Gl 6.3), e, “Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo
o que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6.7).
Ouvi a Paulo:
Lembrei-me de Cristo:
Reconheci que, se não fosse pelos méritos, pelo amor, pela santidade e
pelo poder de Cristo a nos preservarem e guardarem do mal, estaríamos
invariavelmente perdidos, impossibilitados de alcançarmos qualquer tipo de
comunhão com Deus. Nem Judas, nem eu ou você seríamos capazes ou
estaríamos interessados em louvar e bendizê-lo; tampouco, desejosos de,
naquele dia glorioso, apresentarmo-nos sem máculas, irrepreensíveis diante
da sua majestosa graça. Porque tudo é de Cristo, tudo, sem qualquer exceção,
louvor e honra e glória lhe pertencem e não é de mais ninguém, nem pode ser
dividido com mais alguém. Tudo é por ele, pois sem ele, nada poderíamos
fazer, e nenhum de nós pode sequer respirar sem a sua providência, quanto
mais fazer o bem, ser justo ou santo. Tudo é para ele, sendo que qualquer
oferta ou bem não pode ser destinado a mais ninguém, somente a Cristo!
✽✽✽
“Só a fé podia curar-me: desse modo, os olhos da minha
inteligência já purificada, se dirigiriam à tua verdade imutável e
perfeita. Mas, assim como acontece muitas vezes, depois de
experimentar um médico mau, receia-se confiar num bom, o mesmo
acontecia à saúde de minha alma, que somente poderia curar-se pela fé,
mas, para não acabar novamente acreditando em coisas falsas,
recusava a cura, resistindo a ti que fabricaste o remédio da fé e,
dotando-o de tão grande poder, o derramaste sobre todas as
enfermidades da terra!”